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Istvan Meszaros

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    Retomar o debate sobre o Estado

    Luciano Cavini Martorano

    Docente da Universidade Federal de Alfenas, MG

    A mais recente crise do capitalismo, iniciada em 2008, voltou a colocar no

    centro do debate politico, econmico e terico o papel central do Estado nas

    formaes sociais capitalistas. Contrariando a tese neoliberal sobre o Estado

    mnimo, inmeros governos adotaram medidas para enfrentar a crise ela

    mesma consequncia da poltica neoliberal antes adotada , que por seu

    contedo, significado, dimenso e profundidade s poderiam ser realizadas pelo

    Estado: ajuda financeira massiva a bancos e empresas, incluindo a estatizao

    parcial ou no de alguns deles; amplos programas de incentivo produo e ao

    consumo, tanto interno como externo; aes preventivas e ofensivas para

    conquistar e-ou assegurar mercados externos de matria-prima e mo-de-obra a

    preo mais baixo, etc. Tais medidas no s contrariavam o neoliberalismo,

    como tambm o prprio liberalismo que defende um Estado sempre afastado da

    economia. E eram tambm mais uma negao da teoria poltica liberal que

    continua defendendo a substituio da noo de Estado por alguma outra por

    exemplo, a de sistema politico.

    Nesse contexto, a ltima obra de Istvan Mszros, A montanha que

    devemos conquistar, oferece ao leitor brasileiro a possibilidade de retomar o

    debate sobre o tema do Estado. Tema historicamente bastante discutido no s

    entre as diferentes correntes marxistas, como tambm com as demais teorias

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    (liberalismo, pluralismo, decisionismo, etc.), e isso j a partir do prprio Marx

    em suas polmicas com Bakunin, Lassale e outros, e atravessando o sculo XX

    para chegar at os nossos dias.

    Tendo como tema central o Estado, o presente trabalho de Mszros, apresenta

    setes pequenos ensaios com base no material de conferncias feitas em

    universidades brasileiras, alm de dois apndices: o primeiro uma verso

    revisada do captulo 13 do livro Para alm do capital Como poderia o Estado

    fenecer?-, e o segundo uma entrevista concedida jornalista Eleonora de

    Lucena e publicada em 17 de novembro de 2013.

    Mas por que Mszros retoma o tema do Estado, e mais do que isso, anuncia

    estar preparando uma outra obra a ser lanada com o ttulo Critique of the State

    (A crtica do Estado) ?

    Alm da atualidade do tema, um outro fator parece ter contribudo bastante para

    esta sua deciso. Eis o que ele afirma em Para alm do capital (aqui nas pginas

    164-165), e repete em citao nas pginas 41-42:

    () No , portanto, de modo algum surpreendente que Marx nunca tenha tido sucesso [sic] em sequer rascunhar os meros esboos de sua teoria

    do Estado, apesar de este receber um lugar muito preciso e importante no

    seu sistema projetado como um todo. Hoje a situao absolutamente

    diferente, por isso que a elaborao da teoria marxista do Estado hoje ao mesmo tempo possvel e necessria. Na verdade, vitalmente importante

    para o futuro das estratgias socialistas viveis. (itlicos nossos)

    Alm disso, nesta obra relembrando o conhecido texto de Norberto

    Bobbio de quarenta anos atrs Existe uma teoria marxista do Estado? ,

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    Mszros ao referir-se literatura mais recente (42), sugere que tal teoria at

    poderia existir de alguma forma que no especifica -, mas que, sem dvida,

    no seria adequada, apropriada (43), nem estaria totalmente desenvolvida

    (44), deixando, porm, de apresentar um balano da bibliografia marxista mais

    recente que pudesse informar ao leitor quais seriam seus eventuais avanos,

    limites e problemas.

    Nos sete ensaios de A Montanha, Mszros discute algumas questes

    relacionadas ao Estado privilegiando o debate com autores e polticos no

    marxistas. O primeiro ensaio apresenta a tese sobre o fim da poltica liberal

    democrtica, tomando como referncia o conflito pelo domnio sobre o canal de

    Suez em 1955. O segundo trata do fenecimento do Estado, a exemplo do

    primeiro apndice, reafirmando a conhecida crtica ideia de uma possvel

    abolio do Estado j feita, entre outros, por Lenin h quase um sculo atrs.

    No terceiro, ao criticar a anlise que reduz a questo do Estado s teorias da lei e

    do direito, Mszros considera que o Estado realmente existente tambm se

    caracterizaria por uma ilegalidade absolutamente destrutiva, o que tornaria

    ilusria qualquer tentativa de limitao de seu poder. Continuando a abordar o

    direito e o poder no quarto ensaio, o filsofo hngaro sustenta que o direito a

    base do poder [right is might] porque o poder que estabelece o direito [might

    is right], e no o contrrio (48). Alm disso, a prpria legislao estatal

    garantiria a legitimao da lei do mais forte [might-as-right] (48). Por sua vez,

    a lei, em certo sentido, seria sinnima da ilegalidade do Estado em geral

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    (57). Se nesse ensaio Mszros se ocupa da teoria do Estado de Ernest Baker

    antigo professor de Cincia Poltica na Universidade de Cambrigde -, no

    prximo ensaio, o quinto, ele critica outro autor ingls tambm pouco conhecido

    no Brasil, John Austin, sucessor de Jeremy Bentham, destacando suas ideias

    sobre direito constitucional, soberania e sujeio. E Hegel, que mencionado ao

    longo de todo o livro, analisado de forma mais desenvolvida no sexto ensaio,

    dedicado s suas formulaes sobre o Estado-nao - como realidade histrica

    no transcendvel (78), dotado de poder absoluto sobre a terra(80) -, que

    serviriam para justificar as guerras mais destruidoras possveis. No stimo e

    ultimo ensaio, o autor no apenas sublinha o fracasso histrico do Estado ao

    tentar cumprir suas funes corretivas vitais (94), necessrias reproduo

    material antagnica do sistema do capital, como tambm chama a ateno para a

    sua atual falncia, que se manifestariam mesmo nos Estados capitalistas

    centrais (95).

