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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(5):1207-1214, set-out, 2002

ARTIGO ARTICLE

As representações sociais e a experiência da doença

Social representations and the experience of illness

1 Pós-Graduação em Saúdeda Criança e da Mulher,Instituto Fernandes Figueira,Fundação Oswaldo Cruz.Av. Rui Barbosa 716,2o andar, Rio de Janeiro, RJ22250-020, [email protected]@uol.com.br2 Faculdade de Educação,Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Rua São Francisco Xavier524, 12o andar,Rio de Janeiro, RJ 20550-013, [email protected]

Romeu Gomes 1

Eduardo Alves Mendonça 1

Maria Luiza Pontes 1,2

Abstract This article analyzes the relationship between social representations and the experi-ence of illness. The study is a critical review of the debate on illness. The work focuses on (a) a re-view of the concept of “social representations of illness”; (b) key aspects of the experience of ill-ness and; (c) principles for understanding the illness process. The authors also emphasize thenecessary link between the experience of illness and the context of its material and symbolic pro-duction.Key words Disease; Health-Disease Process; Social Representation

Resumo O artigo objetiva analisar as relações entre representações sociais e a experiência dadoença. O estudo é uma revisão crítica sobre a discussão da doença. O trabalho é constituído de:(a) resgate da utilização do conceito de representações sociais da doença; (b) aspectos sobre a ex-periência da doença; e (c) princípios para a compreensão do processo do adoecer. Como conclu-são, os autores destacam a necessária articulação entre a experiência da doença e seu contextode produção material e simbólica.Palavras-chave Doença; Processo Saúde-Doença; Representação Social

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Considerações iniciais

Cada vez mais verificamos que, no campo dasaúde coletiva, são desenvolvidos estudos so-bre as representações da doença e da saúde. Acategoria representações sociais (RS) tem sidoobjeto de reflexão, sendo utilizada como re-ferencial teórico-metodológico nesse campo.Muitos estudos baseiam-se na teoria das repre-sentações sociais (Moscovici, 1978) e outros, aexemplo de Minayo (1994) e Cardoso & Gomes(2000), fundamentam-se em outros referen-ciais das ciências sociais.

Apesar de as chamadas RS serem ampla-mente utilizadas na pesquisa social em saúde,acreditamos que tanto o seu conceito como oseu uso devam ser mais problematizados. Jun-to a essas considerações, como bem observaHerzlich (1991) na explicação das condutas,outros aspectos, além das representações, de-vem ser levados em conta. Segundo a autora, oprincipal limite da noção de representação so-cial reside na generalidade do nível de análiseque ela constitui, fazendo dela uma metano-ção. Ciente desse limite, “uma das tarefas do so-ciólogo pode ser a de indicar de que modo essasrepresentações estão enraizadas na realidadesocial e histórica, ao mesmo tempo em que con-tribuem para construí-la” (Herzlilch, 1991:32).

Alves & Rabelo (1998:108) trazem um deba-te no sentido de se repensar os estudos sobreas RS e as práticas em saúde e doença, assina-lando que tem havido uma “nítida relação dedeterminação das representações sobre as práti-cas, de tal forma que essas últimas são vistas co-mo passíveis de ser deduzidas do sistema cons-truído de representações”.

Segundo os autores, a cisão entre represen-tações e práticas se relaciona a outras dicoto-mias já conhecidas entre ação e estrutura, sub-jetividade e objetividade, indivíduo e socieda-de, corpo e mente. Criticando essa perspectiva,propõem deslocar a doença “como fato (sejadado empírico ou signo) para o curso da doençacomo experiência” (Alves & Rabelo, 1998:113).Concluem que as representações não são siste-mas fechados que determinam as práticas, umavez que conformam um conjunto aberto e he-terogêneo que é continuamente refeito, am-pliado, deslocado e problematizado durante asinterações indivíduo-indivíduo e indivíduos emeio. Nesse sentido, recomendam uma análiseque contemple “as formas temporalmente cir-cunscritas pelas quais os atores imputam e ne-gociam significados para suas experiências, vi-venciam dificuldades de sustentar esses signifi-cados, delineiam e levam a cabo projetos e es-tratégias para se (re) situar no mundo social da-

do o evento/problema da doença” (Alves & Ra-belo, 1998:119).

