Resenhas Vestibular UEL

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1 Londrina, 2012 1 a edição Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2013/2014 Celso Leopoldo Pagnan Doutor em literaturas de língua portuguesa

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Londrina, 20121a edição

Resenhas dos livros deleitura obrigatória

da UEL 2013/2014

Celso Leopoldo PagnanDoutor em literaturas de língua portuguesa

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Maxiprint Gráfi ca e Editora Ltda.Av. Portugal, 155 – Jardim Igapó

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ImpressãoMaxiprint Gráfica e Editora

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Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecáriaRosana de Souza Costa de Oliveira • CRB 1366/9.

Nos casos em que não foi possível contatar ou finalizar negociação com os detentores de direitos autorais sobre materiais utilizados como subsídio na produção deste livro, a Editora coloca-se à disposição para os devidos acertos, nos termos da Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e demais dispositivos legais pertinentes.

Pagnan, Celso Leopoldo.Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2013/2014. Organização Celso Leopoldo Pagnan. — Londrina : Maxiprint, 2012. – 144p.

1. Resenhas – Literatura – vestibular. 2. UEL – vestibular 2013/2014. I. Título.

378P156r

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ATENÇÃO!

Este volume da coleção Resenhas destina-se especifi camente aos candidatos aos cursos de graduação da UEL – Universidade Estadual de Londrina (PR), nos concursos vestibulares para os anos letivos de 2013 e 2014.

Estas resenhas, porém, não têm a intenção nem a pretensão de substituir o texto integral das referidas obras, cuja leitura consideramos indispensável não apenas para o vestibular, mas para a formação básica em Literatura para os que pretendem exercer qualquer profi ssão em nível superior, pois os textos aqui abordados constituem o cerne da literatura luso-brasileira e por isso são representantes exemplares de épocas e ideologias que marcam nosso atual modo de ser e o explicam.

Ocorre que detalhes como ambientação da obra, o estilo do autor, a plena caracterização dos personagens, o ritmo da narrativa e a própria “mensagem” da obra, entre outros aspectos importantes, fi carão incompletos para o leitor de uma resenha por mais fi el que esta tente ser, daí nossa recomendação para que estas linhas sirvam de preparação ou de complementação à leitura do texto integral das respectivas obras, pois a intenção do presente volume é abrir caminhos a quem vai lê-las ou preencher eventuais lacunas a quem as leu.

Esteja o vestibulando consciente de que nada suprirá a necessidade de leitura integral dos textos. E, como já dissemos, que este livro sirva como introdução ou como complemento a essa enriquecedora atividade que é a leitura integral de uma obra de arte.

Prof. José MilanezCoordenador do Centro Pedagógico do Sistema Maxi de Ensino

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ÍNDICE

I - Cidade de Deus, de Paulo Lins ............................................................................................... 5 II - As melhores crônicas de Rachel de Queiroz ......................................................................... 10 III - Espumas Flutuantes, de Castro Alves .................................................................................. 16 IV - São Bernardo, de Graciliano Ramos .................................................................................... 23 V - Papéis avulsos, de Machado de Assis .................................................................................. 28 VI - Sagarana, de Guimarães Rosa .............................................................................................. 37 VII - Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente .................................................................................. 44 VIII - Bagagem, de Adélia Prado .................................................................................................... 49 IX - O Planalto e a Estepe, de Pepetela ....................................................................................... 54 X - O primo Basílio, de Eça de Queirós ..................................................................................... 58

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DE DEUS OU DO DIABO

Cidade de Deus (1997) é o romance que deu a Paulo Lins status de escritor de alcance nacional. É claro que isso aconteceu também pela adaptação do romance ao cinema, em 2002, sob a direção de Fernando Meireles, embora o livro tenha alguma qualidade por conta própria.

Paulo Lins nasceu em 1958 e, antes desse romance, já havia publicado um livro de poesia pela UFRJ, intitulado Sobre o sol, em 1986, resultado de sua participação da Cooperativa de Poetas, que colabora para a edição dos trabalhos literários de poetas independentes. Ex-favelado, morador do bairro Cidade de Deus, no subúrbio carioca, Paulo Lins aproveitou-se dessa experiência de vida para escrever seu romance mais audacioso em termos de conteúdo e mesmo de linguagem, seja pela forma solta, seja pela coloquialidade, mas também pelos elementos poéticos disseminados aqui e ali, como que abrandando a temática dura e complexa do livro.

Basicamente, seu objetivo é o de narrar a trajetória do bairro homônimo do título, que passou de moradia de trabalhadores, nos anos 1960, a nascedouro da criminalidade de pequenos malandros e vagabundos e a ascensão do crime organizado, baseado em roubos, comércio de drogas e assaltos a bancos.

A experiência de vida do autor no lugar o ajudou a compor o romance, mas ele também se aproveitou de sua participação em uma pesquisa antropológica sobre a criminalidade e as classes populares no Rio de Janeiro, o que lhe permitiu uma visão mais ampla e mais técnica sobre o assunto. O romance também é resultado de uma bolsa de estudos que obteve da Fundação Vitae, que apoia pesquisas e produção na área cultural.

A leitura de Cidade de Deus não é particularmente simples, tendo em vista a multiplicidade de acontecimentos, de lembranças, de alusões e referências internas. Isso para a construção. Tal simbiose de acontecimentos fez alguns críticos aproximarem a narrativa de Paulo Lins à de Guimarães Rosa, porque são histórias que correm dentro de outras histórias, numa sucessão que faz o leitor desatento perder o fi o da meada, os liames do enredo. Mas, obviamente outros aspectos são bem diversos num e noutro escritor, com muita vantagem para o escritor mineiro.

Outro ponto de contato se dá por conta da temática, voltada para a perspectiva dos marginalizados. Ao se fazer isso, encontra-se como referência na literatura, ainda mais o registro carioca, a fi gura de Lima Barreto, que se voltou para o indivíduo suburbano desqualifi cado, socialmente falando.

No que diz respeito à tematização da violência gratuita na literatura, a referência é outro carioca, Rubem Fonseca, cujo hiper-realismo deve ter servido de inspiração a Paulo Lins.

O grande problema nas quase 500 páginas do livro é a excessiva repetição de situações que tendem a cansar o leitor. Basicamente, a narrativa se resume aos atos de malandros que se organizam para fazer pequenos assaltos, malandros que “cheiram” e fumam para comemorar os assaltos e policiais (alguns tão bandidos quanto) que saem em busca dos malandros, ora para prendê-los, ora para matá-los, ora para extorqui-los. Sem contar o sem-número de palavrões, o sem-número de situações que rebaixam o ser humano a um animal que tenta sobreviver em uma selva urbana.

Nesse sentido, o livro tem um quê de naturalista, pela expressão nua e crua, sem, é claro, a preocupação cientifi cista

CAPÍTULO I - Cidade de Deus, de Paulo Lins

que caracterizava o Naturalismo do século XIX. No entanto, essa exposição explícita da criminalidade, com linguagem solta e sem meios-termos, também sugere que o livro é mais realista que a própria realidade, se é que não poderíamos dizer que é exagerado. É preciso, pois, um pouco de desprendimento moral e paciência para a toda hora ler os palavrões, os diversos modos de fazer sexo, os diversos modos de enganar, roubar, matar. Um leitor mais sem paciência diria logo que se trata de lixo cultural. Outro pode descortinar, com boa vontade, valor na narração da vida bandida, pelo que tem de compreensão social, o que garante alguma qualidade ao livro. Um terceiro, vencendo a lama narrativa, veria alguma qualidade estética. Estamos tentando nos encaixar nesses dois últimos.

Narrado em terceira pessoa, o livro não tem exatamente uma personagem principal, pelo próprio objetivo, que é o de não ter um centro narrativo. É como se todas as personagens tivessem sua importância, além de garantir que não haja propriamente um herói no livro. O máximo que existe é uma divisão em três partes, em cada qual com ênfase na história de algum bandido: Inferninho, Pardalzinho e Zé Pequeno. Cada história representa um momento do modo de praticar crimes a partir da Cidade de Deus, que se revela a grande personagem do livro. Cada parte narra, pois, a história de um bandido em particular, que acaba representando também as fases do desenvolvimento da criminalidade no bairro e, por extensão, na cidade do Rio de Janeiro. Da prática de crimes para a mera sobrevivência até a organização de práticas criminosas de modo mais sistemático.

Apesar disso, é possível dizer que Busca-Pé é uma espécie de testemunha ocular dos acontecimentos mais importantes, um morador da Cidade de Deus. Trata-se de um alter ego do autor, pois, assim como Paulo Lins, Busca-Pé sonha algo a mais para ele do que apenas virar um bandido, um trafi cante ou um drogado.

O livro se inicia com Busca-Pé e Barbantinho fumando maconha e apreciando a orla da cidade. Enquanto isso, Busca-Pé faz uma série de considerações sobre sua vida, sobre seus projetos, que podem nunca se realizar. Em seguida, o leitor é logo levado a conhecer a Cidade de Deus, seja a parte geográfi ca, dos tipos de moradia, sejam os moradores, particularmente os malandros e pequenos ladrões, que praticam roubos para a subsistência imediata e não com o objetivo de efetivamente fi carem ricos.

A primeira parte tem como título “A história de Inferninho”. No caso, os principais bandidos têm apelidos e são apenas identifi cados como tais. Para não parecerem apenas tipos, sem humanidade ou profundidade psicológica, o narrador, quando possível, cita alguns motivos que os teriam tornado bandidos e como chegaram à Cidade de Deus. Os que se destacam são Tutuca, Martelo, Passistinha, Pará, Pelé e, obviamente, Inferninho. Depois aparecem outros, mais malandros ou drogados que bandidos, como Laranjinha, Acerola, Jaquinha, Manguininha e Verdes Olhos.

Além disso, há a explicação das causas do crescimento do conjunto habitacional. Grupos provindos de outras favelas foram se instalando na Cidade de Deus, estabelecendo-se a área de cada um, como o grupo dos evangélicos.

Paralelamente a esse painel, começam a se desenrolar as histórias pessoais, em particular a dos primeiros bandidos do bairro, com destaque para o grupo liderado por Inferninho.

Cometiam pequenos assaltos a comerciantes do bairro, ao caminhão que fazia a distribuição do gás. Em uma ocasião, para

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ganhar a simpatia dos moradores, permitiram que os moradores pegassem os botijões de gás. No entanto, um dos comerciantes, cansado dos assaltos, vai atrás de Inferninho, mesmo com medo, para recuperar os objetos roubados. Outro morador, Francisco, resolve denunciá-lo à polícia. Com isso, Tutuca e Martelo resolvem sair do conjunto residencial, esperando que as batidas policiais esfriem. Em represália, Inferninho resolve se vingar e assassina Francisco, visto por todos como alcaguete, algo impensável no código ético dos bandidos, por assim dizer.

Os crimes trazem para a comunidade a pressão por justiça, pela presença mais atuante da polícia. O problema é que os policiais não são exatamente modelos de conduta, o que é indicado pelos nomes com que são conhecidos: Belzebu e Cabeça de Nós Todos. Apelidos, obviamente, mas que sugerem atitudes nem sempre dignas de quem está do lado da lei, como expressão de maldade e comando nem sempre adequado.

O narrador procura explicar, ao longo da narrativa, a origem de algumas personagens. Em particular sobre Inferninho, e o que se afi rma não chega a ser muito diferente da trajetória das demais personagens: família desestruturada, revolta contra a sociedade, imediatismo para conseguir dinheiro e também para gastá-lo, violência e pouca consciência social. Em seu caso particular, expressa uma visão racista contra brancos, os mais ricos, os quais são vistos como os que impediriam sua ascensão social, sua melhoria de vida. Como resposta imediatista, usa a violência:

Sentiu vontade de matar toda aquela gente branca, que tinha telefone, carro, geladeira, comia boa comida, não morava em barraco sem água e sem privada. (p. 24)

Essa mesma visão é compartilhada por outros marginais no livro, como Grande, que:

Tinha prazer em matar branco, porque o branco tinha roubado seus antepassados da África para trabalhar de graça, o branco criou a favela e botou o negro para habitá-la, o branco criou a polícia para bater, prender e matar o negro. (p. 191)

O pai de Inferninho era o típico malandro, bom de briga e de samba, embora vivesse alcoolizado. A mãe, por sua vez, era prostituta. Como qualidade que Inferninho destaca é a sua capacidade de lutar, de brigar contra quem tenta enganá-la. Por fi m, há um irmão. Para seu desapontamento, era homossexual assumido e, vez ou outra, se prostituía para conseguir algum dinheiro. Em dado momento da história, chega a assumir de vez sua condição e se traveste, tornando-se primeiro prostituto, até conseguir uma espécie de marido. O primeiro deles foi Pouca Sombra, com o qual brigava muito. Depois, tornou-se amante de um médico, doutor Guimarães, bem-sucedido, casado e pai de dois fi lhos, mas que se realizava mesmo no relacionamento com outro homem. No entanto, tudo tinha de ser secreto, às escondidas:

“Tinha vergonha de pensar em Ana Rubro Negra perto dela e dos fi lhos”(p. 242)

Outros pontos de destaque na narrativa, pode-se dizer, são a constituição de uma ética dos criminosos, como respeitar aos que se destacam, não entregar os amigos à polícia (acalguetar), não trair a confi ança do amigo, não trair o amigo com sua mulher, etc. Casos assim eram punidos com a morte violenta do que cometia o delito.

Outro ponto é o assalto praticado a um motel, que deu notoriedade aos bandidos locais, tendo sido inclusive manchete de jornal, pela violência praticada. Desse modo, Inferninho e seus comparsas (Pretinho, Pelé e Pará, além de Inho, que viria a se tornar o Zé Pequeno) tornam-se respeitados como grandes bandidos, pelo temor que passaram a inspirar na comunidade. Para isso, roubaram primeiro um automóvel Opala e foram até o motel, onde os quatro fi zeram o assalto tanto ao motel em si, quando aos clientes que lá estavam. Chegaram a matar dois frequentadores. Inho, por sua vez, fi cara a certa distância, vigiando, pois ainda era muito criança para participar diretamente do assalto:

Inho só conseguiu ir na última hora; insistiu tanto que os amigos concordaram em deixar um garoto participar de um serviço de homem. Mesmo sabendo que teria participação igual à dos parceiros na divisão dos lucros só por ter escoltado a parada, o que o deixaria feliz de verdade era poder acompanhar os amigos. (p. 67)

Esse assalto, além de trazer dividendos, trouxe prejuízo, pois o governo, a sociedade e a imprensa passaram a cobrar mais empenho da polícia para solucionar o caso. E de fato é o que tentam Belzebu e Cabeça de Nós Todos, o qual, mais do que pretender fazer justiça, queria matar e extorquir os bandidos. “Queria dar fl agrante em maconheiro para extorquir uma grana”. O caso se presta também a quebrar qualquer centro a partir do qual a narrativa se construa. Heróis ou bandidos se equivalem, não se diferenciam. Tudo depende para quem alguém é herói ou coisa que o valha. No caso, a resposta foi a morte, sem dó, de Pelé e de Pará, cujas origens são narradas em seguida, e, em essência, não diferem muito.

A primeira boca de fumo um pouco mais organizada, nesse momento, pertencia a Tereza ou Tê, que aprendera com o marido. Viúva, percebeu que era o único caminho para continuar a se sustentar e a sustentar as fi lhas. É assim, pois, que aos poucos o crime vai se organizando em Cidade de Deus:

Assim se iniciou na vida do crime. A sua boca de fumo, agora bem administrada, rendeu-lhe melhores frutos. Conseguiu aumentar a casa, as fi lhas substituíram os molambos que vestiam por roupas decentes, alimentavam-se melhor. (p. 93)

Esse aspecto também faz parte da lógica do crime. Não importa que outros sejam prejudicados, o importante é que quem pratica se dê bem. É bem verdade que esse “se dar bem” é momentâneo, passageiro. Apenas para satisfazer necessidades imediatas. Por esse motivo, Tê representa o crime organizado, ainda que de modo embrionário, isto é, crime como meio de construção de uma vida.

Cabeça de Nós Todos tinha, como objetivo maior, matar Inferninho. Já tentara outras vezes sem sucesso. Aquela vida, porém, de policial e de bandido ao mesmo tempo cansara a mulher, que o abandonou. Talvez por isso, por se sentir sozinho, abandonado, em uma ronda pela Cidade de Deus é morto por outro bandido, irmão de um que fora assassinado pelo policial. Assim, se sob uma perspectiva mais tradicional de narrativa o embate deveria ser entre Inferninho e Cabeça, na narrativa sem centro de Paulo Lins não é o que ocorre. A estratégia acaba sendo positiva, ao menos nesse aspecto.

Inferninho fi cou sabendo do episódio por intermédio da

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esposa [Berenice], mas não saiu para ver o corpo, somente fumou um baseado e tomou umas cervejas para comemorar em sua própria casa. (p. 161)

Ainda nessa primeira parte, anuncia-se a história de Zé Pequeno, o Inho, depois Zé Miúdo, que vem a se tornar o principal trafi cante e organizador da vida social da Cidade de Deus, ao menos a vida da bandidagem. Ao lado do parceiro, Pardalzinho, proíbe os roubos no local e domina todas as bocas de fumo. Por consideração, permite que apenas Tereza continue vendendo drogas, porque era antiga e não chegava a atrapalhar.

Inho até tentara (sem muito esforço, é verdade) ser honesto. Começara a engraxar sapatos. Mas rapidamente percebeu que assaltar os clientes dava mais dinheiro que fi car engraxando para depois receber míseros trocados. Aquela vida fez nascer a amizade com Pardal e com outros bandidos.

Também há a narração de fatos da vida dos cocotas, isto é, dos jovens brancos moradores de prédios um pouco melhores da Cidade de Deus, que fazem a ponta entre o local e a cidade do Rio de Janeiro, a classe média. Fazem parte do grupo Busca-Pé e Barbantinho. Estão no limite entre a marginalidade e a vida honesta, seja pelo convívio com os bandidos do local, seja pelo desejo de enriquecer com facilidade.

São eles: Rodriguinho, Daniel, Leonardo, Paype, Marisol, Gabriel, Busca-Pé, Álvaro Katanazaka, Dom Paulo Carneiro, Lourival e Robespierre, entre outros. Uma marca de diferenciação é que todos os brancos são identifi cados por nomes e não apelidos, à exceção de Busca-Pé.

O ponto alto dessa primeira parte é a morte de Inferninho, morto por Belzebu. O interessante é que a narração alterna momentos de violência e de paz, esta obtida com a morte. Pode-se dizer que se trata de pequenas situações líricas em meio ao caos urbano narrado pelo livro:

Talvez nunca tenha buscado nada, nem nunca pensara em buscar, tinha só de viver aquela vida que viveu sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão malditas. (p. 187)

Atitude parnasiana seria exatamente esse lirismo, essa busca por momentos perfeitos, belos, em contraste com a vida de morte, de roubo, de drogado a que se submetera o marginal.

Em seguida, narra-se a segunda parte: “A história de Pardalzinho”, que não chega a quebrar de modo grande o tempo, uma vez que as personagens dessa parte já haviam aparecido na anterior. Além de Pardal, Zé Miúdo (o Inho, do assalto ao motel quando ainda era criança). Aprofunda-se também a narração do modo de vida dos cocotas, com suas disputas internas e a ponte que colaboram para estabelecer entre os drogados de classe média e os trafi cantes do morro:

O movimento aumentou. Os Apês eram de fácil acesso para os fregueses de fora, que chegavam a fazer fi la para comprar bagulho bom. [...] Pardalzinho era o único sócio, era o único em quem confi ava. [...] O dinheiro entrava fácil para o bolso de Miúdo e de Pardalzinho. (p. 203)

Um parceiro dos bandidos, Cabelo Calmo, é preso. O fato serve para ilustrar como é a vida de um bandido na cadeia, que acaba tanto sendo obrigado a prestar favores sexuais a outros detentos e mesmo a policiais, quanto também assumindo crimes praticados por outros, como meio de livrar um companheiro

de uma pena maior. Isso acontecia quando a condenação de um detento já alcançava os trinta anos e, mesmo condenado de novo, fi caria preso no máximo até atingir esse limite previsto em lei. Nada é tão ruim que não possa trazer algum proveito...

A partir desse dia, Cabelo Calmo fazia sexo com o xerife regularmente, agia como mulher de malandro. (p. 254)

[...]Há os que são selecionados apenas por terem pena muito

extensa, porque nesses casos um crime a mais não alteraria a pena. (p. 257)

Paralelamente a isso, Pardalzinho percebe que ter dinheiro pode levá-lo a mudar de estilo, a se vestir melhor e até a se portar de modo mais grã-fi no. O bandido representa a ascensão do crime como meio de participar mais diretamente da sociedade, sem ser visualmente agressivo às pessoas da alta classe ou da classe média. No seu caso específi co, aquilo estava começando a acontecer, mas não se concretizou por conta de sua morte prematura. Chega a se casar, mas isso não representa que vá procurar uma vida mais decente, consoante uma ordem legal.

Nessa segunda parte, narra-se um pouco da história de Busca-Pé, que se integra os chamados cocotas. Busca-Pé começa a trabalhar em um supermercado, até conseguir dinheiro para comprar sua primeira máquina fotográfi ca, o que viria abrir-lhe caminho para registrar o que se passava na Cidade de Deus e trilhar o futuro rumo ao jornalismo:

Num sábado de fi nal de mês, Busca-Pé, cansado, foi trabalhar no supermercado Macro. Já não aguentava mais aquela vidinha de fi scal. Queria mesmo era fotografar. Trabalharia mais um tempo e faria tudo para ser mandado embora, com o dinheiro da indenização compraria a tão sonhada máquina fotográfi ca, entraria num curso e pronto. (p. 310)

Busca-Pé representa, pois, a tentativa de fugir ao padrão dos jovens moradores da favela, cuja possibilidade de entrar para a vida criminal era sempre maior que seguir caminho diferente, o da honestidade.

Na Cidade de Deus, há também o início de outro grupo de trafi cantes, que irá fazer o confronto com o grupo de Zé Miúdo. É o grupo de Coca-cola e Manguinha. Adiante, tal confronto irá se intensifi car a ponto de se estabelecer uma guerra entre quadrilhas, algo verifi cável nos morros cariocas ainda hoje. Esse grupo rival é identifi cado como os Lá de Cima, pela posição geográfi ca em que se encontravam.

Obviamente que isso acaba por atrapalhar os planos de Miúdo de pacifi car por completo a favela, seja pela disputa das bocas de fumo, seja pela desobediência a sua ordem de não se praticarem crimes comuns no local, como estupros ou roubos a moradores. Não porque se importasse efetivamente com o destino dos moradores ou tivesse consciência social: era apenas um meio de evitar que a polícia desse batidas no morro em busca de criminosos comuns.

Por isso, quando sabe que Botucatu e seu parceiro Pança violentam e matam a namorada do primeiro, por ter engravidado de um terceiro, chama seu bando para aplicar o devido corretivo. No entanto, em vez de matarem os bandidos, a pedido de Pardal apenas os espancam. Isso causa revolta em Botucatu e decide que, na primeira oportunidade, irá matar Zé Miúdo.

É o que de fato tenta, mas consegue apenas ferir o bandido, e

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atinge mortalmente Pardalzinho, embora não fosse seu intento:

Miúdo correu ensanguentado, tinha forças para trocar tiros mesmo baleado, porém receou que houvesse vários bandidos ao lado de Botucatu por causa dos crimes que cometera por ali. (p. 323)

No enterro de Pardal, há outro momento em que se mesclam dor e felicidade. Se não é uma morte parnasiana, ao menos seu velório se dá durante uma festa, um pagode, sob a alegação de que ele certamente iria gostar.

A terceira e última parte, “A história de Zé Miúdo”, é iniciada com uma espécie de resumo de vários acontecimentos, entre eles a vida dos cocotas, com destaque para Busca-Pé e os acontecimentos envolvendo Botucatu.

– Busca-Pé sumiu!– É... Tá sumidão!– O cara se destacou mermo, né?– Pode crer!– Só vejo ele passando...– Ele tá colado com aquele pessoal do Conselho de

Moradores...– Ele virou retratista mermo!– Pode crer! (p. 328)

Zé Miúdo até tenta uma vida um pouco diferente após a morte do amigo Pardal, chega a namorar sério uma moça “de família”. Mas, como não dura muito por pressão familiar, volta à velha rotina e inicia uma guerra velada contra os Lá de Cima, roubando e estuprando os moradores daquela parte da favela. O problema é que acaba por estuprar uma loura na frente do namorado, que se revolta. Era conhecido como Zé Bonito. Este começa a espalhar a notícia de que, assim que tivesse uma chance, iria se vingar. Por isso, Miúdo vai até sua casa, mas acaba por matar apenas o avô de Bonito, que tenta matar o bandido, atingindo-o com uma faca de cozinha. Com isso, Bonito inicia uma guerra particular contra a quadrilha de Miúdo, matando vários de seus comparsas.

Outros moradores ou bandidos, sabendo do caso, vão tomando partido, ora a favor de Bonito, por quererem se vingar de Miúdo, ora a favor deste, para poderem se agrupar e tirar alguma vantagem da situação. Não demorou muito a que o grupo dos Lá de Cima começasse, por interesse próprio, a apoiar Zé Bonito. De guerra velada, instalou-se a guerra declarada:

Miúdo continuava a pensar em Bonito. Pela primeira vez, soube o que era medo. O bruto atirava sem se esquivar, tinha pontaria e o pior: não o temia. (p. 349)

E adiante:A Cidade de Deus, segundo a imprensa, tornara-se o lugar

mais violento do Rio. O confl ito entre Zé Miúdo e Zé Bonito fora qualifi cado como guerra. Guerra entre quadrilhas de trafi cantes.

A sequência é a narração de pequenos confl itos, de mortes, de estupros, de roubos, tráfi co, etc., realizados pelos dois grupos. O que era vingança pessoal de Zé Bonito colabora para a construção e organização de grupos de bandidos. É o início do crime organizado:

Também houve casos em que os futuros quadrilheiros não

tinham crime algum para vingar, contudo entravam na guerra porque a coragem, aliada à disposição para matar exibida pelos bandidos, lhes conferia um certo (sic) charme aos olhos de algumas garotas. (p. 387)

Em paralelo a isso tudo, o consumo de drogas ia aumentando, o que possibilitava aos quadrilheiros se armarem mais e melhor. Compravam armamento pesado e utilizado apenas pelas Forças Armadas. Toda a violência levou o governo do Estado a agir e a ordenar rondas policiais constantes. Desse modo, instala-se o inferno no local, tanto para os moradores comuns como para os usuários e drogados que iam até lá para comprar seus entorpecentes.

Como resultado, acabam prendendo Miúdo, que tem de pagar ao Comando Vermelho uma quantia semanal para permanecer vivo. Aos poucos, a guerra vai esfriando, nem sabem mais por que continuavam a guerra, a não ser, é claro, em razão da disputa pelo poder e pelas bocas de fumo.

Miúdo sai da cadeia, arruma novos parceiros de crime e passa a roubar.

Como não se trata de dar um desfecho ao livro, como um romance tradicional, em que o destino de cada personagem é defi nido claramente com base em projetos de vida ou de objetivos traçados, as personagens de Cidade de Deus apenas seguem suas vidas. Alguns se casam, como Busca-Pé; outros seguem a vida, com a consciência de terem feito o melhor dela, como Tereza, que consegue ver as fi lhas casadas e tendo uma vida melhor que a dela; outros se regeneram e se convertem a igrejas, como a Evangélica.

O destino de Zé Miúdo é o esperado. Acreditando que poderia retomar suas bocas de fumo, tenta se impor aos novos donos do tráfi co, que eram apenas adolescentes. No entanto, Tigrinho e Borboletão matam o ex-dono da Cidade de Deus e iniciam uma nova dinastia da bandidagem e do tráfi co.

O fi nal tem um quê de irônico e simbólico, pois, após matarem Zé Miúdo, os meninos vão soltar pipa com cerol.

Era tempo de pipa em Cidade de Deus. (p. 446)

Em resumo, o livro, cujo objetivo era o de narrar a formação do crime organizado em favelas do Rio de Janeiro, particularmente na Cidade de Deus, termina como deveria, sem um desfecho, sem a resolução do problema, apenas com a sugestão, real, de que aquele processo foi apenas o começo para o que se veria em termos de violência na cidade.

Exercícios

1. (Unesp) A boca era de Sérgio Dezenove, também conhecido como Grande, bandido famoso em todo o Rio de Janeiro pela sua periculosidade e coragem, pelo seu prazer em matar policiais. Grande também fora morador da extinta favela Macedo Sobrinho, mas não foi para Cidade de Deus, porque achava que ali seria muito fácil a polícia o encontrar. Gostava de morro, de onde se pode observar tudo de sua culminância. Havia se escondido em quase todo o Rio de Janeiro, dos morros da Zona Sul até a Zona Norte, mas a polícia já o encontrara em todos eles. Por esse motivo, chegara ao morro do Juramento, no subúrbio da Leopoldina, dando tiro em tudo quanto era bandido, derrubando barraco aos pontapés, gritando que quem mandava ali agora era o Grande: o Grande que tomou a maioria das bocas de fumo

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dos morros da Zona Sul; o Grande de quase dois metros de altura, com disposição para encarar cinco ou seis homens na mão de uma só vez; o Grande que tinha uma metralhadora conseguida na marra de um fuzileiro naval em serviço na praça Mauá; o Grande que teve sangue-frio para cortar o seu próprio dedo mindinho e colocá-lo num cordão; o Grande que matava policiais por achar a raça a mais fi lha da puta de todas, essa raça que serve aos brancos, essa raça de pobre que defende os direitos dos ricos. Tinha prazer em matar branco, porque o branco tinha roubado seus antepassados da África para trabalhar de graça, o branco criou a favela e botou o negro para habitá-la, o branco criou a polícia para bater, prender e matar o negro. Tudo, tudo que era bom era dos brancos. O presidente da República era branco, o médico era branco, os patrões eram brancos, o-vovô-viu-a-uva do livro de leitura da escola era branco, os ricos eram brancos, as bonecas eram brancas e a porra desses crioulos que viravam polícia ou que iam para o Exército tinha mais era que morrer igual a todos os brancos do mundo.

(Paulo Lins. Cidade de Deus.)

Com relação a questões de linguagem presentes no texto de Paulo Lins, responda:a) Como deve ser entendida a palavra boca na frase que

inicia o trecho do romance de Paulo Lins reproduzido: “A boca era de Sérgio Dezenove…”?

b) Seria correto afi rmar que o enunciador do texto vale-se, na maioria das vezes, da reprodução da modalidade oral da língua para construir seu discurso? Justifi que sua resposta por meio de exemplos retirados do texto.

2. Sobre o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, aponte a alternativa incorreta:(A) É dividido em três partes principais, em que se narra a

trajetória de três bandidos moradores de Cidade de Deus.(B) Apresenta policiais corruptos, o que impede a perspectiva

de um herói, como em romances tradicionais, de bandido e mocinho.

(C) Não apresenta nenhuma perspectiva de redenção aos moradores de Cidade de Deus.

(D) Narra o desenvolvimento do tráfi co de drogas.(E) Narra a disputa por pontos de tráfi co de drogas.

3. Aponte a alternativa que contemple características de Cidade de Deus, de Paulo Lins.(A) linguagem culta e sem gírias.(B) narrativa tradicional, linear, com enredo padrão.(C) narrado em primeira pessoa, da perspectiva de Zé Miúdo.(D) narrado em terceira pessoa, em linguagem repleta de

gírias.(E) a história se passa na favela, mas, sobretudo, em

Copabacana.

4. (Unifei) Assinale a alternativa que descreve corretamente o romance Cidade de Deus.(A) Assim como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é um romance

social - seu objetivo, já anunciado no título, é enfocar uma coletividade.

(B) O acúmulo de episódios violentos tem como claro objetivo levar o leitor a habituar-se à violência, passando a considerá-lanormal.

(C) A ação é dividida em duas épocas, a da criminalidade incipiente e a do domínio total da Cidade de Deus pelo tráfi co.

Cada uma delas é associada ao nome de um bandido famoso.

(D) Os chefões do tráfi co, no livro de Paulo Lins, são normalmente oriundos da classe alta.

5. Qual é o problema social central dos morros cariocas, retratado pelo texto de Paulo Lins?

6. Por que a personagem Grande nutre ódio pelos policiais e pelos brancos?

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Rachel de Queiroz (1910-2003) nasceu em Fortaleza e, ainda jovem, publicou seu primeiro romance, O quinze, em 1930. Em seguida vieram outros seis romances, tendo sido o último Memorial de Maria Moura, publicado em 1992. Ainda publicou cinco peças de teatro e quatro livros voltados para crianças. Notabilizou-se, porém, como cronista, tendo reunido as cerca de duas mil crônicas que foram publicadas em jornais e revistas ao longo de sua vida como escritora (em quatorze diferentes livros).

Vamos tratar, nesta resenha, da coletânea de crônicas da série Coleção melhores crônicas. No caso, a coletânea apresenta crônicas de seis livros diferentes: A donzela e a Moura Torta (1948), 100 crônicas escolhidas (1958), O caçador de tatu (1967), As terras ásperas (1993), O homem e o tempo (1995) e Falso mar, falso mundo (2002). São 71 crônicas selecionadas dos seis livros.

Antes de tratarmos de algumas, vamos abordar dois tópicos: a defi nição de crônica e as características mais gerais do modo de escrever dessa autora.

A palavra “crônica” apresenta a mesma raiz do termo cronológico, isto é, a sequência de determinados acontecimentos. Por esse motivo, na sua origem tinha a função de fazer o registro dos acontecimentos. Caso famoso é o de Fernão Lopes, cronista da época do Humanismo (século XV) encarregado de escrever a história dos primeiros reis de Portugal.

Já no século XIX, a crônica passou a ser escrita com o propósito que se tem ainda hoje, que é a de fazer registros variados do cotidiano, e ser veiculada preferencialmente em jornais, ou modernamente, na internet. Por isso, a crônica passou a ser associada ao gênero jornalístico, sem grande valor ou preocupação literária. No entanto, até como meio de sobrevivência, vários grandes escritores passaram a escrever crônicas e deram a esse gênero qualidades literárias específi cas. Entre tais escritores, podemos citar José de Alencar e Machado de Assis, no século XIX; Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga, entre outros tantos no século XX, como a própria Rachel de Queiroz.

Desse modo, não demorou muito a que a crônica passasse a ter caráter mais literário ao lançar mão de aspectos poéticos, líricos e também fantasiosos. É bem verdade que se discute, em âmbito acadêmico, até que ponto a crônica é um gênero literário ou meramente jornalístico. Discute-se também se, em sendo literatura, teria o mesmo valor de um conto, de um poema ou mesmo de um romance. Discussões à parte, o fato é que cabe de tudo na crônica, inclusive a poetização da linguagem.

No caso específi co das crônicas de Rachel de Queiroz, sabe-se que a autora, por conta de suas experiências de vida e de sua formação política, procurou tratar de temática social, seja para tratar das questões da seca, seja para falar da difícil vida do trabalhador comum no Brasil. Mas vai além disso ao tratar dos aspectos cotidianos e de sua vida pessoal, cuja refl exão ultrapassa a mera subjetividade, pois aborda assuntos de ordem literária, questões relacionadas à tradição e à modernidade, bem como fatos do cotidiano que a autora teria vivenciado.

Em A donzela e a moura torta, a autora conta, em “O Catalão”, a história de um mestre-curtidor que trabalhava para o pai dela. Tal mestre fez parte do seu imaginário infantil e mais tarde veio a saber que ele morrera lutando na Espanha, por conta das lutas separatistas na Catalunha. Outras histórias da Rachel criança são lembradas pela mulher já adulta, com mais de trinta anos, e servem para compor o cenário da sua vida pessoal e também da sociabilidade nacional.

Em “O grande circo zoológico”, narra seu encontro com uma trupe circense que viajava às margens do rio São Francisco. Depois de ver os animais e tecer alguns comentários, faz uma análise dos artistas do circo, dando destaque para o fato de que normalmente pertencem à mesma família ou constituem família entre eles. Trata-se, pois, de uma análise sociológica sem academicismos, mas que expressa um modo de olhar para o Brasil que vai do poético ao jornalístico.

