Jornalismo, guerra e reprodutibilidade técnica: um estudo ... · está na introdução do livro...

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FERNANDO ALBUQUERQUE MIRANDA Jornalismo, guerra e reprodutibilidade técnica: um estudo sobre os impactos e as influências do cinema e da televisão em livros-reportagem sobre guerras PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA Novembro de 2007

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FERNANDO ALBUQUERQUE MIRANDA

Jornalismo, guerra e reprodutibilidade técnica: um estudo sobre os impactos e as influências do cinema e da

televisão em livros-reportagem sobre guerras

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

Novembro de 2007

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FERNANDO ALBUQUERQUE MIRANDA

Jornalismo, guerra e reprodutibilidade técnica: um estudo sobre os impactos e as influências do cinema e da

televisão em livros-reportagem sobre guerras

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

Novembro de 2007

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Fernando Albuquerque Miranda

Jornalismo, guerra e reprodutibilidade técnica: um estudo sobre os impactos e as influências do cinema e da

televisão em livros-reportagem sobre guerras Banca Examinadora:

Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende – UFSJ

Orientador

Profª. Drª. Margarethe Born Steinberger-Elias – UFABC

Profª. Drª. Magda Velloso Fernandes de Tolentino – UFSJ

Profª. Drª. Magda Velloso Fernandes de Tolentino

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Teoria Literária e Crítica da Cultura

Novembro de 2007

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Aos meus pais, Antônio e Maria (pessoas raras por trás de nomes simples)

Ao jornalista Joel Silveira (1918 / 2007)

5

Agradecimentos

Agradeço especialmente ao professor Guilherme, pela orientação, pelas boas

idéias e pela paciência.

À Capes, que tornou mais fácil a realização desse projeto.

À Universidade Federal de São João del-Rei.

Aos professores do curso de Mestrado em Letras (ao Toninho e à Dylia, pela

introdução ao mundo da análise de discurso; à Adelaine e à Suely, pelas dicas de

livros e textos; à Magda, pela força no abstract).

Aos colegas de Mestrado Adriana (ao André e ao Alexandre), Cristia, Denise

(literatura), Denise (discurso), Enoi, Heleniara, Jeanne, José Roberto, Sandra e

Sirlei.

Obrigado Nelson Cavaquinho e o grupo cubano Orishas (pela inspiração nas

noites são-joanenses).

Aos meus irmãos, cunhadas e sobrinhos (que grande família!).

Aos amigos (sempre comigo em qualquer situação).

À Kelly (pelo apoio emocional e estrutural).

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Resumo

A proposta desta pesquisa é analisar os impactos provocados pelos surgimentos

do cinema e da televisão sobre a cultura tomando-se como objeto de análise os

livros-reportagem O inverno da guerra, de Joel Silveira, sobre a Segunda Guerra,

e Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque segundo os bombardeados, de Sérgio

Dávila e com imagens de Juca Varella. Pretende-se investigar as repercussões

dos meios técnicos de reprodução de imagens em movimento e das

peculiaridades de suas linguagens sobre as formas como o homem passa a

perceber o mundo, em um sentido geral, e sobre a escrita desses dois jornalistas,

no sentido específico. Para isso, são investigadas as idéias de Walter Benjamin

acerca do cinema, os processos de sincretismo de linguagens técnicas e de

gêneros da indústria cultural conceituada por Adorno e Horkheimer, o império das

imagens fundado pela sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord e o

significado da televisão como meio de comunicação hegemônico na atualidade.

As características das linguagens cinematográfica e televisiva também serão

abordadas. O estudo dos processos de confluência entre jornalismo e literatura

em uma dimensão histórica fornecerá as bases para a compreensão dos livros

que serão analisados. Considera-se que Joel Silveira, que atuou em um momento

em que o cinema era o meio de comunicação hegemônico (anos 1940), tenha

assimilado algumas das características da linguagem cinematográfica em sua

escrita. A narrativa de Sérgio Dávila, produto de um período em que a televisão é

o principal meio de comunicação, exibiria as marcas da linguagem televisiva.

Palavras-chave: cinema; televisão; indústria cultural; sociedade do espetáculo;

Jornalismo Literário; guerra; Joel Silveira; Sérgio Dávila.

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Abstract

The aim of this work is to analyze the impacts on culture caused by the advent of

the cinema and of television, taking as subject the books O inverno da Guerra by

Joel Silveira, about World War II and Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque

Segundo os bombardeados, by Sérgio Dávila, illustrated with photos taken by

Juca Varella. We endeavour to investigate the repercussions of the means of

reproduction of the moving image and the peculiarities of its language over the

ways in which man starts realizing the world, in a general sense, and specifically

on the writing of the two journalists referred above. In order to do this, we looked

into Walter Benjamin’s ideas about the cinema, the processes of syncretism of the

technical and gender languages of the cultural industry explored by Adorno and

Horkheimer, the empire of images founded by the society of spectacle described

by Guy Debord and the meaning of television as a hegemonic means of

communication nowadays. We also look into the specific languages of the cinema

and of television. The study of the processes where journalism and literature

mingle in a historical dimension will be the basis for the understanding of the

books to be analyzed. We consider that Joel Silveira, who worked as a journalist

at a time in which the cinema was the hegemonic means of communication (in the

1940s), assimilated in his work some characteristics proper to the language of the

cinema. Sergio Dávila’s narrative, a product of a period in which television is the

main means of communication, shows the marks of the language of television.

Key words: cinema; television; cultural industry; society of spectacle; literary

journalism; war; Joel Silveira; Sérgio Dávila.

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Sumário

Introdução.............................................................................................................11

Capítulo 1: Cultura, imagem, espaço e tempo..................................................20

1.1 Exteriorização mecânica do sonho.............................................20

1.2 A fábrica de cultura.....................................................................25

1.3 O percurso do espetáculo...........................................................32

1.4 A ubiqüidade instantânea............................................................36

1.5 O reordenamento do espaço e do tempo...................................42

Capítulo 2: Cinema, televisão e escrita..............................................................44

2.1 A linguagem cinematográfica......................................................45

2.2 O cinema e a escrita...................................................................54

2.3 A linguagem televisiva................................................................58

2.4 A televisão e a escrita.................................................................63

Capítulo 3: Sobre as páginas dos jornais e dos livros.....................................66

3.1 Jornalismo e literatura: uma confluência histórica......................67

3.2 A crônica.....................................................................................70

3.3 Um novo jornalismo ou a revolta contra o lead...........................72

3.4 Romance-reportagem, livro-reportagem.....................................75

3.5 A interseção entre o factual e o ficcional....................................77 Capítulo 4: A guerra na era da reprodutibilidade técnica................................80

4.1 Joel Silveira e o inverno da guerra.............................................82

4.1.1 Os planos de Joel.................................................................83

4.1.2 A máquina de escrever cria movimentos..............................91

4.1.3 A narrativa em montagem.....................................................93

4.2 O diário de Bagdá, por Sérgio Dávila.......................................100

4.2.1 O pansincretismo impresso................................................101

9

4.2.2 A fragmentação pelos microrelatos....................................109

4.2.3 O leitor “assiste” a diálogos................................................114

4.2.4 A TV é representada...........................................................115

Considerações finais.........................................................................................118

Referências bibliográficas................................................................................123

Anexos................................................................................................................128

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Lista de ilustrações

Figura 1: Reprodução da página 20 do livro Diário de Bagdá.......................104

Figura 2: Reprodução da página 21 do livro Diário de Bagdá.......................105

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INTRODUÇÃO

As guerras só se tornam relevantes historicamente quando há quem

escreve sobre elas com talento. A frase é do jornalista José Hamilton Ribeiro e

está na introdução do livro Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque segundo os

bombardeados (2003), de Sérgio Dávila – um dos livros que serão analisados

neste trabalho. Hamilton Ribeiro lembra a importância de Homero para a Guerra

de Tróia, de Tucídides para a Guerra do Peloponeso e, no caso brasileiro, de

Euclides da Cunha para Canudos, do visconde de Taunay para a Guerra do

Paraguai e de Rubem Braga para a Segunda Guerra.

Como se percebe pelo raciocínio do jornalista, ele mesmo um veterano que

trabalhou como correspondente no Vietnã para a revista Realidade na década de

1960, os relatos de guerra são quase tão antigos quanto as guerras. Mas se em

um momento inicial as histórias das guerras eram apenas relatadas pela escrita, a

possibilidade do registro de suas imagens, primeiro pela fotografia e depois pelas

imagens em movimento do cinema e da televisão, foi o que tornou possível

documentar para os olhos e fixar no imaginário esses acontecimentos históricos.

Sendo assim, a história das guerras, sobretudo a partir do século 19,

desenvolveu-se paralelamente à história da evolução dos meios de comunicação

e da cobertura jornalística desses conflitos. O fotojornalismo, por exemplo, nasceu

com a Guerra da Criméia (1854-1855). Naquela época, o interesse popular com a

participação da Inglaterra no confronto fez com que o editor Thomas Agnew

convidasse Roger Fenton, fotógrafo oficial do Museu Britânico, para documentar

fotojornalisticamente o acontecimento (SOUZA, 2000).

Menos de uma década depois, a Guerra da Secessão (1861-1865) foi

massivamente coberta por fotógrafos. A descoberta, por parte dos editores norte-

americanos, de que os leitores também queriam ser observadores visuais (idem,

ibidem, p. 37) motivou esse interesse. A guerra civil americana caracterizou-se

ainda pelo papel desempenhado pelo telégrafo, que impulsionou a divulgação das

informações e notícias (FONTENELLE, 2004).

Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi a vez de o cinema ser utilizado

como importante fonte de informação. Na Segunda (1939-1945), os meios de

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comunicação, com destaque para o rádio, protagonizaram verdadeiras guerras de

propaganda entre as forças aliadas e os nazistas. Inglaterra e Alemanha,

principalmente, souberam tirar proveito da mídia disponível em sua época. Hitler

tinha Goebbels, considerado o pioneiro do marketing político mundial (idem,

ibidem, p. 24), como Ministro da Propaganda. Na Inglaterra, a BBC expandiu seu

serviço de rádio e passou a chegar a 73% dos lares britânicos durante o período

do conflito. Considera-se que a emissora tenha desempenhado papel

fundamental no contra-ataque à propaganda alemã e na elevação da auto-estima

dos soldados ingleses. A BBC também foi importante para os outros países

envolvidos no confronto. No início da guerra, a rede britânica transmitia sua

programação em sete idiomas. No final, por meio dela já era possível ouvir

notícias em 45 línguas (idem, ibidem).

Entre os dois conflitos mundiais, em 1927, o lançamento de um dos livros

fundadores da Escola norte-americana de Teoria da Comunicação, escrito por

Harold Lasswell, mostra que a guerra está de fato atrelada à própria história das

teorias da comunicação de massa. O nome da obra é sintomático: Propaganda

techniques in the world war.

Após a virada da primeira metade do século passado para a segunda, a

Guerra do Vietnã (1959-1975) é vista como o momento em que os Estados

Unidos foram derrotados em função do trabalho desempenhado pela mídia. A

divulgação de informações como o número de soldados mortos e o

questionamento do sucesso do exército nas batalhas pelos correspondentes

fizeram a opinião pública norte-americana posicionar-se contra o governo. O

desgaste obrigou os EUA a abandonar o combate naquele país.

A lição foi assimilada. Na Guerra do Golfo (1991), o exército americano deu

pouca liberdade à imprensa. A CNN foi a única televisão a transmitir o conflito de

Bagdá. Seu repórter, Peter Arnett, ganhou fama com a exclusividade, mas a

maioria das imagens do conflito captadas pela TV era de cenas distantes e

noturnas – na época ficaram conhecidas como imagens de videogame. A

cobertura da CNN inaugurou um novo período na história da televisão com suas

transmissões ao vivo dos bombardeios ao Iraque, mas os jornalistas dos demais

órgãos de comunicação tiveram seus trabalhos monitorados pelos militares.

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A atual Guerra do Iraque é o mais novo exemplo de como os meios de

comunicação, tendo a televisão como carro-chefe, passaram a ser utilizados

como instrumentos de guerra. Antes mesmo de seu início, em março de 2003, um

confronto discursivo já se encontrava em curso na mídia (STEINBERGER, 2005,

p. 310). Ele era sustentado por meio dos pronunciamentos de George W. Bush e

de representantes da Secretaria de Defesa dos Estados Unidos e procuravam

justificar a necessidade da intervenção militar, contra todas as evidências e

argumentos contrários a ela. A máquina de informações (de guerra) americana

abarrotou a mídia daquele país (e por conseqüência a de todo o mundo ocidental

via agências de notícia e conglomerados de comunicação) com um amplo

material noticioso construído para obedecer a estratégias militares. Para além de

convencer o Conselho de Segurança da ONU, instância responsável pela

definição do caráter (se favorável ou contrário) da resolução sobre a intervenção,

tratava-se de conquistar o aliado mais desejado hoje em dia em um confronto: a

opinião pública internacional (idem, ibidem, p. 309). De seu lado, Saddam

Hussein também estendia seu domínio sobre os meios de comunicação

iraquianos.

Como se pode perceber, são estreitos os laços que unem as guerras e os

meios de comunicação. Aliás, muitos desses meios foram desenvolvidos com

finalidades bélicas. O exemplo mais recente é a internet, concebida pela Agência

de Pesquisa e Projetos Avançados (Arpa), braço do Departamento de Defesa

norte-americano, no final dos anos 1960 para garantir a comunicação em caráter

de emergência caso os Estados Unidos sofressem um ataque (a preocupação

maior concentrava-se na então União Soviética). E o surgimento de cada novo

meio traz consigo um profundo impacto cultural (MCLUHAN, 2005). O

aparecimento das tecnologias de apreensão e reprodução das imagens em

movimento, o escopo dessa pesquisa, ao mesmo tempo em que tornou possível a

visualização das guerras, abriu novas possibilidades de o homem experimentar o

mundo.

O cinema, em um momento inicial, instaurou uma perspectiva diferenciada

de contemplação do mundo pelo homem com os recursos da câmera de

aproximar, afastar, tornar mais lenta ou mais acelerada as imagens. Walter

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Benjamin (1982) fala sobre o aprofundamento da percepção humana e o efeito de

“choque” proporcionados pela arte cinematográfica quando de seu aparecimento.

Lembramos aqui do assombro dos espectadores diante da exibição do filme A

chegada do trem na Estação de Ciotat, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, em

Paris.

Em um momento posterior, a televisão trouxe para o âmbito privado as

imagens do mundo e introduziu a capacidade de transportar, virtualmente, os

telespectadores, em questão de segundos, para os mais longínquos espaços e de

transmitir uma multiplicidade de imagens até então sem precedentes na história

dos meios de comunicação (ARBEX JÚNIOR, 2001; MORIN, 1987). Ciro

Marcondes Filho (1994) refere-se à figura do zapeador, o espectador televisivo

que pula de canal em canal munido de seu telecomando, para conceituar a nova

experiência introduzida pela TV.

O advento e o impacto desses meios de comunicação de massa (o cinema

na primeira metade do século passado e a televisão a partir dos anos 1950)

ajudaram a consolidar o que Theodor Adorno e Max Horkheimer (1982)

chamaram de indústria cultural, cujo funcionamento era traduzido em função da

produção incessante de produtos culturais em obediência a fórmulas de sucesso

comercial. Portanto, a indústria cultural encontrou nos sistemas capitalistas

terreno fértil para se desenvolver, o que não quer dizer, como salienta Edgar

Morin (1987), que tenha se desenvolvido apenas sob o capitalismo.

Uma das principais características da indústria cultural foi forjar o

sincretismo entre as várias linguagens técnicas dos meios de comunicação e

também a constante mistura de gêneros nos conteúdos de seus produtos. Assim,

esses produtos tendiam a sintetizar as peculiaridades técnicas do cinema, do

rádio, da televisão e dos meios impressos e a conjugar aspectos factuais e

ficcionais em seu conteúdo.

Diante desse quadro teórico, podemos perceber dois momentos de maior

impacto na cultura estabelecidos pelos desenvolvimentos tecnológicos nos

últimos 100 anos. Os dois têm a ver com a questão da imagem e representaram

uma profunda mudança na percepção humana. Primeiro, temos o cinema como

meio que inaugurou a capacidade de apreender, representar e reproduzir a

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realidade e o “choque” desencadeado por ele através da repercussão de suas

possibilidades diante dos olhos do homem. Depois, há o surgimento da televisão,

seu domínio em relação aos outros meios de comunicação e o novo estatuto da

imagem fundado por ela.

A proposta desta pesquisa é investigar as influências do cinema e da

televisão, portanto um sincretismo, no processo de cobertura jornalística de duas

guerras (Segunda Guerra Mundial e Guerra do Iraque) por jornalistas brasileiros e

nos livros-reportagem lançados em conseqüência desse trabalho. Para isso,

adquire importância abordar as características das linguagens cinematográfica,

onde destaca-se as contribuições de Romão (1981) e Martin (1990), e televisiva,

estudadas por Marcondes Filho (1993;1994), Martín-Barbero e Rey (2001),

Rezende (2000) e Requena (1999).

Importante também será investigar a relação entre essas linguagens e a

escrita. No Brasil, Flora Süssekind (1987) e Silviano Santiago (2004) observam a

influência do cinema na produção literária de alguns autores brasileiros,

respectivamente no início do século passado e nas décadas de 1930 e 1940. E

Ciro Marcondes Filho (1993) e Guilherme Jorge de Rezende (2000) percebem

atualmente o estilo televisivo ser apropriado pela escrita, principalmente no

âmbito do jornalismo impresso. Marcondes Filho lembra que o jornal norte-

americano USA Today, que segue essa tendência, se define como televisão

impressa.

A partir desses estudos, a intenção passa a ser marcar as diferenças entre

os impactos do cinema na escrita de Joel Silveira em sua cobertura da Segunda

Guerra Mundial, nos anos 1944-1945, e da televisão no texto do jornalista Sérgio

Dávila como correspondente da Guerra do Iraque, em 2003. Joel Silveira

trabalhava para os Diários Associados e parte dos textos escritos em sua

cobertura da guerra foi reunida no livro O inverno da guerra (2005). Sérgio Dávila

é jornalista da Folha de S. Paulo e foi o único repórter brasileiro, ao lado do

fotógrafo Juca Varella, a cobrir o conflito diretamente do Iraque. Posteriormente,

ele registrou suas impressões em Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque segundo

os bombardeados (2003), livro que é ilustrado com imagens de Varella.

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Pensou-se no início incluir ainda na análise o livro de José Hamilton

Ribeiro, O gosto da guerra, que relata sua experiência no Vietnã. O intuito seria

investigar possíveis transformações nas escritas desses jornalistas em três

momentos (décadas de 1940, 1960 e 2000) sob o impacto dos meios de

comunicação baseados na reprodução de imagens em movimento. O objetivo

seria estudar como esses meios, em seus diferentes estágios de desenvolvimento

técnico, exerceriam suas influências nas formas de os repórteres relatarem os

conflitos. Optou-se por restringir a análise aos livros de Joel Silveira e Sérgio

Dávila por considerar-se que seria mais produtivo contrapor dois momentos

separados por um período maior de tempo.

Dessa forma, a análise tentará identificar, dentro do sincretismo que

caracteriza os produtos da indústria cultural, a preponderância de elementos

relacionados à linguagem cinematográfica no texto de Joel Silveira e de

elementos próprios da linguagem televisiva no livro de Sérgio Dávila, além de

demonstrar a importância da imagem na construção do relato deste último. De

forma mais ampla, o que se quer é localizar e identificar as características das

transformações culturais pelas quais passaram as sociedades diante dos

surgimentos do cinema e da televisão; é pesquisar as conseqüências desses dois

eventos ligados ao campo da tecnologia para a percepção e representação do

mundo pelo homem.

Como se sabe, Joel Silveira atuou em um momento onde o cinema era

ainda a grande novidade. Sérgio Dávila trabalhou no contexto da

superabundância das imagens televisivas da contemporaneidade, da sociedade

do espetáculo descrita por Guy Debord (1997), onde a diversidade de referências

condiciona em parte a percepção humana. Em conseqüência disso, um outro

dado a se observar, e que será importante no processo de comparação entre os

dois livros-reportagem, é a presença da fotografia no livro de Sérgio Dávila.

Enquanto o relato de Joel Silveira prescinde de elementos iconográficos para

construir sua mensagem, a imagem é fundamental e parte constituinte da

mensagem em Dávila. Acreditamos ser este também um dos pontos a evidenciar

a transformação cultural efetivada pelo avanço dos meios técnicos de reprodução

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de imagens. Ou seja, através dos tempos, elas (as imagens) tornam-se cada vez

mais importantes para o ato de transmissão de informações.

O fato de que estaremos tratando de dois livros-reportagem, fará com que

seja necessário abordar aspectos da tradicional convivência entre jornalismo e

literatura (CASTRO; GALENO, 2002; PENA, 2006; SODRÉ; FERRARI, 1986) –

processo histórico que já demonstra uma manifestação antiga de sincretismo com

a interseção de elementos factuais e ficcionais. Serão resgatados e localizados

momentos dessa trajetória, como o período (final do século 19 e início do 20) em

que essas práticas se confundiam, o surgimento de movimentos como o Novo

Jornalismo e o Jornalismo Gonzo, e manifestações do Jornalismo Literário, como

a crônica, o romance-reportagem e o livro-reportagem.

A hipótese que se pretende verificar é a de que o cinema e a televisão

influíram diretamente, mas de maneiras diferentes, na escrita dos dois jornalistas.

Acreditamos que em Joel Silveira o texto apresenta-se mais descritivo, onde as

imagens são criadas textualmente. Sua escrita, portanto, seria reflexo daquele

momento histórico que tinha o meio técnico cinema como o grande expoente

tecnológico. Em relação ao texto de Sérgio Dávila, que recebe o suporte das

fotografias de Juca Varella, a hipótese é que trata-se de uma escrita mais

fragmentária, produto da cultura-mosaico de que nos fala Abraham Moles (1974),

repleta de referências a ícones da sociedade do consumo e menos descritiva,

uma vez que a televisão se encarregou, na contemporaneidade, de povoar

fartamente o imaginário de imagens com sua ubiqüidade instantânea.

A análise então procederá a partir do esboço de um percurso teórico em

duas frentes. Na primeira, que compreende os dois primeiros capítulos, o estudo

se concentrará sobre a evolução dos meios de comunicação de massa baseados

nos recursos de reprodução de imagens, com destaque para os meios de

reprodução de imagens em movimento, os impactos destes sobre a cultura e o

conseqüente processo de espetacularização da sociedade. Ainda nesta fase,

descreveremos as particularidades das linguagens do cinema e da televisão.

Posteriormente, entraremos na abordagem da evolução da linguagem jornalística

em sua relação com a literatura. A presença do sincretismo de linguagens

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técnicas e de gêneros como característica dos produtos da indústria cultural será

abordada ao longo da pesquisa.

Após o esboço desses pressupostos teóricos em duas frentes,

procederemos à análise do corpus contrapondo trechos das obras de Joel Silveira

e de Sérgio Dávila e identificando em um e outro discurso a presença de

elementos e procedimentos que manifestem a influência do cinema e da

televisão. Cabe registrar que, além da revisão bibliográfica, os dois jornalistas

também foram procurados para falar à respeito das hipóteses cogitadas.

No dia 14 de dezembro de 2006, Joel Silveira foi entrevistado. Durante

cerca de uma hora, ele respondeu por telefone a mais de sessenta perguntas.

Aos 88 anos, não pôde nos atender pessoalmente. Com a idade avançada,

explicou que já não enxergava direito e ficava a maior parte do tempo deitado na

cama. Impossibilitado de ler, não perdeu, contudo, o gosto por manter-se

informado. Confidenciou que passava horas “assistindo” televisão, e realmente

mostrou-se a par dos últimos acontecimentos naquela ocasião.

Com extrema gentileza, o jornalista que acompanhou os maiores

acontecimentos da história recente do Brasil e que é considerado o pioneiro do

jornalismo literário no país (PENA, 2006, p. 65), apesar de ele mesmo negar isso,

deixou parte de sua memória registrada nessa conversa. Falou das condições de

trabalho na Itália, onde chegou a pegar um inverno de 20 graus negativos, dos

momentos em que sentiu a morte passar por perto, da volta triunfante para o

Brasil e da polêmica mantida de forma involuntária com Mário de Andrade (ver

Anexo A, Entrevista com o jornalista Joel Silveira).

Sérgio Dávila também foi procurado. Mas apesar de colocar-se à

disposição e de termos marcado a entrevista por duas vezes por e-mail (ver

Anexo B, Correspondência eletrônica mantida com Sérgio Dávila), a conversa

acabou não acontecendo. Nas duas ocasiões, o jornalista da Folha de S. Paulo

não retornou nosso contato, o que acreditamos tenha ocorrido em função de falta

de disponibilidade devido a seu trabalho como correspondente nos Estados

Unidos.

As conversas com Dávila iniciaram-se em janeiro de 2007 e prosseguiram

até agosto. Desde o início, ele explicou que seria mais prático conceder a

19

entrevista por telefone. Mas chegou um momento em que não era mais possível

esperar. Havia prazos a serem cumpridos pela pesquisa no Programa de

Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei. Acreditamos

que a realização da entrevista com Sérgio Dávila teria enriquecido nossa análise.

Ao mesmo tempo, consideramos que essa ausência não tenha prejudicado o

resultado final da pesquisa.

Por fim, gostaríamos de deixar aqui registrada nossa homenagem a Joel

Silveira, falecido no dia 15 de agosto de 2007. Infelizmente não poderemos

cumprir um pedido do próprio Joel, que solicitou uma cópia desse trabalho após

sua conclusão.

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CAPÍTULO 1: CULTURA, IMAGEM, ESPAÇO E TEMPO

Todas as lendas, toda a mitologia e todos os mitos,

todos os fundadores de religiões e mesmo todas as religiões esperam sua ressurreição luminosa, e os

heróis acotovelam-se às nossas portas para entrar. O tempo da imagem chegou!

Abel Gance

1.1 Exteriorização mecânica do sonho

O homem sempre desejou compartilhar seus sonhos e, deste modo, o

cinema sempre existiu: o avanço das técnicas apenas tornou possível a

exteriorização mecânica do sonho (NAZÁRIO, 1999, p. 15). Com essa

observação, Luiz Nazário inicia o capítulo Um mundo feito para a câmera, o

primeiro de seu livro As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, onde traça

um panorama histórico dos inventos que permitiram o surgimento do cinema e

dos trabalhos de alguns dos primeiros realizadores dessa arte. O autor analisa

que a necessidade de compartilhar sonhos é inerente ao homem desde os

primórdios de sua história, sendo que os desenhos rupestres registrados nas

paredes das cavernas, ainda na pré-história, eram indícios desse anseio.

Luiz Carlos Merten segue raciocínio semelhante ao lembrar que alguns

críticos e historiadores situam a origem do cinema na caverna de Platão,

naquelas sombras projetadas nas paredes que eram a única coisa que as

pessoas lá dentro conseguiam ver do mundo externo (MERTEN, 2003, p. 12). O

escritor faz menção ainda às pirâmides do Egito como precursoras da arte

cinematográfica. Elas teriam funcionado como monumentos que representavam o

sonho do homem de eternizar sua imagem, de deixar marcas de sua passagem

pela Terra.

E mesmo o ato de ler, muito anterior ao aparecimento das técnicas que

tornariam possível a concretização dos filmes, já era responsável por acionar

mecanismos cinéticos de nossa imaginação, fazendo com que criássemos

21

mentalmente cenas e situações descritas em livros e outros materiais impressos.

Para o escritor Italo Calvino:

(...) lemos por exemplo uma cena de romance ou reportagem de um acontecimento num jornal, e conforme a maior ou menor eficácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante dos nossos olhos, se não toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto. (CALVINO, 1990, p. 99)

Mas para além da instância mental que desde muito tempo nos permite

criar esse universo de imagens ao procedermos a uma simples leitura, foi o

desejo de reproduzir o movimento em imagens concretas, ou exteriorizar

mecanicamente os sonhos, que impulsionou o ser humano a inventar uma série

de artefatos e técnicas ao longo de sua história. Exemplos disso, conforme

Nazário, são os teatros de sombra surgidos na China no século 11, os murais e

vitrais das igrejas e catedrais medievais com suas seqüências de imagens da

Bíblia e até brinquedos como os caleidoscópios, onde pequenas peças coloridas

dançam e formam desenhos geométricos animados por um jogo de espelhos

diante de nossos olhos. Essas técnicas e artefatos eram tentativas que há muito

ensaiavam o que o cinema tornaria possível no século 19, ou seja, a possibilidade

de registrar e reproduzir imagens em movimento.

Mas, ainda em um estágio anterior (e precursor) a esse momento histórico,

a humanidade começou a aprender a contemplar o mundo com dinamicidade a

partir do desenvolvimento dos modernos sistemas de transporte. As paisagens

fugidias que passavam pelas janelas dos trens, como nos relata Marcondes Filho

(1994), introduziram uma nova maneira de o homem ver as coisas. Era o

esfacelamento da noção de imagem centrada, unitária, representada pela pintura,

e o início da consolidação definitiva da aceleração das imagens diante do campo

de visão humano.

Aquilo que se via até então como parado, estático, imóvel, vai

ganhar, com a rápida evolução dos meios de transporte, um caráter dinâmico. O trem sinaliza a imagem que passa pela janela e vai-se tornando cada vez mais rápida. O fundo da paisagem ainda guarda um certo tipo de estabilidade, mas o plano intermediário e principalmente o plano mais próximo tornam-se muito rápidos. Os homens têm que se acostumar agora a não mais ter a vista fixada em um certo objeto, mas a

22

vê-los passarem rapidamente em sua frente. É o desmoronamento da noção de imagens centradas, unitárias, que o homem havia-se acostumado a ver na pintura e a expansão de uma sociedade em que as imagens passam de forma acelerada pela vista dos homens. (MARCONDES FILHO, 1994, p. 11-12)

O caminho que levaria à possibilidade técnica de captar e reproduzir

imagens começou a delinear-se em 1816 com o nascimento da fotografia, com

Hercule Florance, no Brasil, e com Niépce, na França (NAZÁRIO, 1999).

Conseqüência de um desenvolvimento químico-científico, a fotografia, de certa

forma, representou um refluxo à tendência de aceleração das imagens permitida

pelos novos meios de transporte. Ela possibilitou fixar e reproduzir cenas de uma

forma muito mais pormenorizada e fiel à realidade do que a pintura. Para

Benjamin:

Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1994, p. 94)

Essa peculiaridade causou uma revolução nas artes tradicionais, nas

palavras de Marshall Mcluhan (2005). Para o autor, não bastava ao artista pintar

um mundo fotografado à exaustão. O pintor teve então que partir para um

processo de descoberta de sua criatividade interior. Surgiram assim o

expressionismo e a arte abstrata. Também já não bastava ao escritor descrever

objetos e situações para o leitor. O poeta e o romancista voltaram-se para os

gestos interiores da mente – que nos fornecem a introvisão e com os quais

elaboramos nosso mundo e nós mesmos. A arte se deslocou da descrição para o

fazimento interno (MACLUHAN, 2005, p. 220)

Numa evolução das câmeras fotográficas e pela síntese de vários outros

aparelhos1 num único mecanismo de registro e reprodução de imagens, os irmãos

Auguste e Louis Lumière inventaram o cinematógrafo entre 1894 e 1895, este

último o ano em que o invento foi patenteado (NAZÁRIO, 1999). A nova arte que

1 Como o cinetoscópio, de Thomas Edison, que já usava película em fita contínua, mas permitia a apenas um espectador assistir ao filme por vez através de um orifício.

23

surgia proporcionava a ilusão de dinâmica pela projeção, por uma luz, de uma

série de fotogramas em seqüência.

A era do cinema era assim inaugurada e trazia consigo um rastro que

provocaria uma profunda transformação cultural. Não foi por outro motivo o efeito

de choque causado pelas primeiras projeções do filme A chegada do trem na

Estação de Ciotat (dos mesmos irmãos Lumière) nas pessoas pela força da ilusão

realista das imagens em movimento e a certeza de que se tratava apenas de um

truque (idem, ibidem, p. 19).

Um texto do escritor Maximo Gorki contemporâneo a esse acontecimento

retrata um pouco da sensação vivida pelos espectadores e do impacto produzido

pelo filme.

Surge um trem que, tal qual uma flecha, mergulha direto sobre o espectador. Cuidado! Ribombando na obscuridade, ele se apressa em transformá-lo num saco de pele esfolada, cheio de carniça humana e ossos quebrados, e teme-se que ele destrua esta sala, esta casa onde abundam o vício, as mulheres e a música, onde o vinho corre em torrentes, só deixando atrás dele ruínas e poeira. Mas, na realidade, não passa de um trem fantasma. (apud NAZÁRIO, 1999, p. 19)

A essa sensação de choque, as imagens (e também o som, num estágio

posterior) e a possibilidade de seu tratamento por técnicas até então

inimagináveis acrescentaram a abertura da perspectiva do homem em sua

interação com o mundo. Walter Benjamin escreve no clássico A obra de arte na

época de sua reprodutibilidade técnica que o cinema contribuiu para o

aprofundamento da percepção humana ao ampliar o mundo dos objetos que

passamos a levar em consideração, tanto na ordem visual quanto na ordem

auditiva (BENJAMIN, 1982, p. 232).

Trata-se da tradução da idéia de um meio de comunicação funcionando

como extensão do homem, conforme a teoria de Marshall Mcluhan (2005). Por

meio de suas possibilidades técnicas, o cinema amplia e prolonga nossa visão e

nossa audição. Essa característica é transformadora e torna-se uma experiência

cultural ampla e impactante, como ocorre em relação ao surgimento de cada nova

tecnologia.

Segundo o teórico canadense:

24

Os novos meios e tecnologias pelos quais nos ampliamos e prolongamos constituem vastas cirurgias coletivas levadas a efeito no corpo social com o mais completo desdém pelos anestésicos. Se as intervenções se impõem, a inevitabilidade de contaminar todo o sistema tem de ser levada em conta. Ao se operar uma sociedade com uma nova tecnologia, a área que sofre a incisão não é a mais afetada. A área da incisão e do impacto fica entorpecida. O sistema inteiro é que muda. (MCLUHAN, 2005, p. 84)

O sistema inteiro é que muda com o surgimento do cinema. A mudança

não se opera apenas durante os instantes de projeção na sala escura e

desaparece quando saímos à rua. De repente, Walter Benjamin vê a realidade

mediada por esse meio de reprodução técnica se descortinar maravilhosa para os

homens, como num empreendimento de aventureiro e à semelhança de inúmeros

roteiros ficcionais filmados, através de recursos como os grandes planos e a

câmera lenta.

Realizando o inventário da realidade através de seus grandes

planos, sublinhando os detalhes ocultos em acessórios familiares, explorando meios vulgares sob a genial direção da câmera, o cinema, se por um lado nos faz melhor perceber as necessidades que dominam nossa vida, conduz por outro a abrir um campo de ação imenso e de que não suspeitávamos. Nossos cafés e as ruas de nossas grandes cidades, nossos escritórios e quartos mobilados, nossas estações e fábricas pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Veio então o cinema e, pela dinamite de seus décimos de segundo, explodiu este universo concentracionário; assim, abandonados em meio aos estilhaços arremessados ao longe, agora empreendemos viagens de aventureiro. (BENJAMIN, 1982, p. 233)

O teórico alemão faz comentário semelhante ao que havia feito em relação

à fotografia sobre o cinema. Em sua opinião, as possibilidades inauguradas pela

sétima arte introduziram uma verdadeira experiência do inconsciente visual, a

exemplo do inconsciente instintivo da psicanálise, ao ampliar, ou prolongar, as

fronteiras da capacidade do olhar humano. Benjamin chega a considerar que a

interferência dos aparatos técnicos do cinema na captação e reprodução da

realidade operou uma transformação no sentido de tornar essa realidade

despojada da aparelhagem a mais artificial de todas. Segundo o autor, o cinema

transformou em uma simples quimera a captação imediata da realidade.

No ensaio Saindo do cinema (1980), Roland Barthes também aproxima a

fruição cinematográfica com a psicanálise. Para ele, o sujeito que sai de uma

25

sessão de filme é como aquele que se desperta da hipnose. Barthes observa que

antes mesmo de penetrar a sala escura já há o que chama de uma situação de

cinema, que é pré-hipnótica.

Tudo se passa como se, antes mesmo de entrar na sala, as condições clássicas da hipnose estivessem reunidas: vazio, ociosidade, desemprego: não é frente ao filme e pelo filme que sonhamos; é, sem o sabermos, antes mesmo de nos tornarmos seus espectadores. (...) Seguindo uma metonímia verdadeira, o escuro da sala é pré-figurado pelo “devaneio crepuscular” (prévio à hipnose, no dizer de Breuer-Freud) que precede este escuro e conduz o sujeito, de rua em rua, de cartaz em cartaz, a precipitar-se finalmente num cubo escuro, anônimo, indiferente, onde deve-se produzir este festival de afetos que chamamos de filme. (BARTHES, 1980, p. 121-122)

Um outro ponto considerado positivo por Walter Benjamin opera-se em

relação ao efeito de choque da sétima arte sobre o público. Para demonstrar essa

propriedade, ele recorre à comparação entre o cinema e uma das artes mais

antigas: a arquitetura. Esta alia o que o teórico chama de fruição táctil e visual:

pode-se tanto habitar um edifício como contemplá-lo. A arquitetura, portanto,

cumpre um papel funcional ao mesmo tempo em que pode servir à apreciação do

olhar.

Da mesma forma, longe de significar uma arte alienante, como muitos

críticos consideravam, o cinema, para Benjamin, teria a característica de

promover, conjuntamente, as capacidades do público em examinar uma realidade

enquanto se distrai. O público das salas escuras é indubitavelmente um

examinador, mas um examinador que se distrai (idem, ibidem, p. 238). Essa

condição garantiria, em seu modo de entender, a possibilidade de as massas

agirem e promoverem reviravoltas históricas, idéia francamente contrária a dos

detratores do cinema.

1.2 A fábrica de cultura

O cinema exercia fascínio sobre Walter Benjamin, o que se constata,

sobretudo, no ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. O

mesmo não se pode dizer a respeito de seus colegas na chamada Escola de

Frankfurt, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, que não compartilhavam das

26

idéias benjaminianas em relação aos novos meios técnicos. Adorno e Horkheimer

viam no cinema, por exemplo, apenas mais um componente do que conceituaram

como indústria cultural, termo que aparece em 1947 no texto A indústria cultural: o

iluminismo como mistificação de massas (ADORNO; HORKHEIMER, 1982).