É no bojo dessa discussão que situamos opresente trabalho, numa tentativa exploratóriainicial, contemplando novas emergências. Nes-se sentido, objetivamos analisar as relações en-tre os pólos representacional e vivencial do pro-cesso de adoecimento, propondo princípios pa-ra se trabalhar com a possível complementari-dade existente entre eles.

Com esse debate, oriundo da reflexão e daspráticas sociológica e antropológica, acredita-mos que as ações em saúde coletiva possamdar continuidade ao seu repensar para con-templar, ao mesmo tempo, as dimensões sociale individual da doença, refletidas nas perma-nências culturais das representações e presen-tes nas experiências individuais que ocorremno processo de adoecer.

Em termos metodológicos, o desenho dopresente estudo se caracteriza como uma revi-são crítica acerca da temática que nos propo-mos a discutir. Entretanto, ele se utiliza dessarevisão para apontar caminhos que permitamdiscutir o avanço de métodos que se apliquemao estudo das representações e vivências doadoecer. Para isso, procuramos pontuar aspec-tos teóricos para dar suporte ao levantamentode questões metodológicas no trato das rela-ções entre o representar e o vivenciar a doen-ça. Nessa discussão, pretendemos seguir o se-guinte percurso: (a) resgate da utilização doconceito das representações sociais para acompreensão da doença, dentro de uma óticasócio-antropológica; (b) caracterização do pro-cesso da experiência da doença e (c) apresen-tação de princípios para se avançar nas ques-tões de métodos, que se aplicam à temática.

Representações sociais e doença

Durkheim, na sociologia, foi quem primeiroabordou a discussão das representações coleti-vas. Para ele, “os primeiros sistemas de repre-sentação que o homem fez para si do mundo ede si mesmo são de origem religiosa” (Dur-kheim, 1998:154). Essas representações, segun-do esse autor, “traduzem a maneira como ogrupo se pensa nas suas relações com os objetosque o afetam” (Durkheim, 1999:79). Nesse sen-tido, as representações coletivas não seriamapenas o produto de uma imensa cooperaçãoocorrida num determinado espaço, mas tam-bém estariam relacionadas ao acúmulo de ex-periências atravessadas por longas séries degerações. Ainda segundo ele, as representaçõescoletivas, por terem características de fato so-

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cial, assim como as instituições e estruturas,são exteriores ao indivíduo e exercem coerçãosobre as consciências individuais.

Herzlich (1991:23) considera que Durkheimenfatizava a primazia do pensamento socialsobre o pensamento individual, destacandoque “a representação coletiva não se reduz à so-ma das representações dos indivíduos que com-põem a sociedade. Ela é também uma realidadeque se impõe a eles ...”.

Em relação à visão de Durkheim, Minayo(1994) observa que essa concepção positivistatem sido bastante criticada. Segundo a autora,do ponto de vista da sociologia compreensiva eda abordagem fenomenológica, a crítica que seressalta é a que questiona o poder de coerção,quase que absoluto, atribuído à sociedade so-bre os indivíduos. Já do ponto de vista marxis-ta, “a visão durkheimiana elimina o pluralismofundamental da realidade social, em particularas lutas e antagonismos de classe” (Minayo,1994:92).

Moscovici (1978), partindo do conceito derepresentações coletivas de Durkheim, cria umateoria das representações sociais. Farr (1994),ao diferenciar esses dois conceitos, destacaque o de Durkheim é mais apropriado para umcontexto de sociedades menos complexas, en-quanto o de Moscovici (1978:44-45) se volta pa-ra as sociedades modernas, que “são caracteri-zadas por seu pluralismo e pela rapidez comque as mudanças econômicas, políticas e cultu-rais ocorrem. Há, nos dias de hoje, poucas repre-sentações que são verdadeiramente coletivas”.

