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    Estudos Feministas, Florianpolis, 14(3): 819-841, setembro-dezembro/2006 823

    Nenhuma histria a HistriaNenhuma histria a HistriaNenhuma histria a HistriaNenhuma histria a HistriaNenhuma histria a Histria

    Nenhuma ilha uma ilha : qua trovises da litera tura ingle sa.

    GINZBURG, Carlo.

    So Paulo: Cia. das Letras, 2004. 146p.

    J no recente a ambigidade do termoHistria, ao mesmo tempo definindo um processoem constante movimento, comumente chamadode a histria vivida, e a sua interpretao, ouseja, a histria conhecimento, conforme ahistoriografia francesa. Tambm no incua a

    questo indicada por F. Nietzsche, no sculo XIX,de que a histriano passaria de um jogo deinterpretaes, no qual a Histria jamais seriarealmente alcanada. Ou, em outras palavras,o que disse Paul Veyne, no incio da dcada de1970, em seu livro Com o se escreve a histria:sempre se faz histrias de... alguma coisa, querdizer, de determinados processos e assuntos, masnunca a Histria.

    O historiador italiano Carlo Ginzburg, queiniciou sua carreira profissional nos anos de 1950e 1960, no interior daquelas discusses,pesquisando processos judiciais da inquisio dossculos XV e XVI, principalmente da regio doFriuli, na Itlia, um excelente exemplo da formacomo, nas ltimas dcadas, tais discusses foramconduzidas. Por meio dessas pesquisas seoriginaram as obras Os and ari lhos do beme Oqueijo e os vermes. Nas palavras do autor:

    Comecei a praticar o ofcio de historiadorexaminando textos no literrios (sobretudoprocessos da Inquisio) com auxlio dosinstrumentos interpretativos desenvolvidos porestudiosos como Leo Spitzer, Erich Auerbach,Gianfranco Contini [...] com o moleiro friulanoDomenico Scandela, dito Menocchio,

    condenado morte pela Inquisio por causa

    de suas idias, aprendi que o modo como umser humano reelabora os livros que l muitasvezes imprevisvel (p. 14).

    Em obras como Histria no turna, O juiz e ohistoriador, ou mesmo em Mitos, emb lemas esinais(livro que rene alguns de seus ensaios), oautor se deparou com a questo da interpretaodas fontes, da viabilidade das provas e do usoda narrativa. Alm disso, tambm se viu obrigadoa revisar o estatuto terico da histria dasmentalidades e da interpretao marxista dahistria, para desenvolver seus procedimentos deanlises das fontes e o prprio estilo de sua escrita.

    No incio dos anos de 1970, quando lanouseu famoso e polmico ensaio Sina is: ra zes de

    um pa radigma indicirio(que anos depois foireunido no seu livro Mitos, em blema s e sinais),no qual procurou historiar as origens de seuprocedimento investigativo das sociedades e doshomens no tempo, com vistas a analisar asmudanas e as permanncias das sociedadespassadas e das sociedades presentes, C.Ginzburg j indicava a forma como estavatomando partido naquela polmica historio-grfica. Nas suas palavras:

    Retorno quele ensaio, que desde ento temcontinuado a alimentar subterraneamente omeu trabalho, porque a hiptese sobre aorigem da narrao ali formulada tambmpode lanar luz sobre as narrativas voltadas,

    ao contrrio das outras, para a busca daverdade, e contudo modeladas, em cadauma de suas fases, por perguntas e respostaselaboradas de forma narrativa. Ler a realidades avessas, partindo de sua opacidade, parano permanecer prisioneiro dos esquemas dainteligncia: essa idia, cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pesquisa que inspiroutambm estas pginas (p. 14).

    Mas foi juntamente com Carlo Poni eGeovanni Levi, quando no incio da dcada de

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    1980 lanaram um peridico, a revistaQuaderniStorici, e dirigiram a coleo de estudos (reunindotrabalhos de intelectuais italianos, franceses eingleses) denominada Microstorie, publicadapela editora Einaudi, entre 1981 e 1988, que defato C. Ginzburg demonstraria suas insatisfaescom relao s interpretaes macrossociais,indicando, como alternativa necessria alterao da escala de anlise do historiador, osestudos microssociais.

