REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA...

16
REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA: Estudo de caso no munícipio de Quatipuru/PA SANTOS, Cássio Rogério Graças dos. (1); SENNA, Cristina do Socorro Fernandes de . (2) 1. Programa de Pós-Graduação em Geografia UFPA Pass. Herodes Montese Nº65, Bairro: Marambaia, CEP: 66620-580 [email protected] 2. Coordenação de Ciências da Terra e Ecologia, Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral nº 1901, Bairro: Terra Firme, CEP: 66077- 530. Belém - PA [email protected] RESUMO A fisiografia atual do sistema litorâneo do estado do Pará resulta de eventos transgressivos e regressivos, decorrentes de variações relativas do nível do mar e do clima na Amazônia ocorridos no Holoceno, portanto, desde os últimos 10.000 anos. Ao mesmo tempo, atividades desenvolvidas pelas populações locais, desde a Pré-História, têm forjado seus modos de vida, suas espacialidades e suas mentalidades no convívio com essa diversidade ambiental, graças ao conhecimento integrado de crenças e práticas adquiridas e repassadas de geração em geração. A utilização do conceito de paisagem é cada vez mais aplicada à análise ambiental do espaço geográfico, quando integra sociedade e natureza, constituindo-se uma entidade natural que reúne atributos biológicos, litológicos, geomorfológicos, edáficos, topográficos, socioculturais e econômicos, dentre outros. O município de Quatipuru integra-se ao contexto fisiográfico litorâneo, apresentando as seguintes unidades de paisagens: manguezal, campo salino, restinga costeira, várzea de maré e campos inundáveis. Este artigo objetiva analisar a apropriação dos recursos naturais pelos moradores de Quatipuru sobre a paisagem e compreender as relações que os mesmos mantêm com cada paisagem. O estudo da paisagem exige uma ponderação na definição do conjunto de elementos abarcados. Trata-se da exposição do objeto em seu conjunto geográfico e histórico, levando em conta a configuração social e os processos naturais e humanos. Para a Geografia cultural a paisagem é a expressão e a representação do imaginário coletivo, mostrando os conteúdos da paisagem para cada observador. Os resultados mostram que as práticas milenares relacionando o homem com a natureza vêm sendo repassadas às diferentes populações humanas ao longo de gerações até os dias atuais e a sua investigação, registro e análise vão auxiliar a um melhor e mais apurado entendimento sobre as diferentes modalidades de manejo e uso de recursos naturais, na construção das relações materiais e simbólicas dessas populações com as diferentes unidades de paisagem que compõem a planície costeira, incluída a sua dinâmica. Palavras-chave: Representação; paisagem; Quatipuru

Transcript of REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA...

Page 1: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA

AMAZÔNIA: Estudo de caso no munícipio de Quatipuru/PA

SANTOS, Cássio Rogério Graças dos. (1); SENNA, Cristina do Socorro Fernandes de . (2)

1. Programa de Pós-Graduação em Geografia UFPA

Pass. Herodes Montese Nº65, Bairro: Marambaia, CEP: 66620-580 [email protected]

2. Coordenação de Ciências da Terra e Ecologia, Museu Paraense Emílio Goeldi

Av. Perimetral nº 1901, Bairro: Terra Firme, CEP: 66077- 530. Belém - PA

[email protected]

