Reprodutibilidade técnica e invenção

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Texto apresentado em 2007 no 6º ART Encontro Internacional de Arte e Tecnologia e depois publicado também na revista Comunicologia, do Programa de Pós-graduação de Comunicação. Trata de reflexões concomitantes a duas criações audiovisuais: Cantarolhar e Para Marília.

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texto apresentado em 2007 no 6º ART. Encontro Internacional de Arte e Tecnologia

Reprodutibilidade Técnica e Invenção

Ana Beatriz Barroso1

Resumo: Investigação sobre possibilidades de criação abertas por tecnologias digitais. Inspirados na reflexão de Walter Benjamin sobre os problemas e potencialidades da reprodução fotográfica da obra de arte, dois audiovisuais se complementam: Cantarolhar, colagem musical acompanhada de fotos sobre a presença da energia elétrica e amorosa no cotidiano de alguns (13’); e Para Marília, música original e montagem simples de desenhos, pinturas e fotossínteses sobre três formas de amor – abstrato, natural, erótico (3’30”). A breve comunicação sobre essas práticas artísticas visa desenvolver a reflexão benjaminiana no sentido de tensionar os pólos da inventividade e da reprodutibilidade na arte digital.

Palavras-chave: reprodutibilidade técnica, arte digital, invenção

1. Introdução

Em 1955 Walter Benjamin publica um texto que se torna referência incontornável nos debates em torno da fotografia e do cinema como formas de arte ou como tecnologias que abalam a noção então vigente de arte: “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Este texto, apesar de ter sido, desde sua publicação, extremamente discutido e estudado, guarda até os dias de hoje encantos encobertos. Um deles é a questão da fotografia de obras de arte, mais rica em desdobramentos que a questão da fotografia como forma de arte. Nesta perspectiva, a fotografia de arte, ou fotografia artística (aquela feita conforme os paradigmas da pintura acadêmica ou das estéticas contemporâneas) traz menos problemas ao teórico que a fotografia da arte, ou seja, que a reprodução fotográfica de pinturas, edificações, espetáculos, músicas e objetos considerados obras de arte. Isso porque no momento em que são reproduzidas, essas obras passam a ter, além da sua materialidade original e intrínseca – realizada pelo artista – uma outra materialidade, manipulável pelo grande público, pelos meios de comunicação e pelo indivíduo: sua imagem fotográfica, sendo ela da ordem do instantâneo (impressos) ou da duração (cinema, televisão, vídeo e digitais). Esta imagem origina textos das mais diversas naturezas: cartas, manifestos, matérias jornalísticas, livros, ensaios, artigos, palestras, conversas. Origina, também, outras obras de arte, que as usam, ora como texto, ora como matéria prima, para discutir a própria arte.

1 Doutoranda – PPG-FAC, UnB/CNPq. Professora de direção de arte, fotografia, criação e vídeo – Comunicação Social, UCB. [email protected]. (61) 33665141 ou 99623882.

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Benjamin interessa-se neste processo pela perda da aura, do que há de único no que sentimos em presença da obra de arte ou mesmo diante de uma paisagem. Isso envolve o contexto em que ela se encontra, nosso estado de espírito e o que sabemos ou ignoramos dela. O sentimento que a obra ímpar (ou que um fenômeno natural) provoca pode acontecer em outro lugar, em outro momento e inscrito em outro campo epistemológico? A aura é restituível? Essas são, na reflexão benjaminiana, as indagações fundamentais colocadas pela fotografia, ou seja, pela reprodução técnica da imagem de origem visual.

O cinema, por sua vez, acrescenta à problemática em foco a reprodução técnica do som. Com isso, não só o espaço (e tudo quanto é de ordem espacial – linhas, formas, claro-escuro, volumes, cores) é recriado, mas também o tempo pode ser reconstruído. Assim, enquanto o instantâneo fotográfico se encarrega de congelar uma fração de tempo e, desse modo, tirar o fenômeno de seu encadeamento linear na sucessão de fenômenos da qual faz parte, sugerindo assim novas possibilidades semânticas para aquela fração de tempo normalmente imperceptível, o filme cinematográfico fixa durações, sucessões específicas de acontecimentos fictícios ou reais. É verdade que antes de reproduzir o som o cinema reproduzia apenas a imagem em movimento e, portanto, dava-nos a possibilidade de reinventar o tempo. No entanto, podemos dizer que é com a reprodução do som que uma temporalidade mais propriamente humana se instaura: a temporalidade da fala. O cinema mudo (assim como a fotografia em preto e branco) é, justo por isso, mais facilmente associado à arte que o cinema sonoro e o filme colorido; estes são mais naturais, ou seja, mais parecidos com nossa realidade sensível, enquanto a arte é artifício, algo pouco natural, mesmo quando reverencia profundamente a natureza. O cinema falado – se é mais ou menos artístico que o mudo não vem ao caso – representa, portanto, a possibilidade de construção de um tempo único, particular, determinado pelo discurso, pelo ser da fala.