A teoria de Moscovici (1978:48) partiu dapremissa de que não há “um corte dado entre ouniverso exterior e o universo do indivíduo (oudo grupo)”, chamando a atenção para a inter-relação entre sujeito e não-sujeito, e sujeito eoutro sujeito.

Segundo Herzlich, a noção de RS de Mosco-vici é uma tentativa de tratar a influência recí-proca da estrutura social e a do sujeito. No en-tanto, sua ênfase tendeu mais para um lado: “areflexão se apoiava mais no sujeito ativo, cons-trutor do mundo a partir dos materiais que asociedade lhe fornece, do que na própria estru-tura social” (Herzlich, 1991:24).

Minayo (1992, 1994) trabalha o conceito derepresentações sociais dentro da sociologiaclássica, ampliando o debate acerca da temáti-ca em questão. A autora faz uma análise de co-mo essa expressão, para além da concepção deDurkheim, pode ser compreendida com baseem diferentes pontos de vista de outros teóri-cos, a exemplo de Marx, Weber e Schutz, mes-mo que estes não tenham explicitamente tra-balhado com esse conceito.

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A autora citada já nos chamava a atençãopara o fato de que a construção das RS implica,necessariamente a reconstrução de toda umatrajetória de filiações ideológicas (ou tradi-ções). O conhecimento é sempre interessado eo reconhecimento do mundo como biológico esocial passaria por um crivo epistemológico epolítico.

Ela destaca abordagens sociais e históricasque romperam com as estratégias do positivis-mo e as insuficiências de macro e microteoriassociais. O desafio do conhecimento tambémpassa por esse reconhecimento das posturas eadesões teórico-metodológicas e seus interesses.

Por um outro lado, essa mesma trajetóriahistórica tem apontado para novas posições edisposições de elaboração do conhecimentosobre o processo saúde-doença. E aqui temoso cuidado de não esvaziar a idéia de processo,sob pena de cair em uma conceituação passí-vel de neutralização, como é a noção de doen-ça clínica (disease). Não se trata de encontrarou produzir conceitos palatáveis para a análi-se. O recorte dos objetos biossociais reflete es-sa dificuldade na incorporação do processohumano e sua complexidade. Trata-se, sim, debuscar o refinamento da análise.

Queiroz (2000), considerando as diferentesabordagens nos campos da sociologia e da an-tropologia, observa que a ênfase do conceitode representação social, dependendo do pris-ma teórico adotado, se desloca de um âmbitoobjetivo e estrutural para um âmbito em quepredomina a subjetividade.

Uma das tentativas, no campo das ciênciassociais, de articular os pólos estrutural e subje-tivo das RS, é conceito de habitus de Bourdieu(1992, 1998). Para o autor, esse conceito se re-fere a um conhecimento adquirido, um haver,um capital, indicando “uma disposição incor-porada, quase postural” (Bourdieu, 1998:61).Para ele, diferentemente da palavra “hábito”,que se associa a algo cristalizado, a expressãohabitus envolve uma capacidade criadora, ati-va e inventiva. Dentro desse raciocínio, o sujei-to receberia e reinventaria a “herança” para aformação do habitus.

O estudo das RS passa, então, pela recons-trução do intersubjetivo concomitante com atrajetória da produção e reprodução de um tex-to socialmente constituído e com determinadapermanência e pertinência – lugar da negocia-ção e da co-presença dos autores sobre este pro-cesso de adoecimento. A adoção de um recortemacroteórico envolve o seu revés e vice-versa.

Como se expressaria este acontecimento ecomo seria possível entendê-lo? A idéia de tex-to, como fixação escrita do discurso, permite

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a reabilitação das teorias do discurso em suaatualização temporal, contemplando o sentidoda mensagem, que persiste e deve ser com-preendido.