Com uma visão pessimista em relação aos novos meios técnicos, os dois

percebiam uma degeneração das artes e a homogeneização das manifestações e

relações sociais, o que ocorria em um contexto de consolidação do domínio do

liberalismo econômico. Sua teoria era a de que, no âmbito da indústria cultural,

estabelecida nas sociedades capitalistas, a obtenção do lucro surge como um dos

principais objetivos. E os produtos culturais, como os filmes veiculados nos

cinemas e as programações transmitidas nas rádios, eram o resultado de

indústrias cujo objetivo constituía-se em satisfazer necessidades – sendo o

público sinônimo de consumidor – com produtos estandardizados. Apelava-se

assim para a produção em obediência a fórmulas de sucesso comercial.

Mas os negócios na indústria cultural não se restringem apenas ao

comércio de produtos culturais. De acordo com Guilherme Jorge de Rezende, a

ideologia do consumo inclui também o elemento publicidade como forma de

garantir a venda de outros produtos e serviços.

Vendem-se (...) não apenas bens culturais, mas, sobretudo, os produtos e serviços anunciados pela publicidade que a mídia veicula (ADORNO, 1977). A ideologia do consumo regula, portanto, todo o processo de produção na indústria cultural. (REZENDE, 1997, p. 8)

E se em um primeiro momento a indústria cultural encontra nos sistemas

capitalistas as condições ideais para seu recrudescimento (lucra-se com o cinema

por que este se presta ao entretenimento e ao lazer), passado esse impulso,

Edgar Morin (1987) explica que essa indústria se desenvolve em todos os

regimes. Seja no sistema privado, capitalista, pela necessidade de obtenção do

máximo lucro, seja no sistema de Estado, pelo interesse político e ideológico. Os

líderes soviéticos, por exemplo, reconheciam a importância social do cinema

como instrumento disseminador das idéias da nova sociedade que se pretendia

construir. A obra de Sergei Eisenstein, principalmente no início de sua carreira, foi

patrocinada com esse objetivo. Entre um e outro modelo de sistema, encontra-se

27

uma variada gama de situações intermediárias, que, para Morin, também são

espaços de ação da indústria cultural.

A contradição percebida pelo teórico francês encontra-se no fato de que

essa indústria precisa agradar um público que se constitui de maneira

heterogênea. Dessa forma, para funcionar, ela tem constantemente que superar

dois pares antitéticos: burocracia-invenção e padrão-individualidade. A burocracia

permeia o processo produtivo, uma vez que uma idéia criadora, antes de tornar-

se mercadoria a ser consumida, tem que se submeter a várias fases. Um exemplo

ilustrativo ocorre na indústria cinematográfica. Para se tornar filme, uma idéia

(invenção) deve passar pela aprovação de produtores (os agentes captadores),

transformar-se em roteiro e enfrentar um processo de filmagem em etapas onde

pesam aspectos técnicos, que certamente influirão nos rumos da idéia original, no

nível da realização.

O padrão é necessário pelo próprio ritmo industrial do processo.

Observando mais uma vez o cinema, Edgar Morin compara as fases de produção

de um filme com o mesmo processo de produção segmentado de uma fábrica.

Temos a matéria-prima, o roteiro original ou romance que será adaptado, os

profissionais que se ocuparão do cenário, do figurino, da trilha sonora, o

montador, o trabalho dos atores e do diretor. Portanto, o filme é um produto que

surge em obediência a normas especializadas de produção. O que não quer dizer

que o elemento originalidade (individualidade) seja descartado. Pelo contrário, ele

é fundamental para que o produto cultural dê certo. Morin destaca que a

possibilidade da organização burocrático-industrial da cultura reside na própria

estrutura do imaginário.

O imaginário se estrutura segundo arquétipos: existem figurinos-modelo do espírito humano que ordenam os sonhos e, particularmente, os sonhos racionalizados que são temas míticos ou romanescos. Regras, convenções, gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às obras, enquanto situações-tipo e personagens-tipo lhes fornecem as estruturas internas. A análise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas. Ora, toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial. A indústria cultural persegue a demonstração à sua maneira, padronizando os grandes temas romanescos, fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos.

Praticamente, fabricam-se romances sentimentais em cadeia, a partir de certos modelos tornados conscientes e racionalizados. Também o coração pode ser posto em conserva.

28

Com a condição, porém, de que os produtos resultantes da cadeia sejam individualizados. (MORIN, 1987, p. 26)

A equação contraditória que deve ser, e é, solucionada, inclui a convivência

da invenção (individualidade) e da padronização. Apesar da racionalização,

portanto padronização, inerente à elaboração dos produtos culturais, não resulta

impossível a criação, a individualização da obra. O autor nos lembra que foi já em

sua fase industrial que Hollywood recorreu aos serviços de William Faulkner como

roteirista e à compra de direitos de obras de Ernest Hemingway. Em seu modo de

entender, mesmo com a existência das amarras da produção racionalizada, a

tendência era que a dialética padronização-individuação viesse a amortecer-se

em um termo médio.

Ainda segundo Morin, outra saída a que o cinema recorreu foi resolver

esse problema por meio da vedete, que une o arquétipo ao individual. As vedetes

são personalidades estruturadas (padronizadas) e individualizadas, ao mesmo

tempo, e, assim, seu hieratismo resolve, da melhor maneira, a contradição

fundamental (idem, ibidem, p. 32). Na maioria das vezes, a dialética autor-vedete

resolve-se em favor da força da vedete. No caso de um filme clássico como O

pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955) é mais fácil para o apreciador

médio referir-se a ele como o filme de Marilyn Monroe do que como o filme de

Billy Wilder, ainda que pese o fato de Wilder ser um diretor consagrado na história

do cinema.

O sincretismo entre linguagens de diferentes meios técnicos e entre

gêneros é outra característica da indústria cultural. Adorno e Horkheimer afirmam

que se repete na técnica a mesma igualdade percebida nos mais diversos tipos

de produtos. Essa peculiaridade, para os dois teóricos de Frankfurt, é recorrente

na indústria cultural, onde os meios técnicos tendem a uma crescente

uniformidade recíproca. A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema (...)

(ADORNO; HORKHEIMER, 1982, p. 162).

Em tom crítico, eles percebem que esse sincretismo entre as

características das linguagens dos meios técnicos se prolonga nos conteúdos dos

produtos culturais. Para isso recorrem à comparação com a ópera Tristão e

Isolda, de Richard Wagner.

29

O acordo entre palavra, música e imagem realiza-se mais perfeitamente que no Tristão, enquanto os elementos sensíveis são, na maioria dos casos, produzidos pelo mesmo processo técnico de trabalho e exprimem tanto a sua unidade quanto o seu verdadeiro conteúdo. (idem, ibidem, p. 163)

A alusão à opera merece destaque e um parêntese. Em entrevista

concedida para a realização dessa pesquisa, o jornalista Joel Silveira nega a

presença de marcas cinematográficas (portanto de sincretismo) em seu texto. Ao

mesmo tempo, confidencia que certa vez o cronista Carlos Heitor Cony, seu

colega de trabalho, lhe disse: Puxa, você tem comunicações que são verdadeiros

libretos (ver, em Anexo A, Entrevista com o jornalista Joel Silveira, p. 135). Na

ópera, o libreto é a peça gráfica que traz as partes cantadas e faladas pelos

atores bem como informações sobre os cenários e as circunstâncias em que se

passa a história. Ou seja, trata-se de um pequeno livro por si só sincrético.

Portanto, Cony também observa essa característica no texto de Silveira.

Antes de entrar na discussão do sincretismo entre realidade e ficção no

âmbito da indústria cultural, cabe registrar que essa relação é anterior ao

fenômeno estudado por Adorno e Horkheimer. Eram célebres na Europa, ainda

no século 19, os romances de folhetim que dividiam espaço com a notícia e

garantiam parte das receitas dos jornais e dos escritores, muitos deles

renomados.

Destinados principalmente ao público feminino, eles incluíam em seus

enredos elementos de verossimilhança, garantindo a passagem para um mundo

de sonho e satisfação fantasiosa dos desejos (REZENDE, 2005, p. 39). Eugênio

Bucci lembra ainda que o conceito de meios de comunicação de massa já traz em

si, desde a origem, o embaralhamento sistêmico entre fato e ficção, entre

jornalismo e entretenimento, entre interesse público, interesse privado e

predileções da esfera íntima (BUCCI, 2004, p. 127).

A mistura entre o real e o imaginário, o informativo e o romanesco, é um

traço marcante dos produtos da indústria cultural. O que ocorre em conformidade

com a regra do máximo consumo e com o objetivo de procurar satisfazer a um

público universal. Mas esse público tomado em sua homogeneidade é constituído

de forma variada. Há diferenças de sexo, de idade e de classes sociais. Os

produtos são então endereçados a todos e a ninguém. Consegue-se essa

30

façanha pela procura da variedade na informação e no imaginário. Os jornais

estão repletos de informações nas mais diversas áreas, como esporte, cultura,

política, turismo, religião, fofoca e entretenimento. O filme-padrão, para usar

expressão de Morin, conjuga ação, humor, violência, erotismo, temas masculinos

e femininos e juvenis e adultos.

A variedade que surge é, no entanto, homogeneizada, pois deve seguir

receitas comuns. A técnica jornalística se propõe a conferir inteligibilidade aos

mais diversos conteúdos e engessa dessa forma a criatividade do texto. A

homogeneização visa a tornar euforicamente assimiláveis a um homem médio

ideal os mais diferentes conteúdos (MORIN, 1987, p. 36). É pelo sincretismo que

a diversidade de conteúdos é homogeneizada sob um denominador comum.

E o sincretismo que une as instâncias da informação e do romanesco

permeia esses conteúdos. Os jornais estão repletos de ficção e mostram isso ao

privilegiar elementos sensacionalistas, como o homicídio, o acidente, o grotesco,

o amor dos olimpianos (MORIN, 1987). Roland Barthes (1970) percebe o

aproveitamento de temas similares quando estuda o fait divers2. A estrutura desse

tipo de notícia, de acordo com o teórico francês, baseia-se em relações de

causalidade e coincidência que sempre suscitam o espanto. Barthes dá alguns

exemplos de como isso ocorre. Entre eles pode-se citar o caso de uma

empregada que rapta o bebê de seus patrões não para obter um resgate, mas

porque adorava a criança, a história de uma joalheria que foi assaltada três vezes

e a de pescadores islandeses que pescaram uma vaca. Como se pode perceber,

elementos sensacionalistas e esquisitices caracterizam essas histórias. No caso

dos telejornais, há o aproveitamento de recursos de dramatização e trilha sonora

para a abordagem de alguns assuntos.

Por sua vez, o romanesco também é povoado de realismo. As tramas

fictícias das novelas são urdidas com temas da realidade cotidiana, como tráfico

de drogas, racismo, dependência química, problema de adoções de crianças. O

factual penetra o ficcional e vice-versa. Maria Rita Kehl frisa que na sociedade do

espetáculo (que será abordada mais detalhadamente adiante e que acrescenta 2 Termo francês sem correspondente exato em português mas que designa notícias, como acidentes, pequenos escândalos, assassínios, desastres, raptos, roubos e esquisitices, que não requerem o domínio de nenhum conhecimento para seu consumo. Segundo Barthes (1970), trata-se de uma informação total, ou imanente, que não remete a nada além dele próprio.

31

outros componentes nessa discussão, com o surgimento da televisão como novo

ingrediente da indústria cultural) não existe obrigação de fidelidade à realidade

social. Pelo contrário, a eficiência da ficção em conquistar a fantasia do público

está relacionada à sua capacidade de incluir elementos relevantes da vida social

em seu universo imaginário (KEHL, 2004, p. 155).

Um momento catártico dessa situação ocorreu em 30 de dezembro de

1992 e envolveu a notícia do assassinato da atriz Daniela Perez, que interpretava

a personagem Yasmin da novela Corpo e alma, da Rede Globo. O crime foi

cometido pelo ator Guilherme de Pádua, que fazia o papel de Bira, o par

romântico de Yasmin, e pela sua então esposa Paula Thomaz. Na época, o

assunto chegou a ofuscar a renúncia do presidente Fernando Collor de Mello,

anunciada em 28 de dezembro.

Nos jornais, o fato foi apresentado como enredo. Guilherme Jorge de

Rezende destaca a relação realidade-ficção presente no título e subtítulo da capa

do encarte da edição dominical (dia 2 de janeiro de 1993) do Jornal do Brasil: A

vida como ela é. Daniela Perez e Guilherme de Pádua levaram para a realidade o

drama da novela (apud REZENDE, 1997, p. 11). A foto ilustrativa trazia uma cena

de beijo entre Guilherme/Bira e Daniela/Yasmin.

José Arbex Júnior recorda que naqueles dias Daniela e Yasmin se

tornaram um só ser, nem humano nem fictício, algo existente numa espécie de

fronteira tênue e difusa entre duas coisas (ARBEX JÚNIOR, 2001, p. 45). O

teórico comenta o trabalho da Rede Globo nos dias que se seguiram ao crime.

A Rede Globo incluiu o desaparecimento de Daniela num capítulo

solene da telenovela, cujo enredo fora escrito por Glória Perez, mãe da jovem assassinada. Nesse capítulo, as personagens, uma por uma, faziam declarações de saudade e apreço por Daniela – não por Iasmin, a personagem, mas pela atriz assassinada. Foi um momento de cumplicidade catártica absoluta com os telespectadores: a representação da vida deixou de ser apenas representação para ser a própria vida. Todas as distâncias entre ficção e “vida real” – aqui entendida como mundo empírico, fora da tela – foram apagadas. A telenovela virou “reportagem”, assim como os telejornais, naqueles dias, viraram os capítulos mais “quentes” da telenovela. (idem, ibidem, p. 45-46)

E hoje temos nos reality shows um exemplo radical de convivência entre

realidade e ficção. O espaço virtual antes consagrado aos olimpianos passa a ser

32

alcançado por “gente como gente”3. E de repente, o homem médio se vê

enredado em uma telenovela do banal, na esperança de que a exibição, pela

televisão, da banalidade de um cotidiano parecido com o seu, ponha em

evidência migalhas de brilho e de sentido que sua vida, condenada à

domesticidade, não tem (KEHL, 2004, p. 144).

1.3 O percurso do espetáculo

Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação

(DEBORD, 1997, p. 13). A frase que termina o primeiro aforismo de A sociedade

do espetáculo (1997) dá a senha para a compreensão da sociedade descrita pelo

filósofo, agitador político (exerceu influência com suas idéias nos movimentos

libertários de Maio de 1968 na França) e diretor de cinema francês Guy Debord

em 19674. Ele percebeu que as sociedades dominadas pelas modernas

condições de produção, pelo acúmulo crescente do capital – O espetáculo é o

capital em tal grau de acumulação que se torna imagem (idem, ibidem, p. 25) – e

pela presença massiva dos meios de comunicação formavam um contexto onde o

espetáculo tornava-se a maneira de ser da própria sociedade do consumo.

O espetáculo se consistia na multiplicação de ícones e imagens veiculadas

pelos meios de comunicação, mas não se caracterizava por ser um conjunto de

imagens e sim uma relação social entre pessoas, mediada por imagens (idem,

ibidem, p. 14). Essa a ponta mais visível do iceberg. Mas o espetáculo também

estava presente nos ritos e acontecimentos políticos, religiosos e nos próprios

hábitos sociais, com destaque para o ato do consumo (ARBEX JÚNIOR, 2001).

A situação era resultado da confluência entre os poderes político,

econômico e midiático (importante por ser o canal pelo qual fluem as imagens de

maneira desenfreada nessa sociedade) – (...) o espetáculo nada mais é do que o

sentido da prática total de uma formação econômica-social, o seu emprego do

tempo. É o momento histórico que nos contém (DEBORD, 1997, p. 16). Em meio 3 Pode-se aqui questionar o termo “gente como a gente”, uma vez que vários dos participantes desse tipo de programa já tiveram passagem, mesmo que discreta, pelo mundo da TV, mas os reality shows funcionam como uma espécie de promessa de visibilidade ao homem comum. 4 No Brasil, o livro foi lançado 30 anos depois pela editora Contraponto enriquecido com o texto Comentários sobre a sociedade do espetáculo, escrito em 1988 pelo filósofo e que trazia novas considerações sobre sua teoria.

33

a isso, resta o homem isolado, anônimo e infeliz, perdido na massa de

consumidores. É o que se pode depreender com o termo “separação consumada”

do filósofo. Há separação entre os indivíduos (isolados na sociedade) e entre os

mundos (das imagens e real), que no final confundem-se e tornam-se um só, no

espetáculo.

Para Debord, era cara a questão da imagem e da aparência nessa

sociedade. A idéia que se sobressai é a de que o valor social é diretamente

proporcional àquilo que aparece.

O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência. (idem, ibidem, p. 16-17)

Muitas das idéias do teórico francês acerca da sociedade do espetáculo

podem dialogar com o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer.

Maria Rita Kehl vê o espetáculo como conseqüência da expansão daquela

indústria ocorrida com a ajuda da televisão.

Da indústria cultural à sociedade do espetáculo, o que houve foi um extraordinário aperfeiçoamento técnico dos meios de se traduzir a vida em imagem, até que fosse possível abarcar toda a extensão da vida social. (KEHL, 2004, p. 44)

Como se sabe, em 1947, quando os frankfurtianos publicaram seu texto, a

televisão era uma mídia recém-surgida e encontrava-se longe de conhecer as

possibilidades técnicas com que passaria a contar a partir da segunda metade do

século passado. Daí a sucinta referência a esse meio nas idéias de Adorno e

Horkheimer. Por outro lado, pode-se considerar que seja esse o motivo do lugar

de destaque ocupado pela imagem na teoria do teórico francês. Kehl analisa essa

influência até mesmo no nível do texto. Prolixo, cerrado e argumentativo nos

críticos alemães e aforismático e fragmentário em Debord. O fato é que a

televisão, veículo onipresente, por excelência da esfera privada, do cotidiano,

substituiu o espaço público urbano pelo espaço virtual da telinha, mediando a

34

relação do indivíduo com o social. O espetáculo nasce assim como um estágio a

suceder o processo de dominação econômica do homem.

O espetáculo domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é que a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. (DEBORD, 1997, p. 17-18)

Guy Debord desenvolve a relação espetáculo-economia e demonstra sua

conseqüência na vida social. A realização humana sai de uma situação de “ser”

para “ter”, depois de “ter” para “parecer” e com isso a realidade individual desloca-

se para a esfera social. Em sua visão, a primeira fase do domínio da economia

sobre a vida social trouxe uma degradação do “ser” para o “ter” na maneira de

como se define toda realização humana. Na fase atual, onde a vida social está

totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia (idem, ibidem, p.

18), há uma mudança generalizada do “ter” para o “parecer”. Debord nos fala que

toda a realidade individual passou para o campo social, passou a ser dependente

da força social e moldada por ela.

Nesse contexto, as imagens adquirem status de seres reais na sociedade

do espetáculo, que é a própria sociedade contemporânea. A mídia (ou as

diferentes mediações especializadas) é o canal perfeito a permitir a

representação, fundamental nessa sociedade, e define a visão como o sentido

privilegiado. A posição de destaque da visão incide inclusive sobre o modo de

produção da programação televisiva que, segundo Guilherme Jorge de Rezende

(2000), segue uma ideologia do entreter, privilegia a forma do espetáculo ao

adotar um tom diversional que contagia até as produções telejornalísticas.

Pierre Bourdieu (1997) escreve que, atualmente, até os manifestantes que

querem que suas manifestações alcancem eficácia devem levar em consideração

a televisão. É preciso cada vez mais produzir manifestações para a televisão, isto

é, manifestações que sejam de natureza a interessar às pessoas de televisão (...)

(BOURDIEU, 1997, p. 30). O destaque que a TV dá às fantasias e máscaras de

grupos que protestam, contra ou a favor de algum tema ou causa, cumpre o que o

filósofo chama de “ocultar mostrando” – (...) mostrando o que é preciso mostrar,

mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-

35

o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à

realidade (idem, ibidem, p. 24). Para ele, essa é uma das principais

características desse meio de comunicação.

A mídia decreta assim a visão como o sentido privilegiado na sociedade do

espetáculo, mesmo com a ressalva de Guy Debord de que o espetáculo não pode

ser identificado simplesmente pelo olhar.

Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não pode ser identificado pelo simples olhar, mesmo que este esteja acoplado à escuta. Ele escapa à atividade do homem, à reconsideração e à correção de sua obra. É o contrário do diálogo. Sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui. (DEBORD, 1997, p. 18)

Debord assinalava duas formas, que identificava como sucessivas e rivais,

do poder espetacular: a concentrada e a difusa. A forma concentrada floresceu

sob os regimes de culto a personalidades ditatoriais (a Alemanha nazista e a

União Soviética do stalinismo), onde as ideologias eram nelas concentradas. A

forma difusa surgiu pelo mercado, com a variada gama de bens de consumo

colocada à disposição de uma massa de assalariados nas democracias

burguesas (característica do mundo americanizado). Portanto, para o autor, o

espetáculo brindava tanto o mundo capitalista quanto aos países de regimes de

força.

Mas, em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1997), de

1988, Debord somava às formas concentrada e difusa uma terceira forma,

constituída pela combinação das duas primeiras. Tratava-se do espetacular

integrado, que utilizaria de maneira mais ampla as propriedades das duas outras

formas, que também tiveram mudanças no modo como se aplicavam. O centro

diretor tornara-se oculto no lado concentrado, sem a figura de um líder conhecido

e com falta de clareza em relação à ideologia propagada. Pelo lado difuso, o

espetáculo exerce sua influência de forma plena em quase todos os

comportamentos e objetos produzidos socialmente. Já o sentido final do

36

espetacular integrado é o fato de ele se ter integrado na própria realidade à

medida que falava dela e de tê-la reconstruído ao falar sobre ela (idem, ibidem, p.

173). E se no poder espetacular concentrado grande parte da sociedade periférica

escapava à sua ação e no difuso somente uma pequena parte, para o filósofo

francês nada escapa ao poder espetacular integrado. O espetáculo confundiu-se

com toda a realidade, ao irradiá-la (idem, ibidem, p. 173).

E se hoje o espetáculo confunde-se com a própria realidade, o convite à

exibição pública é constante. Os papéis sociais são variados para as pessoas no

âmbito dessa sociedade, como demonstra o fato de muitas celebridades de

repente tornarem-se políticos (Clodovil, Agnaldo Timóteo, Arnold

Schwarzenegger), ex-jogadores virarem jornalistas (Marcelinho Carioca, Casa

Grande, Falcão), modelos transformarem-se em atrizes (Fernanda Lima, Gisele

Bündchen). Debord chama a essa potencialidade de status midiático, condição

que confere ao ser humano o direito de “brilhar”. Nada mais natural que isso

ocorra. Afinal, a sociedade do espetáculo é o ambiente da imagem e da

aparência, onde o que aparece é bom e o que é bom aparece.

1.4 A ubiqüidade instantânea

A televisão, como vimos, é um componente de destaque no conceito da

sociedade do espetáculo. Foi ela que proporcionou a propagação das imagens no

ritmo frenético que hoje assistimos. E se analisamos que o cinema (a primeira

tecnologia a captar e reproduzir imagens em movimento) teve forte impacto sobre

a cultura quando de seu surgimento, a televisão será responsável por um novo

momento que irá reconfigurar de forma radical a cultura.

Ela trouxe as imagens para o âmbito privado do lar e fundou o que

podemos chamar de ubiqüidade instantânea. Ou seja, através da tela da TV

somos transportados para todos os lugares sem a necessidade de sairmos de

nossas poltronas – e ela faz isso, muitas vezes, por meio de transmissões ao

vivo. Edgar Morin (1987) observa que, na cultura de massa, a TV realiza uma

aproximação do alhures ao aqui, não apenas no plano imaginário, mas ainda no

plano das atualidades. É a televisão que realiza a extrema ubiqüidade dos alhures

37

na extrema imobilidade do aqui. Um condensado múltiplo do cosmo oferece-se

diariamente ao telespectador de chinelos (idem, p. 178). Com ela, as distâncias

foram encurtadas e o mundo parece ter diminuído de tamanho.

E ao contrário do cinema, onde a fruição das imagens ocorre de maneira

individualizada nas salas escuras de projeção, a televisão é apreciada em grupos,

pelas famílias, dentro de casa. É o que Muniz Sodré (1977) percebe ao escrever

que a

tevê interpela o espectador enquanto indivíduo-membro da comunidade familiar, reunida na parte da casa onde se concentra a atividade coletiva. Este modo de recepção se inscreve no sistema significativo da produção televisiva, intervindo tanto na natureza como na qualidade dos conteúdos transmitidos. (idem, p. 58)

Roland Barthes (1980) reforça essa idéia ao lembrar que se no escuro das

salas de cinema repousa a própria fascinação do filme, na TV a mesma

experiência tem efeito oposto. O escuro é borrado, o anonimato é rechaçado; o

espaço é familiar, articulado (pelos móveis, pelos objetos comuns), domesticado:

(...) a erotização do lugar é excluída (BARTHES, 1980, p. 122-123).

Outro ponto que marca as distinções entre os dois meios de comunicação

é que telespectador assiste a TV muitas vezes enquanto desempenha outros

afazeres dentro de casa. Significa que ele tem sua atenção dispersa a todo o

momento. É a imagem daquele que vê em plano aproximado, mas em impalpável

distância (MORIN, 1987). Além disso, ele está inserido em um contexto de disputa

comercial. Há uma constante concorrência entre os canais de TV, e ainda entre

esses canais e outros meios de comunicação (é comum ler jornal com a televisão

ligada, por exemplo), por sua atenção. Dessa forma, a audiência do espectador

deve ser conquistada regularmente, conforme Marcondes Filho (1994).

Eugênio Bucci vai mais longe ao levar a discussão para o lado da lógica do

consumo. Para ele, o negócio das redes de televisão concentra-se na atração dos

olhares da massa com o objetivo final de vendê-los aos anunciantes. Os olhos do

público não passariam então de mercadoria que seria comercializada

gratuitamente pelos canais da TV. No texto Na TV, os cânones do jornalismo são

anacrônicos, presente no livro Videologias: ensaios sobre a televisão (2004), ele

38

se propõe a discutir aspectos éticos ligados à programação televisiva e faz uma

conta5 aonde chega ao preço do olhar.

Tomando como exemplo o Jornal Nacional, Eugênio Bucci lembra que 30

segundos de intervalo comercial custam, a quem quiser anunciar nesse espaço,

159.520,00 reais (lembramos que os valores são de abril de 2001). Se esse valor

for dividido pelo público de 25.919.461 pessoas, audiência do JN registrada pela

pesquisa Ibope-PNT (Painel Nacional de Televisão) em outubro de 2000,

chegaremos ao preço do olhar de um único telespectador durante 30 segundos:

cerca de 0,6 centavo. Bucci observa que a quantia, a princípio desprezível, pode

elevar-se consideravelmente se, ao invés de tomarmos como exemplo uma

unidade de tempo tão pequena, levarmos em consideração uma hora inteira.

Nesse caso, o preço do aluguel de um par de olhos subirá, pela tabela do Jornal

Nacional, à casa dos 73 centavos (BUCCI, 2004, p. 137).

O crítico prossegue sua argumentação recordando que uma jornada de oito

horas do olhar do telespectador custaria 5,90 reais pela tabela do JN. Esse valor

era praticamente o mesmo da força de trabalho assalariada no Brasil naquela

ocasião. Se o salário mínimo da época (180 reais) fosse dividido por 30 dias,

chegaríamos a 6 reais. Mas apesar do valor do aluguel de nossos olhos ficar

comprovado na equação de Bucci, continuamos a não receber por isso. O crítico

compara que o trabalho – por mais aviltante que seja o valor em questão – é

remunerado. Quanto ao olhar, que a cada dia é mais valioso, vai de graça. Nossa

civilização ainda está na era do olhar escravo (idem, ibidem).

Assim, o processo de produção da televisão se traduz pela urgência e pela

pressa em conquistar altos índices de audiência devido à concorrência

generalizada entre os meios – o que fica claro quando se analisa o telejornalismo

e sua obsessão pelo furo, para ser sempre o primeiro na divulgação dos fatos

(BOURDIEU, 1997).

Aliás, a pressa do veículo TV pode ser constatada pelo próprio ritmo

acelerado da veiculação de imagens que nos bombardeia. Marcondes Filho

ressalta essa peculiaridade, fundada na importância do tempo (fundamental tanto

pelo aspecto econômico como pela necessidade de se segurar a atenção do 5 Nesse texto, Bucci retoma parte do conteúdo do artigo Quanto valem os seus olhos?, publicado no Jornal do Brasil (edição de 22 de abril de 2001).

39

telespectador) para a estrutura da produção televisiva, ao fazer um contraponto

com as linguagens do cinema e do jornalismo.

A linguagem da televisão é marcada por uma pulsação, um ritmo acelerado que se reconhece em todos os tipos de emissão. Não temos mais a paz, a imagem parada, lenta, às vezes até preguiçosa do cinema; já não temos a extensão, a vastidão, de como se fazia jornalismo no passado, em que se dava muito espaço, muito tempo para se falar das coisas. A televisão é um meio de comunicação que tem pressa. Tem pressa porque o componente mais importante em toda a sua estrutura de produção é o tempo. Ele é o eixo de todo o sistema televisivo. Ele tem a ver tanto com o custo publicitário do segundo de emissão como com a necessidade de fixação do receptor. (MARCONDES FILHO, 1994, p. 23-24)

A necessidade de fixação do receptor cumpre papel econômico e tem a ver

ainda com o fato de que sua atenção tem que ser regularmente conquistada.

Marcondes Filho acrescenta que, além de estar suscetível a uma ampla gama de

opções disponibilizada pela televisão, o telespectador está munido de seu

controle remoto. O autor usa o termo zapeador6 para conceituar esse espectador.

Ele aciona eletronicamente os botões de seu telecomando e muda de estação,

aumenta o volume, interfere no brilho, no contraste, na cor da emissão de sua

televisão e isso de forma instantânea (idem, ibidem, p. 24).

Esse tipo de espectador foi caricaturado pelo diretor Hal Ashby no filme

Muito além do jardim (Being there, 1979), baseado no livro O videota, de Jerzy

Kosinski. Mr. Gardener (interpretado por Peter Sellers) é o protagonista do filme,

um jardineiro que viveu a vida toda sem sair da casa onde trabalhava e cujo único

passatempo era assistir TV. Quando seu patrão morre e ele tem que enfrentar a

vida no mundo aqui fora, sua primeira atitude é tentar resolver os problemas

acionando seu telecomando. Gardener é a própria síntese da televisão, com seus

gestos mecânicos e suas frases curtas apreendidas no mundo virtual. Mas a nova

vida, que poderia ser traumática, na verdade passa a acontecer sem

sobressaltos. Afinal, as pessoas que encontra no mundo empírico também se

comunicam por meio de clichês e chavões, como ocorre na televisão (ARBEX

JÚNIOR, 2001).

6 Que tem origem na palavra inglesa zapping, que significa fazer o telecomando correr pelas estações de TV.

40

Em 1991, a TV viveu um acontecimento marcante em sua história, que

faria com que muitas pessoas ficassem presas pelo olhar – como Mr. Gardener –,

atraídas pela curiosidade de assistirem a uma guerra acontecendo em tempo real.

Foi quando o canal de televisão norte-americano CNN transmitiu, com

exclusividade para todo o mundo, a Guerra do Golfo. A maioria das imagens

transmitidas era de bombardeios noturnos, o que valeu o comentário de que o

conflito assemelhava-se a um videogame, com as luzes das explosões e da

artilharia iraquiana sobressaindo-se em tom verde no escuro da noite. Os

telespectadores podiam acompanhar ao vivo uma guerra que acontecia no

distante Oriente Médio. A transmissão da CNN fez do repórter Peter Arnett uma

estrela do jornalismo internacional. Foi ele o único jornalista a acompanhar o

conflito diretamente de Bagdá (FONTENELLE, 2004).

Arbex Júnior vê na cobertura da CNN um momento simbólico do significado

que a televisão passaria a ter daí por diante e sua relação com a notícia e o

público. A Guerra do Golfo mudou a relação da televisão com a notícia, de

um lado, e com o público, de outro. Ela – a televisão – tornou-se “a” notícia. Após a guerra, a onipresença da televisão, a sua capacidade de transmitir instantaneamente imagens de e para todo o planeta, tornaram-se um fato do cotidiano, de todos conhecido e por muitos esperado – nos episódios de invasão da Somália (1992) e Haiti (1994) por tropas da ONU comandadas pelos Estados Unidos, as câmaras de televisão já estavam lá antes mesmo da chegada das tropas. As imagens do desembarque das tropas, nos dois casos, lembravam muito mais um filme. (ARBEX JÚNIOR, 2001, p. 32)

A Guerra do Golfo representou um dos pontos altos do processo de

consolidação da televisão como principal meio de comunicação, consolidação que

ocorreu através de uma rápida expansão a partir dos anos 1950, como observa

Marcondes Filho (1994). No final do século passado, ela já havia se transformado

no meio de transmissão de imagens absoluto em toda a cultura (idem, p. 16).

Dessa maneira, a TV exerce hoje seu domínio sobre as demais formas de

transmissão de imagens-mensagens.

Um outro aspecto importante em relação à TV é que ela atualmente é

beneficiária dos desenvolvimentos no campo da computação. O que traz

implicações diretas para o caráter que a imagem passa a ter. De analógica – ou

seja, produzida a partir de um dado, que existia ou não na natureza, mas que os

41

homens o captavam e o transformavam em algo plasticamente visível (idem, p.

21) – ela passa a ser digital, uma vez que

(...) passa a fazer parte dos equipamentos dos computadores – e da televisão –, um componente chamado scanner, capaz de transformar qualquer imagem numa seqüência de pontos, na verdade, conversíveis em números, que podem agora ser manipulados. (idem, ibidem)

Um bom exemplo do que a televisão – com os novos recursos de edição

em sua fase digital – é capaz de fazer é mostrado no filme Mera coincidência

(Wag the dog, 1997), de Barry Levinson. A trama gira em torno dos personagens

interpretados por Robert De Niro e Dustin Hoffman, que criam uma guerra fictícia

utilizando apenas as possibilidades de edição televisiva (constroem ambientes do

conflito em um país distante e personagens que nele interagem) para desviar a

atenção do povo norte-americano de escândalos do governo.

Além disso, a TV entra também na era digital por formar um híbrido com o

computador ao dispor dos benefícios da internet. A televisão da era digital é

interativa – sistema de operação que já funciona em alguns países e em breve

estará disponível no Brasil. A confluência da TV com o computador implica em

uma melhoria da recepção de imagens, no aumento da capacidade de veiculação

de canais e em permitir a interação do telespectador, que poderá escolher sua

própria programação, fazer compras, enfim, navegar no aparelho, como se faz

nos computadores com acesso à internet.

As discussões sobre essa nova fase da TV giram em torno de dois pontos:

um positivo e outro negativo. Pelo lado positivo, argumenta-se que os

telespectadores passarão a contar com uma imensa multiplicidade de fontes de

informação, algo inédito em sua história. A aquisição de conhecimento seria

facilitada ao extremo e a televisão poderia cumprir até o papel de coadjuvante no

processo de educação. Por outro lado, há o receio de que a grande oferta de

canais (variados e segmentados em suas programações) contribua para tornar os

telespectadores ainda mais dispersos em sua audiência fragmentária. O novo

espectador seria aquele que assiste a tudo e a nada ao mesmo tempo. Há ainda

o risco de que os espectadores fiquem alienados por suas preferências, como

42

aqueles que passariam a apreciar somente canais de esportes, de filmes, de

novelas, de música e assim por diante.

1.5 O reordenamento do espaço e do tempo

A era da TV é o momento em que os limites espaço-temporais foram

praticamente ignorados. Através dela (que tem o dom da ubiqüidade instantânea),

viajamos em questão de segundos aos pontos mais distantes do globo terrestre.

A relação entre espaço e tempo foi profundamente alterada pela televisão e

acarretou diversas mudanças culturais. É ela que realiza a dialética do aqui-

alhures e do alhures-aqui, dialética essa que está integrada na dialética maior da

cultura de massa, que nos introduz numa relação desenraizada, móvel, errante,

no tocante ao tempo e ao espaço (MORIN, 1987, p. 179).

No entanto, a reorganização espaço-temporal iniciou-se muito antes e

guarda uma relação próxima com o advento dos modernos meios de transporte.

Se anteriormente o ritmo da viagem da mensagem era o mesmo do que o do

mensageiro, as ferrovias funcionaram como as estradas que contribuíram de

maneira decisiva para o advento do telégrafo em meados do século 19, o meio

que permitiu o transporte das formas simbólicas independentemente de seu

deslocamento físico. Mcluhan (2005) frisa que, no início, o telégrafo era a

extensão imediata da produção e do mercado industriais (estava subordinado à

ferrovia e ao jornal), mas depois passou a cumprir importante papel na própria

coordenação das linhas com o crescimento da malha ferroviária.

O início da telecomunicação propiciou uma mudança que implicou uma

reconfiguração nas formas de o homem experimentar seu contato com a

informação. John B. Thompson explica que com o desenvolvimento dessa

tecnologia houve a disjunção entre o espaço e o tempo,

no sentido de que o distanciamento espacial não mais implicava o distanciamento temporal. Informação e conteúdo simbólico podiam ser transmitidos para distâncias cada vez maiores num tempo cada vez menor; quando a transmissão telegráfica foi instalada, as mensagens eram recebidas em menos tempo do que era necessário para codificar e decodificar a informação. O distanciamento espacial foi aumentando, enquanto a demora temporal foi sendo virtualmente eliminada. (THOMPSON, 1998, p. 36)

43

A disjunção entre espaço e tempo proporcionada pela telecomunicação

trouxe uma outra transformação. Thompson a chama de simultaneidade não

espacial. De acordo com o autor, em períodos históricos mais antigos, a

simultaneidade estava diretamente ligada à localidade. A experiência de eventos

que acontecem ao mesmo tempo pressupunha uma mesma localização. A

disjunção espaço-temporal inaugurada pela telecomunicação causou uma

separação entre a experiência de simultaneidade e seu condicionamento

espacial. Hoje, podemos experimentar eventos simultâneos mesmo que ocorram

em diferentes lugares.

