Responsabilidade social dos cientistas Natureza das ciências … · começaram a adquirir...

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Responsabilidade social dos cientistas Natureza das ciências exatas Samuel Macdowell As ciências da natureza e, particularmente, as ciências exatas começaram a adquirir características próprias, que as diferenciam da filosofia, das humanidades e hoje também das ciências sociais, a partir do século XVII, devido, principalmente, à influência de Galileu e de Newton e de suas posições em defesa de um pensamento científico independente e de uma metodologia própria. Em virtude destas características e do rápido desenvolvimento que tiveram, as ciências passaram a ocupar uma posição importante e, em certas épocas e circunstâncias, por vezes central na construção da sociedade e na evolução da cultura e do pensamento. Não pretendo focalizar, em maior profundidade, a história do desenvolvimento da ciência e do pensamento científico; limitar-me-ei a apontar algumas das características que marcaram, desde o início, a concepção que tinham da nova ciência os próprios cientistas, sobretudo aqueles que mais contribuíram para sua construção. As ciências exatas, isto é, as ciências físicas surgiram com base em precisas observações astronômicas de Ticho Brahe e da introdução, por Galileu, do método experimental como seu alicerce. Suas investigações levaram à formulação do princípio da inércia como fundamento da cinemática. A filosofia natural, que as precedeu, procurava entender e explicar os fenômenos naturais de um modo essencialmente qualitativo. Entretanto, utilizando as precisas medidas astronômicas de Ticho Brahe, Kepler descobre que os planetas movem-se em torno do Sol de acordo com certas leis que podem ser enunciadas rigorosamente em termos matemáticos. A partir de então, a descrição dos fenômenos naturais, pela nova ciência, toma um caráter quantitativo. A primeira grande síntese da ciência física deve-se ao gênio incomparável de Isaac Newton (1642-1727) 1 , que formulou as leis gerais da mecânica ao mesmo tempo que descobria a grande lei da atração universal gravitacional, que explicam não apenas as leis de Kepler, mas também fenômenos aparentemente tão diversos como a queda dos corpos, o movimento do pêndulo, o movimento da Lua em torno da Terra e o fenômeno das marés. Aqui ficam esboçadas três características de metodologia das ciências exatas. Primeira: a observação do fenômeno e utilização do método experimental para medir grandezas que podem ser quantificadas. Segunda: a formulação de hipóteses, modelos, leis e, finalmente, teorias e princípios que interpretam os fenômenos naturais usando uma linguagem matemática precisa. Terceira: que das leis teóricas assim formuladas podem-se deduzir l É interessante notar que, no seu monumental tratado Philosophiae Naturalis Principia Matematica (1687), Newton descreve as leis da mecânica e do movimento, exclusivamente em termos geométricos, conhecidos na época, embora houvesse criado o cálculo infinitesimal, utensílio mais apropriado para a formulação dessas leis.

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Responsabilidade socialdos cientistasNatureza das ciências exatasSamuel Macdowell

As ciências da natureza e,particularmente, as ciências exatascomeçaram a adquirir característicaspróprias, que as diferenciam dafilosofia, das humanidades e hojetambém das ciências sociais, a partirdo século XVII, devido,principalmente, à influência deGalileu e de Newton e de suasposições em defesa de um pensamentocientífico independente e de umametodologia própria.

Em virtude destas características e dorápido desenvolvimento que tiveram,as ciências passaram a ocupar umaposição importante e, em certasépocas e circunstâncias, por vezescentral na construção da sociedade ena evolução da cultura e dopensamento.

Não pretendo focalizar, em maiorprofundidade, a história dodesenvolvimento da ciência e dopensamento científico; limitar-me-ei aapontar algumas das característicasque marcaram, desde o início, aconcepção que tinham da nova ciênciaos próprios cientistas, sobretudoaqueles que mais contribuíram parasua construção.

As ciências exatas, isto é, as ciênciasfísicas surgiram com base em precisasobservações astronômicas de TichoBrahe e da introdução, por Galileu, dométodo experimental como seualicerce. Suas investigações levaram àformulação do princípio da inérciacomo fundamento da cinemática. Afilosofia natural, que as precedeu,

procurava entender e explicar osfenômenos naturais de um modoessencialmente qualitativo.