As histórias não têm um cenário único: este pode ser o Nordeste em geral, o Ceará em particular ou o Rio de Janeiro, onde morou, ou as viagens que fez, à Europa, por exemplo.

Isso fi ca até mais claro em “Retrato de um brasileiro”, que narra a história de um homem comum, que teve suas desilusões amorosos, o desapontamento pelos fi lhos, o trabalho constante e o pouco reconhecimento dos seus. Em paralelo, trata das eleições pós-ditadura getulista, em que a personagem conclui que valia a pena votar naquele que pagava mais que propriamente em projetos para a coletividade. Seu maior desapontamento será não poder vender o seu próprio voto, o da atual esposa e o de uma fi lha, caso venha nova ditadura.

“Se houver algum raio de barulho, começa tudo de novo e adeus eleição. Adeus esperanças, adeus os três votos que já são como dinheiro no bolso”. (p. 79)

Como se vê, um retrato que serve como referência histórica do Brasil.

Na mesma linha temática, há “Morreu um expedicionário”, que narra a história de um jovem que acreditava “na verdade, na justiça e na liberdade”, por isso foi lutar pela FEB na 2a Guerra Mundial. O que Rachel parece pretender é a compreensão das razões que levam um indivíduo, jovem, com a vida pela frente, sem a obrigação de lutar em uma guerra, a querer tornar-se mártir por seu país. É o mérito da autora o de tentar as motivações humanas, para o bem ou para o mal. Por exemplo, na crônica que dá título ao livro, Rachel narra história comum no sertão, num mundo ainda sem muitas leis, sem a presença do Estado. É a história, meio medieval, da briga entre famílias que se odeiam, sem nem saber as causas. O que importa é continuar a matar, a exterminar os inimigos.

Os oitos fi lhos de Guiomar liquidaram num tiroteio três dos dez fi lhos da Moura Torta. E os Pereiras, então, numa vingança que ainda faz muita gente tremer, tocaram fogo na cidade dos Lopes e mataram até os cachorros na rua e as criações nos quintais. (p. 55)

Em “O padre Cícero Romão Batista”, como especifi ca o título, fala sobre o santo popular, o padre Cícero, relatando, de modo um tanto descrente, como veio a se tornar referência no sertão e, aos poucos, em todo o Nordeste. Ainda na linha da cultura nordestina, em “O senhor são João”, defende o Nordeste contra seus detratores no sul do Brasil, que veriam a região como local apenas de dança e festa. Para Rachel, que era cearense, embora as festas existissem, elas seriam concentradas e poucas, dando certa alegria à população. Ao passo que a maior parte do tempo seria dedicada ao trabalho e às durezas da vida. Como se vê, tal crítica apenas aumentou.

Também há espaço para o idílio amoroso, em suas crônicas, mesmo ante as adversidades. No caso, em “Rosa e o fuzileiro”,

CAPÍTULO II - As melhores crônicas de Rachel de Queiroz

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conta a história da moça da Ilha do Governador que tinha um pai que era uma fera, mas que acaba se apaixonando por um fuzileiro naval, mesmo sob as ameaças de morte por parte do pai.

“Ai, que faria contra a arte de amar daquele fuzileiro experimentadíssimo a pobre Rosa, dentro dos seus quinze anos que são o limite de toda inocência?” (p. 73)

O texto é escrito em prosa, mas lembra um poema, particularmente alguns poemas líricos de Camões.

Como são muitos os textos, fi ca difícil tratarmos de maneira aprofundada de todos. O importante é ter uma noção geral para que se estabeleçam as devidas relações. Outro ponto é saber interpretar os textos em particular. Aqui damos um direcionamento, mas cabe a cada um a leitura atenta das crônicas.

Por exemplo, em “Vozes d’África”, é interessante saber que o título que faz referência a famoso poema de Castro Alves. Na crônica, temos a história de uma família de negros cuja origem remonta à época da escravidão. Trata-se de uma família pobre, moradora da Baixada Fluminense, constituída por treze fi lhos, os quais o pai tenta manter, sem muito sucesso, na linha moral. Ela fi ca, portanto, entre a construção de uma identidade negra e a observação da moral e dos preceitos da sociedade branca.

Mas há também as crônicas sobre personagens misteriosos que fazem parte do imaginário da Rachel menina. É o caso de “O solitário”, história de um homem misterioso que morava sozinho no sertão. A autora recorda dele e diz que morreu como viveu, de modo solitário. Uma espécie de misantropo. Em “Jimmy”, o retrato em um bar parisiense, com destaque para a personagem do título. A narradora, observadora, vê o desenrolar da entrada da personagem, dos que tentam chamar sua atenção, como uma poetiza, e a pessoa que desperta o interessa de Jimmy, no caso uma senhorita.

Há espaço também para as situações trágicas por excelência, como em “História da velha Matilde”, que trata de um fato narrado pela própria Matilde sobre um viajante que, certa feita, teve de socorrer a uma moça. Ela estava sendo perseguida por vários homens. Achando que poderia ser assalto, tentativa de estupro ou ainda que ela teria cometido algum crime, inquire dela a causa da fuga. Ela responde então que fugia para são ser devorada pelos homens, que havia dias não comiam. Assim, o viajante propôs aos famintos que a deixassem ir. Em troca, deu-lhes um burro para que saciassem a fome.

Outra crônica na linha meio trágica é “O caso da menina da estrada do Canindé”, que se passa na época da seca de 1915, tema de seu romance O quinze. A crônica trata de uma adolescente sozinha que, deixada pelo pai que fora negociar na cidade, recebe a visita inesperada de um vizinho que imaginava estar o local deserto. Seu objetivo era roubar o dinheiro que o pai da menina deixara escondido. Ao deparar-se com a menina, resolveu que teria de matá-la. No entanto, quando preparava a corda para enforcá-la, acabou tropeçando e ele próprio se enforcou.

Tratou de o experimentar na própria cabeça, mas ao fazê-lo não sei que jeito deu no corpo, o banco perdeu o precário equilíbrio, fugiu-lhe debaixo dos pés, o laço correu, apertou-lhe o pescoço, e o desgraçado fi cou balançando no ar, enforcado na forca que preparara para a inocente. (p. 103)

Na mesma linha temática do trágico está “A princesa e o

pirata”, que trata de dois jovens namorados que acabaram se afogando.

A crônica acaba sendo meio de registar os acontecimentos, eternizar o passado. Apesar disso, em “Saudade”, Rachel diz não ter saudade de nada. Quando muito lembranças, mas saudade do que passou não parece ser um sentimento muito agradável. Claro que isso pode ser apenas um meio de aplacar algum sentimento, porque em “Pátria amada”, por exemplo, procura mostrar que, para além de símbolos, elementos concretos, a pátria é um sentimento que se pode ter em qualquer lugar. Ora, isso é um tipo de saudade, ou ao menos um querer viver aquilo que fi cou em outro momento.

“E assim, pois, que diremos que é Pátria? Ai, diga-se também que Pátria é uma dor no peito”. (p. 124)

Ou como em “Natal”, em que relata não ter saudade de natal nenhum, nem mesmo o da infância; aliás, nem sequer tem saudade da infância. A crônica, ao contrário do romance ou do conto, pode revelar muito sobre o autor, pois tem seu quê de relato factual. Apesar disso, sempre há espaço para o fi ccional, para a invenção, para o embuste. Difícil dizer com certeza se a autora fala de si ou de personagens que vai criando. De qualquer modo, pela repetição de alguns conceitos, o leitor é levado a acreditar em algumas verdades expressas ou em alguns temas recorrentes. Como o dos retirantes, já tratado em O quinze. Em “Cantiga de navio”, por exemplo, um navio, personifi cado, canta a tristeza de ter de levar gente de sua terra natal para outra terra, a fi m de conseguir trabalho, sustento. É antes um lamento que uma satisfação do navio por ter de fi sgar os retirantes e levá-los embora.

Também “Terra”, publicada em O homem e o tempo, fala do campo, mas não à maneira idílica dos árcades, e sim pela óptica do sertanejo e sua vida difícil, de enfrentamento das condições adversas causadas pela seca.

Não tem nada dos encantos tradicionais do campo, como os reconhecemos pelo mundo além. Nem sebes fl oridas, nem regatos arrulhantes, nem sombrios frescos de bosque – só se a gente der para chamar a caatinga de bosque. (p. 207)

Nessa crônica, ainda, estabelece uma comparação entre o sertanejo, entre a terra nordestina e a Terra Santa, pelo que ambas têm de árido, de sofrido, bem como pela força do povo que resiste a isso tudo.

Ou ainda “Verão”, em que ironiza o fato de sulistas irem ao nordeste passar as férias de verão e quererem encontrar o tal retirante, como se fosse um elemento do turismo.

De qualquer modo, em “Felicidade” a autora procura mostrar que o sertanejo pode ser muito mais feliz que um morador da cidade grande, pois suas expectativas e desejos são menores, restringem-se às necessidades básicas: moradia, alimentação, vestuário. Isso é o que basta.

“O homem daqui, seu conceito de felicidade é muito mais subjetivo: ser feliz não é ter coisas; ser feliz é ser livre, não precisar de trabalhar.” (p. 143)

As crônicas de Rachel abordam os temais mais variados. Em “Quaresma”, fala sobre o choque entre a moral, entre o olhar vigilante dos pais e mesmo da Igreja e o desejo de liberdade dos jovens (de todas as épocas, por sinal), que querem antes se

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divertir que propriamente obedecer a regras. Ou em “Praia do Flamengo”, em que a autora traça um perfi l dos frequentadores da praia, de acordo com o horário, expectativas, faixa etária, indo das mães, babás e crianças até os jovens que querem se exibir mutuamente como meio de conquista, de paquera, passando pelas domésticas, que só podem frequentar a praia no fi m do dia, depois de largarem o expediente.

Esses se misturam com os banhistas do meio-dia e da tarde, que são a nata dos frequentadores. Exibem-se nessa hora os brotos mais sensacionais das adjacências. (p. 138)

Em “O estranho”, por sua vez, após criar um clima de certo suspense, revela que o estranho é seu neto que nascera há 22 dias e fora responsável por transformar a rotina da família toda. Interessante que depois a autora passa a escrever diversas crônicas para tratar sobre o ser avó, como é o caso de “A arte de ser avó”, publicada em O homem e o tempo.

As crônicas selecionadas de O caçador de tatu seguem essa linha temática variada. No entanto, um tema recorrente é o amor. Em uma dessas crônicas, intitulada simplesmente “Amor”, faz uma espécie de enquete para saber a defi nição desse sentimento, de modo mais específi co entre casais. Conforme a experiência de vida tem as mais variadas respostas, com destaque para a última, dada por uma matrona sossegada.

Amor? Amor é uma coisa que dói dentro do peito. Dói devagarinho, quentinho, confortável. É a mão que vem da cama vizinha, de noite, e segura na sua, adormecida. E você prefere fi car com o braço gelado e dormente a puxar a sua mão e cortar aquele contato, tão precioso ele é. [...] Mas o que o amor é principalmente, são duas pessoas neste mundo. (p. 162)

Há também o amor que podemos direcionar a cidades, objetos, etc. É o caso de “Pequena cantiga de amor para Nova Iorque”. O título é autoexplicativo. Ainda há o amor voltado para outras pessoas, como em “Irmão”.

A crônica que dá título do livro conta um episódio inusitado do tal caçador de tatu. Antes, a autora lembra que houve uma grande seca na região, depois vieram as doenças e trinta e três anos depois, há esse caçador. Certa noite, foi caçar seus tatus e deixou a mula amarrada. Quando voltou, quase pela manhã, foi pegar a mula para ir embora, mas ela estava muito arisca. Houve mesmo uma luta. Foi então que ele percebeu, espantando o cansaço e o sono, que na verdade era uma onça. Conclui que a onça havia comido a mula e ele, por conta da escuridão e tudo o mais, se confundiu. Aliás, histórias de caçadas são comuns no universo das crônicas de Rachel de Queiroz. Outra se encontra em O homem e o tempo, no qual se lê crônica dedicada ao neto Flávio, já citado em “O estranho”. Trata-se de “Duas histórias para o Flávio – ambas de onça”. A primeira história é a de um pai que obriga o fi lho a caçar uma onça. Após muita luta, cansaço e ferimentos, o fi lho até consegue, mas, sentindo-se abandonado pelo pai, ele próprio resolve ir embora e larga tudo, família e casa. A segunda história é sobre um homem que encontra dois fi lhotes de onça e tenta pegá-los, mas é surpreendido pela mãe, que o coloca para correr.

Nesse mesmo livro, encontramos crônicas que tratam da vida na cidade, como “O caso dos bem-te-vis”. Segundo consta, os tais passarinhos estariam namorando em fi os de alta tensão quando provocaram um curto-circuito que privou a cidade de luz por algumas horas. Ou “O brasileiro perplexo”, que fala

sobre dinheiro, política e infl ação no Brasil dos anos 50 e 60.Em “Menino e o Caravelle”, temos o primeiro voo de um

menino e a descoberta do avião, objeto mágico no imaginário infantil. Em “Mapinguari”, uma lenda amazônica, trata de um ser que se alimentaria de carne humana e, na crônica, mata um seringueiro e persegue outro. “Ai, Amazonas”, por sua vez, trata de algumas características da região. Em outros termos, Rachel procura retratar todos os lugares que conheceu, seja o Ceará, onde nasceu, seja o Rio de Janeiro, onde morou, ou outras regiões do Brasil e do mundo.

Do Rio defende, no início da década de 1970, a volta dos bondes como meio de transporte, seja por não poluir, seja pelo aspecto romântico,seja ainda pela segurança; afi nal, bondes causam bem menos acidentes que ônibus e demais veículos motorizados.

Então, ante a dura realidade, ante os dinossauros assassinos disparados pelo asfalto, deixem-me sonhar com os bondes. Nessa cidade feroz, seria cada bonde uma ilha de segurança, de amável fraternidade, sempre cabia mais um de saudades. (p. 227)

A São Paulo dedica igualmente uma crônica (“São Paulo e eu”), em que destaca alguns pontos da cidade, assim como a poluição. E há outra para Brasília (“Brasília e a rosa-dos-ventos”), em que analisa a posição geográfi ca da capital federal, destacando o fato de ter fi cado isolada das demais capitais. Ainda sobre o Rio, faz um breve diagnóstico da cidade pós-Brizola, em “Esses moços, felizes moços”, dando destaque para um período de decadência da cidade. Também chama a atenção para o aumento da violência, para o culto ao corpo, para uma visão negativa sobre juventude. Como o título sugere, Rachel defende a ideia de que, apesar dessa visão negativa, pode surgir daí uma geração mais consciente, mais preparada para o futuro, com mais informação, graças ao início da popularização da informática (a crônica é de 1988).

Meu palpite é que, se não derraparem em caminho, vai sair deles uma humanidade muito especial. (p. 239)

Talvez isso possa vir a acontecer mesmo.Crônica bem interessante é “Os sobrenomes”, em que faz

uma análise geral sobre os tipos de sobrenomes utilizados pelos brasileiros, por que se utilizam alguns e não outros, como nomes de árvores (adotam-se nomes como Carvalho, Pereira, mas não bananeira ou aroeira. Dos nomes de Estados, usam Amazonas ou Bahia, mas não Mato Grosso ou Sergipe. E por aí vai. Talvez alguns dos sobrenomes não utilizados à época da crônica (1973) possam estar sendo usados agora, mesmo assim como análise é interessante.

Do livro As terras ásperas foram selecionadas cinco crônicas. Um delas, “A imponderável afl ição de estar vivo”, fala da vida nas cidades, em particular da violência e dos assaltos, mas também das doenças tipicamente urbanas, como o cólera, razão pela qual o título se explica.

Há uma crônica que trata do fi m do ano, da última década do século, que marcaria também o fi m do milênio, “Ao som dos foguetes do ano-novo”. Nela, demonstra sua insatisfação pelos festejos, seja porque a hora exata em que se comemora o fi m de um ano e o início do outro nunca é exata, seja porque a vida não muda de maneira signifi cativa por conta da simbologia em torno dos números que marcam esse ou aquele ano. Aproveita, pois, para chamar a atenção para os que trabalham diariamente, como

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o homem do campo, ou os que já trabalharam por toda uma vida e não têm o devido reconhecimento, como os aposentados.

Em outra crônica, trata da literatura: “Jorge Amado, oitenta anos”, uma homenagem a um dos mais importantes escritores de sua geração, responsável pela criação de tipos memoráveis, como Tieta, Dona Flor e Quincas Berro d’Água, entre outros. Depois em “A contagem regressiva está correndo”, fala sobre amigos que já haviam falecido ou vieram a falecer entre os anos 80 e 90, com destaque para José Olympio, em homenagem ao editor que publicou e tornou mais conhecida a literatura nacional, a literatura de autores que, como a própria Rachel de Queiroz, iniciaram sua carreira na década de 30. Olympio morreu em 1992 e Rachel diz ao fi nal da pequena crônica:

“Au revoir, mano velho, me espera que eu já estou na contagem regressiva, já fi z 82...” (p. 256).

Apenas para lembrar, a autora viria a morrer apenas em 2003, aos 93 anos de idade. Em “Ah, os amigos (de Falso mar, falso mundo), sem se referir a nomes específi cos, também presta uma homenagem às pessoas que fi zeram parte de sua vida e que se foram antes dela.

Por fi m, em “Uma simples folha de papel”, trata da difícil tarefa de escrever, em especial para o jornal, devido à constante necessidade de agradar ao público, à constante necessidade de manter os leitores satisfeitos. Desse modo, o cronista, o escritor fi ca entre a obrigação mercantilista de ajudar a vender o jornal e a da sua própria consciência, com o que acha correto falar e do modo que prefere escrever.

Aliás, para fazer justiça, não é propriamente o jornal o nosso tirano. O déspota implacável é mesmo o público, de quem o jornal é apenas o humilde, solícito, serviçal. (p. 244)

Falso mar, falso mundo é o último livro da autora. Publicado em 2002, as crônicas revelam as impressões de um mundo em transformação (os anos 80 e 90 do século XX), marcados pelo fi m da guerra Fria, pelo fi m dos governos ditatoriais na América Latina, a consequente redemocratização, mas também as transformações midiáticas, com a popularização da internet e as mudanças discursivas, entre outros pontos. Em resumo, Rachel de Queiroz retrata, nessa coletânea de crônicas, sua visão sobre a vida e sobre o cotidiano, sobre sua experiência pessoal e a observada.

Tratemos, pois, de algumas dessas crônicas.Uma das crônicas que têm como objetivo a abordagem

da literatura é “O nosso humilde ofício de escrever”. Inicia a crônica dizendo que uma jovem escritora havia lhe perguntado como se deveria fazer para escrever um romance. Logo de início, diz que cada escritor tem seu próprio processo criativo e que os escritores dos países mais desenvolvidos, como a França, teriam mais material romanesco que um autor brasileiro. Em seguida, diz que, em seu caso particular, escreve apenas quando sente a devida inspiração, a devida necessidade. Como efeito, Rachel publicou, em setenta anos de carreira, poucos romances (sete no total). “E muito menos eu, que só faço meus livrinhos quando eles querem sair”, diz.

Depois, explica como cria o cenário, o enredo, o nome das personagens, sobre o uso da tecnologia para escrever (computadores). Ao contrário de muitos autores, Rachel diz não se deixar prender por um padrão criativo. Prefere deixar-se levar pelo processo em si. Trata-se de uma visão meio romântica,

amparada na inspiração, o que soaria como uma afronta a autores como Autran Dourado ou João Cabral de Melo Neto, tão afeitos à criação literária baseada na racionalização. Isso não signifi ca que, de fato, Rachel seja displicente com sua obra, mas apenas que expressa outra concepção do processo criativo.

Ao tratar do modo de escrever, se à mão, se com uso de tecnologia, por conta de sua formação, diz preferir a máquina de escrever ao computador, mesmo tendo ganhado um quando residia em Paris. Apesar disso, tentou comprar um, mas sempre ocorria algo que a impedia, como ter sido roubada quando ia fazê-lo, ou um contrabandista que lhe traria um importado ter sido preso. Em conclusão, diz: “era evidente que Deus não queria que eu possuísse o computador!”.

Outra temática recorrente nas crônicas de Rachel de Queiroz é a passagem do tempo, o envelhecer, o ganhar experiência. Mas faz isso não segundo o senso comum. Para ela, termos criados recentemente não espelham a realidade: são antes meio ufanistas de pensar a vida, como a expressão “terceira idade” ou o equivalente “melhor idade”. Claro que o envelhecer garante experiência de vida, garante uma percepção mais ampla do que se fez e do que fazem os mais jovens. O preço, porém, são as doenças mais constantes, o fraquejar do corpo. Esse era inclusive um dos seus temores pessoais. Imaginava que, ao chegar aos oitenta anos, teria de usar muletas, seria uma idosa ranheta e cheia de manias. Para sua alegria, nada disso aconteceu na virada do milênio, quando completou 89 anos. Na crônica “A cobra que morde o rabo”, trata exatamente desses temores e da satisfação de estar bem:

[...] e já cá estou, sem bastão, andando livremente (até de salto alto, às vezes), enfrentando a vida e suas tristezas.

A autora, que morreria aos 93 anos, sabia bem dar valor à vida, e acredita que sua força viria de sua origem cearense. Obviamente que não se trata de uma explicação determinista; de qualquer modo, as difi culdades naturais daquele Estado colaboram para que o cearense tente vencer as adversidades.

Não sei muito bem como se comportam os outros ante a adversidade, mas creio que nós, cearenses, temos a alma elástica: a batida vem, mas a gente reage sempre e se levanta.

Tal predisposição a ajudou a encarar a vida de acordo com os problemas reais, verdadeiros, e não as pequenas difi culdades comezinhas da vida, como se o salto do sapato quebrou, ou se o vestido não fi cou bom.

Outro ponto de sua refl exão nessa crônica diz respeito ao fi m do milênio, à época, envolto em muito misticismo, crendices, incluindo a do fi m do mundo, e toda sorte de projeções. Mas, para ela, no fi m das contas, mesmo com mais experiência, em rigor, as pessoas não se diferem muito.

Mas o curioso é que viver não é um aprendizado. Um velho de cabelos brancos é tão inexperiente e crédulo quanto um menino, diante da vida. Cai nos mesmos tropeços, o menino ao aprender a andar, o velho que já não pode confi ar nas pernas para cruzar os passos. E a gente acaba, na vida, no mesmo ponto onde começou. Como a cobra que morde o rabo.

Ainda sobre a velhice, há diversas crônicas, como “Não aconselho envelhecer”, por conta das razões já aludidas: maior facilidade para adoecer, perda da vivacidade. Por isso, seu

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conselho, ainda que soe irônico, serve para reafi rmar que o mais importante é permanecer jovem e que é preciso aproveitar a vida em toda sua plenitude. Diz a autora:

Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel. Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras – a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a fi ação arterial e venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então te basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado (p. 265).

Em “De armas na mão pela liberdade”, temos outra crônica a tratar da velhice. Segundo Queiroz, tratar-se-ia de uma história real, ao menos o argumento básico, com acréscimos fi ccionais. O fato é que Queiroz quis, mais uma vez, explorar as condições a que muitas vezes são submetidos os idosos, tanto pelas condições naturais de ser velho, quanto por um processo social. No caso, uma senhora de 90 anos foi presa portando dois revólveres. Segundo a explicação dada, ela morava em um asilo cuja diretora não permitia a saída dos idosos pela rua, como medida de segurança, mas que era, na verdade, um modo de os controlar. Assim, a idosa, conforme sugere o título da crônica, quis reconquistar sua liberdade de armas em punho.

Não estou inventando: saiu no jornal: ‘Em Porto Alegre, senhora de 90 anos (90, sim) arma-se com dois (dois!) revólveres e abre caminho para a rua, garantindo o seu direito de ir e vir’ (p. 115).

O acontecimento serve à autora para tecer uma série de considerações sobre ser livre, ser cidadão, uma vez que, em sendo idoso, o indivíduo acaba por perder aquilo por que lutou a vida toda, razão pela qual Rachel diz ser tão ruim a velhice.

Ninguém parece entender que a primeira condição para o velho não se sentir tão velho é deixá-lo sentir-se livre. Resolver seus problemas pessoais; ser ele próprio quem conte os seus sintomas ao médico, ser ele próprio quem decide se toma ou não os remédios prescritos – como faz todo mundo. (p. 117).

A crônica “Os Noventa” também revela a preocupação da autora com tempo. Neste caso, porém, é o tempo em geral, e não a do corpo, a do indivíduo. Trata-se de uma crônica que faz um resumo da década, com destaque para o futebol e a perda do pentacampeonato mundial de futebol em 1998; fala sobre os amigos de profi ssão, os amigos; sobre as origens no sertão cearense, a vida no Rio de Janeiro. Como conclusão geral, diz serem os anos noventa muito ruins, sem graça.

Por que as dezenas são importantes, a gente não sabe muito bem. Mas sempre procuro dar uma explicação a cada dezena de anos que completo. Desde os cinquenta. Talvez seja uma maneira de fugir ao impulso natural de negar a idade quando ela nos parece excessiva. Talvez uma defesa também: se eu proclamo a minha idade ninguém se interessará em alegá-la contra mim, setenta, oitenta e agora estes antipáticos noventa. Não estou achando a menor graça: e lá dentro do meu coração,

eu sinto que estes noventa anos são uma injustiça imerecida (p. 285).

Com efeito, foram anos marcados por um clima de alegria e desencanto, ao mesmo tempo. Seja por conta do aludido futebol brasileiro (campeão em 94, mas derrotado em 98), seja por conta da falência da democracia inicial, marcada pelo impeachment de Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo povo após um longo período de eleições realizadas pelo Colégio Eleitoral. Também é uma década que marcava o fi m do século e do milênio, o que criava um clima próprio para esoterismos e crenças absurdas, bem como para esperança de uma vida melhor após o ano 2000.

Outras três crônicas abordam assuntos variados, mas que se encontram na busca de uma compreensão da vida, uma compreensão do ser e do estar no mundo. São elas: “Ah, os amigos”, “Os riquésimos também padecem” e “Menino que vota não é também cidadão?”. Na primeira, encontramos uma declaração de amor aos diversos amigos, aos que apoiaram a autora nas horas difíceis, as lembranças do sertão quando estava em Berlim: “Me vi de repente no Ceará, tal como deve ele estar agora...”, diz a cronista, e a apologia da amizade: “Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza...”

Na crônica que dá título ao livro, “Falso mar, falso mundo”, Rachel de Queiroz discute uma série de temas relativos à vida moderna, seja a semelhança dos quartos em um hotel, seja a explicação para como um avião voa ou ainda a mídia moderna. O que domina tais considerações é a suposição de que os indivíduos, aos poucos, perdem o senso de humanidade para assumirem mecanicamente determinados padrões de comportamento, razão pela qual o mundo estaria se falsifi cando passivamente. Esse falso mundo se relaciona ao falso mar por conta de uma reportagem sobre uma praia artifi cial no Japão. Diz a cronista:

Mas nesta semana vi na TV uma reportagem que me horrorizou como prova de que, a cada dia, mais renunciamos às nossas prerrogativas de seres vivos e nos tornamos robotizados. Foi a ‘Praia Artifi cial’ no Japão (logo no Japão, arquipélago penetrado e cercado de mar por todos os lados!). É um galpão imenso, maior do que qualquer aeroporto, coberto por uma espécie de cúpula oblonga, de plástico. E fi las à entrada, lá dentro de um guichê, o pessoal paga a entrada, que é cara, e some. Deve entrar no vestiário, ou antes, no despiário, pois surgem já sem roupa, convenientemente seminus, como se faz na praia. Pois que debaixo daquele imenso teto de plástico está um mar, com a sua praia. Mar que, na tela, aparece bem azul com ondas de verdade, coroadas de espuma branca; ondas que chegam a derrubar as pessoas e sobre as quais jovens atletas surfam e rebolam. E um falso sol, de luz e calor graduáveis; e a praia é de areia composta por pedrinhas de mármore, a cujo contato algumas moças de biquíni se queixavam de que doía um pouco. ‘Mas valia a pena’ (p. 263).

Trata-se de uma praia artifi cial, uma das que vieram a se tornar bem comuns nos mais diversos parques temáticos espalhados pelo mundo. O que chama a atenção da cronista é a falsidade a que todos aderem a um falso mar, que acaba por espelhar o falso mundo em que vivemos, ou o mundo das expressões padronizadas, sem espontaneidade, do mass media, do mercado, sem espaço verdadeiro para as individualidades, que só podem se expressar se forem para repetir a visão dominante.

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Em outros termos, é o diferente que colabora para manter o padrão, que não chega a alterar a lógica do mundo, a lógica do mercado.

Há uns vinte anos, Oyama e eu nos hospedamos num hotel americano que tinha vinte e cinco andares; o nosso quarto fi cava no segundo andar, e cada andar era cópia fi el do outro, superpostos corredor sobre corredor, quarto sobre quarto. E, de noite, eu não conseguia dormir, pensando que, por cima de nós, empilhados em montes, estavam vinte e três quartos iguais, e as camas iguais, uma sobre a outra. E em cada cama um casal dormindo, roncando, brigando. E se de repente o hotel afundasse, os assoalhos afundassem... Lembrei aí que, embaixo de nós tinha um quarto igual, outro casal na cama; e a impressão era desagradabilíssima, não sei se me entendem, aquela espécie de promiscuidade invisível mas concreta, cada casal na sua alcova, como aqueles montes de caixas de ovos nas prateleiras dos supermercados (p. 47).

Essa padronização encontra amparo nos mass media, nos meios de comunicação de massa, em especial a televisão, que acaba por instituir e difundir os padrões de comportamento, os discursos considerados corretos, como o da terceira idade ou, pior, melhor idade, no sentido de que esconderiam a realidade, segundo a autora.

Para fi nalizar, há que se destacar a crônica que escreveu para tratar da derrota do Brasil na Copa de 1998, quando a seleção de futebol foi derrotada pela França, adiando o projeto do penta, o que viria ocorrer em 2002. A crônica serve para a autora tratar da paixão do brasileiro pelo futebol e de como tal esporte chegou aqui pelas mãos da elite, vindo a se tornar o esporte mais popular do país.

Em resumo, os textos de Rachel de Queiroz abordam variados temas, com destaque para os ligados à terra, à sociedade brasileira, aos lugares que conheceu, além de curiosidades em geral.

REFERÊNCIASHOLLANDA, Heloisa Buarque de. Rachel de Queiroz: coleção melhores

crônicas. São Paulo: Global, 2004.

Exercícios

1. (ENEM) Quando vou a São Paulo, ando na rua ou vou ao mercado, apuro o ouvido; não espero só o sotaque geral dos nordestinos, onipresentes, mas para conferir a pronúncia de cada um; os paulistas pensam que todo nordestino fala igual; contudo as variações são mais numerosas que as notas de uma escala musical. Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí têm no falar de seus nativos muito mais variantes do que se imagina. E a gente se goza uns dos outros, imita o vizinho, e todo mundo ri, porque parece impossível que um praiano de beira-mar não chegue sequer perto de um sertanejo de Quixeramobim. O pessoal do Cariri, então, até se orgulha do falar deles. Têm uns tês doces, quase um the; já nós, ásperos sertanejos, fazemos um duro au ou eu de todos os terminais em al ou el – carnavau, Raqueu... Já os paraibanos trocam o l pelo r. José Américo só me chamava, afetuosamente, de Raquer.

Raquel de Queiroz comenta, em seu texto, um tipo de variação linguística que se percebe no falar de pessoas de

diferentes regiões. As características regionais exploradas no texto manifestam-se a) na fonologia. b) no uso do léxico. c) no grau de formalidade. d) na organização sintática. e) na estruturação morfológica.

2. Sobre as Crônicas Escolhidas de Rachel de Queiroz, é FALSO afi rmar que:(B) por conta de suas experiências de vida e de sua formação

política, procurou tratar de temática social, seja para tratar das questões da seca, seja para falar da difícil vida do trabalhador comum no Brasil.

(B) trata dos aspectos cotidianos e de sua vida pessoal, cuja refl exão ultrapassa a mera subjetividade, pois aborda assuntos de ordem literária, questões relacionadas à tradição e à modernidade, bem como fatos do cotidiano que a autora teria vivenciado.

(C) Em “O grande circo zoológico”, narra seu encontro com uma trupe circense que viajava às margens do rio São Francisco. As histórias não têm um cenário único: este pode ser o Nordeste em geral, o Ceará em particular ou o Rio de Janeiro, onde morou, ou as viagens que fez, à Europa, por exemplo.

(D) Em “Retrato de um brasileiro”, narra a história de um homem comum, que teve suas desilusões amorosos, o desapontamento pelos fi lhos, o trabalho constante e o pouco reconhecimento dos seus.

(E) Preocupada com o apuro formal da linguagem, a autora peca pelo hermetismo, pois o leitor comum se depara, nessa obra, com um texto repleto de cientifi cismos e arcaísmos injustifi cáveis para o gênero.

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Poesia épico-social e lírica, exaltação da natureza e metalinguagem

No prólogo a Espumas fl utuantes, Castro Alves explica as razões do livro, único organizado por ele em vida e publicado em 1870. Diz ele:

Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quantos sois efêmeros... [...] E quando – comediantes do infi nito – vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?

– Uma esteira de espumas... – fl ores perdidas na vasta indiferença do oceano. – Um punhado de versos... – espumas fl utuantes no dorso fero da vida!...

O poeta voltava à terra natal – Bahia –, vindo do Rio de Janeiro, onde tivera contato com a intelectualidade mais renomada (José de Alencar e Machado de Assis, entre outros). Lá também conhecera o amor (o caso mais famoso se deu com a atriz portuguesa Eugênia Câmara) e também pudera aprimorar sua técnica literária e iniciar luta em prol de ideais libertários, particularmente pelo fi m da escravidão.

No prólogo, explica o título e sugere a ideia de transitoriedade, de coisas fugidias e perdidas no tempo e no espaço, sobre as quais não se tem controle. A razão biográfi ca é que o poeta morreria no ano seguinte, vitimado por uma doença, que lhe retirava, aos poucos, a força. A causa original fora uma caçada mal-sucedida, durante a qual, por acidente, sua arma disparou e atingiu o próprio pé, o que o levaria, algum tempo depois, a ter a perna amputada. Como o problema da infecção nunca fora resolvido com precisão, outras doenças se instalaram em seu corpo débil e, em julho de 1871, veio a falecer aos 24 anos de idade.

O livro contém 53 poemas, além de uma “Dedicatória” na qual se percebe a tônica do livro, isto é, a da poesia como meio de salvação pessoal e social. Aludindo à história bíblica de Noé, o eu lírico pede à pomba (à poesia) que lhe traga um ramo no bico, como prova de que a salvação está próxima, de que a libertação é possível.

[...]Vai, pois, meu livro! e como louro agresteTraz-me no bico um ramo de... cipreste!

Castro Alves é poeta pertencente à 3a geração da poesia romântica no Brasil. Como se sabe, a ênfase temática da primeira recaiu sobre a questão nacional, indianista; os poetas da 2a voltaram-se para a tematização do “eu”, da individualidade, do distanciamento amoroso; ao passo que a 3a geração, cujo poeta principal é exatamente Castro Alves, teve como foco a luta pela vida, pela liberdade.

Por esse motivo, a 3a geração fi cou conhecida como condoreira, por referência à ave de grande envergadura, que vive nos Andes, o condor. A comparação se deve ao fato de tal ave expressar o ideal de liberdade, assim como a capacidade, pela altitude alcançada, de conseguir uma visão ampla do espaço, do seu habitat. Assim também deveria ser o poeta: ter visão ampla da sociedade e não fi car limitado à expressão egocêntrica de seus próprios anseios.

No caso de Espumas fl utuantes, há pelo menos 11 poemas

CAPÍTULO III - Espumas Flutuantes, de Castro AlveS

com essa característica condoreira. É bem verdade que, em livro que ainda estava preparando, Os escravos, Alves exploraria ainda mais essa visão libertária.