Isto posto, resta explicitar que a fotografia – instantânea, de cinema, vídeo, televisão e digital – traz consigo dois grandes estigmas: o de preservar certa objetividade e precisão, atributos cada vez mais valorizados no mundo moderno; e o de tornar irrelevantes as diferenças entre cópia e original. Analisados de perto, tais estigmas, evidentemente, não se sustentam, pois, no caso do primeiro, por trás da objetiva há sempre um sujeito e dentro da máquina, sempre uma voz – o cinema antropológico e documental o comprova. No outro caso, por mais que a informação essencial de uma ampliação fotográfica possa ser mantida nas cópias que dela se faz, há eventualmente solidões únicas (ou excessos de originalidade) em uma ou outra fotografia, seja porque suas cópias se dispersaram, seja porque o negativo se perdeu, seja ainda porque ela (naquele suporte – metal, vidro, papel, cerâmica, tecido, etc – com aquela determinada composição química) nunca mais se repetiu. De todo modo, importa reter que a imagem, correta ou não, que se faz da fotografia lhe assegura lugar de destaque na atualidade.

Acompanhada de som (do texto nos livros, jornais e propagandas impressos) e de música, diálogos, sonoplastia, ruídos e movimento nos meios audiovisuais, a fotografia ocupa o lugar que lhe é socialmente destinado e desafia, com sua simplicidade, perfeição e multiplicidade o pensamento crítico, que questiona, em revanche, seu potencial inventivo.

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2. Da Crítica à Realização

As críticas à fotografia como forma de arte e mesmo como instrumento de comunicação são, não só constantes, como abundantes. Em linhas gerais, giram em torno da facilidade do gesto (qualquer um fotografa, como dizia o slogan da primeira câmera compacta automática: “você aperta o botão, a Kodak faz o resto”) e da dependência inevitável da realidade física – afinal trata-se de um desenho da luz, de um desenho que se faz de fora para dentro, da luz que incide sobre a paisagem, a pessoa, o objeto, para o papel, e não de dentro para fora, da cabeça do desenhista para a folha em branco. Tais críticas resultam, para a grande maioria, na inviabilidade da fotografia para a arte, pois espera-se do artista habilidades específicas fora de série e uma autonomia ou liberdade de criação sem limites. Quando muito, a fotografia é uma arte menor – seja porque é reprodutível, seja porque se propõe, na maioria das vezes, a reproduzir (imitar com alta dose de fidedignidade) a natureza, raramente se propondo a aprimorá-la, transgredi-la, sublimá-la ou transcendê-la. Essas ponderações críticas, apesar de pertinentes, pouco interferem na realização artística com fotografia simplesmente porque a arte não é atributo de um ou outro meio (tinta, câmera, computador), não é intrínseca à tecnologia; a arte se dá em um outro plano, muito além do técnico – haja visto que alguns fotógrafos, extrapolando ou desprezando a técnica, fizeram arte.

A partir daí a crítica se dirige, normalmente, para a fotografia como prática social, muito exercida mas pouquíssimo refletida pela multidão munida de câmeras e ávida por momentos fotogênicos. Essas pessoas alimentam sem saber uma indústria tão bem disfarçada que quase ninguém a percebe, seja no campo teórico, seja no senso comum. Quem toca claramente na ferida é Vilém Flüsser, que, atento ao impacto da fotografia na mentalidade de nossa época, assim sintetiza uma das questões centrais de toda a discussão:

O mundo representado parece ser a causa das imagens técnicas e elas próprias parecem ser o último efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. O mundo a ser representado reflete raios que vão sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos óticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser símbolo e não precisar de deciframento. Quem vê imagem técnica parece ver seu significado, embora indiretamente. (Flusser, 2002: 14)

Ou seja, o grande problema é justamente o da leitura da imagem técnica, seja ela fotográfica, cinematográfica, videográfica ou computacional. A imagem técnica2, sendo fruto do texto que faz funcionar a