RESUMO

A fisiografia atual do sistema litorâneo do estado do Pará resulta de eventos transgressivos e regressivos, decorrentes de variações relativas do nível do mar e do clima na Amazônia ocorridos no Holoceno, portanto, desde os últimos 10.000 anos. Ao mesmo tempo, atividades desenvolvidas pelas populações locais, desde a Pré-História, têm forjado seus modos de vida, suas espacialidades e suas mentalidades no convívio com essa diversidade ambiental, graças ao conhecimento integrado de crenças e práticas adquiridas e repassadas de geração em geração. A utilização do conceito de paisagem é cada vez mais aplicada à análise ambiental do espaço geográfico, quando integra sociedade e natureza, constituindo-se uma entidade natural que reúne atributos biológicos, litológicos, geomorfológicos, edáficos, topográficos, socioculturais e econômicos, dentre outros. O município de Quatipuru integra-se ao contexto fisiográfico litorâneo, apresentando as seguintes unidades de paisagens: manguezal, campo salino, restinga costeira, várzea de maré e campos inundáveis. Este artigo objetiva analisar a apropriação dos recursos naturais pelos moradores de Quatipuru sobre a paisagem e compreender as relações que os mesmos mantêm com cada paisagem. O estudo da paisagem exige uma ponderação na definição do conjunto de elementos abarcados. Trata-se da exposição do objeto em seu conjunto geográfico e histórico, levando em conta a configuração social e os processos naturais e humanos. Para a Geografia cultural a paisagem é a expressão e a representação do imaginário coletivo, mostrando os conteúdos da paisagem para cada observador. Os resultados mostram que as práticas milenares relacionando o homem com a natureza vêm sendo repassadas às diferentes populações humanas ao longo de gerações até os dias atuais e a sua investigação, registro e análise vão auxiliar a um melhor e mais apurado entendimento sobre as diferentes modalidades de manejo e uso de recursos naturais, na construção das relações materiais e simbólicas dessas populações com as diferentes unidades de paisagem que compõem a planície costeira, incluída a sua dinâmica.

Palavras-chave: Representação; paisagem; Quatipuru

Page 2: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Introdução

A fisiografia atual do sistema litorâneo do estado do Pará resulta de eventos transgressivos e

regressivos, decorrentes de variações relativas do nível do mar e do clima na Amazônia

ocorridos no Holoceno, portanto, desde os últimos 10.000 anos. Ao mesmo tempo, atividades

desenvolvidas pelas populações locais, desde a Pré-História, têm forjado seus modos de vida,

suas espacialidades e suas mentalidades no convívio com essa diversidade ambiental,

graças ao conhecimento integrado de crenças e práticas adquiridas e repassadas de geração

em geração.

A Geografia, enquanto ciência de síntese integra o homem como o fator humano nos

processos de transformação e produção do espaço, a partir da complexidade dos fenômenos

naturais e na contradição dos processos sociais, pois no mundo, é necessário pensar o meio

ambiente no contexto dessa complexidade, analisando-o de forma ampla, integrado à

organização espacial dos grupos sociais. Há necessidade de estudos para dar subsídios ao

planejamento ambiental, capazes de avaliar a degradação ambiental e o crescente uso dos

recursos naturais. Então é necessário compreender a natureza e seus aspectos ambientais

de forma integrada.

Este artigo objetiva analisar a apropriação dos recursos naturais pelos moradores do

município de Quatipuru, Costa Atlântica do Nordeste Paraense, em diferentes paisagens

costeiras e compreender as relações que os mesmos mantêm com cada unidade de

paisagem. O estudo da paisagem exige uma ponderação na definição do conjunto de

elementos abarcados. Trata-se, portanto, da exposição do objeto em seu conjunto geográfico

e histórico, levando em conta a configuração social e os processos naturais e humanos. Para

a Geografia cultural, a paisagem é a expressão e a representação do imaginário coletivo,

mostrando os conteúdos da paisagem para cada observador.

A produção desse artigo contou com diversas etapas para a sua estruturação, a primeira foi à

revisão bibliográfica de diversos artigos e livros de autores que ao longo do tempo se

dedicaram a entender e analisar a Paisagem, assim contribuindo para o debate em torno da

paisagem. Trabalhos de campo na área de estudo, no munícipio de Quatipuru/PA, entrevistas

realizada com os moradores, contribuindo assim para a sistematização desse artigo.

1. Considerações sobre o conceito de Paisagem na Geografia

A análise de paisagem vai caracterizar-se nas escolas de Geografia Física alemã, francesa e

soviética. No século XIX predominava as análises descritivas e regionais, principalmente com

o trabalho de naturalistas como Humbolt também nesse período aparece às primeiras

Page 3: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

formulações cientifica. Na escola francesa, La Blache organizava os seus estudos

geográficos. As características significativas e regiões, com os componentes da natureza e as

atividades humanas. Assim estudam-se aspectos físicos, climáticos com destaque para

vegetação.