Entretanto, utilizando as precisasmedidas astronômicas de Ticho Brahe,Kepler descobre que os planetasmovem-se em torno do Sol de acordocom certas leis que podem serenunciadas rigorosamente em termosmatemáticos. A partir de então, adescrição dos fenômenos naturais,pela nova ciência, toma um caráterquantitativo.

A primeira grande síntese da ciênciafísica deve-se ao gênio incomparávelde Isaac Newton (1642-1727)1, queformulou as leis gerais da mecânica aomesmo tempo que descobria a grandelei da atração universal gravitacional,que explicam não apenas as leis deKepler, mas também fenômenosaparentemente tão diversos como aqueda dos corpos, o movimento dopêndulo, o movimento da Lua emtorno da Terra e o fenômeno dasmarés.

Aqui ficam já esboçadas trêscaracterísticas de metodologia dasciências exatas. Primeira: aobservação do fenômeno e utilizaçãodo método experimental para medirgrandezas que podem serquantificadas. Segunda: a formulaçãode hipóteses, modelos, leis e,finalmente, teorias e princípios queinterpretam os fenômenos naturaisusando uma linguagem matemáticaprecisa. Terceira: que das leis teóricasassim formuladas podem-se deduzir

l É interessante notar que, no seu monumental tratado Philosophiae Naturalis PrincipiaMatematica (1687), Newton descreve as leis da mecânica e do movimento,exclusivamente em termos geométricos, conhecidos na época, embora já houvessecriado o cálculo infinitesimal, utensílio mais apropriado para a formulação dessas leis.

previsões a respeito de novosfenômenos que podem ser testadas pormeio de medidas experimentais.

Portanto, a metodologia científicaenvolve, em geral, um ciclo que seinicia por observações e medidasexperimentais; estas conduzem àformulação de um modelo ou de umateoria expressa em linguagemmatemática, da qual podem-se extrairprevisões sobre novos fenômenos que,se confirmadas, justificam a validezda teoria (dentro de certos limites deaplicabilidade).

Por outro lado, os cientistas concebemas ciências da natureza como umaatividade intelectual cujo objetivo édescobrir e entender as leis que regemos fenômenos naturais. Ao contemplara natureza, o cientista é movido pelacuriosidade de desvendar seussegredos, usando, para isso, métodosexperimentais engenhosos e muitasvezes originais e procurandoentendê-los em termos genéricos,correlacionando, por meio de leis ouprincípios gerais, fenômenosaparentemente bem diversos.

A ciência da natureza, a ciência pura,tem um valor intrínseco estético quederiva da própria descoberta eapreciação do fenômeno novo, dascorrelações entre fenômenosanalisados à luz de princípios simplese sintéticos.

A contribuição da ciência para ahumanidade se situa primariamente noplano da cultura.

Os cientistas entendem que a ciência éuniversal e deve ser difundida sempreocupação de fronteiras, devantagens pessoais ou das instituiçõesque a promovem. Os resultados daspesquisas científicas são publicadosem revistas especializadas de livrecirculação ou difundidos emcongressos, freqüentemente de âmbitointernacional, sobretudo na eramoderna. As atas das academias deciência, com transcrição dos trabalhose comunicações submetidos em suasreuniões, são tornadas públicas epodem ser livremente usadas porqualquer pesquisador.

Este caráter universal da ciência pura,os cientistas vêm, ao longo da

história, esforçando-se zelosamentepor preservar através de colaboração eintercâmbio internacional e da livretroca de informação científica.

Historicamente, as universidades,como centros de transmissão deconhecimentos, livre discussão ecirculação de idéias e propagação dacultura, tornaram-se veículos porexcelência das atividades científicas,proporcionando o ambiente ementalidade necessários para oflorescimento das ciências.

Ciência e Tecnologia

Além de sua contribuição à cultura, odesenvolvimento científico propiciouimportantes avanços tecnológicos, quetiveram profundas conseqüências erepercussões sociais e também umgrande impacto na relação do homemcom o meio ambiente.

Por tecnologia entendo, aqui, aatividade de criação dos meios deutilização de recursos naturais emproveito do homem e da sociedade.

Alguns importantes avançostecnológicos resultaram de inventos edescobertas individuais isoladas,extremamente inteligentes eengenhosas, não-relacionadas,diretamente, a um desenvolvimentocientífico. Entretanto, maissistematicamente, os progressos datecnologia são fruto da aplicação deconhecimentos científicos.