São estes os poemas, em ordem de aparecimento:“O livro e a América”;“Quem dá aos pobres empresta a Deus”;“Ahasverus e o gênio”;“Ao dois de julho”;“O voo do gênio”;“A Maciel Pinheiro”; “Pedro Ivo”;“Oitavas a Napoleão”;“Jesuítas”;“Ode ao dois de julho” e“As trevas”.O primeiro é uma ode, uma exaltação ao Novo Mundo,

propício a construir-se de modo diverso do que acontecera até então em outros países, onde reinara a injustiça, os desmandos, a falta de perspectiva. E o caminho para isso seria pelo livro (por isso o título), pela cultura, pela solidifi cação cultural do país. Uma luta também de José de Alencar, por exemplo, em uma época em que 80% da população era analfabeta. Se hoje isso pode ser visto como truísmo (a necessidade óbvia da leitura, da alfabetização para o crescimento...), à época o poema deve ter sido lido em tom idealista. De qualquer modo, para Castro Alves a verdadeira liberdade passa por esse caminho, o do aprimoramento cultural, para o que o livro seria o mais importante meio:

[...]Filhos do séc’lo das luzes!Filhos da Grande nação!Quando ante Deus vos mostrardes,Tereis um livro na mão:O livro – esse audaz guerreiroQue conquista o mundo inteiroSem nunca ter Waterloo...Éolo de pensamentos,Que abrira a gruta dos ventosDonde a Igualdade voou!...

No poema seguinte – “Quem dá aos pobres empresta a Deus” – o conceito é o mesmo. O livro se equipararia ao sabre, à espada, porque ambos se prestam à luta pela liberdade. O poema é rico em referências. Entre elas a Moema, índia preterida por Diogo Álvares Correia em O Caramuru, poema épico escrito por Frei da Santa Rita Durão e publicado em 1781. O objetivo é exaltar a raça brasileira, sua força e sua vontade de ser livre:

[...]E foram grandes teus heróis, ó pátria,– Mulher fecunda, que não cria escravos – ,Que ao trom da guerra soluçaste aos fi lhos:“Parti – soldados, mas voltai-me – bravos!E qual Moema desgrenhada, altiva,Eis tua prole, que se arroja então,De um mar de glórias apartando as vagasDo vasto pampa no funéreo chão.

Três poemas tratam de momentos revolucionários no Brasil,

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e dois exaltam o dia 2 de julho de 1823, quando as tropas do Exército e da Marinha Brasileira, na Bahia, conseguiram a separação defi nitiva do Brasil do domínio de Portugal. Isso porque tropas portuguesas dominavam Salvador, mas no dia 2 de julho foram defi nitivamente derrotadas e a Independência brasileira, consolidada. Agora, a luta é apenas a armada, não a dos livros. Ainda assim, o objetivo é exaltar a liberdade conquistada, é revelar uma epopeia, ocorrida em solo brasileiro. Como se pode perceber, o termo mais comum é a liberdade, a luta por ela, em um país que, ironicamente, mantinha como base econômica a escravidão:

[...]Não! Não eram dous povos, que abalavamNaquele instante o solo ensanguentado...Era o porvir – em frente do passado,A Liberdade – em frente à Escravidão,Era a luta das águias – e do abutre,A revolta do pulso – contra os ferros,O pugilato da razão – com os erros,O duelo da treva – e do clarão!...

O terceiro poema é dedicado a Pedro Ivo, um dos líderes da revolução Praieira em Pernambuco, movimento de caráter liberal e separatista ocorrido entre 1848 e 1850 que marca o fi m dos movimentos contrários ao governo imperial brasileiro. Depois disso, o Império, sob a regência de D. Pedro II, conheceu um período mais calmo, no que diz respeito às revoltas locais. O objetivo de Castro Alves, com o poema, não é tanto o de defender o separatismo em Pernambuco, mas sim o de exaltar a luta pela liberdade. Por isso, Pedro Ivo, embora fosse considerado uma espécie de vilão pelo governo regencial, também poderia ser visto como herói no sentido de lutar por liberdade, por querer implantar a República no país. À época de Castro Alves, na década de 70 do século XIX, começava a se engendrar e fortalecer um grupo republicano, não de caráter separatista, mas sim integrador, o que viria a se consolidar em 1889, com a proclamação da República:

República!... Voo ousadoDo homem feito condor!Raio de aurora inda ocultaQue beija a fronte ao Tabor!Deus! Por qu’enquanto que o monteBebe a luz desse horizonte,Deixas vagar tanta fronte,No vale envolto em negror?!...

Outro poema, em que exalta o valor heroico, a crença em um mundo melhor, é “Jesuítas”. Este é apenas um dos três poemas que Castro Alves dedicou à congregação religiosa conhecida, popular e resumidamente, por essa denominação. Além desse, em Espumas fl utuantes há ainda “Jesuítas e frades” e “Frades”, publicados em Os escravos. Há certa progressão nos títulos em que os jesuítas cedem lugar aos frades. A explicação está nos próprios poemas, pois os semeadores da Igreja nascente no Brasil são exaltados como os que colaboraram na edifi cação do Novo Mundo, ao qual deram a própria vida em nome da liberdade e da religião:

[...]Grandes homens! Apóstolos heroicos!...

Eles diziam mais do que os estoicos: “Dor, – tu és um prazer! “Grelha, – és um leito! Brasa, – és uma gema! Cravo, – és um cetro! Chama, – um diadema Ó morte, – és o viver!”

Além desses poemas de caráter épico-social, há os líricos. São mais de 20 poemas com essa temática. E aqui merece logo de início um registro. Ao contrário dos desejos não realizados cantados pelos poetas da 2a geração romântica, Castro Alves viveu-os (em especial com Eugênia Câmara, a quem dedica diversos de seus poemas) e procurou explorar essas experiências reais em sua poesia, que expressa alguma tendência platônica, mas que se revela mais próxima de uma realização de fato, em que o erotismo é latente e tudo o que lhe diz respeito, como o ser voyeur, que se inspira na observação da mulher amada. Para tanto, estabelece um jogo entre o amor sexuado e a natureza, entre o desejo e a realização. No entanto, não despreza totalmente os preceitos da poesia de Lord Byron, tão difundida pelos poetas da 2a geração, cujo principal expoente foi Álvares de Azevedo e cuja poesia (por alusão ou citação) se faz presente também nos textos líricos de Castro Alves.

Como já se disse, o Poeta dos Escravos acabou falecendo jovem, aos 24 anos; no entanto, não era o que desejava. Se Álvares de Azevedo poetiza o desejo de morrer, Castro Alves quer viver. Esse aspecto pode ser verifi cado em “Mocidade e morte”, onde o eu lírico, embora saiba que vá morrer, ou agora ou depois, conclama pela vida, exalta a vida. A morte, portanto, como escapismo, seria uma afronta ao amor, à capacidade de amar do ser humano. Viver é amar, é manifestar a genialidade, é criar. O poema é de 1864, bem antes, pois, do acometimento que o levaria efetivamente à morte.

É, assim, uma forma de crítica à 2a geração, cujos poetas buscavam a morte como solução para uma vida frustrada:

Oh! Eu quero viver, beber perfumesNa fl or silvestre, que embalsama os ares;Ver minh’alma adejar pelo infi nito,Qual branca vela n’amplidão dos mares.No seio da mulher há tanto aroma...Nos seus beijos de fogo há tanta vida...[...]

Tais considerações aparecem em “Quando eu morrer”, no qual, ao contrário de Álvares de Azevedo, pede para não ser esquecido, pede para ser lembrado, lido, pois assim poderá continuar a viver pela literatura.

A poesia lírica de Castro Alves é meio de expressar a realização, como se constata em “O laço de fi ta”, “Boa noite” e “Adormecida”. Neste último caso, tem-se um exemplo de voyeurismo. Enquanto a mulher dorme e é levemente tocada pelos galhos de um jasmineiro, o eu lírico observa e se delicia com o quadro. No segundo poema, é um ato de despedida, que se revela outro de chegada. Assim, enquanto se despede de uma mulher, apresenta-se a outra. E no primeiro poema, o laço de fi ta se transforma em fetiche, em fantasia que levará o eu lírico a apaixonar-se pela mulher que o traz, além da presença do cabelo, que, quando desarrumado, sugere o ato amoroso:

Meu ser, que voava nas luzes da festa, Qual pássaro bravo, que os ares agita, Eu vi de repente cativo, submisso Rolar prisioneiro

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Num laço de fi ta.[...]

Boa-noite!... E tu dizes – Boa-noite. Mas não digas assim por entre beijos... Mas não mo digas descobrindo o peito – Mar de amor onde vagam meus desejos.[...]

Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a fl or beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a fl or fugia...[...]

Ainda sobre “Adormecida”, é possível verifi car a simbiose entre amor e natureza, o que também ocorre em “A duas fl ores” e em “O coração”, cuja defi nição se estabelece, mais uma vez, pela comparação entre o sentimento amoroso e os elementos da natureza:

O Coração é o colibri dourado Das veigas puras do jardim do céu. Um – tem o mel da granadilha agreste, Bebe os perfumes, que a bonina deu.

Em “Os três amores”, Castro Alves se aproveita de três casais famosos da literatura, para ilustrar formas diferentes de amar.

São três estrofes, em cada qual há uma referência diferente. Na primeira estrofe, o eu lírico se apresenta como o poeta italiano Tasso e sua amada, Eleonora. Nesse sentido, há idealização amorosa, o que pode ser verifi cado em termos como sonhadora, primavera, solidões, típicos do universo romântico. Na segunda estrofe, o eu lírico se transforma em Romeu e, a amada, em Julieta. É o amor já quase realizado, amparado no sentimento, mas também no desejo carnal: “Sonho-te às vezes virgem... seminua...”. No entanto, a pressão social impede a realização plena. Por fi m, na última estrofe, o eu lírico se apresenta como Don Juan, é a retomada de “Boa noite”, o que ama todas as mulheres, o que realiza a si mesmo e aos desejos femininos. São etapas, pois, do amor, do distanciamento, passando pela sublimação entre o amor carnal e espiritual, até a voluptuosidade sexual:

Na volúpia das noites andaluzas O sangue ardente em minhas veias rola... Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,[...]

Tal realização com volúpia é tema também de “O gondoleiro do amor” (apesar do tom platônico, distanciado) e, de certa forma, de “O ‘Adeus’ de Teresa”. Neste último caso, porém, o D. Juan, que tudo faz para ter a mulher cativa por seu amor, após realizar seu intento, abandona-a para ir em busca de novas aventuras amorosas: “E ela arquejando murmurou-me: ‘adeus!’”

Em outros termos, ao tematizar o amor, Castro Alves não exalta propriamente a mulher idealizada, mas busca o amor carnal, real e sempre com sensualidade e erotismo.

Castro Alves acaba por tratar também dos desencontros amorosos. Em “Onde estás?”, o eu lírico chama a amada, a amante, mas ela não aparece. Pela temática e pelo modo com que o tema foi tratado, o poema se assemelha a “Leito de folhas

verdes”, de Gonçalves Dias. A diferença é que, no texto de Alves, é o homem quem espera pela mulher, e no de Dias é a mulher. Ainda assim, é possível estabelecer uma comparação imediata. Vejamos:

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. (Gonçalves Dias)

Vem! É tarde! Por que tardas? São horas de brando sono, Vem reclinar-te em meu peito Com teu lânguido abandono!... (Castro Alves)

Apesar disso, Castro Alves não despreza totalmente a poesia de caráter melancólico, a tematização do amor contemplativo, distanciado, o amor frustrado ou apenas desejado. Como exemplo, podemos citar “É tarde!”, em que trata da frustração amorosa:

É tarde! É muito tarde! O templo é negro… O fogo-santo já no altar não arde. Vestal! Não venhas tropeçar nas piras... É tarde! É muito tarde!

Em “Os anjos da meia noite”, escrito em 1870, o eu lírico expressa, em forma de delírio, como já fi zera em “Os três amores”, diferentes tipos de mulher, diferentes tipos de relacionamento. São oito anjos ou sombras, referidos em sonetos, cada qual representando uma mulher. São referências a mulheres seduzidas, segundo o conceito de D. Juan, de amar ao máximo, para prosseguir em nova conquista. O último anjo é a própria morte que o levará e encerrará o delírio de amar. Ainda assim, sabe que deve entregar-se a ele:

[...]Quem és tu? Quem és tu? – Es minha sorte! És talvez o ideal que est’alma espera! És a glória talvez! Talvez a morte!...

Isso, o delírio de amar, fi ca mais claro na série de poemas que escreveu à atriz teatral Eugênia Câmara, com quem teve um relacionamento tumultuado, polêmico, mas muito intenso. Destaquemos o poema “A uma atriz” e também “Hebreia”.

Outro ponto da poética de Castro Alves a ser destacado é a tematização da natureza. Isso vai ser mais comum em outro livro, A cachoeira de Paulo Afonso, mas neste, Espumas fl utuantes, Alves paga seu tributo à natureza exuberante do Brasil, como qualquer romântico. São três poemas que apresentam uma temática mais específi ca, ainda que outros façam referências também. São eles: “Murmúrios da tarde”, “Aves de arribação” e, de certo modo, “Sub tegmine fagi”.

Há nesses poemas a exaltação da natureza, é meio de o poeta explorar toda sua versatilidade com vocabulário adequado e uso de metáforas de expressão grandiloquente. De qualquer modo, a descrição da natureza se presta também como cenário para explorar ou o lirismo ou a temática social. Como exemplo do primeiro caso, podem-se citar “Murmúrios da tarde” e “Sub tegmine fagi” (em latim, “Sob a sombra das faias”, isto é, das árvores):

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Amigo! O campo é o ninho do poeta... Deus fala, quando a turba está quieta, As campinas em fl or. – Noivo – Ele espera que os convivas saiam... E n’alcova onde as lâmpadas desmaiam Então murmura – amor – [...](“Sub tegmine fagi”)

Em “Aves de arribação”, após descrever o cenário em que as aves voam, buscam novos lugares para viver, migram, enfi m, em busca de ares melhores, o eu lírico, na parte IV, expressa sua visão sobre a poesia, sobre a atividade do poeta. O poeta também deve migrar, deve buscar novos ares. Não deve se prender a um único tema, deve inspirar-se na vida, ter por musa, como ele próprio diz, “o amor e a natureza!”. Além disso, o ato de poetar pressupõe o trabalho, a atividade com a linguagem, e a genialidade, nem sempre compreendida ou aceita:

O Poeta trabalha!... A fonte pálida Guarda talvez fatídica tristeza... Que importa? A inspiração lhe acende o verso Tendo por musa -– o amor e a natureza!

Essa preocupação metalinguística, isto é, o tratar sobre a arte literária e sobre o papel do poeta pela própria poesia, acontece em diversos outros poemas. Ao menos em dez. Por exemplo, em “O livro e a América”, em que exalta os que semeiam cultura e em “O fantasma e a canção”, em que também revela a incompreensão do papel da poesia, mas que, apesar disso, ela sobrevive, encontra guarida e apoio em parte da sociedade:

[...]Bati a todas as portas Nem uma só me acolheu!... – “Entra! –: Uma voz argentina Dentro do lar respondeu. – “Entra, pois! Sombra exilada, Entra! O verso – é uma pousada Aos reis que perdidos vão. A estrofe – é a púrpura extrema, Último trono – é o poema! Último asilo – a Canção!...”

Em “As três irmãs do poeta”, o conceito da incompreensão é retomado. Apesar disso, cabe ao poeta continuar o seu trabalho, continuar a ser uma espécie de porta-voz da humanidade, que defende os valores da liberdade (leia-se Abolição e República), mas também o cantor dos amores, frustrados ou felizes. Por isso, ante a Indiferença, a Fome e a Morte (em letra maiúscula mesmo para personifi cá-las), o poeta deve prosseguir, não importa como ou onde. Trata-se da visão romântica, segundo a qual o poeta teria uma missão a cumprir. Com alguma variação, a mesma ideia se lê em “A meu irmão Guilherme de Castro Alves”:

[...]Assim, Poeta, é tua vida imensa, Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença... E são lavas lá dentro o coração.

Outro conceito contido nessas considerações é a do gênio, isto é, o indivíduo dotado de qualidades especiais, em particular o dom da criação, o dom da poesia, Para os alemães (como

Kant), essa genialidade seria a responsável pela força criadora do artista. É o conceito que se verifi ca em “O voo do gênio” e também em “Ahasverus e o Gênio”. Neste poema, em particular, o eu lírico, ou o gênio, equipara o seu destino a de Ahasverus, isto é, o judeu errante, o que perdeu a Graça divina, sem lugar no mundo, mas que, por isso mesmo, pertence a todos os lugares. O poeta também perdeu seu lugar no mundo moderno, no mundo das máquinas, da técnica, da agitação urbana, onde o que importa é o sucesso profi ssional, a ascensão social etc. De qualquer modo, o poeta resiste, busca seu lugar nas ausências, nas lacunas da vida:

[...]O Gênio é como Ahasverus... solitário A marchar, a marchar no itinerário Sem termo do existir. Invejado! A invejar os invejosos. Vendo a sombra dos álamos frondosos... E sempre a caminhar... sempre a seguir...

Em “Poesia e mendicidade”, Alves traça um rápido painel da poesia desde o princípio, passando pelas idades Média e Moderna, sempre mostrando como grandes poetas estiveram à mercê de alguém, de um provedor ou mecenas, mas sem que seu valor fosse louvado por todos. Também na idade Contemporânea (século XIX), o poeta busca seu espaço, busca o reconhecimento social, isto é, quer mostrar a importância da palavra, do trabalho com a palavra. Cabe ao poeta colaborar para a reforma da sociedade pela palavra poética:

Senhora! A Poesia outrora era a Estrangeira, Pálida, aventureira, errante a viajar, Batendo em duas portas – ao grito das procelas – Ao céu – pedindo estrelas, à terra – um pobre lar!

[...]Bem sei, Senhora, que ao talento agora Surgiu a aurora de uma luz amena. Hoje há salário p’ra qualquer trabalho Cinzel, ou malho, ferramenta ou penal.

[...]Então, Senhora, sob tanto encanto Pede o Poeta (que não tem renome) – Versos – à brisa p’ra vos dar um canto... Raios ao sol – p’ra vos traçar o nome!...

Em resumo, esses são os quatro pontos essenciais do livro Espumas fl utuantes: poesia social (libertária, republicana, condoreira), lírica (em que se misturam certo idealismo, mas com ênfase maior ao sensualismo, à realização de fato), exaltação da natureza e metalinguagem (com ênfase no papel social do poeta).

Quanto ao estilo, Castro Alves procura explorar diversas possibilidade criativas; é conhecido por seu modo grandiloquente de escrever, como em “As duas ilhas”, e nos demais poemas. Explora as possibilidades estilísticas da pontuação, em especial as reticências. Como característica desse estilo grandiloquente está o uso de diversas fi guras de linguagem, como metáforas, comparações, hipérboles, assonâncias, apóstrofes. Alves vale-se também da exploração retórica, com inversões sintáticas e uso de antíteses.

Em geral, fi naliza um poema de modo a obter um efeito

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superior, elevado. Eis alguns exemplos:

Deus colhe gênios no céu!... (“O livro e a América”)

Enquanto que a glória rolava sua alma Nas margens da história, na areia do céu!... (“Pedro Ivo”)

No curso audaz constelações de ideias, Marcha e recresce no marchar sem fi m!... (“Perseverando”)

Ainda do ponto de vista formal, sua poesia não obedece a uma métrica padrão, pois está sempre em busca de novas formas, para poemas diferentes. Pelo tom grandiloquente, dá preferência ao verso decassílabo, ainda que também explore versos mais populares, como as redondilhas.

Exercícios

1. (UEMS) Com base na leitura de Espumas fl utuantes, de Castro Alves, é correto afi rmar que as “espumas” a que se refere o título da obra representam, metaforicamente,(A) as forças líricas que movem o poeta.(B) as poesias que compõem o livro.(C) os amores do poeta por artistas de teatro.(D) os interesses sociais do poeta.

2. (UEMS) Com base na leitura da obra, é incorreto afi rmar que, na poesia de Espumas fl utuantes, o condoreirismo se caracteriza por(A) afetação de humildade.(B) exaltação da civilização.(C) retórica altaneira.(D) uso de hipérboles.

3. (Fuvest-SP)“Oh! eu quero viver, beber perfumesNa fl or silvestre, que embalsama os ares;Ver minh’alma adejar pelo infi nito,Qual branca vela n’amplidão dos mares.No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... – Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida.”

Nessa estrofe de “Mocidade e morte”, de Castro Alves, reúnem-se, como numa espécie de súmula, vários dos temas e aspectos mais característicos de sua poesia. São eles:(A) Identifi cação com a natureza, condoreirismo, erotismo

franco, exotismo. (B) Aspiração de amor e morte, titanismo, sensualismo,

exotismo. (C) Sensualismo, aspiração de absoluto, nacionalismo,

orientalismo. (D) Personifi cação da natureza, hipérboles, sensualismo

velado, exotismo. (D) Aspiração de amor e morte, condoreirismo, hipérboles,

orientalismo.

4. (PUC-Camp-SP)“E fui... e fui... ergui-me no infi nito, Lá onde o voo d’águia não se eleva...Abaixo – via a terra – abismo em treva!Acima – o fi rmamento – abismo em luz!”

Os versos anteriores pertencem aos poemas “O voo do gênio”, do livro Espumas fl utuantes. Esses versos ilustram a seguinte característica da poética de Castro Alves: (A) Ênfase emocional, apoiada nos recursos retóricos das

antíteses, das hipérboles e do paralelismo rítmico-sintático. (B) Intimismo lírico, marcado pela hesitação das reticências e

pelo temor do enfrentamento das adversidades. (C) Sacrifício do tom pessoal em nome de ideais históricos,

representados por símbolos épicos herdados do Classicismo. (D) Emprego de paradoxos, com a intenção de satirizar a

ambição de genialidade cultivada pelos ultrarromânticos. (E) Contraste entre as fortes marcas retóricas do discurso e o

sentimento da melancolia, que atenua o tom declamatório.

5. Em “Os três amores”, poema de Castro Alves, lê-se:“I MINH’ALMA é como a fronte sonhadoraDo louco bardo, que Ferrara chora...Sou Tasso!...a primavera de teus risos De minha vida as solidões enfl ora...Longe de ti eu bebo os teus perfumes,Sigo na terra de teu passo os lumes...— Tu és Eleonora...II Meu coração desmaia pensativo,Cismando em tua rosa predileta. Sou teu pálido amante vaporoso, Sou teu Romeu...teu lânguido poeta!Sonho-te às vezes virgem...seminuaRoubo-te um casto beijo à luz da lua— E tu és Julieta... III Na volúpia das noites andaluzasO sangue ardente em minhas veias rola...Sou D. Juan!...Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola! Sobre o leito do amor teu seio brilha...Eu morro, se desfaço-te a mantilha... Tu és — Júlia, a Espanhola!...”

Uma das opções a seguir não caracteriza a poética de Castro Alves. Indique-a. (A) Linguagem grandiloquente, rica em hipérboles e apóstrofes. (B) Oratória adequada para temas sociais, visando ao

convencimento do ouvinte/leitor. (C) Defesa de problemas sociopolíticos, como a escravidão dos

negros e os ideais republicanos. (D) Manutenção do gosto ultrarromântico, quanto ao

tratamento de temas, especialmente, na vertente lírico-amorosa.

(E) Poesia de cunho social associada ao condoreirismo, cujo símbolo é o condor, ave que alcança grandes altitudes.

6. (UFRS) Considere as seguintes afi rmações sobre a obra de Castro Alves:

I - A poesia amorosa do autor registra personagens

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femininas, algumas notáveis pela pureza e intangibilidade angelicais, outras destacadas pela sensualidade e disponibilidade satânicas.

II - O poeta destacou-se pela poesia de protesto contra a injustiça e a violência presentes na sociedade brasileira em geral e evidentes nas condições de vida a que estava submetida a população escrava.

III - A retórica grandiloquente rendia ao poeta autênticos poemas-discurso para serem antes ouvidos do que lidos, quer fossem denúncias contra a sociedade, quer fossem a exaltação da mulher amada.

Quais estão corretas? (A) Apenas I. (B) Apenas III. (C) Apenas I e III. (D) Apenas II e III. (E) I, II e III.

7. (UFRN) O poema de Castro Alves, transcrito a seguir, servirá de base para a próxima questão:

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. ‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina... E ao longe, num pedaço do horizonte, Via-se a noite plácida e divina. De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras, Iam na face trêmulos — beijá-la. Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a fl or beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a fl or fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava ora afastava-se... Mas quando a via despertada a meio, P’ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... Eu, fi tando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: ‘Ó fl or! — tu és a virgem das campinas!’ ‘Virgem! — tu és a fl or da minha vida!...’

Considerando as fases da poesia romântica brasileira, é correto afi rmar que o poema apresenta uma(A) negação do ato amoroso, devido ao clima de sonho

predominante. (B) atitude de culpa, devido à violação do ambiente celestial. (C) atmosfera de erotismo, manifestada pelos encantos da

mulher. (D) tematização da natureza, manifestada na imagem da fl or. (E) desilusão amorosa, por isso o poeta busca o escapismo via

morte.

8. (UFV-MG) Leia com atenção os versos do poema “Boa noite”, de Castro Alves:

Boa Noite “Boa noite, Maria! Eu vou-me embora,A lua nas janelas bate em cheio. Boa noite, Maria! É tarde... É tarde... Não me apertes assim contra teu seio. Boa noite!... E tu dizes: — Boa noite. Mas não digas assim por entre beijos... Mas não mo digas descobrindo o peito, — Mar de amor onde vagam meus desejos.”

Assinale a afi rmativa que não corresponde a uma leitura correta do poema: (A) A abordagem do amor em Castro Alves notabiliza-se por

um sensualismo ousado que o distancia da experiência imaginária dos poetas românticos anteriores.

(B) Em “Boa Noite”, Castro Alves destitui a mulher romântica de sua aura espiritualizante, traço que a defi nia, sobretudo na poesia da segunda geração do Romantismo brasileiro.

(C) Os versos acima inserem-se na poética lírico-amorosa do período romântico e são marcados por um forte apelo sensual.

(D) O poema castroalvino refl ete uma visão mais direta do corpo feminino e uma maior objetividade no relacionamento com a mulher amada.

(E) O lirismo que se evidencia no texto supracitado funde-se com momentos de profunda introspecção e com as incertezas do eu lírico diante da vida.

9. O Romantismo foi um movimento marcado pelo individualismo e pelo egocentrismo. Com frequência, o destino da grandeza individual dos escritores românticos era o distanciamento pessoal da vida em sociedade, por meio da solidão voluntária. Considerando esse aspecto, leia o poema de Castro Alves e assinale a afi rmativa incorreta.

“O livro e a América”“Oh! Bendito o que semeia Livros, livros à mão cheia... E manda o povo pensar... O livro caindo n’alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar.”

(A) Castro Alves supera o extremo individualismo dos poetas anteriores de sua geração, dando ao Romantismo um sentido social e revolucionário.

(B) Castro Alves exalta o papel social do poeta na divulgação da cultura.

(C) Castro Alves não apenas realizou uma poesia humanitária, participando de toda a propaganda abolicionista e republicana, como celebrou a instrução.

(D) O poeta vê a leitura como um instrumento de libertação. (E) Esse poema de Castro Alves revela sua preocupação em

expressar os sentimentos individualistas, próprios do romântico.

10. (ENEM) O trecho a seguir é parte do poema “Mocidade e morte”, do poeta romântico Castro Alves:

“Oh! eu quero viver, beber perfumes Na fl or silvestre, que embalsama os ares; Ver minh’alma adejar pelo infi nito, Qual branca vela n’amplidão dos mares.

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No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida...— Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea fria.”

Castro Alves. Os melhores poemas de Castro Alves. Seleção de Lêdo Ivo. São Paulo: Global, 1983.

Esse poema, como o próprio título sugere, aborda o inconformismo do poeta com a antevisão da morte prematura, ainda na juventude.

A imagem da morte aparece na palavra (A) embalsama. (B) infi nito. (C) amplidão. (D) dormir. (E) sono.

11. Para responder à questão 11, leia, atentamente, o poema abaixo:

“O ‘Adeus’ de Teresa”

“A vez primeira que eu fi tei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus... E amamos juntos... E depois na sala “Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala... E ela, corando, murmurou-me: ‘a deus’. Uma noite... entreabriu-se um resposteiro... E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus...Era eu... Era a pálida Teresa! ‘Adeus’ lhe disse conservando-a presa...E ela entre beijos murmurou-me: ‘adeus!’ Passaram tempos... séc’los de delírioPrazeres divinais... gozos do Empíreo... ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — ‘Voltarei!... descansa!...’ Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-me: ‘adeus!’ Quando voltei... era o palácio em festa!... E a voz d’ Ela e de um homem lá na orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!... E ela arquejando murmurou-me: ‘adeus!’”

São Paulo, 28 de agosto de 1868. ALVES, Castro. Espumas Flutuantes. São Paulo: FTD, 1987, p. 53.

12. (UFPB) Em “O ‘Adeus’ de Teresa”, os versos 6, 12, 18 e 24 (A) isolam a palavra “adeus”, modifi cando a sequência lógica

do poema. (B) assinalam a sequência de atitudes de Teresa, no poema,

indo da descoberta do amor à traição. (C) indicam que os sentimentos de Teresa não sofreram

qualquer mudança do primeiro ao último encontro. (D) evidenciam uma mudança nos sentimentos de Teresa que,

ao fi nal, descobre o amor verdadeiro. (E) ressaltam o verdadeiro amor de Teresa, que se intensifi ca a

cada encontro.

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Reifi cação e consciência“São Bernardo” (1934) é o segundo romance de Graciliano

Ramos. Publicado à época do governo Getúlio Vargas, e no período literário que se convencionou chamar de Romance de 30, ou neo-realista, o romance retrata, em outros aspectos, as mudanças por que passava a sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX, particularmente o auge e o declínio da República Velha e o início exatamente do Estado Novo.

Apesar de Graciliano Ramos nunca ter admitido a similitude, ao contrário, “São Bernardo”remete o leitor a outra importante obra da literatura brasileira, estudado neste livro de ensaios. Refi ro-me a “Dom Casmurro”. Ainda que sejam histórias diferentes em contextos diversos, o processo de recontar a própria vida como meio de tentar compreendê-la permite aproximar Paulo Honório do personagem Bento Santiago, o Bentinho.

Ambos os personagens tiveram sua vida marcada pelo casamento. Embora sob aspectos outros, Bento e Paulo Honório desconfi aram de suas respectivas esposas, Capitu e Madalena, e essa desconfi ança levou-os a rever os possíveis erros a partir da recuperação do passado. A diferença capital, no entanto, é que, enquanto Bentinho lança dúvidas sobre a possível traição, Paulo percebe que exagerara ao acusar sua esposa de adultério. Porém, nos dois casos o resultado é o mesmo: o casamento desfaz-se e tenta-se um resgate da humanidade por intermédio da narração do passado.

Mas deixemos a comparação de lado, para nos concentrarmos na análise específi ca do romance de Graciliano Ramos. Narrado em primeira pessoa pelo próprio Paulo Honório, inicia a narrativa com o anúncio do objetivo: a elaboração de um livro - para o qual contaria, a princípio, com a participação de alguns amigos, entre eles o Padre Silvestre, João Nogueira, seu advogado, e de Gondim, redator e diretor de um jornal. Porém, sem nenhum pejo ou escrúpulo, Honório rejeita de início o estilo com que João Nogueira gostaria de usar no livro de memórias. O padre, por questões políticas, afasta-se do fazendeiro. E fi nalmente o Gondim, apesar de ter escrito um pouco, também não agradou devido ao estilo pomposo. Por isso, decide ele mesmo redigir o texto, e opta por uma linguagem coloquial:

– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! (p. 9)

Em um primeiro momento, pensa em abandonar o projeto, mas retoma-o por conta do pio da coruja, que representa as lembranças de Madalena e de toda a história que os envolveu.

O enredo é, até certo ponto, simples e linear. O narrador, de origem incerta e andanças por aqui e por ali, passa a trabalhar na fazenda de São Bernardo, no município de Viçosa, em Alagoas; com trabalho lícito e esforços ilícitos consegue comprá-la do Padilha, último representante de uma família tradicional da região. Em seguida, seu projeto é transformar a fazenda São Bernardo no maior e mais produtivo latifúndio da região. Realiza-o com grande êxito.

No momento em que se encontrava em boa situação fi nanceira resolve casar-se. E da mesma maneira que adquiriu a fazenda e outros bens, via no matrimônio outra espécie de aquisição, com o intuito de constituir família para que os fi lhos,

CAPÍTULO IV – São Bernardo, de Graciliano Ramoscomo herdeiros, assumissem um dia o lugar do pai:

Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar. (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo. (p. 59)

Como fi ca claro, o casamento para ele tem função utilitária, ou seja, presta-se a criar herdeiros dentro de uma legitimidade que somente o casamento proporciona. Não conhecia muitas mulheres e, amparado nesse projeto, acaba conhecendo meio que por acaso Madalena, professora primária da cidade. Não a ama de imediato; antes, vê nela qualidades, como inteligência e beleza, capazes de dar-lhe bons fi lhos.

No entanto, esse primeiro impulso parece ceder lugar a um sentimento ainda incompreensível da parte dele quando se casa com Madalena. Esse sentimento apresenta-se dois anos após o casamento e já com um fi lho: Paulo Honório passa a sentir ciúmes incontrolados por Madalena. Passa a desconfi ar de todos, principalmente do Padilha e do Nogueira, e chega mesmo a ter ciúmes do Pe. Silvestre:

Padre Silvestre passou por S. Bernardo – e eu fi quei de orelha em pé, desconfi ado. Deus me perdoe, desconfi ei. Cavalo amarrado também come. (p. 150)

Em um ano, a relação do casal torna-se insustentável. Além dos ciúmes, diferenças no relacionamento com os empregados ajudam a deteriorar ainda mais o casamento. Enquanto Paulo via nos empregados objetos os quais poderiam lhe render lucro, não se preocupando, portanto, com a educação ou com a saúde deles, Madalena sentia a necessidade de tornar a vida desses despossuídos mais humana, por assim dizer.

Em resumo, Madalena contrapõe-se ao marido porque se revela solidária e manifesta o desejo de transformação social. Essas diferenças minam, pouco a pouco, a estabilidade do casamento. A mulher, vítima do ciúme brutal do marido, suicida-se. O caso é narrado no capítulo 31. Passados alguns dias, D. Glória, tia de Madalena, que se mudara para a fazenda à época do casamento, resolve ir embora. Também seu Ribeiro, que se tornara muito próximo de Madalena. Pe. Silvestre e o Padilha engajam-se nas forças revolucionárias contra o Estado Novo e também abandonam a fazenda, juntamente com alguns empregados de S. Bernardo os quais se deixam convencer pelas palavras do antigo proprietário da fazenda e que passara a ter um discurso pré-socialista. Aos poucos, Paulo Honório vai fi cando mais sozinho e tenta não pensar nos acontecimentos, fechando-se ainda mais em seu mundo, em S. Bernardo.

A Revolução de 30 procurou renovar as estruturas da sociedade brasileira, presa a oligarquias coronelísticas, típicas do século XIX e das primeiras décadas da república brasileira, conhecida como República Velha. Embora Paulo Honório, que percebera a necessidade de modernizar sua fazenda logo que a adquiriu, transformando-a em uma empresa nos moldes capitalistas, de oferecer boa produção a preços competitivos, não adere ao movimento rebelde, especialmente devido a seu fracasso pessoal no casamento, e também por estar ligado ao mundo que morria em 1930.