O período no final de 1940 surgiu à teoria Geral dos Sistemas Dinâmicos, publicada em 1948

por Ludwig Von Bertanffy. Abre se o caminho para o conceito de paisagem a partir da teoria

dos Sistemas onde todos os elementos compõem a natureza passando a trabalhar com trocas

de matérias e energias.

Mas tarde o conceito de paisagem com relação homem e natureza contraponto a estética -

descritiva, uma nova abordagem relacionado à paisagem como ambiente e objeto. A ciência

da paisagem busca a morfologia dos fenômenos de integração, assim dois conceitos vão

influenciar a compreensão da paisagem, o de ecossistema. A ecologia tem por objeto de

estudo os ecossistemas, com análise dos fluxos de energia, matéria e informação.

Nos anos 1970, com a concepção ambiental, a ecologia redireciona sua analise de

investigação e seus fundamentos teóricos espaciais (geografia) e funcionais (ecológica) ao

estudar a paisagem. A ecologia da paisagem surge como uma ciência transdisciplinar, com a

visão holística, onde o sistema natural e cultural, integrando a biosfera e a geosfera. Carls

Troll trazem elemento para o estudo mais sistematizado com a hierarquização da paisagem.

O termo Ecologia da Paisagem, como uma disciplina científica emergente, foi

cunhado por Troll em 1939, ao estudar questões relacionadas ao uso da terra

por meio de fotografias aéreas e interpretação das paisagens. Com a

sugestão desse termo Troll, teve a intenção de incentivar uma colaboração

entre a Geografia e a Ecologia, combinando, assim, na prática, a

aproximação “horizontal” do geógrafo examinando a interação espacial dos

fenômenos, com a aproximação “vertical” dos ecólogos, no estudo das

interações funcionais de um dado lugar, ou “ecótopo” ( NUCCI, 2007, p. 88)

Porém, a Ecologia da Paisagem americana, não introduzia, de proposito, o homem em suas

análises, ocorrendo analises reduzidas e pautadas na razão mecanicista, cabendo mensurar,

e fazer predições as mais exatas possíveis como nas ciências exatas e naturais. Ainda, é

necessário incluir os aspectos humanos, sociais, culturais, econômicas e politicas como forma

de criar condições para a manutenção das paisagens de forma sustentável.

A paisagem torna-se objeto de estudo da geomorfologia, porém vários autores discutem a

cerca da dimensão territorial da paisagem, por isso cria varias metodologias para estudar a

divisão e classificação das paisagens. Portanto, é necessário caracterizar qualquer área de

Page 4: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

estudo e escala de trabalho, isso inclui também a possibilidade de dimensionamento, pois

entre muitos autores a paisagem é cartografável, Bertrand (1968), Trincat (1977).

Nos anos 1960, Bertrand propõe o estudo da paisagem através da Geografia Física Global,

assim estudá-la é uma questão de método, o autor propõe delimitar em unidades

homogêneas e hierarquizadas chegando com isso à classificação. Bertrand estabelece seis

níveis de dimensão escalar, que pode ser dividido pelos elementos estruturais e climáticos,

conhecidos também como unidades superiores (zona, domínio e região) e pelos elementos

biogeográficos e antrópicos (geossistema, geofaceis e geótopo). Segundo Bertrand

BERTRAND (1971, p. 1 ), a paisagem é dinâmica e integrada como aponta o fragmento

abaixo:

[...] É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação

dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que,

reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um

conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. A dialética

tipo-indivíduo é próprio fundamento do método de pesquisa.

É preciso frisar bem que não se trata somente da paisagem “natural” mas da

paisagem total integrando todas as implicações da ação antrópica.

A grande diferença de Bertrand para os estudos da paisagem foi estabelecer uma escala para

suas unidades de paisagem, criando uma hierarquia. Sobre o geossistema sua análise é

parecida com a de Sotchava, porém Bertrand utiliza a escala de quilômetros quadrados até

centenas de quilômetros quadrados, é a unidade elementar para a pesquisa geográfica, pois é

nessa escala onde os fenômenos naturais e antrópicos são observados, como afirma

Bertrand (1971, p. 5):

O geossistema situa-se entre a 4ª e a 5ª grandeza temporo espacial.