Embora distintas, principalmentequanto a seus objetivos, ciência etecnologia estão estreitamentecorrelacionadas e cada vez maisinterdependentes.

Este entrelaçamento entre ciência etecnologia, não creio que sejameramente ocasional e acidental. Aciência, por sua naturezaexperimental, necessita de aparelhos einstrumentos de medida cada vez maissofisticados e precisos.

No passado, estes aparelhos einstrumentos eram freqüentementeinventados pelos próprios cientistas,cujo trabalho era predominantementeindividual. Avanços e novasdescobertas, na área experimental,freqüentemente resultaram da

Por tecnologiaentendo, aqui, aatividade de criaçãodos meios de utilizaçãode recursos naturaisem proveito do homeme da sociedade.

introdução de novas técnicas deinstrumentação e de medida. Estastécnicas, produzidas e testadas noslaboratórios de pesquisas científicas,são posteriormente utilizadas nodesenvolvimento tecnológico. Poroutro lado, avanços na tecnologiapermitem a construção deaparelhagens científicas maissofisticadas, com as quais novasfronteiras da ciência vão sendoabertas.

Citarei alguns exemplos através dahistória, que ilustram esta relação. Adescoberta da máquina a vapor (Watts,1779) teve como fundamento teórico alei de Boyle-Mariotte de expansão dosgases. Ela precedeu o aparecimento datermodinâmica no início do séculoXIX, cujos princípios gerais foramformulados a partir da contribuiçãopioneira de Sadi Carnot, umengenheiro, e das pesquisas de Joule,demonstrando a equivalência entrequantidade de calor e trabalhomecânico. O advento desta ciênciaserviu de base para inúmerasaplicações da máquina a vapor, que setornou instrumento decisivo nodesencadeamento da RevoluçãoIndustrial.

Os progressos na compreensão dosfenômenos eletromagnéticos,sobretudo devido à contribuição deFaraday (mas também de muitosoutros como Coulomb, Volta,Ampère, Biot e Savart, Gauss etc.), eque culminaram com a completaformulação da teoria por James ClerkMaxwell, foram responsáveis peloenorme avanço tecnológico queresultou da utilização da correnteelétrica e de campos magnéticos emgeradores e motores elétricos,dínamos, alternadores,transformadores e pela emergência daenergia elétrica com a construção dascentrais elétricas e das linhas detransmissão.

Posteriormente, a descoberta dasondas hertzianas vinha confirmar aprevisão da teoria de Maxwell epermitiu um novo meio decomunicação através da telegrafia e,com a invenção do diodo, daradiodifusão.

No início do século XX, ocorrem nafísica duas grandes revoluções quevão dominar a evolução desta ciênciadurante todo o século." A primeira, aTeoria da Relatividade, de Einstein, aRelatividade Especial (1905), quemodifica os fundamentos da MecânicaNewtoniana e a própria noção deespaço e tempo, e a RelatividadeGeral (1915), que reformula a Teoriada Gravitação, atribuindo-a apropriedades geométricas do espaço,adquiridas pela presença de matériaou energia. A segunda, a MecânicaQuântica, de Heisemberg eSchrodinger (1910), que reinterprete amecânica em termos probabilísticosem contraposição ao determinismo daMecânica Newtoniana (Princípio deincerteza, de Heisemberg). Em 1925,Dirac formula a Teoria Quântica doElétron, prevendo a existência dasantipartículas. Desenvolvem-se afísica atômica e molecular, a mecânicaestatística e a física do estado sólidoe, a partir da Segunda GuerraMundial, a eletrônica, a física nuclear,a ótica quântica, e a física daspartículas elementares.

Algumas descobertas importantestiveram enormes conseqüências para oprogresso tecnológico:supercondutividade, semicondutores,transistores, microondas, cavidadesressonantes, guias de ondas, lasers,ressonância nuclear magnética, fissãonuclear e fusão nuclear.

Uma nova ciência, a ciência dainformática, é criada como fruto doavanço tecnológico na acumulação eprocessamento de informação empastilhas semicondutoras de silício ena eletrônica dos circuitos integrados.