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Lamentava, sem dúvida, que o meu partido tivesse ido abaixo com um sopro. Que remédio! (...) O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito maior. (p. 174)

Dois anos se passam, e Paulo Honório vê seu patrimônio ruir pouco a pouco, fosse pelo parco interesse que demonstrava agora, fosse pela ação contrarrevolucionária que se instalara no Brasil. É nesse momento crucial que o fazendeiro resolve passar a vida a limpo em forma de livro que planeja publicar sob pseudônimo. Tendo como objetivo rever o passado, agora, sob uma perspectiva mais crítica e objetiva, é tomado pelas seguintes refl exões:

Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profi ssão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfi ança que me aponta inimigos em toda parte! A desconfi ança é também consequência da profi ssão. (p. 187)

A decadência material e moral, esta última motivada pela morte da mulher, é representada, metaforicamente, pelo pio de corujas. Ave agourenta, segundo a tradição popular e bastante comum também na própria literatura, a coruja aparece na história no mesmo capítulo 31 em que se narra o suicídio de Madalena:

Uma tarde subi à torre da igreja, e fui vê Marciano procurar corujas. Algumas se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente. Eu desejava assistir à extinção daquelas aves amaldiçoadas (p. 154, grifo nosso).

Toda vez que pensa em desistir de escrever o livro de memórias, ouve o pio das corujas, o que interpreta como uma obrigação. O livro torna-se, pois, meio de expiação de seus erros, ou seja, tem de fazer o balanço de sua vida, que se revela trágica, e percebe que teve de se desumanizar para poder viver:

Cinquenta anos gastos (...) a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. (p. 181)

Apesar do livro, a consciência que adquire da derrota social e humana leva Paulo Honório, no fi nal do romance, à terrível difi culdade para dormir; em outros termos, passa a ter difi culdade para apagar as lembranças tormentosas.

Olhando para o romance de maneira abrangente, vemos que o embate entre o casal possui elementos estruturais e orgânicos que revelam vários aspectos da sociedade brasileira, particularmente a passagem das condições de sociabilidade próprias da República Velha (1894-1930) para o Estado Novo (1930-1945), o qual marca a modernização do estado brasileiro e também um desenvolvimento mais acentuado do sistema capitalista de produção no Brasil.

A rigor, esse movimento social apreendido pelo romance está sintetizado no capítulo 7, em que se narra, de maneira diminuta, a vida de seu Ribeiro, que viria a se tornar o contador de S. Bernardo. Diz Paulo Honório tê-lo conhecido em Maceió em situação deplorável. Resolve trazê-lo para morar em S. Bernardo, em seguida passa a narrar sua trajetória. Ribeiro, ou antes major Ribeiro, exercia na juventude e meia idade, o papel de chefe

maior na região onde morava. Cabia a ele a manutenção da organização social. Agia como mandatário de toda uma região; e, como tal, era respeitado. Sua palavra era a lei.

Ora, essas coisas se passaram antigamente. Mudou tudo. (...) O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia. (p. 37)

Isso signifi ca que a vida tornou-se mais complexa, que as mudanças sociais levaram pouco a pouco o desaparecimento do papel do coronel, ao menos nos moldes conhecidos. A autoridade exercida por um coronel (ou major no caso de seu Ribeiro) torna-se rudimentar em uma sociedade constantemente em mudança. A passagem também ilustra, pois, a revolução operada na década de 1930, quando as velhas oligarquias foram sendo substituídas por uma presença mais acentuada do governo federal, devido à urbanização e a um processo, ainda que inicial, de industrialização da economia.

De sua parte, Paulo Honório representa o capitalismo emergente no Brasil. Mesmo sem ter plena consciência disso, sabe, pelo exemplo de seu Ribeiro, que a sociedade tornou-se mais complexa e que é preciso estabelecer outras relações de poder. Isso, claro, traz à tona problemas de relacionamento social, claramente vivenciados por Paulo Honório, mas que os percebe apenas quando da morte da esposa. A presença contínua, por exemplo, na fazenda, do padre Silvestre, do advogado João Nogueira e do jornalista Azevedo Gondim indicam que o fazendeiro conhecia e valorizava o poder da Igreja nas regiões interioranas em que pese o positivismo do Estado, a nova ordem jurídica e o papel da imprensa na sustentação do esquema sociopolítico da República Velha.

Uma das características da sociabilidade inerente ao capitalismo, de que Honório passa a ser um expoente, é o da “reifi cação”, ou “coisifi cação”, a que, em níveis diferentes, submetem-se o próprio Paulo Honório, Madalena e ainda os empregados com evidente degradação dos valores humanos. Em sua consciência, o fazendeiro teria estragado tudo, sua vida, a de Madalena e a de outras pessoas, devido à sua “alma agreste”, à dureza das relações estabelecidas. A rigor, porém, pode-se dizer que Graciliano Ramos quis mostrar em seu romance como o processo de enriquecimento de uma minoria degrada tudo à sua volta. A lógica proposta no romance é que, ao reifi car (transformar tudo - pessoas, animais - em coisas), Paulo Honório teria construído sua derrocada como pessoa, o que colaborou também, quando da consciência, o declínio econômico. Segundo a visão presente em São Bernardo, o homem cria para si estruturas sociais que acabam por gerar problemas graves, aprisionando a si mesmo dentro dessas estruturas. Na outra ponta, vemos Madalena, que, embora perceba os problemas desse sistema social e produtivo, não possui uma visão crítica da realidade histórica, podendo, assim, ser considerada uma personagem ingênua. Esse papel também é exercido por Padilha. Antigo proprietário da fazenda, jogador compulsivo e alcoólatra, teve de vender, por um preço bem menor S. Bernardo ao ex-empregado, para saldar dívidas. Como passou a ser empregado da fazenda, atuava como professor na escola. Padilha passou a ver a sociedade como injusta. A solução seria caminhar para o socialismo:

Uma tarde surpreendi no oitão da capela (...) Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes (dois empregados da fazenda):

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– Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos fi lósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo de um homem. Não está certo. (p. 59)

No capítulo 24, Paulo Honório narra o jantar em comemoração aos dois anos de casamento. Compareceram os amigos mais próximos. A conversa encaminhou-se para a situação política do Brasil. Uma preocupação demonstrada é que o país poderia seguir o exemplo da Rússia e adotar o comunismo como sistema econômico. Padilha mostra-se favorável mais uma vez ao experimento e, para surpresa de Paulo Honório, Madalena também se mostrou simpática à ideia, apesar de não expressá-la claramente.

“Qual seria a opinião de Madalena?”, pergunta-se, a todo instante, o fazendeiro. Em dado momento, tenta compreender o sentido de alguns termos, entre eles o de materialismo histórico: “Que signifi cava materialismo histórico?” Toda a cena se presta a mostrar a importância das questões político-econômicas no livro e também para reafi rmar o pensamento divergente do casal em vários pontos.

Sobre o materialismo histórico, é preciso dizer, sem a pretensão de esgotar o sentido fi losófi co da questão, que se trata de um termo criado por Marx para explicar que a história do mundo é, basicamente, marcada pela luta de classes e pelas mudanças nos sistemas econômicos, e que todo esse processo levaria à consumação da revolução proletária em todo o mundo. Falando entre parênteses, com efeito, o processo iniciou-se na Rússia, com a fundação da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) e estendeu-se por vários países até o início dos anos 1990, quando tais repúblicas começaram a se desmembrar, recuperando sua independência territorial e econômica.

Além das relações sociais, há no romance preocupação com as de ordem psicológica, originadas pelos desvios de conduta social. É o que se percebe nesta passagem do livro: “a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma vida agreste”. A refl exão é, obviamente, devido ao suicídio da esposa. A culpa assume, pois, o papel de motivador da narrativa, com isso, pode-se dizer, todos os aspectos externos ao indivíduo, como o enriquecimento de Paulo Honório, as questões políticas, o objetivo de ter um herdeiro, que é referido vaga e esporadicamente após seu nascimento, prestam-se à análise psicológica que empreende o narrador.

Claro, não se pode reduzir o romance ao psicologismo, nem também descartar os aspectos sociais; antes, é preciso perceber que em S. Bernardo a estrutura social leva à refl exão psicológica.

Paulo Honório imaginou que poderia simplesmente transferir a praticidade com que lidava com seus empregados, fornecedores e clientes, para o casamento. A própria escolha de Madalena como esposa segue uma lógica de cunho capitalista. Ela é boa pessoa, inteligente e pode dar-lhe bons herdeiros. O resto, leia-se o amor, importa pouco:

Ora essa! Não lhe tenho contado pedaços da minha vida? O que não contei vale pouco. A senhora, pelo que mostra e pelas informações que peguei, é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de família. (p. 89)

E adiante, quando decidem pelo casamento, e ela pede um ano:

Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas. (p. 93)

Assim, o processo de reifi cação concretiza-se também no casamento. Madalena não é objeto de desejo, é tão-somente objeto para cumprir com uma meta: dar ao futuro marido a estabilidade do casamento (porque sexo tinha com prostitutas e com a Rosa, esposa do Marciano, um de seus empregados), possibilitar-lhe herdeiros e ser fi el. No entanto, a complicação e a transformação da realidade de Paulo Honório dão-se quando os objetivos não são cumpridos à risca. “Essa mulher é difícil de controlar” repete várias vezes. Uma vez instalada a cisão, abre-se caminho para o confl ito e, ao fi m e ao cabo, redenção de Paulo Honório como ser humano.

Outra questão a salientar é em relação à linguagem, que procura mimetizar as contradições de um país que passava de uma economia rural para outra urbano-industrial. Desse modo, encontramos na narração de Paulo Honório um discurso regional, com expressões nordestinas, mas que não foge ao padrão gramatical médio de qualquer centro urbano brasileiro. O livro põe em discussão questão importante para os modernistas: como deveria ser escrito um livro, se com uma linguagem distante da realidade imediata das pessoas comuns, como queria Gondim, ou na maneira simples e coloquial do próprio Paulo Honório. Vence a segunda opinião. Com isso, sem o saber, Paulo Honório aproxima-se da visão modernista da expressão literária.

Essa característica do livro, a de discutir o próprio processo da escritura, chamada de metalinguagem, chamou a atenção dos críticos, sobretudo porque demandou uma discussão em torno da obtenção de verossimilhança (capacidade de tornar fi cção semelhante à verdade). Ora, custa a crer que uma pessoa que se revela tão bruta, ignorante em várias questões, entre elas a da escrita refi nada, tenha conseguido redigir uma narrativa tão sofi sticada no que diz respeito à composição geral. Em muitos momentos, Paulo Honório reafi rma que não está preocupado com o valor literário de suas memórias:

As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária se quiserem. Se quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. (p. 5)

De fato, o narrador usa uma linguagem direta, sem recursos exagerados de retórica, palavras e expressões regionais ou criadas por ele mesmo: “S. Bernardo não vale o que um periquito rói. O Pereira tem razão. Seu pai esbagaçou a propriedade” (grifos nossos). Por outro lado, percebe que o ato de escrever requer alguns cuidados e técnica diferente em relação à expressão oral.

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo, como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. (grifo nosso, p. 77)

Quanto ao plano da narrativa, o romance é dividido em 36 capítulos. 33 pertencem ao tempo do enunciado, ou seja, referem-se à época dos acontecimentos, principalmente ao período de compra, ampliação lícita e ilícita das terras de S. Bernardo, e aos três anos de casamento, além dos dois após o suicídio de Madalena. Os dois primeiros capítulos por sua vez marcam o tempo da enunciação, isto é, referem-se aos

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acontecimentos do presente do narrador, narra o que aconteceu recentemente ou está acontecendo no momento da escritura do texto. Aliás, o leitor é pego de surpresa por várias informações logo de início, tem contato com nomes de personagens sem saber quem são, que papel exercem na narrativa etc. Sabe também que o livro seria escrito a oito mãos, por assim dizer. Numa alusão ao processo de divisão de trabalho capitalista. Cada um seria responsável por uma parte. O processo se realizaria caso Paulo Honório não percebesse que um livro é um processo diferente do da produção de café, por exemplo.

Outro capítulo em que o tempo da enunciação mistura-se ao do enunciado é o 19o. Iniciador da segunda metade do livro, esse capítulo revela o estado atual de Paulo Honório. Agora, “a linguagem seca do tempo do enunciado cede lugar à lamentação elegíaca do tempo da enunciação, e o ritmo rápido da narrativa é substituído pelos compassos mais lentos de uma refl exão problematizada, difícil e tortuosa” (LAFETÁ, 1985, p. 210). Ou seja, esse capítulo retira do narrador toda a dureza, a praticidade, o realismo com que constrói a narrativa. Os fantasmas de Madalena, de seu Ribeiro, de D. Glória aparecem para torturar a consciência do fazendeiro, a qual é metaforizada pelo pio da coruja.

“São Bernardo” é um romance publicado no período conhecido como Romance de 30, ou neo-realista. Nesse período, por infl uência de Gilberto Freyre, para quem o verdadeiro Modernismo deveria ser difundido e realizado no Nordeste brasileiro, vários escritores nordestinos impuseram-se a tarefa de realizar a proposta do sociólogo pernambucano. Por essa razão, qualquer livro publicado, à época, por algum escritor de um estado nordestino era logo classifi cado como regionalista. Não foi diferente com Graciliano Ramos. Alagoano, Ramos ambientava seus romances, de preferência, em seu estado natal. Assim aconteceu com Caetés, seu primeiro romance, e São Bernardo. No entanto, a crítica especializada logo percebeu que este romance não seguia, de fato, os mesmos objetivos dos romances nordestinos regionalistas. Falou-se, inicialmente, em regionalismo universal, um oxímoro sem razão de ser. Depois, abandonou-se o termo regional a favor unicamente do universal, isso porque sua obra tratava do homem, da sociedade. O ambiente importava pouco. O próprio narrador Paulo Honório chama a atenção do leitor para a falta de paisagem em seu texto:

Uma coisa que omiti e produziria bom efeito foi a paisagem. Andei mal. Efetivamente a minha narrativa dá ideia de uma palestra realizada fora da terra. (p. 78)

De qualquer modo, pela preocupação em tematizar uma realidade sócio-histórica, pelo esforço em denunciar as injustiças, e também por benefi ciar-se do uso da linguagem oral, com regionalismos, o livro inscreve-se no 2º período do modernismo brasileiro, cuja abrangência compreende os mesmos anos do 1º governo de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945.

O termo neo-realista aplica-se devido ao fato de retomar características da estética realista do fi nal do século XIX, porém sem preocupações cientifi cistas típicas daquele momento, com uma nova roupagem, pois. Além do próprio Graciliano Ramos, fi zeram parte dessa geração Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, entre outros. Todos adotaram alguns princípios básicos, quais sejam:

• a verossimilhança – isto é, a submissão da fi cção a princípios da realidade.

• o retrato histórico-social;

• a linearidade narrativa – isto é, a progressão da narrativa. • a caracterização de classes sociais por meio de indivíduos,

como no caso de Paulo Honório e Madalena, que representam, respectivamente, o oligarca pré-capitalista e a socialista utópica e

• a visão ampla das relações socioeconômicas.

Alfredo Bosi (1993, p. 438) resumiu bem o que foi o decênio de 30:

O modernismo e, num plano histórico mais geral, os abalos que sofreu a vida brasileira em torno de 1930 (a crise cafeeira, a Revolução, o acelerado declínio do Nordeste, as fendas nas estruturas locais) condicionaram novos estilos fi ccionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfi m por uma retomada do naturalismo.

Porém, Ao realismo ‘científi co’ e ‘impessoal’ do século XIX

preferiram os nossos romancistas de 30 uma visão crítica das relações sociais. (grifo do autor)

Uma “visão crítica das relações sociais”, em resumo é o que se pode dizer de “São Bernardo”.

Exercícios

1. (UFRS) Assinale com V (Verdadeiro) ou com F (Falso) as afi rmações abaixo sobre o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos: ( ) O projeto de escrever um livro em conjunto, pela divisão

do trabalho, não tem êxito. Paulo Honório critica os padrões quinhentistas seguidos por João Nogueira e a linguagem empolada de Azevedo Gondim, mas acaba adotando a mesma forma de escrever.

( ) Embora pretenda reproduzir fi elmente os fatos de sua vida, Paulo Honório desrespeita os acontecimentos, introduzindo personagens que de fato não existiram.

( ) Paulo Honório seleciona os episódios mais signifi cativos de sua vida, centrando-se nas circunstâncias que levam ao desenlace do drama sobre o qual se interroga.

( ) Paulo Honório, em várias ocasiões, interrompe o relato para discutir as regras que presidem a sua escrita ou para confessar suas difi culdades de expressão.

( ) Através do relato, Paulo Honório tem oportunidade de reavaliar sua vida, refl etindo sobre seus atos e vendo a esposa sob uma nova perspectiva.

A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é: (A) F — F — V — F — V (B) V — F — V — F — V (C) V — F — F — V — F (D) F — F — V — V — V (E) V — V — F — V — V

2. (Cefet-PR) O diálogo a seguir é entre Paulo Honório, narrador, e Gondim, jornalista contratado inicialmente por Paulo para escrever o romance:

“– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!

Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.

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– Não pode? Perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode. – Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu

Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.”

(Graciliano Ramos: “São Bernardo”, cap. 1)

Com base no texto, pode-se afi rmar que: (A) a concepção de literatura da 1a fase do modernismo

expressa-se na opinião de Gondim. (B) as ideias de Paulo aplicam-se à obra de Graciliano, não a

outros autores modernos. (C) as buscas da prosa da 2a fase do modernismo não aparecem

no ponto de vista de Paulo. (C) a divergência entre Gondim e Paulo é antes temática que

estilística. (E) a concepção de literatura da 1a e 2a fases do modernismo

está no parecer de Paulo.

3. (Mackenzie-SP) Em São Bernardo, a velhice é o momento em que o narrador-protagonista Paulo Honório: (A) aproveita, apesar dos problemas cotidianos, toda a riqueza

e prestígio que conseguiu durante sua vida de sacrifícios. (B) se vê falido economicamente e se conscientiza de que sua

vida foi consumida inutilmente na posse da fazenda S. Bernardo.

(C) reconhece a forma desumana como tratou Madalena e as demais pessoas, mas não é capaz de reconstruir novo projeto de vida.

(D) se sente contrariado, pois, apesar de saudável física e emocionalmente, constata que viveu apenas em função dos outros.

(E) avalia o passado positivamente, contrastando-o com a solidão do presente e a incerteza do futuro.

4. (ITA-SP) O romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, publicado em 1934, é narrado em primeira pessoa pelo narrador-personagem Paulo Honório, que decide escrever o livro em determinada altura da sua vida. O principal motivo que levou Paulo Honório a escrever a sua história foi: (A) o desejo de mostrar como ele conseguiu, com enorme

esforço, tornar-se um proprietário rural bem sucedido, apesar de sua origem extremamente humilde.

(B) o desejo de mostrar como se formavam os confl itos políticos e sociais no interior do Nordeste brasileiro, tema recorrente na fi cção da chamada “Geração de 30”.

(C) a tristeza que toma conta dele depois que a fazenda São Bernardo deixa de ser produtiva, o que ela tinha sido graças ao seu empenho.

(D) tentar compreender o que teria levado Madalena ao fi m trágico da sua existência, bem como as razões de a vida conjugal deles não ter se realizado como gostaria.

(E) revelar quais foram os motivos pelos quais Madalena se matou, visto que ela se sentia culpada por ter traído o marido com Padilha, antigo proprietário da São Bernardo.

5. (ESPM-SP) A respeito da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, o crítico literário e professor João Luiz Lafetá afi rma: “Todo valor se transforma — ilusoriamente — em valor-de-troca. E toda relação humana se transforma — destruidoramente — numa relação entre coisas, entre

possuído e possuidor. Tal é a relação estabelecida entre Paulo Honório e o mundo. Seu desenvolvido sentimento de propriedade leva-o a considerar todos que o cercam como coisas que se manipulam à vontade e se possui.”

A seguir leia trechos extraídos da obra em questão:

I - “Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos.”

II - “Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fi z coisas ruins que me deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las.”

III - “Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.”

O(s) trecho(s) de “São Bernardo” que exemplifi ca(m) a análise do crítico literário é (são): (A) I e II; (B) II e III; (C) I e III; (D) Somente I; (E) Somente II.

6. (Unioeste-PR) Sobre o romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, numa visão geral de fatos, personagens, características e estrutura, todas as afi rmativas abaixo são procedentes, exceto: (A) o romance é narrado em terceira pessoa. (B) predomina no romance o monólogo interior. (C) Paulo Honório não vê propriamente a natureza, pois

repara apenas nas coisas que lhe pudessem ser rendosas. (D) tudo o que em São Bernardo é tenebroso, inumano

e doloroso é durante a noite que se forja, acontece ou se realiza.

(E) a coruja, que antes tinha atuado como prenúncio da morte de Madalena, virá a ser depois a voz que trará à mente de Paulo Honório a lembrança da tragédia, que tão duramente o persegue.

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Papéis avulsos é o terceiro livro de contos de Machado de Assis. Publicado em 1882, assim como ocorrera com Memórias póstumas de Brás Cubas, inaugura uma nova fase na produção de contos. Abandona o romantismo de Contos fl uminenses e Histórias da meia-noite, em favor de uma visão mais realista da vida, marcada pela ironia e pelo fi m das ilusões.

Na Advertência que escreveu, Machado diz que o título pode ser enganoso, uma vez que, apesar do termo avulsos há uma unidade na seleção e na publicação conjunta dos textos, que podem ser classifi cados como contos ou segundo outros gêneros literários. Com efeito, o que se verifi ca nos doze textos do livro é uma visão sarcástica e cética sobre as ilusões, os desejos e as incoerências do ser humano. Em resumo, o narrador não vê muita solução para os confl itos humanos, sejam os pessoais, sejam os de ordem coletiva.

Além disso, uma característica comum é a tematização das contradições humanas entre o ser e o parecer, entre a necessidade de se manter a vida pública ilibada, a despeito do que de fato se deseja, dos impulsos obscuros a que temos de reprimir, embora no âmago e nas situações mais confl itantes se revelem. Instala-se assim a mistura entre desejo, interesse e valor social responsável pelo confl ito das personagens dos respectivos contos.

Os contos são os seguintes:

a) “O alienista”b) “Teoria do medalhão”c) “A chinela turca”d) “Na arca”e) “D. Benedita”f) “O segredo do Bonzo”g) “O anel de Polícrates”h) “O empréstimo”i) “A sereníssima república”j) “O espelho”k) “Uma visita de Alcibíades”l) “Verba testamentária”

Analisemos cada um dos doze contos, dando destaque para as características gerais, mas atentos a aspectos particulares de cada texto.

“O alienista” é o primeiro e mais longo conto do livro. Trata-se da história de um psicanalista que funda a primeira casa para tratamento de loucos no Brasil. Sigmund Freud estava fundando a Psicanálise por esse tempo, mas Machado resolveu abordar o assunto, não para discutir se essa ou aquela teoria seria mais condizente para o tratamento de pessoas com algum problema mental. O objetivo é antes o de revelar as contradições humanas, posto que a atitude e as escolhas dependeriam antes das circunstâncias que propriamente da manutenção de uma linha de raciocínio ou da busca do resultado mais justo.

Simão Bacamarte consegue verba pública para abrir um hospício em Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro, a cerca de 70km da capital. O caso é visto por todos como um desperdício, afi nal não se acreditava em tratamentos desse tipo, o próprio Freud encontrou resistências.

Bacamarte passa a dedicar-se inteiramente à sua casa de tratamento e a abrigar pessoas que, com efeito, eram tidas como loucas ou que tinham algum desvio de conduta.

CAPÍTULO V - Papéis avulsos, de Machado de Assis

Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outros, mil e duzentas e outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despregariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científi co.

Bacamarte tinha sempre ao seu lado o Crispim, o boticário (farmacêutico da cidade), que tinha pelo doutor tanto respeito como certo temor também. Esse temor era exercido sobre todos na cidade também. Tudo ia bem, incluindo o suporte fi nanceiro, que garantia boa estabilidade à vida privada do doutor e lhe proporcionava cobrir as despesas do hospício, até que Bacamarte levou para tratamento um moço considerado são por todos.

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.

— Impossível!— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima!

depois de tanto que ele fez...Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí.

Costa herdara uma grande fortuna, mas dilapidara seu patrimônio emprestando a uma e a outro, sem qualquer controle ou cobrança. Não demorou muito para que viesse a empobrecer. O caso despertou o interesse do doutor, que viu na atitude um desvio indicativo da loucura.

Depois outros e mais outros foram recolhidos à Casa Verde, nome dado ao hospício por causa da cor das paredes. A própria esposa fora recolhida, uma vez que demonstrava ter algum desvio pelo fato de nunca se decidir que colar usaria em uma festa. A preocupação excessiva com futilidades também seria sinal de loucura.

Aos poucos, isso gerou uma revolta, liderada por um barbeiro, Porfírio, mas chamado de Canjica. Primeiro tentaram acabar com a Casa Verde indo à câmara de vereadores, como não obtiveram apoio, posto que os vereadores não queriam se envolver em caso tão complicado, organizaram uma espécie de motim. Por analogia, o caso lembra a Queda da Bastilha, prisão francesa que foi derrubada à época da Revolução, em 1789, e que era símbolo da opressão do governo absolutista. Inicia-se, pois, sob a liderança do barbeiro a Revolta dos Canjicas, que tentam a todo custo derrubar a Casa Verde.

Após algumas pequenas batalhas, em que houve feridos e algumas mortes, Bacamarte, percebendo que sua morte mudara, resolve receber Porfírio, que já exercia grande poder sobre a população e mirava já a vereança, para uma conversa e negociar a rendição.

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meio de resistir, e portanto estava prestes a

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obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente a destruição da Casa Verde.

Para o estranhamento, porém, de Bacamarte, Porfírio mudou o discurso. Disse que não queria se intrometer em assuntos da ciência. A verdade é que o barbeiro tinha em mente, mais do que manter as instituições, demonstrar pleno poder sobre todos e via em Bacamarte um aliado capaz de conferir-lhe autoridade. Bacamarte, entretanto, viu na contradição um sinal de loucura. Manteve-se calmo. Dali a cinco dias, recolheu o barbeiro e mais cinquenta revoltosos ao tratamento, incluindo o boticário que, para se livrar da perseguição dos revolucionários, aderira ao movimento. Bacamarte viu na atitude o mesmo sinal de loucura que vira no Porfírio.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da infl uência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu--o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

O último lance do conto ocorre quando Bacamarte formula uma nova teoria. Percebe que há muitos internos na Casa Verde. Assim sendo, o que seria anormal se tornava mais comum. E se o comum é o normal ninguém poderia ser considerado louco de fato. A loucura estaria com quem seria diferente da normalidade. Uma consulta com pessoas próximas o fez ver que o único a ser assim era ele próprio. Dessa feita, resolveu internar-se, liberando antes todos que estavam sob seus cuidados.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afi rmar esta verdade: — não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

[...] Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e

à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada.

Como se afi rmou, o objetivo do conto, mais do que estudar a

loucura, é descortinar as contradições humanas, sintetizadas nas fi guras de Porfírio e de Crispim, bem como de D. Evarista, a esposa de Bacamarte. Além disso, o conto pode ser lido como uma sátira ao Naturalismo, uma vez que tal escola literária, contemporânea da obra de Machado de Assis, tomava como parâmetro a ciência e nela se pautava para defender suas teses. O caso específi co se dá com o casamento de Bacamarte, que escolhe a noiva, não por sua beleza ou por amor, mas sim por uma análise científi ca, segundo a qual ela seria uma boa esposa e lhe daria diversos fi lhos. No entanto, ela jamais conseguiu engravidar. Por isso mesmo, resolveu entregar-se totalmente a seus estudos.

A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualifi cável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, — o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral.

O conto seguinte, “Teoria do medalhão”, segue a técnica dos diálogos socráticos, em que pela conversa vai se chegando a determinadas conclusões. Aqui, porém, para além das discussões fi losófi cas ou da busca de uma ética para o bom convívio social, têm-se os conselhos que um pai dá a seu fi lho na passagem da maioridade deste (no caso vinte e um anos).

Como o próprio título do conto indica, os conselhos, sob um ponto de vista mais crítico e mais ético, seriam pouco condizentes com uma verdadeira lição de vida para construção do caráter de um fi lho. Isso porque a lógica paterna é que, para se dar bem na vida, o fi lho tem que ser um bajulador, mas sem se demonstrar, tem que fi car sempre próximo dos que decidem, nunca divergir deles, fi ngindo que tem ideias. É preciso, porém, que tais ideais sejam de ordem geral, metafísica, que não agridem ninguém, pois “nesse ramo dos conhecimentos humanos, tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória”.

Outra lição é sempre divulgar o que faz, com cuidado para não ferir aos que verdadeiramente mandam. Desse modo, o rapaz poderia ocupar uma boa posição na sociedade e manter-se nela sem sustos.

Longe de inventar um Tratado científi co da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográfi cas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa.

É a realização plena do princípio do parecer. Não importa o que se é, e sim o que parece ser. Uma máscara, embora condenável eticamente, capaz de permitir a presença na sociedade, capaz de proporcionar colocações em uma sociedade baseada no favor, na politicagem da bajulação, e não na meritocracia, como seria de se esperar em uma República.

“O anel de Polícrates” é uma continuação de “A teoria

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do medalhão”, mas uma continuidade no sentido de revelar que quem não segue os conselhos daquele pai pode acabar como o Xavier, pobre e desacreditado. Também escrito ao modo socrático, dois amigos, identifi cados pelas letras A e Z conversam sobre um terceiro, chamado Xavier. Para surpresa de A, Z diz que Xavier empobrecera e passara a viver em um contínuo caiporismo, isto é, em uma contínua onda de azar. O interessante é que fazia questão disso. Deixou-se levar pelo caiporismo.

O Xavier não só perdeu as ideias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; fi cou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? Que sestércio de Horácio? Que dracma de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho...

Um dia, porém, ocorreu algo que o fez mudar um pouco o rumo de sua vida. Estava na rua e viu um cavaleiro quase cair do cavalo na frente de diversas pessoas. Com medo da vergonha, conseguiu controlar o cavalo e saiu aplaudido. Xavier então formulou um conceito:

comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma ideia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante.

Em outros termos, mais uma vez, tem-se maior importância dada ao parecer que ao ser.

E nesse ponto é que vem a explicação do porquê do título. Polícrates era rei na ilha de Samos por volta do século VI a.C. Grande conquistador, era um homem feliz. Com medo de que seu destino mudasse, resolve fazer um sacrifício e joga ao mar um anel que lhe era muito querido. Porém, um pescador, dias depois, resolve entregar-lhe um peixe que pescara no mar. Para sua surpresa, o anel estava dentro do peixe. A ideia é de que mesmo não querendo, não se pode fugir ao destino. O retorno do anel signifi ca que o sacrifício era dispensável, pois a realidade, o fado, o decreto do destino não mudaria.

No caso do conto de Machado, Xavier luta pelo caiporismo, ele quer a infelicidade de modo deliberado. Mas passa a repetir a frase. Até que ela cai no uso do povo. Torna-se inclusive frase de uma peça de teatro e repetida depois por pessoas em geral. O conto exemplifi ca o que seriam as limitações da felicidade humana.

Outro conto que segue essa linha é “O espelho”, cujo subtítulo é “Esboço de uma nova teoria da alma humana”. Nesse conto, o narrador, na faixa dos 40 anos, já um medalhão, conta a quatro amigos como descobrira, na juventude, a existência de duas almas: a interior, que todos conhecem, matéria da espiritualidade, e a exterior, matéria com que iria se ocupar.

Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem fi car de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fl uido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um

par de botas, uma cavatina, um tambor, etc.

O narrador, rapaz pobre que se chama Jacobina, quer, pois, dizer que a alma exterior é o que nos mantém presos à vida social, para o bem ou para o mal. São seres ou objetos que nos manteriam vivos e integrantes da sociedade. Mais uma vez o que importa é o parecer, o que é visível e não o que se é, com efeito.

Feitas essas considerações, Jacobina passa então a narrar o que lhe sucedera para que tivesse tal conclusão da vida. Quando tinha vinte e cinco anos foi nomeado alferes da Guarda Nacional, um antigo agrupamento civil e militar que atuava, preferencialmente, no interior do país.

Todos os seus parentes fi caram muito orgulhosos pela nomeação, que, em rigor, pouca importância tinha. Era como ganhar o título de miss simpatia em um concurso de beleza... Ainda assim, todos o chamavam de senhor alferes e o enchiam de mimos e bajulações.

Um de suas tias, viúva de um capitão da mesma Guarda Nacional, quis ver o sobrinho fardado e convidou-o a passar uns dias com ela no sítio onde morava. Na casa dessa tia, que se chamava Marcolina, havia um espelho de longa data, da época de D. João VI, isto é, por volta de 1808. E será peça-chave do conto.

No sítio, a bajulação continuava, ao ponto de Jacobina perceber que mais importante que ele próprio, que sua essência como ser humano e como Jacobina, era o cargo que ocupava, era a vida exterior, sua outra alma:

O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; fi cou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que fi cou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.

Em dado momento da narrativa, sua tia Marcolina e outros parentes têm que se ausentar por um tempo do sítio. Nesse momento, os empregados e escravos aproveitam para fugir e Jacobina fi ca sozinho na casa. A princípio não seria nada demais, porém com o fi m das bajulações, Jacobina percebe-se incompleto, percebe que o que ele era dependia da alma exterior, da roupa de alferes e do que ela representava. Caiu em depressão por esses dias. Foi então que decidiu vestir a farda e se olhar no antigo espelho da época de D. João VI.

Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a fi gura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfi m, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfi m, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo

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olhando, meditando; no fi m de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Em “O segredo do Bonzo”, temos conceito semelhante ao expresso em “O espelho”. Embora com modos diferentes de tratar do assunto, a preocupação de Machado é antes revelar a importância maior à vida externa que propriamente encontrar a essência humana.

Para tanto, remete o leitor a um imaginário episódio na vida do expedicionário português Fernão Mendes Pinto (1510-1584), que estaria em Fuchéu, no Oriente, no reino do Bungo.

Andavam o narrador Diogo Meireles e Fernão pelo reino, quando depararam duas cenas inusitadas: a explicação da origem dos gafanhotos, que teriam nascido da conjunção do ar, das folhas do coqueiro e da lua nova; e a ideia de que o futuro poderia estar contido na gota de sangue de uma vaca.

Os dois casos são absurdos em si mesmos, mas arrastavam uma multidão e serviram de base, no conto, para o que viriam descobrir depois, o tal segredo do Bonzo, revelado por um homem que teria 180 anos! E era conhecido como Pomada. Revela então seu segredo:

— Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador.

É como a farda do Jacobina. Sem ninguém para bajular o ser que a veste, de nada vale, nem o homem, nem o alferes, posto que não existem.

As duas teorias, absurdas, são reais porque haveria quem acreditava nelas. Desse modo, o Pomada chega à seguinte conclusão:

Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.

Uma total inversão da ordem, mas que faz sentido na lógica que Machado quer destacar: a de querer acreditar naquilo que é bom, que é vantajoso para si, independente da existência real.

Como episódio fi nal no conto, cita a experiência que teve Diogo Meireles. Os moradores do local, acometidos de uma doença que deixava o nariz disforme, não sabiam mais a quem recorrer para resolver o problema, sem terem de extirpar o nariz. Diogo, então, baseado no segredo do Bonzo diz que poderia trocar o nariz de cada doente, mas essa troca não seria visível, “isto é, [seria] inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado”. Como ninguém queria duvidar disso, aceitaram a ideia e passaram a fazer a “troca” do órgão defeituoso.

Desse modo, se a realidade não é favorável, fi quemos com a imaginada, posto que é melhor e mais conveniente.

Já “A chinela turca” tematiza o jogo entre sonho e realidade.

Papel, aliás, exercido pela literatura, que deve partir do real para criar a fi cção, de modo a olhar novamente para o real. Escrito em 1875, esse conto ainda tem como pano de fundo o Romantismo, decadente é verdade. Mas aparece em uma peça que escreveu um dos dois personagens principais, no caso o Major Lopo Alves, que vai visitar um amigo, o Bacharel Duarte, por volta das 9h da noite. O Bacharel preparava-se para sair, mas o major insistiu, pois queria ler para ele uma peça de teatro que escrevera. Embora não quisesse, o Bacharel atendeu ao pedido do amigo, que passou a ler a peça.

A certa altura, o Major percebeu que Duarte pouco se importava com a peça e resolveu deixar o local. Em seguida, Duarte recebeu outra visita. Vinham prendê-lo sob a acusação de ter roubado uma chinela turca.