    Na dcada de 1990, entretanto, ao se voltarmais para o gnero ensastico e para a anlisede romances, que C. Ginzburg indicaria demaneira mais direta sua polmica com ahistoriografia ps-moderna, na qual seus livrosOlhos de m ad eiraeRelaes de fo raformariamsuas primeiras incurses nesse debate sobre ahistria estar entre a artee a c inc ia. Nesse caso,Ginzburg segue os passos da polmica iniciadapor Aristteles, quando diferenciou a poesia picada histria na Antigidade clssica, e suascontinuidades, em nveis consideravelmentedistintos, nas crticas veementes de MichaelFoucault, Paul Veyne e Hayden White, sobre oestatuto cientfico da histria, e as respostas dePeter Gay, E. P. Thompson, E. Hobsbawm e MosesFinley sobre essa questo. A forma como Ginzburgincide na polmica sutil, quase sempre sem citaros argumentos e os autores, mas analisandodetalhes de um romance (como o de Flaubert),

    de fragmentos de um dirio, ou ainda, estudandoos rastros de povos antigos.E justamente seguindo essa forma discreta

    de polemizar com aquelas questes que em seunovo livro justifica que talvez [fosse] inevitvelque, mais cedo ou mais tarde, eu acabasse porme ocupar tambm de textos literrios (p. 14),no apenas para demonstrar as fragilidades dodiscurso dito ps-moderno, como ainda ressaltaro uso das fontes literrias para a melhorcompreenso das sociedades passadas. Diz oautor que, ao seguir os traos e a experinciadeixada por suas pesquisas anteriores numaperspectiva semelhante, abordei Vasco deQuiroga, leitor de Luciano e Thomas More; ThomasMore, leitor de Luciano; George Puttenham e

    Samuel Daniel, leitores de Montaigne; Sterne, leitorde Bayle; e assim por diante. Em cada um dessescasos, procurei analisar no a reelaborao deuma fonte, mas algo mais vasto e fugidio: arelao da leitura com a escrita, do presente como passado e deste com o presente (p. 14-15).

    EmNenhuma ilha uma ilha, originalmentelanado em 1999 em ingls, e em 2002 emitaliano, ligeiramente revisto (e apenas em 2004apareceria sua traduo para o portugus pela

    editora Companhia das Letras), Ginzburgprocurou avanar nas discusses acimarapidamente resumidas. Por um lado, recuperoua tradio do gnero ensastico que vai deMontaigne a Diderot e, por outro, tomou deemprstimo a definio de ensaio elaborada porT. Adorno e as observaes sobre esse gnerofeitas por J ean Starobinski, lembrando anecessidade de submeter as interpretaes aprova e as concluses s relativizaesnecessrias. Nas suas palavras:

    Estes ensaios propem uma viso no insularda literatura inglesa [...] por [meio de] um temacomum: a ilha, real ou imaginria, evocadano ttulo [...] [mas] a unidade do livro no apenas [...] de ordem temtica. Um mesmoprocedimento, ou princpio construtivo temguiado sem que eu me desse conta deimediato tanto minhas pesquisas como omodo de apresent-las (p. 11).

    O livro foi dividido em quatro captulos,articulados por um mesmo tema (e mesmoprocedimento interpretativo e narrativo), no qualo autor teria se inspirado nas palavras de J ohnDonne, quando disse que nenhum homem uma ilha. Se trocarmos a palavra ilhaporhistria,veremos que, na verdade, o que o autor procuroufazer foi demonstrar como o discurso narrativo doshistoriadores constantemente reescrito.Contudo, nem por isso tal discurso deve ser

    relegado a uma mirade relativista, porque, almde acompanhar as mudanas drsticas einesperadas da(s) sociedade(s), inevitavelmenterefazendo suas indagaes sobre ela, tambm um exerccio investigativo no qual a procura deindcios e provas constituiriam a sua funo socialprimordial, j que a partir desses instrumentosque procura dar lgica anlise dos processose ao mesmo tempo inquirir possveis laos deidentidade, quanto de rupturas, com o passado.