“A compreensão deve preceder, acompanhare fechar a explicação, envolvendo-a completa-mente, possibilitando a apropriação do sentidoposto a descoberto pela etapa metodológica eabrindo-a em direção à existência, ao ontológi-co. Neste sentido, ela introduz uma intersubjeti-vidade irredutível no processo de interpretação,um componente específico” (Costa, 1995:66).

A dialética explicação-compreensão permi-te que o processo interpretativo aplicado aotexto escrito direcione-se para a elucidação etratamento científico da ação humana. Esta as-sume uma dimensão inter-humana e histórica.O texto escrito marca o tempo social e registra-se na história, podendo ser atualizado em dife-rentes situações. O agir é uma obra aberta cu-jos efeitos escapam ao controle de seus agen-tes e cuja significação é dada pelas sucessivasinterpretações (Costa, 1995).

Velho (1995), discutindo a noção de cativei-ro em sociedades camponesas, observa a perti-nência de análises sobre RS que possam ultra-passar os limites de contextos de observaçãorestritos à imediaticidade dos significados atri-buídos aos eventos. A lógica de formação dasRS exigiria a emergência de uma condição ex-tra-intencional, para além dos significados atri-buídos em um processo de interação social. Es-se contexto é a ampliação do sentido do texto,apontando para eventos marcantes, que têmpermanência temporal e permitem a re-signifi-cação de sentidos presentes em novos contex-tos sociais. O texto, nessa linha de reflexão,pontua e marca os eventos, fixando uma leitu-ra modelar, que permite saltar da análise parao contexto, para outros sentidos.

As RS, que pareciam se formar a partir daautoridade (e autoria) do intérprete, seja elepesquisador ou pesquisado, têm de se remeterpara a situação que as envolve. Entendemospor situação uma complexidade que só se cons-titui pela fina análise de narrativas pessoais ede narrativas de personagens e eventos mar-cantes. Nesse sentido, contempla-se a históriapessoal e a história social. A leitura do mundonarrado vem a exigir uma retomada do discur-so textualmente considerado (situação imedia-ta) e do discurso contextualmente estabelecido(eventos marcantes). Em realidade, o jogo deprodução e reprodução das RS situa um habi-tus que implica, necessariamente, pensar aprodução de significados com base em um co-letivo que interpreta os eventos do mundo vi-vido. Esse conjunto de intérpretes compartilha

experiências e ideologias, o que lhes dá identi-dade própria e interesses comuns. É precisotornar clara a relação entre formas representa-cionais e práticas sociais, pois a crise das RSdeu visibilidade ao fenômeno das comunida-des interpretativas (Rabinow, 1999).

Ainda com base em Velho (1995), esse novojogo admite agora duas posições singulares. Aprimeira se refere à necessidade de direciona-mento da análise para o resgate do que se podechamar de narrativa social, onde as RS expres-sam ou enunciam trajetórias, biografias e esti-los de vida, compreendidos para além do diá-logo intersubjetivo. Isso exige um posiciona-mento do intérprete tanto em relação ao con-texto emergencial do discurso quanto ao con-texto da produção material e simbólica da ex-periência dos sujeitos. Com isso, afasta-se a re-dução da realidade às RS, tomando o texto co-mo lócus privilegiado de análise. A segunda po-sição decorre da primeira, pois a categorizaçãoque permite obter uma representação é umamodelagem e, como tal, não é explicativa emsi, permitindo apenas que se caminhe para aexploração intensiva e extensiva dos significa-dos compartilhados, dado que existe o que sepode entender por texto e os graus de liberda-de deste em relação aos eventos.

As RS se expressariam nas relações even-tuais mas não se reificariam. A representaçãonão pode representar, pode apenas indicar umalinha de interpretação possível em que o liamedas interpretações pode ser novamente colo-cado e deslocado em seguida até que permitafazer falar e demonstrar uma relação possívelentre eventos e modelos propostos.