Mesmo sabendo tratar-se de algo infundado, fantasioso, acompanha o que parecia ser um ofi cial da polícia. Chegando ao local, descobre que não se tratava de um roubo, antes um pretexto. Fora levado até lá porque deveria se casar com uma moça, mas seria morto em seguida.

— Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante...

Quando já se sentia perdido por aquela situação surreal, inusitada, percebeu que o major ainda lia o drama na sua frente. Ele na verdade, dormira e sonhara com tudo aquilo. Desse modo, volta à realidade, embora seja a realidade do conto, isto é, a fi cção criada por Machado. Há assim um sonho, uma fi cção dentro da fi cção, estabelecendo-se uma metalinguagem um tanto involuntária, por assim dizer. Isso porque da fi cção pensada nasceu uma fi cção espontânea e imaginária.

Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio.

Em “Na Arca – três capítulos inéditos do Gênesis”, o ponto principal está na eterna disputa por espaço, por terra, sob o nome do egoísmo, da disputa, da tentativa de exercer poder sobre o outro. Escrito à maneira bíblica, em capítulos e versículos, o conto mostra a disputa entre Jafé e Cam sobre a divisão das terras, assim que as águas do dilúvio baixassem. A discussão ia bem até o ponto em que divergiram sobre o rio que dividiria cada terra. A discussão chegou a tal ponto que Noé teve de intervir e, percebendo que a questão não se encerraria ali, ou seja, com o dilúvio, com a separação de animais de cada espécie, vaticinou algo estranho aos ouvidos dos seus:

26. — “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?”

27. — E nenhum dos fi lhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pai.

28. — A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo. Evidente que se trata de uma intertextualidade praticada por

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Machado, uma vez que à suposta época de Noé nenhum desses países existia. Tal guerra por disputa territorial se deu entre 1877 e 1878, ainda bem fresco, portanto, na memória dos leitores contemporâneos do autor. O objetivo é o de revelar a constante luta entre as pessoas, cuja solução parece simplesmente não existir de fato.

Com “D. Benedita – um retrato”, Machado quer analisar as veleidades, as ilusões que construímos para nossas vidas, para que possamos continuar a viver em um mundo nem sempre favorável. A protagonista é marcada pela hesitação, pela volubilidade, pela inconstância no agir. Isso porque D. Benedita era casada com o ilustre desembargador Proença, mas que, devido ao trabalho ou para se livrar da esposa, fora designado para trabalhar no Pará. E lá foi fi cando, fi cando. D. Benedita a toda hora pensa em visitar o marido, mas a viagem é adiada ano após ano. Até que ele vem a falecer. Cogita então ir até lá para construir-lhe um jazigo digno, mas também adia o intento e os anos continuam a passar. Pensa em casar a fi lha Eulália com o fi lho de uma grande amiga, o Leandrinho. Embora faça algo por isso, atende ao desejo da fi lha que prefere outro homem para se casar. Por fi m, sabendo da viuvez, dois homens passam a cortejá-la. Ela, embora aprecie a ideia, continua em sua eterna indecisão e permanece viúva.

Foi por esse tempo que um negociante, viúvo, teve ideia de cortejar D. Benedita. O primeiro ano da viuvez estava passado. D. Benedita acolheu a ideia com muita simpatia, embora sem alvoroço. Defendia-se consigo; alegava a idade e os estudos do fi lho, que em breve estaria a caminho de São Paulo, deixando-a só, sozinha no mundo. O casamento seria uma consolação, uma companhia. E consigo, na rua ou em casa, nas horas disponíveis, aprimorava o plano com todos os fl oreios da imaginação vivaz e súbita; era uma vida nova, pois desde muito, antes mesmo da morte do marido, pode-se dizer que era viúva. O negociante gozava do melhor conceito: a escolha era excelente. Não casou.

Hesitação, indecisão e ilusão permanecem.O narrador inicia “O empréstimo” dizendo tratar-se

não de uma história fi ctícia, mas sim de algo real, algo que de fato aconteceu. É uma estratégia narrativa para conferir verossimilhança ao relato.

Narra-se a história de Custódio, um homem de quarenta anos, na idade de ser um “medalhão”, portanto, vive às penúrias, tanto por ser pouco afeito ao trabalho duro, quanto por ser nada predisposto no acerto das escolhas em investimentos. Conforme diz o narrador:

Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.

Conforme o título sugere, lutava agora para conseguir um empréstimo de cinco contos (uma quantia razoável) para investir em uma fábrica de alfi netes. Pediu a um e a outro, sempre com negativas. Lembrou-se de pedir a um conhecido, o tabelião Vaz Nunes, homem digno, direito e correto em suas obrigações.

O foco do conto é narrar exatamente a conversa que Custódio e Vaz Nunes têm; aquele tentando persuadir a este

de que o valor não era muito; e este tentando persuadir aquele de que não dispunha de quantia alguma. O valor vai dos cinco contos aos cinco mil-réis (uma quantia irrisória). O interessante do conto está nesse jogo de pedidos e negativas, de suposições e certezas, que aumentam a angústia de Custódio e também do leitor.

— Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfi m, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...

— Não imagina os apuros em que estou!— Nem cem, repito. Tenho tido muitas difi culdades nestes

últimos tempos.

Ao fi m, quando aceita emprestar cinco mil-réis, Vaz Nunes se sente satisfeito por se livrar do pedinte, sabendo que a quantia jamais será devolvida, mas ao menos é um valor baixo, e Custódio sai, achando-se vitorioso, ao menos por ter obtido o valor para o jantar...

Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.

Com “A sereníssima república”, Machado discute a validade ou não das eleições. Não que fosse exatamente contrário à prática, mas por saber que eram sempre viciadas (era o tempo do voto de cabresto). À época em que publicou o conto (1882), o Brasil ainda era um Império, não uma República, o que viria a acontecer apenas em 1889, no entanto, votava-se para deputado, para senador e os membros dos Conselhos Gerais das Províncias. As eleições não respeitavam o que se chama hoje sufrágio universal. Poucas pessoas podiam votar. Além disso, o Imperador tinha poder de veto (há o caso célebre do escritor José de Alencar, que ganhou a eleição para o Senado, mas foi preterido por D. Pedro II, de quem era inimigo político). O que Machado quer discutir no conto não é nem tanto a validade desse tipo de eleição ou a reforma do sistema representativo. Quer antes mostrar dois aspectos: a busca pelo poder supera qualquer ética aceita pela média social e que a linguagem pode ser usada de modo a manipular os demais.

Com efeito, o conto, que assume ares de fábula, e escrito ao modo de uma conferência científi ca, é o discurso do cônego Vargas, que descobrira a língua das aranhas. Conseguiu, então, reuni-las e chegou a ter mais de duzentos indivíduos. Desse modo, era preciso ajudá-las a organizar a sociedade, incluindo o sistema de governo e a forma de eleger os representantes.

Sim, senhores, descobri uma espécie araneída que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876.

Foi então que pensou no sistema republicano adotado em Veneza, a qual era chamada de Sereníssima, daí a razão do título. E deu-se início às eleições. A primeira foi anulada porque o nome de um candidato constava em duas bolas que serviriam para eleger um ou outro. A segunda eleição também foi anulada, porque faltou, de propósito ou não, o nome de um candidato. A terceira eleição também foi considerada viciada, pois os nomes

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de dois candidatos, Hazeroth e Magog estavam escritos faltando-lhes uma letra do nome.

Por fi m, relata a eleição para uma vaga na Assembleia. O nome do eleito foi Nebraska. No entanto, também faltava-lhe uma letra do nome, a letra A. O caso serviu a uma artimanha retórica a outro candidato para dizer que ele seria o eleito de fato. Assim, pronuncia-se:

Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfi ca e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra fi nal, incrusta desde logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. — Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da signifi cação espiritual ou fi losófi ca da sílaba, suas origens e efeitos, fases, modifi cações, consequências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fi ca a última prova, evidente, clara, da minha afi rmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca.

“Uma visita de Alcibíades” se presta, mais uma vez pelo jogo entre fantasia e realidade, a discutir um aspecto da sociedade, que é a moda. Alcibíades, um importante general grego do século V a. C., visita em carne e osso o narrador em uma noite de 1875. Após o susto do inesperado, começam a conversar. O narrador conta-lhe então que iria a um baile naquela noite, Alcibíades decide querer conhecer, mas precisaria de trajes normais da época. E então é vestido com um smoking que o deixa sufocado e estranho. Ao longo da conversa, vão tecendo considerações sobre a moda e como ela pode ser efêmera e atender a interesses nem sempre do conforto, antes das ilusões sociais. Ao fi m, Alcibíades morre novamente por não se sentir confortável vestido do modo moderno.

— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. Venha, venha. Assim, pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isso levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?

— O chapéu.

“Verba testamentária” trata de um protagonista doentio. Nicolau B. de C., sabendo que iria morrer, deixa um testamento pedindo que seu caixão fosse feito por Joaquim Soares, o mais simples artesão da região. O que causa estranheza em todos. Na verdade, desde a infância Nicolau demonstrara atitudes pouco aceitáveis socialmente: destruía brinquedos de outras crianças, rasgava a roupa delas. Era, enfi m, uma espécie de misantropo, alguém que não tinha interesse no bom convívio. Órfão de pai e mãe na adolescência passa a ser cuidado pela irmã mais velha, que já era casada.

Por sugestão do cunhado, que é médico, Nicolau é isolado em um ambiente rico, onde sua autoestima é estimulada por

meio de falsas notícias ruins, publicadas em jornais também inexistentes. Apesar disso, ele piora com o passar do tempo.

O jogo entre aspectos reais e fantasiosos é novamente utilizado como técnica literária, uma vez que o nome completo do protagonista é omitido, como se fosse alguém conhecido da sociedade; por outro lado, para dar ar de veracidade ao relato, relaciona momentos da vida de Nicolau a outro da vida real, como a renúncia de D. Pedro I em 7 de abril de 1831, ou as referências a artistas que seriam contemporâneos de Nicolau, como o ator João Caetano ou o poeta Gonçalves Dias.

Nicolau parece sofrer de uma doença no baço que o leva a ter um sentimento destrutivo por tudo, o que o equipara a um animal raivoso, que pouco se importa com os outros. Assim, ao escolher um caixão em que seria enterrado ser de má qualidade é apenas mais um lance, o último de sua vida, pelo qual demonstra suas atitudes extravagantes e perturbadoras. Com isso, Machado quer mostrar que uma visão negativa é tão humana quanto outra positiva, e que o ser humano não é tão racional quanto se poderia imaginar naquele momento.

Exercícios

1. (UESC-BA) Duarte acompanhou o major até a porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, ao cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

ASSIS, Machado de. “A chinela turca”. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar 1962. v. 1, p. 303.

Com base no fragmento contextualizado na obra, está correto o que se afi rma em

01) O narrador abstém-se de opinar sobre o narrado.02) O conto evidencia o tema da volubilidade do amor.03) A relação de Duarte com o major Lopo Alves é pautada

pela sinceridade afetiva.04) O major Lopo Alves representa o literato de grande

mérito, porém injustiçado pelo público leitor.05) A narrativa apresenta dois dramas: um escrito por Lopo

Alves e outro vivenciado como experiência simbólica pelo personagem Duarte.

2. (UESC-BA) Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

— Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe fi cou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes.

Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto

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tinha muitos candidatos e que estes perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção.ASSIS, Machado de. “O espelho”. “Papéis avulsos”. In: Obra completa. Rio de

Janeiro: José Aguilar, 1963. p. 347.

Um dos problemas humanos tematizados na obra de Machado de Assis é o da identidade, e isso se faz presente no conto “O Espelho”. Com base no fragmento e na narrativa em sua totalidade, analise — no plano simbólico — o valor do uniforme em relação à integridade psicológica da personagem Jacobina.

3. (UFOP-MG) Leia a seguinte afi rmativa de Machado de Assis a respeito de seu conto “A sereníssima república”, incluído em Papéis avulsos:

“Este escrito (...) é o único em que há um sentido restrito: − as nossas alternativas eleitorais. Creio que terão entendido isso mesmo, através da forma alegórica.”

(Machado de Assis, 2006, p.166).

Com base na declaração de Machado de Assis, pode-se afi rmar que a alegoria do conto “A sereníssima república” implica uma sátira política. Justifi que.

4. (Fecilcam-PR) É correto afi rmar sobre Machado de Assis e sua obra:a) As personagens do romance Senhora são apresentadas sob o

ponto de vista psicológico, desnudando-se ante os olhos do leitor graças à delicada sutileza com que o autor as analisa e expressa;

b) Estão presentes na prosa machadiana: narrativa passional, tipos humanos idealizados, disputa entre o interesse material e os sentimentos mais nobres;

c) Sua obra está diretamente comprometida com a estética naturalista, marcada pela associação direta entre meio e personagem e pelo estilo agressivo que está a serviço das teses deterministas da época;

d) Seus contos, sobretudo a partir de Papéis avulsos, são obras-primas de análise psicológica, alegorização social e interpretação das fraquezas humanas;

e) Seus primeiros romances consagraram-no como um grande prosador realista, mas a partir de D. Casmurro sua obra tomou o rumo inesperado da fi cção memorialista.

5. (UFMG) Leia estes trechos:TRECHO 1“Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião

Vaz Nunes, à Rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns, que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes fi cou só.”

MACHADO DE ASSIS, J.M. “O empréstimo”. In: Papéis avulsos. São Paulo: Martin Claret, 2007. p.120-121.

TRECHO 2“Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta

mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados.”

MACHADO DE ASSIS, J.M. “O segredo do bonzo”. In: Papéis avulsos. São Paulo: Martin Claret, 2007. p.102.

REDIJA um texto, caracterizando a posição do narrador em relação ao acontecimento narrado em cada um desses trechos.

6. (UFPI) Temas gerais da fi cção de Machado de Assis encontram-se na alternativa:a) a idealização da beleza feminina; o casamento imposto

por alianças familiares; o comportamento insubmisso dos pobres e oprimidos.

b) a confi ança na precisão do conhecimento científi co; a utopia da fraternidade universal e cristã; os sofrimentos impostos pela vida em sociedade.

c) a nostalgia do passado; a concepção da cultura brasileira como resultante de três raças; o reconhecimento da superioridade cultural portuguesa.

d) o patriotismo manifesto nos dramas nacionais; a peculiaridade da natureza brasileira; a valorização do sertanejo como representante do homem brasileiro.

e) a reversibilidade da razão e da loucura; a indistinção entre o fato ocorrido e o que se pensa sobre os fatos; a divisão imprecisa entre o real e as aparências.

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7. (UFPI) Leia o texto abaixo.A notícia dessa aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o

terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz.Assis, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. V. 2.

P. 263

Fundamentando-se no texto acima, escreva V, para verdadeiro, e F para falso.( ) Louco é quem for declarado louco por uma autoridade

médica.( ) A sabedoria e a ciência são remédios contra a insanidade

mental.( ) O alienado é um indivíduo que perdeu a consciência de si

e da realidade.a) F - V - F.b) V - F - F.c) V - V - Fd) F - F - Ve) V - F – V

A questão 8 explora o texto abaixo:As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos

vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, fi lho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.

Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que fi casse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte cinco anos, viúva de um juiz-de-fora, e não bonita nem simpática.

Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fi siológicas e atômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe fi lhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, – únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu fi lhos robustos nem mofi nos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, - explicável, mas inqualifi cável, - devemos a total extinção da dinastia dos

Bacamartes.ASSIS, Machado de. “O alienista”. ln: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 1986, v. 2. p. 254

8. De acordo com o texto, numere a 2ª coluna de forma a completar corretamente a informação da 1a.1 Simão Bacamarte não permaneceu na Europa.2 Simão Bacamarte renunciou aos serviços burocráticos.3 Simão Bacamarte decidiu desposar D. Evarista.4 Simão Bacamarte desejou ter fi lhos.( 2) Isso o impediria de dedicar-se totalmente aos estudos.( 3) Essa escolha chocou um de seus tios.( 1) Lá, ele não desenvolveria seus conhecimentos científi cos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta:a) 2 - 3 - 1b) 2 - 4 - 3c) 3 - 1 - 2d) 4 - 2 - 1e) 1 - 4 – 2

As questões 9, 10 e 11 exploram o texto a seguir:A afl ição do egrégio Simão Bacamarte é defi nida pelos

cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fi tam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fi sionomia do alienista de uma suave claridade.

“Sim, há de ser isso”, pensou ele.Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos

do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfi m que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afi rmativa.

— Nenhum defeito?— Nenhum, disse em coro a assembleia.— Nenhum vício?— Nada.— Tudo perfeito?— Tudo.— Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto

em mim essa superioridade que acabo de ver defi nir com tanta magnifi cência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifi que os excessos da vossa bondade.

A assembleia insistiu; o alienista resistiu; fi nalmente o padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador:

— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos?

É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que fi casse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

9. Simão Bacamarte se recolhe à Casa Verde:a) para alcançar uma cura milagrosa.

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b) por reunir em si a ciência e a loucura.c) porque ameaçava a segurança pública.d) posto que desconfi ava das opiniões alheias.e) pois contaminaria as pessoas com sua loucura.

10. Assinale V ou F, conforme sejam verdadeiras ou falsas as afi rmações.( ) A compreensão do que é perfeito equilíbrio é a mesma para

Simão Bacamarte (linha 6) e para a mulher e os amigos (linha 25).

( ) As reações de Simão Bacamarte, nas passagens “alumiou-se a fi sionomia do alienista de uma suave claridade” (linhas 3 e 4) e “curvou a cabeça ( ... ) mais alegre do que triste” (linhas 24 e 25), têm como causa, respectivamente, a descoberta e a confi rmação do que ele buscava.

( ) A doutrina nova (linha 27) é resultado de uma pesquisa, na qual sujeito e objeto são o próprio Simão Bacamarte.

A sequência correta é:a) F - V - V.b) F - V - F.c) F - F - V.d) V - F - F.e) V - F - V.

11. No trecho “Ato contínuo recolhe à Casa Verde” (linha 25), a expressão grifada assegura que Simão Bacamarte:a) retirou-se, sem demora.b) decidiu-se após refl etir bastante.c) continuou a conversa antes de recolher-se.d) dirigiu-se à Casa Verde, como de costume.e) afastou-se indiferente à opinião dos amigos.

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João Guimarães Rosa (1908-1968) é mineiro de Cordisburgo. Foi médico, diplomata, morou na Alemanha nazista da década de 30. Mas fi cou conhecido mesmo como escritor. Embora tenha escrito alguns contos ainda na década de 20 e na seguinte, publicou ofi cialmente seu primeiro apenas em 1946. Trata-se exatamente de Sagarana, que apresenta nove contos:

“O burrinho pedrês” “A volta do marido pródigo” “Sarapalha” “Duelo” “Minha gente” “São Marcos” “Corpo fechado” “Conversa de bois” “A hora e vez de Augusto Matraga”

Rosa notabilizou-se por buscar soluções linguísticas diversas para escrever seus textos literários (contos, novelas, romances). É conhecido como o mago da linguagem ou da palavra. Não é difícil perceber isso. Basta uma leitura inicial de qualquer texto seu. Obviamente que se trata de língua portuguesa, mas não a comum, a tradicional, e sim uma constante recriação com a fi nalidade de repensar o processo de criação literária. Se em um primeiro momento, isso causa estranheza ao leitor iniciante de Guimarães Rosa, com o tempo ocorre uma familiaridade o que facilita a leitura dos textos. O próprio título Sagarana é indicativo desse trabalho criativo. O termo SAGA é radical de origem germânica, e signifi ca “canto heroico”; RANA, por sua vez, é de origem indígena, que signifi ca “à maneira de”. Assim, temos histórias à maneira de um canto heroico, ao modo épico.

Importante lembrar ainda que épica era a poesia que servia para narrar e exaltar os feitos heroicos de personagens da história real, como Ulisses na Ilíada e na Odisseia ou Vasco da Gama, em Os lusíadas, apenas para citar alguns. A diferença, porém, é que nos contos de Rosa o herói não é nenhum rei ou personalidade que entraria para a história apenas por sua função na sociedade. São pessoas comuns, do interior mineiro e sem maiores disposições para grandes feitos. Porém, seguindo a visão moderna de que herói pode ser qualquer cidadão, em qualquer lugar (lição aprendida, por exemplo, no Ulisses – 1922, de James Joyce, que narra a odisseia do homem urbano, de classe média e vida comum em um dia de sua vida), dá destaque para os feitos de um burrinho ou de um cafajeste, como Augusto Matraga. Interessante que a referência a Ulisses, personagem de Joyce, se dá exatamente na história do burrinho pedrês, sobre o qual diz o narrador:

Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. (p. 18)

O que se verifi ca nos contos é que há sempre um momento crucial, uma “hora e vez”, uma “travessia”, ápice da existência, resumo de seu sentido. Enfi m, é a saga do ser humano nos percalços da vida.

Há no livro a fi gura de “o contador de estórias”, tal e qual

CAPÍTULO VI - Sagarana, de Guimarães Rosaos rapsodos gregos ou as canções de gesta medievais. Há um quê de contos de fada, como em “Era um burrinho pedrês...”, que poderia ser reproduzido em sua fórmula original: “Era uma vez...”.

Analisemos os contos do livro, começando por “O burrinho pedrês”. É a história de Sete-de-Ouros, nome do burrinho. Apesar de ser idoso, sem enxergar direito, Sete-de-Ouros é escolhido para servir de montaria num transporte de gado. São cerca de 460 cabeças para se fazer a travessia.

– São só quatro léguas: o João Manico, que é o mais leviano, pode ir nele. (p. 25)

No início do conto, o narrador tece uma série de elogios à sabedoria do burrinho, à sua sagacidade e experiência, que lhe possibilitam fazer algumas escolhas. A ideia é, pois, servir de lição como símbolo de paciência e persistência.

Para além da história do burrinho, há os confl itos dos homens. No caso, um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio de Badu, que anda namorando a moça de quem ele gosta. Silvino pensa em matar o rival durante a travessia para o transporte do gado.

– [...] O que é, é que eu sei, no certo, mas mesmo no certo, que Silvino vai matar o Badu, hoje. (p. 29)

Outra complicação do enredo é que se avizinha uma grande chuva, o que pode fazer transbordar os rios e causar uma grande enchente.

– “Olha só, vai trovejar...” E Leofredo mostrava o gado: todos inquietos, olhos ansiosos, orelhas eretas, batendo os parênteses das galhas altas. – “Não é trovoada. São eles que estão adivinhando que a gente está na hora de sair...” Mas, nem bem Sinoca terminava, e já, morro abaixo, chão a dentro, trambulhavam, emendados, três trons de trovões.” (p. 32)

Ao longo da viagem, os vaqueiros vão contando histórias variadas, que, de um modo de outro, se inter-relacionam com a história maior, que é a do burrinho. Sete-de-Ouros vai aguentando como pode. Ainda mais por sofrer admoestações de João Manico, que o montava.

– Burrico miserável!... – desabafa João Manico, cravando as esporas nos vazios de Sete-de-Ouros, que abana a cabeça, amolece as orelhas, e arranca, nada macio, no seu viageiro assendeirado, de ângulo escasso, pouca bulha e queda pronta. (p. 36)

Retomando a história de Silvino e Badu, aquele de fato, mesmo com a proibição do major para qualquer tipo de briga entre os vaqueiros, em uma artimanha, faz que um boi avance sobre o Badu, que consegue, com sua experiência, se desvencilhar do animal e sai ileso.

Já de volta, após a entrega dos bois, a comitiva para em um bar. Bêbado, Silvino revela a seu irmão como pretendia matar Badu. Alertado pelos vaqueiros, o major Saulo, líder da tropa, pede que todos fi quem de olho para evitar o pior.

Ao fi nal, porém, o que se temia ocorre. O córrego da Fome transborda. Vaqueiros e cavalos se afogam. Salvam-se apenas

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Badu e Francolim, um montado e outro pendurado no rabo do burrinho, que se mostra forte e resoluto.

Noite feia! Até hoje ainda é falada a grande enchente da Fome, como oito vaqueiros mortos, indo córrego abaixo. [...] (p. 78)

Em “A volta do marido pródigo”, de início temos novamente a presença de um burrinho, não por acaso. Como são antropomorfi zados, tais animais acabam por alegorizar a própria condição humana, isto é, os aspectos que caracterizam o ser humano, como a luta pela sobrevivência, (comum a qualquer ser vivo), a busca do amor, a busca da felicidade, a manutenção de uma honra, etc. Podem simbolizar ainda o peso da vida, a vida baseada no trabalho, as difi culdades que ela oferece.

O título é uma clara referência à parábola bíblica do fi lho pródigo, isto é, liberal, inconsequente, desajuizado, desobrigado, gastão, dado ao imediatismo dos prazeres, etc. No caso, é o marido (Lalino Salathiel), que, cansado da vida doméstica, do trabalho, resolve partir em busca de novas aventuras e vai para a cidade grande onde espera encontrar a felicidade na companhia de belas mulheres, como as que vira em revistas. Em conversa com seu patrão, diz o que imagina ser:

– Tem lugar lá, que de dia e de noite está cheio de mulheres, só de mulheres bonitas!... Mas, bonitas de verdade, feito santa moça, feito retrato de folhinha... Tem de toda qualidade: francesa, alemanha, turca, italiana, gringa... É só a gente chegar e escolher... Elas fi cam nas janelas e nas portas, vestindo de pijama... de menos ainda... Só vendo, seus mandioqueiros! Cambada de capiaus!... (p. 90)

E diz mais ainda, que homens se fantasiam de mulheres no teatro.

– Você não estará inventando? Onde foi que tu viu isso?– Ora, seu Marrinha, pois onde é que havia de ser?!... No

Rio de Janeiro! Na capital... (p. 92)

Assim, mesmo tendo uma mulher que o ama, Maria Rita, quer aventurar-se, quer conhecer a todas. Em sua fantasia chega a imaginar mais de mil mulheres a sua espera, à espera de quem fosse até lá... Emprestou dinheiro de um, juntou o que tinha e partiu para essa aventura.

Maria Rita chora por um tempo, mas depois de três meses sozinha, acaba por morar com um espanhol, chamado Ramiro.

Lalino não demora muito mais por lá e decide voltar, mas encontra o outro morando com Ritinha.

Como estava sem moral para expulsar o outro de lá, arma um plano. Primeiro fala com Oscar, fi lho do major Anacleto, chefe político do local. Procura convencer o fi lho de que é um novo homem e que poderia ser um cabo eleitoral do Major, com vistas a ganhar as eleições próximas.

Arma então uma série de intrigas contra o adversário político, e consegue o sucesso eleitoral do patrão. Reconcilia-se com a mulher, Maria Rita, que nunca o deixara de amar. A narrativa aproxima-se das novelas picarescas e um típico exemplo do malandro, tal e qual o Leonardo Pataca, de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, ou o Macunaíma, de Mário de Andrade.

O narrador, em terceira pessoa, não tece julgamentos morais sobre as atitudes de Lalino, apenas ironiza uma atitude ou outra.

Em outras palavras, se na parábola de Cristo, no que tange à condição e ao gesto do fi lho, a ideia é mostrar o arrependimento do fi lho liberal, do fi lho pródigo, no conto de Guimarães Rosa, não há arrependimentos, apenas se obedece às conveniências para se dar bem.

“Sarapalha” tem seu enredo passado em um povoado dizimado pela malária.

Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o manto a entupiu. (p. 133)

Dois últimos moradores do local resistem. Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos com malária.

Sabem que vão morrer em breve e resolvem relembrar o passado, particularmente Luísa, mulher de primo Ribeiro que, ao manifestar-se a malária, tinha-o abandonado por causa de outro.

– É isso, Primo Argemiro... Não adianta mais soligar a ideia... Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento... E, de madrugadinha, inda bem as garrixas ainda não tinham pegado a cochichar na beirada das telhas, tive notícia de que eu ia morrer... Agora mesmo, garrei a ‘maginar’: não é que a gente pelejou p’ra esquecer e não teve jeito?... Então resolvi achar melhor deixar a cabeça solta... E a cabeça solta pensa nela, Primo Argemiro...

E dessa conversa, de lembranças, de delírio causado pela febre, Primo Argemiro se encoraja e resolve contar um segredo que trazia consigo, pois quer ter a consciência tranquila ao morrer. Quando se mudou para a casa de Ribeiro foi pela atração que sentia por Luísa.

– Eu... eu também gostei dela, Primo... Mas respeitei sempre... respeitei o senhor... sua casa... Nós somos parentes... Espera, Primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha... (p. 150)

Ribeiro reage mal a essa confi ssão. Implacável, manda Argemiro embora na hora em que começa a agonia causada pela febre forte e passa a delirar no meio do mato.

Interessante que a linguagem do conto acompanha o clima de desgraça e doença, com o desvario dos dois doentes. Há uma série de reticências, que indicam tanto o temor e o delírio causados pela doença, quanto os senões das confi ssões e lembranças.

Pode-se dizer também que há uma analogia entre a malária e a mulher. Ambas chegam devagar, invadem tudo. A mulher, o coração do homem; a doença, todo o seu corpo. E ambas levam o homem à derrocada.

– A moça que eu estou vendo agora ‚ uma só, Primo... Olha!... É bonita, muito bonita é a Sezão. Mas não quero... Bem que o doutor, quando pegou a febre e estava variando, disse... você lembra?... disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha... e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... (p. 148)

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Em “Duelo”, de novo há uma história de traição. No caso, Turíbio Todo testemunha a traição de sua mulher com o ex-militar Cassiano Gomes, e faz planos de vingança. Mas o capiau, o matuto, sabe que não poderia enfrentá-lo de frente, teria que urdir um plano.

Todavia, como o bom, o legítimo capiau, quanto maior é a raiva tanto melhor e com mais calma raciocina, Turíbio Todo dali se afastou mais macio ainda do que tinha chegado, e foi cozinhar o seu ódio branco em panela de água fria. (p. 159)

Fez-se dissimulado com a mulher, para ela não saber que ele sabia de tudo. Enquanto isso preparara sua vingança. Queria matar o oponente pelas costas. No entanto, no dia que arma para isso, erra o alvo e acaba por assassinar o irmão de Cassiano, Levindo Gomes, que, de costas era semelhante ao irmão.

Desse modo, a guerra entre eles está armada, e inicia-se uma perseguição mútua. Cassiano, porém, fi ca doente e falece. Antes, confi dencia seu intento a um capiau que ajudara, chamado Vinte-e-Um.

Turíbio, que se encontrava distante do local, sabe da morte do adversário.

Turíbio Todo soube da boa notícia, por uma carta da mulher, que, agora carinhosa, o invocava para o lar. (p. 182)

O problema é que, ao retornar a casa, não tem como fugir do destino que já sabia traçado. Mesmo tendo morrido Cassiano, Vinte-e-um resolve cumprir o que Cassiano não pôde. E mata Turíbio Todo com uma garrucha.

O conto tem como foco discutir o destino, mesmo que se lute contra ele, é difícil fugir dele. É algo inexorável, presente em diversos contos de Guimarães Rosa.

O conto “Minha gente” tem início com o narrador, chamado por um guia de doutor, que está em viagem à fazenda de um tio, chamado Emílio. No caminho, encontra Santana, a quem já conhecia. Culto (conhece Literatura grega e Filosofi a), tem por hábito jogar xadrez, mesmo andando a cavalo.

E Santana estende-me a carteirinha, porque há também a carteirinha, o xadrezinho de bolso, que eu me esquecera de mencionar; tão permanente na algibeira do meu amigo como os óculos de um míope na cara de um míope. (p. 193) Cavalgam juntos até o destino de Santana, no Tucanos.O guia se chama José Malvino, que vai instruindo o narrador

sobre as coisas do sertão, sobre a natureza e a vida local. Tem o conhecimento do mundo local, sabe ler os sinais que a natureza oferece e se torna “professor” do doutor e de Santana.

– Que é que você está olhando, José?– É o rastro, seu doutor... Estou vendo o sinal de passagem

de um boi arribado. [...] Olha só: ali ele trotou mais devagar...– Mas, como é que você pode saber isso tudo, José? (p. 199)

Já na fazenda do tio Emílio do Nascimento, por ter nascido

no dia de Natal, o narrador conta que o tio havia deixado sua simplicidade interiorana ao entrar para a política. Tornou-se mais refi nado, mas um refi namento local, nada além disso.

Por fi m, surge a principal fi gura do conto, Maria Irma, fi lha de Emilio, por quem o narrador se apaixona. Porém, não é moça simples, do tipo capiau, caipira. Mesmo porque estudara em

colégio interno. Dissimulada quando quer, dengosa em outros momentos. Embora tenham sido namorados na infância, algo nada sério, portanto, Maria se diz noiva de outro homem, mas não fala isso de modo claro ao narrador, que fi ca em dúvida da seriedade da afi rmação.

– Está mesmo? É sim? De quem?– Não. Não sei. E depois? – e Maria Irma riu, com rimas

claras. (p. 208)

Ela se revela uma hábil jogadora de xadrez da vida, isso porque avança, recua no contato com o primo, mas com outro objetivo, o de fazê-lo se casar com Armanda, fi lha de um fazendeiro da região. O narrador, por sua vez, investe para se casar com a própria Maria, que era apaixonada por outro homem, Ramiro, na verdade namorado de Armanda. Ele trazia livros para Maria.

O plano, portanto, de Maria, que ainda não era noiva quando disse isso a seu primo, era afastar Armanda de seu caminho, colocando-a no caminho de outro, no caso o próprio primo.

O problema é que o narrador está apaixonado pela prima, e faz de tudo para conquistá-la. Por outro lado, devido à sua cultura letrada, mais do que ver Maria com uma mulher real, ele a vê segundo a ótica das mulheres literárias, das heroínas de romances, em sua docilidade e paixão.

Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irma. Antes não o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para assentar o idílio, mais minha prima se mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente distante. (p. 225)

E o jogo se estabelece. As peças do tabuleiro são movidas, sempre com mais habilidade por Maria Irma.

Paralelamente a essa história, seu tio Emílio pede-lhe que o ajude com cartas a correligionários, de modo a tentar o controle da política local, o que no fi m também não ocorre.

O narrador tem de se ausentar por um tempo. Quando retorna, vai logo procurar Maria Irma, que está com Armanda. Após preparar o terreno, deixa os dois sozinhos. E não demora, Maria Irma consegue o que queria: o primo pede a mão de Armanda em casamento.

E foi assim que fi quei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouveia. (p. 238)

Outras personagens aparecem no texto, de forma secundária. É o caso de Bento Porfírio, que comete adultério com de-Lurde e é assassinado pelo esposo dela, Alexandre.

“São Marcos” também é narrado em primeira pessoa. O narrador é um médico jovem, como era o próprio João Guimarães Rosa, antes de se tornar embaixador e escritor. Chega ao Calango-Frito. Autonomeia-se supersticioso. Apesar disso, não acredita em feitiçaria e vive caçoando de um curandeiro e feiticeiro local – o João Mangolô. Outras pessoas estavam igualmente envolvidas em feitiçaria, como Nhá Tolentina, Dona Cesária e o menino Deolindinho.

Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-Frito. (p. 243)

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Certo domingo, o narrador passa perto da cafua de João Mangolô e zomba do curandeiro.

– Ó Mangolô!: “Negro na festa, pau na testa!...” (p. 246)

Depois, encontrou Aurísio Manquitola. O narrador começou a zombar das crendices de novo, iniciando uma oração malvista a São Marcos. Aurísio não gostou e pediu para que parasse.

– Para, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que é está bulindo!... (p. 247)

E passou a contar histórias de pessoas que tiveram problemas com essa reza, como o Gestal da Gaita, o Compadre Silvério, o Tião Tranjão, o Cypriano, o Felipe Turco, entre outros.

Em seguida, embrenha-se de novo no mato, absorto na contemplação da natureza. E se depara com versos grafados no bambu. Responde com outros versos.

No domingo seguinte, volta ao bambuzal onde há novos versos. Como não sabe quem é, chama-o de “Quem-Será”, que fi ca sendo seu melhor amigo na região. Na verdade, estava perdido ali, fruto do feitiço por ter iniciado a reza de São Marcos. Na fl oresta, passa a explorá-la, conhecê-la. Porém, em dado momento, outra coisa lhe sucede, fi ca cego.