A física de partículas elementaressegue uma direção que se distanciabastante da física experimentalpraticada nos laboratórios dasuniversidades. Para investigar osubstrato mais primitivo da matéria emdomínios de dimensão cada vezmenores torna-se necessário construirgrandes aceleradores com diâmetro devários quilômetros e capazes deacelerar partículas até energias cadavez mais altas, da ordem de bilhões eaté um trilhão de Electron-Volts.

Estes laboratórios não são maisconstruídos e manejados por umpequeno grupo de cientistas. Elesrequerem um esforço nacional, comum orçamento enorme, de muitosmilhões de dólares, e até mesmo degrandes colaborações internacionais.

Sua construção é projetada pordesenhistas e engenheirosespecializados, e um corpopermanente de engenheiros e técnicosé utilizado no seu funcionamento. OCentre Européen pour la RechercheNucleaire (CERN), que é hoje o maiorlaboratório de pesquisas em física departículas elementares, mantém umcorpo de técnicos e engenheiros demais de 2 mil pessoas, o que énumericamente superior ao seu corpocientífico. Uma experiência, cujoprojeto e execução duram vários anos,envolve a colaboração de um númeroenorme de pesquisadores, mais deuma centena, provenientes de umgrande número de laboratórios ecentros de pesquisa de vários países.

Os objetivos primários desses grandeslaboratórios permanecem orientadospara a ciência pura e para adescoberta de novos fenômenoselementares na fronteira da física.Entretanto, não só a interdependênciaentre ciência e tecnologia torna-secada vez mais estreita, mas também acanalização de recursos públicos parafinanciamento de tais projetos atinge

Integração da Ciência no BemComum Social

Em virtude da ligação cada vez maiorentre progresso científico edesenvolvimento social, cabe aoscientistas indagar com mais freqüênciae de modo mais crítico e sistemáticosobre a utilização da ciência e dosresultados de suas pesquisas.

Creio que há evidência contundenteem favor do argumento de que osinvestimentos públicos em pesquisacientífica têm tido um retorno bastantecompensador em termos da utilizaçãopara o bem-estar social dos progressoscientíficos obtidos. Por outro lado,creio também que se pode questionar,não somente quanto à aplicação deconhecimentos científicos comfinalidades destrutivas ou nocivas àhumanidade e à natureza, mas tambémquanto à distribuição destes benefíciosentre diferentes setores da sociedade.

Considerarei aqui, em particular,quatro aspectos do relacionamento daciência com a sociedade que, a meuver, requerem a atenção e a reflexãodo cientista:

1) Aplicação da ciência com finsmilitares;

2) Impacto do avanço tecnológico eindustrial no meio ambiente;

3) Distribuição dos benefíciosresultantes do progresso científicoe tecnológico;

4) Difusão da ciência e o problema da

1. Aplicação da ciência com finsmilitares

Em todas as épocas da historia dahumanidade, grupos sociais utilizaramseus conhecimentos e compreensão defenômenos naturais com fins militares,para a construção de poderosas armasde guerra e artefatos de destruição.Entretanto, a descoberta dosarmamentos nucleares introduz umamudança qualitativa noequacionamento do problema daconvivência entre nações e daresolução de conflitos pelas armas.

Isto porque, mesmo que o uso debombas nucleares seja dirigido a alvosmilitares, as conseqüências deexplosões nucleares estendem-semuito além do local do alvo e pormuito tempo após a explosão, demodo a causar severos e irreparáveisdanos à população civil e ao meioambiente. Por outro lado, o usomaciço de explosivos nucleares, poruma ou mais das grandes potências,quaisquer que sejam os objetivos, teráconseqüências tão funestas ecatastróficas para a humanidade quesua própria sobrevivência ficaráameaçada.

Diante desta realidade, os cientistasdo mundo inteiro não se podem furtarà responsabilidade de assumirposições firmes e definidas contraquaisquer tentativas de expansão dacorrida armamentista e a favor demedidas que conduzam a uma reduçãodos arsenais nucleares e da ameaça deuma conflagração nuclear. Devemosempenhar nossos esforços no sentidode que sejam banidos, por consensouniversal, o uso, a fabricação e oarmazenamento de armas nucleares,assim como já foi banido, por comumacordo entre as nações, o uso daguerra bacteriológica.