A resposta sobre quais seriam as RS a res-peito de algo tem implicações históricas, certa-mente, mas a diversidade não pode ser sinteti-zada pela autoridade do interpretante (Clif-ford, 1998), nem pela apreensão imediata daparticularidade histórica do evento. O jogo deinterpretações deve caminhar para a percep-ção de uma abertura possível, em que as RS sãosustentadas por condições mediadas cultural-mente ou pré-textos.

E aqui reencontramos algumas colocaçõesde Minayo (1992), que estabelece uma propos-ta de análise, a hermenêutica-dialética, quebusca reconhecer o lugar da pertença e da pre-sença do Outro. As escolhas científicas são tam-bém posturas ideológicas que afirmam umponto de vista interpretativo sobre o objeto edialogam com as interpretações complexas queo circundam. As RS são aqui também propos-tas de investigação, de negociação e de apro-fundamento. O deslocamento teórico do obje-to é sua politização também. A luz que se pro-

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jeta sobre o objeto é sempre uma força que omobiliza e o constitui, instruindo-o, deslocan-do-o e referenciando um novo lugar, sempreprovisório. Como coloca Bourdieu (1996), ocampo é político.

Retomando a discussão das representaçõessociais da doença, assinalamos que já há umvasto conjunto de estudos que trabalham comessa temática, tanto em nível internacional, co-mo no âmbito nacional. No interior desse con-junto, destacamos que, do ponto de vista daantropologia médica, a leitura de Good (1994)pode ampliar a discussão sobre a temática emquestão. Segundo o autor, no interior do deba-te atual, ressaltam-se quatro abordagens dasrepresentações da doença.

A primeira abordagem, que segue o para-digma da tradição empirista, segundo o autor,procura compreender as representações de do-ença com base nas crenças presentes no sen-so-comum. Nesse ponto de vista, a doença éentendida como algo natural, sendo separadada consciência humana. A análise de crençaspopulares, utilizada como informação ou co-mo explicação, sugere uma neutralidade políti-ca e psicológica.

A segunda se orienta por uma visão da an-tropologia cognitiva, que se volta, entre outrosaspectos, para a investigação de como a lingua-gem e a cultura estruturam a percepção. Estu-dos que compõem essa linha de pensamentopodem ser vistos como uma crítica às descri-ções generalizadas de crenças de doença e con-jecturas de que as crenças culturais são con-sensuais. Entre suas vertentes, há o posiciona-mento que situa as representações de doençaem termos mentalísticos, abstraídos do conhe-cimento incorporado, da influência e das for-ças sociais e históricas que moldam significa-dos de doença. Assim, os modelos de doençasão estudados em termos formais e semânticos.

Na terceira abordagem, qualificada comointerpretativa, as representações de doençasão vistas como culturalmente constituídas,centrando-se no seu significado. Os estudos in-terpretativos, em geral, procuram articular cul-tura e doença, entendendo que a doença não éuma entidade mas um modelo explicativo. Nes-se sentido, ao invés de centrar os estudos nasrepresentações em si, essa abordagem vem in-vestigando como significados e práticas inter-pretativas interagem como processos sociais,psicológicos e fisiológicos para produzir formasdistintas de doença e trajetórias de doença.

Por último, destaca-se a chamada aborda-gem crítica, que entende as representações dedoença como mistificação. Os estudos dentrodessa abordagem, em geral baseados no pen-

samento neomarxista, se esforçam para enten-der questões de saúde à luz de forças políticase econômicas que padronizam relações inter-pessoais, moldam comportamentos sociais, ge-ram significados socialmente compartilhadose condicionam experiências coletivas. Essas in-vestigações, em vez de se voltarem para a cons-trução cultural da doença, focalizam a produ-ção social da doença. Assim, nesse âmbito, ques-tiona-se quando as representações de doençasão realmente mal representadas e de que for-ma servem aos interesses daqueles que se en-contram no poder. Para isso, a análise da repre-sentação de doença se encaminha para umdesmascaramento crítico dos interesses domi-nantes.