2 Mesmo que se diga da imagem computacional que ela pode ser, tanto inteiramente sintética, isto é, de origem puramente matemática (portanto teórica), quanto fotográfica, por ter origem na luz física, que então é traduzida em dígitos, ela permanece imagem técnica. “Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais.” (Flusser, 2002: 13) E é exatamente neste aspecto de imagem técnica, comum à fotografia, ao cinema, ao vídeo e à computação gráfica, que se encontra o maior entrave à invenção, posto que a técnica, no sentido aqui apresentado, circunscreve-se em sistemas extremamente rígidos ou complexos (a linguagem científica e a política, por exemplo). Isso

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máquina, não é vista como texto, mas como dado. Por essa razão está mais para segunda natureza que para arte ou mesmo comunicação, ou seja, está mais para extensão do homem e da linguagem humana, da qual ele não é muito consciente (pois esta o constitui), que para criação humana. Daí decorre que o meio ou a tecnologia, e tudo o que ela tem de ideológico, fica transparente; não é visto, percebido ou estranhado, é algo que faz parte da gente, do mundo, da sociedade etc. E, sem estranhamento, sem o velho pasmo essencial, dificilmente há invenção; repetimos confortavelmente, às vezes com nova roupagem, o que já se nos tornou familiar, sem nada avançar rumo ao conhecimento.

No entanto, não nos interessa desenvolver essas críticas, pois, se nos tiram da ignorância, não nos levam ao conhecimento. Recapitulamos ligeiramente algumas, que tangem o problema da reprodutibilidade técnica e da invenção para que possamos ultrapassá-lo, isto é, para que possamos saber como essa imagem técnica, à qual nos apegamos, tamanha é sua presença em nossas vidas3, pode extrapolar o papel social que habitualmente desempenha e ensaiar outros. Duas motivações essenciais nos levam a querer saber isso: a concordância com grande parte das críticas dirigidas à fotografia e a certeza de que cabe ao artista arejar diariamente a própria idéia de arte através do emprego de meios necessários à sua realização, mesmo que aparentemente estranhos às suas finalidades.

Um desses meios é o digital. Para entrarmos nele, em seus traços decisivos e no que eles podem representar para uma arte e uma linguagem já estabelecidas – a pintura, a fotografia, o cinema, o vídeo –, precisamos retomar uma idéia central do pensamento crítico, relativa ao problema da reprodutibilidade técnica e à questão da inventividade.

O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. (BENJAMIN, 1994: 168-169)

Limitando-nos à esfera da arte, podemos estudar algumas possibilidades de significação para fotografias e pinturas “desauradas”, isto é reproduzidas tecnicamente, agora, em meio digital.

não significa que a imagem técnica não possa vir a ser inventiva ou única, mas que isso é para ela, devido à sua natureza técnica, mais complicado. 3 “Logo de início há uma diferença entre escolher as artes visuais tradicionais da pintura e escultura para um exame atento de sua natureza e fazer o mesmo em relação à fotografia. Não seria muito difícil tirar as artes visuais de seu ambiente. Tiraríamos os quadros das paredes, fecharíamos os museus e galerias, derrubaríamos as estátuas públicas de seus pedestais, e o trabalho ficaria quase pronto. Depois disso, o mundo não ficaria muito diferente e muitas pessoas, de fato, nem notariam nada de errado. Mas tentem tirar a fotografia do mundo ao qual ela serve atualmente. O que aconteceria aos jornais e revistas sem suas fotografias? Aos pôsteres e embalagens das mercadorias, aos passaportes, álbuns de família, dicionários, catálogos? Seria vandalismo de primeiro grau, uma total espoliação.” (ARNHEIM, 1989: 121)

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3. Cantarolhar

Limitar-se à esfera da arte significa tratar de realizações, comentá-las na medida do possível. O artista-poeta (no sentido mais antigo, o fazedor) foi ao longo do tempo se fazendo cientista – mestre ou conhecedor do seu fazer – e filósofo: meditativo, ativo e questionador de tudo e de coisas particulares. Falar da própria poética é o desafio que aqui lhe é proposto. Suas reflexões críticas esperam ganhar formas e encontrar certa beleza.

Cantarolhar é um audiovisual feito de fotos e alguns trechos de vídeo sobre uma colagem de músicas populares – Marisa Monte, Caetano, Arnaldo Antunes, Casa de Farinha etc. Na origem do processo de realização deste audiovisual, há uma idéia de Marshall McLuhan segundo a qual os meios de comunicação, assim como os meios de transporte, são extensões do homem. Se o são, têm alguma inteligência. Resta-nos entrar em sintonia com ela, dialogar com a máquina.