E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo. (p. 261)

Fica mais perdido do que estava, tentando entender o que se passava. Usa de outros sentidos para tentar se localizar: o tato, o olfato, a audição.

Tão claro e inteiro me falava o mundo, que, por um momento, pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta. (p. 264)

Foi então que decidiu que o melhor a fazer seria rezar a tal reza brava de São Marcos de novo. De repente, começa a ouvir vozes, era do Mangalô, e tudo se esclareceu. Para se vingar das caçoadas, fez um feitiço, colocando vendas em um boneco para assim cegar o médico. Não querendo dar o braço a torcer, diz que de nada adiantou com ele, que tinha o santo forte.

O conto explora, pois, a crendice popular, sem querer confi rmar aquilo em que o povo acredita, nem negar. A ideia é explorar a poeticidade de toda essa magia. Mostrar a força criadora da crendice, que acaba por se coadunar com a força criativa da literatura. Ambas inventam mundos, que talvez existam de fato, se pensamos com os objetivos do conto.

“Corpo fechado” trata também de feitiçaria, mas sob outra óptica. O narrador é novamente um médico, algo recorrente na literatura de Guimarães Rosa, que ouvia muitas histórias em suas andanças pelo sertão mineiro. O foco do conto é tratar dos valentões da região, o mais respeitado e temido. No caso, Manuel Fulô, com quem o médico conversa e fi ca sabendo de histórias diversas sobre aspirantes a valentões.

José Boi, Desidério, Miligido, Dejo... Só podia haver um valentão de cada vez. Mas o último, o Targino, tardava em ceder o lugar. (p. 275)

O narrador, médico em Laginha, conversa com Manuel Fulô, que era fi lho do Peixoto, mas adotado pela família Veigas, no sentido de ter os cuidados de uma família importante do local. Era na verdade mulato e gostava da amizade com o médico, o que lhe conferia mais respeito diante das pessoas comuns.

– Vou lhe contar, seu doutor: sou fi lho natural do Nhô Peixoto! O senhor não reparou que eu não sou branquelo nem perrengue como estes Veigas?... Meu pai é meu pai por cortesia, e eu respeito... (p. 281)

Vivera com os ciganos, não gostava de trabalhar, vivia de pequenos golpes; era noivo, mas pensava em ter um arreio de gaúcho, para poder cavalgar por mais tempo, sem cansar em sua mula Beija-Fulô, maior orgulho e paixão de Manuel.

... Quando eu larguei a ciganagem, vim p’r’aqui p’r’o arraial, negociar por minha conta. Aí foi que eu ganhei um dinheirão. Merenguém bonito...

– Lesando os outros Manuel? (p. 285)

Manuel conta toda sua vida ao doutor enquanto bebem cerveja. Targino, o então valentão do local, aparece no bar e diz a Manuel que iria se deitar com das-Dor, a noiva de Manuel. Apenas após isso, é que eles poderiam se casar.

O doutor decide ajudá-lo, diz que irá encontrar uma estratégia para vencer a valentia de Targino. Ninguém tinha a coragem de ajudar, porém. Todos o aconselhavam a deixar como estava. Targino faria o que tinha de fazer e depois era seguir a vida em paz.

Nesse momento é que o título do conto se justifi ca. Antonico das Pedras, feiticeiro do local, a quem o doutor abomina, se oferece para ajudar e, em troca da mula, fecha o corpo de Manuel.

E assim enfrenta Targino e, para espanto de todos, mata-o com uma faquinha do tamanho de um canivete.

O casamento com a das-Dor se realiza e o médico é convidado para ser o padrinho. Torna-se, pois, o valentão do lugar. E é o último, pois em seguida é destacado um policiamento para o local. Invertendo a lógica, ou o ditado, a última impressão é a que fi ca.

Em “Conversa de bois”, que pela temática remete o leitor inicialmente à história do burrinho pedrês. O narrador não presenciou o que será relatado, mas ouviu de Manuel Timbora, que ouviu de Risoleta, testemunha do narrado. Como isso sugere o ditado “quem conta um conto aumenta um ponto”, o narrador já pede licença para contar a história a seu modo.

– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco... (p. 303)

Afi nal, o que é a literatura senão algo inventivo, fi cção?A história é sobre uma travessia pelo sertão, durante um

dia todo, de um carro com oito bois – Buscapé e Namorado, Capitão e Brabagato, Dançador e Brilhante, Realejo e Canindé –, conduzido por um menino, chamado Tiãozinho. Ele está muito triste. No carro, está Agenor Soronho, homem cruel. Levam o cadáver do pai de Tiãozinho, seo Jenuário, falecido naquela manhã após longa enfermidade. O que explica a tristeza de Tiãozinho. Agenor Soronho era amante da mãe de Tiãozinho. O menino chora pela morte do pai e também pelo adultério da mãe. Além disso, é ultrajado por Soronho.

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O ponto central é a discussão entre os oito bois e outros que encontram pelo caminho. Para uma estranheza do leitor (embora já acostumado com o maravilhoso, fantasioso, feitiçarias, força de um burrico, etc., dos contos anteriores), os bois refl etem sobre o mundo dos homens e tecem comentários os mais diversos sobre o bicho homem, porque convivem com ele.

– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem...

– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar... Como os homens... Por que é que tivemos de aprender a pensar?

– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros...– Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo grande

e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho... É ruim ser boi de carro. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor – tudo pensado é pior... (p. 311)

Os bois discutem as injustiças que os homens praticam com os animais, lembram-se do caso envolvendo o boi Rodapião, que morrera por decifrar o pensamento dos homens. Brilhante é quem conta toda a história, que serve para mostrar como a razão humana é insufi ciente para explicar o mundo a sua volta.

Também analisam o que se passava com Tiãozinho, compadecendo-se dele. Ao passo que Agenor é visto como vilão da história.

Ao chegarem a uma ladeira chamada Morro-do-Sabão, Agenor encontra, espatifado, o carro da Estiva, carreado por João Bala. Como os bois estavam com medo de prosseguir, Agenor passa a bater neles até sangrarem, o que causa a revolta dos animais.

Por isso, percebendo que era o desejo de Tiãozinho também, resolvem fazer justiça. Soronho estava no carro de bois; como parecia dormir, os bois fi zeram um movimento, Soronho desequilibrou-se. No chão, a roda do carro passou sobre seu pescoço, matando-o.

O conto pode ser lido como metáfora da luta entre razão e instinto. Isso porque há um jogo entre o que é ser racional de fato (os homens como Soronho?) e o que é ser irracional, ilógico (os bois?).

O que Guimarães Rosa busca com histórias assim é questionar as verdades absolutas, os preceitos morais estabelecidos, para levar o leitor a ter outra visão, uma visão mais ampla da vida, ainda mais na época em que escreveu, marcada pelos totalitarismos, de esquerda, de direita na década de 1940.

O último conto do livro, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, é a história de um valentão arrependido. Matraga ou Augusto Esteves, ou ainda Nhõ Augusto, era fi lho do Coronel Afonsão Esteves.

Como o Targino de “Corpo fechado”, pegava mulheres casadas e noivas, sem que alguém ousasse a enfrentá-lo. Embora fosse casado, Dona Dionora, e tivesse uma fi lha, Mimita, pouco se importava com elas.

Com a morte do pai, tudo piora para Augusto, pois perde o poder e o respeito da família, além de gastar todo o dinheiro para seu bel-prazer.

Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava fi cando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as

fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca. (p. 346)

Por isso, não demora muito, Dionora foge com outro homem, Ovídio Moura, levando Mimita.

Dionora amara-o três anos, dois anos dera-os à dúvidas, e o suportara os demais. Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de por aquilo na ideia, já sentia medo... Por si e pela fi lha... Um medo imenso. (p. 346)

Matraga, sozinho, sem dinheiro, sem mulher, resolve trabalhar para seu principal rival, o Major Consilva Quim Recadeiro. Queria reunir forças para se vingar da mulher, mas quando viajava em busca dela, é surpreendido por antigos rivais que lhe fazem uma emboscada. Para fugir da morte, cai em um desfi ladeiro e é dado como morto por seus inimigos. E aí começa sua redenção. Isso porque é salvo por um casal, Mãe Quitéria e pai Serapião, que o levam para cuidar de seus ferimentos.

Inspirado nas palavras de um padre, arrepende-se de seus pecados, converte-se e passa a rezar para conseguir o perdão divino.

– Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu fi lho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fi que triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito!

– Fé eu tenho, fé eu peço, Padre... (p. 356)

Mesmo tendo descoberto onde se encontravam sua ex-esposa e sua fi lha, resolve deixá-las em paz, pois certamente estariam melhor sem ele. Prova de seu arrependimento. Sabia que tinha sido muito ruim para elas.

Tudo caminhava bem, até a chegada ao vilarejo Tombador do bando do jagunço Joãozinho Bem-Bem.

O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de fi car na rua, com medo de falar e de fi car calado, com medo de existir. Mas Nhô Augusto, que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem chamado Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e correu ao encontro dos recém-chegados. (p. 365)

Matraga hospeda e serve aos jagunços. Admira-se com as armas dos jagunços. Por sua presteza, falta de medo, Bem-Bem o convida a se juntar ao grupo. Augusto fi ca tentado, mas prefere sua nova vida, quieta e religiosa.

De qualquer modo, Matraga e Bem-Bem juram amizade eterna, pela gratidão mútua. Houve uma identifi cação pronta.

Depois desse episódio, Matraga fi ca pensando em sua vida e resolve ir embora. Em um burro corta o sertão. Por acaso, volta a se encontrar com Joãozinho Bem-Bem e seu bando. Estão está prestes a matar a família do assassino de um de seus homens, mas como não encontram a quem queriam, resolvem matar as mulheres e as crianças.

Matraga se interpõe entre Joãozinho e a família.

– Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o

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desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa quem nem Deus não manda e nem o diabo não faz! (p. 382)

Diante do inevitável, Matraga mata os capangas de Bem-Bem, depois atraca-se com Joãozinho numa briga de facas. Ambos morrem no combate.

A cena é ao mesmo tempo épica e dramática, pelo que tem de heroico e de exemplar para os que assistem à cena.

E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão. (p. 384)

Ambos morrem na batalha, mas Matraga, já transformado, sabe morrer e reconhece o valor de seu oponente, a quem deseja apenas o bem, pelo respeito que lhe tem.

O título sugere que ninguém foge de seu destino, ideia presente em outros contos do livro. Matraga não morreu na emboscada posto que ainda precisava recuperar sua honra. Redimido, tem uma morte grandiosa, pública, que funciona como expiação de seus pecados. Augusto deixa de ser visto como o valentão, o pecador, o pródigo, para ser elevado à categoria de herói do sertão. É a sua hora, a sua vez, o seu destino.

Exercícios

1. (UEL-PR) Em 1937, João Guimarães Rosa participou de concurso de contos promovido pela Editora José Olympio. A obra entregue intitulava-se Contos. Coube-lhe o segundo lugar. Em dezembro do mesmo ano, o autor cuidou de encaderná-la, intitulando-a Sezão, conforme originais presentes no Arquivo Guimarães Rosa, do Instituto de Estudos Brasileiros. Em 1945, reviu-a e atribuiu-lhe o nome defi nitivo: Sagarana. Sabendo-se que “sezão” signifi ca “febre intermitente ou cíclica”, conclui-se que, em 1937, o nome da obra esteve diretamente vinculado ao seguinte conto:a) “A hora e a vez de Augusto Matraga”, pois o protagonista,

depois da surra que leva dos empregados do Major Consilva, é acometido pela malária.

b) “O burrinho pedrês”, posto que Sete-de-Ouros, depois da travessia do Córrego da Fome, foi acometido pela malária.

c) “Sarapalha”, visto que aí se depara o leitor com dois primos acometidos pela malária a ajustarem velhas contas.

d) “O burrinho pedrês”, porque Sete-de-Ouros vive numa fazenda na qual a malária acometeu os moradores.

e) “Sarapalha”, uma vez que aí se estabelece o diálogo de dois primos a rememorarem Luísa, morta em decorrência da malária.

2. (Fuvest) Ao dizer: “(...) promessa é questão de grande dívida de honra”, Olímpico junta, em urna só afi rmação, a obrigação religiosa e o dever de honra. A personagem de Sagarana que, em suas ações fi nais, opera uma junção semelhante é:A) Major Saulo, de O burrinho pedrês.B) Lalino, de Traços biográfi cos de Lalino Salãthiel ou A

volta do marido pródigo.

C) Primo Ribeiro, de Sarapalha.D) João Mangolô, de São Marcos.E) Augusto Matraga, de A hora e vez de Augusto Matraga.

3. (UEL-PR) O trabalho com a linguagem por meio da recriação de palavras e a descrição minuciosa da natureza, em especial da fauna e da fl ora, são uma constante na obra de João Guimarães Rosa. Esses elementos são recursos estéticos importantes que contribuem para integrar as personagens aos ambientes onde vivem, estabelecendo relações entre natureza e cultura. Em Sarapalha, conto inserido no livro Sagarana, de 1946, referências do mundo natural são usadas para representar o estado febril de Primo Argemiro.

Com base nessa afi rmação, assinale a alternativa em que a descrição da natureza mostra o efeito da maleita sobre a personagem Argemiro:A) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda,

denegrida e desmantelada; uma cerca de pedra seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão.”

B) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do colmado dos juncos, se estira o voo de uma garça, em direção à mata. Também, não pode olhar muito: fi cam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que doem e choram, por si sós, longo tempo.”

C) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam as muriçocas de volta para casa, e quando o carapana mais o mossorongo cinzento se recolhem, que ele aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata e asas de xadrez.”

D) “Estava olhando assim esquecido, para os olhos... olhos grandes escuros e meio de-quina, como os de uma suaçuapara... para a boquinha vermelha, como fl or de suinã...”

E) “O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha, desolha... Não entende. Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choramingando, chorando, quase uivando.”

4. (PUC-SP) O conto “Conversa de bois” integra a obra Sagarana, de João Guimarães Rosa. De seu enredo como um todo, pode afi rmar-se que:A) os animais justiceiros, puxando um carro, fazem uma

viagem que começa com o transporte de uma carga de rapadura e um defunto e termina com dois.

B) a viagem é tranquila e nenhum incidente ocorre ao longo da jornada, nem com os bois nem com os carreiros.

C) os bois conversam entre si e são compreendidos apenas por Tiãozinho, guia mirim dos animais e que se torna cúmplice do episódio fi nal da narrativa.

D) a presença do mítico-lendário se dá na fi gura da irara, “tão séria e moça e graciosa, que se fosse mulher só se chamaria Risoleta” e que acompanha a viagem, escondida, até à cidade.

E) a linguagem narrativa é objetiva e direta e, no limite, desprovida de poesia e de sensações sonoras e coloridas.

5. (Unemat-MG) Uma das atitudes na criação literária de Guimarães Rosa era incluir em seus contos peças da cultura popular ou criar ao seu molde. Leia as quadrinhas extraídas do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, do livro Sagarana (1969).

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1 - “Mariquinha é como a chuva:boa e p’ra quem quer bem!Ela vem sempre de graça,só não sei quando ela vem...” (p.321)2 - “O terreiro lá de casanão se varre com vassoura:Varre com ponta de sabre,bala de metralhadora...” (p.350)3 - “A roupa lá de casanão se lava com sabão:lava com ponta de sabree com bala de canhão...” (p.354)

Assinale a alternativa correta.a. Os versos não têm nenhuma relação com a história que

está sendo contada.b. O conto de Guimarães Rosa é narrado em forma de versos.c. Alguns versos servem apenas para demonstrar a valentia de

Augusto Matraga.d. As quadrinhas contribuem para caracterizar as

personagens da história de Matraga.e. Guimarães Rosa defi ne a matéria das quadrinhas

populares como único recurso de sua criação literária.

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Gil Vicente (1465-1523?) é tido como iniciador do teatro em Portugal. Embora se encenassem peças anteriormente à primeira obra de Vicente, isso em 1502, nada restou do teatro pré-vicentino. Inserido no contexto do Humanismo, deixou como legado uma obra que vai do religioso e sério ao profano e cômico. Escreveu autos, farsas, pastoris, mas seguindo a visão humanista de tratar não apenas de questões divinas ou em torno delas, como acontecera na produção literária medieval, mas também de questões humanas, de teor burguês, ao mesmo tempo que nobre.

Em Farsa de Inês Pereira, temos exatamente a história de uma moça que tem aspirações românticas (burguesa) de se casar por amor ou ao menos ter a liberdade de escolher com quem iria se casar, mas acaba se dando melhor com um casamento arranjado, tão comum na sociedade de base aristocrática e medieval.

A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523, ano da provável morte do dramaturgo e foi escrita em português, mas com presença do galego-português, uma mistura entre o espanhol e o português propriamente dito.

O Humanismo é marcado pela nomeação de Fernão Lopes na função de Guarda-Mor da Torre do Tombo (1418). Com isso, Lopes deveria registrar a História de Portugal e zelar pelos documentos do reino. Houve diversas mudanças no plano político-econômico, com as descobertas marítimas na passagem do século XV para o XVI, bem como a revalorização da cultura greco-romana, com novos ideais de beleza estética e de concepção fi losófi ca, entre os quais, maior importância à vida terrena, em detrimento da visão teocêntrica medieval.

É, pois, no fi m desse cenário de mudanças que Gil Vicente aparece para a literatura. Seu teatro não é clássico no sentido de obedecer aos preceitos defi nidos pelos gregos antigos, nem exclusivamente medieval, no sentido de obedecer aos preceitos eclesiásticos. É uma mescla, cujo sentido se amplia também para a mistura entre a comicidade e a seriedade com que trata os temas, assim como para a mistura entre o popular e o erudito.

Nesse sentido, Farsa de Inês Pereira revela a preocupação de Vicente em discutir questões humanas, especialmente como as escolhas, boas ou ruins, trazem consequências positivas ou negativas, mas são importantes para o processo de amadurecimento do indivíduo. Com isso, o dramaturgo faz uma análise do comportamento humano com base em valores mais temporais que propriamente em uma visão puramente religiosa.

A peça foi escrita para exemplifi car um ditado popular da época: Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube. Toda a trama gira em torno de Inês Pereira e seu desejo de se casar com alguém de quem ela goste de fato, que seja galante, inteligente, que saiba fazer rimas, saiba cantar.

INÊS: Porém, não hei-de casarSenão com homem avisadoAinda que pobre e pelado,Seja discreto em falar

Pelado signifi ca sem grandes posses, sem roupas boas; e avisado, que seja alguém que saiba falar de modo elegante e educado. Um homem com essas qualidades, naquele momento, só poderia ser um nobre, ainda que decadente, sem fortuna.

A peça se inicia com Inês lamentando sua sorte, pois queria

CAPÍTULO VII - Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente

ter uma vida com mais graça, mais aventura e não apenas fi car em casa limpando, lavando. É uma vida doméstica comum, do tipo burguesa, mas seu sonho mesmo era viver como uma dama da corte, sendo bajulada com versos a todo instante, vivendo em um mundo de fantasias e adornos. Trata-se, pois, de um contraponto entre a vida burguesa e a da nobreza.

INÊS: Coitada, assi hei-de estarEncerrada nesta casaComo panela sem asa,Que sempre está num lugar?E assi hão-de ser logradosDous dias amargurados,Que eu possa durar viva?E assim hei-de estar cativaEm poder de desfi ados?

A solução para isso é, com efeito, o casamento. Lianor Vaz, uma alcoviteira, propõe a Inês que se case com Pero Marquez, um homem simples, rude, burguês e que tinha dinheiro. Diz Lianor sobre o pretendente:

Eu vos trago um bom marido,Rico, honrado, conhecido.Diz que em camisa vos quer

Em camisa, isto é, que tem posses, por oposição ao pelado dos versos anteriores. Lianor traz uma carta de Marquez, em que faz formalmente o pedido. Inês, porém, não gosta dele, sobretudo pela maneira rude como ele lhe escreve.

INÊS:Des que nasci até agoraNão vi tal vilão com’este,Nem tanto fora de mão!

Vilão no sentido de morador de vila, no interior, e não em uma cidade grande ou mesmo na capital. Apesar da insistência de Lianor para que o aceite como marido, Inês prefere esperar, prefere ter a chance de escolher outro marido, de acordo com o que sonhava para si mesma. Se isso poderia hoje ser visto como algo positivo, pelo que tem de escolha individual, à época tal prática era condenável, sobretudo porque se deveria tomar o casamento como uma relação social, mais do que satisfação amorosa. O ideal, claro, era unir as duas possibilidades. Inês, porém, é descrita como leviana, ociosa, querendo viver para o prazer apenas.

Sob o ponto de vista pragmático, de se buscar um casamento mais satisfatório, Pero Marques seria mesmo a solução, mas não para Inês que preferia o regozijo sentimental, o prazer de uma vida a dois, a ascensão social, a despeito do conselho de Lianor:

Queres casar a prazerNo tempo d’agora, Inês?Antes casa, em que te pês,Que não é tempo d’escolher.

Por se tratar de uma farsa, a ideia é fazer rir, com o objetivo último de educar os espectadores, defender determinados

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valores. Depois de ler a carta e dispensar o pretendente, ele próprio aparece para ouvir dela a resposta. No entanto, como meio de mostrar sua simplicidade, fi ca em dúvida em como deve se sentar numa cadeira, uma vez que onde morava não se tinha o costume de utilizá-las:

MÃE: Tomai aquela cadeira.PÊRO: E que val aqui uma destas?INÊS: (Ó Jesu! que João das bestas!Olhai aquela canseira!)Assentou-se com as costas pera elas, e diz:PÊRO: Eu cuido que não estou bem...

Trazia presentes a ela, frutas, mas que se perderam no caminho, mostra-se ingênuo, imaginando que Inês era moça e totalmente disponível para o casamento. Ao fi nal da peça, porém, fi camos sabendo que ela já havia tido seus namoros ocasionais.

Mesmo ante a recusa de Inês, Pero Marques mostra-se disposto a se casar apenas com ela e afi rma:

PÊRO:Não vos anojarei mais,Ainda que saiba estalar;E prometo não casarAté que vós não queirais.

Em seguida, Inês recebe dois judeus, Ladão e Vital, ditos casamenteiros. São antes bajuladores e enganadores. É importante dizer que, ao longo dos tempos, os judeus foram alvo de todo tipo de preconceito, normalmente descritos de modo negativo. Gil Vicente participa dessa visão.

A função dos dois é, com base em um pagamento realizado por Inês, encontrar um pretendente a se casar com ela, segundo seu ideal de marido, ou seja, um homem tocador de viola, bem falante e de comportamento cortês.

Mais uma vez, para criar um efeito cômico, apresenta-os como atrapalhados, enrolados e simpáticos até certo ponto. O objetivo, porém, é o de criticar a prática, especialmente porque não cumpriram o que prometeram. Revelam-se ardilosos e bajuladores, apenas para conseguir o que desejam, no caso que Inês aceite o pretendente escolhido.

Ao contrário de Lianor, Ladão elogia o desejo de Inês por querer se casar não exatamente por arranjo e sim por querer sentir algo a mais pelo homem com quem irá se casar. É preciso, porém, olhar com ressalva, pois Inês não é propriamente uma mulher romântica. O que deseja é unir o útil ao agradável. Tanto melhor se o futuro marido for alguém de quem ela goste, mas o que importa também é a possibilidade de sair de uma vida medíocre e sem maiores perspectivas.

VIDAL: Vós amor, quereis maridodiscreto e de viola...LATÃO:Esta moça não é tola,que quer casar por sentido...

Discreto está diretamente ligado à ideia de nobreza, não propriamente ao conceito de pessoa reservada.

Os judeus relatam a difi culdade de se encontrar um noivo nessas condições, mas acabam por apresentar Brás da Mata,

um escudeiro que, embora revele ser nobre, é pobretão e vê no casamento uma solução para sua vida. Isso fi ca muito claro na conversa que tem com seu criado, a quem pede discrição e ajuda para que consiga se casar.

ESCUDEIRO:E se me vires mentirGabando-me de privado,Está tu dissimulado,Ou sai-te pera fora a rirIsto te aviso daqui,Faze-o por amor de mi.

O moço vê com desconfi ança, pois sabia que o escudeiro era pouco confi ável. Mesmo sem querer muito, acaba por auxiliá-lo e consegue uma viola para que o escudeiro impressione Inês.

ESCUDEIRO:Oh que boas vozes temEsta viola aqui!Leixa-me casar a mi,Depois eu te farei bem.

O escudeiro então se apresenta à Inês e faz um discurso elogioso à possível noiva, revelando-se de acordo com o que ela buscava.

ESCUDEIRO:Antes que mais diga agoraDeus vos salve, fresca rosa,E vos dê por minha esposa,Por mulher e por senhora;Que bem vejoNesse ar, nesse despejo,Mui graciosa donzela,Que vós sois, minha alma, aquelaQue eu busco e que desejo[...]ESCUDEIRO:Eu não tenho mais de meu,Somente ser compradorDo Marechal meu senhorE sou escudeiro seu.Sei bem lerE muito bem escreverE bom jogador de bola,E, quanto a tanger viola,Logo me ouvireis tanger

A mãe de Inês não vê o casamento com escudeiro de modo positivo, seja porque não gostou da fi gura, seja porque foi achado dos judeus. Ela representa, no caso, a voz da consciência a que Inês, como qualquer jovem, não ouve bem, posto que está fi xa em sua ideia.

MÃE:Agora vos digo euQue Inês está no Paraíso!INÊS:Que tendes de ver com isso?Todo o mal há-de ser meu.MÃE:

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Quanta doidice!

Inês Pereira, mesmo sem o apoio da sua mãe, acaba por se casar com Brás da Mata, a quem julgava ser o marido ideal e sonhado.

INÊS:Eu, aqui diante Deus,Inês Pereira, recebo a vós,Brás da Mata, sem demanda,Como a Santa Igreja manda.

Após a festa que se realiza, Inês se sente feliz casada com o escudeiro. Mas nesse momento, tem-se a segunda parte do ditado que serviu de base para a peça se realizar (Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube). O cavalo representa aqui o nobre, o elegante, o homem ideal, porém que se mostra pouco amoroso, pouco afeito ao modo de casamento com que Inês sonhara. Quando se vê sozinho com ela, Brás determina que Inês não cante mais, não saia de casa, nem para ir à Igreja, não fi que à janela para conversar, não receba ninguém em casa. Ele quer ter o controle total sobre ela.

ESCUDEIRO:Vós não haveis de falarCom homem nem mulher que seja;Nem somente ir à igrejaNão vos quero eu leixarJá vos preguei as janelas,Porque não vos ponhais nelas.Estareis aqui encerradaNesta casa, tão fechadaComo freira d’Odivelas.INÊS:Que pecado foi o meu?Porque me dais tal prisão?ESCUDEIRO:Vós buscastes discrição,Que culpa vos tenho eu?

É a desilusão para Inês, que não imaginava que seria tratada como prisioneira em sua própria casa. Brás resolve tornar-se cavaleiro e partir em luta contra os mouros, não sem antes pedir ao moço, seu criado que cuide de Inês, vigiando-a para que ela continue sem sair de casa.

Inês, então, lamenta novamente sua sorte. E diz que se pudesse escolheria agora um marido diferente, um homem submisso que lhe permitisse fazer o que bem desejasse.

Não demora muito para que receba notícia vinda de seu irmão que Brás havia sido morto por um mouro. O que poderia ser visto com tristeza e desapontamento pela agora viúva, torna-se, ao contrário, motivo de alegria pelo que isso representaria sua liberdade.

MOÇO: Oh que triste despedida!INÊS: Mas que nova tão suave!Desatado é o nó.Se eu por ele ponho dó,

Nesse momento, Lianor Vaz aparece para consolar a viúva, que se mostra dissimulada, fi ngindo chorar pela morte do

marido. Lianor aproveita e sugere a Inês que se case com o pretendente anterior, Pero Marques, que herdara um bom dinheiro e propriedades. Inês vê então a chance de consertar o erro do primeiro casamento e busca, pois, em Pero o “asno que me carregue”.

INÊS: Andar! Pêro Marques seja.Quero tomar por esposoQuem se tenha por ditosoDe cada vez que me veja.Por usar de siso mero,Asno que me leve quero,E não cavalo folão.

E assim faz. Inês agora se vê livre para ir e vir, para cantar, para se divertir e mesmo para reencontrar um antigo pretendente. Isso ocorre no fi nal da peça, quando Inês está realizando seu intento de sair de casa, de não se deixar prender pelo marido como fi zera no caso de Brás.

Encontra um ermitão, que lhe pede esmola. Era antes um homem que a desejara quando eram mais jovens. Fala a Inês em espanhol, mas ela não demora a reconhecê-lo e combina de ir até sua ermida para levar a esmola.

INÊS: Jesu, Jesu! manas minhas! Sois vós aquele que um dia Em casa de minha tia Me mandastes camarinhas, E quando aprendia a lavrar Mandáveis-me tanta cousinha? Eu era ainda Inesinha, Não vos queria falar.

O adultério se confi gura, não sem antes Inês exercer o papel de dominadora sobre o marido, que aceita passivamente tudo o que ela lhe diz.

INÊS:Olhai cá, marido amigo, Eu tenho por devoção Dar esmola a um ermitão. E não vades vós comigo PÊRO: I-vos embora, mulher Não tenho lá que fazer

O falso ermitão cumpre a função na peça de mostrar quais os verdadeiros interesses de Inês no novo casamento: não querer se prender por um marido, mas tendo a segurança do casamento. Além disso, serve para comprovar a primeira parte do ditado, a de preferir um asno que a carregue. Por fi m, mesmo sendo um falso religioso, serve a Gil Vicente para tecer suas críticas à corrupção da Igreja, cujos membros, muitas vezes, se utilizam de seu poder para conseguir algum benefício ou favor, fosse de ordem sexual, fosse de ordem econômica.

No início da peça, Lianor, quando aparece pela primeira vez, em conversa com a mãe de Inês revela que fora assediada por um padre e que tivera muito trabalho para se livrar. A própria mãe de Inês disse que um dia passara por situação semelhante.

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LIANOR:Tamanho? Eu to direi: Vinha agora pereli Ó redor da minha vinha, E hum clérigo, mana minha, Pardeos, lançou mão de mi; Não me podia valer Diz que havia de saber S’era eu fêmea, se macho.

[...]

MÃE: Assi me fez dessa guisa Outro, no tempo da poda. Eu cuidei que era jogo, E ele... dai-o vós ao fogo! Tomou-me tamanho riso, Riso em todo meu siso, E ele leixou-me logo.

Em conclusão, Gil Vicente atingiu seu objetivo com a peça, que era o de mostrar que as mudanças de seu tempo levaram à perda de alguns valores por ele considerados fundamentais, pela adoção de práticas fúteis e imorais, como o engodo, o desejo de ascensão social sem base efetiva, a ociosidade ou parasitismo social. Nesta obra, outras questões também discutidas pelo Humanismo, como o livre-arbítrio (nos confl itos e decisões de Inês) e a crítica religiosa (na fi gura do ermitão, um falso religioso), mostram-se na verve literária de Gil Vicente.

Suas peças não apresentam o aprofundamento psicológico de um Shakespeare, mas certamente conseguiram espelhar uma sociedade portuguesa em transformação, para o bem ou para o mal

Exercícios

1. (Unifesp) Para responder à questão, leia os versos seguintes, da famosa Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente:

Andar! Pero Marques seja!Quero tomar por esposoquem se tenha por ditosode cada vez que me veja.Meu desejo eu retempero:asno que me leve quero,não cavalo valentão:antes lebre que leão,antes lavrador que Nero.

Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afi rmar que é um texto de natureza:A) satírica, pertencente ao Humanismo português, em que se

ridiculariza a ascensão social de Inês Pereira por meio de um casamento de conveniências.

B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês Pereira.

C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas vividas por Inês Pereira.

D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.

E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente materialistas.

2. (PUC-SP) O argumento da peça Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, consiste na demonstração do refrão popular “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”. Identifi que a alternativa que não corresponde ao provérbio, na construção da farsa:(A) A segunda parte do provérbio ilustra a experiência

desastrosa do primeiro casamento.(B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo, animal

nobre, que a derruba.(C) Cavalo e asno identifi cam a mesma personagem em

diferentes momentos de sua vida conjugal.(D) O segundo casamento exemplifi ca o primeiro termo, asno

que a carrega.(E) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente

e segundo marido de Inês.

3. (Unicamp-SP) Leia as seguintes estrofes, que se encontram em passagens diversas da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente:

Inês:Andar! Pero Marques seja!Quero tomar por esposoquem se tenha por ditosode cada vez que me veja.Por usar de siso mero,asno que leve quero,e não cavalo folão;antes lebre que leão,antes lavrador que Nero.Pero:I onde quiserdes irvinde quando quiserdes vir,estai quando quiserdes estar.Com que podeis vós folgarque eu não deva consentir?(nota: folão, no caso, signifi ca “bravo”, “fogoso”.)

a) A fala de Inês ocorre no momento em que aceita casar-se com Pero Marques, após o malogrado matrimônio com o escudeiro. Há um trecho nessa fala que se relaciona literalmente com o fi nal da peça. Que trecho é esse? Qual é o pormenor da cena fi nal da peça que ele está antecipando?

b) A fala de Pero, dirigida a Inês, revela uma atitude contrária a uma característica atribuída ao seu primeiro marido. Qual é essa característica?

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c) Considerando o desfecho dos dois casamentos de Inês, explique por que essa peça de Gil Vicente pode ser considerada uma sátira moral.

4. (Fuvest-SP-modifi cado) Em Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente:a) retoma a análise do amor do velho apaixonado,

desenvolvida em O velho da horta.b) mostra a humilhação da jovem que não pode escolher seu

marido, tema de várias peças desse autor.c) tematiza a revolta da jovem confi nada aos serviços

domésticos, e que vê no casamento solução para a vida que levava.

d) conta a história de uma jovem que assassina o marido para se livrar dos maus-tratos.

e) aponta, quando Lianor narra as ações do clérigo, uma solução religiosa para a decadência moral de seu tempo.

5. (UFSC) Marque a alternativa incorreta a respeito do Humanismo:a) época de transição entre a idade Média e o Renascimento.b) o teocentrismo cede lugar ao antropocentrismo.c) Fernão Lopes é o grande cronista da época.d) Garcia de Resende coletou as poesias da época, publicadas

em 1516 com o nome de Cancioneiro Geral.e) a Farsa de Inês Pereira é a obra de Gil Vicente cujo

assunto é religioso, desprovido de critica social.

6. (UM-SP) Leia as três afi rmações abaixo a respeito da Farsa de Inês Pereira.

I- Pode ser colocada como representante do teatro de costumes vicentino.

II- Encaixa-se na tradição da farsa medieval sobre o adultério feminino desenvolvida por Gil Vicente.

III- Inês Pereira é uma moça que vive na vila e pretende subir de condição.a) Todas estão corretas.b) Todas estão incorretas.c) Apenas a I e a II estão corretas.d) Apenas a I e a III estão corretas.e) Apenas a II e a III estão corretas.

7. (UEL-PR) Em Farsa de Inês Pereira (1523), Gil Vicente

apresenta uma donzela casadoura que se lamenta das canseiras do trabalho doméstico e imagina casar-se com um homem discreto e elegante. O trecho a seguir é a fala de Latão, um dos judeus que foi em busca do marido ideal para Inês, dirigindo-se a ela:

“Foi a coisa de maneira,tal friúra e tal canseira,que trago as tripas maçadas;assim me fadem boas fadasque me soltou caganeira...para vossa mercê vero que nos encomendou.”

friúra: frieza, estado de quem está friomaçadas: surradasfadem: predizem

(VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 95.)

Sobre o trecho, é correto afi rmar:a) Privilegia a visão racionalista da realidade por Gil

Vicente, empregada pelo autor para atender as necessidades do homem do Classicismo.

b) É escrito com perfeição formal e clareza de raciocínio, pelas quais Gil Vicente é considerado um mestre renascentista.

c) Retrata uma cena grotesca em que se notam traços da cultura popular, o que não invalida a inclusão de Gil Vicente entre os autores do Humanismo.

d) Sua linguagem é característica de um período já marcado pelo Renascimento, o que se evidencia pela referência de Gil Vicente a fi guras mitológicas clássicas, como as “boas fadas”.

e) Revela em Gil Vicente uma visão positiva do homem de fé que se liberta da doença pelo recurso à divindade.