Trata-se, portanto, de uma unidade dimensional compreendida entre alguns

quilômetros quadrados e algumas centenas de quilômetros quadrados. É

nesta escala que se situa a maior parte dos fenômenos de interferência entre

os elementos da paisagem e que evoluem as combinações dialéticas mais

interessantes para o geógrafo. Nos níveis superiores a ele só o relevo e o

clima importam e, acessoriamente, as grandes massas vegetais. Nos níveis

inferiores, os elementos biogeográficos são capazes de mascarar as

combinações de conjunto. Enfim, o geosistema constitui uma boa base para

os estudos de organização do espaço porque ele é compatível com a escala

humana.

Page 5: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

O geossistema deve ter uma homogeneidade em sua fisionomia, forte unidade ecológica e

biológica, com a mesma evolução. A evolução e dinâmica do geossistema é o resultado do

“potencial ecológico”, a “exploração biológica”, e a “ação antrópica”. O clímax do geossistema

estaria no equilíbrio entre a exploração biológica e o potencial ecológico, sendo que a ação

antrópica poderia romper com esse equilíbrio, daí a necessidade de estudos integrados a

paisagem assim como sua relevância para os estudos ambientais (FERREIRA, 2008).

No âmbito cultural, a paisagem tem como conotação a representação social, sendo um

conjunto de objetos de valores, que é construído historicamente, cuja apreensão e

representação estão condicionadas a percepção humana, logo varia de acordo com o espaço

e o tempo. Uma única paisagem pode ser percebida e representada de formas diferentes.

Cada observador atribuirá à paisagem um conteúdo simbólico, resignificando aquela

paisagem. Isso ocorre nos discursos hegemônicos para a valorização estética da natureza

aliada a necessidade de preservar e conservar determinados ambientes ou fragmentos da

natureza. Sobre isso Luchiari (2001, p. 21) afirma:

A concepção de meio ambiente é uma ideologia constituinte da organização

sócioespacial contemporânea. A sociedade, ao revalorizar as paisagens

naturais, constrói um novo modelo perceptivo em relação ao meio e lhes

impõe novas territorialidades. É na emergência desses territórios que a

sociedade mediatiza suas relações com a natureza e lhe atribui um valor,

uma representação e um controle sobre as paisagens que os homens

disputam em um campo relacionado de poder.

Nessa concepção, a paisagem não existe como um dado da natureza, como um dado em sí, a

paisagem só tem sentido em relação com a sociedade, já que é ela que tem a capacidade de

transformar o ambiente em que vive. Transformando a natureza em objetos culturais,

influenciados pelo imaginário social. As representações da paisagem são construídas a partir

dos objetos criados pelo homem, e partir das relações emotivas criadas à paisagem torna-se

lugar.

Assim, a paisagem é uma construção social, não se esgotando, ou seja, embora a mídia

mostre a degradação ambiental de alguns ecossistemas e o fim de alguns recursos naturais

como a água, por exemplo, a paisagem não termina, não acaba. A sociedade, ao produzir seu

espaço geográfico cria suas paisagens e consequentemente atribui ali um conjunto de

símbolos. A paisagem para existir, não necessita exclusivamente da paisagem natural, já que

é uma construção tanto material como simbólica pela sociedade.

Page 6: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

2. Área de Estudo

O município de Quatipuru (Figura 1) fundado em 1994, localiza-se na Região dos Caetés, na

Mesoregião Nordeste Paraense e na Microrregião Bragantina, mais precisamente na Costa

Atlântica da Amazônia Brasileira. Distante 210 km de Belém (PA), possui uma população

calculada em aproximadamente 13.000 habitantes. Limita-se ao norte com o oceano

Atlântico, a leste com o Município de Tracuateua, a oeste com os municípios de Primavera e

São João de Pirabas e ao sul com Capanema (SEPOF, 2011). Em 1879, parte das terras do

município de Bragança foi desmembrada para a criação do município de Quatipuru, nome

com o qual, inicialmente, ficou conhecido o atual município de Capanema.