    Muito embora reconhea que o que oshistoriadores fazem no escrever a Histria, mashistrias (porque, alm de serem constantementereescritas, jamais se conseguiria alcanar atotalidade do vivido), ele acredita que

    justamente nesse exercc io que o historiadordemonstraria sua funo social (no por trazer tona a verdade e sim por mostrar as verdadespo ssveis e expr essa s pelo s home ns do pa ssado)e seu valor perante a sociedade (ao recuperarsua memria coletiva), seja descobrindo ligaesentre o passado e o presente que antes no eramvistas, seja demonstrando a ao de indivduosperante seus pares e a sociedade, ou ainda,refazendo a trajetria de processos ou aeshumanas em funo de novas descobertas

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    investigativas (a partir de provas necessriasquelas afirmaes). E esse exerccio histricoe historiogrfico, que um exerccio acumulativo(e sempre complementado), que procurou fazerao observar a importncia de Luciano deSamsata para Thomas More, a polmicaelisabetana sobre a dignidade da rima, osvnculos sutis que ligariam o proco LaurenceSterne, que foi autor de o Tristam Sha nd y, ao ateuPierre Bayle e, finalmente, a possvel inspiraoque o etnlogo anglo-polons Malinowski teriarecebido com a leitura dos contos do escocsRobert Louis Stevenson.

    Em todos esses casos, observa que o regimedas trocas literrias oportunizadas entre as ilhas

    inglesas e o continente europeu foi decisivo naformao tanto da literatura inglesa quanto desua identidade nacional. Por outro lado, registraa importncia do detalhe, colhido muitas vezesquase que ao acaso, para se reconstituir umprocesso, porque foi o acaso, no a curiosidadedeliberada, que me fez dar com os comentriosdo bispo Vasco de Quiroga Utopiade ThomasMore ou com a Defesa d a rimade Samuel Daniel(p. 11). por isso que indica que com o gneroensastico existiria a flexibilidade necessria paraa construo da narrativa. Nas suas palavras:

    Mas talvez essa mesma flexibilidade tenhaxito em captar configuraes que tendem aescapar s malhas das disciplinas

    institucionais. Talvez seja instrutiva adivergncia entre Quentin Skinner e este autora propsito do gnero a que pertenceria aUtopiade Thomas More. Seria possvel objetarque a Utopiaconstitui um caso especial,tratando-se de um dos raros textos queinauguraram um gnero literrio. Mas eu mepergunto por qual motivo uma polmica primeira vista tcnica sobre a dignidade darima, que irrompeu na Inglaterra elisabetana,foi treslida a ponto de se ignorarem suas razescontinentais, a comear por Montaigne. Seriamuito fcil encontrar muitos casos do mesmoteor (p. 13).

    E justamente sobre isso que o autor chamaa ateno de seus possveis leitores do incio ao

    final de seu texto, poisnenhuma ilha uma ilhapoderia ser lido como nen huma histria aHistria(e, por isso, o discurso histrico toincompleto e fugidio, e s vezes tambmimpreciso, por falta de fontes que o comprove).Nas suas palavras:

    Nos dois primeiros captulos falou-se de ilhas ilhas inventadas, como a de Utopia, ou reais,como a Inglaterra de uma perspectiva noinsular. Contra o lugar comum corrente

    segundo o qual todas as narrativaspertenceriam em alguma medida esfera dafico, procurou-se mostrar que existe umarelao complexa entre as narrativasinventadas e as narrativas com pretenso verdade. A ilha imaginada de Utopiapermitiuque Thomas More percebesse (e denunciasse)as extraordinrias transformaes em curso nasociedade inglesa. A defesa da rima comoprocedimento literrio diante das acusaesde barbrie tinha lugar em uma ideologiaimperialista nascente, voltada a acentuar adistncia cultural e poltica entre as ilhasbritnicas e o continente europeu. Verdade efico, examinadas de uma perspectiva noinsular, encontram-se igualmente no centro

    deste terceiro captulo, dedicado ao TristamShandyde Laurence Sterne (p. 64).