Instituições especificamentecientíficas, que se mantiveram nopassado à margem do debate político,diante da nova situação criada pelaassustadora acumulação de armasnucleares, já se inclinam a tomarposições com respeito a decisõespolíticas relativas à promoção depesquisas científicas com objetivosmilitares, particularmente comreferência a armamentos nucleares.

Em particular, há uma crescentepreocupação nos meios científicosquanto à utilização de recentesprogressos científicos e tecnológicos(por exemplo, lasers) com a finalidadede proporcionar aperfeiçoamentosqualitativos em sistemasarmamentícios de tal monta, quepossam desencadear um sériodesequilíbrio de poder (por exemplo,a "Strategic Defense Initiative") e umrecrudescimento da corridaarmamentista.

2. Impacto do avanço tecnológico eIndustrial no meio ambiente

As descobertas da fissão e,posteriormente, da fusão nuclear sãoexemplos característicos dedesenvolvimento científico comprofunda repercussão social e impactosobre o meio ambiente. Além de suautilização para fins militares, da qualjá falei, elas proporcionam uma novafonte de produção de energia para finspacíficos e humanitários, que,principalmente com referência à fusãonuclear, é potencialmente de imensavalia.

Entretanto, a implementação datecnologia nuclear envolve sériosriscos e problemas que não estãoainda satisfatoriamente resolvidos.No planejamento e funcionamento deusinas nucleares, o fator segurançadeve merecer absoluta prioridade. Istoporque, de um acidente num reatornuclear, pode resultar extensacontaminação de águas fluviais ouliberação e propagação na atmosferade isótopos radioativos de vida longa,que podem causar grandes danos àpopulação das áreas atingidas. Osacidentes no reator nuclear deChernobil, na União Soviética, e como reator de Three Mile Island, nosEstados Unidos, são evidencias desseperigo.

Outra consideração importante noaproveitamento da energia nuclear é aquestão da disposição do chamadolixo nuclear, isto é, dos isótoposradioativos de vida muito longaproduzidos no processo de fissão docombustível nuclear.

Estas questões, é claro, têm sidoobjeto de intensos estudos e debates.

(...) a descoberta dosarmamentos nucleares

introduz umamudança qualitativa

no equacionamento doproblema da

convivência entrenações e da resolução

de conflitos pelasarmas.

Não sou um especialista nesteassunto, mas, ao focalizá-lo aqui, meuobjetivo é o de chamar atenção para aexistência desses problemas e daresponsabilidade dos cientistas,sobretudo aqui no Brasil, de alertar einformar objetivamente a população eos poderes públicos, para que sejamdevidamente e criteriosamenteconsiderados quando se inicia aimplantação de tecnologia nuclear noPaís.

O problema da alteração econtaminação do meio ambiente é,porém, muito mais geral e está setornando um efeito cada vez maisnocivo e perigoso do desenvolvimentoindustrial e tecnológico. A poluiçãoquímica dos rios, sobretudo noscentros industriais e urbanos, é motivode grande preocupação porrepresentar ameaça para a qualidadede vida e para o equilíbrio ecológico.

No Brasil, parece haver, ainda, poucaregulamentação e controle por partedo setor público a respeito dadestruição e poluição do meioambiente, causada pelodesenvolvimento industrial ou mesmoagrícola. Acho muito importante quesejam feitos maiores investimentos napesquisa de avaliação e de meios desaneamento de processos e métodos

industriais e tecnológicos prejudiciaisao meio ambiente.

Além da questão da poluição do meioambiente, também creio que se devechamar a atenção para o usodesmedido e predatório de riquezasnaturais e sua eventuaisconseqüências. Aqui no Brasil, oproblema do desmatamento imoderadoe desordenado da floresta amazônicaparece a mim merecer atençãoespecial.

3. Distribuição dos benefíciosresultantes do progresso científico etecnológico

A terceira questão que propus arespeito do relacionamento entreprogressos científicos e bem-estarsocial refere-se à distribuição dosbenefícios advindos dessesprogressos, seja entre diversos setorese classes sociais, seja entre países emdiferentes estágios dedesenvolvimento e industrialização.

Inicialmente, convém indagar se, defato, o progresso científico tem de ummodo geral contribuído para obem-estar social e de que maneira sedá esta contribuição.