Figura 1: Mapa de Localização da Área de Estudo

3. As Unidades de Paisagem em Quatipuru

O município de Quatipuru apresenta uma complexidade de unidades de paisagem que foram

identificadas, mapeadas e caracterizadas, no contexto de suas formações vegetais,

geomorfologia, solos e o uso de recursos naturais (Figura 2), ao longo do estuário dos rios

Page 7: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Quatipuru e Japerica, individualizando duas grandes unidades: o Baixo Planalto Costeiro e a

Planície Costeira Holocênica.

O Baixo Planalto Costeiro é um ambiente continental, integrado pelas áreas de interflúvio

entre as bacias dos rios Quatipuru e Japerica, que desembocam no oceano Atlântico, drenam

o município de sul para norte, atingindo cotas topográficas inferiores a 40 m. A vegetação de

capoeira, em diferentes estágios de regeneração, domina a paisagem, onde parte dessa

formação vegetal é substituída pela agropecuária e pela agricultura.

A planície costeira holocênica, flúvio-marinha, é integrada por um número maior de unidades

de paisagem, sendo influenciada pelos rios Quatipuru e Japerica, respectivamente a leste e a

oeste do município, ambos desembocando no oceano Atlântico. Os manguezais, restingas

costeiras, campos salinos, várzeas de maré e campos periodicamente inundáveis integram a

unidade de paisagem (Figura 3), que foi formada provavelmente no Holoceno Superior

(SENNA et al., 2011).

Figura 2. Mapa de unidades de paisagem dominantes no município de Quatipuru.

Page 8: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

3.1. Manguezal

Os manguezais ocorrem em planícies lamosas estuarinas, ricas em matéria orgânica, em

costas baixas tropicais abrigadas, sendo dominantes na paisagem litorânea local, de provável

idade Holoceno Superior (SENNA et al., 2011). Esta unidade de paisagem integra a região

biogeográfica ACEP (Atlantic Caribbean East Pacific), que apresenta baixa diversidade de

espécies vegetais na América Tropical.

As espécies vegetais arbóreas halofíticas que constituem as florestas de mangue são a

Rhizophora mangle L. - espécie dominante -, R. racemosa G.F.W.Mayer, R. harrisonii

Leechman, Avicennia germinans L. Stearn, A. shaueriana Stapf. & Leechman ex. Mold.,

Laguncularia racemosa (L.) Gaertn e Conocarpus erecta L.

O rápido processo de colonização dos manguezais, ao longo das zonas estuarinas e

deltáicas, deve-se a três características adaptativas básicas e fundamentais de sua flora

constituinte, que são a presença de um sistema de raízes adventícias, em Rhizophora sp, ou

pneumatóforas em Avicennia sp., ambas resistentes à asfixia, adaptadas portanto, ao meio

anaeróbico, que também servem de escoras, face ao substrato extremamente mole, além do

combate à presença de sal, que é excretado pelas folhas. Há ainda a formação de embriões

que têm assegurados a sua sobrevivência, por viviparidade, ou seja, quando saem da planta

mãe, já o fazem como plântulas, como é o caso da família Rhizophoraceae, podendo

permanecer por longo tempo, em dormência de até um ano, migrando através de correntes

marinhas.

A salinidade das águas que percolam os estuários varia de 0-30 ups (unidade padrão de

salinidade), tendo em vista a sazonalidade climática, em termos de freqüência e intensidade

da chuva, desempenhando importantes funções na ciclagem de nutrientes, uma vez que se

originam nos ecossistemas continentais em bacias hidrográficas, passando também pelos

ecossistemas costeiros para chegar até o mar, influenciando assim, o fluxo de macro e

micronutrientes entre os demais sistemas, destacando-se a fixação de carbono, exerce

também um papel relevante na biodiversidade nos diversos ecossistemas aquáticos

contíguos aos manguezais e que integram as áreas úmidas costeiras (SENNA, 2010).