    No ltimo captulo do livro Carlo Ginzburgpratica com maestria esse procedimento, aodemonstrar os possveis contatos entre Malinowskie Robert Louis Stevenson (principalmente com seuconto O demnio da ga r ra fa), quando estedesenvolvia sua interpretao do kulasobre astribos das ilhas de Trobriand:

    O kula, escreveu Malinowski nos Argonautas,refutava as idias, ento correntes, que viamno homem primitivo um ser racional que nodeseja outra coisa alm de satisfazer asnecessidades mais elementares, segundo oprincpio econmico do mnimo esforo.

    (Malinowski provavelmente ignorava que tinhaMarx a seu lado). Mas as implicaes dadescoberta de Malinowski ultrapassavam emmuito o mbito da chamada economiaprimitiva, como mostra a sua prognie tardia,do ensaio de Mauss sobre a ddiva Grandetra nsfo rmaode Polany, ou o ensaio de E. P.Thompson sobre a economia moral (no qual,todavia, a ligao mais indireta). O que defato estava em jogo era a noo de homooeconom icus, ainda hoje bem viva. Mas oarquiplogo de Stevenson e o de Malinowskiesto ali para nos lembrar que nenhum homem uma ilha, nenhuma ilha uma ilha [epoderamos acrescentar que nenhuma histriaa Histria] (p. 113).

    Nesse sentido, a leitura desse livro enriquecedora por pelo menos trs pontos: a)para nos dizer que a histria constantementereescrita, porque as mudanas dos homens e dassociedades no tempo exigemnovasinvestigaese questionamentos para se identificaradequadamente o que ainda se manteria dopassado no presente e o que mudou; mas nempor isso o discurso dos historiadores estaria imersonum relativismo, no qual no haveria mais a

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    procura de possveis verdades; b) no apenasde verdades que feito o discurso doshistoriadores, visto que, se as fontes forem mal ouinsuficientemente interpretadas, em casosextremos elas podem sugerir mentiras, que, aoserem transpostas ao discurso dos pesquisadores,podem vir a ser uma verdade; c) mas, mesmoassim, a funo social bsica do historiador ,seno a descoberta da verdade (ou das possveisverdades) que nos legaram as sociedadespassadas, ao menos a inclinao procura deverdades (demonstrando-se que em alguns casosa mentira, que no um mero detalhe nosprocessos histricos, pode se tornar uma verdadeconstruda pelo discurso). De forma mais direta,

    o autor quer demonstrar a importncia doshistoriadores para as sociedades na construode suas identidades, talvez at mais no perodoatual do que no passado. Para isso, indo contraa mar dita ps-moderna, sugeriu nesse livro queo discurso literrio pode tambm ser um caminho,quando bem analisado seu processo deelaborao e, com isso, cotejadas suas provas,

    para se escrever um discurso histrico verdadeiro(entre outros possveis) sobre as sociedades e oshomens no tempo. Isso porque a histria constantemente reescrita, fazendo com quenenhuma histria seja a Histria, mas nem porisso no seja um a h istria. justamente nesseponto, aclamado como o ine vitvel re la tivismodo discurso e da verdad e(a ponto de algunsestudiosos acreditarem que ou ela no existe, ou apenas uma construo discursiva), segundoa crtica dita ps-moderna, que para o autor seencontrariam a funo e a importncia doshistoriadores, no relativizando o seu discurso comqualquer outro (sem os mesmos cuidadosinvestigativos), mas primando por pesquisas mais

    precisas, inquirindo as fontes e agrupando asprovas para se definir nveis ma is ap roxima dosde verdad e, que segundo ele seriam possveisdentro do discurso dos historiadores.

    Diogo da Silva RoizUniversidade Estadual de Mato Grosso do Sul