Com o telégrafo eletromagnético, os ganhos mercadológicos e logísticos

foram grandes, de forma que seu crescimento se deu rapidamente. Para se ter

idéia, Samuel Morse havia inaugurado a linha telegráfica entre Washington e

Baltimore em 1844 e em 1858 o primeiro cabo submarino já cruzava o Oceano

Atlântico. A partir de 1870 a transmissão eletromagnética foi usada com êxito para

transmitir a fala, o que deu início aos experimentos que desenvolveriam o sistema

de telefonia. Seguiu-se o desenvolvimento de meios de transmissão de

informação por meio de ondas eletromagnéticas, que expandiram a capacidade

de alcance das transmissões e eliminaram a necessidade de instalação de cabos,

seja na terra ou no mar. Vieram então o rádio e a televisão e depois o sistema de

telecomunicação viabilizado por satélites.

Hoje, a internet é o novo ingrediente nessa história. O invento surgiu de

experiências da Agência de Pesquisa e Projetos Avançados (Arpa), organização

ligada ao Departamento de Defesa norte-americano, em 1969, e envolvia uma

rede de informações por meio de computadores interconectados. O objetivo era

prover comunicação em caso de emergência em um eventual ataque inimigo (a

maior preocupação era a então União Soviética). A partir dos anos 1980, a

internet ganhou, gradativa e rapidamente, o mundo como a rede mundial de

computadores. Em seu ambiente é possível estar em sintonia com o mundo em

tempo real através dos mais diversos dispositivos (e-mail, programas de bate-

papo, comunidades de discussão, sítios informativos).

44

CAPÍTULO 2: CINEMA, TELEVISÃO E ESCRITA

(...) um sistema de espelhos e de vidros, telas de cinema, vídeos de televisão,

janelas envidraçadas dos apartamentos modernos, plexiglas dos carros Pullman, postigos de avião, sempre alguma coisa de translúcido, transparente ou refletidor

nos separa da realidade física... Essa membrana invisível nos isola

e ao mesmo tempo nos permite ver melhor e sonhar melhor, isto é,

também participar.

Edgar Morin

Segundo Morin (1987), uma das características da cultura de massa é

colocar o homem em contato com a realidade física de forma intermediada. O

translúcido, o transparente e o refletidor são os típicos materiais da membrana

externa aos nossos olhos a intermediar nossa participação na sociedade

contemporânea. Cinema e televisão são assim importantes agentes mediadores

da experiência humana. Portanto, ver pela ótica desses dois meios técnicos não

pode resultar uma experiência isenta.

No capítulo anterior, estudamos os impactos culturais que a sétima arte e a

TV causaram nos momentos em que surgiram. Agora, abordaremos algumas das

características das linguagens cinematográfica e televisiva, os dois meios de

reprodução de imagens em movimento que acreditamos terem imprimido suas

marcas, cada um em seu tempo e de formas específicas, nos trabalhos de Joel

Silveira e de Sérgio Dávila.

Importante relembrar que os textos que compõem o livro O inverno da

guerra (2005), de Silveira, foram escritos nos anos 1944-1945, portanto, em um

momento onde o cinema reinava sozinho como meio de reprodução de imagens

em movimento. Já Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque segundo os

bombardeados (2003), de Dávila, é um produto da contemporaneidade, onde a

televisão exerce seu domínio absoluto como veículo de transmissão de imagens.

Analisaremos ainda as maneiras como ocorrem os sincretismos do cinema e da

TV no nível da narrativa, seja na literatura ou no jornalismo.

45

2.1 A linguagem cinematográfica

O que caracteriza o cinema é o fato de ser uma arte segmentada. Para se

realizar um filme, é necessário um trabalho de equipe onde há vários profissionais

responsáveis por setores específicos. Assim, poderíamos citar, de maneira

generalizada, o trabalho do produtor, do roteirista, do figurinista, do cenógrafo, do

fotógrafo, do engenheiro de som, dos atores, do montador e do diretor (que

coordena todo o processo). O longa-metragem A noite americana (La nuit

americaine, 1973), do diretor francês François Truffaut, retrata os bastidores de

uma filmagem e mostra como esse processo segmentado de produção se

desenvolve. Mas depois do filme pronto, a arte cinematográfica só se efetiva

quando há a projeção da fita nas salas de cinema para o público, um outro

elemento importante se considerarmos que o espectador também contribui para o

significado da mensagem fílmica através de sua interpretação, que é algo sempre

subjetivo.

José Eustáquio Romão (1981) argumenta que não existe uma definição de

cinema que seja universalmente válida. Para ele, cinema, em sentido lato, seria o

conjunto de filmes feitos ou por fazer de um determinado país, diretor, de um

tema específico ou que se filiam a uma escola (Neo-realismo Italiano,

Expressionismo Alemão, Cinema Novo) ou movimento (cinema underground,

cinema oficial). Na opinião do teórico, no sentido restrito, o cinema pode ser visto

por dois ângulos: conjunto de filmes que se preocupam em questionar a realidade

e filmes cujo objetivo é informar ou entreter.

Não cabe aqui analisar o cinema sob o ângulo ideológico. A intenção é

observar aspectos que caracterizam a linguagem cinematográfica. Para tanto, é

necessário entender o cinema como trabalho de equipe que converge para a

produção final de um filme. Nesse fazer cinematográfico, destacaremos a

montagem como o fundamento mais específico da linguagem fílmica (MARTIN,

1990, p. 132). É pelo trabalho da montagem que o filme se torna inteligível, pois

sem ela o filme é apenas uma soma de pedaços de celulóide sem sentido com

planos e seqüências gravadas fora de ordem.

46

Martin define a montagem, grosso modo, como a organização dos planos

de um filme em certas condições de ordem e de duração (idem, ibidem). Mas para

entender a explicação do teórico francês é preciso saber o que são planos. Aqui

será adotada a definição de planos proposta por Romão (1981). Interessante

registrar antes que planos são seqüências de fotogramas, na verdade fotografias

que, projetadas por uma luz à razão de 16 a 24 imagens por segundo, produzem

a ilusão de movimento. Isso ocorre por causa do fenômeno conhecido como

persistência retiniana, que é a capacidade que o nervo ótico humano tem de reter

por alguns instantes (1/10 de segundo, em média) impressões causadas por uma

fonte luminosa. Quando observamos um objeto, sua imagem persiste em nossa

retina durante uma fração de segundos, mesmo que esse objeto já tenha saído do

campo de visão. Dessa maneira, o princípio do movimento no cinema se baseia

na exposição de cada imagem na abertura do projetor por um tempo menor que a

duração da persistência retiniana. Significa que quando um fotograma sai do

campo de visão do espectador ele ainda o está vendo e um outro fotograma já se

colocou diante de seus olhos. Assim, não há como perceber a série de

fotogramas (fotografias) em seqüência.

De acordo com Romão, existem quatro critérios de classificação dos

planos. Eles podem ser definidos em relação à filmagem, em relação à projeção,

em relação à duração e em relação ao enquadramento. Levando-se em

consideração o primeiro critério, plano é tudo aquilo que se passa diante da

câmera entre as duas ordens “Ação!” e “Corte!” dadas pelo diretor. Esse plano

pode ser rodado várias vezes com o objetivo de, no processo de montagem, ser

aproveitado aquele que o diretor considerar melhor. Pelo segundo critério, o plano

projetado na tela é um pedaço do filme que concentra uma unidade dramática.

Aqui ele já passou pelo processo de montagem, o que significa que pode não

coincidir com o plano de filmagem. Em relação à duração, plano pode durar de

uma fração de segundo a minutos, mas são raros os casos em que ultrapassa um

minuto. Quando isso ocorre, geralmente deve-se a recursos estilísticos colocados

em prática pelo diretor.

Finalmente, em relação ao enquadramento, planos são as formas como a

lente da filmadora capta aquilo que será filmado. Romão divide os planos em

47

grupos, os quais define como descritivos, dramáticos e psicológicos. Segundo

essa tipologia, temos:

I – Descritivos: referem-se mais especificamente ao cenário do que aos

personagens. São eles:

a) Plano de Conjunto (PC): enquadra a totalidade do cenário, descrevendo-

o e preparando-o para a ação dos personagens.

b) Plano Geral ou de Meio Conjunto (PG): apesar de o cenário ainda se

impor, a ação já é sugerida com o enquadramento do(s) personagem(s) em parte

dele.

II – Dramáticos: aqui a ação dos personagens predomina em relação às

partes visíveis do cenário, que a essa altura torna-se secundário por causa da

narrativa. Podem ser:

a) Plano Médio (PM): o personagem ou grupo de personagens aparece

enquadrado da cabeça aos pés e, portanto, ainda dentro de seu contexto social.

b) Plano Meio-Médio (PMM): o personagem é enquadrado da cintura para cima e

o cenário tem apenas valor indicativo. Esse plano já abre a possibilidade de

penetração na psicologia do(s) personagem(s)2.

III – Psicológicos: o espectador participa da intimidade do personagem.

São três os tipos mais usados:

a) Plano Próximo (PR): o personagem aparece enquadrado cortado pelo

peito e ocupa todo o campo da lente. Nesse plano, aspectos que poderiam passar

despercebidamente nos planos dramáticos são revelados.

b) Primeiro Plano (PP): a cabeça do personagem ocupa toda a tela e ele

fica isolado de seu contexto histórico-social. O espectador participa do drama

interior, da intimidade, do universo psicológico do personagem.

2 Dentro dos planos Dramáticos, o autor cita ainda o Plano Americano (onde o personagem é filmado da coxa para cima) e o Plano Italiano (o ator é enquadrado de corpo inteiro). Optamos por relacionar apenas o Plano Meio-Médio por considerar que não há diferenças importantes (tendo em vista os objetivos específicos desse trabalho) entre esses três tipos de plano (todos narrativos).

48

c) Plano de Detalhe ou Primeiríssimo Plano (PPP): a objetiva da câmera

capta apenas detalhes do personagem ou do cenário, como um olho, uma mão,

uma carta.

Além dos planos, fazem parte da linguagem cinematográfica os

movimentos de câmera e os ângulos de filmagem. Os movimentos de câmera são

classificados em Travelling, Panorâmica e Trajetória. No primeiro caso, temos a

deslocação da câmera juntamente com sua base, o que geralmente é feito em um

carro que desliza sobre um trilho ou em uma grua (braço mecânico). Nesse

movimento temos o travelling para frente, que dá a idéia de introdução do

espectador no mundo onde uma ação será desenvolvida; o travelling para trás,

que, ao contrário do anterior, traduz a idéia de conclusão de uma ação, de

afastamento no espaço; o travelling lateral, onde a câmera se desloca

(horizontalmente, da direita para a esquerda ou vice-versa, ou verticalmente, de

baixo para cima ou vice-versa) paralelamente àquilo que é filmado; e o travelling

de acompanhamento, quando a câmera se desloca paralelamente ao movimento

do personagem. Há ainda o travelling ótico, realizado através do recurso do zoom,

que possibilita aproximar ou afastar o que se está filmando apenas com o uso de

lentes.

A Panorâmica consiste na rotação da câmera sobre seu próprio eixo, sem

que haja o deslocamento da mesma (assemelha-se a uma olhada circular ou em

meia-lua). Pode ser vertical ou horizontal. E a Trajetória caracteriza-se pela

combinação do Travelling e da Panorâmica.

Em relação aos ângulos de filmagem, temos o ângulo normal, onde a

câmera é posicionada na horizontal, mais ou menos ao nível da visão de um

homem de pé; o plongée, quando a cena e os personagens são captados de cima

para baixo (a câmera é posicionada acima do nível normal da visão humana); o

contre-plongée, a cena e os personagens aparecem filmados de baixo para cima

(a câmera é colocada abaixo do nível de visão normal); o campo e contra-campo,

onde dois personagens conversando são mostrados de forma alternada, com a

câmera assumindo a posição de cada um deles; e a profundidade de campo,

49

onde o limite da nitidez da imagem se confunde com o limite alcançado pela visão

humana (ROMÃO, 1981).

O uso dos ângulos pode traduzir efeitos que o diretor quer transmitir aos

espectadores. Excetuando-se o ângulo normal, que não atribui significado

especial ao plano filmado, nos demais há a possibilidade de se acrescentar

significação ao material na hora da filmagem. Assim temos: o plongée, que

transmite, entre outras, a idéia de inferioridade, derrota moral e tristeza; o contre-

plongée, que evoca sentimentos contrários aos alcançados pelo plongée, como o

de superioridade, vitória e alegria; o campo e contra-campo, que permitem ao

espectador penetrar na intimidade de duas faces da mesma realidade (idem,

ibidem, p. 69); e a profundidade de campo, cujo objetivo principal é auxiliar a

descrição e a narração em um filme.

Pode-se dizer que os elementos relacionados acima (planos, movimentos

de câmera e ângulos de filmagem) é que tornarão possível a sintaxe no filme.

Essa sintaxe se efetivará por meio da montagem. Os montadores e estudiosos do

cinema Eduardo Leone e Maria Dora Mourão (1993) defendem que a montagem

não é apenas uma atividade da etapa terminal do processo de produção do filme.

De acordo com eles, costuma-se entender montagem como o estágio onde a

celulóide é cortada e colada no laboratório em obediência ao que está previsto no

roteiro desde o início da produção. Por esse raciocínio, os diversos planos e

seqüências são colocados na ordem lógica que não se pode atingir no momento

da filmagem2.

Leone e Mourão entendem que a montagem está presente também no

roteiro e na etapa de realização do filme. Eles observam que, o bom roteiro, ao

organizar a lógica das ações e o desenvolvimento dramático, fornecerá as bases

para as escolhas do diretor no momento da filmagem. Na realização, o diretor que 2 Por uma questão de logística, um filme é rodado fora da ordem prevista no roteiro. Entre outros motivos, isso ocorre porque os contratos com os atores obedecem a prazos variados (conforme o destaque que cada um terá na produção) e também para um maior aproveitamento das locações. Assim, se é necessário que a produção viaje para realizar filmagens em uma determinada cidade, é mais interessante, pelo aspecto financeiro e de cumprimento de prazos da produção, que todas as cenas que se passam nessa locação sejam realizadas durante uma só estadia, não importando o momento em que essas cenas aparecerão no filme pronto. Posteriormente, no processo de montagem, as cenas rodadas nessa cidade serão colocadas na ordem prevista no roteiro (no início, no meio e no fim do filme, por exemplo). Procedimento igual ocorre em relação ao aproveitamento do trabalho dos atores. Mesmo que um determinado ator apareça em vários momentos da narrativa, é mais prático concentrar todas as filmagens das cenas em que aparece e depois editá-las em ordem, cortando e colando o celulóide, o que ocorre na montagem.

50

domina de forma eficiente sua função saberá tratar de aspectos como o

enquadramento das cenas (antes de filmarem, Sergei Eisenstein e Akira

Kurosawa desenhavam aquilo que faria parte da composição do quadro), do

aproveitamento do espaço, do tempo e do ritmo dos planos.

A montagem propriamente dita, que ocorre após a realização de todas as

filmagens com a articulação e integração dos vários planos filmados através do

corte e da colagem do celulóide, fornece novas possibilidades de criação de

sentidos para o filme. Nos primórdios do cinema, as filmagens aconteciam de uma

só vez, sem cortes e com a câmera parada. O francês George Méliès foi quem

descobriu a montagem por acaso. Ele filmava a Praça da Ópera, em Paris,

quando um defeito na câmera o obrigou a interromper as filmagens. Depois de o

aparelho ser consertado, o diretor continuou a filmar do ponto onde havia parado.

Romão (1981) conta o que aconteceu e registra depoimento do próprio Méliès

que demonstra seu assombro com a descoberta.

Na revelação do filme, Méliès percebeu que durante os minutos que gastara consertando a filmadora, “transeuntes, ônibus, carros, tudo mudara de lugar, é claro. Projetando a cinta, emendada no ponto exato em que se dera a ruptura, vi subitamente um ônibus Madeleine-Bastille transformar-se num carro mortuário e os homens transformarem-se em mulheres”. Através deste depoimento, Méliès mostra como o acaso funcionou e, a partir de então, os cortes não mais seriam provocados por defeitos de filmadoras, mas por ordem do diretor. (idem, p. 72)

A partir daí, iniciou-se o desenvolvimento das possibilidades de atribuir

sentido ao filme articulando planos, cenas e seqüências por meio do corte e da

colagem do celulóide. É famosa a experiência realizada pelos russos Vsevolod

Pudovkin e Lev Kulechov com o ator Moujoskine. Eles filmaram um plano do ator

com expressão neutra e depois o utilizaram para a montagem de três seqüências

experimentais: na primeira, o plano do ator foi justaposto ao plano de um prato de

sopa sobre uma mesa; na segunda, o plano foi montado com o de um caixão

onde estava uma mulher morta; e na terceira, com o plano de uma menina que

brincava com um brinquedo. O próprio Pudovkin conta a reação das pessoas

diante da exibição das seqüências.

51

Quando apresentamos essas três combinações a uma platéia que ignorava as nossas intenções, o resultado foi impressionante. Os espectadores vibraram com o desempenho do ator. Elogiaram o seu ar pensativo ao contemplar a sopa esquecida, sentiram e comoveram-se com a profunda tristeza com que olhava a mulher morta, e admiraram o ligeiro sorriso de felicidade com que observava a menina brincar. Nós, porém, sabíamos que a expressão do ator era exatamente a mesma nos três casos. (apud LEONE; MOURÃO, 1993, p. 50)

Através do processo de montagem é possível então atribuir vários sentidos

ao material filmado. Com ela também se consegue ditar o ritmo da narrativa. Se

articulados, uma série de planos longos pode criar uma atmosfera densa e

monótona. Ao contrário, a justaposição de vários planos curtos e tomados em

diferentes ângulos traz a idéia de pressa e de ação acelerada. A alternância de

planos longos e curtos pode veicular a idéia de comparação entre duas situações

distintas. Assim, cada plano, além de refletir o próprio conteúdo, reforça o

conteúdo do outro (ROMÃO, 1981, p. 74).

Em relação ao ritmo no cinema, é interessante a abordagem feita por Ana

Maria Balogh no livro O discurso ficcional na TV (2002) quando contrapõe os

estilos americano e europeu de narrativa cinematográfica. Balogh lembra que

tratam-se de duas tradições bastante diversas no que se refere à ênfase dada à

ação ou ao estado dos personagens. Enquanto na tradição americana prevalece

o ritmo acelerado e o gosto pelas aventuras repletas de ação, como no caso de

muitos dos filmes de Steven Spielberg, na européia o ritmo é mais pausado e a

ênfase recai no ser e no estar dos personagens, como no caso das obras de

Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. Efeitos como esses (aceleração e

lendidão) são obtidos na narrativa cinematográfica pela montagem.

Há diversas classificações de montagem. De início, considera-se que a

montagem pode funcionar como meio ou como fim. No primeiro caso, ela é

chamada de Montagem-narrativa, por servir ao propósito simples e imediato de

reunir planos (numa seqüência lógica ou cronológica e com o objetivo de contar

uma história) que trazem em si o conteúdo e contribuem para que a ação progrida

do ponto de vista dramático e psicológico. Enquanto fim, é conhecida como

Montagem-expressiva. Nesse caso, o objetivo é produzir efeitos pelo choque de

duas imagens e exprimir sentimentos ou idéias por si mesma, fazendo com que o

espectador experimente o ponto de vista do diretor no tratamento de uma

52

realidade (MARTIN, 1990). Apesar dessa distinção, há elementos de montagem

que reúnem ao mesmo tempo aspectos narrativos e expressivos.

Em relação aos planos, temos a Montagem Sintética e a Montagem Analítica. Enquanto a primeira caracteriza-se pelo fato de ter apenas um plano,

como ocorria nos filmes dos primeiros realizadores, antes da descoberta da

montagem, e também se verifica no filme de um plano só3 de Alfred Hitchcock,

Festim diabólico (Rope, 1948), a segunda é aquela que fragmenta a realidade em

diversos planos para destacar detalhes ou elementos que ajudam a explicar a

história (ROMÃO, 1981). Nada impede que esses dois procedimentos sejam

utilizados em conjunto. Por exemplo, o diretor de um filme de ação, onde

predomina a fragmentação da Montagem Analítica, pode valer-se da Montagem Sintética com o objetivo de fornecer ao espectador mais tempo para que ele

apreenda todos os elementos de uma determinada cena que seja importante para

o desenrolar da trama.

Considerando-se ainda o aspecto tempo, a montagem pode ser Normal e

no Passado. A montagem é Normal quando respeita a ordem cronológica dos

acontecimentos. Como o próprio nome indica, na montagem no Passado o tempo

da narrativa ocorre em um momento anterior que é resgatado pela trama do filme.

Pode ser total ou parcial. No primeiro caso, o filme começa pelo fim do tema e há

a recuperação dos fatos até o desfecho (que já é conhecido). No segundo,

geralmente uma personagem é tomada num momento chave (presente), há a

recapitulação dos fatos até este momento (passado) e a narrativa continua a partir

do momento chave novamente (presente, quando a montagem volta a ser

Normal). É comum ainda o uso do flashback4, que é um rápido retorno ao

passado, sem que o filme se caracterize por uma Montagem no Passado.

Trata-se de um procedimento, pelo qual a ação nos é esclarecida, com pequenos passeios pela mente do personagem que lembra ou sonha. Há

3 Na verdade, Festim diabólico possui mais de um plano. Era impossível rodar todo o filme de uma só vez devido ao tamanho dos rolos de negativo, que duram aproximadamente dez minutos. No entanto, Hitchcock consegue essa ilusão ao realizar as trocas de planos posicionando a câmera em enquadramentos escuros (como as costas de um ator), que são exatamente os momentos onde ocorrem as emendas no celulóide. Assim, seu filme nos parece um grande plano-seqüência. Esse tipo de plano também pode ser visto em momentos de filmes como O jogador (The player, 1992), de Robert Altman, e A marca da maldade (Touch of evil, 1958), de Orson Welles. 4 Menos comum, é possível também o uso do flashforward, uma interrupção da seqüência cronológica narrativa para a apresentação de um momento futuro.

53

um abandono do tempo narrativo para agarrar o tempo psicológico. E o tempo, neste caso, é comprimido, reduzido à duração de um sonho, uma lembrança, uma idéia, ganhando sua plenitude e toda sua força. (idem, ibidem, p. 78)

As montagens Normal e no Passado referem-se ao filme como um todo.

Mas existem procedimentos de montagem que são utilizados em casos

específicos ao longo do filme e que se enquadram tanto em um quanto em outro

caso. Podemos citar:

I – Montagem por Analogia: há uma intercalação de planos a fim de que o

espectador faça uma comparação. Exemplo: no filme Tempos modernos (Modern

times, 1936), Charles Chaplin monta, por analogia, a imagem de um rebanho de

ovelhas seguida da imagem de uma multidão que sai de um metrô.

II – Montagem por Contraste: ao contrário da Analogia, aqui há uma

relação entre planos e cenas de forma e conteúdo contrastantes. Exemplo: em O

encouraçado Potemkin (Bronenosets Potiomkin, 1925), Sergei Eisenstein nos

mostra a cena do sujo refeitório dos marinheiros seguida da imagem de asseados

talheres e pratos que serão usados pelos oficiais do navio.

III – Montagem em Refrão: tema visual (também pode ser sonoro) que se

repete, como um refrão, em vários momentos ao longo do filme e tem por objetivo

sublinhar uma idéia. Pode ter um valor simbólico ou transparecer a idéia fixa de

um personagem. Exemplo: a hélice que aparece em vários momentos de Coração

satânico (Angel heart, 1987), de Alan Parker.

IV – Montagem Paralela: há a relação de duas ou mais seqüências que se

passam em lugares e com personagens diferentes, mas que se desenvolvem ao

mesmo tempo. As seqüências se alternam, transportando o espectador, em

questão de segundos, para os vários lugares onde se passam as ações

simultâneas que, ao final, se ligam. Romão (1981) considera esse um recurso

exclusivo do cinema. Exemplo: Francis Ford Coppola finaliza os três filmes da

trilogia O poderoso chefão (The godfather, 1972, 1974 e 1990) com a montagem

paralela, articulando as seqüências dos assassinatos dos desafetos da família

Corleone.

54

Outro recurso cinematográfico a merecer registro é a Elipse, muito

utilizada para eliminar tempos supérfluos para o desenrolar da narrativa. No caso

de mostrar a viagem de um personagem, torna-se mais prático eliminar o tempo

real da passagem de um lugar a outro e montar planos que mostrem esse

personagem subindo no veículo, o veículo em movimento e o personagem saindo

do veículo, já em seu destino. A Elipse pode sugerir ainda o desenrolar do tempo.

É famosa a cena de 2001 – Uma odisséia no espaço (2001: a space odissey,

1968), de Stanley Kubrick, em que vemos um homem-macaco aprendendo a usar

um osso como arma e depois assistimos esse mesmo osso, arremessado ao alto,

transformar-se em uma nave espacial. Com essa junção de cenas, Kubrick

realizou uma elipse que suprimiu milhares de anos entre a pré-história e o futuro

da humanidade.

O processo de montagem recebeu muitas outras contribuições,

principalmente de Sergei Eisenstein, que forjou a montagem ideológica (onde

temos, pelo choque de duas imagens, a sugestão de um significado terceiro ao

espectador). Aqui apenas foram descritos os elementos básicos que permitem a

sintaxe cinematográfica.

2.2 O cinema e a escrita

Pode-se dizer que cinema e escrita vivem uma relação simbiótica, onde as

linguagens peculiares a uma e outra forma de comunicação se entrelaçam e

tocam, deixando indeléveis os indícios dessa influência mútua. O cinema bebeu

na fonte da literatura, seja para adaptar romances (o que acontece até hoje) ou

utilizando escritores como roteiristas. Da mesma forma, a literatura foi sensível às

marcas da sétima arte. Para Jean Epstein, que vê esse convívio como uma

colaboração cine-literária, a literatura moderna está saturada de cinema.

Reciprocamente, esta arte misteriosa muito assimilou da literatura (EPSTEIN,

1993, p. 269). E Henri Agel chama a atenção para um texto de 1948 de Alexandre

Astruc em que o ensaísta fala de uma nova idade do cinema que nomeia a da

câmera-caneta. De acordo com Astruc, o cinema encontraria uma fase em que se

55

tornaria uma escritura tão flexível e sutil como a linguagem escrita (ASTRUC apud

AGEL, 1982, p. 81).

Mcluhan percebe confluências entre as tecnologias do cinema e da

impressão tipográfica e entre as tarefas do escritor e do cineasta. Ambas as

atividades, escreve o teórico, teriam o poder de gerar fantasias no espectador e

no leitor pela instauração de um mundo imaginário. Segundo ele:

O leitor como que projeta as palavras, seguindo as seqüências de tomadas em preto e branco – e que constituem a tipografia – fornecendo sua própria trilha sonora. Tenta acompanhar os contornos da mente do autor, em velocidades diversas e com vários graus de ilusões de compreensão. Não há como exagerar a ligação entre a impressão e o cinema, no que se refere ao poder de ambos em gerar fantasias no espectador e no leitor. (...)

A tarefa do escritor e do cineasta é a de transportar o leitor e o espectador, respectivamente, de seu próprio mundo para um mundo criado pela tipografia e pelo filme. (MCLUHAN, 2005, p. 320)

Antônio Costa considera que o cinema é uma linguagem que mantém

parentesco com a literatura, possuindo em comum o uso da palavra das

personagens e a finalidade de contar histórias (COSTA, 1989, p. 27). Fora o uso

da palavra e a possibilidade de contar histórias, cinema e literatura também

comungam alguns procedimentos técnicos. No ensaio Dickens, Griffith e nós, que

consta no livro A forma do filme (1990), Sergei Eisenstein analisa a influência do

escritor inglês Charles Dickens na formação do estilo de filmagem do diretor

norte-americano David Wark Griffith, considerado o pai da montagem no cinema.

Além de ressaltar a semelhança entre os heróis da tela e a plasticidade e os

meios levemente exagerados com que os personagens de Dickens eram

elaborados, o teórico e cineasta russo explica que o escritor forneceu a Griffith a

idéia da montagem paralela.

Eisenstein recupera em seu ensaio testemunho do diretor norte-americano

onde ele afirma ter se inspirado em um dos romances de Dickens para realizar

seu trabalho. Ele confirma isso ao estudar a presença de procedimentos de

filmagem típicos de Griffith no livro Oliver Twist. No que se refere à montagem

paralela, o cineasta extrai trechos inteiros do romance onde são narradas

situações que se desenvolvem paralelamente com diferentes grupos de

personagens.

56

Mas Sergei Eisenstein considerava que a montagem era processo

intrínseco ao próprio ato de pensar e, portanto, estaria presente em toda forma de

manifestação artística. No artigo Palavra e imagem, reunido no livro O sentido do

filme (1990), ele percebe elementos da montagem nas notas escritas (que chega

a chamar de “roteiro de filmagem”) por Leonardo da Vinci para uma

representação do Dilúvio pela pintura – Nele, através de uma acumulação

crescente de detalhes e cenas, uma imagem palpável surge diante de nós

(Eisenstein, 1990, p. 24) –, no ato de interpretação dos atores, na literatura

anterior e posterior ao surgimento do cinema e na própria arte cinematográfica.

Para ele,

(...) não importa se na imagem, no som ou em combinações imagem-som, se na criação de uma imagem, de uma situação, ou na “mágica” encarnação diante de nossos olhos das imagens dos dramatis personae (...), em toda parte encontramos igualmente presente este mesmo método de montagem. (idem, ibidem, p. 44)

No Brasil, Flora Süssekind estudou o impacto do horizonte técnico que

despontava no país no final do século 19 e início do 20 na obra dos pré-

modernistas. Em Cinematógrafo de letras (1987), analisa como a técnica é,

primeiro, representada pela literatura e, depois, passa a ter procedimentos

característicos de meios como a fotografia e o cinema apropriados e convertidos

em técnica literária. Um dos autores estudados é João do Rio, que já naquela

época percebia uma proximidade entre sua atividade de cronista e a

cinematografia.

Não foi à toa, registra Süssekind, que ele nomeou de Cinematógrafo sua

coletânea de crônicas publicada em 1909, onde ressalta as possibilidades

documentais do novo meio e vê também a vida, objeto da documentação, ser

redefinida em um colossal cinematógrafo, no qual “cada homem tem no crânio um

cinematógrafo de que o operador é a imaginação” e onde “basta fechar os olhos e

as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável” (apud SÜSSEKIND,

1987, p. 45). A mesma percepção distraída vista por Benjamin (1982) no público

do cinema, que se distrai enquanto examina uma realidade, se apresenta no

argumento de João do Rio.

57

Escreve o cronista na abertura de Cinematógrafo, onde aparece a

expressão que foi aproveitada por Flora Süssekind para nomear seu livro:

A crônica evolui para a cinematografia. Era reflexão e comentário, o reverso desse sinistro animal de gênero indefinido a que chamam: o artigo de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente era fotografia retocada mas com vida. Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica – um cinematógrafo de letras, o romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia –, mas romance em que o operador é personagem secundário arrastado na torrente dos acontecimentos. (apud SÜSSEKIND, 1987, p. 46-47)

A crítica observa que o trecho deixa transparecer a visão que o escritor tem

do cronista como um operador, das crônicas como fitas e do livro de crônicas

como um cinematógrafo de letras. Mesmo sem se aprofundar na obra dos

modernistas, Süssekind cita que é com esse movimento (a partir dos anos 1920)

que as montagens e cortes típicos do cinema passariam a invadir o campo

literário, em uma compreensão por parte dos escritores da literatura como técnica.

Ela nos dá o exemplo com o poema Crônica, de Oswald de Andrade, onde lemos

Era uma vez / o mundo. Com esse jogo rápido, o poeta sintetiza, na leitura de

Flora Süssekind, as transformações vividas no Brasil nessas quatro décadas

entre os anos 90 de um século e o decênio de 20 do outro. (...) Porque se assiste,

então, a um verdadeiro corte, a um momento de mudança radical nas formas de

percepção (idem, ibidem, p. 134).

A presença de marcas do cinema na escrita também é analisada por

Silviano Santiago na produção literária brasileira dos anos 1930 e 1940. Ele

explica como a literatura desse período tentou fazer concorrência à arte

cinematográfica pela apropriação de uma de suas principais características:

intervir no tempo presente, representando-o e difundindo as grandes questões

suscitadas por ele (SANTIAGO, 2004, p. 115).

O autor cita o “efeito de choque” – numa reapropriação das idéias de

Benjamin em relação ao cinema e seu espectador – causado pelo poema de

Carlos Drummond de Andrade A morte do leiteiro no leitor ao agilizar nele a sua

sensibilidade para melhor compreender os problemas do “nosso tempo” (idem,

ibidem, p. 117). Como se sabe, esse poema narra o assassinato do leiteiro que é

confundido com um ladrão na madrugada urbana pelo proprietário de uma casa.

58

Nada mais contemporâneo do que o tema da violência indiscriminada para

exemplificar essa confluência percebida por Santiago entre cinema e literatura no

tratamento de questões suscitadas pelo tempo presente.

No texto jornalístico, sendo o jornalismo, por si só, o reduto das questões

da contemporaneidade, Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986) vêem a

influência do cinema no que caracterizam como reportagem de ação, ou action-

story. O conceito desse gênero de reportagem na visão dos autores é:

(...) o relato mais ou menos movimentado, que começa sempre pelo fato mais atraente, para ir descendo aos poucos na exposição dos detalhes. O importante, nessas reportagens, é o desenrolar dos acontecimentos de maneira enunciante, próxima ao leitor, que fica envolvido com a visualização das cenas, como num filme. (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 52)

Pode-se citar também o recurso de edição no jornalismo impresso

conhecido como “cineminha”, onde uma série de fotos de um mesmo fato é

publicada em seqüência, de forma a mostrar o desenvolvimento de uma cena.

Trata-se de um recurso visual muito utilizado quando o repórter fotográfico

consegue registrar flagrantes cujos detalhes são importantes para o entendimento

da notícia por parte do leitor. Guilherme Jorge de Rezende (1997) lembra ainda

do uso de ilustrações, com diversos “planos e ângulos”, na reconstituição do

assassinato de Daniela Perez feita pelo Jornal do Brasil e pela Folha de S. Paulo.

2.3 A linguagem televisiva

Os mesmos planos, movimentos de câmera e ângulos de filmagem

descritos para caracterizar a linguagem cinematográfica são observados, com

pouquíssima variação, em relação às possibilidades das câmeras de TV captarem

imagens. Muniz Sodré (1977) explica que os planos na televisão são obtidos a

partir da distância entre o objeto focalizado e a câmera. Ele os nomeia em: long

shot (cenário completo), medium shot (parte do cenário), close-up (cabeça e

ombros), big close-up (apenas o rosto), close-shot (objeto focalizado, excluindo o

quadro), e two-shot (duas pessoas no quadro). Apesar de terem nomes

específicos, os movimentos da câmera na TV também não diferem de maneira

59

substancial dos da câmera cinematográfica. No entanto, na televisão há a

prevalência dos planos próximos. Tecnicamente, a TV tende a ser um meio de

primeiros-planos. No cinema, o close-up dá ênfase; na TV, é coisa normal

(MCLUHAN, 2005, p. 356). Isso ocorre pelo nível de intimidade que envolve a

relação televisão-telespectador, sediada no âmbito familiar do lar.

Mas no que se refere ao grau de definição da imagem, no cinema ele é

bem maior do que o da imagem televisiva. A imagem chuveiro da TV, para usar

expressão de Mcluhan, é formada por três milhões de pontos por segundo, dos

quais o telespectador capta algumas poucas dúzias para formar a imagem,

enquanto a imagem do filme apresenta muitos milhões a mais de pontos por

segundo. Não é possível, por exemplo, para as câmeras de TV alcançar o nível

de profundidade de campo das câmeras cinematográficas. O teórico canadense

lembra que a terceira dimensão, habitual no filme e na fotografia, é estranha à

imagem televisiva, sendo esta caracterizada por ser um mosaico plano,

bidimensional.

A televisão não trabalha com fitas de celulóide que registram fotogramas e

sim com fitas magnéticas onde a imagem é formada por linhas contínuas de

definição, que inclusive podem ser apagadas e gravadas novamente, o que é

impossível no caso do celulóide. Muniz Sodré marca as diferenças entre os dois

processos de registro de imagens.

Os dois processos têm em comum o fato de que a imagem em movimento consiste numa série de imagens paradas. Mas enquanto a imagem do filme é produzida de vez, pela exposição do objeto focalizado à luz de uma abertura única do obturador da câmara, no vídeo a imagem é produzida em tempos diferentes pela varredura de um feixe eletrônico. Uma varredura completa denomina-se campo, havendo sessenta campos por segundo numa imagem de vt. A imagem televisiva resulta, assim, numa superfície de pontos fosforescentes, exatas reproduções da cadência eletrônica da câmara gravadora. A imagem fílmica, ao contrário, é uma sucessão de quadros fixos (24 por segundo). (SÓDRE, 1977, p. 70)

A nomenclatura também muda em relação à montagem que, na TV, é

conhecida como edição5.

5 A montagem é realizada em laboratório onde, através de uma máquina chamada moviola, pode-se cortar e colar o celulóide num processo manual. A edição na TV ocorre de forma eletrônica ou digital nos aparelhos conhecidos como ilhas de edição.

60

Marcondes Filho (1994) explica que, com a televisão, houve grandes

transformações nas formas de transmissão de histórias, aventuras e relatos e

ainda na maneira de se fazer isso. Com o cinema tem-se a liberdade visual, com

sua profundidade de campo, seus enquadramentos de horizontes e de cidades,

seus passeios (travellings) de câmera pelas paisagens, com a grandeza de sua

tela e a capacidade de nos suprimir o contato com os outros no escuro da sala de

projeção. A presença de um narrador (o diretor), que nos enreda na trama, fica

clara na sétima arte. A televisão, além de trabalhar com planos próximos das

pessoas e de nos atingir no ambiente social da sala de visitas, deixa oculta a

figura de um contador de histórias.

Marcondes Filho relaciona outras distinções entre as linguagens televisiva

e cinematográfica:

(...) se o cinema é feito através da junção de diversas cenas, compondo um todo de segmentos justapostos uns aos outros, a televisão trabalha com o jogo de fluxos e impactos seqüenciados, altos e baixos, variando conforme interesses externos à própria narrativa, isto é, conforme os interesses publicitários de seu anunciante.