    Como se v, um conjunto de questes que podem isoladamente

    suscitar um debate visando aprofundar o entendimento especfico de cada uma

    delas, incluindo ainda afirmaes sobre uma democracia substantiva, e no

    apenas formal, que tambm j faz parte do legado marxista dedicado ao tema do

    Estado e da democracia. E quanto aos autores no marxistas mais conhecidos

    que analisaram algumas dessas questes, Mzsros sequer menciona os

    argumentos de John Rawls, David Easton, Robert Dahl, e os ltimos de Jrgen

    Habermas, Claus Offe, Giorgio Agamben.

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    No breve espao de uma resenha, levantaria uma nica pergunta

    relacionada com o tema central do livro: o que Mszros afirma sobre o Estado

    e como isso pode ser entendido?

    Como lukacsiano, o autor se apoia principalmente nas anlises do

    jovem Marx (1843-1844) sobre o Estado, considerado como um corpo

    alienado, separado e independente (17-18,21,35,76) do conjunto da

    sociedade, e, portanto, no somente da classe explorada, como tambm da classe

    exploradora. O Estado seria expresso da alienao poltica humana e s poderia

    fenecer com a reabsoro de suas atividades pelos conjunto dos indivduos (ou

    produtores). Dessa forma, o fenecimento do Estado visto como condio

    indispensvel para a emancipao humana, que seria completada com o fim do

    capital e do trabalho explorador.

    Essa concepo negativa do Estado como tal (=expresso da

    alienao poltica a ser superada), se relaciona com uma concepo igualmente

    negativa da poltica que, segundo Mszros, teria sido predominante no

    pensamento de Marx (116-118): ela seria necessariamente unidimensional,

    substitucionista (118), usurpadora (127), alm de dotada de uma

    parcialidade intrnseca (128) estando em uma contradio inconcilivel

    com o social, que seria a expresso da autntica universalidade da sociedade

    (118-119) . Sendo assim, a poltica s poderia realizar funes destrutivas na

    transformao social (abolio da escravido assalariada, expropriao dos

    capitalistas, dissoluo dos parlamentos burgueses, etc, 127-ss). De todo

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    modo, ele admite uma eventual poltica socialista que teria de resolver a

    questo da passagem do substitucionismo restituio (127) das atividades

    separadas e alienadas dos indivduos no curso da transio para o comunismo.

    Para Mszros, o Estado uma parte indissocivel do sistema do

    capital, juntamente com outros dois componentes capital e trabalho. Sem

    recorrer aos conceitos de base econmica e superestrutura jurdico-poltica, ele

    afirma, no entanto, que a materialidade do Estado estaria profundamente

    enrazada nessa base sociometablica antagnica do capital (29 e 28, itlico

    nosso). Entre capital, trabalho e Estado haveria uma inter-relao trplice(29)

    mas no harmoniosa. Mais precisamente, as prprias clulas constitutivas da

    ordem estabelecida manifestariam uma centrifugalidade antagnica (21, e

    ainda 103-104,108), que poderia atingir seus prprios limites. isso que

    determinaria a funo corretiva do Estado (94), visando garantir a contnua

    reproduo do sistema do capital.

    O termo funo o que mais aparece nas afirmaes de Mszros

    sobre o Estado ver pginas, 16, 50, 93, 99, 164, etc. Nesse sentido, o Estado

    em geral seria o realizador dessa funo especfica e necessria ao conjunto do

    sistema. Ou seja, o Estado entendido apenas como funo, derivada, do

    capital, e no tambm como um aparelho especializado e dotado de

    materialidade prpria, com modo de funcionamento especfico, padro

    hierrquico de organizao interna, e todos os componentes disso (burocracia,

    exrcito, polcia, etc.).

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    Essa afirmao restrita sobre o Estado enquanto funo (sem a

    discusso sobre seu carter latente ou manifesto, sobre a existncia ou no de

    modalidades especficas na poltica, na economia, ou na ideologia e a relao

    entre elas) que ajuda a esclarecer outras questes que apenas registramos: a

    metfora da montanha (28, 35, 112-113) que deve e pode ser conquistada

    (mas no destruda como defendeu Lenin referindo-se principalmente ao

    aparelho de Estado burgus em O Estado e a revoluo); a referncia possvel

    transcendncia (termo com longa tradio filosfica, mas no muito presente

    nas anlises marxistas sobre o Estado) do Estado e da poltica como tais (ver

    pginas 120, 134, 162), que adquire sentido se for relacionada apenas com a

    reabsoro das atividades estatais pelo conjunto dos indivduos (produtores) em

    uma nova comunidade do trabalho o sujeito social da emancipao(167) e o

    nico componente da trade dotado da capacidade de autotranscendncia; o

    uso reiterado do verbo fenecer para se referir ao objetivo do fim do Estado,

    que tambm sugere um processo automtico de extino do Estado, e oculta a

    discusso sobre as medidas prticas de desestatizao como revela as menes

    Comuna de Paris sem referncias s suas medidas principais.

    Seja como for, vamos ver se Mszros na sua prxima obra abordar

    tanto o legado marxista sobre o Estado e o direito, como aquele no marxista,

    como pr-condio necessria para formular um conceito novo e uma crtica

    nova sobre o Estado, indo alm de afirmaes descritivas sobre a sua funo.

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