Page 9: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Figura 3 – Tipos de paisagens dominantes na área de estudo – Paisagem de terra firme, composto por

vegetação secundária(F); Campos periodicamente inundáveis, com o campo periodicamente

inundável(B); As paisagens flúvio-marinhos com as várzea de maré (C), manguezais(E), campo

salino(A), restinga e praia (D).

3.2. Campo Salino

Os campos salinos são formações herbáceas inundáveis, em substrato lamoso, ricos em

matéria orgânica e que ocorrem na planície costeira interna da área de estudo, bordejando os

estuários, no contato destes ambientes costeiros com os ambientes continentais de terra

firme, cujas limitações de dispersão e o estresse provocado pela hipersalinidade, cujos

valores chegam a 100 ups (unidade prática de salinidade), impedem a colonização por

espécies de manguezal.

Os dados do inventário biológico revelaram quatro famílias botânicas, distribuídas em quatro

gêneros e cinco espécies herbáceas perenes, ocorrendo em manchas (patches), cuja ordem

decrescente de dominância incluiu Sporobolus virginicus (L.) Kunth (54,25%), Eleocharis

caribaea (Rottb.) S.F.Blake (25,80%) e Sesuvium portulacastrum (L.) L. (18,62 %). Eleocharis

Page 10: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

mutata (0,87%) e Blutaparon portulacoides (A. St.-Hil.) Mears (0,48%) ocorreram com valores

menores que 1% de dominância (SENNA, 2010).

Uma característica marcante desta unidade é a ocorrência de uma grande área sem qualquer

vegetação, denominada localmente de “apicum”, em cota topográfica mais elevada, com os

maiores teores de salinidade (100 ups- unidade prática de salinidade), impedindo a

colonização da vegetação, mesmo durante o período chuvoso. Bordejando a unidade de

paisagem, em substrato continental, ocorrem formações vegetais de origem antropogênica,

como as capoeiras, ou como o plantio de gramíneas, formando pasto para o gado.

3.3. Restinga costeira

A restinga costeira constitui uma unidade de paisagem, com solos hidromórficos arênicos e

salinos, uma gama variada de formações vegetais encontradas ao longo de toda a costa

brasileira e que guardam forte relação com as feições geomorfológicas costeiras, como as

cristas praiais, ilhas barreira, barras, esporões e tômbolos, repousando sobre um substrato

arenoso, próximo ao oceano Atlântico.

A restinga guarda uma estreita relação com a gênese dos depósitos arenosos litorâneos,

formados a partir da conjunção de quatro fatores: (1) disponibilidade de sedimentos arenosos

(área fonte); (2) correntes de deriva litorânea; (3) flutuações do nível do mar e (4) outras

feições costeiras que propiciam a retenção de sedimentos arenosos (BASTOS, 1996). Há de

se considerar nestes estudos os fatores responsáveis pela colonização de espécies vegetais

em restingas costeiras como: (1) a profundidade do lençol freático; (2) a salinidade do solo; (3)

a exposição aos ventos salinos que vêm do oceano e (4) competição com outras plantas, esta

última observável ao longo dos anos (RASTETER, 1991; SENNA, 2002; PEREIRA, 2006).

As restingas costeiras da área de estudo são pouco extensas (200m), relativamente novas e

compostas por 12 espécies herbáceas, distribuídas em três formações vegetais, dispostas do

mar para o continente: formação halófila, com Sesuvium portulacastrum L. e Blutaparon

portulacoides (St. Hill) Mears; psamófila reptante, com a presença exclusiva de Paspalum

vaginatum Sw e o brejo herbáceo, com Fimbristylis cymosa R. Br., Cyperus ligularis L. e

Pycreus polystachyos Rottb. Os limites da zonação entre as formações vegetais não são

claros, tendo em vista os processos erosivos superimpostos à planície arenosa, recortada por

vários canais de maré de diferentes idades.