Na narrativa da tevê o que importa é o diálogo, a fala, as palavras. Há um atrofiamento das demais formas expressivas (o silêncio, a linguagem dos ambientes, das paisagens, das cenas por si) em favor do texto. No cinema é diferente: os efeitos visuais podem até desprezar as palavras, já que o ambiente (e a concentração) da exibição permite que se ampliem as formas de expressão. (MARCONDES FILHO, 1994, p. 16)

Neste trecho, é interessante registrar a importância atribuída ao diálogo na

narrativa da TV. Isso se deve, como observam Rezende (2000) e Sodré (1977),

pela predominância da função de linguagem de contato, a chamada função fática

– a partir da classificação do lingüista Roman Jackobson, que estabelece ainda as

funções referencial (ligada ao contexto), expressiva (centrada no destinador),

poética (relativa à mensagem), conativa (centrada no destinatário) e

metalingüística (relacionada ao código).

A função fática visa sustentar a comunicação entre falante e ouvinte. Na

televisão, sua forma mais visível ocorre pela interpelação do telespectador pelo

apresentador numa atitude de conversa informal.

A interpelação direta efetuada pelo apresentador é o elemento

fático mais visível da televisão. A familiaridade instaurada por seu rosto,

61

em atitude de conversa íntima, de bate-papo, naturaliza a apresentação do mundo pelas imagens (vale frisar: apresentar, mostrar ou apontar o mundo é o específico da “arte” televisiva) e estabelece o contato com o telespectador. Este espera sempre que a tevê ultrapasse os efeitos de mero espetáculo ou de pura informação e se invista da atmosfera de simpatia e camaradagem, característica ideal de grupos primários, como a família. (SODRÉ, 1977, p. 61)

A impressão de conversa às vezes pode ser tão intensa que, como registra

Rezende (2000), não são poucos os telespectadores a reagir às interpelações de

“Boa noite” e “você não pode perder essa oportunidade” de alguns

apresentadores de telejornais e de anúncios de ofertas publicitárias.

Outro ponto é que, ao contrário do cinema, que tem hora marcada para

iniciar e terminar a sessão de um filme, na televisão a programação se define por

ser um fluxo, um continuum de imagens, que não faz distinção dos programas e

constitui a forma da tela acesa (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001, p. 36). E esse

continuum, na maioria dos casos (principalmente depois do advento das redes de

TV a cabo) não tem hora para acabar, o que deixa o telespectador ao bel-prazer

da tela acesa. Na televisão, o espetáculo se desenrola continuamente hora após

hora, dia após dia. Sempre (REZENDE, 2000, p. 36).

O fluxo televisivo se constitui por uma programação fragmentária, a forma

mosaico. O termo mosaico foi usado por Abraham A. Moles no livro

Sociodinâmica da cultura (1974) para referir-se à cultura moderna em

contraposição à cultura tradicional. Moles recorre à figura de uma tela de

conceitos sobre a qual os indivíduos projetam suas percepções do mundo exterior

para explicar a diferença entre os dois momentos da cultura. Na cultura

tradicional, a textura dessa tela conceitual apresentava-se organizada de uma

forma quase geométrica, resultado do acúmulo racional e lógico de

conhecimentos de um tipo de visão humanista da educação. A cultura moderna,

chamada de cultura-mosaico, sugere uma tela conceitual cuja textura assemelha-

se a um sistema fibroso, onde as fibras aparecem coladas ao acaso. Para

Abraham Moles é dessa forma que o indivíduo absorve o fluxo de conhecimentos

atualmente. A informação nos chega de maneira aleatória

pelos meios de comunicação de massa, pela imprensa, pelo exame superficial das revistas técnicas, pelo cinema, rádio, televisão, conversa,

62

por uma multiplicidade de meios que agem sobre nós, cuja massa nos submerge e dos quais nos sobram apenas influências transitórias, pedaços de conhecimentos, fragmentos de idéias (...) (MOLES, 1974, p. 19).

O fluxo televisivo – e sua forma mosaico – é também o reflexo da cultura-

mosaico. A programação fragmentada, no entanto, constitui um todo contínuo de

programas de vários gêneros. Temos filmes, documentários, desenhos animados,

novelas, jogos de futebol, telejornais, reality shows, tudo entrecortado por uma

multiplicidade de propagandas dos mais diversos tipos de produtos. Os relatos

informativos ou dramáticos são fragmentados pelos spots publicitários (que, aliás,

com sua linguagem ágil, tornam-se a referência para todos os demais programas

televisivos) que, por sua vez, são formados por microrelatos visualmente

fragmentados ao infinito (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001, p. 36). A fórmula do

sincretismo da indústria cultural e do espetáculo, que mescla ficção e realidade,

desfila diante de nossos olhos. Jesús Martín-Barbero e Germán Rey observam

nesse contexto o fim dos grandes relatos pela equivalência de todos os discursos

(...), pela interpenetrabilidade de todos os gêneros e pela transformação do

efêmero em chave de produção e em proposta de gozo estético (idem, ibidem).

O teórico espanhol Jesús González Requena chama de pansincretismo a

essa capacidade do veículo TV de integrar y articular géneros discursivos y

sistemas semióticos de referencia extremadamente variados (REQUENA, 1999,

p. 25). Ou seja, se os produtos da indústria cultural se caracterizam pelo

sincretismo, a televisão, em sua programação, os reúne em conjunto, instaurando

dessa maneira o convívio de sincretismos, um pansicretismo. Assim, o discurso

da TV, sem desconhecer as particularidades dos diversos tipos de programas,

manifesta-se, portanto, na integridade estrutural da programação (REZENDE,

2000, p. 32).

Essa situação ainda é agravada pelo efeito zapping.

De posse do controle remoto, o telespectador realiza instantaneamente uma edição do espetáculo televisivo, fundindo imagens de um anúncio publicitário de um canal a trechos de uma novela de outra emissora e a flashes de um telejornal emitido por uma terceira estação de TV. (idem, ibidem, p. 32)

63

2.4 A televisão e a escrita

Se, a exemplo do cinema, a televisão historicamente se nutriu (e ainda se

nutre) da literatura, como no caso de romances vertidos em telenovelas e

minisséries, conforme a sétima arte, ela também projetou suas características e

legou à escrita seu impacto. Parte considerável desse impacto se deve ao fato de

que o surgimento da TV trouxe consigo uma multiplicidade de imagens até então

sem precedentes em nossa cultura. Assim, o repertório de imagens fruto da

experiência direta do indivíduo passou a variar em razão indireta ao repertório de

imagens refletidas pela cultura (de massa). O que fez Italo Calvino indagar-se na

conferência dedicada à Visibilidade, uma das cinco que consta de seu Seis

propostas para o próximo milênio:

(...) que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que se convencionou chamar a “civilização da imagem”? O poder de evocar imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas? Antigamente a memória visiva de um indivíduo estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo. (CALVINO, 1990, p. 107)

A forma mosaico, fragmentária, da programação televisiva invadiu o

imaginário humano a ponto de Calvino manifestar sua preocupação de que isso

colocasse em risco nossa capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados,

de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos

negros sobre uma página branca, de pensar por imagens (idem, ibidem, p. 107-

108). Ciro Marcondes Filho considera que a fragmentação, a edição picada de

cenas em uma construção seriada de pequenos trechos típica da TV e seu ritmo

frenético, além do império da imagem fundado por esse veículo, invadiu as

linguagens da literatura, do jornalismo e do rádio, tornando ilegíveis trabalhos em

profundidade.

64

Todos esses meios tornam-se espécies de apêndices, produtos marginais à TV, tanto pelo caráter de junção de partes, períodos, cenas curtas, quanto pelo imperialismo da imagem, que está tornando ilegível o trabalho em profundidade, de análise, de “essência”, de fundo. (MARCONDES FILHO, 1993, p. 36-37).

Para ele, o reflexo dessa situação no texto jornalístico é o de compressão.

Não há mais lugar para as notícias longas e não são recomendadas matérias que

excedam os três parágrafos. Notícias e matérias devem pulverizar-se em

pequenos drops informativos que são fornecidos a conta-gotas nas páginas do

jornal (idem, ibidem, p. 97). Opinião semelhante manifestou Joel Silveira em

entrevista concedida para a realização desse trabalho sobre os jornais atuais, que

se encontram abarrotados de informações vindas das mais diversas fontes.

Não tem lugar mais nos jornais para as grandes reportagens como se fazia antigamente, grandes no tamanho e também no assunto que tratavam. Porque não há espaço nos jornais tal o afluxo de notícias que chegam diariamente no jornal. (ver, em Anexo A, Entrevista com o jornalista Joel Silveira, p. 136)

Esse cenário apresentou-nos um novo termo: televisão impressa. É dessa

forma que o jornal norte-americano USA Today - que inaugurou essa tendência -

se autodefine. No Brasil, a repercussão desse estilo jornalístico pode ser

percebida na Folha de S. Paulo. Vejamos o que Marcondes Filho diz a respeito.

O jornalismo impresso, sofrendo a forte concorrência da televisão,

que trabalha com imagens aceleradas e uma troca rápida e intensa de estímulos visuais, teve de se adaptar também ao novo hábito das sociedades, o da visualização, da precedência da imagem e de um certo desinvestimento social na capacidade textual.

O jornal norte-americano USA Today, considerado como indicador de novas tendências, chama-se a si mesmo de “televisão impressa”. O jornalismo abre mão daquilo que se chamava de “sua identidade”, que era exatamente o fato de escrever as notícias, desenvolvê-las dando um tratamento específico e mais amplo aos temas, ou seja, jogando com o elemento espaço (o das páginas, cadernos e suplementos especiais), para ser cada vez mais reprodução de outro meio de comunicação que é a televisão, meio visual por excelência, que trabalha com imagens em movimento. (MARCONDES FILHO, 1993, p. 100-101)

O autor explica que o fato de o jornal impresso não trabalhar, logicamente,

com imagens em movimento não é obstáculo. Essa impossibilidade é contornada

por meio de uma diagramação ágil, ligeira, das páginas, que com isso tentam

65

resgatar a atenção de um público viciado em decodificar muito mais imagens

visuais do que verbais (idem, ibidem, p. 101). Isso indica o lugar de destaque que

a imagem ocupa na cultura contemporânea, a ponto de, segundo Marcondes

Filho, reduzir nas pessoas a capacidade de ler textos longos ou que envolvam

certa abstração.

O jornal impresso, antes reduto do texto, passa a jogar com elementos da

diagramação. Fotografias coloridas, variação de famílias de tipos, textos

construídos à base de frases e parágrafos cada vez mais curtos, tudo converge

para apresentar ao leitor páginas visualmente prazerosas para o ato da leitura,

mesmo que isso implique em um esvaziamento informacional da matéria

jornalística. Guilherme Jorge de Rezende (2000) afirma que a disseminação

dessa mentalidade acaba repercutindo nos profissionais da imprensa, que

passam a considerar o jornalista ideal aquele capaz de escrever o mínimo

necessário em um estilo “curto e grosso”. Nas palavras de Ciro Marcondes Filho

(1993), o jornalista torna-se menos um perito da linguagem do que um técnico no

“dizer simples” (MARCONDES FILHO, 1993, p. 98).

Tentamos registrar aqui um pouco das confluências entre as linguagens

técnicas do cinema e da televisão na escrita, o que configura parte do sincretismo

que se observa nos produtos da indústria cultural. No próximo capítulo,

abordaremos o convívio histórico entre as linguagens literária e jornalística e os

desdobramentos dessa relação na conformação do chamado jornalismo literário.

66

CAPÍTULO 3: SOBRE AS PÁGINAS DOS JORNAIS E DOS LIVROS

Há sim, uma fronteira entre jornalismo e ficção. Mas é uma fronteira permeável, que permite uma útil e amável convivência. No passado,

grandes escritores foram grandes jornalistas: o caso de Machado de Assis, de Lima Barreto.

Nada impede que esta tradição tenha continuidade.

Moacyr Scliar

Eu gostaria de deixar uns poucos poemas com

a leveza, o magnetismo e o poder de convicção de um bom artigo de jornal... e um punhado de artigos com a espontaneidade, a concisão e a

transparência de um poema.

Octavio Paz

O ideal seria que a poesia fosse cada vez mais informativa e o jornalismo cada vez mais

poético. Um ideal que, como pode observar-se nos bons criadores do jornalismo moderno,

parece haver-se cumprido.

Gabriel García Márquez

Há registrado na história um trânsito entre escritores e jornalistas pelas

páginas dos jornais e dos livros. Machado de Assis e Lima Barreto, como lembra

Moacyr Scliar na epígrafe acima, foram dois dos que realizaram esse trânsito no

Brasil numa época (final do século 19 e início do 20) em que as profissões de

jornalista e escritor praticamente se confundiam no país. Essa convivência forma

o sincretismo entre literatura e jornalismo, responsável pela configuração do que

se convencionou chamar de Jornalismo Literário mais recentemente. Nessa

corrente, Joel Silveira é tido como um dos pioneiros e Sérgio Dávila como mais

um a contribuir para que a tradição se mantenha de pé no Brasil.

Dentro do chamado Jornalismo Literário, existem diversas formas de

manifestação dessa convivência. Crônica, crítica literária, livro-reportagem,

romance-reportagem, Novo Jornalismo, Jornalismo Gonzo, enfim, são vários os

hibridismos. A seguir, realizaremos um passeio por parte da história da

confluência literário-jornalística.

67

3.1 Jornalismo e literatura: uma confluência histórica

Em seu livro Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos (2000),

Ciro Marcondes Filho divide a história do jornalismo em cinco épocas, divisão que

é relembrada por Felipe Pena (2006) de forma sucinta como Pré-história do

jornalismo (de 1631 a 1789); Primeiro jornalismo (1789 a 1830), Segundo

jornalismo (1830 a 1900); Terceiro jornalismo (1900 a 1960); e Quarto jornalismo

(1960 em diante). Pela ótica de Marcondes Filho, a literatura estaria mais

presente nos chamados primeiro e segundo jornalismos. A primeira fase se

caracterizaria por ser o período de ebulição do jornalismo político-literário, com

textos críticos e jornais economicamente deficitários. A segunda marcaria o início

dos altos investimentos do capital, a profissionalização dos escritores em

jornalistas e a constituição da imprensa de massa.

Pena ressalta que essas duas fases, localizadas nos séculos 18 e 19, são

o momento em que escritores de renome descobrem a força do jornal como novo

espaço público e passam a estar à frente das redações, ditando a linguagem e

também o conteúdo dos jornais. Uma das primeiras manifestações da confluência

literário-jornalística nessa época é o aparecimento do folhetim. O termo, originado

do francês feuilleton, surgiu no Journal des Débats e referia-se inicialmente a um

tipo de suplemento onde eram coligidas críticas literárias e assuntos diversos. Foi

a partir das décadas de 1830 e 1840, com o recrudescimento de um jornalismo

popular dentro da lógica capitalista que a imprensa passava a obedecer, que o

folhetim assumiu a acepção de narrativas literárias publicadas de forma seriada

nos jornais. Descobriu-se que isso proporcionava o aumento das vendas dos

periódicos e, por conseguinte, a diminuição dos preços dos exemplares e o

aumento de leitores, o que chamava a atenção dos anunciantes que, diante das

grandes tiragens dos jornais, passavam a pagar mais caro pelos espaços

publicitários.

Para alimentar esse ciclo, o estilo folhetinesco obedecia a algumas

características narrativas que visavam tornar sua leitura mais ampla, atingindo

todas as classes sociais, e a aguçar a curiosidade dos leitores (uso do recurso do

68

plot e adoção da estética da redundância). Felipe Pena explica como isso era

feito.

(...) a linguagem deveria ser simples e acessível. Além disso, para facilitar a compreensão, eram utilizados recursos de homogeneização cultural, como estereótipos, clichês e estratégias correlatas. Histórias de adultérios, amores impossíveis e odisséias aventureiras tinham como objetivo a lágrima melodramática e o riso fácil.

Outra característica do folhetim era o chamado plot, o ponto de virada do roteiro. A ação era sempre interrompida no momento culminante. A hora do beijo, a descoberta do assassino ou o flagrante do marido. Como as histórias eram publicadas em fascículos, no final de cada capítulo existia sempre um acontecimento dramático, que só seria resolvido na edição seguinte do jornal, garantindo assim a próxima compra do leitor. E, se por algum motivo, ele não pudesse acompanhar a série por um determinado tempo, também não havia problema. Os escritores usavam o recurso da repetição, sempre lembrando ao público fatos acontecidos muitos capítulos atrás. Era a chamada estética da redundância. (PENA, 2006, p. 29-30)

No Brasil, considera-se que o primeiro folhetim publicado nos moldes como

ele se configurava na Europa foi Memórias de um sargento de milícias, de Manuel

Antônio de Almeida, que saiu em 1852 no Correio Mercantil. Escritores como

Machado de Assis, José de Alencar e Lima Barreto, entre outros, também

publicaram folhetins. Aliás, como registra Pena, quase todos os grandes

escritores brasileiros trabalharam em jornais no século 19 e início do 20. Nelson

Werneck Sodré, em sua História da imprensa no Brasil (1999), registra que a

parceria entre imprensa e escritores era favorável a estes porque lhes conferia a

notoriedade que não alcançavam com o livro, um produto caro que não podia ser

adquirido pelo público assalariado (PENA, 2006).

Além disso, os jornais conferiam aos escritores prestígio intelectual,

ofereciam a eles a possibilidade de entrar para a carreira política e boas e

regulares remunerações. É o que observa Sérgio Micelli em Poder, sexo e letras

na República Velha.

Toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que

constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. (...) O posto de editorialista (...) era muito cobiçado e, para inúmeros escritores, constitui a ponte para iniciar uma carreira política. (MICELLI apud SÜSSEKIND, 1987, p. 74-75)

69

O processo de modernização que os jornais brasileiros experimentam de

forma mais intensa a partir do início do século 20, faz com que os serviços

endereçados aos literatos se tornem cada vez menos literários. Ao invés de

contos e versos, reportagens e entrevistas; ao invés do trabalho de cronista, o de

redator (SÜSSEKIND, 1987, p. 75). O reflexo das relações capitalistas que se

aprofundavam no país acentua-se gradativamente na imprensa. O folhetim se vê

substituído aos poucos pelo colunismo e pela reportagem, a entrevista passa a

ocupar o espaço do artigo político, a informação passa a predominar em relação à

doutrinação. As contribuições literárias começam a ser separadas na

diagramação dos jornais, como matéria à parte; surgem as seções de crítica em

rodapé e começa-se a esboçar o que seriam mais tarde os suplementos literários

(SODRÉ, 1999).

Dessa forma, fica para trás o tempo em que jornalismo e literatura

praticamente se confundiam nas páginas dos jornais. Felipe Pena (2006) destaca

que na década de 1950 já estavam consolidadas as alterações estilísticas e

gráficas que substituiriam as belas narrativas pela necessidade de objetividade1 e

concisão. Uma dessas alterações, talvez a que mais tenha incidido na escrita

jornalística, foi o aparecimento do lead, recurso inventado pelos jornalistas

americanos no início do século 20 e que posteriormente seria adotado no Brasil.

O lead é uma estratégia narrativa inventada com o objetivo de minorar (eliminar é

impossível) a influência da subjetividade no processo de redação da matéria pelo

repórter. Consiste em responder, logo no primeiro parágrafo da reportagem ou

notícia, as questões: Quem? O quê? Como? Onde? Quando? Por quê? Essa

técnica, embora tenha tornado a imprensa menos prolixa e mais ágil, segundo

Pena, não diminuiu a subjetividade, que é inerente ao trabalho jornalístico.

No Brasil, o lead foi introduzido pelo jornalista Roberto Pompeu de Sousa

no carnaval de 1950 quando chefiava a redação do Diário Carioca. Em entrevista

concedida a Cláudio Lysias, na Revista de Comunicação (1986), o jornalista

explica que seu objetivo na época era substituir o nariz-de-cera, a abertura do 1 Necessário registrar que a noção de objetividade aqui é entendida como um ideal a ser perseguido pelo jornalista. Considera-se a objetividade pura impossível de ser alcançada dado o caráter subjetivo que permeia o fazer jornalístico, que constrói na verdade versões do fato pela reunião de vários pontos de vista (dos entrevistados, do próprio repórter que escreverá a matéria e dos redatores e editores, que também dão sua contribuição, via redação de títulos e chamadas de primeira página, por exemplo, para a construção do fato reportado).

70

texto jornalístico que retardava o início da notícia propriamente dita através de

comentários, opiniões e interpretações. No texto “O máximo de notícia no mínimo

de espaço”, que complementa a entrevista publicada na Revista de Comunicação,

José Ramos Tinhorão destaca que o nariz-de-cera foi herdado do fato de que a

maioria dos jornalistas brasileiros, desde o século 19, havia sido recrutada entre

literatos e políticos (que também praticavam a literatura). Pompeu de Sousa

adaptou no país o estilo americano de redação de material noticioso ao escrever

as Regras de redação do Diário Carioca. Segundo conta o jornalista, o termo lead

foi preservado por falta de tempo na hora de traduzir. Nas redações brasileiras

apareceria ainda o sublead, que é o segundo parágrafo da notícia, um recurso

que não existe na imprensa americana.

As transformações pelas quais passaram os jornais delimitaram, e não

eliminaram, a presença da literatura na imprensa. Com espaço determinado –

geralmente as páginas de opinião ou dos cadernos culturais – a crônica, por

exemplo, continua a ser exercitada por jornalistas e escritores.

3.2 A crônica

Necessário observar que a crônica é anterior ao jornalismo. José Marques

de Melo resgata a origem histórica e literária dessa forma de narrativa em um

texto (A crônica) de 1986, republicado recentemente no livro Jornalismo e

literatura: a sedução da palavra (2002), organizado por Gustavo de Castro e Alex

Galeno. Nele, o autor explica que a crônica histórica tinha por função registrar

para a posteridade episódios da vida social através de relatos circunstanciados

sobre feitos, cenários e personagens por meio da observação do narrador ou

tomando como fontes de referência protagonistas ou testemunhas oculares

desses episódios. O objetivo era evitar que ações realizadas pelos homens

viessem a ser esquecidas com o tempo. Já a crônica literária seria fruto da

narração de viajantes ou epistológrafos, que trariam para leitores distantes suas

impressões de paisagens contempladas e de pessoas conhecidas. Para Manuel

Bandeira, citado por Marques de Melo (MARQUES DE MELO, 2002), a literatura

71

brasileira teria sido inclusive fundada por uma crônica: a carta de Pêro Vaz de

Caminha.

De narrativa histórica e literária, a crônica chega ao jornalismo. Martin

Vivaldi conceitua a crônica jornalística a fim de distingui-la de outros tipos de

crônicas.

O característico da verdadeira crônica é a valoração do fato ao tempo em que vai narrando. O cronista, ao relatar algo, nos dá sua versão do acontecimento; põe em sua narração um toque pessoal. Não é a câmara fotográfica que reproduz uma paisagem; é o pincel do pintor que interpreta a natureza, imprimindo-lhe um evidente matiz subjetivo. (apud MARQUES DE MELO, 2002, p. 141)

Pela conceituação de Vivaldi, percebe-se que a crônica jornalística é um

modo narrativo que se ocupa, principalmente, de questões da atualidade, o que é

próprio do jornalismo, mas com o toque pessoal de um pincel que interpreta a

natureza de forma subjetiva, ou seja, próximo ao fazer literário. José Marques de

Melo enfatiza que a crônica na imprensa brasileira é um gênero pertencente ao

jornalismo opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidades e a

narração literária, configurando-se como um relato poético do real (idem, ibidem,

2002, p. 147). É exatamente esse tom poético que a diferencia dos demais

gêneros opinativos (como o editorial e o artigo) do jornalismo. Marcelo Coelho

chama a atenção para o fato de que o texto da crônica apresenta-se flexível,

podendo ser de ficção e de não-ficção, lírico ou puramente humorístico, em prosa

mas também em verso e lembra que alguns poemas de Carlos Drummond de

Andrade e Manuel Bandeira publicados em jornal eram verdadeiras crônicas

(COELHO, 2002).

A crônica floresceu na imprensa brasileira no século 19. Machado de Assis

e José de Alencar foram dois dos jornalistas-escritores, para usar expressão de

José Marques de Melo, que mais se destacaram nesse período. Mas considera-

se que a década de 1930 tenha sido o momento de sua consolidação como

gênero tipicamente nacional. De acordo com Antônio Cândido,

(...) foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus

72

mestres. Os anos 30 se afirmara Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo seria “o” cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga. (apud MARQUES DE MELO, 2002, p. 149)

Assim, Marques de Melo estabelece duas fases da crônica brasileira: a

crônica de costume, que se aproveitava de fatos do cotidiano para a construção

de relatos poéticos ou descrições literárias; e a crônica moderna, já incorporada

no jornal como matéria ligada ao perfil da edição noticiosa, tendo sido essa última

fase o momento da afirmação de Andrade, Bandeira, Drummond e Braga.

3.3 Um novo jornalismo ou a revolta contra o lead

É possível dizer que o movimento que empurrou os traços literários para

espaços determinados dentro do jornal nunca se deu uniformemente. Ocorreram

quebras durante esse processo, sendo o próprio texto de Joel Silveira uma prova

disso. Felipe Pena (2006) o considera pioneiro na utilização do jornalismo literário

no Brasil. Para o teórico, ele se valeu das grandes reportagens durante a ditadura

do Estado Novo, entre os anos de 1937 e 1945, como forma de soltar sua voz. O

que pode ser percebido nesse trecho de abertura de uma entrevista – intitulada

Conversa com Fritz – realizada com um soldado alemão feito prisioneiro pelas

tropas brasileiras na Itália.

A guerra para este típico representante da atual Wermacht

terminou ontem à noite, quando foi feito prisioneiro por uma patrulha brasileira, aqui na frente. É um homem de 42 anos de idade, o rosto rasgado de rugas, os olhos pisados e úmidos, unhas sujas e compridas, as divisas de cabo quase soltas no uniforme batido e cheio de remendos. A bala do fuzil de um pracinha lhe acertou a mão esquerda, que ele agora traz numa tipóia. Os pés estão enterrados em duas lembranças remotas de sapatos – uma confusão de pedaços de mantas cortadas em tiras enlameadas. A águia germânica, no seu casquete, tem uma asa partida. (SILVEIRA, 2005, p. 59)

A descrição do prisioneiro (com a águia germânica de asas partidas no

casquete) surge como metáfora a anunciar a proximidade da derrota alemã. Joel

Silveira lançava mão desse tipo de texto ainda nos anos 1940. Nessa mesma

década, em 31 de agosto de 1946, nos Estados Unidos, John Hersey publicava

uma grande reportagem sobre as trágicas conseqüências da bomba atômica para

73

a cidade de Hiroshima em edição única da revista The New Yorker

(posteriormente, essa reportagem se transformaria no livro Hiroshima). Como

destaca Pena, ele se utilizou de um texto romanceado para narrar a história de

seis sobreviventes da bomba. Hersey parte de fatos autênticos para reconstruir

cenas e explorar as emoções dos personagens, apresentando diálogos interiores

de forma novelística (PENA, 2006, p. 53). Considera-se que Hiroshima (2002)

tenha sido um dos livros a antecipar o movimento que ficaria conhecido a partir da

década de 1960 como Novo Jornalismo2.

Neste período, insatisfeitos com a adoção de regras de objetividade para a

redação de textos jornalísticos e sob a influência de jornalistas-escritores, como o

próprio Hersey e Truman Capote, alguns profissionais da imprensa norte-

americana irão se rebelar contra a figura do lead. Para eles, esse recurso

impunha limites excessivos à tentativa de exercitar um texto mais original e

criativo. Foi Tom Wolfe que, em 1973, lançou o manifesto do Novo Jornalismo.

Fernando Resende registra no livro Textuações: ficção e fato no novo jornalismo

de Tom Wolfe (2002) que são quatro as técnicas propostas pelo escritor para uma

nova forma de narrar os fatos: construção detalhista da cena, registro completo

dos diálogos, ponto de vista em terceira pessoa e, por último, registro dos gestos

cotidianos e do padrão de vida daqueles sobre os quais fossem ser relatados os

fatos (RESENDE, 2002, p. 63).

Os novos jornalistas – além de Wolfe destacavam-se também Gay Talese

e Norman Mailer – procuravam estar sempre próximos ao fato que iriam reportar,

captando os diálogos e expressões faciais dos envolvidos e descrevendo detalhes

dos ambientes. Segundo Tom Wolfe, isso era necessário para oferecer aos

leitores o que eles tinham, até então, somente na literatura: uma experiência

subjetiva e emocional dos fatos narrados (apud RESENDE, idem, ibidem).

Se o Novo Jornalismo veio para romper com as correntes do lead e libertar

o texto jornalístico da “prisão narrativa” (para usar termo de Felipe Pena)

sedimentada pelas regras de objetividade, há uma corrente no jornalismo que 2 Felipe Pena (2006) cita o professor Carlos Rogé para explicar que o termo Novo Jornalismo apareceu pela primeira vez no ano de 1887. Foi usado de forma pejorativa para desqualificar o editor do Pall Mall Gazette, o britânico WT Stead. Naquela ocasião, ele foi considerado inconseqüente por comprar uma menina de 13 anos da própria mãe para produzir uma matéria sobre prostituição infantil. Por esta atitude, foi preso durante dois meses. Ele passou a ser chamado de novo jornalista em referência a sua irresponsabilidade. O termo hoje tem significado totalmente diferente.

74

carregou nas tintas ao procurar transmitir subjetividade e emoção aos fatos

narrados. Trata-se do Jornalismo Gonzo, criado pelo repórter Hunter S.

Thompson no início da década de 1970 nos Estados Unidos. A narração se dava

em primeira pessoa. O processo de coleta das informações exigia a participação

pessoal do repórter nas ações que iria contar.

Não se procura um personagem para a história; o autor é o próprio personagem. Tudo que for narrado é a partir da visão do jornalista. Irreverência, sarcasmo, exageros e opinião também são características do Jornalismo Gonzo. (PENA, 2006, p. 57)

Uma vez, Thompson (que trabalhava movido a drogas e muita bebida)

chegou a apanhar dos motoqueiros do Hell’s Angels, movimento com o qual

conviveu durante um ano e meio com o objetivo de elaborar uma matéria para a

revista The Nation. Segundo Pena, ele defendia a idéia de que era necessário

provocar o entrevistado para que a reportagem rendesse, isso incluía

xingamentos ao interlocutor. A reportagem sobre os motoqueiros daria origem

depois ao livro Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas.

O termo “gonzo” foi inventado por Thompson em 1971 durante cobertura

jornalística da corrida de motos Mint 400, realizada no deserto de Nevada, para a

revista Sports Illustrated. Como estava sempre envolvido em confusões, ele

adotou o pseudônimo de Raoul Duke e chamou um advogado para acompanhá-lo

na viagem. A esse advogado deu o apelido de Doutor Gonzo, uma pessoa adepta

de seu estilo de vida e que, por isso, também ficaria famosa nos Estados Unidos.

A matéria acabou não saindo pela revista esportiva e sim pela Rolling Stone.

Também foi editada em forma de livro, intitulado Medo e delírio em Las Vegas

(adaptado para o cinema em 1998 por Terry Gilliam , com Johnny Depp e Benicio

del Toro).

Hunter S. Thompson suicidou-se em 2005, aos 67 anos, com uma arma de

fogo em sua casa na cidade de Woody Creek, no Colorado. Foi “gonzo” até na

morte, como escreveu o jornalista Diego Assis (2005), da Folha de S. Paulo, em

75

matéria sobre seu suicídio. Seu estilo jornalístico disseminou-se por várias

revistas e muitos jornalistas o adotaram (e ainda o adotam) em todo o mundo3.

3.4 Romance-reportagem, livro-reportagem

Cabe aqui conceituar esses dois termos que são empregados por teóricos

do jornalismo quando o assunto é Jornalismo Literário e justificar a opção pelo

termo livro-reportagem para caracterizar O inverno da guerra, de Joel Silveira, e

Diário de Bagdá, de Sérgio Dávila. Aliás, são expressões que muitas vezes

aparecem como sinônimas na bibliografia sobre o tema. Felipe Pena (2006)

considera que o conceito de romance-reportagem poderia estar contido no mais

amplo livro-reportagem. Para ele, no romance-reportagem há apropriação de

adereços literários para se compor de maneira aprofundada fatos reais;

(...) quem faz romance-reportagem busca a representação direta do real por meio da contextualização e interpretação de determinados acontecimentos. Não há preocupação apenas em informar, mas também em explicar, orientar e opinar, sempre com base na realidade. (PENA, 2006, p. 103)

Eduardo Belo dá a seguinte definição para livro-reportagem:

(...) é um instrumento aperiódico de difusão de informações de caráter jornalístico. Por suas características, não substitui nenhum meio de comunicação, mas serve como complemento a todos. É o veículo no qual se pode reunir a maior massa de informação organizada e contextualizada sobre um assunto e representa, também, a mídia mais rica (...) em possibilidades para a experimentação, uso da técnica jornalística, aprofundamento da abordagem e construção da narrativa. (BELO, 2006, p. 41)

Como se nota, não há diferenças relevantes entre uma e outra definição.

Inclusive, os dois autores chegam a citar as mesmas obras para exemplificar

3 Felipe Pena cita em seu livro Jornalismo literário um movimento recente nos Estados Unidos conhecido como Novo Jornalismo Novo (New New Journalism). No entanto, ele não difere muito do Novo Jornalismo, adota inclusive as quatro recomendações de Tom Wolfe para a elaboração do texto, mas marca posição em relação a este escritor por recomendar um texto mais informal e por considerar que ele tenha passado a se preocupar mais com a própria carreira do que com o Novo Jornalismo. São algumas das características do Novo Jornalismo Novo, segundo Pena, a preocupação com temas do cotidiano, perfil ativista das matérias, que procuram questionar valores e propor soluções, profundo envolvimento com o assunto da matéria e seus entrevistados.

76

essas manifestações do Jornalismo Literário. Por exemplo, consideram os livros

Os sertões, de Euclides da Cunha, e Rota 66, de Caco Barcellos, como,

respectivamente, marco e um dos representantes atuais do romance-reportagem

(para Felipe Pena) e do livro-reportagem (para Eduardo Belo).

No entanto, Rildo Cosson localiza o aparecimento do romance-reportagem

no Brasil nos anos 1970. Ele explica que foi a partir do título de “romance-

reportagem” dado a uma coleção da Civilização Brasileira por seu editor, Ênio

Silveira, que o termo se vulgarizou, principalmente depois do sucesso de vendas

alcançado por Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, de José Louzeiro, segundo

livro da série. A proposta da coleção era divulgar obras baseadas em fatos reais

com narrativas de contornos ficcionais.

Cosson ressalta que o arrefecimento da censura e as transformações

estruturais por que passou a imprensa brasileira, principalmente durante a década

de 1970, com a adoção do padrão americano que determinava uma série de

procedimentos e técnicas na coleta, seleção e divulgação das notícias que se

opunham frontalmente à tradicional ligação entre jornalismo e literatura praticada

no Brasil (COSSON, 2002, p. 64), atraíram os jornalistas para esse tipo de

narrativa. De um lado, eles encontraram no romance-reportagem um caminho que

lhes permitia denunciar a ditadura e reivindicar a democracia num contexto onde

o pior momento da censura (anterior a 1975) já havia passado. De outro,

perceberam nele um nicho que não mais existia na imprensa brasileira, qual seja,

o espaço para a prática de um jornalismo mais inter-relacionado com a literatura.

A explicação fornecida por Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986)

acerca do termo livro-reportagem abarca as obras de Joel Silveira e Sérgio

Dávila. Para esses teóricos, livro-reportagem pode ser tanto a publicação que se

caracteriza pela compilação de textos já publicados em jornal, mas que tenham

uma organicidade temática ou narrativa, caso de O inverno da guerra, cujo

conteúdo foi veiculado pelos Diários Associados na época (anos 1944 e 1945),

como um trabalho concebido – realizado em termos jornalísticos – para ser

editado, que parece ser mais o caso de Diário de Bagdá, escrito para ser lançado

77

em livro por Dávila após o período em que esteve no Iraque para cobrir a guerra

para a Folha de S. Paulo4.

Portanto, a opção foi denominar de livros-reportagem (conceito que

acreditamos ser mais amplo) O inverno da guerra e Diário de Bagdá,

considerando que ambos resultam em narrativas aprofundadas e

contextualizadas produzidas por jornalistas sobre um assunto determinado

(Segunda Guerra Mundial e Guerra do Iraque) e seguindo o raciocínio de Cosson,

que percebe o romance-reportagem como uma manifestação editorial ocorrida no

Brasil na década de 1970. Mas é necessário lembrar, por tudo que foi dito em

relação à confluência literário-jornalística, que os textos de Joel Silveira e Sérgio

Dávila apresentam-se romanceados, seja pela presença da crônica e por uma

escrita fruto de um tempo em que, no país, as regras de objetividade jornalística

não haviam ainda se consolidado, caso do primeiro autor, ou pela possibilidade

aberta pelos movimentos de contestação (como o Novo Jornalismo) de se

acrescentar maior subjetividade ao texto jornalístico, caso do segundo.

3.5 A interseção entre o factual e o ficcional

As aproximações entre literatura e jornalismo suscitam a discussão sobre a

impossibilidade de se erguer um muro sólido a separar fato e ficção. A fronteira

entre essas duas instâncias no Jornalismo Literário é tênue e funciona como lugar

de interseção entre o real e o ficcional. Trata-se de uma das marcas da indústria

cultural, mas, como vimos no Capítulo 1, é uma relação anterior, que já se

manifestava no século 19 com os folhetins. E por que isso ocorre? Na opinião de

Felipe Pena (2006), mesmo com a advertência de que sua intenção não é cair em

um relativismo absoluto, o que se chama realidade constitui-se na verdade de

construções possíveis em formas infinitas e variáveis. Os indivíduos seriam co-

construtores da realidade em que vivem e que, muitas vezes, querem modificar.

4 No caso de Sérgio Dávila, cabe registrar que ele publicou matérias periodicamente na Folha durante o período em que esteve no Oriente Médio (além do Iraque, passou também por Qatar, Israel e Jordânia). Vários dos temas abordados em suas reportagens, como não poderia deixar de ser, encontram-se também retratados em Diário de Bagdá, só que esses fatos aparecem textualmente retrabalhados, uma vez que no livro ele teve mais tempo para exercitar sua escrita, sem a pressa que o processo diário de produção de um jornal impõe.

78

De acordo com o autor, diversas vozes e múltiplos olhares formam o

acontecimento (PENA, 2006, p. 119).