Good (1994) observa que doença e sofri-mento humano não podem ser vistos por umaúnica perspectiva e que as posições teóricasatuais continuam desenvolvendo conversaçõesque fazem avançar a discussão dessas ques-tões. Com essas considerações, o autor ressaltaque não deseja promover uma dialética das di-ferenças teóricas para chegar a sínteses admi-ráveis. Ele deseja assegurar a pluralidade depontos de vista.

Aspectos da experiência da doença

Antes de falarmos da experiência da doença,faremos um rápido parêntese sobre o conceitode doença. Sobre isso, Laplantine (1991:15)chama atenção para o fato de a língua francesasó dispor de um vocábulo (maladie) para de-signar a doença, enquanto na língua inglesa hátrês expressões: “disease (a doença tal como elaé apreendida pelo conhecimento médico), ill-ness (a doença como é experimentada pelodoente) e sickness, (um estado muito menosgrave e mais incerto que o precedente [...] demaneira mais geral, o mal-estar)”.

O autor destaca também que a expressãoillness pode ser entendida por dois pontos devista clássicos: doença-sujeito e doença-socie-dade, refletindo, respectivamente, a experiên-cia subjetiva do doente e comportamentos só-cio-culturais ligados à doença. Para integrar asnoções de doença-objeto (disease), doença-su-jeito (um ponto de vista de illness) e doença-sociedade (outro ponto de vista de illness), elepropõe que se avance no debate de sickness,uma vez que essa terminologia pode articular,ao mesmo tempo, “as condições sociais, históri-cas e culturais de elaboração das representaçõesdo doente e das representações do médico e issoqualquer que seja a sociedade considerada” (La-plantine, 1991:16-17).

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No presente estudo, entendemos doença nosentido predominantemente refletido na ex-pressão illness, sem contudo estabelecermosdicotomia entre os pontos de vista de ser umaexperiência subjetiva ou um comportamentosócio-cultural, referidos por Laplantine (1991).Aqui empregamos doença ou enfermidade co-mo reflexo da combinação de aspectos da ex-periência dos indivíduos e situações sócio-cul-turais. Isso, por sua vez, não significa que des-consideremos os aspectos biológicos presentesno processo do adoecer. Assim, junto a essesaspectos, buscamos desenvolver uma perspec-tiva interdisciplinar na abordagem da enfermi-dade.

A enfermidade seria, então, o modelo quepermitiria a mediação possível entre os partici-pantes, que jogam com seus saberes e admi-tem uma certa lógica de condutas e práticas.Esse roteiro da experiência da enfermidade es-tá delimitado por um contexto finito de inter-pretações, que se sustenta em eventos marcan-tes e com anterioridade em suas vidas. É tam-bém a idéia de que o texto é uma espécie demodelo que teria uma relação direta com oseventos.

O que pode permanecer como base de in-terpretação para os eventos que se sucedemnão é somente o modelo (disease ou illness) ouo evento (a presença da doença), ou, ainda, ainteração (os significados imediatos ao esto-que de conhecimento ou aqueles negociados apartir da emergência da doença). Nem mesmoé um somatório de tudo isso. A lógica da análi-se social sobre a complexidade da experiênciada enfermidade está em outro percurso meto-dológico: são as estratégias ou bricolagens quese formam entre pré-textos, textos, eventos esignificados expressos nos mais diversos su-portes discursivos (lingüísticos e corporais),comunicados e negociados socialmente.