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Observe estes versos:

Um trem de ferro é uma coisa mecânica,mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,atravessou minha vida,virou só sentimento.

(“Explicação de poesia sem ninguém pedir”)

Bagagem é o primeiro livro de Adélia Prado, que o publicou com quase quarenta anos, em 1976. São 113 poemas, divididos em cinco partes não iguais. Quais sejam:

“O modo poético” – com 66 poemas“Um jeito e amor” – com 19 poemas“A sarça ardente I” – com 14 poemas“A sarça ardente II – com 13 poemas“Alfândega” – com um poema apenas

Sua poesia é marcada pelos seguintes temas:a) própria poesiab) famíliac) religiãod) memória individual e coletivae) vida domésticaf) amorg) visão da mulher sem cair num feminismo radical

O título do livro é bastante sugestivo: bagagem, o que se leva em uma viagem, no caso a viagem da vida, tudo o que se trouxe até então e o que se levará daí em diante. O poema de abertura, “Com licença poética”, sugere a trajetória do papel da mulher na sociedade, bem como a expressão do que se pode ter e exercer pela poesia. Trata-se de um dos poemas mais signifi cativos do livro, pelos motivos expostos e também por ser uma clara referência intertextual com o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Em seu poema, Drummond diz:

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.[...]

E Adélia:

Quando nasci um anjo esbeltodesses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.[...]

Observe como há uma oposição entre termos: torto/esbelto; sombra/trombeta; gauche/bandeira. Se no poema de Drummond há uma constatação de que a vida não é harmoniosa, de que o eu poemático está em confl ito com o mundo, no poema de Adélia há um anúncio de que, se a vida pode não ser perfeita, que confl itos podem ocorrer, o eu poemático irá lutar, irá defender bandeiras a despeito das difi culdades do ser mulher. E fará isso pela palavra, cujo uso é o dom de todo poeta: “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina”.

Há diversos outros poemas no livro, especialmente na

CAPÍTULO VIII - Bagagem, de Adélia Pradoprimeira parte, “O modo poético”, em que Adélia Prado trata a respeito do papel da poesia e do poeta na sociedade e pelo menos mais dois dedicados a Carlos Drummond (“Agora, Ó José”, “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”.

Há também uma consonância entre a palavra poética e a religiosidade, outra constante na literatura da autora. Isso porque a linguagem é criadora, é pela palavra que Deus criou o mundo (E Deus disse...) e é pela linguagem que o poeta cria seu mundo, espelha o mundo em que vive. Em “Antes do nome” essa relação é clara.

Quem entender a linguagem entende Deuscujo Filho é Verbo. (p. 20)

Outro escritor a que Adélia Prado faz referência constante é Guimarães Rosa, conhecido por usar da palavra de modo muito criativo. Em “Poema com absorvências no totalmente perplexas de Guimarães Rosa”, escreve ao modo de Rosa, com seu regionalismo, com o uso de neologismos, tratando da dúvida, uma marca de Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas.

Pra a reta eu alimpar com o meu brabo cavalo.Ara! que eu não nasci pra permanência desta duvidação (p.

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A escrita em Adélia assume um papel claro: escreve-se para criar, para refl etir sobre as dúvidas, escreve-se para perpetuar, para resgatar a memória (bagagem). Escreve-se para ser. Há um conceito recorrente de que a escritura, a literatura é uma morta-viva. Morta porque é apenas palavra impressa, e viva pois a leitura recupera a palavra impressa, atualiza os signifi cados, atualiza o que o escritor quis expressar. E para Adélia, isso vale ainda mais, posto que para a autora a literatura estabelece um grande diálogo interno, entre ela própria, e com o sagrado, com a criação divina. Em “A invenção de um modo”, isso é muito explícito, sobretudo nos versos fi nais, em que diz:

Porque tudo que invento já foi ditonos dois livros que eu li:as escrituras de Deus,as escrituras de João.Tudo é Bíblia. Tudo é Grande Sertão. (p. 25)

O João é o Guimarães Rosa. Em outros termos, há na literatura e na Bíblia o papel criador do mundo pela palavra. O que um novo escritor faz é tão somente recuperar esse passado, essa bagagem, e dar sua visão, sua versão, é perpetuar o passado essencial. A poesia é assim meio de salvação, não com o mesmo sentido religioso de salvação dos pecados, e sim como meio de conferir sentido à vida e de criar a vida.

A poesia me salvaráFalo constrangida, porque só JesusCristo é o Salvador, conforme escreveuum homem – sem coação alguma. (“Guia”, p. 63)

É o que se observa igualmente em “O que a musa eterna canta” (referência a Luís de Camões), “Explicação de poesia sem ninguém pedir”, “Sedução”, “Anunciação ao poeta”. Em “Reza para as quatro almas de Fernando Pessoa”, verifi ca-se

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a mesma ideia criadora da palavra, criadora de novos mundos, de novos seres, ao ponto de fazer crer que aquilo que não existe tem existência própria. É o caso específi co de Fernando Pessoa, criador de heterônimos, cada qual com uma personalidade própria, uma biografi a, um estilo literário. Por esse motivo, as quatro almas de que fala o título, a do próprio Pessoa e as Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, os heterônimos mais conhecidos do poeta português.

Pai nosso, criador da noite, do sonho,do meu poder sobre os bois,eis-me, eis-me. (p. 52)

O último poema da primeira parte, “O modo poético”, tem o mesmo título e deixa bastante explícito esses pontos de que estamos tratando na poesia de Adélia Prado.

Que a fonte da vida é Deus,há infi nitas maneiras de entender. (p. 80)

Pode-se mesmo dizer que a memória expressa pela poesia é meio de chegar ao sagrado e de recuperar aquilo que é importante no cotidiano, como a família. É o caso de poemas como “Orfandade” ou “Poema esquisito”, escritos ao modo de uma oração, assim como outros tantos do livro (“Um salmo” ou “Um homem doente faz a oração da manhã”, por exemplo).

Mãe, ó mãe, ó pai, meu pai. Onde estão escondidos?É dentro de mim que eles estão. (p. 19)

A poesia, pelo que tem de linguagem, pelo que tem de criação, é como pedaços de semente sagrada que acabam por fertilizar aquilo que se diz: o corpo, a família, os elementos da natureza, a vida enfi m. Como afi rma em “Tarja”, em que primeiro fala da oração que se deve fazer aos que já morreram, para concluir com um verso simbólico e sintético de sua poesia como um todo:

“A poesia, a mais ínfi ma, é serva da esperança.” (p. 54)

A poesia faz, pois, o resgate do cotidiano, sacralizando-o. É o que se verifi ca em outro poema que trata de mortos, presentes na memória do eu lírico: “Uma forma para mim”. Ou em “Bendito”, cujo foco é a crença na esperança de um mundo melhor, ainda que seja no além. Ou “Tabaréu” em que a poesia, que se encontra nas coisas, se revela no discurso de quem a escolheu, de quem busca expressar-se por meio dela. Ou ainda “Exausto”:

Quero o que antes da vidaFoi o profundo sono das espécies,A graça de um estado.Semente.Muito mais que raízes. (p. 26)

A comunhão entre poesia e o sagrado tem um caráter de salvação, mas também de (re)signifi cação. A mulher, relegada a segundo plano na História, encontra na palavra (poética, criadora) novas possibilidades, cria um novo diálogo com o sagrado e é elevada de sua condição inferiorizada historicamente.

Quando Ele dá fé, já estou no colo d’Ele,

pego Sua barba branca,Ele joga pra mim a bola do mundo,eu jogo pra Ele. (“Duas maneiras”, p. 72)

Mas não se trata apenas de uma comunhão com o sagrado assistemático. Há em Adélia uma relação próxima com as instituições, locais de encontro e de troca de experiências, particularmente na Igreja Católica. Em “Sítio”, onde se lê:

Igreja é o melhor lugar.Lá o gado de Deus para pra beber água,[...]É minha raça, estouem casa como no meu quarto. (p. 76)

O poeta é aquele que, mesmo passando por momentos de dor, de tristeza, deve ser a voz da essência, deve ser a voz da esperança, o que cantará as coisas belas do mundo.

Muito maior que a morte é a vida.Um poeta sem orgulho é um homem de dores,Muito mais é de alegrias. (p. 79)

Ou:

[...] A vida é mais tempoAlegre do que triste. Melhor é ser. (p. 46)

Nesse sentido, cabe ao poeta, pelo que domina a palavra, destacar a essência das coisas, descortinar o sagrado na vida prosaica, para conferir aquilo que é permanente, constate. Para ver nelas, a verdade.

Outra constante temática do livro é a família, que representa um pouco de tudo o que já foi anunciado anteriormente: são as origens (o passado), a essência, a comunhão com o sagrado, a formação do ser.

A referência aos membros da família, notadamente pai, mãe e irmã, ocorre em pelo menos oito poemas da primeira parte, para ser uma constante nas outras três seguintes: Um jeito e amor; Sarça ardente I e II.

Tal característica se coaduna com o fato de Adélia dar grande importância à vida doméstica, às relações do dia a dia, uma vez que se constituem na raiz de que precisa para ir além.

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,sou é mulher do povo, mãe de fi lhos, Adélia.Faço comida e como. (“Grande desejo”, p. 10)

A vida doméstica, a vida em família, com suas dores, tristezas, alegrias e crescimento é tematizada em diversos outros poemas, como: “Círculo”, “Resumo”, “Orfandade”, “Leitura”, “Pistas”, “Vigília”, “Clareira”, em que a vida simples, da visita das comadres, das fofocas sem maldade, das brincadeiras, é valorizada, tem tanta importância como qualquer discussão sobre metafísica, sobre a essência das coisas.

Em “Impressionista”, por exemplo, dá-se grande importância à cor, como de resto em diversos outros poemas, como “Louvação para uma cor”, “Roxo”, “Anímico” e “Um sonho”. Isso porque poesia não se escreve apenas com palavras (sonoro), a ideia é explorar os outros sentidos (olfato, paladar, visual) pelas referências às comidas, às cores, que estimulam a memória, a lembrança.

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O meu cabelo limpo refl etia vermelhos,O meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,O meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavamDo contato da seda. [...] (“Um sonho”, p. 75)

O universo feminino também é tema de sua poesia. Mas como já se disse, não como um feminismo radical, que considera a vida apenas a partir da perspectiva da mulher, mas sim o que busca uma comunhão, um encontro com o outro; e também como o que percebe na mulher um mundo rico e simbólico, muitas vezes impossível de ser apreendido em toda a sua dimensão.

Vendo que eu não mentia ele falou:as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.Eu sou singelo. Fica singela também.[...]Como nenhum de nós podia ir mais além,solucei alto e fui chorando, chorando,até fi cas singela e dormir de novo. (p. 15)

Adélia vê na mulher um novo papel, o da não submissão, o da construção de si mesma, a despeito das difi culdades, do machismo ainda imperante (estávamos nos anos 1970).

Outra temática, que se coaduna com a vida doméstica, a vida em família, é a percepção de uma paisagem ainda bucólica, das cidades pequenas em contraste com a vida urbana em um grande centro. Trata-se de uma nostalgia positiva, posto que recupera o que se foi e o que se é, independente do local onde se vive. Poemas como “Bucólica nostálgica”, “Para comer depois” e “Metamorfose” exploram a ideia.

Na minha cidade, nos domingos de tarde,As pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta.[...]Daqui a muito progresso tecno-ilógico,Quando for impossível detectar o domingo. (“Para comer

depois, p. 43)

Em “Um jeito e amor”, os poemas tratam basicamente do tema anunciado: o amor em todas as suas nuances, embora particularmente seja o amor paixão, o amor que tanto causa alegria, quanto desperta sentimentos ruins, tristes, pela falta dele ou por incompreensão. É também o amor virtual, possível, o sentimento aprendido, curtido, curado e superado.

“Amor violeta”, por exemplo, trata sobre as feridas curadas, embora não totalmente cicatrizadas.

[...] Macero ele,Faço dele cataplasmaE ponho sobre a ferida. (p. 83)

Ou “Serenata”, em que a mulher está sempre à espera. Mesmo gritando contra aquilo que lhe faz mal, aceita sua condição de amante nem sempre satisfeita.

“Uma vez visto” retoma a lenda do fl autista de Hamelin, aquele que teria encantado ratos com sua fl auta, mas no caso o encantamento é da mulher por um homem possível, ou seja, haveria alguém capaz de causar tal encantamento ao ponto de fazer uma mulher segui-lo?

Apesar das tristezas que o amor possa causar, a satisfação, a

alegria que proporciona acabam sendo compensadores, por isso é um sentimento que se realiza sempre, independente de qualquer frustração, mesmo porque

Amor é a coisa mais alegreAmor é a coisa mais tristeAmor é a coisa que mais quero (p. 86)

Visão parecida se encontra em “Psicórdica”.O amor pode ser apenas uma paixão, uma sensação corpórea,

que faz bem como em “Os lugares comuns”;

[...] Seu nome é:Salvador do meu corpo. (p. 89)

Mas a poetisa não se esquece de outro tipo de amor, o amor às fontes, aos poetas que, de um modo ou de outro, colaboraram para sua formação, como em “Bilhete em papel rosa”, dedicado a Castro Alves. Interessante que se declara ao poeta romântico, mas empresa versos de um poeta simbolista, Alphonsus de Guimaraens.

Quantas loucuras fi z por teu amor, Antônio.Vê estas olheiras dramáticas,este poema roubado:“o cinamomo fl oresceEm frente do teu postigo.Cada fl or murcha que desce,Morro de sonhar contigo.” (p. 92)

E ao modo de outros poemas, “Medievo”, “A serenata”, a janela (postigo) permite o contato seguro entre os apaixonados, bem como proporciona a entrada nos aposentos, bem como no coração da amante.

Adélia aborda ainda o papel da mulher no amor, de submissa à provocadora, a que toma atitude e assusta o homem, pouco afeito, criado para ser o condutor das relações. Como em “Fatal” ou em “Um jeito”, no qual a mulher, quando acha que deve, quando tem desejo, clama por alguém. É uma mulher liberada, em busca da satisfação do próprio desejo, o que causa estranheza a um tipo de homem mais tradicional:

Meu amor é assim, sem nenhum pudor.Quando aperta eu grito da janela[...]Por hora dou é grito e susto.Pouca gente gosta. (p. 94)

Assim, todas as faces do amor, sob perspectiva feminina, são abordadas. Da mulher romântica (“Para cantar com o saltério”) ou à mulher pragmática de “Amor feinho”, em que se sabe ser o amor uma ilusão e que é preciso aproveitar-se dele enquanto possível, enquanto se quer.

Amor feinho não tem ilusão,o que ele tem é esperança:eu quero amor feinho. (p. 97)

A iniciativa da mulher pode se revelar na luta contra as desilusões de uma mulher traída, que expõe a todos seus sentimentos, que briga literalmente e depois tenta se reconstruir, como em “Briga no beco”.

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Encontrei meu marido às três horas da tardecom uma loura oxigenada.[...]Ataquei-os por trás com mão e palavrasque nunca suspeitei conhecer. (p. 99)

A parte seguinte, “Sarça ardente”, divide-se em duas. Na primeira, os poemas retomam a vida doméstica, a vida em família; na segunda, trata dos mortos, vivos ainda na memória tal e qual o princípio da sarça ardente. Para se ter uma visão mais precisa, reproduzimos trecho de Êxodo 3, 2-4:

2 O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama (que saía) do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia. 3 “Vou me aproximar, disse ele consigo, para contemplar esse extraordinário espetáculo, e saber por que a sarça não se consome.” 4 Vendo o Senhor que ele se aproximou para ver, chamou-o do meio da sarça: “Moisés, Moisés!” “Eis-me aqui!” respondeu ele.

A sarça arder e não se consumir tem um signifi cado interessante. Simboliza o poder não destruidor do fogo espiritual, bem como a Virgem Maria, que era mulher, gerou um fi lho, mas manteve-se inviolada, manteve-se pura e virgem. No caso dos poemas, a ideia é mostrar como o passado, de alegria, de tristeza, de nascimento, de morte, de amor, de decepções, permanece presente, arde, mas não se consome. E cabe ao poeta, pela palavra, manter isso vivo, conferir signifi cado onde se vê apenas uma sarça. Mas a vida está nela, a origem da vida pode estar nela, ou na esteira dos poemas, naquilo que fez parte da vida em algum momento. “Epifania”, que signifi ca revelação, vai bem ao encontro dessa visão:

Um destas coisas vai acontecer:um cachorro late,um menino chora ou grita,ou alguém chama do interior da casa:‘o café está pronto’.Aí, então, o gerúndio se recolhee você recomeça a existir. (p. 106)

O passado signifi cativo se encontra nos demais poemas: “Chorinho doce”, lembrança de uma casa que agora pertence a outra pessoa; “O vestido”, em que a peça do vestuário guarda lembranças diversas; “A cantiga”, que serve como ponto de referência para se lembrar do pai, da mãe, da vida em família; “Dona doida”, em que a chuva se presta à lembrança da mãe, ao ponto de o eu lírico se deslocar no tempo e viver o passado como se fosse presente de fato; “Verossímil”, lembrança dos tempos de menina em que o eu lírico se vestia de anjo para a coroação de Nossa Senhora; “A menina do olfato delicado”, igualmente lembrança da vida familiar, bem como “A fl or do campo” e “Registro”.

Por fi m “Ensinamento”, um dos poemas mais conhecido de Adélia Prado, em que trata das obrigações domésticas, familiares, em que se manifesta o a amor mútuo, sem que se torne explícito, sem que seja efetivamente falado.

Minha mãe achava estudoa coisa mais fi na do mundo.Não é.A coisa mais fi na do mundo é o sentimento. (p. 118)

Na parte II da “Sarça ardente”, os poemas tratam da morte, da morte que ainda está viva, ardendo, consumindo-se sem nunca acabar na memória de quem fi ca. Como ilustração, podemos destacar o poema “Para perpétua memória”, em que o eu lírico relembra de alguém, que pode ser o pai, a mãe ou qualquer outra pessoa querida:

Depois de morrer, ressuscitoue me apareceu em sonhos muitas vezes.[...]a alegria é tristeza,é o que mais punge. (p. 133)

Ou “As mortes sucessivas”, em que fala da morte da irmã, depois da mãe e fi nalmente da morte do pai.

Quem me consolará desta lembrança?Meus seios se cumprirame as moitas onde existosão pura sarça ardente de memória. (p. 134)

A última parte, “Alfândega”, tem apenas um poema, homônimo; é como se fi zesse uma espécie de testamento do que leva da vida, do que aprendeu até ali, e pedisse passagem, permissão à alfândega da vida para prosseguir, para continuar e levar sua bagagem adiante, juntando mais coisas, mais experiências para aumentar ainda mais tal bagagem.

Para fi nalizar, é preciso ainda destacar que a arte poética de Adélia Prado é livre, na maior parte das vezes os versos são brancos, em extensão diferenciada, de acordo com a necessidade temática ou rítmica do poema. É a lição aprendida de Drummond e dos modernistas. É a lição aprendida por uma grande poetisa, cuja sarça certamente vai continuar ardendo sem se consumir.

Exercícios

1. (Unioeste-PR) Assinale a(s) alternativa(s) procedente(s) com relação à(s) temática(s) abordada(s) por Adélia Prado em Bagagem. (01) A importância dada aos temas religiosos e a prática

simultânea de todas as religiões encontra, em diferentes igrejas, enquanto instituições, a força redentora da humanidade.

(02) A religião é uma constante em seus poemas, caracterizando-se como recuperação salvística do sagrado em contraste com as formas institucionalizadas.

(04) Os poemas de Adélia Prado, típicos da pós-modernidade, caracterizam-se pela anulação e morte do sujeito.

(08) A memória tem o poder de recuperar a imagem perdida, construída e fi xada através da linguagem poética.

(16) É notório o diálogo de Adélia Prado com a tradição poética, através de alusões a poetas como Castro Alves e Carlos Drummond de Andrade.

Soma:

2. (Unioeste-PR) Tendo em vista a diversidade temática do livro Bagagem, de Adélia Prado, assinale a(s) alternativa(s) procedente(s).

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(01) Referências à Bíblia e aos rituais católicos, marcantes na poética de Adélia Prado, revelam um eu lírico que atribui à fé e à prática religiosa um valor fundamental.

(02) Em Bagagem, são constantes os temas radicalmente feministas e a negação dos traços culturais que atrelam a mulher ao cotidiano doméstico.

(04) A negação dos prazeres do corpo, relacionados à ideia de pecado e de negação da fé, é uma das temáticas marcantes de Bagagem.

(08) Adélia Prado, ao se fi liar à arcaica erudição literária, renega a cultura oral e os temas cotidianos que, a partir da Semana de Arte Moderna, se integraram à Literatura brasileira.

(16) A saudade dos pais, a nostalgia de uma forma singela de vida e a consciência da passagem do tempo são temáticas recorrentes em Bagagem.

(32) A linguagem provinciana, o erotismo banalizado, a descrença no ser humano e o engajamento político são temáticas recorrentes em Bagagem.

(64) A ruptura com o universo doméstico e o engajamento com as causas feministas fazem da poética de Adélia Prado o protótipo da perspectiva feminina do fi nal do século XX.

Soma:

3. (UEM-PR) Leia os textos a seguir e assinale o que for correto.

Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: vai Carlos! Ser gauche* na vida.

(Carlos Drummond de Andrade. In: Alguma poesia, 1964)

*Gauche: palavra de origem francesa que corresponde a “esquerda” em nosso idioma. Em sentido fi gurado, o termo pode signifi car “acanhado”, “inepto”, “desajustado”.

Quando nasci, um anjo esbelto Desses que tocam trombeta, anunciou: Vai carregar bandeira. Carga muito pesada pra mulher Esta espécie ainda envergonhada. (...) Vai ser cocho na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. (Adélia Prado. In: Bagagem, 1986)

Quando nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu estava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fi m. (Chico Buarque. In: Letra e música, 1989)

01) Pode-se afi rmar que o processo pelo qual a poesia se alimenta de temas já explorados em outros textos, procurando estabelecer um diálogo entre diferentes visões de mundo, é denominado “intertextualidade”. Há, nesse processo, sempre um texto original que funciona como ponto de partida para a elaboração do que se poderia chamar de textos-produto ou intertextos. É o que acontece nos poemas cujos fragmentos

reproduzimos acima: a temática abordada no texto original de Drummond é desdobrada nos textos de Adélia Prado e de Chico Buarque.

02) Os textos derivados dos originais podem resultar em simples imitação, ou, por outro lado, podem pretender a paródia, a polêmica, chegando a propor uma reavaliação do tema em questão a partir de um novo ponto de vista, seja ele histórico, ideológico ou estético. Em relação aos intertextos construídos a partir do poema de Drummond, dos quais destacamos os fragmentos acima, pode-se afi rmar que foram construídos por reiteração de ideias, ou seja, as ideias que constituem o poema original foram confi rmadas e/ou repetidas nos poemas que dele derivam.

04) Apesar de a intertextualidade consistir em um recurso estético, de certo modo, bastante usado pelos poetas contemporâneos, a crítica, em geral, costuma reagir negativamente frente a esse tipo de produção literária. O principal argumento é que a mesma soa como falta de criatividade, incapacidade de o artista engendrar o novo, o original, o inusitado.

08) O fragmento do poema de Chico Buarque dialoga com o poema de Drummond na medida em que reitera a ideia básica do mesmo. Ambos põem em cena um eu-lírico gauche, marcando seu desencontro, ou sua incompatibilidade, com o mundo. Esse “eu” deslocado vê o mundo por meio de uma perspectiva particular, diferente do modo como as pessoas comuns o veem. O resultado é um tom que se não é de todo relacionado ao tom dos perdedores, beira o pessimismo, a tristeza, a desilusão, próprio de quem lamenta a incapacidade de se ajustar ao mundo.

16) O fragmento do poema de Drummond foi retirado do conhecido “Poema de sete faces”, composto de sete estrofes, aparentemente desconexas entre si, que parecem apenas retratar fl ashes da realidade, mas que acabam por compor o perfi l desajustado do poeta em relação ao mundo. Trata-se de um texto bastante característico da vasta produção literária desse grande poeta brasileiro, cujos temas abordados são igualmente vastos. Vão desde o “desajustamento do indivíduo com o mundo” (caso do poema em questão), passando pelo tema da “infância”, da “monotonia”, da “nostalgia do passado”, da “participação social e política”, entre outros, até chegar ao tema da “própria poesia”.

32) O fragmento do poema de Adélia Prado dialoga com o poema de Drummond na medida em que contesta a ideia básica do mesmo: a de o eu lírico estar à margem da vida, ser um indivíduo deslocado, desajustado, condenado a viver de forma “torta”, assim como o anjo que lhe assiste o nascimento. Ao invés disso, a poetisa, trazendo à tona a problemática sociocultural da mulher, põe em cena um eu lírico que não pode se dar ao luxo de aceitar os desígnios do “destino” de marginalizado. Tem que “carregar bandeira”, ou seja, reivindicar e lutar por um modo de estar no mundo que lhe seja mais favorável.

Soma:

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Há uma linha de preocupação, no cenário internacional, por maior integração dos países falantes da língua portuguesa. Isso pode ser verifi cado na tentativa de unifi car a grafi a da língua portuguesa por meio do Acordo Ortográfi co, e também por uma popularização de escritores de países africanos falantes do português. É o que tem ocorrido com o moçambicano Mia Couto, cuja obra O outro pé da sereia foi selecionada como leitura obrigatória para o vestibular da UEL (PR) e de outras importantes universidades, e agora com o angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ou simplesmente Pepetela. Autor de diversos livros, publicados desde a década de 1970, tem discutido a Angola ainda colônia de Portugal, a Angola da guerra civil e a Angola da atualidade, em que se tenta a reconstrução e a afi rmação da nacionalidade, das características locais, sem o nacionalismo exacerbado comum em países pós-colonizados.

No caso, o romance selecionado como leitura obrigatória é O Planalto e a Estepe, e segue uma linha de internacionalização dos temas em sua obra. Isso porque tem como argumento principal o namoro entre um angolano branco e uma mongol que se conheceram enquanto estudavam em Moscou. O título é devido ao fato de que o personagem masculino, Júlio, nasceu no planalto da Huíla, no sul de Angola, e Sarangerel na estepe da Mongólia. Além dos três países, a história se passa também na Argélia e em Cuba, pois o autor foi partidário, no passado, do comunismo soviético e procura trazer para suas obras aspectos da ideologia comunista e como tal visão suplanta as necessidades e interesses dos indivíduos.

O romance é uma espécie de resumo fi ccionalizado da trajetória do próprio autor, que foi comunista, lutou pela libertação de Angola, iludiu-se e desiludiu-se com a vida, no que diz respeito à política, às ideologias. Mas que também marca suas crenças em uma vida melhor para todos.

Publicado originalmente em 2009, o romance trata ainda do descobrimento de Angola revelado na narração desde a infância de Júlio na província de Huíla. Júlio narra as brincadeiras, as descobertas mais diversas da vida, envolvidas naquele ambiente de grande alegria, na Tundavala, ou seja, no ponto geográfi co onde termina o planalto angolano. Tinha três irmãos: Zeca, Rui e Olga. Esta se mostrava a mais racista, a que criticava Júlio por ter amigos negros.

Com efeito, apesar de certo clima de felicidade infantil, já nesse período vai percebendo a condição especial de seu país, afi nal não podia brincar livremente com seus amigos negros. Imperava certo terror por conta da polícia e dos defensores do regime de Salazar, presidente e ditador português que ainda tinha Angola como uma colônia. E “um branco com amigos negros era um branco estranho, malvisto. Subversivo”. (p. 21)

Ele, um menino branco, descendente de portugueses, não poderia se misturar com aqueles seres. Isso marca já sua percepção sobre colonialismo, sobre racismo e outras pragas sociais que irá procurar combater explícita ou implicitamente em sua vida.

Estávamos situados no fundo da escala social entre os brancos, chicoronhos, o que era uma corruptela sem maldade de colonos. Já o termo mapundeiros era ofensa usada pelos outros brancos contra nós, por a nossa zona ser a Mapunda, onde se refugiavam os mais miseráveis dos brancos. No entanto, éramos ricos se comparados com os negros, nossos serviçais. (p. 18)

CAPÍTULO IX - O Planalto e a Estepe, de Pepetela

Na adolescência, é iniciado sexualmente por uma prostituta, a quem sempre recorre para satisfazer suas “necessidades”. Do episódio, dois pontos chamam a atenção, primeiro porque, embora ela fosse negra, só fi cava com os brancos. Segundo o que ela própria explicou depois a Júlio: “porque se um branco souber que me deitei com um negro, não vai querer se deitar mais comigo. E os brancos é que têm dinheiro” (p. 18) Outro ponto é que Júlio acaba pegando uma doença venérea e tem de terminar esse primeiro “romance” com a prostituta.

De formação católica, aos poucos vai perdendo sua fé, ao ponto de não mais acreditar em Deus. Se bem que, vez ou outra tem lances de fé. Acaba por perder a fé de vez quando estuda para se tornar comunista. Mas isso acontecerá adiante.

Antes, Júlio, no início da guerra pela libertação de Angola vai estudar medicina em Coimbra. Após algum tempo, resolve voltar para lutar por seu país, mas por ser branco é discriminado, segregado por conta das diferenças de cor. No lugar do front, os comandantes o enviam a Moscou para estudar economia, isso em 1964.

Era um grupo misturado, todas as cores. Depois dividiram-nos. Os mais escuros iam combater. Receberiam treino militar na fronteira entre Marrocos e Argélia. Os mais claros tinham bolsas de países amigos, iam estudar para a Europa. [...] De novo as raças a separarem os grupos. Fiquei desiludido, sobretudo humilhado. (p. 31)

Em Moscou, fez duas amizades mais sólidas, com Jean-Michel, do Congo, e Moussa, do Senegal. Em lances rápidos, o narrador conta qual o clima da cidade, os medos, os possíveis amores, a subserviência, a tentativa de manter-se livre, ao menos no pensamento, o temor de ser visto como contrarrevolucionário e ser enviado a Sibéria.

“Nós não merecíamos confi ança, éramos estrangeiros” (p. 40).

No segundo ano, em 1965, conhece Sarangerel. Apaixonam-se, mas sua história de amor é interrompida pelas necessidades do Estado. Transforma-se, pois, numa história de amor impossível, não tanto porque as famílias não permitem, mas porque as condições políticas são pouco favoráveis a esse tipo de relacionamento em que há um amor mais profundo. No caso, ela, fi lha do Ministro da Defesa da Mongólia, tinha seu destino traçado para se casar com um homem infl uente e, portanto, manter o poder familiar.

O drama se intensifi ca quando Sarangerel engravida, o que poderia ser uma bênção sob um ponto de vista, é algo preocupante, por conta das diferenças culturais, por conta de ela ser fi lha do Ministro. Pensam em um aborto, o que na URSS não era nada difícil, porém a família seria informada e Sarangerel não quis correr o risco.

Júlio tenta convencer a namorada de que poderia lutar por ela, de que poderiam se casar e serem felizes. Porém, Sarangerel sabia ser isso impossível.

– Posso convencê-lo a deixar-te casar e continuarmos a estudar. Bolas, e o internacionalismo proletário? A Mongólia, como país socialista, apoia a luta dos povos oprimidos. O meu povo é colonizado e eu sou um lutador pela liberdade do meu

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povo. O meu Movimento é aliado do Partido dele, tem de ser sensível a esse argumento. Agarremo-nos à política, ela pode ajudar-nos.

Sarangerel segurou a minha mão. Com as duas, como era seu hábito.

– Não conheces o meu pai. Não conheces a Mongólia. Acho até que não conheces os países socialistas. (p. 64)

O problema se intensifi ca quando uma companheira de Sarangerel, Erdene, que era, na verdade, uma espiã mongol cuja missão era vigiar os passos da moça, relata o que estava se passando. Que ela tinha um namorado, e que não era mongol. A mãe vem falar com a fi lha, tentar resolver o caso, convencê-la a fazer um aborto e também levá-la a Leningrado para terminar os estudos. Apesar dos esforços, da luta da moça em prol do seu amor, é levada de volta a Mongólia. Júlio fi ca sabendo que ela fora raptada:

– Sarangerel foi para Ulan Bator. Apareceram no lar três homens da embaixada, nem a deixaram arrumar as coisas, levaram à força. Só no dia seguinte apareceu uma senhora para fazer as malas e sumir com elas. Essa senhora disse-me que Sarangerel tinha sido uma má menina e por isso foi expulsa para a Mongólia, para casa dos pais. (p. 89)

Júlio relata em seguida toda a dor, todo o sofrimento por que passou. Decide pedir apoio a quem pode na URSS, mas como qualquer atitude mais drástica poderia abalar as relações estratégicas entre a pátria comunista e a Mongólia, os dirigentes preferem abafar o caso, como se ele não existisse. O máximo que Júlio consegue é apoio dos seus pares que, como ele, nada podem fazer. O congolês Jean-Michel resume bem a situação em que o amigo se encontra:

[...] meu velho, deixa-te de ilusões, o internacionalismo proletário é uma treta, a amizade indestrutível entre os povos é outra, o que conta é que tu não és mongol, portanto, és um ser inferior. (p. 67)

O episódio se presta à percepção do próprio Júlio e de outros estudantes que tal visão de mundo comunista é pouco humana, pouco prática, no sentido de que pregavam a igualdade, a solidariedade como meio de vencer o capitalismo, explorador dos trabalhadores, mas que em rigor era apenas uma visão idealizada de um mundo perfeito, que não existia e nem poderia existir na URSS totalitarista. Em outros termos, a propalada igualdade, união dos povos, era apenas meio ideológico de manter o poder nas mãos de poucos, que vendiam a ideia de que o mundo fora do comunismo era terrível e nada humano. Com efeito, o interesse soviético em Angola, e, por consequência nos angolanos, era mais com o intuito expansionista do sistema comunista, da ideologia comunista que exatamente uma preocupação humanitária.

[...] o mal-amado por ter denunciado anos antes, uma série de crimes e erros do endeusado Estaline, dando assim munições ao inimigo, foi derrubado e sucedeu-lhe o cinzento Brejnev, buldogue de cara e corpo, de cuja boca opaca nunca sairia nada de que o Partido se arrependesse. Havia golpes e contragolpes na pátria perfeita do socialismo, cartas escondidas debaixo da mesa, pior, facas escondidas nos casacos, sangue escorrendo pelas paredes.

— Vês? — disse Jean-Michel na altura da queda de Kruchev. — Ensinam-nos a pureza das ideias, mas praticam todas as sujidades. Isto foi um verdadeiro golpe de Estado. (p. 46)

Júlio, que estudava, que era doutrinado para pensar assim, logo percebe, por essa dolorosa experiência, que tudo era nada mais que um idealismo. O episódio também serve como contraponto aos tempos ditosos na sua infância. Uma espécie de visão romântica ao modo de “Meus oitos anos”, do poeta romântico brasileiro Casimiro de Abreu.

Oh que saudade que tenhoDa aurora da minha vidaDa minha infância queridaQue os anos não trazem mais.[...]

Passados vários meses, Júlio descobre, por intermédio de outra mongol, que era pai de uma menina, o que renova as forças do angolano de que poderia ainda resgatar sua família. Impossível nos países da chamada Cortina de ferro. O máximo que consegue é escrever à sua amada e receber algumas notícias, mesmo assim sempre sob o olhar vigilante da polícia, que sempre temia um imbróglio diplomático.

É o tema recorrente dos amores impossíveis, desde Romeu e Julieta, passando por Simão e Teresa, de Amor de perdição, e outros tantos de toda a literatura ocidental.

Assim, após perceber que difi cilmente voltaria a ver o amor de sua vida, termina os estudos, resolve integrar o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que à época, lutava pela independência do país, o que ocorreu em 1975. Participou de treinamentos no sul da URSS, na Argélia. Já no exército, tornou-se o comandante Alicate. Não que concordasse integralmente com as práticas do MPLA, mas era meio de poder seguir a vida, de talvez poder um dia rever Sarangerel.