E se pensarmos no fazer jornalístico, notícias, reportagens e editoriais não

são outra coisa que a organização, em uma narrativa, de diversas vozes e pontos

de vista sobre um determinado acontecimento. Portanto, também são

construtoras da realidade. E se são construtoras da realidade são também

produtoras de ficção. Nanami Sato aproxima o modo de representação jornalística

do real ao fazer ficcional, pelo próprio fato de que cria o que chama de aparência

do acontecer em curso.

Apesar da vocação para o “real”, o relato jornalístico sempre tem

contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso (grifo nosso), isto é, uma ficção. (SATO, 2002, p. 31-32)

A professora lembra que o jornalismo contemporâneo é um produto

industrial que se serve de esquemas para a captação de notícias, sendo ouvir

fontes de informação uma das mais importantes. E as fontes, destaca Nanami

Sato, freqüentemente podem reproduzir posições estereotipadas. Um outro

aspecto relevante, além do fato de que as narrativas jornalísticas dos

acontecimentos estão sujeitas a variantes como o perfil editorial de cada jornal e a

relação repórter-realidade, é a seleção de momentos necessária para se elaborar

uma matéria jornalística. Segundo Sato, seguir

a cronologia do acontecimento constitui fórmula de consumo fácil, já que cria “ilusão cronológica” com tempo ficcional gradativo. A seleção dos momentos substitui o real por um real representado e traduz valoração do que se considera como momentos significativos. A preocupação com coleta de dados evidentes preenche o texto com pormenores descritivos, causando a impressão de que o real concreto basta a si próprio. A esse fenômeno Barthes (1970: 136) chamou ilusão referencial. Jules Gritti (In: Barthes, R. et alii: 1973) considera a narrativa de imprensa uma espécie de jogo metanarrativo, o jogo das relações entre o narrador e as fontes de informação. (idem, ibidem, p. 32)

Nesse jogo metanarrativo, onde as interpretações pessoais das fontes

acerca dos acontecimentos são reinterpretadas pelo jornalista, e onde a própria

realidade é sempre socialmente construída (pela linguagem, pela cultura, pelas

79

forças sociais e políticas), não há como não haver embaralhamento entre o

factual e o ficcional. O convívio entre jornalismo e literatura está aí para

demonstrar isso.

80

CAPÍTULO 4: A GUERRA NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

No curso da história, os textos explicavam as imagens, desmitizavam-nas. Doravante, as imagens ilustram os textos, remitizando-os.

Vilém Flusser

Os surgimentos do cinema e da televisão representaram momentos

marcantes para a cultura. Esses meios técnicos de reprodução de imagens em

movimento modificaram a percepção humana e os modos como os homens

experimentam o mundo. Como se procurou demonstrar através do pensamento

de diversos teóricos, era natural que, sob o impacto dessas tecnologias, as

pessoas passassem a ter influência de técnicas típicas das linguagens

cinematográfica e televisiva, que é o que interessa aqui demonstrar, sobre as

formas como se relacionam com o mundo e como representam esse mesmo

mundo. Cinema e televisão transformaram as maneiras de o homem perceber e

registrar cenas e acontecimentos. Foi o que observamos quando estudamos os

impactos causados por essas tecnologias na escrita em diferentes períodos, seja

na literatura ou no jornalismo.

A proposta agora é tentar identificar marcas e traços desses meios de

reprodução de imagens nos livros-reportagem O inverno da guerra (2005), de Joel

Silveira, e Diário de Bagdá (2003), de Sérgio Dávila, lembrando que aspectos

como o sincretismo de linguagens e gêneros, o que é próprio da indústria cultural,

e a tradicional confluência literário-jornalística é que tornam essa possibilidade

plausível. Após a revisão bibliográfica que procurou esclarecer as transformações

culturais impulsionadas pelo aparecimento, primeiro, do cinema e da televisão em

um momento posterior, estabelecer as características das linguagens do cinema e

da televisão e os impactos destas sobre a escrita e o convívio histórico entre

literatura e jornalismo, torna-se possível proceder à análise. Antes, entretanto, é

necessário falar um pouco sobre os livros, os contextos em que foram produzidos

e seus autores.

81

Os textos que compõem O inverno da guerra fazem parte do livro Histórias

de pracinhas (já esgotado), que Joel Silveira lançou em 1946 ao retornar da Itália

após cobrir a campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para os Diários

Associados3. Trata-se de uma seleção de textos feita pela editora Objetiva, que o

lançou em 2005 como parte da coleção Jornalismo de Guerra e em comemoração

aos 60 anos do fim da Segunda Guerra. Silveira ficou por quase nove meses na

Itália durante a cobertura jornalística, que se estendeu durante os anos 1944-

1945, e acompanhou momentos importantes da batalha, como a tomada de

Monte Castelo, a rendição da 148ª Divisão Alemã aos brasileiros e a morte de

Mussolini, em Milão. No livro consta apenas uma introdução (que não será

analisada), intitulada Não foi um passeio, escrita pelo jornalista especialmente

para a edição da Objetiva. Nela, são resgatados um pouco do cotidiano do

correspondente na Itália e as condições em que teve que realizar seu trabalho.

Aos 26 anos, Joel Silveira foi o mais novo jornalista brasileiro a cobrir uma

guerra. Ele acompanhou a FEB na frente de batalha e levava sempre consigo a

máquina de escrever. Enviava seus textos diariamente por telégrafo (como

gozava de franquia telegráfica, um serviço caro naquela época, chegava a ter

textos seus publicados às vezes no mesmo dia em que os redigia na Itália).

O inverno da guerra é um dos cerca de 40 livros, entre coletâneas de

reportagens, memórias e contos, que Silveira publicou. Atuou também como

tradutor. Ele morreu no dia 15 de agosto de 2007, aos 88 anos, depois de

trabalhar em jornais e revistas como Diretrizes, Última Hora, Estado de S. Paulo,

Diário de Notícias, Correio da Manhã e Manchete.

Sérgio Dávila publicou Diário de Bagdá: a guerra do Iraque segundo os

bombardeados depois que retornou do Oriente Médio, onde ficou por quase dois

meses. Entre os dias 19 de março e 15 de abril de 2003, ele e o fotógrafo Juca

Varella realizaram a cobertura da guerra para a Folha de S. Paulo direto de

Bagdá e com passagens por cidades como Amã, na Jordânia, e Doha, no Qatar

(durante esse período, e após acompanharem o início da guerra, tiveram que

abandonar a capital iraquiana por questões de segurança e retornaram depois, já 3 Em entrevista concedida para a realização deste trabalho (ver Entrevista com o jornalista Joel Silveira, Anexo A), Joel Silveira explicou que o livro Histórias de pracinhas reúne o material que saiu publicado nos jornais de Assis Chateaubriand e mais crônicas e reportagens que na época haviam sido censuradas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

82

com a cidade tomada pelas forças da coalizão). Eles foram os únicos jornalistas

de um veículo de comunicação brasileiro a cobrir a guerra do Iraque durante o

início dos primeiros bombardeios e da invasão norte-americana (ao todo, havia

180 jornalistas em Bagdá nos momentos iniciais do conflito). Ao contrário de O

inverno da guerra e de Joel Silveira, os textos de Diário de Bagdá foram escritos

especialmente para serem lançados em livro e encontram-se organizados na

forma de um diário, com os capítulos divididos em dias seqüenciados. A edição

da editora DBA Artes Gráficas inclui vasto material fotográfico de Juca Varella.

São mais de cem fotos, a maioria inédita.

Sérgio Dávila e Juca Varella trabalharam com note book, telefone por

satélite, com a ajuda de intérprete e ficaram hospedados em hotéis, de onde

acompanhavam os bombardeios. Também participavam das entrevistas coletivas

dos membros do governo de Saddam Hussein e dos city tours (passeios de

ônibus pela cidade de Bagdá) promovidos pelo Ministério da Informação iraquiano

para que os jornalistas estrangeiros registrassem imagens e coletassem

informações. Atuaram ainda de forma independente, o que lhes permitiu flagrar

encenações das autoridades iraquianas destinadas a enganar jornalistas. Foi o

caso de um civil iraquiano ferido, exposto em uma cama aos fotógrafos, e que

pôde ser visto pelos repórteres brasileiros, logo depois, andando tranqüilamente

ao deixar o hospital (DÁVILA, 2003).

Sérgio Dávila tinha 37 anos quando realizou a cobertura no Iraque. Antes

da guerra, havia acompanhado como correspondente da Folha de S. Paulo o

ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center, o que

rendeu o livro Nova York: antes e depois do atentado. Como jornalista, trabalhou

ainda nas revistas Veja SP, Playboy e Exame. Hoje é correspondente da Folha

nos Estados Unidos.

4.1 Joel Silveira e o inverno da guerra

Em um inverno que por vezes atingiu 20 graus negativos, Joel Silveira

chegou de navio à Itália em 1944, junto com cerca de 6.000 soldados brasileiros

para cobrir a atuação da FEB para os Diários Associados. Levava sua máquina

83

de escrever, mas também um cinematógrafo na cabeça de que o operador era

sua imaginação. Essa característica que pretendemos demonstrar pode ser

percebida na escrita de Joel, que constrói visualmente cenas e acontecimentos da

guerra. Ao lermos o livro, temos a impressão de que assistimos a um filme que é

projetado em nossa tela interior, para usar expressão de Ítalo Calvino (1990).

Interessante registrar que o jornalista, em entrevista realizada para este

trabalho, ao ser questionado se de alguma forma teria recebido influência do

cinema em seu estilo de escrever, respondeu negativamente. No entanto, em seu

depoimento, Joel demonstrou ser um profundo apreciador da sétima arte. Contou

que, no Brasil, desde muito jovem tinha o hábito de assistir filmes e até na Itália,

durante a guerra, arranjava tempo para ir ao cinema em Porreta-Terme, onde

ficou por um período. Exatamente nesta cidade, escapou do perigo numa noite ao

desistir, em cima da hora, de ir a uma sessão. O cinema foi alvejado por um

morteiro alemão que matou 23 civis e três soldados brasileiros. Ele confidenciou

ainda que O inverno da guerra deverá ser filmado pelo cineasta paulista Cao

Hamburger. E foi sintomático o que lhe disse o diretor, como relata o próprio Joel

Silveira, ao explicar a praticidade de filmar seu livro: Puxa, é fácil filmar seu livro.

Praticamente já está escrito o script (ver, em Anexo A, Entrevista com o jornalista

Joel Silveira, p. 135).

4.1.1 Os planos de Joel

Os psicológicos Sergei Eisenstein (1990) argumenta em seu ensaio Dickens, Griffith e nós

que o início de The cricket on the hearth, de Charles Dickens, começa com um

típico primeiro plano: “A chaleira começou...”. A partir desse fragmento, o cineasta

russo investiga a influência do escritor inglês na obra do diretor David Wark

Griffith. Percorrendo caminho inverso, como não perceber a marca

cinematográfica no trecho A águia germânica, no seu casquete, tem uma asa

partida (SILVEIRA, 2005, p. 59)? Com essa frase, ou melhor, com esse

primeiríssimo plano, Joel Silveira encerra a descrição de um soldado alemão –

84

feito prisioneiro pelos brasileiros – entrevistado por ele. Mas as outras frases da

descrição do nazista também são reveladoras.

É um homem de 42 anos de idade, o rosto rasgado de rugas, os olhos pisados e úmidos, unhas sujas e compridas, as divisas de cabo quase soltas no uniforme batido e cheio de remendos. (...) Os pés estão enterrados em duas lembranças remotas de sapatos – uma confusão de pedaços de mantas cortadas em tiras enlameadas. (idem, ibidem)

O fragmento, uma seqüência de primeiríssimos planos, diz muito acerca do

momento psicológico vivido pelo soldado, e pelo próprio exército alemão, já na

iminência da derrota na Itália.

Como foi abordado no segundo capítulo, no cinema, os planos próximos

são usados para revelar a condição psicológica do personagem ou ressaltar

detalhes de seu corpo ou do cenário como um recurso narrativo. Pode-se dizer

que Silveira vale-se da escrita para criar efeito semelhante. Nos trechos que se

seguem é nítida sua intenção de destacar detalhes das cenas para o leitor.

1 - O termômetro lá fora nos dá a temperatura – 8 graus abaixo de zero. Impossível contar as peças que trago sobre mim. (idem, ibidem, p. 43) 2 - Uma pin-up girl dependurada na parede, e uma chaleira providencial que na guerra se divide em infinitas tarefas: desde a função terapêutica de aquecer os pés congelados até a de preparar o café, que é o grande agasalho, dia e noite. (idem, ibidem, p. 45) 3 - As paredes estão cobertas de mapas, há dezenas de bandeirinhas e círculos coloridos em torno de números que encobrem nomes de montes, vales, despenhadeiros, pontes, rios, povoados, casamatas e posições inimigas. (idem, ibidem, p. 55) 4 - Os círculos azuis me apontam locais onde as nossas patrulhas entraram em contato, na noite anterior, com soldados inimigos. O pequeno ponto que os alemães haviam conseguido introduzir em determinado setor foi rechaçado. (idem, ibidem, p. 56) 5 - E é nesta sala que escrevo agora, nesta véspera de carnaval. As paredes estão cobertas de mapas, pin-up girls e páginas da revista O Cruzeiro com histórias do Amigo da Onça. Há também um grande mapa da Europa, com a frente oriental toda riscada de linhas vermelhas e azuis. As setas brancas indicam os avanços soviéticos: Zhukov vem por aqui, Cherniakovsky por ali. (idem, ibidem, p. 73) 6 - Às 17h50 a voz do major Franklin vem, forte, pelo rádio: “Estou no cume de Monte Castelo.” (idem, ibidem, p. 98) 7 - Olho no relógio de pulso: são três horas. (idem, ibidem, p. 127)

85

8 - O sargento Alfeu de Paula Oliveira (ele também enxugava os olhos úmidos com a manga da camisa) me levou depois ao estreito quartinho onde Wolf tinha suas coisas: ali estava a condecoração que o general Truscott, comandante do 5º Exército norte-americano, colocara dias antes em seu peito. Ali estava, já devidamente emoldurada, a citação elogiosa do general Mascarenhas. E, num ponto mais destacado, o retrato de sua filha, uma menina de olhos vivos e brilhantes, a cara do pai. Tudo aquilo doía fundo. (idem, ibidem, p. 145-146) 9 - Trocar por quê? Que teria ele a me dar? O alemão meteu a mão no bolso do culote folgado e dele tirou uma Cruz de Ferro e mais outro crachá no centro do qual uma iracunda águia nazista desfraldava as suas outrora temíveis asas. (idem, ibidem, p. 169)

Os trechos 1 e 2 foram extraídos da matéria Não silenciaram as baterias no

Natal. No primeiro, o destaque para o termômetro e a temperatura de 8 graus

negativos mostra o desconforto causado pelo frio no repórter, situação que o

número de roupas não consegue aliviar. No segundo, a descrição de um Posto de

Comando da FEB enfatiza o pôster de uma pin-up girl, ponto de contemplação

que se pode deduzir ser um dos raros prazeres dos soldados na frente de

batalha, e a chaleira (impossível não se lembrar da chaleira de Dickens, Griffith e

nós do ensaio de Eisenstein), item da maior importância naqueles dias frios.

Do texto A sala dos segredos constam os fragmentos 3 e 4. Ambos são

como um primeiríssimo plano de mapas e demarcações de pontos que revelam

informações sobre o relevo do front, as posições inimigas e locais onde travaram-

se confrontos entre os pracinhas e os alemães. O excerto 5, de “Venha. A coisa

está divertida”, também é um exemplo de procedimento textual que visa destacar

os mapas e pôsteres de outro Posto de Comando. Destacar mapas em planos

aproximados é um recurso muito utilizado no cinema quando se quer localizar

para o espectador o local onde uma determinada ação irá se passar.

O exemplo número 6, um primeiríssimo plano do rádio, é significativo por

dar ênfase ao aparelho que irradia a voz do major Franklin, que chega forte para

anunciar a tomada de Monte Castelo, conhecido como o momento culminante da

atuação da FEB na Itália. O evento é reportado no texto Monte Castelo é nosso.

Os trechos 7, 8 e 9, extraídos respectivamente das matérias A morte do

“partigiano”, A morte do sargento e Fim de guerra, trazem outros planos

aproximados: o relógio que mostra a hora avançada e a necessidade de se

dormir, os objetos pessoais no quarto do sargento Max Wolf Júnior, a quem Joel

86

Silveira viu morrer no campo de batalha, e os adereços oferecidos pelo soldado

alemão ao repórter em troca por maços de cigarro, já no final da guerra, quando

as asas da iracunda águia nazista já não despertavam mais temor.

Os próximos trechos funcionam como primeiros planos cujo objetivo é

transmitir ao leitor, pela descrição de detalhes do corpo de alguns dos soldados, o

estado psicológico em que se encontravam.

10 - Há mais de duas noites que ele não dorme, duas olheiras roxas e espalhadas enrolam seus olhos. (idem, ibidem, p. 104) 11 - Os olhos do pracinha Wilson estão pisados de sono, e de vez em quando ele escancara a boca para o frio vento da manhã. (idem, ibidem, p. 127-128) 12 - O pracinha fecha os olhos, quando a dor é maior, e seus dedos apertam com força uma florzinha de pétalas amarelas. (idem, ibidem, p. 132) 13 - Vejo o bisturi rasgar o baixo-ventre do pracinha, vejo seu sangue vermelho e grosso empapar as mechas de algodão, vejo sua carne rubra se abrir numa ferida profunda. A mão direita, estraçalhada pelos estilhaços, foi entregue a outro cirurgião brasileiro, um rapaz pálido e de óculos. (idem, ibidem, p. 136)

Os exemplos 10 e 11, de O coronel Franklin e A morte do “partigiano”,

captam, à maneira de dois primeiros planos, a fadiga dos soldados brasileiros na

frente de batalha. O trecho 12 também traz dois típicos primeiros planos: dos

olhos fechados e dos dedos que apertam uma florzinha amarela. Esse fragmento

ganha em força porque descreve um pracinha no momento em que é atendido

depois de se ferir pelo estilhaço de uma granada. É representativo o fato de ser

uma flor o que o soldado aperta, pois era chegada a primavera e é exatamente

esse, A primavera, o nome do texto. Também forte é o fragmento 13, de O

hospital 16, uma espécie de seqüência de planos da operação de um pracinha

ferido em combate. São planos próximos que contam ao mesmo tempo o drama

do soldado que é operado e dos médicos que se deparam cotidianamente com as

feridas da guerra.

87

Os dramáticos Afastando um pouco mais sua lente, ou melhor, seu olhar, dos

acontecimentos, Joel Silveira capta, pela escrita, a ação dos personagens que

retrata. Interessante perceber que aqui, como ocorre com os planos dramáticos

na linguagem cinematográfica, o recorte das cenas narradas pelo repórter coloca

em destaque os personagens em detrimento do cenário. Os fragmentos que se

seguem ajudam a compreender.

1 - O sargento traça gráficos sobre mapas minuciosos, na sala ao lado, e um capitão gaúcho chupa, calado, seu chimarrão, atento ao telefone. As baterias ao lado estão atirando. O inimigo responde, intermitentemente. (idem, ibidem, p. 45) 2 - Não são, agora, dois ou três vencidos e desarmados numa luta sem salvação. São dezenas, centenas de homens que compreenderam que não vale mais a pena lutar – os pelotões que se rendem na frente, quase intactos, chegam às nossas linhas com seus armamentos, suas munições e uma melancólica bandeira branca drapejando sua derrota ao vento dos Apeninos. (idem, ibidem, p. 115) 3 - Vi perfeitamente quando a rajada da metralhadora alemã rasgou o peito do sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente, ele juntou as mãos sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais. (idem, ibidem, p. 143) 4 - Perguntei depois quem era o coronel. Hans me disse que o coronel se chamava Gunther Habecker, comandante do 114º Regimento de Artilharia – ou do que restava dele. E o que restava do 114º era o que se encontrava ali, diante de nós: uns 50 homens de todas as idades, de uniformes os mais variados, a maioria já sem qualquer arma, quase todos de olhos enterrados nos rostos magros, fechados na barba de dias. (idem, ibidem, p. 168)

O sargento traça gráficos sobre mapas e o capitão gaúcho que chupa seu

chimarrão está atento ao telefone. A ação se passa em um Posto de Comando

em meio à batalha que prossegue mesmo no Natal. O primeiro exemplo, do texto

Não silenciaram as baterias no Natal, traz o que pode ser analisado como dois

planos meio-médios, com os personagens sendo enquadrados da cintura para

cima.

No trecho 2, de Prisioneiros, o diafragma está um pouco mais aberto e a

imagem construída pelo texto de Joel Silveira mostra, em plano médio, grupos de

alemães rendidos que chegam às posições brasileiras com seus armamentos e

munições. A bandeira branca tremulada pelo vento dos Apeninos dá o indício de

88

que os personagens são enquadrados ainda dentro de seu contexto social, como

é próprio desse tipo de plano. O mesmo ocorre com o exemplo 4, da matéria Fim

de guerra, com a ênfase dada ao grupo que restava do 114º Regimento de

Artilharia alemão. O plano médio permite perceber que os homens estão vestindo

uniformes variados, como se estivessem sendo filmados da cabeça aos pés.

No fragmento 3 temos as três frases que abrem o texto A morte do

sargento. Momento dramático presenciado pelo repórter, a morte do sargento

Max Wolf Júnior é enfocada em plano médio: ele junta as mãos sobre o ventre e

cai de bruços para não se mexer mais. Além do plano, a cena é cinematográfica

em sua dramaticidade.

Os descritivos Flora Süssekind (1987) destaca um termo interessante usado por Gonzaga

Duque em uma crítica à exposição de José Malhoa, no início do século passado.

Sob o impacto da fotografia, o escritor diz, sobre a arte apreciada, que é como se

ela kodakizasse os tipos retratados pelo artista, tal a fidelidade com que ele

desenhava seus modelos. Süssekind chama a atenção para o fato de que,

naquele momento (virada do século 19 para o 20), a fotografia imprimia seu rastro

na cultura brasileira. O neologismo de Gonzaga Duque, uma referência à marca

de máquinas fotográficas Kodak, exemplificaria o impacto desse meio técnico na

escrita.

A descrição pormenorizada e a fidelidade na construção textual dos

cenários e ambientes onde as ações narradas se desenrolarão talvez seja um dos

pontos mais fortes da escrita de Joel Silveira. No cinema, o recurso utilizado para

se apresentar ao espectador o ambiente onde ocorrerão as ações são os planos

abertos (de conjunto e geral). Pode-se dizer que Joel Silveira vale-se de igual

recurso em sua escrita e como que kodakiza os instantes (lembrando-se que

cinema é fotografia em seqüência). Dessa maneira, o repórter realiza o inventário

da realidade, como escreve Walter Benjamin (1982) acerca do cinema, percebida

por ele. Suas descrições são como planos de conjunto.

Os exemplos são inúmeros. Há desde descrições de partes do relevo por

onde passava Joel Silveira, dos lugares onde as batalhas aconteciam e de

89

cenários até momentos que adquirem maior significação. Por exemplo: como não

se lembrar da famosa seqüência de planos dos leões de mármore de O

encouraçado Potemkin (Bronenosets Potiomkin, 1925), de Sergei Eisenstein, com

o fragmento abaixo, extraído de A guerra dos telefones?

A grama verde foi toda pipocada pelos estilhaços, e há também

dezenas de grandes crateras abertas pelos canhões. Um dos leões que montam guarda na entrada do castelo, há não sei quantos anos, foi arrancado do pedestal, e agora está mortalmente ferido sobre a lama e o capim. (idem, ibidem, p. 34)

A estátua do leão no castelo, em um ambiente descaracterizado por

bombas e estilhaços, está caída, mortalmente ferida. Se no filme de Eisenstein a

seqüência de planos de estátuas de leões, nas posições adormecido, acordado e

se levantando, dá a ilusão do movimento do animal que se levanta em protesto

contra o derramamento de sangue nas escadarias de Odessa, o leão de Silveira

está vencido sobre a lama e o capim, em uma imagem de destruição produzida

pela guerra. Efeito parecido tem o seguinte trecho, de Sozinho no mundo, com o

flagrante de uma praça de Nápoles exibindo a estátua de um herói eqüestre

estropiada pela batalha: Na praça de canteiros já sem forma, a estátua eqüestre

de um herói qualquer havia perdido um pedaço do pedestal, agora transformado

numa disforme ferida de cimento (idem, ibidem, p. 27). Trata-se de uma das

primeiras visões do repórter que chega à Itália, em uma cidade igualmente

estropiada pelo confronto.

Os textos que descrevem a natureza e as transformações causadas pelas

estações do ano sugerem belos planos de conjunto. Temos o outono:

O largo caminho que leva a Bolonha é agora um caminho fofo e pegajoso, e dos lados há ciprestes verdes e árvores desfolhadas pelo outono. Distante, quando é possível enxergar além do nevoeiro, podem ser vistos os picos que as primeiras neves forravam de um branco muito limpo. (idem, ibidem, p. 33)

O inverno:

A bagagem me pesa, o frio é cortante – desce certamente

daquelas montanhas cinzentas, de cumes gelados, que já se avistavam muito antes de o navio entrar na baía; ou talvez deste céu de chumbo,

90

fechado como uma enorme porta há muito emperrada em suas dobradiças – um céu duro, indecifrável, asfixiante. (idem, ibidem, p. 26)

Os picos dos Apeninos começam a se encapuzar de neve, e os

campos e as estradas mais elevadas já amanhecem cobertos de uma toalha branca da qual se evola um halo de gelo. (idem, ibidem, p. 31-32) Adiante há um vão aberto entre os montes, e enxergamos lá embaixo o estreito e coleante rio Marano, que o sol invernal transformou numa fita de prata incrustada no fundo do vale. (idem, ibidem, p. 121)

A primavera:

O sol fez milagres – onde era, ali, o úmido branco da neve, é

agora o branco alegre das cerejeiras. As flores começaram a brotar destes chãos, de cores vivas como anilina, milhares delas. Há crótalos, lírios, plátanos que trocaram o verde-escuro de ontem por uma coloração de alface, e milhares de outros pontinhos vermelhos, brancos ou azuis, que nascem e se multiplicam, humildes e desconhecidos pelos campos sem fim. No alto do Soprassasso, que os brasileiros conquistaram há dias, um galho de cerejeiras começou a despencar suas pétalas alvas sobre o foxhole do pracinha.

Os cumes dos montes se livraram inteiramente da caspa de gelo, todos os rios, torrentes e riachos – e eles são milhões aqui – voltaram a correr, e suas águas estão tão azuis quanto o céu. (idem, ibidem, p. 131)

As descrições de Silveira projetam ainda planos de conjunto de paisagens:

O cume de Monte Castelo, para onde estamos indo, está aqui bem à nossa frente, cônico, liso, com suas densas castanheiras de um verde-escuro. (idem, ibidem, p. 99) É um dos lugares mais belos de toda esta frente. Há pequenas porções de pinheiros compridos e verdes, há pequenas árvores em fileiras que naturalmente rebentarão em flores na primavera, há o clássico riachinho de toda paisagem italiana. (idem, ibidem, p. 107)

De noites iluminadas pelo luar:

(...) e lá fora se espraia um luar claro como dia, uma lua redonda e muito branca, da brancura de neve, caindo sobre as montanhas e os múltiplos vales da região. (idem, ibidem, p. 43) Quando tudo serenou, o major abriu a pequena janela lateral e olhou lá para fora: a mesma noite branca e fria, os milhões de estrelas, os plátanos e ciprestes achatados de encontro ao céu azul. (idem, ibidem, p. 127)

De campos de batalha e da frente inimiga:

91

O castelo é cinzento e severo, com mil corredores misteriosos, e aqui da sala mais alta, repleta de mapas, binóculos e metralhadoras portáteis, se pode divisar toda a terra de ninguém, um vale verde e compacto espremido entre as posições alemãs entrincheiradas nos morros e a vanguarda brasileira, distribuída pelos povoados da planície. (idem, ibidem, p. 33) Lá na frente, o poste inclinado, no qual o bombardeio da véspera emaranhou doidamente os fios, é assim como o marco divisório entre o nosso mundo e o mundo inimigo – duas coisas que de forma alguma poderão ser confundidas. (idem, ibidem, p. 49)

Porque à direita são somente abismos. A estrada que leva ao nosso Quartel-general Avançado está lá embaixo, uma pequena fita enlameada que se torce através dos montes e se enrodilha, aqui e ali, como uma cobra cansada. É como se já estivéssemos a bordo de um dos frágeis teco-tecos da ELO e estivéssemos realizando um vôo de reconhecimento sobre as vias nazistas. (idem, ibidem, p. 85) Conheço a Tollo de hoje – meia dúzia de casas antigas e escuras sobre uma colina redonda. Apenas meia dúzia – o resto são ruínas, lembranças de alicerces, restos de muros, fragmentos de telhados, um emaranhado de vigas partidas. (idem, ibidem, p. 160)

Do sobrevôo do teco-teco Dora, da Esquadrilha de Ligação e Observação

(ELO), sobre os cumes das montanhas onde se concentravam os nazistas:

O Dora é apenas um pequeno ponto, vagaroso, sobre as

montanhas dos alemães. Assim de longe parece uma andorinha de paz, inocente e mansa. A andorinha vai e vem sobre os perigosos cumes do inimigo, mas não leva consigo nenhuma arma. Leva apenas o coração do tenente Taborda, onde se amontoam lembranças tristes de uma porção de amigos perdidos. É o suficiente, acredito. (idem, ibidem, p. 91)

E do Palazzo di Venezia, em Roma, de onde Mussolini por várias vezes

falou aos italianos:

Posso vê-lo agora livre da mise-en-scène fascista: é uma casa

acabada e cinzenta, os lados compridos como muros. Há centenas de janelas, na frente e nos oitões, e bem no centro, como um olho aberto para o Foro Itálico, o balcão onde o cômico duce arengava para carabinieri e fascistas. (idem, ibidem, p. 163)

4.1.2 A máquina de escrever cria movimentos

As páginas que saíam datilografadas da máquina de escrever de Joel

Silveira traziam movimentos em suas seqüências de tomadas em preto e branco.

92

Tome-se como exemplo o trecho extraído da matéria Encontro com Pistóia, que

narra o momento em que o repórter encontra os colegas de profissão Rubem

Braga, Egydio Squeff e Raul Brandão na Itália.

Ando por corredores compridos, atravesso dormitórios

mergulhados na penumbra ou apenas iluminados por uma luz difusa e velada, ouço distante o som de um disco; e já agora, bem próximo, o martelar intermitente de uma máquina de escrever. O sargento levanta a lona verde que serve de porta, deixa que eu passe, empurra de qualquer jeito minha bagagem para o aposento – e lá dentro estão meus amigos Rubem Braga, do Diário Carioca, Egydio Squeff, de O Globo, e Raul Brandão, do Correio da Manhã. (idem, ibidem, p. 30)

Do ponto de vista cinematográfico, a seqüência é um típico travelling para

frente, que dá a idéia de introdução ao mundo dos correspondentes brasileiros da

Segunda Guerra, onde Joel Silveira estaria definitivamente integrado a partir

deste momento. No cinema, o travelling é o deslocamento da câmera juntamente

com sua base. Em Silveira, lembrando João do Rio, o cinematógrafo está na

cabeça e o deslocamento é o do seu próprio corpo, que descortina os ambientes

até chegar ao aposento destinado aos repórteres.

Os próximos excertos são curiosos porque o repórter vale-se de

instrumentos ópticos para criar um efeito de aproximação da cena, que se passa

distante.

Vejo, através da luneta, os nossos pracinhas agachados lá na

frente, grupos aqui e ali rastejando em direção ao cume de onde atiram, com suas curtas e sinistras gargalhadas, as terríveis “lurdinhas” alemãs. (idem, ibidem, p. 94)

Sem dúvida alguma, o instante mais sensacional de toda a luta do

dia 21 aconteceu às 16h20, quando toda a Artilharia Divisionária concentrou seu poder de fogo sobre Castelo. No céu de inverno a noite já se prenunciava, de forma que se notavam nitidamente as chamas que surgiam a cada explosão dos obuses. Chamas altas que o binóculo me mostra tão próximas. (idem, ibidem, p. 97)

Hoje à tarde, enquanto eu esperava que os “mineiros” livrassem o

caminho das minas, vi quando a noite foi chegando aos poucos, lenta, completa, sobre o calado mundo do cemitério. O capitão Aldenor me levou até um ponto descoberto, lá no alto, de onde é possível divisar com o binóculo as novas posições nazistas. Aqui ao lado, está o cruel Soprassasso, já domado, mais longe é Monte Castelo, também já nosso, e também o Monte Belvedere, que já não nos mete medo. Mas lá na frente, no vale do Panaro, espalham-se caminhos, montanhas e vales que ainda são deles. (idem, ibidem, p. 124-125)

93

O tenente Pinheiro me levou até o seu observatório avançado, e me deu um binóculo potente e com ele fiquei, durante longos minutos, percorrendo a terra de ninguém. Vi uma ambulância nazista passar, rapidamente, pela estrada vermelha que corta, reta, os campos verdes. E vejo flores. Um silêncio de morte, o deserto se estendendo até as próximas fraldas, mas as flores rebentam aos turbilhões. Ali à direita, naquele pequeno bosque de plátanos, onde nossas patrulhas, nesta última semana, se têm chocado com os alemães, é possível que os crótalos e as cerejas estejam florindo sobre os cadáveres tedescos e brasileiros – que o chão de ninguém não permitiu ainda o enterro. (idem, ibidem, p. 131-132)

Através do texto, o leitor experimenta uma espécie de travelling ótico, um

zoom in obtido com luneta e binóculos que se transformam em lentes, como

extensões dos olhos de Joel Silveira. Dessa forma, tem-se acesso a visões

aproximadas de conflitos que se passavam distantes do repórter, de pontos já

conquistados e ainda por conquistar pelos brasileiros e até de flores, que a

primavera espalhava pelos campos italianos. Interessante observar ainda que os

dois últimos exemplos trazem, além do efeito de aproximação da cena,

procedimentos textuais que são como panorâmicas. Percebe-se isso quando

Silveira descreve montanhas posicionadas a seu lado e à sua frente, caso do

penúltimo exemplo, e quando, no último fragmento, escreve que o binóculo lhe

permite percorrer a terra de ninguém e observar à direita4 um pequeno bosque de

plátanos.

4.1.3 A narrativa em montagem

No cinema, a montagem é o processo que permite ao realizador do filme

manipular o espaço e o tempo, construindo dessa maneira, com a organização de

planos e seqüências de planos, a narrativa fílmica. Mas a montagem, conforme

perceberam Flora Süssekind (1987) e Sergei Eisenstein (1990), não é um recurso

exclusivamente cinematográfico. Eisenstein observa a presença da montagem

ainda em Charles Dickens, fonte na qual, segundo o teórico russo, teria bebido

David Wark Griffith para forjar sua montagem paralela. Em raciocínio inverso,

Süssekind cita a presença da montagem cinematográfica na literatura brasileira

na primeira metade do século passado, mais especificamente na obra dos 4 Repare-se na noção de direção, o lado direito, que o jornalista fornece ao leitor, o que é sintomático de uma panorâmica horizontal.

94

modernistas. A partir disso, pode-se deduzir que a montagem cinematográfica foi

influenciada pela escrita do mesmo modo que a influenciou.

Joel Silveira também faz uso da montagem em seu texto. É possível

observar essa característica no trecho abaixo, extraído da matéria “Não vá além

daquele poste”.

(1) Diariamente, oficiais, sargentos e pracinhas que seguem, protegidos pela noite, para a terra de ninguém, com a missão de fazer prisioneiros ou de reconhecer o terreno, voltam com histórias que dariam um livro – e dos grandes. (2) Como, por exemplo, a história do sargento Írcio Camargo, um paulistano que na noite de Natal saiu com seus 23 homens para as armadilhas da brancura sem dono. De quatro da tarde às seis da manhã seguinte eles ficaram caminhando (ou, muitas vezes, rastejando) pela neve, espalhados em pequenos grupos de quatro ou cinco, e de minuto em minuto as balas alemãs assoviavam sobre suas cabeças e os morteiros explodiam ao seu redor. (3) O sargento Írcio Camargo está agora aqui ao meu lado, no Posto de Comando Avançado. É um rapaz de 28 anos, barba por fazer, bigode espesso e descuidado, e parece viver no mais tranqüilo dos mundos quando acende o seu cigarro americano. Ele me diz:

- Sempre passei o Natal em minha casa, junto aos meus. À meia-noite íamos todos à Missa do Galo e voltávamos para a ceia. Sempre foi assim, desde que me entendo como gente. Neste ano, foi o que o senhor sabe. A guerra muda tudo. Muda até o Natal.

(4) Metade da noite os alemães lançaram um ou dois foguetes iluminativos – é assim que se diz? O belo fogo de artifício brilhou no céu em centenas de pequenas estrelas; depois o pequeno pára-quedas iluminado foi descendo devagar, até ficar dependurado num galho sem folhas. (5) O pracinha Francisco Aparecido de Oliveira, de Jacareí, que fez parte da patrulha, me conta:

- A árvore desgalhada de repente virou uma árvore de Natal. E foi aí então que aquela era exatamente a noite de Natal.

(6) O frio estava medonho, entrava pela pele adentro, chegava até os ossos; e o vento levantava a neve e a sacudia sobre os homens do sargento Írcio. Quando os foguetes iluminados explodiam no ar, e tudo ficava claro como um dia de verão, os soldados brasileiros tinham que se estirar sobre o chão de gelo, tiritantes. Um deles, o pracinha Benedito Moreira Filho, de Pontal (São Paulo), não conseguiu resistir e ficou ali estirado na neve, inerte como um morto. (7) Ele passou 15 dias no hospital, mas agora já está recuperado e me conta sua história:

- Uma bomba estourou perto e então mergulhei no chão. Outros morteiros começaram a explodir e eu não podia me levantar. Passei alguns instantes (ou foram séculos?) assim, e quando quis me levantar, não pude. Estava mais duro do que um pedaço de pau. O sargento Írcio é que me trouxe nas costas de lá até aqui ao Posto de Comando. Pensei que ia morrer.

(8) O pracinha Darci Ribeiro dos Santos, de Paraúna (Minas), atuou na patrulha como telefonista. (9) O cabo João Rosa da Silva Ramos, do Rio, me diz que chegou a enxergar à sua frente o movimento de dois ou três soldados inimigos. (10) O terceiro-sargento Manuel Gomes Guimarães, que comandou um grupo de cinco homens, me disse:

95

- Durante toda a noite fiquei imaginando como estava sendo o Natal no Brasil. Particularmente lá em casa.