As RS, então, passam a expressar estratégiase experiências humanas, tanto particularesquanto universais. As RS e as categorias que assintetizam só podem ser pensadas com basenas instâncias de regulação que permitem suaformação, não mais como categorias explicati-vas, mas como o lugar do verdadeiro ou dasnarrativas científicas vigentes (Rabinow, 1999).A compreensão dos significados exige um mo-vimento da interpretação sobre a experiência,entendendo que esta é um processo de feed-back do próprio processo de interação. Os re-cortes sobre este processo serão, mesmo quan-do científicos, necessariamente ideológicos,como Clifford (1998) destaca sobre o persona-gem Nisa e as escolhas textuais que o pesqui-sador (como mais um modelo no experimento

etnográfico) faz da narrativa que supõe (ou ten-ta) controlar.

O conceito de experiência ganha, então,uma outra perspectiva, a de experiência social-mente constituída, na qual se apresentam es-tratégias que só são passíveis de análise quan-do se expressam como narração individual eintersubjetiva (portanto social), mas entenden-do nessa condição a presença de uma situaçãodialógica (e dialética). Os significados são ne-gociados também em um espaço comunicacio-nal e político, em que a enunciação coletiva re-flete a atualização de um universo discursivo eexperiências vividas e projetadas. O jogo dasescolhas narrativas deve refletir essa tomadade posição sobre como cada sujeito e comuni-dade exercita o lugar da enfermidade (Hydén,1997).

Alves & Rabelo (1999) discutem de formainteressante o lugar das narrativas e das metá-foras como condição e método para entender aexperiência da enfermidade, já apostando emuma outra circunscrição metodológica, na qualas narrativas expressariam as relações inter-subjetivas (e os caminhos de sua produção-re-produção) e os enunciados metafóricos expres-sariam tensões, conflitos e absurdidades, per-mitindo a criação de novos significados contraos usos estabelecidos pela linguagem. A narra-ção e a compreensão dos enunciados metafóri-cos nela presentes, pela própria situação de in-terlocução, incluem o mundo da intersubjeti-vidade e as situações sociais e suas interações.

A análise de Alves & Rabelo (1999) nos é útilem termos de referência conceitual. Segundoos autores, a experiência da enfermidade é en-tendida como a “forma pela qual os indivíduossituam-se perante ou assumem a situação dedoença, conferindo-lhe significados e desenvol-vendo modos rotineiros de lidar com a situa-ção” (Alves & Rabelo, 1999:171). Eles assinalam,ainda, que “as respostas aos problemas criadospela doença constituem-se socialmente e reme-tem diretamente a um mundo compartilhadode práticas, crenças e valores” (Alves & Rabelo,1999:171).

Seguindo esse raciocínio, não podemos dei-xar de comentar que a superação das limita-ções analíticas das RS deve também passar porum outro crivo metodológico que se superpõeao emprego de análise de narrativas. Esse as-pecto é a percepção concreta do universo dooutro a partir dos referenciais dele, dos modosde condução do cotidiano em que vive – e aquipodemos falar do uso de etnométodos comocontexto de observação. Para Garfinkel (1999),os etnométodos se relacionam aos modos uti-lizados pelos indivíduos para atribuir sentidos

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às ações cotidianas. Os estudos com base etno-metodológica ajudam a entender como a doen-ça se agrega ao dia-a-dia das pessoas, transfor-mando-o significativamente. A doença age co-mo fator de ruptura de um fluxo cotidiano, fa-zendo com que a pessoa enferma e seus fami-liares necessitem de nova reorganização dassuas atividades diárias.

Considerações finais: princípios para um avanço de métodos na compreensãodo processo do adoecer

Com base na etnometodologia, alguns princí-pios podem ser adotados como contexto deobservação: (a) a normalidade percebida, naqual os indivíduos expressam-se em termospráticos, o experienciado e o expectado; (b) a“indexicalidade”, em que se apresentam aspec-tos da realidade como fatores contextuais, osquais são indexados a situações potenciais, cu-jo sentido está ligado a uma certa inteligibili-dade prévia, dando a entender que um sinalpode ter significados diferentes em contextosdiferentes; (c) a descrição ou releitura que osindivíduos fazem de sua posição no mundo edos fatos constitutivos, por meio de uma lin-guagem comum que reflete um determinadosenso comum cotidiano; (d) ser membro de umgrupo, implicando responder de forma imedia-ta às regras constitutivas das particularidadesinerentes às práticas sociais cotidianas (Tedes-co, 1999). Esses princípios podem ser caminhospara o refinamento da observação de campoaplicada ao processo saúde/doença, na re-constituição da experiência da enfermidade.