A resposta à primeira pergunta,parece-me ser claramente afirmativa,

embora possam ser levantadasinúmeras qualificações.

De um modo geral, o progressotecnológico tem permitido aumentar orendimento do trabalho humano,melhorar as condições de trabalho esubstituir o esforço físico do homemou da mulher pelo trabalho mecânicoda máquina.

Na área da saúde, importantesdescobertas permitiram o controle deepidemias através da vacinação, econsiderável redução nos índices demortalidade, sobretudo a partir dasdescobertas dos antibióticos.

Nos países onde programas de saúdesão acessíveis à população, a vidamédia das pessoas tornou-se bem maislonga.

Os aperfeiçoamentos nos métodos deprodução de alimentos, quer seja naagricultura ou na pecuária, têmpermitido sustentar populações cadavez mais numerosas.

Este fator, juntamente com umaredução da mortalidade infantil e ocontrole de epidemias sãoresponsáveis por um crescimentoexponencial de população no mundointeiro e, paradoxalmente, sobretudonos países menos desenvolvidos.

Por outro lado, há ainda, no mundo dehoje, condições de vida, em muitospaíses, verdadeiramente subumanas,de extrema miséria, de subnutrição, deincidência endêmica de enfermidades,de altos índices de mortalidadeinfantil.

Estas condições são encontradasprincipalmente em países que sórecentemente emergiram docolonialismo, ganhandoindependência política depois daSegunda Guerra Mundial, mastambém em quase todo o hemisfériosul, incluindo a maioria dos países daAmérica Latina.

No caso do Brasil, em particular,houve um surto de progressotecnológico e industrial nos últimos20 anos, mas, infelizmente, segundodados estatísticos das Nações Unidas,foi em nosso país onde mais seacentuaram a concentração de riquezae as diferenças sociais entre aqueles

que se beneficiam do progresso eaqueles que vivem à margem dele, nãosomente sem recursos para participarda economia e beneficiar-se dodesenvolvimento do País, mas lutandoapenas pela sobrevivência emcondições precárias e desumanas.

É claro que se deve esperar que osbenefícios derivados do progressocientífico sejam principalmentecanalizados para os países maisdesenvolvidos, que, com maiorcapacidade técnica e econômica, maisinvestem na pesquisa científica e,conseqüentemente, se mantêm naliderança do progresso tecnológico defronteira. Além disso, também asnecessidades de uma sociedade maismoderna e evoluída são, sem dúvida,maiores e mais discriminativas do queas de uma sociedade num estágiomenos avançado de desenvolvimento.

Entretanto, pode-se constatar que, atédentro de uma mesma nação, osbenefícios do progresso não sãodistribuídos de maneira mais oumenos equitativa. Em certos casos,esta distribuição torna-se mesmobastante injusta, com uma grandeacumulação de benefícios parapequenos setores sociais, emdetrimento da grande maioria dapopulação. Esta distribuição iníqua derecursos tem causado um agravamentode desnível cada vez mais acentuadoentre as classes nos níveis mais altosda escala social e as nos níveis maisbaixos.

Esta disparidade que, como jámencionei, existe no nosso país,parece ser maior nos chamados paísesem desenvolvimento ou mesmo empaíses mais pobres do TerceiroMundo.

4. Difusão da ciência e o problemada educação

Diante desta constatação, creio quedevemos refletir sobre como nós,cientistas e universitários em geral,poderíamos contribuir para umprogresso que resulte numadistribuição mais equitativa debenefícios entre nações e entre váriossetores da população.

Eu penso que é útil iniciar estareflexão procurando discernir em quedireção vai, provavelmente, caminhara ciência, quais áreas de investigaçãoserão dominantes e que impacto socialdeverá ser esperado.

Em primeiro lugar, considerareialgumas perspectivas na física.

Na área de física experimental departículas elementares, as atividadesde pesquisa de fronteira têm lugar,como já mencionei, em grandeslaboratórios onde se encontramgigantescos aceleradores.

O mais avançado aceleradoratualmente em construção, o LEP, noCERN, tem por objetivo a produçãoem grande escala dos mésons vetoriaisZ (partículas mediadoras dasinterações fracas, cuja existência foiprevista pela Teoria de Calibreunificada das Interações Fracas eEletromagnéticas). Deverá produzirresultados predominantemente desistematização, mas também poderáocorrer alguma nova descoberta quecontribua para elucidação deproblemas centrais da física departículas, como, por exemplo, omecanismo de quebra espontânea desimetria, ou talvez evidência desupersimetria.