(11) E o terceiro-sargento João Almeida Costa me diz: - Nunca senti tanto frio. A noite às vezes ficava clara como se

fosse meio-dia. Depois, quando a lua surgiu, ficou ainda mais clara. E eu só queria que aquela lua fosse um sol carioca, sol de dezembro na praça Saens Peña.

(12) Esta é a história de um Natal brasileiro na frente de batalha. Um Natal diferente, gelado, traiçoeiro, de homens se arriscando numa terra varejada pelos morteiros, pelas metralhadoras. (idem, ibidem, p. 50-51)

Nesse texto (que foi decupado com números para facilitar a análise), Joel

Silveira realiza vários cortes de planos com recuos ao passado (típicos

flashbacks) e organiza a narrativa como uma montagem paralela, reunindo

histórias que se passam ao mesmo tempo em locais diferentes. Contam-se 12

cortes que representam mudanças de planos. O repórter parte de um momento

presente (1), quando narra que os soldados brasileiros voltam de suas missões

com muitas histórias para contar, recua ao passado (2) para lembrar-se da

patrulha chefiada pelo sargento Írcio Camargo na noite de Natal e retorna ao

presente (3) ao explicar que o sargento está agora a seu lado e ao registrar seu

depoimento.

Há outra volta ao passado (4) para contar que os alemães lançaram

foguetes iluminativos na noite e, novamente no presente (5), reproduz fala do

pracinha Francisco Aparecido de Oliveira. No passado (6), Silveira descreve a

noite fria enfrentada pelos brasileiros, fala dos foguetes lançados pelos alemães e

da necessidade dos soldados atirarem-se ao chão para não serem avistados. No

presente, registra a história do pracinha Benedito Moreira Filho (7), menciona o

pracinha Darci Ribeiro dos Santos (8), que atuou na patrulha como telefonista, o

cabo João Rosa da Silva Ramos (9), que ficou de frente com os alemães, e

reproduz os depoimentos dos terceiros-sargentos Manuel Gomes Guimarães (10)

e João Almeida Costa (11). O repórter fecha no presente (12) a sucessão de

histórias contadas pelos soldados.

A montagem paralela pode ser percebida quando Joel Silveira conta as

histórias de vários soldados que se dividiam em grupos durante a patrulha do dia

de Natal, que durou de quatro da tarde às seis da manhã seguinte. Durante esse

tempo, temos a visão do pracinha Francisco Aparecido de Oliveira, que assistiu a

96

uma árvore desgalhada transformar-se em árvore de Natal; a história de Benedito

Moreira Filho, que teve que ficar estendido na neve para não ser percebido pelos

inimigos; do cabo João Rosa da Silva Ramos, que viu o movimento de dois ou

três soldados nazistas bem à sua frente; do terceiro-sargento Manuel Gomes

Guimarães, que durante a patrulha com seu grupo de cinco homens ficou

imaginando como estaria o Natal em sua casa no Brasil; e o depoimento do

também terceiro-sargento João Almeida Costa, que enxergava uma noite clara

pela ação dos foguetes iluminativos e pela lua enquanto desejava estar num dia

ensolarado na Praça Saens Peña.

O próximo trecho – esse menos complexo – também traz a marca da

montagem paralela.

E por falar em prisioneiros, lembro da história que me contou,

ontem à noite, o segundo-tenente Fredimio Trotta, do 1º Batalhão do Regimento Sampaio. No dia 3, de madrugada, o tenente estava com seus homens metidos nos foxholes, colocados apenas a 300 metros das linhas nazistas. Mais ou menos às duas horas um dos soldados escutou um ruído de galhos partidos que vinha lá da frente. Pediu licença ao tenente e foi ver o que era. Cinco minutos depois, o tenente chamou outro soldado e foi atrás do primeiro pracinha. O primeiro pracinha já tinha avançado uns 200 metros quando se deparou com um grupo de quatro alemães, desorientados num campo minado. Quando os alemães viram o pracinha, fizeram um olhar de espanto e julgaram que nosso soldado era apenas o observador avançado de um contingente forte que vinha mais atrás. Dois deles levantaram as mãos, e os outros tentaram fugir. O pracinha atirou nas pernas de um, mas o outro desabou pelo barranco abaixo, escapando. O tenente apareceu com os outros soldados e os três nazistas foram trazidos, intactos, para o PC do batalhão. Com eles vieram alguns suvenires: uma “lurdinha” novinha em folha, um esplêndido binóculo Zeiss e meio quilo de um pão preto, duro e ruim. (idem, ibidem, p. 117)

Há aqui o desenvolvimento paralelo de duas histórias: a do pracinha que

escuta um ruído e pede ao tenente para ver o que é e a do tenente que, cinco

minutos depois, sai atrás do primeiro pracinha acompanhado de outro soldado. O

pracinha entra em confronto com um grupo de alemães e o tenente e o soldado

chegam depois para ajudá-lo. O fragmento também é um recuo ao passado, que

surge da lembrança de uma história contata a Joel Silveira.

Os próximos trechos também trazem recuos ao passado.

97

É uma chegada inesperada, e posso perfeitamente reconstituir a atitude e postura de todos, quando cheguei: Squeff batendo vagarosamente numa portátil, Brandão sumido sob uma tonelada de cobertores e Braga, na cama, debruçado sobre um mapa enorme do tamanho de um lençol. (idem, ibidem, p. 30) Os oficiais bebem seu conhaque e contam histórias do front. Ainda ontem um pracinha foi encontrado com um ferimento na perna, na terra de ninguém. A verdade é que ele chegara a ser aprisionado pelos alemães, mas sua faca pernambucana fez recuar os tedescos. Num minuto e como um relâmpago, despencou morro abaixo, mas foi alcançado na perna por uma bala nazista. Quando foi encontrado, sua situação era lastimável. Agora sua aparência é boa e o ferimento não tem grande importância. (idem, ibidem, p. 36) Um soldado da 10ª Divisão de Montanha norte-americana encontrou no monte Della Torracia um diário de um oficial alemão. No dia 13 de fevereiro, segundo leio numa tradução, o tenente nazista escreveu: “Meus nervos estão mais calmos. Recebi carta de Gertrud. O tempo está bem melhor, e há flores nos montes. Os aviões americanos estão passando aos bandos. Creio que já é a primavera.“ (idem, ibidem, p. 133)

No primeiro fragmento, o repórter reconstitui com um flashback sua

chegada ao QG Recuado da Força Expedicionária Brasileira e as atitudes de

cada um de seus colegas de profissão naquele momento. No segundo, Silveira

parte de um momento presente (os oficiais que bebem e contam histórias do

front), recua no tempo para contar a história de um pracinha, que no dia anterior

havia sido ferido ao escapar dos alemães, e retorna ao presente para dizer que

agora sua aparência é boa. O último traz um flashback motivado pela leitura do

trecho de um diário que mergulha o leitor na intimidade de um tenente nazista.

Estando em uma terra distante e desconhecida para a maioria dos leitores,

Joel Silveira recorre algumas vezes à analogia para transmitir a idéia do que

presenciava. É como se ele estivesse querendo compartilhar com seus leitores

das sensações que vivia. Os seguintes trechos exemplificam essa intenção.

E agora estamos diante de uma Nápoles nublada e triste. Vejo-a assim, amarfanhada e encolhida, mas penso comigo mesmo que se houvesse sol, ela bem que poderia ser Salvador. Ou com ela parecer. Porque, como em Salvador, são duas Nápoles, a de cima e a de baixo; e, como em Salvador, as colinas se multiplicam e as ladeiras sobem ou escorregam, algumas quase verticais. (idem, ibidem, p. 25) As ambulâncias e os mensageiros, por exemplo, têm que prosseguir de qualquer maneira. Sei o que isto significa aqui na frente italiana, através de estradas que galgam montanhas e montanhas, uma coleção de caminhos curvilíneos e margeados de precipícios que desmantelam os

98

nervos mais seguros. Imagine o leitor do Rio uma estrada de Petrópolis, à noite, totalmente encoberta por um russo multiplicado por cem, com seu asfalto oculto atrás de uma camada de gelo duro e escorregadio que varia entre 10 e 15 centímetros. Além do mais, seu carro não pode acender os faróis. Assim são as viagens nestes caminhos do norte italiano. (idem, ibidem, p. 68)

Nevou a noite inteira, de maneira que o cume de Monte Castelo, conquistado pelos brasileiros, tomou assim como a forma de um imenso bolo de noiva. (idem, ibidem, p. 119)

No caso do primeiro fragmento, o repórter recorre à comparação entre as

cidades de Nápoles e Salvador para transmitir ao leitor a idéia de sua primeira

visão na Itália, obtida no momento do desembarque. No segundo texto, as

perigosas estradas da frente italiana, por onde ambulâncias e mensageiros

tinham que passar, são comparadas a uma estrada de Petrópolis. E no último, o

cume gelado do Monte Castelo é descrito como um imenso bolo de noiva. É como

se o jornalista usasse a montagem por analogia para recriar na imaginação do

leitor as imagens presenciadas por ele.

Em outras passagens do livro, Joel Silveira elimina momentos supérfluos

para a narrativa e insinua ainda o desenrolar do tempo. A maneira como faz isso

lembra as típicas elipses cinematográficas. Trata-se de um recurso fundamental

na sétima arte porque permite concentrar, em poucos instantes, extensos

períodos de tempo. Em seu texto as elipses ficam assim:

Ficou combinado, como solução, que um avião deixaria cair uma

de suas bombas sobre a bateria localizada. A bomba foi jogada ontem pela manhã, depois que o sol de inverno conseguiu atravessar a neblina espessa. Estávamos no Quartel-general quando a explosão da bomba rebentou com um estouro sonoro que ficou se multiplicando pelos vales congelados. (idem, ibidem, p. 64)

Há um pequeno rio nos fundos, ontem gelado pelo inverno, e agora voltam novamente a correr suas águas azuladas. (idem, ibidem, p. 86)

Estava em Lizano quando a grande explosão encheu os vales e as montanhas. Talvez fosse um bombardeio aéreo, mas isto seria também um acontecimento inédito nesta frente. Ou o explodir de qualquer depósito de munição. Subimos até uma colina próxima, e vimos lá embaixo, além de Castelo, uma nuvem grossa e negra de fumaça encobrindo uma ponte Braley. O jipe me deixou, 40 minutos depois, no local do acidente. (idem, ibidem, 139)

99

O primeiro trecho mostra um salto temporal que liga o momento em que

ficou combinado que o avião lançaria uma bomba sobre a bateria alemã,

informado na primeira frase, ao momento em que a bomba já havia sido jogada,

que é descrito nas demais frases. O terceiro fragmento traz uma elipse na última

frase: o jipe deixou o repórter no local do acidente 40 minutos depois do momento

em que ele avistou a grossa nuvem negra de fumaça do alto de uma colina. No

segundo exemplo, a passagem do tempo é um pouco maior. Como na elipse do

filme 2001 – Uma odisséia no espaço (2001: a space odissey, 1968), de Stanley

Kubrick, que realiza um salto temporal entre a pré-história e o futuro da

humanidade, temos indicada pelo repórter a passagem do inverno e a

proximidade da primavera. O que insinua esse desenrolar do tempo é a descrição

do rio gelado que tem novamente suas águas a correr. Pelo rio escorrem-se

meses, e a passagem de suas águas do estado sólido para o líquido é a ponte

que dá a idéia para o leitor de que o inverno converteu-se em primavera.

Para finalizar, é significativo o recurso usado por Joel Silveira para reportar

a tomada do Monte Castelo pelos pracinhas no dia 21 de fevereiro de 1945. Na

reportagem Monte Castelo é nosso, ele informa os acontecimentos

cronologicamente, como em uma montagem normal. O trecho é bastante extenso,

ocupando duas páginas e meia. Nele, as informações vêm acompanhadas dos

horários em que ocorriam. Para se ter idéia, reproduzimos a seguir o início e o

final de seu relato.

Às doze horas o general Mark Clark, comandante da frente

italiana, o general Truscott, comandante do 5º Exército, o general Crittenberg, comandante do 4º Corpo do 5º Exército, e o comandante-em-chefe das Forças Aéreas do Mediterrâneo estiveram em visita ao general Mascarenhas de Moraes, no seu Posto de Observação, uns 3 quilômetros à direita do Posto de Comando do general Cordeiro.

Às 12h30 o major Uzeda, que avança pela esquerda, pede proteção da Artilharia para que possa alcançar um ponto na sua frente, e o general Cordeiro ordena às baterias: “Cinco rajadas de morteiros sobre a cota 813.”

Às 13h55 um dos batalhões avisa que foram avistados reforços alemães que começam a chegar a Castelo. Ao lado direito, o coronel Franklin está detido com o seu 3º Batalhão. O major Uzeda previne pelo rádio que tentará envolver Castelo pela esquerda. (idem, ibidem, p. 95-96)

(...) Às 17h40 os homens do major Uzeda alcançam Esperança, outro

ponto de resistência dos alemães na cota 930.

100

Às 17h45 o general Cordeiro de Farias afasta-se da luneta, volta-se para mim e diz: “Praticamente Castelo está conquistado.” Chegam logo depois informações sobre a situação da 10ª Divisão de Montanha norte-americana: eles ainda não conseguiram tomar Torracia, de forma que o avanço brasileiro terá que ser feito sem o apoio deles e com a estratégica posição ainda em poder dos alemães.

Às 17h50 a voz do major Franklin vem, forte, pelo rádio: “Estou no cume de Monte Castelo.” E pede fogo da Artilharia sobre posições inimigas além do monte. “Castelo é nosso”, me diz o general Cordeiro. Mais alguns minutos, e nossas baterias já estão bombardeando Caselina, Serra e Bela Vista. Os alemães respondem com morteiros. Mas nada mais lhes adiantaria, porque, como me diria na manhã seguinte o coronel Franklin, “estamos em Castelo e ninguém mais nos tira daqui”. (idem, ibidem, p. 97-98)

O trecho total se estende da página 95 até a 98 e cada parágrafo é aberto

com a informação do horário em que os fatos aconteciam. Joel Silveira

acompanha os acontecimentos fornecendo novas informações em intervalos que

variam de cinco minutos a uma hora e vinte e cinco minutos. Seu relato segue a

cronologia dos fatos presenciados – uma montagem normal que evolui dos

momentos iniciais da batalha até seu desfecho. Interessante notar ainda no

fragmento que ele consegue o efeito de ação acelerada com a justaposição de

vários(as) planos(frases) curtos(as).

Ao ler sua reportagem a impressão que se tem é que se trata da

decupagem de material filmado. Na verdade, Joel Silveira (sem mesmo ele

próprio imaginar) carregava um cinematógrafo na cabeça de que o operador era

sua imaginação. Deu vazão às informações obtidas e a tudo que presenciou pela

máquina de escrever, posicionada em cima de uma mesa em uma granja no alto

do Monte Castelo, conforme contou em entrevista realizada para este trabalho

(ver Entrevista com o jornalista Joel Silveira, Anexo A). E os leitores encontram na

sua escrita um verdadeiro projetor de imagens que foca nossa tela interior.

4.2 O diário de Bagdá, por Sérgio Dávila Na contramão dos milhares de iraquianos e das centenas de jornalistas

que abandonavam com pressa o Iraque no dia 19 de março de 2003, Sérgio

Dávila e Juca Varella corriam pela Expressway 1, a estrada que liga a fronteira da

Jordânia a Bagdá, para chegar à capital iraquiana antes do vencimento do

ultimato dado por George W. Bush a Saddam Hussein para que ele entregasse o

101

governo ou enfrentasse a guerra. O prazo se esgotaria às 4h do dia 20, uma

quinta-feira, e às 5h35 ocorreriam os primeiros bombardeios norte-americanos.

Dos 180 jornalistas que ainda permaneciam em Bagdá, apenas Juca

Varella e um fotógrafo da France Presse registraram a cena inicial. De acordo

com Dávila, o flagrante ocorreu

graças a um truque digno dos bons profissionais: depois de ter perdido vários bombardeios, eles percebem que várias bombas caíam nos mesmos lugares. Juca escolhe um, aponta a câmera para lá e – clique – capta a imagem que em dez minutos estará em São Paulo e depois correrá o mundo. (DÁVILA, 2003, p. 37)

As fotografias de Juca Varella da guerra no Iraque, que correram o mundo,

fornecem também a senha para se compreender o impacto cultural da televisão

como meio hegemônico de veiculação de imagens na contemporaneidade e no

próprio livro Diário de Bagdá, como produto desse momento histórico. Além do

fato de que a publicação traz 137 fotos (sem contar a da capa) coloridas, que

junto com o texto constroem o significado do livro, Sérgio Dávila, a exemplo da

forma mosaico da linguagem televisiva, utiliza-se de uma escrita fragmentada,

repleta de referências a símbolos da mídia e da sociedade de consumo. A cultura-

mosaico de Abraham Moles (1974) se faz aqui presente. E ler seu texto é como

estar de posse de um controle remoto e zapear pelas páginas. Mas o verdadeiro

zapeador é mesmo Dávila, que realiza uma costura que liga retalhos de textos e

imagens.

4.2.1 O pansincretismo impresso

Quando se lê o livro de Joel Silveira, a sensação que fica é a de uma

narrativa lenta, contemplativa, de ritmo preguiçoso, como o cinema

(MARCONDES FILHO, 1994), principalmente o da primeira metade do século 20.

A sensação experimentada pelo leitor com Diário de Bagdá é oposta. O ritmo é

ágil, a escrita, com o auxílio das fotografias, se dá na mesma velocidade

imprimida pelos spots publicitários na televisão, que são a referência para boa

parte da linguagem dos programas televisivos. Grosso modo, seriam essas as

diferenças entre um e outro livro se o parâmetro de comparação utilizado fosse

102

meramente o ritmo e a velocidade da narrativa. No entanto, chama mais a

atenção a forma como aspectos característicos da linguagem televisiva são

traduzidos no meio impresso por Sérgio Dávila.

Na televisão temos a forma mosaico, fragmentária, pansincrética, como

Rezende (2000), Requena (1999) e Martín-Barbero e Rey (2001) definem ser seu

fluxo de programação. Esse mesmo efeito também se verifica aqui. O texto que

se segue é um exemplo.

“Vocês estão levando telefone celular?” O árabe que faz a pergunta num inglês bem falado estava

dormindo até agora numa sala batizada de Casa dos Oficiais, um dos cerca de vinte compartimentos em que se divide a alfândega iraquiana na fronteira com a Jordânia. Ele tem a roupa amarfanhada, a cara amassada e os cabelos empastados na frente e espetados atrás. Mentimos:

“Não”. Apesar da temperatura amena do lugar (as cidades de Tribil, no

Iraque, e Al Karama, na Jordânia, que estão na primavera, mas que costumam sofrer com até cinqüenta graus de calor no alto verão), eu e o repórter fotográfico Juca Varella suamos frio.

O funcionário continua: “E conexão por satélite?” Penso numa cena do subestimado filme Amor à queima-roupa, de

Tony Scott, em que o personagem de Christopher Walken está interrogando o de Dennis Hopper, amarrado, que mente deslavadamente. “Os sicilianos são grandes mentirosos, os melhores do mundo”, diz Walken. “Eu sou siciliano. E meu pai era o campeão mundial peso-pesado dos mentirosos sicilianos. Cresci ao lado dele e aprendi a pantomima.”

Continua: “Existem dezessete maneiras de alguém que está mentindo se entregar. O homem tem dezessete pantomimas. A mulher tem vinte, mas o homem tem dezessete. E, se você conhece bem essas representações, é melhor que um detetor de mentiras. Este é um jogo de mostrar e dizer. Você não quer me dizer nada, mas está me mostrando tudo”. Penso que é exatamente o que fazemos agora. Mesmo assim, insistimos:

“Não”. (...) (DÁVILA, 2003, p. 20)

Observe-se como Sérgio Dávila inicia o livro, quando narra o episódio em

que ele e Juca Varella estão na alfândega iraquiana, na divisa com a Jordânia, e

são entrevistados pelo funcionário iraquiano. O relato jornalístico, com

informações sobre o árabe que os questiona, o local onde se encontram e a

temperatura, é entrecortado por diálogos inteiros transcritos do filme Amor à

queima-roupa (True romance, 1993), de Tony Scott. O factual e o ficcional

dividem sincreticamente o espaço da página. Esse primeiro texto prossegue com

103

o repórter explicando que ele e o fotógrafo decidiram, ainda em Amã e por

conselho de outros jornalistas, não declarar os equipamentos que carregavam

para que estes não fossem confiscados. Depois de narrar como receberam o

convite da Folha de S. Paulo para cobrir a guerra e os procedimentos que tiveram

que cumprir para chegar ao Iraque, Dávila finaliza assim o primeiro capítulo:

Estamos agora aqui, em frente à laje da Casa dos Oficiais. Destravo o primeiro cadeado, coloco-o de lado e começo a abrir o zíper. De dentro, parecendo iluminado, desponta um pacote sextavado de chocolates Toblerone, daqueles que se compram em aeroportos e que serão nossa comida se o abastecimento em Bagdá ficar complicado.

O fiscal olha para o doce suíço. Olha para mim. De novo para o chocolate. Quando percebo a dança, eu quase salto:

“Gostaria de oferecer este pacote ao senhor”. Ele vira para os lados, para ver se não está sendo observado, dá

uma risada sinceramente agradecida e me diz: “O pacote inteiro não, apenas um”. Pega o Toblerone, esconde no bolso da calça, aponta a estrada

com o queixo e faz um gesto com a mão, como quem diz: “Liberados”. Em cinco minutos, estamos rodando em direção a Bagdá, com celular, conexão, cinco Toblerones e muito medo, a doze horas do fim do ultimato. (idem, ibidem, p. 23)

É preciso dizer que o primeiro capítulo intitula-se dia 01 e seu subtítulo é

Tudo por um Toblerone. Necessário ressaltar ainda que a página 20 (ver Figura

1), de onde foi extraído o trecho anterior, é ilustrada pelas fotos da vista da

fronteira entre Jordânia e Iraque e de um Toblerone. Ao lado, na página 21 (ver

Figura 2), há a foto com os crachás jordanianos dos dois repórteres e a placa com

o tipo sanguíneo de Sérgio Dávila. Dessa forma, tem-se a construção (no nível do

texto e no da paginação) de um efeito semelhante ao pansincretismo da televisão.

Texto factual, texto ficcional, foto jornalística e foto de perfil publicitário compõem

esse mosaico do meio impresso. É como se “assistíssemos”, na página,

jornalismo, filme e publicidade.

104

Figura 1 – Reprodução da página 20 do livro Diário de Bagdá

105

Figura 2 – Reprodução da página 21 do livro Diário de Bagdá

Pode-se perceber a forma pansincrética impressa também nas páginas 225

e 23, com as fotos de um documento do governo jordaniano autorizando os

jornalistas a chegarem à fronteira com o Iraque, de uma placa indicando essa

distância, tirada na estrada, e de canhotos de bilhetes de vôo; nas páginas 26 e

27, com exemplar do jornal Iraq Daily, de Sérgio Dávila e Juca Varella em um

posto de gasolina e de um beduíno que conduz ovelhas no deserto; nas páginas

30 e 31, com carteirinha do hotel Al-Rasheed, de tapete na entrada do mesmo

hotel, de fachada e panfleto do hotel Palestine; na página 135, com relógio com o

5 Todas as páginas onde aparecem as fotos citadas encontram-se reproduzidas no Anexo C, Reproduções de páginas do livro Diário de Bagdá.

106

rosto de Saddam Hussein, meninos jogando bola em uma rua e com cédulas do

Iraque; e na página 143, com fila de bagdalis que buscavam emprego no

Palestine e crachás dos dois jornalistas fornecidos pelo Ministério da Informação.

Em todos esses exemplos, o texto divide o espaço das páginas com fotos de

conteúdo jornalístico e com aquelas meramente ilustrativas.

As imagens ilustrativas representam uma quebra no fluxo das imagens da

guerra (a maioria com cenas fortes de bombardeios, do drama dos civis

iraquianos e de uma Bagdá ocupada de forma caótica pelas tropas da coalizão).

São drops fotográficos que, a princípio, nada têm a ver com o conflito, mas que

informam sobre a trajetória de Sérgio Dávila e Juca Varella (bilhetes de vôo,

documento de autorização para se chegar à fronteira do Iraque, panfletos de

hotéis) durante o trabalho de cobertura jornalística. Funcionam como breaks

comerciais que dosam a emoção e a intensidade do relato da guerra. Dessa

forma, fragmentam a história da guerra contada em imagens com imagens que

contam um pouco das histórias pessoais de Sérgio e Juca no Oriente Médio.

O uso de recursos típicos da maneira de narrar histórias pelos quadrinistas

é uma outra forma de manifestação do que estamos chamando de pansincretismo

impresso. No capítulo dia 05, cujo subtítulo é Os sons da guerra, Sérgio Dávila se

propõe a contar um pouco da guerra destacando os sons provocados pelos

choques das bombas e dos mísseis nos alvos da capital iraquiana. Ele faz isso

recorrendo a onomatopéias, que é de uso recorrente na linguagem das histórias

em quadrinhos (aliás, é interessante destacar que a diagramação das revistas em

quadrinhos tem sido levada para a tela da TV, exemplo disso são as matérias

sobre mercado de empregos realizadas pelo Jornal Hoje, da Rede Globo). Leia-se

abaixo.

Juca alerta para a grande diferença sonora entre bomba e míssil. Aqui, é preciso ser onomatopaico.

A bomba, quando atinge o alvo, faz algo parecido com BUM. É prosaico, mas os quadrinistas e os contadores de história infantil tinham razão. Um som que, embora gravíssimo, altíssimo, é de curta duração. Na verdade, o que produz barulho é o ar que ela desloca. Muitas bombas que caem próximas demais do Palestine nos jogam para trás na varanda na ida e chegam a quebrar vidros de quartos na volta, quando o ar deslocado encontra resistência e retorna à origem com intensidade menor, mas ainda grande.

107

Já o míssil faz BRUUUUUUUUM, som mais duradouro e mais apavorante. Lembra aquela série de estampidos dos rojões que o torcedor brasileiro está acostumado a ouvir quando seu time entra em campo. O ruído é parecido com outro muito comum neste conflito, o da artilharia antiaérea. Só que ela é bem mais intensa, por estar mais próxima de nós, geralmente no topo dos edifícios ao redor. A violência da artilharia em ação faz você pensar que está trancado num banheiro e que alguém estourou ali os tais rojões do campo de futebol. (idem, ibidem, p. 38-43)

O BUM e o BRUUUUUUUUM (impossível não se lembrar da liberdade

textual reivindicada pelo Novo Jornalismo) surgem no meio do relato jornalístico-

literário e, imitando o barulho de bombas e mísseis, dá ao leitor a idéia de como

são os sons da guerra presenciada por Sérgio Dávila e Juca Varella. Esse trecho

é ilustrado por fotos panorâmicas de explosões em Bagdá. É como se das

imagens saíssem sons amplificados pelo texto. Significativo destacar também a

relação feita entre o ruído da artilharia antiaérea e os estouros de rojões dentro de

um banheiro.

O trecho acima ganha em significado pelo fato de que o próprio Dávila, em

2006, escreveu uma matéria para a Folha de S. Paulo intitulada Relatório do 11/9

vira história em quadrinhos. Nessa reportagem, o jornalista informa sobre o

lançamento do Relatório 11 de Setembro (9/11 Report) – um livro de 568 páginas

escrito pelos congressistas Thomas H. Kean e Lee H. Hamilton que procura

esclarecer o que ocorreu nos atentados terroristas ao World Trade Center e ao

Pentágono em 2001 – em versão história em quadrinhos pelo autor Sid Jacobson

e o desenhista Ernie Colón. O resultado foi uma revista de 128 páginas que

procura facilitar a leitura de um texto oficial para um maior número de leitores,

principalmente os das novas gerações. O lançamento é mais uma amostra da

importância que as imagens adquiriram na contemporaneidade (na sociedade do

espetáculo).

No próximo exemplo, a forma mosaico aparece na fragmentação do texto.

O conteúdo de caráter informacional é entrecortado pelo ficcional por meio de

relatos oníricos. A narrativa é atravessada pelo relato de pesadelos que os

repórteres têm durante as difíceis noites de sono em uma cidade constantemente

bombardeada.

108

O som das bombas, o tremor do prédio e o incômodo dos coletes à prova de bala transforma nossos sonhos numa curiosa gama de pesadelos, que, ao acordarmos na manhã seguinte, contamos assustados um ao outro. Juca já sonhou com uma tia sua, morta faz tempo, que vinha falar com ele, toda feliz, e lhe ensinava uma receita de bolo de morango intercalado com bolo de chocolate, recheado de chantilly e coberto por sorvete de creme, uma sobremesa bicolor que, acordado, ele prometeu a si mesmo fazer um dia, em homenagem à aparição.

Sonhou também com outro parente morto, uma prima vítima de câncer, que, animada, conversou com ele. Depois, isso o fez se lembrar de um sobrinho pequeno, que, no jantar que a família ofereceu no sábado antes de termos embarcado para Bagdá, chamou-o num canto para se despedir. Juca perguntou, meio rindo: “Por quê? Você acha que eu vou morrer?” O garoto respondeu, sério: “Acho”.

Na segunda noite, sonho que eu e minha mulher, a jornalista Teté Ribeiro, arrematamos num leilão público um avião velho da Vasp, reformamos o equipamento e o colocamos para fazer uma rota qualquer entre São Paulo e o Nordeste. “Assim, ganhamos dinheiro com o turismo”, dizia eu. Na primeira viagem, em que fico no “escritório” e ela acompanha os passageiros, o avião cai e mata todo o mundo.

Dias depois, tão logo pego no sono, toca o telefone do quarto – uma impossibilidade, já que o Palestine está sem telefonia há muito tempo. Do outro lado da linha, é Octavio Frias de Oliveira, o publisher da Folha. “Chega de cobrir guerra, meu filho. Quero que você volte para acompanhar o José Dirceu”, diz ele, referindo-se ao ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula. “Mas, sr. Frias, não é melhor mandarmos outro repórter e aproveitarmos minha presença em Bagdá?”, tento argumentar, em vão. Acordo assustado e, quando vou chamar Juca e dizer para arrumarmos as malas, percebo o absurdo de tudo isso. (idem, ibidem, p. 55)

O trecho acima traz na abertura informações sobre as precárias condições

que os repórteres tinham que enfrentar para dormir, segue com o relato de dois

sonhos de Juca Varella, depois há a narração de uma lembrança do fotógrafo de

um jantar em família, antes do embarque para o Iraque, e prossegue com a

narração de mais dois sonhos tidos por Sérgio Dávila e do momento em que ele

acorda. Há dessa maneira um revezamento entre relatos de conteúdo

informacional e ficcional. A página é ainda ilustrada pela foto de jornalistas em um

ônibus do governo iraquiano. O conjunto texto/imagem remete à idéia de

pansincretismo se se leva em conta que, fora a intercalação de textos factuais e

ficcionais, e além da foto jornalística, tem-se um momento em que o texto

menciona uma receita de bolo (sonho de Varella), citando inclusive os

ingredientes e a maneira de prepará-los.

109

4.2.2 A fragmentação pelos microrelatos

O pansincretismo verificado na televisão se traduz pela articulação de

variados gêneros discursivos, conforme Jesús González Requena (1999). Cabe

ressaltar que a publicidade tem um importante papel nessa articulação, pois são

os anúncios comerciais que costuram, na forma de intervalos, filmes, novelas e

telejornais. Jesús Martín-Barbero e Germán Rey (2001) explicam que, na

programação da televisão, os relatos informativos ou dramáticos são

fragmentados pelos spots publicitários que, por sua vez, são fragmentados por

microrelatos. A escrita de Sérgio Dávila também investe na pulverização de

referências a ícones da sociedade de consumo (do espetáculo) de forma que cria

no leitor sensação semelhante à causada por esse aspecto da linguagem

televisiva. A fragmentação em seu texto ocorre tanto pela multiplicidade de

citações de nomes de marcas de produtos, de astros da música e de filmes como

pelo uso de informações entre parênteses, que interrompem o fluxo narrativo pela

intercalação de microrelatos.

Os próximos dois trechos mostram como o uso de informações entre

parênteses contribui para a fragmentação do texto. Em ambos os casos, a

narrativa é interrompida por microrelatos de um parágrafo.

Como a guerra começou às 5h35, o dia já estava claro, e a

explosão da série de bombas e mísseis despejados na “janela de oportunidade” de que falou George W. Bush para pegar Saddam Hussein e seus filhos reunidos não nos causou o efeito visual esperado. As bombas e mísseis, ao caírem, produziam um fogo pequeno, parecido com o que sai dos bicos das torres de petróleo, e tudo era logo engolido por uma fumaça preta.

(Depois, aliás, esse “ponto zero” da guerra entraria para a história por outro motivo. Não existia nenhum bunker de 60 milhões de dólares em que Saddam & Família estariam escondidos na hora da tal janela, ao contrário do que oficiais americanos disseram então. Ou, pelo menos, ninguém descobriu o abrigo até agora. O resultado foi que os quarenta mísseis Tomahawk lançados caíram sobre construções normais. Deve ter sido a demolição mais cara da história: 30 milhões de dólares.)

Mas o som produzido pelo bombardeio não deixa margem a engano: o que começou ali, a poucos metros de onde estamos, é uma guerra. Quem ou o que quer que tivesse estado embaixo daquelas bombas e mísseis não ficou para contar a história. (idem, ibidem, p. 38)

Assim, estamos protegidos de muitos dos possíveis agressores deste conflito, graças a duas placas de cerâmica que cobrem nossos órgãos vitais tanto na frente quanto nas costas. O resto do colete só

110

apara tiro de revólver e pistola, mas o conjunto todo é muito útil para nos livrar do maior causador de mortes nos hospitais que visitamos até agora: os estilhaços de bombas e mísseis.

(É de uma lógica cruel: não há sobreviventes de bomba e míssil. Quando o armamento cai perto demais, a pessoa é pulverizada. Se um pouco mais distante, é carbonizada ou tem os ossos moídos. Assim, os chamados “feridos de bomba” são, na verdade, aqueles que não estavam próximos do alvo o suficiente para morrer, mas que receberam os estilhaços. São pedaços de metal incandescente, afiados como facas, que arrancam braços e pernas e penetram fundo no tronco.)

As placas de cerâmica são o problema na hora de dormir: tiram a estabilidade na horizontal. (idem, ibidem, p. 46)

No primeiro exemplo, Sérgio Dávila interrompe o fluxo do texto – sobre a

frustração que as primeiras bombas causaram nele e em Juca Varella por não

terem proporcionado o efeito visual esperado – para explicar que o bunker de 60

milhões de dólares de Saddam Hussein não existiria e que a seqüência de

mísseis Tomahawk teria atingido construções normais. Depois da inclusão desse

microrelato entre parênteses, ele continua informando sobre o bombardeio. No

segundo, a narrativa sobre a importância do uso dos coletes à prova de balas é

entremeada por um parágrafo entre parênteses que versa sobre as

conseqüências das bombas e mísseis sobre as pessoas atingidas.

A referência a inúmeros ícones e imagens da sociedade de consumo é um

outro ponto a se registrar na escrita fragmentária de Dávila. Esses ícones e

imagens pipocam diante dos olhos do leitor e apelam para sua memória, que, na

sociedade do espetáculo, constitui-se de um repertório de estilhaços de imagens

– usando expressão de Italo Calvino – formado, principalmente, pela televisão.

Percebe-se no estilo textual do repórter que esse recurso é importante para a

construção de sua narrativa. Abaixo, está relacionada uma série de excertos onde

se pode perceber esse procedimento. As citações vão desde marcas de

refrigerante e de carro, passando por nomes de filmes e de astros, até o partido

político PSDB (os grifos são nossos).

1 - “Acorda, Sérgio, que está começando!”

É Juca, já paramentado com capacete e colete e segurando a máquina na mão, numa imagem que depois nos valeria o apelido de “Playmobil”. Antes, após termos esperado uma hora sem que nada acontecesse, combinamos um semi-revezamento. (idem, ibidem, p. 36) 2 - Comer é um problema. Quase todos os restaurantes estão fechados; os donos deixaram Bagdá antes da guerra ou estão trancados em casa,

111

esperando que o conflito acabe. Os que abrem, como o Al-Lathkiya, servem apenas dois pratos: costeleta de ovelha e espetinho de frango. Para beber, Pepsi made in Egito, que eles chamam de “Bebsi” – não existe o som de p na língua árabe, o que cria situações engraçadas.

Tanto a costeleta quanto o espetinho são deliciosos, assim como o hummus, creme de grão-de-bico que constitui um dos principais pratos da cozinha árabe e que é feito à perfeição em Bagdá. (idem, ibidem, p. 58) 3 - Nosso primeiro motorista, Alaá Sadoon Jarboo, o Ali, não foge à regra. O pequeno e elétrico bagdali de 34 anos lembra muito Chilly Willy, genial pingüim criado pelo animador Walter Lantz, cujo desenho Ali nunca viu. (idem, ibidem, p. 74) 4 - Nosso motorista, Ali, esperto e dinheirista, é uma versão em carne e osso de Ali Babá, o pai dos malandros do mundo árabe, personagem do livro As mil e uma noites que atuava nesta mesma Bagdá, em que Ali nasceu e trabalha. (idem, ibidem, 79-80) 5 - Nosso guia é irmão gêmeo de Freddie Mercury, o líder do Queen. Tudo faz mais sentido quando se lembra que o vocalista, morto em 1991, uma das mais conhecidas vítimas da Aids, se chamava na verdade Faroukh Bulsara e nascera em Zanzibar, uma ilha da Tanzânia que, durante séculos, foi dominada pelos árabes. “Nunca ouvi falar”, disse-nos Amjad quando mencionamos Freddie Mercury. Queen? “Também não. Mas adoro o ABBA.” (idem, ibidem, p. 80-81) 6 - Depois de duas semanas com os bombardeados, passaríamos uma semana com os bombardeadores – o comando militar da coalizão.

Por um milhão de motivos, os dois lados são radicalmente diferentes. Enquanto a sede do Ministério da Informação iraquiano era quase mambembe, instalada num prédio de concreto típico do realismo socialista dos anos 50, a do comando militar americano lembra a ponte da Enterprise, a nave do seriado Jornada nas estrelas. (idem, ibidem, p. 102) 7 - No entanto, há um ponto em comum: ambos mentem sempre que necessário, seja com as bravatas de Mohammed Said al-Sahaf, seja com a falsa ignorância do general Vincent Brooks. Perguntamos a este: “Afinal, Bagdá caiu ou não?” A resposta, pela falta de objetividade, poderia ter sido dada numa convenção do PSDB: “A capital é uma das áreas sobre a qual o regime não tem mais controle”.