As insuficiências geradas pelas estratégiasde análise instrumental das RS no processo deadoecer podem ser superadas quando contem-plamos os seguintes aspectos: (a) maior per-manência do pesquisador em campo, evitandoassim os estudos-relâmpago de pouca imersãona realidade vivida e no mundo dos sujeitos;(b) apreensão do estoque de conhecimentosdos sujeitos e do contexto de um habitus quesó se revela pela compreensão de um mundoda práxis; (c) elaboração de um raciocínio so-ciológico sofisticado que contemple a críticasobre o impacto dos enunciados formais na ex-plicação e compreensão da complexidade em-pírica dos objetos (Passeron, 1995).

Com base nessa perspectiva teórico-meto-dológica, a compreensão do adoecer não ocor-re apenas a partir dos enunciados das narrati-vas dos sujeitos da doença. Esses enunciados,em específico, e a narrativa, em geral, devemser entendidos como recortes de uma realida-

de que os contém, sem, contudo, a eles se re-duzir. Assim, na medida em que se consegue irpara além das falas e das ações em geral, a arti-culação entre o representado e o vivido do serdoente pode ser conseguida e servir de basepara políticas e ações que contemplem os su-jeitos para os quais se estas destinam.

Para podermos ultrapassar as falas e açõesobservadas, recorremos a Bardin (1979), quenos alerta sobre a necessidade de nos deslocar-mos da descrição (enumeração das caracterís-ticas da fala e das ações observadas) para a in-terpretação (a significação concedida a essascaracterísticas). Segundo o autor, mediandoesse deslocamento temos a inferência, enten-dida como operação pela qual se aceita umaproposição em virtude de sua relação com ou-tras propriedades já aceitas como verdadeiras.Fazemos inferência, formulando perguntas co-mo: O que conduziu a um determinado enun-ciado? Quais as prováveis conseqüências queum determinado enunciado provocará? Essequestionamento pode ser resumido na formu-lação clássica: quem diz o que, a quem, como ecom que efeito?

A nossa experiência sobre essa forma detratar os sentidos da doença se encontra em fa-se ainda exploratória. Mesmo assim, sugerimosprincípios em busca de um percurso metodo-lógico adequado:• Promover uma compressão da “indexicali-dade” das representações e das vivências dadoença, situando as expressões dos sujeitos nocontexto em que tais aspectos foram produzi-dos.• Fazer uma releitura da descrição que os su-jeitos fazem, em suas narrativas, sobre a suaposição em face da doença, em específico, e domundo em geral.• Com base nessa descrição, fazer inferênciaspara se articular o experienciado e o expectadoda doença presente no quotidiano dos sujeitos.• Partindo das inferências, interpretar os sen-tidos subjacentes ao que os sujeitos represen-tam e vivenciam, a fim de se chegar à compre-ensão das regras constitutivas das particulari-dades inerentes à doença, do ponto de vistadas práticas sociais quotidianas.

Acreditamos que esses princípios possam irao encontro da necessidade de articularmos aexperiência da doença e seu contexto de pro-dução material e simbólica. Na medida em queavancemos mais nessa direção, poderemos tra-zer subsídios para que as políticas e ações emsaúde possam contemplar mais os sujeitos pa-ra os quais estas se direcionam.

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GOMES, R.; MENDONÇA, E. A. & PONTES, M. L.1214

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(5):1207-1214, set-out, 2002

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Recebido em 29 de dezembro de 2000Versão final reapresentada em 21 de setembro de 2001Aprovado em 26 de dezembro de 2001