A próxima estapa seria o SSC —"Superconducting Super Collider",cujo projeto já foi aprovado pelogoverno americano. Provavelmente,os europeus, aproveitando asinstalações do CERN, construirãouma máquina semelhante. Estaduplicação de esforços, parece-medesnecessária. Em virtude do custoexcessivamente alto de construção efuncionamento de tais aceleradores,acredito que um único projeto decolaboração internacional seria maisrecomendável.

Um projeto deste porte dá origem aum grande número de inovaçõestecnológicas. Não obstante, acreditoque se deve avaliar cuidadosamente seo retorno, que deste tipo deinvestimento pode-se realisticamenteesperar, justifica o seu custo eutilização de recursos.

A comunidade científica nos EstadosUnidos está bastante dividida a este

respeito. Em particular, os físicos daárea de física do estado sólidoopõem-se ao projeto, alegando quedesviará uma parcela demasiado altade recursos, com prejuízo para outrosprojetos talvez mais promissores emenos custosos.

No Brasil, obviamente, não se cogitade construção de aceleradores de talporte. Há, porém, projetos deconstrução de aceleradores menores,aos quais se aplicam estasconsiderações de custo-benefício.Além disso, para o sucesso de umprojeto dessa natureza é importanteque, em primeiro lugar, haja umnúmero suficiente de pessoastreinadas para utilizar efetivamente amáquina e, em segundo lugar, érecomendável que, na medida dopossível, seja usada na sua construçãotecnologia própria, mesmo que issoacarrete certo atraso na execução doprojeto. Por outro lado, o País podemanter uma atividade de fronteiraneste campo através de projetos decolaboração internacional com osgrandes laboratórios.

Um projeto desta natureza, jáfuncionando com sucesso, é o que foiestabelecido entre o Centro Brasileirode Pesquisas Físicas, no Rio deJaneiro, e o Fermi NationalLaboratory, nos Estados Unidos.Outro projeto semelhante está sendoiniciado entre o CERN e asuniversidades Católica e Federal doRio de Janeiro. Este projeto, aliás,tem, além do mais, o atrativo deenvolver uma colaboraçãoBrasil-Portugal, pois a nossaparticipação será feita através dogrupo português com acesso aoCERN, em virtude da condição depaís-membro, recentemente conferidaa Portugal.

A colaboração internacional emprojetos de pesquisa científica, queestá sendo, cada vez mais, promovidana Europa, deve servir de exemplo eparadigma para nós, aqui, na AméricaLatina. Este exemplo europeu sugereque maior colaboração e integraçãoentre os países da América Latina,quer no plano econômico, quer noplano cultural, seria muito benéfica

para o nosso desenvolvimento. Naárea da física, há já em funcionamentoo Centro Latino-Americano de Física(CLAF), cuja finalidade principal temsido de concessão de bolsas depós-graduação e de estágios depesquisadores. Instituições como estadevem ser incentivadas e dinamizadas.Porém, podemos ir mais adiante eestudar a possibilidade de criação decentros de pesquisaslatino-americanos.

A física do estado sólido e da matériacondensada é uma área em que temhavido importantes descobertas e quevem progredindo muito rapidamente.Um fenômeno novo importante foirecentemente descoberto, asupercondutividade a altastemperaturas, cujos fundamentosteóricos não são ainda conhecidos eque possivelmente terá inúmerasaplicações práticas.

Em física aplicada, setores que julgoda maior relevância são os de ótica delasers, energia solar e semicondutorese microeletrônica. Neste último, temhavido um desenvolvimento muitorápido, do qual resultou umaverdadeira revolução no campo dascomunicações e da informática. O usogeneralizado de computadores eservomecanismos tem conseqüênciassociais bastante radicais. O mercadode trabalho é grandemente afetado e

continuará sendo cada vez maisalterado por inovações no terreno dainformática. Haverá uma grandenecessidade de treinamento de pessoalde modo a capacitá-lo a atuar nestaárea.