Ou seja: Bagdá caiu, e não estávamos lá. (idem, ibidem, p. 102) 8 - A Amã, chegam relatos de grupos inteiros que voltam apenas com a roupa do corpo e de outros, com menos sorte ainda, que apanharam bastante. Ainda assim, por 1500 dólares, ou quase oito vezes o que pagamos na véspera da guerra, contratamos um jordano-palestino. É Hussein, o tal cuja aparência mistura Nietzsche com Raul Seixas. Assim como seus sósias, é louco de pedra.

Dirige sempre no limite máximo de sua GMC 1999 branca, e o faz com um tique nervoso que quase nos deixa loucos: olha o tempo todo para um e outro espelho retrovisor, balançando a cabeça como Stevie Wonder ao piano. Demoramos horas para descobrir que, não, ele não acha que estamos sendo seguidos. É só uma mania. Inclusive porque o vidro dos espelhos está quebrado. (idem, ibidem, p. 104-105)

112

9 - É minha primeira ligação e também minha primeira bronca, do pessoal da emissora de TV americana NBC. “Você está louco?”, grita um, com a atitude e o tipo físico daqueles ex-militares psicopatas de filmes de Hollywood. “Os americanos estão de olho na gente e o uso do telefone também está proibido na estrada por eles!” (idem, ibidem, p. 112) 10 - “Estamos perdidos!”

É Mike, o britânico do carro blindado que nos lidera. Ele não precisava ter dito nada: acabamos de passar a quinta vez pela mesma rua. O comboio está perigosamente batendo cabeças em lugares desconhecidos da periferia de uma Bagdá escura e esfumaçada – ainda queimam os tanques de petróleo nos quais o antigo regime tocou fogo como tática para atrapalhar os sensores dos mísseis. Torno a me lembrar de Apocalypse now ao ver uma seqüência de helicópteros passar sobre nossas cabeças, espalhando a fumaça. (idem, ibidem, p. 114) 11 - Adiante, ouvimos os zunidos do tiroteio entre os americanos e a resistência iraquiana. Esperamos uma pausa para atravessar rapidamente. A cidade está um breu. Até agora, enquanto rodávamos à procura de uma entrada minimamente segura, os faróis dos carros iam iluminando pessoas que andavam nas ruas em pequenos grupos e se escondiam da luz como se esta os ferisse.

A reação me lembra A noite dos mortos-vivos, clássico B que George A. Romero filmou em 1968. Mas não é de medo que esses bagdalis se escondem, e sim de vergonha. Todos carregam objetos que acabaram de saquear: ventiladores, pedaços de máquinas, cadeiras, panelas, lâmpadas, roupas, nada de muito valor. (idem, ibidem, p. 114) 12 - (Logo arrumaremos outro motorista, Rabah Hassan Saifaldin, o Rubi, uma mistura impossível de Mr. Bean com Roberto Benigni. É que ele aprendeu a língua inglesa durante uma temporada que passou com a irmã, na Itália. Ou seja, fala inglês com sotaque italiano. E gesticula muito. Começa a contar uma história e vai se empolgando e elevando o volume. No final, está gritando em seu inglês macarrônico. Difícil segurar o riso.) (idem, ibidem, p. 118)

Em todos esses exemplos, a narrativa de Sérgio Dávila é cortada por

referências que interrompem o fluxo textual, seja pela simples menção ao nome

de uma marca de produto, seja pela comparação entre a aparência de pessoas

com as quais teve contato e situações vividas com rostos de famosos, filmes e

acontecimentos. Como nos intervalos da televisão, o leitor encontra nos exemplos

2 e 8 a citação à Pepsi e ao modelo de carro GMC 1999. Nos outros trechos

temos as seguintes relações:

- Exemplo 1: Juca Varella paramentado com os equipamentos de

segurança fica igual ao brinquedo Playmobil (boneco temático que as crianças

podiam equipar com os mais diversos acessórios – o livro traz inclusive uma foto,

113

na página 33, onde os dois jornalistas aparecem usando os equipamentos; na

legenda, o leitor é informado de que eles receberam o apelido de Playmobil);

- Exemplo 3: o primeiro motorista dos jornalistas se parece com o pingüim

de desenho animado Chilly Willy;

- Exemplo 4: o mesmo motorista, Ali, é uma versão em carne e osso de Ali

Babá, personagem do livro As mil e uma noites;

- Exemplo 5: o guia dos jornalistas, que gosta do grupo sueco ABBA, é a

cara do vocalista do Queen, Freddie Mercury;

- Exemplo 6: a sede do comando militar americano, no Qatar, lembra a

ponte da nave Enterprise, do seriado Jornada nas estrelas;

- Exemplo 7: a falta de objetividade na resposta do general Vincent Brooks

a Sérgio Dávila soa como as dadas em convenção do PSDB;

- Exemplo 8: Hussein, um outro motorista dos jornalistas, tem aparência

que mistura Nietzsche com Raul Seixas e tique nervoso do músico Stevie

Wonder;

- Exemplo 9: uma pessoa ligada à emissora de TV NBC interpela Dávila

com a atitude e o tipo físico de um ex-militar psicopata de filme de Hollywood;

- Exemplo 10: uma seqüência de helicópteros no céu de Bagdá faz Sérgio

Dávila se lembrar do filme Apocalypse now;

- Exemplo 11: o jornalista lembra-se do filme A noite dos mortos-vivos, de

George A. Romero, ao ver bagdalis pelas ruas desviando os olhares das luzes

dos carros, envergonhados por estarem cometendo saques na cidade às escuras;

- Exemplo 12: outro motorista que presta serviço para os jornalistas se

parece com uma mistura de Mr. Bean com Roberto Benigni.

As referências de Sérgio Dávila, que auxiliam o leitor a ter a idéia sobre a

aparência de pessoas com quem o repórter tinha que lidar (algumas delas

aparecem em fotos no livro), de como foram algumas situações vividas e o

aspecto de alguns lugares, também funcionam como microrelatos que

fragmentam ainda mais a narrativa já fragmentada do livro Diário de Bagdá. As

citações a filmes, a celebridades e a marcas de produtos indicam que o texto do

repórter (e a própria paginação do livro, com seu investimento nas fotografias,

114

muitas delas ocupando o espaço de duas páginas) se inscreve dentro do que

atualmente Ciro Marcondes Filho (1993) chama de televisão impressa. Ou seja,

os meios impressos passam, cada vez mais, a privilegiar o aspecto imagem e a

linguagem típica da televisão – a forma mosaico de sua programação – ao invés

de dispensar um tratamento textual mais amplo aos temas.

4.2.3 O leitor “assiste” a diálogos

Marcondes Filho (1994) observa que na narrativa da televisão o que

importa é o diálogo, a fala, as palavras. Guilherme Jorge de Rezende (2000) e

Muniz Sodré (1977) chamam a atenção para o predomínio da função fática, de

contato, na linguagem televisiva. Mas se na televisão a forma mais visível dessa

função é a forma como apresentadores interpelam o telespectador, no livro de

Sérgio Dávila os diálogos reproduzidos entre ele, o fotógrafo Juca Varella e outros

personagens criam um pouco dessa sensação no nível impresso, como se pode

deduzir com os seguintes exemplos:

Decidimos em Amã, na Jordânia, cidade que agora está trezentos quilômetros para trás, não declarar nosso equipamento.

O conselho foi de jornalistas estrangeiros que já estavam em Bagdá e, junto dos outros 180 colegas, aguardavam o fim do ultimato do governo de George W. Bush para que Saddam Hussein renunciasse ou enfrentasse a guerra. Esse prazo se esgotará na madrugada de hoje, 19 de março de 2003, para amanhã, mais exatamente às quatro horas locais. “Se você declarar, eles vão confiscar seu equipamento e só devolver três dias depois, em Bagdá”, disse-me um veterano correspondente europeu.

Se isso acontecer e a guerra realmente começar, poderemos dizer adeus à cobertura. Uma vez devolvida na capital iraquiana, a aparelhagem ficará restrita à sede do Ministério da Informação e só poderá ser usada ali, no horário comercial e sob os olhos atentos da polícia secreta, a Mukhabarat. “A gente se faz de bobo e vai dizendo ‘não’”, sugeriu Juca. “Se nos flagrarem, alegamos dificuldade com a língua.” (idem, ibidem, p. 21)

Completamente destruído e carbonizado, ainda morno, o ônibus dos cinco trabalhadores sírios. “Foi aqui que eles foram bombardeados”, grito para Juca. “E é recente!”, ele grita de volta. O motorista observa o que dizemos, sem entender mas entendendo. Com a mão, faz a mímica de aviões soltando bomba. Completa com a onomatopéia universal: “Bum, bum!” Quase tremendo de medo, concordamos: “Bum, bum!” (idem, ibidem, p. 100)

115

Nos dois trechos, o leitor transforma-se em uma espécie de espectador

privilegiado dos acontecimentos. Dávila, Varella, o correspondente europeu (no

primeiro trecho) e o motorista que os guia (no segundo) praticamente dialogam

para o leitor, que “assiste” aos diálogos como se estivesse frente ao monitor da

TV. No segundo exemplo, a onomatopéia volta a aparecer e torna possível ao

motorista iraquiano se comunicar com os jornalistas brasileiros. Se a força da

narrativa da televisão reside no diálogo, o diálogo nos textos acima também

ganha em força ao colocar no centro dos acontecimentos os jornalistas que

devem reportar a guerra, transformando-os em personagens centrais dos

acontecimentos que estão lá para narrar.

4.2.4 A TV é representada

Além dos rastros da linguagem televisiva presentes no livro Diário de

Bagdá, a TV também aparece como personagem da guerra narrada por Sérgio

Dávila. Aliás, atualmente é impossível falar em cobertura de guerra sem a

presença da televisão. Como afirma José Arbex Júnior (2001), após a Guerra do

Golfo, no início dos anos 1990, a televisão tornou-se “a” notícia com sua

onipresença e capacidade de transmitir de forma instantânea imagens de e para

todo o mundo.

A importância desse meio de comunicação não é negligenciada por quem

decide fazer uma guerra. A jornalista Paula Fontenelle conta no livro Iraque: a

guerra pelas mentes (2004), que analisa a cobertura jornalística da guerra pela

imprensa inglesa, como os Estados Unidos tentaram produzir a imagem símbolo

do fim do conflito. No dia 9 de abril de 2003, o exército norte-americano teve a

chance de forjar o ícone visual que simbolizaria sua vitória contra Saddam

Hussein. Direto da praça Fardus, em Bagdá, as redes de TV transmitiram, ao vivo

para todo o mundo, as imagens da derrubada da estátua do líder iraquiano pelas

tropas americanas, que finalmente chegavam à capital iraquiana. Antes do ato

simbólico, um soldado norte-americano colocou uma bandeira dos EUA no rosto

de Saddam, substituída logo em seguida pela bandeira do Iraque.

116

O ato repercutiu mal na interpretação de boa parte dos profissionais que

estavam ali para cobrir a guerra: aquela atitude seria um ato falho que denunciaria

a real intenção de os EUA invadirem o país e não de libertá-lo de uma ditadura

que produziria armamentos de destruição em massa, conforme a diplomacia do

governo norte-americano esforçou-se por fazer o mundo acreditar nos momentos

que antecederam a invasão. Mas o que quase ninguém ficou sabendo é que

aquele ato fora premeditado. A bandeira americana pendurada sobre o rosto do

líder iraquiano era a mesma que estava hasteada no Pentágono em 11 de

setembro de 2001, dia do atentado em que um dos aviões foi direcionado sobre o

centro burocrático da segurança americana. Ou seja, guerra também se ganha

pela TV.

A importância da televisão fica clara ainda quando se pensa nos jornalistas

chamados de embutidos – a maioria de redes de TV –, que ficavam junto às

tropas americanas (que os protegiam) durante a invasão do Iraque e que

captavam apenas as imagens que eram permitidas pelo comando militar dos

Estados Unidos. Mas além de a participação do veículo TV ser fundamental em

uma guerra, hoje em dia praticamente não há notícia (ou melhor, a informação

perde em termos de repercussão se não tiver imagens) sem esse meio de

comunicação, que se destaca pela ubiqüidade instantânea. Portanto, é natural

que a televisão, que está ao mesmo tempo em todos os lugares, apareça

representada na narrativa de Sérgio Dávila. O que ocorre em momentos como

estes:

Entre as emissoras de TV, não é diferente. Seis andares acima do

nosso, o repórter Carlos Fino se arruma enquanto o cinegrafista Nuno Patrício acerta a imagem: ambos estão ao vivo e pretendem noticiar que, uma hora e meia depois do ultimato, nada aconteceu. Acabam sendo a única emissora do mundo a registrar o ponto zero desta guerra. (idem, ibidem, p. 37)

A hegemonia atingia também as comunicações. As rádios estatais

eram controladas por seu filho Uday, assim como a emissora Iraque Jovem, uma espécie de MTV local. As outras duas TV também eram do governo e todo o jornalismo era produzido e supervisionado pelo Ministério da Informação, o mesmo de Mohammed Said al-Sahaf.

Como não havia comerciais, o presidente iraquiano aparecia em todos os intervalos, discursando e dando conselhos. Depois de iniciada a guerra, a programação virou 24 horas por dia do que apelidamos de “videoclipes de Saddam”, que consistiam em cantores populares locais exaltando em músicas as qualidades do líder, entremeados por cenas de

117

Saddam em festas, palácios e reuniões. Era como a transmissão do Carnaval carioca pela TV, se o tema de todas as escolas de samba fosse o ex-ditador. (idem, ibidem, p. 134-135)

No primeiro texto, Sérgio Dávila destaca como a emissora estatal Rádio e

Televisão Portuguesa (RTP), com seus jornalistas Carlos Fino e Nuno Patrício,

tornou-se a única a flagrar o momento inicial da guerra. Aliás, Carlos Fino e Nuno

Patrício são os personagens principais do capítulo dia 28, de subtítulo Lei de

Murphy portuguesa, que narra como os portugueses tiveram que se desdobrar no

Iraque para acertar dívidas com o Ministério da Informação e como foram

assaltados e perderam o dinheiro, os passaportes e todos os equipamentos. No

segundo texto, o repórter descreve como funcionava o sistema de comunicações

iraquiano antes da queda do regime. Os destaques são as emissoras de TV: a

Iraque Jovem, uma MTV local, e dois canais onde a figura de Saddam Hussein

era onipresente.

Dessa forma, a televisão configura-se também como personagem no livro.

Ela é representada no texto e com isso reforça a idéia de que é um veículo ubíquo

na cultura contemporânea. Mas além da mera representação, ela deixa marcas

de sua linguagem impressas em Diário de Bagdá. Sérgio Dávila deixa entrever

essas marcas quando apresenta, junto às imagens de Juca Varella, uma narrativa

pansincrética, fragmentada, entrecruzada por gêneros e discursos variados,

vazada por microrelatos. O resultado: um mosaico formado por letras e imagens.

118

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aparecimento do cinematógrafo e o surgimento da televisão realizaram o

antigo desejo do ser humano de exteriorizar mecanicamente seus sonhos. Ao

mesmo tempo, consolidaram um horizonte técnico que causou profundas

transformações culturais. A disseminação dos fotogramas em seqüência do

cinema e depois o fluxo ininterrupto e fragmentado das imagens da televisão

mudaram a maneira de o homem experimentar seu contato com o mundo.

Essa mudança de perspectiva ocorreu então em dois estágios. Primeiro, a

sétima arte – com os recursos e possibilidades técnicas da câmera – aprofundou

a percepção humana ao proporcionar a ampliação do mundo dos objetos que se

passava a levar em consideração, conforme percebeu Walter Benjamin.

Em um segundo momento, a televisão é que passava a levar as imagens

para dentro de casa. Estava instaurada a era da ubiqüidade instantânea, da

aproximação do alhures na imobilidade do aqui, segundo Edgar Morin. O

espectador, que antes estava anônimo na fruição dos filmes na sala escura do

cinema, passou a se colocar de frente à telinha no ambiente do lar munido de seu

telecomando. Trata-se da figura do zapeador. Agora é ele quem realiza a

verdadeira edição de um mundo virtual formado por filmes, telejornais, partidas de

futebol, novelas, desenhos animados e comerciais. A TV reformulou dessa

maneira o modo de o homem apreciar as imagens.

Os surgimentos do cinema e da televisão são assim como dois marcos

simbólicos dos conceitos de indústria cultural, descrito por Adorno e Horkheimer,

e da sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Maria Rita Kehl realiza a ponte

entre essas duas teorias ao observar que a sociedade do espetáculo – e sua

peculiar multiplicação de imagens – é o prolongamento da indústria cultural

enriquecida pelo desenvolvimento da TV.

Adorno e Horkheimer viam no funcionamento dos novos meios de

comunicação da primeira metade do século passado, a proliferação de produtos

culturais produzidos com o objetivo principal de satisfazer a necessidade de um

público constituído em consumidor. Nessa receita, tornava-se importante o

sincretismo de linguagens técnicas e de gêneros (mistura entre o real e o

119

imaginário, entre o informativo e o romanesco). Debord observava que a relação

social entre as pessoas passava a ser mediada por imagens na sociedade do

espetáculo, tal a projeção adquirida pelos meios de comunicação de massa na

segunda metade do século passado. A televisão surgia como o meio mais

representativo nesse cenário.

A cultura acusou os impactos do aparecimento desses dois meios de

reprodução de imagens em movimento. Marshall Mcluhan lembra que a entrada

em cena das novas tecnologias pelas quais o homem se amplia e prolonga

funciona como cirurgias coletivas realizadas no corpo social. Em decorrência

disso, o sistema inteiro sofre modificações.

Com a constituição da linguagem cinematográfica, com seus planos,

movimentos de câmera, ângulos de filmagem e tipos de montagem (ROMÃO,

1981; MARTIN, 1990), pode-se perceber influências desse modo de narrar por

imagens na escrita e vice-versa. É o que se percebe pelos estudos do russo

Sergei Eisenstein, ligando as obras de Charles Dickens e David Wark Griffith, e

de Flora Süssekind e Silviano Santiago, que investigam rastros do cinema na

produção literária brasileira.

O mesmo ocorre em relação à linguagem fragmentária, a forma mosaico

(da cultura-mosaico, de Abraham Moles), pansincrética (REQUENA, 1999), da

televisão, onde os relatos são entrecortados por microrelatos (MARTÍN-

BARBERO; REY, 2001) visualmente fragmentados ao infinito. Ocorre ainda em

relação ao privilégio conferido ao diálogo (REZENDE, 2000; SODRÉ, 1977) no

meio televisivo. A repercussão dessas características na literatura e no jornalismo

impresso é analisada por Ciro Marcondes Filho. Ele vê o imperialismo da imagem

consolidado pela televisão influir diretamente na escrita pelo caráter de junção de

partes, de períodos e de cenas curtas que as narrativas textuais assumem na

atualidade. Para Marcondes Filho, essa peculiaridade está tornando o leitor

contemporâneo incapaz de apreciar trabalhos em profundidade.

Paralelamente, na história do jornalismo impresso assistiu-se a um

processo de confluência entre as narrativas jornalísticas e literárias. Isso ocorre

desde um momento (final do século 19 e início do 20) em que essas narrativas

praticamente se confundiam nas redações brasileiras, com a presença de literatos

120

ocupando postos de redatores e repórteres. Com o processo de modernização e

de profissionalização dos jornais brasileiros, sobretudo a partir das primeiras

décadas do século 20, as contribuições literárias começam a ser separadas do

material noticioso na diagramação. E as notícias passam a ser produzidas

obedecendo-se a técnicas (como o uso do lead) que visavam a objetividade e a

concisão dos relatos.

Essas transformações, no entanto, não eliminaram a presença da literatura

no jornalismo impresso. As crônicas, por exemplo, continuam até hoje sendo

praticadas em espaços determinados dos jornais. E movimentos de contestação

das regras de objetividade pela adoção de práticas que tencionavam transmitir

subjetividade ao texto jornalístico, como o Novo Jornalismo e o Jornalismo Gonzo,

continuaram a surgir. A tendência se mantém com a exploração do filão dos

livros-reportagem. É nessa categoria que localizamos os livros O inverno da

guerra, de Joel Silveira, e Diário de Bagdá: a Guerra do Iraque segundo os

bombardeados, de Sérgio Dávila e com fotografias de Juca Varella, que formam o

corpus deste trabalho.

Diante da revisão bibliográfica realizada, pudemos pesquisar traços da

linguagem cinematográfica no texto de Joel Silveira e da linguagem televisiva no

relato de Sérgio Dávila. De acordo com a imagem criada por João do Rio no início

do século passado, e resgatada por Flora Süssekind (1987), a de um homem com

o cinematógrafo na cabeça de que o operador era a imaginação, conseguimos

perceber rastros da técnica narrativa do cinema na escrita de Joel Silveira. Em

sua cobertura jornalística da campanha dos pracinhas na Itália, ele usou recursos

típicos da sétima arte, mesmo não admitindo essa influência (ver Anexo A,

Entrevista com o jornalista Joel Silveira).

Pela descrição de detalhes, pela narração da ação dos personagens e pela

construção dos cenários e ambientes onde se desenrolarão as ações, Silveira

atinge efeito semelhante ao desempenhado pelos planos psicológicos, dramáticos

e descritivos no cinema. Em sua escrita, encontram-se trechos que funcionam

ainda como autênticos movimentos de câmera. É dessa forma que ele nos

introduz em ambientes, como quando narra seu encontro com os colegas

121

jornalistas na Itália, e quando relata aos leitores as cenas aproximadas que vê

pelo binóculo ou pela luneta (zoom in).

A montagem está presente em seu estilo. Joel Silveira vale-se de recursos

como a montagem paralela, onde narra acontecimentos que se passam com

pessoas diferentes em locais distintos e que convergem para um desfecho

comum. É o que se percebe com a história da patrulha de soldados que, na noite

de Natal, se divide em grupos para fazer o reconhecimento de terreno na frente

de batalha. Realiza também recuos ao passado, montagem por analogia, onde

compara situações vividas na Itália com imagens e circunstâncias próximas à

realidade dos leitores no Brasil, e montagem linear, quando narra o passo a passo

(inclusive com a cronologia dos acontecimentos) da conquista do Monte Castelo.

A escrita de Sérgio Dávila apresenta-se como fruto da experiência

proporcionada pela televisão. Primeiro, porque ela recebe o apoio de imagens,

que têm importante papel em seu livro. São mais de 130 fotos coloridas a ilustrar

a edição – algumas delas chegam a ocupar páginas duplas. Segundo, porque sua

escrita adapta ao meio impresso – com a ajuda das fotografias de Juca Varella –

aspectos que são caros à linguagem televisiva. O pansincretismo que Requena

(1999) vê na televisão encontra no livro sua tradução. Pode-se perceber isso

quando, na página, o texto mescla a linguagem informativa do jornalismo com

transcrições de narrativas ficcionais (como trechos de diálogos de um filme

hollywoodiano) e fotos de teor jornalístico dividem o espaço com imagens

ilustrativas (como o Toblerone, que remete à publicidade). Esse tipo de

procedimento aparece em várias páginas.

A narrativa de Sérgio Dávila é fragmentada, a exemplo do que ocorre com

a forma mosaico da linguagem televisiva. Na televisão, isso ocorre pela

fragmentação dos programas pelos espaços destinados aos spots publicitários

(que também se apresentam fragmentados). Os breaks comerciais, inclusive,

descrevem a própria estrutura da programação da TV, sustentada e determinada

pela publicidade. Na escrita do jornalista, a forma fragmentária é obtida pela

interrupção da narrativa pela referência a uma diversidade de ícones da

sociedade do consumo (Freddie Mercury, Queen, Jornada nas estrelas,

Playmobil) e por informações entre parênteses.

122

A predominância do diálogo, da função fática, na televisão, encontra

paralelo no texto de Sérgio Dávila quando há a reprodução de conversas

mantidas entre ele, Juca Varella e outros personagens envolvidos em alguns

acontecimentos narrados. Nesses momentos, o leitor experimenta a sensação de

“assistir” diálogos - “Foi aqui que eles foram bombardeados”, grito para Juca. “E é

recente!”, ele grita de volta (DÁVILA, 2003, p. 100). A televisão surge ainda como

personagem em seu relato. Um capítulo inteiro é dedicado aos repórteres Carlos

Fino e Nuno Patrício, da Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), e o trabalho dos

profissionais de algumas redes de televisão e a descrição da programação dos

canais iraquianos encontram-se registrados.

A era da reprodutibilidade técnica, principalmente no que se refere à

capacidade adquirida pelo homem de reproduzir imagens em movimento, opera

suas marcas culturais. Cinema e televisão são marcos de dois momentos em que

a humanidade conseguiu enfim exteriorizar mecanicamente seus sonhos. E a

essas projeções, seja a que se reflete na tela gigante que se ilumina na sala

escura, seja a que nos atinge pela telinha no âmbito familiar da casa, não há

como ficar insensível. Joel Silveira e Sérgio Dávila, recebendo as influências do

cinema e da televisão, deixaram cravadas em sua escrita as marcas indeléveis

das linguagens cinematográfica e televisiva.

123

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128

ANEXOS

129

ANEXO A

Entrevista com o jornalista Joel Silveira (realizada no dia 14/12/2006)

1) Como o senhor lidava com as tecnologias disponíveis naquela época em sua cobertura da Segunda Guerra Mundial? Bom, naquele tempo o trabalho era muito precário. Não havia os recursos

que hoje se tem. Hoje o correspondente de guerra pode cobrir a guerra do quarto do hotel. Ele tem tudo ali, televisão, internet, aquela coisa toda. Mas na Segunda Guerra Mundial o correspondente, quer dizer, no meu caso, no caso do Rubem Braga, nós tínhamos que estar junto com os soldados, na frente. Eu, como era dos Diários Associados, eu tinha direito a mandar telegramas, que era um serviço muito caro. Já o Rubem Braga, que era do Diário Carioca, um jornal pobre, ele não tinha esse recurso. De maneira que o que o Braga escrevia só saía publicado aqui dois meses depois. E eu não, eu saía instantaneamente. Claro que eu não mandava tudo por telegrama, o que custaria um dinheirão, só as coisas mais importantes, como a conquista do Monte Castelo, a rendição da 148ª Divisão Alemã aos brasileiros, a morte do Mussolini lá em Milão. Isso eu mandava por telegrama, compreendeu? O resto então da guerra eu mandava por crônicas.

2) O senhor chegava a enviar material todo o dia para Brasil?

Todo dia, todo dia. Às vezes mandava três vezes por dia.

3) E esse material saía aqui no outro dia? Às vezes até no mesmo dia. Quando chegava de manhã, saía. Porque os

Diários Associados, além dos matutinos, tinha os vespertinos. Aqui no Rio eram O Jornal e O Diário da Noite. Quando não saía no jornal do dia seguinte, saía à tarde no Diário da Noite. E isso no Brasil inteiro, porque naquele tempo os Diários Associados tinham 27 jornais e rádios. Não havia ainda televisão.

4) E como o senhor lidava com a questão das fotos?

A Agência Nacional mandou fotógrafos muito ruins. O único bom que foi (enviado) foi o Thassilo Mitke. Com esse é que eu me juntei e nós fizemos uma espécie de dupla, compreendeu? E realmente as fotos melhores – muito boas – da FEB foram só as do Mitke porque o material da Agência Nacional era muito ordinário, com fotógrafos terrivelmente maus, enquanto que o Mitke não, (ele) fez um trabalho exemplar. Um livro meu chamado “A luta dos pracinhas”, que eu fiz com o Mitke, você pode comprar esse livro, não sei, está esgotado, não sei se ele existe ainda, é da editora Record, “A luta dos pracinhas”, traz uma seleção de fotos dele da FEB muito boas. As melhores possíveis. Esse livro saiu a uns 15 anos atrás. Está esgotado. Eu só tenho um exemplar aí... Nem sei se tenho ainda. Mas ali você tem as melhores fotos do Mitke. 5) E como as fotos eram enviadas?

130

Bom, eles mandavam de avião o rolo para ser revelado aqui. Havia um avião diário que saía de Nápoles. De Nápoles para Natal, de Natal um avião de carreira do Brasil levava para o... As fotos geralmente chegavam quatro dias depois. Três, quatro dias, compreendeu? Coincidia às vezes que tinha vôo direto. Quando o avião de Nápoles levava prisioneiros, prisioneiros não, feridos de guerra, então havia necessidade desses feridos chegarem imediatamente no Rio ou em São Paulo, porque esses aviões eram todos aviões militares americanos e vinham direto, e então o Mitke aproveitava para, como ele era amigo do piloto que comandava os aviões, eram dois pilotos americanos, ele conseguia que fossem entregues (as fotos). Avisava que o material estava chegando e então o pessoal da Agência ia para o aeroporto apanhar esse material para distribuir para os jornais. 6) Então muitas matérias que o senhor escreveu não foram ilustradas.

Não, porque o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda... Quando eu cheguei da guerra, o Carlos Lacerda, que era o diretor da Agência Meridional, a agência dos Diários Associados que distribuía meu material para todo o Brasil, me entregou uma maçaroca de mais de 170 laudas e eu disse assim: “O que é isso Carlos? (e ele respondeu) Isso aqui é o que não foi publicado. Mas não saiu por quê? (novamente Carlos Lacerda respondeu) Porque o DIP vetou.” Tanto assim que no livro que eu publiquei logo depois da guerra, chamado “Histórias de pracinhas”, eu incluí esses 170 despachos telegráficos, crônicas, reportagens que o DIP havia cortado, compreendeu? 7) E quando o senhor sentia que não haveria possibilidade de ter a

matéria ilustrada? Procurava suprir a falta da foto utilizando os recursos do texto? Não. Não porque geralmente eram fatos que vinham acontecendo e não

havia motivo para serem fotografados. A fotografia seria a manchete né, destacando o fato em si compreendeu? A conquista do Monte Castelo, por exemplo, no dia 29 de fevereiro se não me engano, 21 de fevereiro, estava acontecendo. Então não havia possibilidade de ainda haver foto, a não ser quatro, cinco dias depois. Mas o fato em si, tal a importância que prescindia da foto né? 8) O senhor procurava usar o recurso da descrição, por exemplo, para

compensar o fato de não haver fotografias do acontecimento no momento exato em que realizava sua cobertura? Ah, Claro. Eu era o mais preciso possível, com detalhes, tal e coisa. No

caso de Monte Castelo, eu fui o único correspondente a chegar com a Divisão Brasileira, o 7º Regimento Brasileiro, lá no topo do Monte Castelo compreendeu? E de lá mesmo eu já mandei. Escrevi lá na mesa. Havia tiroteio. Porque o ataque ao Monte Castelo começou às 5 da manhã e terminou às 5 da tarde né? E lá todo mundo tremendo ainda de nervosismo né? Eu escrevi lá mesmo porque lá em cima do Monte Castelo havia uma granja, de um camponês que cultivava cevada, e lá que os alemães tinham se escondido, se aquartelado. Eu botei a máquina, porque sempre que andava eu ia com minha máquina né, e lá mesmo em Monte Castelo eu escrevi a

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reportagem. Desci, fui para Verona, para o censor militar, que era um brasileiro, cortar tudo que quisesse né.

A censura americana era muito boa. Era só evitar citar nomes, essa coisa toda, para não localizar para o alemão né. Era um capitão chamado Boavista, Roberto Boavista, filho do banqueiro que era dono do Banco Boavista. E ele ficou muito meu amigo porque quando foi da rendição de um regimento lá, de uma patrulha alemã, o oficial alemão me deu uma pistola, uma Lunger, que, segundo o exército alemão, o oficial só poderia devolver a pistola para outro oficial. E o correspondente de guerra é tido como capitão, tanto assim que no mês passado eu fui aposentado não como capitão, porém como segundo tenente, compreendeu? Hoje eu sou segundo tenente do Exército Brasileiro, reformado né. Então eu dei essa Lunger para o Boavista. Ele ficou muito alegre. Ele sempre quis ter uma Lunger, aquela pistola fantástica alemã, e ficou muito meu amigo, de maneira que facilitava. Às vezes prendia os outros despachos dos correspondentes cinco minutos. Ele prendendo cinco minutos eu saía na frente compreendeu? Ele me facilitou muito a vida, o Roberto.

9) E o senhor precisou usar a Lunger (risos)?

Ah, eu dei pra ele. Correspondente se for pego com, até com canivete, é considerado franco-atirador e é fuzilado na hora. Isso não é conforme as leis nazistas não, é conforme a Convenção de Genebra. O correspondente não pode usar arma nenhuma. É logo fuzilado.

10) E como o senhor lidava com a questão do tempo, para apurar e redigir

as matérias? Eu não tinha praticamente necessidade disso porque meu único

concorrente... Não havia essa preocupação de furo porque a gente saía de Pistóia e ia para Porreta-Terme e lá cada um, cada correspondente, tinha direito a um jipe e a um terceiro sargento motorista. Cada um tomava o seu destino. A gente ia lá na seção dois, que era do Castelo Branco, via lá qual eram as posições brasileiras... Cada um tomava a sua direção compreendeu? Eu andava sempre com o Mitke (Thassilo, fotógrafo da Agência Nacional), que não era meu concorrente porque ele era fotógrafo. O Braga (Rubem) ia para um lado, o Egydio Squeff do Globo ia para o outro. Cada um ia para o seu, com seu jipe. Era impossível para um só cobrir toda a frente brasileira, que eram 23 quilômetros. Não era possível cobrir tudo. E depois, cada um escolhia: “Não eu vou pra cá”, “Então eu vou pra cá”, “Eu vou pra cá”. De maneira que não havia essa preocupação em dar furo, compreendeu? Não tinha razão de ser.

11) O seu livro “O inverno da guerra” é na verdade uma coletânea de

matérias. É uma coletânea que a Objetiva tirou desse livro “Histórias de pracinhas”.

Eles mesmos tiraram, fizeram a seleção toda. E esse livro vai ser filmado agora pelo Bruno (Cao) Hamburger, cineasta de São Paulo. Ele já telefonou para mim e eu o mandei entrar em entendimento com a Objetiva para ver como pode fazer isso.

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12) É Bruno Hamburquer (na verdade é Cao Hamburger)? É um rapaz muito moço ainda, 30 anos de idade, de São Paulo. Ele que

fez esse filme “O dia em que meus pais foram passear” (“O ano em que meus pais saíram de férias”).

13) Será filmado então o “Histórias de pracinhas”?

Não, “O inverno da guerra”, que é uma seleção do “Histórias de pracinhas”, que foi lançado em 46, logo que eu cheguei. Reuni com as que já haviam sido publicadas, com as que o Carlos Lacerda me deu né, e formou um volume de quase 400 laudas. Virou duas edições.

14) No livro “O inverno da guerra” só o primeiro capítulo, intitulado “Não

foi um passeio”, foi escrito pelo senhor especialmente para a edição da Objetiva. Claro que não foi. O negócio foi duro mesmo. Muito duro. Não só porque

guerra é sempre dura, mas pelas condições climáticas, um inverno rigoroso né, 19, 20 graus abaixo de zero, que nós não estávamos acostumados, e pela situação geográfica. O setor que a FEB defendeu, na frente dos Apeninos, foi o mais ingrato possível. Os próprios comandantes militares, o próprio General Mark Clark, o General Crittenberger (Willis), os generais americanos reconheciam isso. Um deles, antes de ir embora, disse: “Coube à FEB, aos soldados brasileiros, o setor mais ingrato da frente Apenina”. A gente vivia numa cratera. Não havia dia, porque de noite era o black out e de dia se queimava óleo diesel para formar aquela neblina artificial para que os alemães, lá de cima do morro onde eles estavam, não nos percebesse. Porque se eles percebessem atiravam imediatamente. Era uma chuva de morteiro terrível. Uma situação muito ingrata. Ficamos lá quatro meses. Foi um inferno. Numa dessas vezes um morteiro atingiu um cineminha que tinha lá em Porreta-Terme e matou 23 civis e três soldados brasileiros.

15) Por falar em cinema, nesta época era o meio de comunicação

hegemônico... (Interrompendo) Tinha dois cinegrafistas da Agência Nacional também

horrível compreendeu? Horríveis. Tanto assim que, sob o ponto de vista de cinema, quem fez um material razoável foram os cinegrafistas americanos, porque esses cinegrafistas da Agência Nacional eram horrorosos. Não sei porque a preocupação da Agência Nacional de mandar o que havia de pior. Talvez porque o Getúlio não quisesse muito que a FEB se sobressaísse. Tanto não queria que quando a FEB voltou para o Brasil, ainda na Itália, o Getúlio baixou um decreto dissolvendo a FEB compreendeu? De maneira que os soldados iam chegando aqui e eram imediatamente emitidos para os seus quartéis anteriores. Quem era de Pernambuco ia para Pernambuco... Porque ele não queria a união da FEB. Porque a FEB vinha muito gloriosa né, e o Getúlio já receava um golpe. A FEB tinha convivido com os americanos. Então o soldado brasileiro recebeu não só lição de guerra dos americanos, mas também lição política. Aprendeu o que era uma democracia compreendeu? E fatalmente comparava: “Puxa aqui o regime é outro né!”. E viram o exemplo do General Patton (George Smith Patton Jr.), que deu uma bofetada num soldado

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e foi imediatamente destituído. E era o maior general que os aliados tinham. Mas não tinha conversa. Se um general brasileiro aqui der um tapa num soldado não acontece nada né. Pelo menos no tempo do Getúlio não. Hoje é diferente. Agora mesmo no Chile eu estou vendo que o neto do Pinochet, que elogiou o avô, o canalha né, foi expulso hoje (14/12/2006) do exército. No tempo do Getúlio não. General era general né, impunha tudo, não tinha que prestar contas a ninguém. Tanto é que o Getúlio tinha receio disso, que a FEB viesse com esse vírus da democracia, como de fato veio né. O Getúlio muito sagaz, muito arguto, dispersou a FEB logo, ainda quando a FEB estava na Itália. Quando chegou aqui, não houve, portanto, oportunidade nenhuma de se agrupar. A FEB foi dividida, subdividida, cada um foi para seu quartel originário e acabou a FEB. Ele só permitiu um desfile, do primeiro escalão, que desfilou pela avenida Rio Branco. Já o segundo escalão e o terceiro, não houve desfile não houve nada.