Amaremos mais o luxo quando ele for visto como uma necessidade? A resposta é enfaticamente sim. Porque o exercício e a troca de conhecimentos é um prazer que aumenta com a sua posse por parte de nossos semelhantes. Se o exercício e a troca de conhecimentos inexauríveis eleva a qualidade do homem, então na era eletrônica ele terá a sua primeira oportunidade universal de ser ricamente humano. Mas para alguns poderia parecer que essa extensão do diálogo humano até abarcar todos os homens e todos os tipos de conhecimento converteria o próprio globo num computador único. (MCLUHAN, 2005: 57)

Aqui não há, nem poderia haver, os a priori críticos de Flusser. A

máquina, neste caso, tanto a câmera quanto o computador, é simplesmente algo que temos em casa4, que aprendemos um dia a usar, que estudamos, do ponto de vista teórico e também prático, desenvolvendo técnicas e aptidões específicas. Percebendo o óbvio (que o computador é uma máquina de comunicação), só poderíamos usá-lo para nos comunicar. Acontece que a comunicação é algo às vezes difícil para o artista, assim como o é para o louco. Ora é insuficiente, ora excessiva e desastrosa. A saída é procurar fazer com a máquina de comunicação caseira algo que não seja da ordem da linguagem e, sim, da arte. Isso para não enlouquecer, para conseguir ainda estabelecer alguma ponte significativa com a realidade. A tecnologia, então, qualquer que seja ela, mas principalmente a que nos é mais próxima e marca, indubitavelmente, o advento de uma nova era na história da comunicação humana – a tecnologia computacional – é revestida de novos valores.

Em Cantarolhar, reproduzimos digitalmente fotografias e músicas que falavam de um modo ou de outro de energia elétrica. A idéia partiu de uma sobra que nos fez lembrar uma máxima de Manoel de Barros: “o que é bom para o lixo é bom para a poesia”. Havíamos realizado, com o Núcleo de Fotografia Captura, da Universidade Católica de Brasília, e com o Fotoclube UnB a exposição OlharLuz (dezembro de 2005) para a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) que nos procurou, querendo fotografias mais 4 Lúcio Costa, ao idealizar Brasília, pensava o automóvel como algo já domesticado. O computador também já está domesticado. O pensamento crítico, no entanto, não cansa de suspeitar: não fomos nós domesticados pelas máquinas?

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poéticas que as tradicionais fotos de fiação para o catálogo daquele ano. Pensamos, então, em realizar fotografias que mostrassem a presença da energia elétrica no cotidiano das pessoas, das mais diversas formas. As idéias foram se concretizando em meios de comunicação eletrônicos, gente, canções, luzes, bares, paisagens noturnas, olhares, postes, fios, desenhos de luz, fogo, riscos de faróis, pôr-do-sol. Quando abandonamos um pouco o elétrico e nos concentramos na noção de energia, a fotografia apareceu como meio e aflorou uma ingenuidade: normalmente gostamos de fotografar energias boas que vão passar, que estão passando; gostamos de fotografar a aura dos bons momentos, para atualizá-los sempre que pudermos. Pouco importa se teoricamente nos consideremos além do bem e do mal, que percebamos as limitações colocadas pelas dicotomias: na realidade gostamos do que é bom; isso se revelou assim sem mais, naquelas fotos e nas outras que fomos fazendo especialmente para o vídeo. Tampouco cabe aqui discutir se a aura se perde com a reprodução técnica, pois, se na perspectiva sociológica e histórica de Benjamin o conceito de aura é bem definido, na sua perspectiva psicológica – que interessa de fato ao comentário poético – a aura é um conceito impreciso; interessante, mas pouco trabalhado.

Para o olhar crítico, por exemplo, a aura se perde de algum modo. Quem tem uma relação com a fotografia que se resume a esperar dela a criação de um campo formal perfeito (porque técnico) ou a restituição de uma imagem original (e todas as sensações que no instante da foto ela nos provocou, ou seja, sua aura, aquilo que, por ter nos parecido tão único e irrepetível, nos impeliu a fotografá-lo) fatalmente se frustra. O que ela tecnicamente reproduz em si enquanto pequeno pedaço de papel, slide ou vídeo parece a tal espectador sempre inferior e incomparável ao instante vivido. O problema é aquele já mencionado por Flusser: o da leitura. Esquece-se, com freqüência, ao clicar e ao olhar para a imagem fotográfica, que a foto não é a coisa, mas um signo da coisa já ausente. Esquece-se que a fotografia representa, de modo mais ou menos feliz, a coisa que já morreu ou passou. A fotografia não reproduz a realidade original (natural ou artística), muito menos fixa sua aura, ela representa um fragmento (do tempo e do espaço) dessa realidade; fragmento, este, aberto a múltiplas interpretações.