Nas ciências biológicas, antecipa-seum grande progresso na biologiamolecular. A descoberta da estruturamolecular do DNA, que possibilitou acompreensão do código genético,serviu de ponto de partida paraintrodução, em biologia, de novosmétodos cujas conseqüências,sobretudo no campo da genética,podem ser tão profundas que suscitemsérias questões de ética e deregulamentação de seu uso. Por outrolado, abrem-se excelentes perspectivaspara utilização de engenhariagenética, sobretudo em produçãoagrícola.

Todas estas conquistas científicas irãotendo suas aplicações na sociedade,acarretando forçosamente grandesmudanças. Embora potencialmentebenéficas, pode, todavia, ocorrer queestas conquistas tornem-se até veículode maior desequilíbrio social ao invésde proporcionarem maior bem-estarpara todos. Isto é o que devemostentar prevenir e evitar.

A meu ver, o que mais necessitamospara chegar a uma distribuição maisequitativa dos benefícios do progresso

é de um investimento maciço emeducação.

Educação, em todos os níveis, masprincipalmente nos níveis básicos.Tem-se argüido que, para tirar o Paísdo atraso e dependência tecnológicaem que se encontra, é necessárioinvestir mais no ensino superior e napesquisa científica. Concordo comesses argumentos, mas acho que, paraconseguir um desenvolvimento maisharmonioso e justo, é ainda maisnecessário investir na educação debase e no aprendizado técnico.

Nas nossas universidades,constatamos que os estudantes chegama elas muito despreparados em virtudedas deficiências do ensino primário esecundário. Para corrigir essasdeficiências, é preciso melhorarsensivelmente a qualidade dosprofessores de ensino médio,principalmente nas áreas de ciência.Para atrair e manter bons professoresno ensino médio e técnico, os saláriosnestes níveis devem ser maiscompensadores; necessitamos tambémde um número maior de escolas paraformação de professores para o ensinomédio e de escolas técnicasprofissionalizantes.

Especificamente, com respeito aoensino científico, sugiro que se dêmaior difusão da ciência, usandomeios de comunicação, como atelevisão, em programas dedivulgação científica, visandodespertar em jovens e crianças acuriosidade pela investigação danatureza e o interesse pela ciência.

No Brasil atual, aqueles que chegamao nível de educação universitáriaconstituem uma pequena minoria que,sem dúvida, se encontra numasituação de privilégio. Por isso, énossa responsabilidade promover aascensão daquela maioria que não temnem a oportunidade do benefício deuma educação secundária e, em certasregiões do País, até mesmo primária.

Paralelamente, há que considerar asituação da saúde pública no País.

Neste setor, as universidades podem edevem desempenhar uma função deliderança. Para isso, deve ser dadaprioridade à criação de boas escolasde saúde pública e enfermagem edevem ser incentivados programas depesquisa em áreas que mais afetam anossa população como sejam doençastropicais, endemias rurais etc.

Para que o País atinja um nível demodernidade com participação amplada população, precisamos erradicarcompletamente o analfabetismo, asubnutrição e a ignorância, de modoque as pessoas possam ter melhorescondições de acesso a um mercado detrabalho que exigirá, cada vez mais,novas aptidões e competências.

Somente através da educaçãopoderemos tirar da marginalidadegrandes setores da população eprepará-los para que se tornem maisprodutivos, participantes ebeneficiários do desenvolvimento doPaís.

Naturalmente, estes problemasrequerem soluções políticas. Épreciso, portanto, que os políticosestejam bem-informados sobre aposição dos homens de ciência. Associedades científicas, como aSociedade Brasileira para o Progressoda Ciência (SBPC), e as associaçõesde classe devem promover o debate arespeito desses temas e tomar aliderança para esclarecer a opiniãopública e os governantes sobre essasquestões que discuti acima e que sãoespecialmente relevantes para odesenvolvimento social. Estassociedades, como a SBPC, que, aliás,no Brasil já estão desempenhando estafunção, e sobretudo as universidades,devem estar preparadas paraassessorar o poder público em matériade política científica e exercerinfluência para que estes princípios deaplicação dos conhecimentos eprogressos científicos ao bem comumde toda a sociedade norteiem a açãopolítica e sejam efetivamenteimplementados.

Samuel MacDowell é físico, professor da Universidade de Yale (EUA) eprofessor-visitante do IEA em 1988.