16) Em relação ao cinema em Porreta Terme. O senhor chegou a

freqüentá-lo durante o período em que esteve na Itália? Ah, ia muito. Geralmente eram filmes americanos, tipo faroeste. Ou então

filmes italianos, não do tempo do Mussolini, de antes do Mussolini. Aqueles filmes de grandes epopéias, a conquista do império romano, a vida de César, aquela coisa toda.

17) Então dava tempo de o senhor ir ao cinema.

Ah, de noite, assim, eu ia lá. Era um cineminha apertado, dava umas 200 pessoas. Nesta noite eu ia até, nesta noite do morteiro eu ia, mas estava tão frio que: “Ah, eu não vou sair daqui. Vou ficar aqui enrolado no meu sleeping bag (um envelope que a gente entrava dentro né, e dormia). Não vou sair daqui não porque está muito frio”. Depois eu soube. Eu ouvi o barulho né: “Que diabo que é isso?”. Só no dia seguinte que eu fui saber.

18) Então o senhor apreciava cinema?

Ah, sempre. Sempre gostei de cinema. Ainda hoje gosto. 19) Aqui no Brasil o senhor freqüentava muito?

Muito. Diariamente eu ia ao cinema aqui. Hoje, como eu não saio de casa, tenho a televisão aqui. Fico até 4 horas da manhã vendo filme. 20) E qual gênero de filmes o senhor mais gosta?

Bom, não é bem o gênero. Eu gosto dos astros. Por exemplo, mulher eu gosto muito da Julia Roberts, gosto da Meg Ryan, compreendeu? De homem eu gosto do Michael Douglas, que é filho do Kirk Douglas né, que eu também gostava muito, gosto muito do Tom Hanks, um grande astro. Eu escolho mais pelos astros, me interessa a interpretação. 21) Parece que o senhor gosta muito do cinema americano.

É. Os brasileiros... os filmes são muito bons, mas não é fácil. Eu gosto muito dos filmes do Cacá Diegues. Todos eles muito bons. Geralmente o Cacá Diegues acerta sempre.

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22) Gostou do filme “O resgate do soldado Ryan”?

Ah, aquele é uma maravilha. Aquilo foi exatamente o retrato da guerra. Nunca vi um negócio tão exato. Eu me senti... Nossa! Puxa vida! É isso mesmo! Como que esse homem retratou fielmente aquela primeira investida na praia de Omaha né? Terrível aquilo! O “Dia D”, no dia 22 de junho (a data do começo da batalha é 6 de junho de 1944 e a expressão “Dia D” é usada para denominar o começo da invasão das Tropas Aliadas na França ocupada pelos nazistas; a batalha da Normandia se prolongaria até o dia 22 de agosto de 1944).

23) Em algumas partes ele se assemelha a um documentário.

Parece um documentário tão exata é a coisa que... Fabulosa! E ele tem um papel fantástico né. Tom Hanks. Todos eles. Inclusive aqueles astros menores, que a gente nem sabe o nome, fazem uma interpretação maravilhosa. Porque de astro mesmo só tem ele né. O resto são figuras desconhecidas. Mas que atores fabulosos! Parece que eles viveram a guerra. Uma coisa impressionante.

24) O senhor se lembra do impacto que o cinema causou quando essa

tecnologia chegou ao Brasil? Havia a censura. Com a queda do Getúlio, acabou a censura e formavam-

se filas e filas no cinema Odeon, aqui na Cinelândia, para ver “O grande ditator”, do Carlitos. Era um filme que tinha sido feito antes da guerra. Era um filme de 37 mas que nunca havia sido passado no Brasil. Obviamente que era um retrato da ditadura, uma sátira do Carlitos. De maneira que eu me lembro... Eu levei um dia para poder entrar nesse filme, para poder ver o filme, tal a fila que se formava. Dava volta no quarteirão. Foi o primeiro filme assim que tomava-se conhecimento que era um filme mesmo. Porque só se via coisa que vinha elogiar o Estado Novo ou filme romântico, de amor, aquela besteirada enorme. O primeiro grande filme assim que nós vimos, contrariando a ditadura, foi “O grande ditador”, do Carlitos, que fazia um papel extraordinário. Era um gênio né. 25) E quando surgiu o cinema em sua vida?

Bom, eu tenho um neto, o Rodrigo, que é cineasta. Agora mesmo ele chegou da Colômbia, onde foi filmar um livro do García Márquez, “O amor nos tempos do cólera”. É um filme também de uma empresa americana, tem atores mistos, tem atores americanos, atores brasileiros e atores mexicanos. O roteiro foi escrito pelo próprio García Márquez. E eles foram filmar esse filme que se passa todo em Cartagena, no norte da Colômbia, que era aquela zona de piratas né. Ele deve ser lançado agora em maio. 26) E o senhor se lembra do primeiro filme a que assistiu no cinema e o

que isso significou?

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Bom, lá em Aracaju eu gostava muito... Em matéria de cinema, a minha primeira grande admiração foi a Greta Garbo. Eu tinha verdadeira paixão por ela. De tal modo que eu vi um filme dela, chamado “Rainha Cristina”, e me meti na biblioteca de Sergipe, de Aracaju, e passei a ler tudo que dizia respeito à Suécia. Eu sabia a história da Suécia de cor porque ela fazia exatamente o papel da rainha sueca, a rainha Cristina. Até hoje eu tenho paixão por ela. É uma pena que antes de morrer ela mesma comprou os filmes dela e proibiu que fossem passados em qualquer lugar ou qualquer hora. Não se passa mais os filmes da Greta Garbo. Ela mesma comprou os direitos autorais. Não sei por quê. A mulher era um gênio né? “A dama das camélias”, “Rainha Cristina”, filme fabuloso! 27) O senhor acha que de alguma forma o cinema influenciou seu

trabalho como jornalista? Não, não, nenhuma influência não. Eu era do cinema apenas um admirador.

Eu gosto de cinema, eu gosto de ver, mas não sou um cineasta. Meu neto é, eu não. Não tenho qualquer influência não. 28) Digo isso porque quando li “O inverno da guerra” os fatos eram tão

bem descritos, tão bem reportados, que às vezes eu imaginava cenas. (Interrompendo). É. Já me falaram isso. O Carlos Heitor Cony disse: “Puxa,

você tem comunicações que são verdadeiros libretos”. Quer dizer, o filme já está pronto. Foi isso que o Bruno (Cao) também notou né. “Puxa, é fácil filmar o seu livro. Praticamente já está escrito o”, como se diz, “o script.” “Então também está pronto.” 29) O senhor acredita que o surgimento do cinema modificou a percepção

dos leitores em relação ao jornal impresso? Os leitores passaram a ficar mais exigentes em relação ao aspecto imagem?

Não, eu acho que não. Cinema é uma coisa e jornal e imprensa é outra, a não ser documentário. Documentário que não deixa de ser jornal né. O documentário é o jornalismo em imagens né. Mas o filme propriamente dito não.

30) Porque na época em que o senhor cobriu a Segunda Guerra não

existia essa superabundância de imagens como se tem hoje. Na guerra do Iraque os jornais não precisavam nem descrever os fatos.

Exatamente. A guerra do Iraque foi filmada do hotel né. O jornalista da CNN estava filmando do hotel, vendo Bagdá ser bombardeada. É isso que eu digo, hoje você pode fazer uma guerra do quarto do hotel, tal os recursos que você dispõe, internet, telefone, tudo isso né. Você tem auxílio e tudo, te dão dinheiro. A televisão é uma coisa fantástica. É instantâneo né.

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31) Daí o fato de que os jornais hoje em dia estão cada vez mais sem texto e com mais imagens.

É exatamente. Não tem lugar mais nos jornais para as grandes reportagens como se fazia antigamente, grandes no tamanho e também no assunto que tratavam. Porque não há espaço nos jornais tal o afluxo de notícias que chegam diariamente no jornal. Você vai hoje aqui no Brasil nos grandes jornais, no Estadão, no Globo, você passa lá uma noite... Quando eu podia caminhar eu ia lá ver eles, visitar meus colegas, e via o afluxo de notícias que chegava. Era impressionante! De maneira que o papel hoje mais sério no jornal é do editor, porque com aquelas toneladas de notícias e ele saber exatamente o que deve escolher é um trabalho terrível né. Tem que ter um faro jornalístico fantástico.

32) E ainda com essa questão da imagem...

A imagem também, porque hoje a fotografia chega instantaneamente. Impressionante! Hoje você pagina um jornal pela internet. Tudo, tudo. Você faz um jornal pela internet. Você vê que as redações hoje têm cada vez menos pessoas, mas em compensação os jornais têm mais matérias, tais os recursos tecnológicos que você dispõe. Antigamente as redações tinham cem pessoas. Impressionante! Quem cobria o senado, a câmara, polícia, essas coisas, cada delegacia tinha que ter um repórter, igreja. Era um inferno. Hoje não, uma grande redação, como O Globo, tirando os correspondentes internacionais e a televisão, mas de jornal propriamente, hoje 30 pessoas fazem O Globo, não há a menor dúvida.

33) Muitos teóricos da comunicação falam que os jornais impressos

viraram televisões impressas. Exatamente.

34) Durante a Segunda Guerra como era sua relação com as fontes? Bom, no princípio, como a FEB tinha sido criada, como todo o exército

brasileiro tinha sido criado, sob a tutela de Getúlio, então o soldado brasileiro era um fascista né. Havia uma minoria de oficiais, geralmente os convocados, porque grande parte da FEB foi de convocados. Um terço da FEB não era de soldados nem de oficiais efetivos, foi convocado. Essa parte convocada tinha vários democratas compreendeu? Que não gostava do Getúlio. Mas o grosso tinha sido criado na escola de Getúlio. De maneira que quando nós – eu, dos Diários Associados, o Braga, do Diário Carioca, e o Squeff, do Globo – chegamos lá, fomos recebidos com grande desconfiança, até que eu resolvi procurar o general Mascarenhas de Moraes. Aproveitei que chegasse na Itália os primeiros recortes das nossas crônicas, os despachos meus, do Braga e do Squeff, me armei com esses recortes e fui pro Mascarenhas e disse: “Olha general. Está aqui o que nós publicamos. O senhor vê que nós viemos aqui para ajudar a FEB, para elogiar a FEB. Eu estou sentindo que há um certo arredio. Quando nos aproximamos dos oficiais eles se afastam, não

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respondem, não nos procuram.” Quando o Mascarenhas viu aqueles despachos, todos elogiosos, porque realmente a FEB merecia todos os elogios, então a postura dele diante de tudo mudou radicalmente. Ele começou a marcar conversas semanais para conversar abertamente. Dizia a nós: “Isso eu vou cortar, mas vocês não contem.” E realmente quando ele viu que nós não iríamos trair o pedido dele, compreendeu, ele já viu que podia confiar em nós, então ele se abria quando conversava com a gente e a coisa mudou radicalmente depois que esses primeiros despachos chegaram lá. Mas no princípio foi muito duro. Uma barreira terrível. A gente não podia vencer. O que falava mais conosco era o Cordeiro de Farias, porque além de general, um grande general, foi o comandante da artilharia, ele era um general político, já tinha sido interventor no Rio Grande do Sul, e estava acostumado em tratar com jornalistas, sempre foi ameno e nos recebia muito bem compreendeu? Um dos soldados, um sargento, que fazia parte do estado maior dele era o filho do Osvaldo Aranha, o Osvaldo Aranha Filho, que também gostava muito de jornalismo. De maneira que a gente sempre estava no PC do Cordeiro. E com ele eu nunca tive dúvida. Ele se abria com a gente. Às vezes ele dizia: “Olha, eu vou botar isso, mas vocês não podem contar.” Ele sabia que nós íamos... Era um trabalho muito fácil. 35) O exército americano também checava o material que vocês

escreviam? O exército americano delegou isso ao Boavista. Mas a censura era muito

amena. Era só evitar dizer o nome exato das cidades onde estávamos. Ao invés de dizer que estávamos em Porreta-Terme, dizia-se Cota 6, para evitar que os alemães tomassem conhecimento. 36) Então o relacionamento com os soldados era bom.

Ah, fantástico. Particularmente eu, porque, pelo seguinte: porque todo sábado, como eu tinha franquia telegráfica e sabia das dificuldades dos soldados brasileiros de se comunicar aqui com a casa deles, com a mulher, a noiva, a mãe, eu tirava sábado para visitar toda a frente e trazia os recadinhos deles. Então eles organizavam almoço para mim na frente. Geralmente tinha um bom cozinheiro compreendeu? Faziam feijoada, macarronada, naquele frio terrível. Eu gostava muito daquele convívio com os soldados brasileiros. E eles gostavam de mim porque eu era o elo entre eles e a casa deles aqui no Brasil. Não havia outro meio deles transmitirem, de se comunicarem, que não eu. 37) Em um dos textos de “O inverno da guerra” o senhor narra a visão de

um dos soldados que, no dia de Natal, vê um foguete iluminativo disparado pelos alemães cair em cima de uma árvore desgalhada. E esse soldado então percebe aquela cena como se fosse a representação de uma árvore de Natal em meio à guerra. Para mim é um trecho significativo de seu livro.

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Ah, o espírito de Natal na guerra então... É um dia tristíssimo né. Aquelas lembranças todas. Muitos não iam voltar, ou iam voltar aleijados. Era uma coisa terrível. 38) Logicamente houve momentos de perigo durante seu trabalho.

É o perigo que todo soldado passou né. Havia o perigo de levar uma bala, o perigo de pisar numa mina né, quando o grupo se avançava, as minas ainda não haviam sido retiradas, de você pisar numa mina, porque os alemães eram gênios de despistar né, de esconder a mina. Você às vezes pisava sem saber. Muita gente morreu disso compreendeu? Eu tive sorte, não tive nada com isso. O Braga ainda levou um tiro no polegar da mão esquerda já no final da guerra, mas eu não. Teve um estilhaço de granada que atravessou meu capacete, mas não chegou a me... Eu estava exatamente no PC do Cordeiro de Farias quando caiu uma granada e um dos estilhaços pegou no meu capacete. Se eu estivesse sem capacete eu estava fulminado na hora. Mas eu dei uma sorte, eu tive muita sorte na guerra. 39) Houve recomendações dos Diários Associados, de Assis

Chateaubriand, em relação à linha que o senhor deveria seguir na cobertura da guerra?

Não, não. O único pedido que o Chateaubriand me fez foi desse jeito: “Seu Silveira!” – ele falava assim – “O senhor vai pra guerra seu Silveira! Mas não me morra seu Silveira! Não me morra! Se o senhor morrer eu o demito na hora seu Silveira! O senhor vai matar alemão seu Silveira!” Ele só me pediu para não morrer se não ele me demitia (risos). Eu tinha 26 anos de idade. Até hoje eu não sei porque o Chateaubriand me escolheu porque já havia lá o Carlos Lacerda que queria ir, o David Nasser queria ir, o Edmar Morel, vários queriam ir né. Mas eu não sei porque, eu só tinha dois meses de Associados e ele resolveu que queria eu. Fiquei completamente surpreso. Jamais poderia imaginar que seria eu o escolhido. 40) E quando o senhor foi o escolhido, bateu um receio?

Não, eu estava doido para ir. Mas nunca nem entrei no páreo né, porque os outros pretendentes eram tão fortes, além de serem amigos pessoais do Chateaubriand, como no caso do Carlos, do David Nasser, do Morel, já estavam lá há mais tempo, muito mais tempo né. E eu tinha dois meses. Então eu não agüentava essa briga de jeito nenhum. Mas aí ganhei. Ganhei sem entrar. Porque Chateaubriand me escolheu até hoje é um mistério para mim. Mas ele ficou satisfeito. Quando eu cheguei, ele fez um discurso no senado. Ele era senador. Fez um artigo, me levou para almoçar no Country Club, na Gávea, coisa que ele só fazia com pessoas assim né, me tratou muito bem o Chateaubriand.

41) O senhor foi o mais novo correspondente de guerra do Brasil.

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Fui. E eu era muito paparicado pelos outros correspondentes. Mas depois chegou uma moça da união sul-africana, com 25, uma beleza, uma loirinha linda, então ela tomou o meu posto, me destronizou. Que beleza de mulher! Uma garota de 25 anos linda! Ela era parente do Botha (Louis), que naquele tempo era o presidente da União Sul-africana, o homem do apartheid, terrível né. 42) E ela ia para o front também?

Não, ela ficava em Roma, porque ela só cobria os aliados. Ela podia ir, porque havia uma divisão sul-africana lá. Mas eu não sei se ela foi. Eu nunca a vi. Na FEB ela nunca esteve. Quem esteve na FEB uma vez foi a Clare Boothe Luce, mulher do diretor da Life, uma revista americana que existia na época, a maior revista do mundo né. Essa esteve lá. 43) Gostaria de voltar à época em que o senhor retornou ao Brasil.

Aconteceu o seguinte: eu tinha saído dos Associados né. Quando eu cheguei, o Samuel Wainer me convidou e disse: “Olha Joel, agora o Diretrizes” – que era o semanário onde eu trabalhava – “passou a ser jornal, você tem que voltar pra lá.” Daí eu disse: “Mas o Samuel, o Chateaubriand tem me tratado muito bem, tem me pago tanto bem.” “Mas seu Joel, você é um dos fundadores do Diretrizes. Você tem que voltar.” Eu fui para o Chateaubriand e disse: “Olha doutor Assis, acontece que eu estou completamente encabulado. O senhor tem me tratado muito bem, me pago bem, mas acontece que o senhor sabe que eu vim aqui para encher seu saco.” “Tá bom seu Silveira, o senhor quer ir, pode ir. Agora, o senhor preste atenção no que eu vou dizer: O senhor vai se arrepender! O senhor vai voltar!”. E não deu outra. O Samuel tinha feito Diretrizes diário, transformando a revista em diário, vendeu o jornal para o grupo getulista lá, eu era violentamente contra o Getúlio e eu tive que sair né. Fiquei desempregado. Isso foi em 46. Por orgulho besta não quis voltar para o Chateaubriand. Eu tenho a impressão de que ele me aceitaria de volta. “Eu disse ao senhor que o senhor se arrependeria.” Mas foram dois anos aí sem... Eu que tinha chegado no alto da carreira como correspondente, de repente me vi sem nada. Tive que começar tudo de novo com essa canalhice que o Samuel fez comigo. A história foi essa.

44) E o que fez a seguir?

Depois eu consegui um emprego no Correio da Manhã com a Niomar Muniz Sodré né, ali com o Paulo Bittencourt. Aí fui para o Diário de Notícias, onde fiquei 17 anos. Lá no Diário de Notícias eu fui diretor do Mundo Ilustrado, que era uma revista do Diário de Notícias, e depois eu fui para a Manchete, onde eu fiquei 20. Aí com a Manchete eu comecei a correr o mundo todo né.

45) E como foi a receptividade dos leitores quando o senhor voltou da

guerra?

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Ah, eu recebia muita carta. Mais agradecendo, mães. Eu me lembro que uma camponesa, que tinha fazenda aqui do estado do Rio, de repente surge lá em casa – não sei como essa mulher conseguiu meu endereço –, aparece lá com um porco de presente. “Mas minha senhora o que que eu vou fazer com esse porco? Pelo amor de Deus!” Compreendeu? Davam presentes, me telefonavam convidando para visitar as cidades. Eu fiquei muito popular com o pessoal. E na colônia italiana então foi formidável, porque havia pais que moravam aqui no Brasil que não viam os filhos há dez anos, 5 anos, 6 anos. A guerra estourou e eles perderam o contato. E lá eu transmitia os recados desses filhos de italianos para os pais que moravam aqui. Então eles ficaram profundamente gratos comigo. A colônia italiana aqui no Rio me ofereceu um jantar fabuloso no Automóvel Clube, com o embaixador italiano, o cônsul italiano. Eles ficaram muito agradecidos com esse negócio.

46) E hoje qual a avaliação o senhor faz de seu trabalho na Itália?

Bom, eu acho que fiz um bom trabalho né, tanto assim que estão reeditando meus livros. Eu não pedi para ser reeditado. Eu acho que fui, sem qualquer orgulho, eu sou incapaz disso, e também odeio a falsa modéstia, eu acho que fui o melhor correspondente de guerra que o Brasil já teve. Não tenho a menor dúvida. E os próprios reconhecem isso, meus colegas aí. Porque eu me dediquei a fundo para essa tarefa né. Não dormia, dormia pouco nos instantes mais avessos, mais ingratos, compreendeu? Mas eu fui até o fim. Não tenho dúvida.

47) Seu estilo jornalístico é considerado precursor do jornalismo literário no Brasil. Como vê essa relação entre jornalismo impresso e literatura?

Não, eu nunca notei isso não. Eu sempre escrevi dessa maneira, compreendeu? Nunca tive pretensão para isso. Depois é que descobriram isso, que eu era o criador do novo jornal no Brasil. Nunca me ocorreu que tivesse sido, compreendeu? Que era o novo Truman Capote, aquela coisa. Eu nem conhecia Truman Capote, nunca tinha lido Truman Capote. Eu me lembro que quando publiquei o primeiro livro de contos, que eu também fazia uma ficção né, o Mário de Andrade escreveu uma crítica no Diário de Notícias, ele era o crítico oficial do Diário de Notícias, elogiando muito o livro, mas dizendo que tinha grandes influências da Katherine Mansfield. Olha, eu nunca tinha ouvido falar da Katherine Mansfield. Nem falar, se dissesse que era marca de biscoito para mim... E caí na asneira de dizer isso. Eu devia ter ficado calado, porque o Mário de Andrade era o supra-sumo da crítica nacional, um elogio dele era mais um... Eu disse não, que ele estava enganado, que eu nunca tinha lido. E como ele era muito vaidoso, ele veio com um artigo violento contra mim. 48) O senhor então escreveu um artigo dizendo que não havia essa

semelhança?

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É, escrevi que não havia. Eu devia ter ficado calado né. Ele escreveu um artigo, “O tostão contra o milhão”, eu era o “tostão”, ele era o “milhão” né. Quem saiu em minha defesa foi o Graciliano Ramos né. Ele disse: “Calma Mário, vai com calma! Esse tostão de hoje pode ser o milhão de amanhã. Você está sendo muito perverso com o rapaz.” Compreendeu? Durou uns dois meses essa briguinha aí.

49) O que Mário de Andrade dizia exatamente?

Ele elogiava muito o livro, mas dizia isso, que eu tinha influência da Katherine Mansfield. Eu nunca tinha lido Katherine Mansfield. Só vim a lê-la dez anos depois. 50) E quando o senhor disse isso...

Ele ficou irritadíssimo, compreendeu? Ele era muito vaidoso, o Mário né. Era um mulato pachola. Vaidoso pra burro né. Era o Gilberto Gil daquele tempo. Era um pacholão, vaidoso, falava difícil. 51) Ele não aceitou o que o senhor disse.

Não, não aceitou de jeito nenhum. Veio violento para cima de mim. 52) O que ele argumentava?

Que eu era o tostão, não podia contraditar ele. Aquela coisa dele, de vaidoso. E ficou meu inimigo a vida inteira né. Foi burrice minha. Eu nunca fui um grande diplomata não. Às vezes eu meto os pés pelas mãos. É o diabo. 53) Em relação àquele período, de controle da imprensa por parte do

governo de Getúlio, o senhor tentava escrever seus textos com informações nas entrelinhas? Digo, para driblar a censura?

A gente tentava né. Aquela literatura subliminar, mas não dava certo né, mesmo porque a censura era muito esperta também né. Descobria logo. Aí dava problema, não para a gente, mas para o diretor do jornal. Aí a gente evitava né. Escrevia sobre literatura, essa coisa toda, tal, compreendeu? Não cabia não. O DIP era terrível né. Era de grandes profissionais da imprensa também. De maneira que eles sabiam todos os truques. Eles também eram jornalistas né. Era muito difícil enganá-los, muito mesmo.

54) A mistura de jornalismo e literatura gera também uma confusão entre

realidade e ficção. Como o senhor analisa essa questão? Bom, o mau repórter é aquele que quer inventar, quer enfeitar a notícia. Eu

acho a notícia uma coisa muito sagrada. A notícia é a notícia, o fato é o fato, você não pode acrescentar nenhuma coisa ao fato. Agora, você tem várias maneiras de você retratar aquele fato. Eu tenho uma, você tem a sua, essa coisa à toa, compreendeu? Essa minha maneira que eu sempre tive em retratar

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o fato é que criou essa trajetória do novo jornalismo né. “Ah, o Joel Silveira é o inventor do novo jornalismo.” Eu não sei lá se fui o inventor, sei que minha maneira de retratar o fato era essa, sem trair absolutamente o fato. Agora, é a maneira de ver, de retratar né. É como o grande fotógrafo e o fotógrafo menor. O grande fotógrafo fotografa uma mesa e transforma aquela fotografia numa obra-prima, e às vezes o mau fotógrafo fotografa uma revolução e a coisa fica tão má que você não sente. Por exemplo, o Cartier-Bresson, grande fotógrafo, daqueles que fizeram a cobertura da guerra civil espanhola, e um fotógrafo mambembe aí, que fotografa mas não transmite né. É a mesma coisa de repórter né, de jornalista.

55) Em sua opinião qual seria a grande característica do texto de Joel

Silveira? Foi isso que eu disse. É minha maneira de escrever. Não sou eu que me

defino, os críticos que me definiram, compreendeu? Disseram que eu fui o criador do jornalismo literário, ou do novo jornalismo, compreendeu? Mas nunca nenhum deles me acusou de trair o fato. Eles se referem apenas à minha maneira de escrever, compreendeu? Que é muito minha, não tive influência de ninguém. Eu comecei a escrever, a fazer jornal, com 14 anos de idade. Vim para o Rio com 19, nunca tive influência nenhuma, e as coisas que eu lia era Machado de Assis, já tinha o Graciliano. Eu sempre gostei dos bons escritores, mas nunca me influenciaram, mesmo porque o Graciliano não tem nada a ver com jornalista. Não tem nada a ver com jornalismo. Foi espontâneo, nasceu em mim. Não me ensinaram a escrever como eu escrevo, compreendeu?

56) Os textos de “O inverno da guerra” saíram nas edições dos Diários

Associados exatamente como aparecem no livro ou houve alguma edição?

Exatamente. No primeiro livro, chamado “Histórias de pracinhas”, a editora Leitura tirou duas edições. Lá (editora Objetiva) eles fizeram a seleção, eles mesmos fizeram, eu nem sei porque eu estou lendo mal, estou quase cego, de maneira que eu nem sei até hoje que crônicas eles escolheram compreendeu? Mas como todo mundo tem elogiado o livro eu tenho a impressão que eles escolheram realmente as melhores. 57) A primeira crônica chama-se “O primeiro dia”.

É, “O primeiro dia”, quando estávamos chegando em Nápoles né. Se não fosse um major brasileiro que apareceu... Eu não sabia para onde ir. A cidade devastada, um frio desgraçado e eu com duas malas: “E aí agora? Para onde é que eu vou?” Aí caiu do céu esse major que me levou até Roma.

58) Os títulos de suas crônicas também foram mantidos?

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É, exatamente. Eles não mudaram nada. Revisão assim, ortográfica. Tinha a revisão da Leitura que era muito má né. Depois eles concertaram lá, compreendeu? 59) Comparando os textos de sua cobertura da Segunda Guerra com os

que saem sobre a Guerra do Iraque na atualidade percebemos como antes o jornalismo preservava mais espaço para a parte escrita.

É tudo telegrama. Não há lugar para texto né. Porque a coisa é tão... É diária né. Você pode vender só o livro. Depois que a Guerra do Iraque terminar o que vem aí de livros sobre o Iraque! É como depois da Segunda Guerra, uma avalanche de livros. 60) Muitos acreditam que essa guerra no Iraque nem irá terminar.

É. Os americanos se afundaram. É a mesma coisa do Vietnã. Ganharam, mas não levaram. Ganharam não, perderam. Do Iraque, aquilo é um poço sem fundo. Porque veja, até abril, se chegar abril e o Saddam Hussein não for enforcado ele não pode ser mais morto (Saddam foi enforcado no dia 30/12/2006). Pelas leis muçulmanas, ninguém com mais de 70 anos pode ser morto. Mas se matarem ele, ele vai virar um mártir, se não matarem e ele ficar em prisão perpétua vai virar um herói. A presença do Saddam Hussein vai ser eterna na história do Iraque. Sem dúvida. O país está dividido. São os xiitas, são os sunitas, são os curdos. Essas três etnias não se unem de jeito nenhum. Não há hipótese. Aquilo vai se esfacelar, porque o Iraque foi inventado pelo Churchill (Winston). Não havia o Iraque, o Churchill é que o inventou pra essas três etnias e formou o estado, e falso, completamente né. O ideal seria que continuasse os curdos, os xiitas e os sunitas em três estados. Mas o Churchill, não sei porquê, interesse inglês né, de dominar mais facilmente, criou essa coisa artificial. E não está dando certo igual está se vendo aí. Todo dia é um massacre só. Hoje de madrugada foi mais 45 (mortos). É diário né. E outra coisa que surpreendeu o mundo foi a arrogância com que o Saddam está enfrentando os juízes. Isso avacalhou. Isso tem repercutido junto à etnia dele, que são os sunitas. O prestígio dele tem aumentado terrivelmente com esse julgamento. Ele está se portando de uma maneira, de uma bravura, sabendo que vai morrer, mas desacata juiz e recita alto os versículos lá do Alcorão, compreendeu? Desafiador né. E isso, de certa maneira, tem repercutido no Iraque de uma maneira fantástica. Daí esses constantes massacres, que vão ser cada vez maiores. Ele ainda está liderando, ele ainda é o presidente dos sunitas, não tenho a menor dúvida. 61) Com isso o Bush é que está se dando mal.

Ah, esse é um porcalhão, é um homem de uma burrice tremenda. É um caipira do Texas. Ele é de uma ignorância total. Essa mulher (Condoleezza Rice) que realmente é que está governando, mas governando mal, porque ela é bélica né. Ela quer a guerra. A mulata é linda mas é uma filha da mãe né. É linha dura mesmo. E ele tem uma influência dela fantástica, tremenda. Mas ele já perdeu as eleições no senado, na câmara. Agora perdeu no supremo. Ele

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não está governando. Quem está governando é ela. Aliás, quem está governando nem é mais ela, agora é o congresso. Ele tem que retirar aquelas tropas lá se não... Bom, é esperar que ele saia dali né. Eu tenho a impressão que quem vai ser eleito é... A próxima presidente da república é uma mulher, é a Hillary Clinton, a senadora por Nova York. Mulher fabulosa! Portou-se muito bem com aquela safadeza do marido, que, aliás, foi um grande presidente, tirando aquele criancismo dele. Foi um grande governo. Mas eu tenho a impressão que a mulher dele é que ganha isso. Sem dúvida. 62) O que o senhor acha do jornalismo que se faz hoje no Brasil?

Ah, o Brasil tem hoje uma grande imprensa. Você pega o Globo aí, o Estadão, a Folha, compara aí com o New York Times né, não tem nada a perder os jornais brasileiros compreendeu? Em absoluto. São grandes jornais né. A edição dominical do Estado, da Folha, é igual a do New York Times, do Washington Post. Acho a imprensa brasileira muito melhor. É melhor do que a italiana, por exemplo. Eu considero os jornais nacionais sob o ponto de vista de paginação, de aspecto gráfico e de texto muito melhores que os italianos. A italiana (imprensa) é muito verborrágica compreendeu? Muito palavrosa, e o brasileiro conseguiu poder de síntese compreendeu? Fabuloso. Por isso a carência de espaço né. Eu considero uma grande imprensa. Não tenho a menor dúvida. 63) Apenas o espaço para as grandes reportagens nos jornais impressos

sumiu. É. Isso não há mais. A não ser nos suplementos especiais né. Morte do

Papa. É exatamente por isso que os jornais publicam o suplemento especial sobre a vida do Papa, o que ele foi, o que ele representou, o que foi o papado dele. Aí bom, aí eles dão cobertura, mesmo porque todos os grandes jornais hoje do Brasil tem os seus correspondente né. Antigamente os jornais brasileiros se alimentavam do que a Associated Press, a United Press, a Reuters, a France Press mandavam, que era a visão estrangeira do fato. Hoje não. Hoje se tem a visão brasileira porque se tem excelentes correspondentes. Esses correspondentes da tv Globo, por exemplo, são maravilhosos. São grandes jornalistas, grandes correspondentes, e dão a visão brasileira dos fatos. Hoje não se restringe a ter uma visão americana, ou francesa, ou inglesa dos fatos. Melhorou 100%. Os jornais brasileiros eram uma coisa horrorosa, tinha-se 30 deles e você comprava, por exemplo, O País não para ler a notícia, mas para ver aqueles artigos e teses de Rui Barbosa, compreendeu? Você comprava O Diário (Carioca) para ver os artigos do J. Eduardo Macedo Soares. Não havia notícias. O Brasil estava isolado. 64) Isso na década de 1930?

É, de 30. Depois da Revolução de 30 é que a coisa melhorou. Porque o Brasil se aproximou mais dos Estados Unidos né. Aí começou a sofrer a influência americana em tudo né, não só na imprensa, na literatura e tudo né.

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ANEXO B

Correspondência eletrônica mantida com Sérgio Dávila RE: entrevista De: Sergio Davila ([email protected])

Você pode não conhecer este remetente. Marcar como confiável | Marcar como não confiável Enviada: quarta-feira, 31 de janeiro de 2007 7:35:20 Para: 'fernando miranda' ([email protected])

caro fernando, com o maior prazer. um abraço, sd -----Original Message----- From: fernando miranda [mailto:[email protected]] Sent: Friday, January 05, 2007 2:47 PM To: [email protected] Subject: entrevista Prezado Sérgio Dávila, Meu nome é Fernando Albuquerque, sou jornalista e curso mestrado na cidade de São João del-Rei (MG). O motivo de meu contato é que estudo a questão do impacto das tecnologias de comunicação no processo de cobertura jornalística de guerras. Um dos livros que estou pesquisando é justamente "Diário de Bagdá..." (o outro é "O inverno da guerra" e já inclusive entrevistei o Joel Silveira) e gostaria de saber de sua disponibilidade para uma entrevista (que pode ser realizada por e-mail, uma vez que sei que atualmente está morando nos EUA). Desde já agradeço sua atenção e fico no aguardo de uma resposta. Um abraço, Fernando

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RE: entrevista De: Sergio Davila ([email protected])

Você pode não conhecer este remetente. Marcar como confiável | Marcar como não confiável Enviada: terça-feira, 10 de abril de 2007 7:08:43 Para: 'fernando miranda' ([email protected])

caro fernando, tudo bem? em primeiro lugar, desculpe a demora na resposta. em segundo, quero saber se você tem condições de ligar aqui para que eu responda as perguntas por telefone, pois ando correndo demais e temo não conseguir responder a tempo. um abraço, sd -----Original Message----- From: fernando miranda [mailto:[email protected]] Sent: Thursday, March 08, 2007 12:17 PM To: [email protected] Subject: entrevista Prezado Sérgio, Como combinamos, envio agora uma pauta com as perguntas sobre seu livro e a cobertura realizada durante a Guerra do Iraque. Conforme expliquei, sou mestrando e estou estudando o impacto das tecnologias de comunicação no processo de cobertura jornalística e na representação das guerras Como verá, a pauta aborda vários outros assuntos e me preocupei em fazer algumas perguntas semelhantes às feitas a Joel Silveira (como sobre cinema, televisão, literatura e jornalismo, por exemplo, porque também é importante para minha pesquisa contextualizar os momentos culturais da época em que Joel atuou e de sua - nossa). Fique à vontade para responder da forma que lhe for mais prática (sei que sua vida deve ser uma correria só). Desde já agradeço sua atenção. Abraços,

buquerque fernando al

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RE: entrevista De: Sergio Davila ([email protected]) Enviada: quinta-feira, 21 de junho de 2007 16:20:35 Para: 'fernando miranda' ([email protected])

caro fernando, posso responder até domingo? abraço, sd -----Original Message----- From: fernando miranda [mailto:[email protected]] Sent: Tuesday, June 12, 2007 11:20 AM To: [email protected] Subject: entrevista Prezado Sérgio, Sei que sua vida deve estar uma correria só. Mas necessitava saber a respeito daquele pedido de entrevista para minha dissertação de mestrado. Seria possível informar-me o número de um telefone em que pudesse conversar com você? Talvez eu pudesse também resumir um pouco aquela pauta, deixando só as perguntas que são mais importantes para meu trabalho (talvez assim ficasse mais prático para vc). Bom, aguardo um retorno. Abraços, fernando

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RE: entrevista De: Sergio Davila ([email protected])

Você pode não conhecer este remetente. Marcar como confiável | Marcar como não confiável Enviada: sexta-feira, 24 de agosto de 2007 6:22:08 Para: 'fernando miranda' ([email protected])

fernando, vamos lá. você pode me ligar amanhã (sexta)? abraço, sd -----Original Message----- From: fernando miranda [mailto:[email protected]] Sent: Friday, August 10, 2007 5:25 PM To: [email protected] Subject: entrevista Importance: High Prezado Sérgio, Aqui é o Fernando Albuquerque (a pessoa que faz mestrado e pesquisa livros-reportagem produzidos em contexto de guerras, tá lembrado?). Bom, acessei o seu blog (aliás, parabéns, ele é bastante interessante) e vi que esteve fora uns dias. Continuo precisando daquela entrevista, pois será fundamental para a conclusão de minha dissertação. Diante disso, resolvi dar uma enxugada no roteiro de perguntas, deixando aquelas que considero essenciais para a realização de meu trabalho. Te envio agora em arquivo anexo a nova pauta (com bem menos perguntas) para que consiga responder mais rapidamente. Se quiser, posso te ligar também (veja aí o que é mais prático pra vc). Bom, gostaria sinceramente que me avisasse se não for possível me atender (pois nesse caso terei tempo para adaptar meu trabalho). Um abraço e fico no aguardo de uma posição. fernando

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RE: entrevista De: Sergio Davila ([email protected]) Enviada: quarta-feira, 29 de agosto de 2007 1:44:10 Para: 'fernando miranda' ([email protected])

amanhã, às 12h daqui (13h daí), pode ser¿ -----Original Message----- From: fernando miranda [mailto:[email protected]] Sent: sexta-feira, 24 de agosto de 2007 14:08 To: [email protected] Subject: RE: entrevista Posso sim Sérgio, Que horas? >From: "Sergio Davila" <[email protected]> >To: "'fernando miranda'" <[email protected]> >Subject: RE: entrevista >Date: Fri, 24 Aug 2007 00:21:53 -0300 > >fernando, >vamos lá. você pode me ligar amanhã (sexta)? >abraço, >sd

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ANEXO C

Reproduções de páginas do livro Diário de Bagdá

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