Pensando assim, recolhemos as fotografias que ficaram de fora da exposição a fim de interpretá-las em um audiovisual com canções sobre a temática (da energia elétrica). As músicas rememoradas e escolhidas formaram então algo como diadialuzdosolhosteusnomeucantarolhar. A idéia era falar com a voz do cantor, ou seja, traduzir alguns pensamentos vagos sobre o convívio diário com a energia elétrica e com outras formas fotogênicas de energia, em pedaços de versos musicados, ritmos, melodias, servindo-nos da matéria musical da mesma maneira que nos servimos da matéria fotográfica, ou como o artista se serve da matéria plástica – já que no processo criativo o realizador lança mão de tudo que possa suprir sua necessidade de expressão e investigação.

Para ele, a reprodução técnica do som (ou imagem sonora) traz praticamente os mesmos problemas teóricos que a reprodução técnica da imagem: a perda da aura, a apropriação desregrada da obra de arte musical pelo ouvinte, o abalo da tradição, a re-significação em novo contexto e, finalmente, o que Benjamin chama de atualização. E, assim como a fotografia, a reprodução técnica do som traz também a possibilidade de

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renovação da linguagem (para não dizer renovação humana), a potência da inventividade. O som, portanto, pode ser roubado do mundo, isto é, ser reproduzido tecnicamente à vontade, da natureza ou da arte – assim como a fotografia – e passar pelo mesmo processo de interpretação. Indo além da interpretação, o ouvinte da era computacional pode, digitalmente, manipular esse som assim como manipula as imagens fotográficas. Nesse caso, sua leitura concretiza-se em ação.

Resta dizer que neste trabalho, Cantarolhar, a invenção reside na montagem, bastante complexa. As reproduções técnicas – tanto as fotografias quanto as canções – são relativamente simples. Não podemos dizer que são artes menores por serem fotografias de amadores e música popular, de rádio. Podemos apenas dizer que, em princípio, não se trata claramente de obras de arte. No entanto, tais reproduções digitais experimentam, nas mãos do leitor ativo e poeta, uma reprodutibilidade especial. Foram seqüencializadas e montadas em uma ordem que não é dramática, nem é exatamente narrativa – como a do cinema tradicional. A montagem de Cantarolhar costura a reprodução das fotografias com a reprodução dos trechos de música popular brasileira seguindo o ritmo das associações contrastantes, harmônicas ou divergentes em seus sentidos. O que se vê e ouve nele gera um movimento feito de instantâneos e sons, é um tipo de cinema, muito diferente do que se entende normalmente por cinema: um cinema digital que escapou da rigidez do sistema controlador das tecnologias audiovisuais.

4. Para Marília

Sobre este trabalho há muito pouco a dizer. Basta colocar tudo o que foi dito acima em frente ao espelho. Para Marília é o contrário, o avesso de Cantarolhar. Excetuando o sofisticado casamento de imagem visual e sonora, a montagem deste audiovisual é simples, na verdade, é feita pela máquina: por um programa computacional que normalmente serve para arquivar fotografias digitais. No entanto, as unidades reproduzidas – pinturas, desenhos, fotocolagens e peça para piano – são bastante complexas, são obras de arte. Lá, em Cantarolhar, a fotografia reproduzia a natureza (inclusive a ingenuidade da natureza dos “bons” fotógrafos). Aqui, em Para Marília, a fotografia reproduz a arte. O tema que amalgama as obras é o amor em três formas: abstrato, natural e erótico. Este audiovisual não deixa de ser um cinema, espécie de cinemalado.

5. Conclusão

A comunicação sobre essas duas práticas artísticas complementares digitais, audiovisuais, fotográficas e musicais deságua finalmente no leitor, convidando-lhe a uma fruição poética, extremamente inventiva.

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Referências Bibliográficas ARNHEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.MCLUHAN, Marshall. McLuhan por McLuhan: conferências e entrevistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.