Depois da formatura, teria de sair de Moscovo para fazer treino de guerrilha. O Movimento tinha fi nalmente acedido ao meu pedido de participar ativamente na libertação. (p. 103)

Já em fi ns da década de 1980, quando a URSS começa a se esfacelar, Júlio retoma seu pensamento sobre o país da aclamada igualdade que pouco humano se mostrou em seu caso particular e no de outros tantos.

No dia [...] quando a URSS implodiu fragorosamente, relembrei, como todos os dias afi nal, aquele general que nunca aceitou ser meu sogro. Ainda existiria? O campo dito socialista tinha derrocado com estrépito, em consonância com o Muro de Berlim. A Mongólia iniciava um processo semelhante ao da Rússia, com tentativas serpenteantes de passar a uma democracia formal, mas denotando demasiado peso do passado maniqueísta. (p. 139)

Desse modo, além da questão do amor impossível, Pepetela quer revelar a falência do modelo soviético na construção de um mundo melhor para todos. Mesmo porque Angola vinha já de um longo período de submissão a um país europeu, no caso Portugal. Esse alinhamento com a URSS se era benéfi co num primeiro momento, acabará por revelar-se maléfi co, pois seria trocar uma metrópole por outra. Pepetela analisa todos

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esses aspectos, tendo por base exatamente a história de amor. Em resumo, todos esses pormenores acabam por salientar os males do poder, o desejo de controle estatal sobre as vontades individuais. Não é por acaso que depois da independência, houve uma guerra civil envolvendo três grandes grupos que queriam controlar o país. Tal guerra viria a acabar apenas em 1992, com a vitória do MLPA. Nesse momento, Júlio já é um importante general do exército.

Outro aspecto do drama pessoal de Júlio é que ele não tinha acesso à fi lha que tivera com Sarangerel, e, menos ainda à própria mulher que escolhera para viver. Tal história passar por trinta e cinco anos e tem como pano de fundo exatamente todo esse cenário de guerras, revoluções, quedas, envolvendo particularmente Angola e URSS, cujo fi m se deu ofi cialmente em 1991.

Quando ainda fazia treinamentos, conseguiu articular um plano para viajar até a Mongólia. Arrumou um passaporte falso, sob o nome árabe de Said Benselama. Conseguiu chegar a Ulan Bator, mas foi interceptado pela polícia secreta. Depois de muita negociação, conseguiu convencer que fora até lá para tentar apenas ver sua fi lha, o que foi permitido, claro que não como Júlio de fato gostaria.

Ao fi m de certo tempo parou à nossa frente um carro igual ao nosso. Dele saiu uma menina de uns seis anos, mas nitidamente mais alta que as outras. A mulher ao meu lado sussurrou em russo:

— É a sua fi lha. Como vê, está a ser bem tratada. (p. 111)

Depois disso, o carro o levou embora e ele teve de voltar a Argélia. Anos se passam, sem que Júlio tenha novas notícias da fi lha ou de Sarangerel. Tentou refazer sua vida amorosa, com um ou outra, mas sem sucesso. É o princípio do amor romântico, do amor eterno, impossível de ser substituído.

Enquanto isso, ia lutando pela liberdade de Angola, na guerra civil, que ocorreu entre 1975 e 1992 (embora os confl itos tenham se estendido até 2002), e representou, como outras tantas guerras pelo mundo, a disputa entre os EUA e a URSS, cujo foco era estender os respectivos domínios e poder de infl uência mundo afora. Tal guerra fi cou dividida do seguinte modo:

Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido vitorioso na guerra, que comanda até hoje Angola e que era apoiado pelo regime de Fidel Castro de Cuba e pela União Soviética;

Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) apoiada pelo Zaire (atual República Democrática do Congo) e pelos Estados Unidos;

A União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), liderada por Jonas Savimbi, também apoiada pelos Estados Unidos, pela África do Sul e diversos outros países africanos.

Apenas para se ter uma visão geral do estado da política em Angola, reproduzimos a seguir, um trecho extraído do site ofi cial do governo angolano:

Desde 1992, ano das primeiras eleições gerais, que a democracia multipartidária governa Angola. O MPLA em conjunto com a UNITA e outras forças políticas com assento parlamentar, geriu magistralmente a reconstrução de um dos países de futuro mais promissor de toda a África que, no entanto, paradoxalmente com a sua riqueza natural vive ainda uma duríssima realidade. No âmbito de uma ampla programação

empurrando Angola para a modernidade, progresso e riqueza, novas eleições foram realizadas em 2008. O MPLA, que sempre governou desde a Independência, soube preservar a identidade nacional. Do MPLA, saíram os dois presidentes que Angola teve até ao momento. O primeiro, o fundador da Nação Angolana, o Dr. Agostinho Neto e o segundo e atual Presidente da República, o Eng. José Eduardo dos Santos, que se tornou, quando da sua investidura, em 1979, o mais jovem presidente do continente. Na cena internacional, Angola vem dando forte apoio a iniciativas que promovam a paz e a resolução de disputas regionais, favorecendo a via diplomática na prevenção do confl ito e a promoção dos direitos humanos. (fonte: http://www.governo.gov.ao/Historia.aspx)

Já vitorioso, com o MPLA, Júlio reencontra sua família, sua irmã Olga, que, para surpresa do irmão, lutava pela independência angolana e acusava os sul-africanos e os norte-americanos de imperialistas, posto que estariam ali para destruir a cultura local, e impediam o desenvolvimento econômico da região. Por isso mesmo, Júlio foi recebido com festa e alegria por todos, que o consideram um herói nacional.

O mundo se transformava, pois. A URSS já não existia (voltou a ser Rússia, sob a liderança de Boris Yeltsin, em 1991), e a Mongólia também tentava se reconstruir, sem mais o apoio dos soviéticos.

A Mongólia iniciava um processo semelhante ao da Rússia, com tentativas serpenteantes de passar a uma democracia formal, mas denotando demasiado peso do passado maniqueísta. (p. 139)

O fato é que para Júlio reacendiam as esperanças de rever Sarangerel e conhecer de verdade sua fi lha. De sua parte, com o fi m da guerra, reformou-se do exército e passou a trabalhar em uma empresa de transportes. Porém, fi ca sabendo por intermédio de uma amiga, Esmeralda, que Sarangerel, como era de se esperar, havia se casado com um embaixador mongol e vivia em Cuba. Apesar disso, Júlio não pensou duas vezes. Conseguiu um visto e partiu para Cuba, onde reencontrou o amor de sua vida.

Contou então o que se passara de mais importante em sua vida, que fora até a Mongólia, que não o deixaram vê-la. Ela, por sua vez, fi cou emocionada, chorou ao saber da luta daquele que era o pai de sua fi lha.

Os olhos de Sarangerel estavam marejados de lágrimas. Também os meus, senti depois o frio escorrendo pela minha face. (p. 154)

Ela tinha tido mais dois fi lhos, já era avó inclusive. Um dos fi lhos morava nos EUA, o que era uma ironia da História, afi nal os mongóis, que lutaram contra o imperialismo norte-americano, tinham um neto do ministro da defesa vivendo em solo americano.

Conversam, trocam confi dências, relembram o passado, ela diz viver bem com seu marido, que é um homem bom, compreensível.

No dia seguinte, quando Júlio já se preparava para voltar a Angola, sem esperança de viver com seu amor, recebe um telefonema de Sarangerel, que lhe pedia um visto, que queria ir viver com ele em Angola. Obviamente que não foi um processo simples, mas no fi m o marido, percebendo que poderia se prejudicar politicamente com uma briga, cedeu.

Como diria Guimarães Rosa em um conto intitulado

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“Desenredo”,

Três vezes passa perto da gente a felicidade. [Os amantes] retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata.

Para encerrar, a história de amor impossível se revelou no fi nal bem possível, em meio a separações, guerras, disputas políticas, lutas pelo poder. Uma visão um tanto romântica, idealista, talvez, mas que funciona bem nesse belo romance de Pepetela.

Exercícios

1. Sobre o romance O Planalto e a Estepe, de Pepetela, assinale a alternativa incorreta:a) O título é uma referência aos personagens principais, no

caso Júlio (Angola) e Sarangerel (Mongólia).b) A história tem início ainda na época da Angola colônia,

mas seu auge ocorre durante as lutas por libertaçãoc) Boa parte da história é ambientada em Moscou, na URSS.d) O livro faz uma defesa do comunismo, posto que esse

sistema apoia as liberdades individuais.e) É possível acompanhar a história recente de Angola, pano

de fundo do enredo envolvendo a história de amor de Júlio e Sarangerel.

2. Dadas as afi rmações, assinale a alternativa que contempla as corretas:

I. Júlio Pereira, mesmo depois da independência de Angola, devido ao ofício militar, continua mantendo contato com os soviéticos.

II. A história do amor impossível entre o angolano Júlio Pereira e a mongol Sarangerel tem como pano de fundo a história do movimento de libertação angolano.

III. Os personagens se reencontram em Cuba e reatam sua história de amor.

Está correto o que se afi rma em:a) Ib) IIc) IIId) I e IIIe) I, II e III

3. Observe este trecho:Estávamos situados no fundo da escala social entre os

brancos, chicoronhos, o que era uma corruptela sem maldade de colonos. Já o termo mapundeiros era ofensa usada pelos outros brancos contra nós, por a nossa zona ser a Mapunda, onde se refugiavam os mais miseráveis dos brancos. No entanto, éramos ricos se comparados com os negros, nossos serviçais. (p. 18)

Pode-se afi rmar que:a) Júlio era tão racista quanto sua irmã e os demais brancos

de Angola.b) Júlio faz o relato como uma forma de crítica, pois não

entendia a divisão racial, nem aceitava.c) Trata-se de uma visão colonialista de que Júlio participava

com ardor.d) O trecho revela uma das preocupações centrais do romance,

lutar contra o Apartheid em Angola.e) O trecho é uma das variantes da defesa do comunismo

presente ao longo do livro.

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CAPÍTULO X - O primo Basílio, de Eça de Queirós

Eça de Queirós (1845-1900) é escritor português. Fez parte da chamada Geração de 70, que renovou as artes em Portugal, tirando o país do ostracismo e de um Romantismo já decadente, em direção à chamada Escola Realista. A despeito dos exageros de tal escola literária, como o uso da ciência como explicação para todos os atos dos personagens ou a intenção de explorar pormenores sem importância, apenas para dar ar de realidade ao que estava sendo narrado, o realismo histórico deu bons frutos, especialmente nas mãos de Eça de Queirós.

Em 1871, houve as Conferências do Casino , e Eça proferiu a palestra “A Literatura Nova” ou “O Realismo como nova expressão da arte”. Tais conferências tinham como objetivo provocar a discussão em torno do atraso português em diversas áreas, das artes à economia. Tinham um intento republicano, cientifi cista e anticlerical, por isso quando iam proferir a sexta conferência, a polícia invadiu o Casino, hotel da época, proibindo a sua sequência.

Depois disso, Eça de Queirós publicou O crime do padre Amaro (1876), em que ataca a Igreja, apontando-lhe os pecados e desvios de conduta; Os Maias (1888) em que faz um amplo retrato da sociedade lisboeta, da burguesia à aristocracia; e, entre os dois títulos, publicou O primo Basílio (1879). Os três livros juntos formam uma visão de conjunto da sociedade portuguesa, em seu atraso e modos de vida nem sempre dignos, apesar da aparência.

O enredo de O primo Basílio não é original. Trata-se de um triângulo amoroso, sem qualquer véu, ou meio de encobri-lo, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual a traição não é revelada de modo explícito, quando muito sugerida. A inspiração de ambos os livros advém de Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert. A diferença entre os três é que no de Machado a sutileza e a dúvida são bem maiores, o que torna o romance mais singular.

Pois bem, o objetivo aqui é tratar de O primo Basílio. Façamos primeiro um amplo resumo, para, sem seguida, analisarmos alguns pontos mais signifi cativos.

O livro gira em torno de dois personagens principais: Luísa, casada com um engenheiro, Jorge, e Basílio de Brito, primo e primeiro namorado de Luísa.

A ideia de Luísa talvez fosse se casar com Basílio, mas como a família dele empobreceu, tiveram de partir para o Brasil, na tentativa de recuperar a riqueza (como se sabe, mesmo após a independência, a presença de portugueses no comércio sempre foi muito forte no Brasil). Vendo-se sozinha, acabou conhecendo Jorge, que também vivia só, e resolveram se casar. Não propriamente por amor ou coisa que o valha, mas por ser conveniente aos dois. Apesar disso,

Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério. (p. 17)

Na casa, vivia Juliana, uma empregada de Jorge, que cuidara da tia Virgínia, moribunda. Na verdade, ela assim o fi zera para tentar ser inclusa no testamento, o que não aconteceu. Como Jorge não soube dessa intenção mesquinha de Juliana, resolveu continuar com ela em sua casa. Apesar dessa gratidão, Luísa não tinha qualquer simpatia por Juliana, que irá desempenhar papel importante no enredo.

Há dois meses que a tinha em casa e não se pudera acostumar à sua fealdade, aos seus trejeitos. (p. 19)

Uma característica marcante na personalidade de Luísa é que era uma sonhadora. Não se casara, sabe-se, por amor a Jorge. Afeiçoara-se a ele e apenas isso. Sentia grande tédio, por esse motivo lia muito, lia romances românticos, como A dama das Camélias ou os livros de Walter Scott. Desse modo, poderia dar expansão a sua alma sonhadora e sedenta de aventuras. Até porque Luísa tinha poucas amigas, uma delas era Leopoldina, abominada por Jorge, que a considerava muito liberal.

Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luísa: Tudo, menos a Leopoldina. (p. 24)

Apesar da recomendação, encontravam-se vez ou outra, mais uma vez para que Luísa pudesse, pelas aventuras da amiga da adolescência, dar vazão à sua imaginação, sair da realidade imediata.

[...] olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. (p. 26)

Há dois acontecimentos determinantes para o desenrolar do romance: primeiro, a necessidade de Jorge ter de passar uma temporada a trabalho no Alentejo, cerca de 300km de Lisboa; depois, o anúncio no jornal Diário de notícias que Basílio chegaria a Lisboa em poucos dias.

É o que ocorre. Doze dias depois de Jorge viajar, Luísa, entediada como sempre, resolve ir à casa de Leopoldina. Mas quando se preparava para sair, recebeu a visita inesperada de Basílio, que se fi zera anunciar como um homem de negócios. Conversam, retomam o passado, falam do presente e Basílio indica que estava ali por ela. Conta como fora sua vida no Brasil; relata que tivera um breve relacionamento com uma mulata. Quando Luísa pergunta o porquê não se casou com ela, a resposta segue uma visão que obedecia aos conceitos raciais da época:

Estava a mangar! Uma mulata! (p. 54)

Seguindo a visão cientifi cista da época naturalista, acreditava-se em diferentes níveis raciais, e os mulatos, os miscigenados estariam em uma escala inferior, por isso a resposta com desprezo que acaba dando Basílio a sua prima.

Também contou sobre o período em que morara em Paris. Tudo serve à alma fantasiosa de Luísa, que fi ca pensando como seria bom viver as aventuras que lia nos romances, como seria bom fazer como Basílio, como Leopoldina, a despeito da vida boa que Jorge lhe proporcionava. O fato é que sua vida era um tédio, sem desafi os, sem aventuras.

– Que vida interessante a do primo Basílio! – pensava. – O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, [...] (p. 57)

Por esse período, Juliana já dá mostras de que está doente

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do coração. Vai ao médico, tenta um tratamento. A doença será importante para o desfecho do romance. Antes disso, para surpresa de Juliana, Basílio volta a visitar Luísa, com regularidade.

– Está cá o peralta de ontem! Está cá outra vez! Traz um embrulho! – Que te parece, Senhora Joana? Que lhe parece?

– Visitas... – disse a cozinheira. (p. 68)

Joana dá essa resposta, pois não queria se envolver com as escolhas dos patrões. Juliana, por sua vez, que tentara a sorte com a tia de Jorge e nada obtivera, fi cou atenta aos acontecimentos a ver se obteria alguma vantagem. E, de fato, é o que acontecerá.

Um dos amigos de Jorge, Sebastião, homem solitário, que fi cara mais solitário ainda após o casamento do engenheiro, também percebe as constantes visitas de Basílio. E tem a confi rmação da boca de Juliana. Passa a questionar com outros, que não querem se envolver. Ainda assim, percebe que algo ruim pode vir a acontecer.

Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia a crônica da sua mocidade. Não havia nela, certamente, nem escândalo excepcional, nem romance pungente. Basílio tinha sido apenas um pândego e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos da estroinice lisboeta. (p. 89)

De sua parte, Basílio queria, mais do que viver uma história de amor com Luísa, recuperar o passado, apenas ter uma mulher com quem fi car durante sua estada em Lisboa. Para isso, usa de todas as artimanhas para conseguir o que quer. Ele a faz sonhar, imaginar. Ele a seduz, dá a ela o que quer, ou seja, motivos para romper o tédio, motivos mais reais para viver uma história romanesca, de sustos e medos, mas também de paixão e prazer. Basílio exerce o papel de Don Juan, o sedutor sem escrúpulos, que se ocupava da própria satisfação, a despeito do sofrimento alheio. Isso fi ca claro quando Basílio conversa com o amigo que com ele estava em Lisboa, o Visconde Reinaldo:

– E então essa questão da prima, vai ou não vai? Isto está horrível, menino! Eu morro! Preciso o Norte! Preciso a Escócia! Vamos embora! Acaba com essa prima. Viola-a. (p. 114)

Enquanto isso, a vizinhança também já repara nas visitas constantes, o que fi ca ruim para Luísa. Avisada por Sebastião, fi ca em dúvida sobre o que fazer, não queria perder Basílio, mas também não queria fi car mal na vizinhança, e Jorge poderia saber. Mesmo assim, vai se entregando àquela paixão. Depois de uma noite em que fi caram juntos, recebe um bilhete. Resolve responder, mas no momento em que escrevia uma carta para ele, quando recebeu uma visita inesperada, exatamente do Sebastião. Guardou a carta iniciada no bolso. Ele vinha novamente para alertá-la sobre o que já se comentava.

– É que se repara... A vizinhança é a pior coisa que há, minha rica amiga. Repara em tudo. Já se tem falado. A criada do lente, a Paula. Até já vieram à tia Joana. E como o Jorge não está... O Neto também reparou. Como não sabem o parentesco... E como vem todos o dias... (p. 118)

No outro dia, Juliana, arrumando a roupa de Luísa, descobriu o bilhete iniciado pela patroa. Esse é um momento crucial no romance, pois a partir dele, tem-se o ápice até o desfecho. Era o que Juliana queria para obter a vantagem que gostaria.

Diante do incômodo de Luísa, para evitar novos falatórios, Basílio aluga um quartinho onde se encontram. O nome é bem propício, Paraíso.

Aquela precipitação amorosa em arranjar o ninho – provando uma paixão impaciente, toda ocupada dela – produziu-lhe uma dilatação doce do orgulho; ao mesmo tempo em que aquele paraíso secreto, como um romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionais; e todas as suas inquietações, os sustos da carta perdida se dissiparam de repente sob uma sensação cálida, como fl ocos de névoa sob o sol que se levanta. (p. 141-142)E adiante:

Ia , enfi m, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! (p. 145)

Mas para sua tristeza, o local em si não era exatamente o que ela esperava. De sua parte, Basílio vai se cansando dela, após atingir seu objetivo, que era o de apenas se aproveitar do corpo de Luísa. Como desculpa, para evitar falatórios, dizia a todos que ia visitar uma amiga, D. Felicidade Noronha, que andava adoentada. Embora isso fosse verdade, passava lá vez ou outra e ainda bem rápido para poder aproveitar melhor o tempo com Basílio.

O problema é que não demora muito esse idílio. Juliana resolve iniciar a chantagem sobre Luísa e conta-lhe que achara aquele primeiro bilhete e outros.

Juliana pede a Luísa um valor bastante alto, 600 mil-réis, uma fortuna para a época. Luísa conta o caso a Basílio, que promete ajudá-la, mas na verdade queria apenas ganhar tempo e ver como se safaria da enrascada.

Basílio saiu do Paraíso muito agitado. As pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha vontade de não voltar ao Paraíso, calar-se, e deixar correr o marfi m! Mas tinha pena dela, coitada! E depois, sem a amar apetecia-a; era tão bem feita, tão amorosa. (p. 192)

Diante da difi culdade, Luísa pensa em pedir ajuda a Sebastião, ver se ele lhe arrumava algum dinheiro. Mas por esse tempo, Jorge anunciou que estava voltando. Luísa pede então um tempo a Juliana, que promete esperar um pouco mais.

Mas pela difi culdade em conseguir tanto dinheiro, em troca Luísa vai aos poucos se tornando a “empregada” da casa, dá roupas a Juliana, faz o serviço dela. Outra solução seria Leopoldina, mas a amiga tem apenas ideias como a de se oferecer a algum homem que poderia lhe “emprestar” o dinheiro.

– Que horror! – exclamou Luísa subitamente indignada. – E tu propões-me semelhante coisa? (p. 235)

Jorge, de sua parte, começa a estranhar as atitudes de Luísa e também as de Juliana, pois a empregada virara patroa e vice-versa, sem atinar o porquê de tamanho disparate.

– Não, essas condescendências hão de acabar por uma vez! Ver aquele estafermo, com os pés para a cova, a prosperar em minha casa, a deitar-se nas minhas cadeiras, a passear, e tu a defendê-la, a fazer-lhe o serviço, ah! Não! É necessário acabar com isso. (p. 265)

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Sem atinar com o que fazer, Luísa procura efetivamente ebastião e conta quase todo o caso. Sebastião vai até Juliana e a obriga a entregar as cartas, sob pena de ir presa por roubo e chantagem. Ante a ameaça, não pensa duas vezes.

Juliana estava alucinada de raiva, com os olhos saídos das órbitas, veio para ele e cuspiu-lhe na cara!

Mas de repente a boca abriu-se-lhe desmedidamente, arqueou-se para trás, levou com ânsia as mãos ambas ao coração, e caiu para o lado, com um som mole, como um fardo de roupa. (p. 289)

O que poderia ser uma alívio para Luísa se torna em sua derrocada moral e física. Isso porque, diante dos acontecimentos, a pressão de Juliana, o abandono de Basílio, a vergonha de ter de encarar Jorge, cai doente. Por esse tempo, Basílio escrevera a Luísa, perguntando-lhe se havia conseguido resolver o imbróglio com a empregada. O problema é que Jorge leu a carta antes de Luísa.

– Cartas? – perguntou Jorge.– Uma pra senhora – disse o homem. – Há de ser pra

senhora...Jorge olhou o envelope; tinha o nome de Luísa, vinha da

França.Não leu de imediato. Mais tarde, viu que era uma carta de

Basílio, em que ele relata o porquê tivera de ir embora, falava sobre os últimos acontecimentos. Apesar da raiva, manteve a calma até encontrar a melhor forma de resolver o caso. Pensou em matá-la, em expulsá-la. Conversou com Sebastião para saber o que o amigo conhecia do caso.

– Vinha o primo às vezes, ao princípio. Quando D. Felicidade esteve doente, ela ia vê-la... O primo depois partiu... Não sei mais nada. (p. 303)

Jorge não interpelou Luísa de imediato, esperou que ela melhorasse, o que aconteceu em duas semanas. Foi quando, ante à interrogação dela sobre o porquê o marido andava triste, que fi nalmente disse que encontrara as cartas enviadas por Basílio a ela. Prontamente, empalideceu e desfaleceu. Dois dias depois, Luísa morreria, após várias tentativas para reanimá-la.

E enquanto D. Felicidade num pranto afl ito fechava os olhos de Luísa, o Conselheiro, com o chapéu sempre na mão, cruzava os braços, e oscilando a sua calva respeitável, dizia a Sebastião:

– Que profundo desgosto de família! (p. 318)

Jorge dispensou as empregadas e foi morar com Sebastião. O Conselheiro Acácio, de sua parte, resolveu escrever um necrológio em homenagem à amiga, e o fez seguindo seu modo de falar vazio, querendo antes expressar uma visão intelectualizada que propriamente algo real.

À memória da Sra. Luísa Mendonça de Brito CarvalhoRosa d’amor, rosa purpúrea e bela,Quem entre os goivos te esfolhou na campa? (p. 319)

Basílio volta a Lisboa e descobre que Luísa havia morrido, não demonstra tristeza, apenas descontentamento por não ter mulher para passar os dias.

Basílio teve um sorriso resignado. E, depois de um silêncio,

dando um forte raspão no chão com a bengala:– Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine! (p. 326)

O romance apresenta uma tese e busca comprová-la pelo enredo. No caso, a ideia é mostrar que os mais fortes dominam os mais fracos. No caso, Basílio e Juliana se apresentam como os mais fortes, os mais preparados para viverem uma sociedade capitalista, pouco humanista, ao passo que Luísa, com seu ar romântico, aventuresco, se deixa dominar, se deixa levar por ambos, tanto amorosa quanto economicamente. Os romances naturalista-realistas baseavam-se nos princípios cientifi cistas de Darwin (seleção das espécies, lei do mais forte), no Positivismo de Auguste Comte, para quem o que importa é vida material, não a espiritual, e Hipollyte Taine, cuja visão determinista indicava que o homem era condicionado ao meio social, à raça. Desse modo, Luísa representa o ser que não se sobrepõe ao meio, mas é engolido por ele.

Não por acaso, além da história central de Luísa, há histórias paralelas, de uma sociedade que gravita em torno da casa de Jorge, com destaque para o Conselheiro Acácio, um homem de palavrório complicado e inútil. Ele exemplifi ca o falso moralismo, o apego às aparências. Gosta de frases de efeito e citações morais, porém lê poemas obscenos e é amante da própria empregada, Adelaide, a qual, por sua vez, o trai com um caixeiro. Do personagem, surgiu o adjetivo acaciano, para caracterizar os falsos moralistas ou pessoas que gostam de uma exibição intelectual, sem serem de fato intelectuais.

O que sobressai do romance, para o bem ou para o mal, é a excessiva descrição de cenas, pessoas, caracteres, com o objetivo de ser o mais realista possível, isto é, permitir ao leitor uma visão detalhada. Modernamente, uma prática que se torna cansativa ao leitor, mas que tinha sua razão de ser para o contexto do romance.

Outro ponto é a ironia do narrador, sobretudo quando procura narrar e descrever situações em que importa mais a aparência social, sobretudo com os casos envolvendo personagens como o Conselheiro Acácio ou Julião. Jorge também é visto ironicamente, pois, como homem típico do século XIX (e mesmo do século XX), abomina as amizades da esposa, sobretudo com Leopoldina, despreza a própria Luísa com a descoberta do adultério, mas ele mesmo teve seus casos no Alentejo, isto é, expressava uma visão cômoda de que para o homem isso seria algo correto, ao passo que para a mulher algo deplorável. Evidente que não se trata de uma visão de todo superada...

Em rigor, essa mesma visão machista é a do Primo Basílio, para quem a mulher deve servi-lo do melhor modo; como ser “superior” mereceria usufruir a seu bel-prazer, até não precisar ou não poder, ou não querer mais.

Em conclusão, pode-se dizer que há no romance duas críticas básicas: uma à sociedade burguesa lisboeta pelo que tinha de vazio, de exterior, de formal, sem grande preocupação com a formação do ser; outra à visão burguesa, romântica, simbolizada em Luísa, que mais do que sentimentos reais, profundos, mostrava-se preocupada com suas fantasias que propriamente com a realidade.

Exercícios

1. (Fuvest-SP) Como se sabe, Eça de Queirós concebeu o livro O primo Basílio como um romance de crítica da sociedade

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portuguesa cujas “falsas bases” ele considerava um “dever atacar”. A crítica que ele aí dirige a essa sociedade incide mais diretamente sobre a) o plano da economia, cuja estagnação estava na base da

desordem social.b) os problemas de ordem cultural, como os que se verifi cavam

na educação e na literatura.c) a excessiva dependência de Portugal em relação às colônias,

responsável pelo parasitismo da burguesia metropolitana.d) a extrema sofi sticação da burguesia de Lisboa, cujo luxo e

requinte conduziam à decadência dos costumes.e) os grupos aristocráticos, remanescentes da monarquia, que

continuavam a exercer sua infl uência corruptora em pleno regime republicano.

2. (Vunesp) Para responder à questão, leia o trecho seguinte, extraído de O primo Basílio, de Eça de Queirós.

Bom Deus, Luiza começava a estar menos comovida ao pé do seu amante, do que ao pé do seu marido! Um beijo de Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia três anos! Nunca se secara ao pé de Jorge, nunca! E secava-se positivamente ao pé de Basílio! Basílio, no fi m, o que se tornara para ela? Era como um marido pouco amado, que ia amar fora de casa! Mas então valia a pena?

Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez! Porque enfi m, ela e Basílio estavam nas condições melhores para obterem uma felicidade excepcional: eram novos, cercava-os o mistério, excitava-os a difi culdade... Por que era então que quase bocejavam? É que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois! ... Seria, pois, necessário estar sempre a começar para poder sempre sentir? E, pela lógica tortuosa dos amores ilegítimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no segundo!

No trecho, o amor é visto, predominantemente, como um sentimentoa) eterno, pois Luiza não deixa de amar seu marido, Jorge,

apesar da distância que os separa.b) passageiro e frágil, pois, para Luzia, só os começos são

bons. c) intenso, pois Luiza se mostra profundamente divida entre

o amor de Basílio e Jorge. d) terno e carinhoso, como se pode notar na boa lembrança

que Luiza tem do beijo de Jorge.e) sofrido, pois Luiza e Jorge sofrem por se amar demais e por

não poderem fi car juntos.

3. (Fuvest-SP) Prosperava, com efeito! Não punha na cama senão lençóis de linho. Reclamara colchões novos, um tapete para os pés da cama, felpudo! (...) Tinha cortinas de cassa na janela, apanhadas com velhas fi tas de seda azul; e sobre a cômoda dois vasos da Vista Alegre dourados! Enfi m um dia santo, em lugar da cuia de retrós, apareceu com um chignon de cabelo! (Eça de Queirós, O primo Basílio)

O trecho acima refere-se a:a) Luísa.b) Juliana.c) D. Felicidade.d) Leopoldina.

e) Joana.

4. (Fuvest-SP) O primo Basílio pertence à fase dita realista de seu autor, Eça de Queirós. É reconhecido, também, como um romance de tese — tipo de narrativa em que se demonstra uma ideia, em geral com intenção crítica e reformadora. Tendo em vista essas determinações gerais, é correto afi rmar que, nesse romance:a) O foco expressivo se concentra na interioridade subjetiva

das personagens, que se dão a conhecer por suas ideias e sentimentos, e não por suas falas ou ações.

b) As personagens se afastam de caracterizações típicas, tornando-se psicologicamente mais complexas e individualizadas.

c) A preferência é dada à narração direta, evitando-se recursos como a ironia, o suspense, o refi namento estilístico de períodos e frases.

d) O interesse pelas relações entre o homem e o meio amplia o espaço e as funções das descrições, tornadas mais minuciosas e signifi cativas.

e) A narração de ações, a criação de enredos e as refl exões do narrador são amplamente substituídas pelo debate ideológico-moral entre Jorge e o Conselheiro Acácio.

5. (Mackenzie-SP) Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa; (...) Mas ao mesmo tempo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. – Ia, enfi m, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo – a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio! Como seria? Conhecia o gosto de Basílio, – e o Paraíso decerto era como nos romances de Paulo Féval. A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a. (Eça de Queirós, O primo Basílio)

Assinale o comentário crítico adequado ao fragmento transcrito:a) O romance realista, ao retratar o comportamento

feminino, busca desnudar as armadilhas da imaginação decorrentes de uma educação romântica.

b) A personagem do romance romântico vivencia um autêntico sentimento amoroso, cujo princípio é a fi delidade ao ser amado.

c) O romance naturalista associa o sentimento amoroso a uma anomalia fi siológica, responsável pelos devaneios da personagem.

d) No romance romântico a crítica à idealização amorosa está presente, por exemplo, na construção de personagem frágil e sonhadora.

e) A fi cção realista, ao retratar a fi gura feminina apaixonada, tem por objetivo oferecer ao leitor um modelo de conduta amorosa que enaltece a mulher.

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Gabaritos:

I - Cidade de Deus, de Paulo Lins1. a) Boca de fumo, local de tráfi co de drogas. b) sim, ele aproxima sua fala da dos personagens, ainda que nesse trecho não

fi que tão claro isso. Há a seguinte passagem: Por esse motivo, chegara ao morro do Juramento, no subúrbio da Leopoldina, dando tiro em tudo quanto era bandido

2. C 3. D 4. A5. O texto de Paulo Lins retrata a violência presente nos morros cariocas, fruto da luta pelo domínio das “bocas-de-fumo”,

ou seja, dos pontos de venda de drogas. Pode-se entender, porém, que esse problema é consequência de uma desigualdade social extrema, denunciada pela oposição simplista que o narrador faz entre brancos e negros.

6. Grande nutre ódio pelos policiais porque crê que eles servem aos brancos, protegendo a riqueza destes, à custa da opressão do negro. Ele tem raiva dos brancos porque acha que eles tinham roubado os africanos, submetendo os descendentes destes a péssimas condições de vida.

II - As melhores crônicas de Rachel de Queiroz1. A 2. E

III - Espumas Flutuantes, de Castro Alves1. B 2. A 3. A 4. A 5. A 6. D 7. C 8. E 9. E 10. E 11. B 12. E

IV - São Bernardo, de Graciliano Ramos1. D 2. E 3. B 4. D 5. A 6. A

V - Papéis avulsos, de Machado de Assis1. 052. O uniforme representa o status social que havia alcançado, é o olhar do outro, a tal alma exterior. Sem a aprovação social, de

pouco vale o indivíduo.3. Sim, pois ele aborda como as eleições tendem a ser um jogo de cartas marcadas, bem como há pouco espaço para mudanças

reais nas relações de poder.4. D 5. Leia estes trechos: É preciso perceber que há certo distanciamento do narrador, ao mesmo tempo que aponta para os detalhes e

aspectos signifi cativos do que vai narrar em seguida.6. E 7. C 8. A 9. B 10. A 11. A

VI - Sagarana, de Guimarães Rosa1. C 2. E 3. B 4. A 5. D

VII - Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente1. E 2. C 3. a) Esperava-se que o candidato identifi casse o trecho “asno que leve quero / e não cavalo folão”, relacionando-o ao fato de

que, ao fi nal da peça, Inês, a pretexto de não ter de molhar-se na travessia de um riacho, sobe às costas de seu marido. Note-se que, para a obtenção do total de pontos neste item, não bastava relacionar os versos citados ao adágio popular, já que se pedia um trecho concreto da peça que repetisse literalmente o que já se antecipara na fala de Inês.

b) Trata-se da truculência do escudeiro, manifestada por inúmeras atitudes, tais como proibi-la de cantar ou trancafi á-la em casa.c) No que concerne aos dois casamentos de Inês, o autor demonstra que ambos são alheios a quaisquer sentimentos mais nobres

como o amor e o respeito mútuo. Inês, no primeiro caso, casa-se por seu interesse em ascender socialmente, isto é, de superar a sua classe de origem, passando a pertencer a um segmento que sua mãe reconhece ser superior. No segundo casamento, Inês vinga-se do autoritarismo do primeiro marido e da humilhação que este lhe infl igira; casa-se “pró-forma” com um tipo simplório (Pero Marques) que lhe faz todas as vontades, inclusive tolerando o adultério. Nota-se assim que Gil Vicente critica a dissociação entre casamento e amor, já que em ambas as ocasiões Inês Pereira casa-se por interesse (ascenção social, conforto, acomodação).

4. C 5. E 6. A 7. C

VIII - Bagagem, de Adélia Prado 1. 26(02+08+16) 2. 17(01+16) 3. 57(01+08+16+32)

IX - O Planalto e a Estepe, de Pepetela1. D 2. E 3. B

X - O primo Basílio, de Eça de Queirós1. D 2. B 3. B 4. D 5. A