Page 11: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

3.4. Várzea de maré

Esta unidade de paisagem constitui a planície aluvial dos rios Quatipuru e Japerica, sujeita

aos pulsos de inundação diária das marés semi-diurnas, sendo ao mesmo tempo submetida

ao ciclo anual de inundação, ocorrendo solos hidromórficos argilosos e humosos, portanto,

com altos teores de matéria orgânica, cujas partículas argilosas em suspensão, conferem à

água uma coloração amarelada, classificada pelos limnologistas como água branca ou

barrenta.

As várzeas apresentam o predomínio de vegetação arbórea, destacando-se Virola

surinamensis Rol. Ex Rottb., Euterpe oleracea Mart., Mauritia flexuosa L., Pterocarpus

santalinoides L´Heritier ex DC., Dalbergia monetaria, L.F., Machaerium lunatum, (L.F.) Ducke,

Pachira aquatica. Entre as espécies herbáceas, ocorre Montrichardia linifera (Arruda) Schott.

As adaptações eco-fisiológicas são importantes para a manutenção das espécies vegetais

sob os impacto diários das inundação pelas marés, baixo suprimento de oxigênio e eventual

presença de sal.

3.5. Campo periodicamente inundável

Esta unidade de paisagem limita a planície costeira ao sul da área de estudo, em solos

argilosos ricos em matéria orgânica, entretanto as espécies herbáceas estão adaptadas ao

ambiente de água doce, onde o regime de monções, com chuvas torrenciais ocorrendo por

3-4 meses, entre janeiro-abril, exerce um papel preponderante para a manutenção desses

campos naturais. Ocorrem entre as florestas de mangue, que bordejam a porção estuarina

dos rios Quatipuru e Japerica e as capoeiras e pastos do Baixo Planalto Costeiro, em terra

firme (Figura 3).

A unidade de paisagem apresenta uma faixa transicional com os campos salinos, com a

salinidade diminuindo de norte para sul, trazendo consequentemente, o aumento na riqueza

de espécies herbáceas. A composição de espécies chega a 24 táxons, com o predomínio da

família Graminae. As espécies perenes mais abundantes são Eleocharis minima Kunth,

Axonopus pubivaginatus Henrard, Rhynchospora barbata (Vahl) Kunth, Paspalum sp. e

Digitaria sp., distribuídas em manchas (patches), onde a relação água doce-água salgada, a

microtopografia, os processos geomorfológicos e a frequência de inundação parecem

influenciar fortemente a composição, a diversidade e a distribuição espacial das espécies.

Page 12: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

4. A representação da paisagem e a apropriação dos recursos naturais

pelas comunidades tradicionais

Após o percurso pelos conceitos de paisagem e a contextualização ambiental da área de

estudo, vai-se analisar a representação da paisagem e como é feita a apropriação dos

recursos naturais. Recurso natural compreende os elementos naturais disponíveis para serem

usados para satisfazer as necessidades da sociedade, onde são atribuídos valores

econômicos e culturais. Porém, a apropriação desse recurso dependerá de diversos fatores,

dentre eles, a capacidade técnica de obtenção e a geopolítica quando envolve interesses

entre povos (VENTURI, 2006).

As comunidades de Quatipuru se apropriam de diversos recursos naturais, dependendo de

cada unidade paisagem há uma apropriação e uma representação. Nos manguezais há a

coleta de crustáceos, principalmente o Ucides cordatus, conhecido como caranguejo-uçá,

geralmente a coleta é realizada pelos homens pelo “braceamento” ou pelo “ganho”, técnicas

tradicionais utilizadas para a captura do crustáceo. O “braceamento” é a introdução do braço

na toca do caranguejo e a sua remoção, o “gancho” consiste em uma haste de madeira com

um gancho de metal na ponta, que também é introduzida na lama até bater no caranguejo,

que é puxado em seguida. Outro recurso natural usado pelas comunidades é a lenha retirada

das espécies arbóreas do mangue, como por exemplo, os troncos da Avicennia germinans,

utilizados para fazer fogo ou até mesmo utilizar em construções de casa ou cercas para o

curral de bovinos ou curral de peixes, denominação dada pelos pescadores para uma

armadilha feita para a captura de peixes.

O manguezal é visto pelas comunidades como lugar de captura de seu sustento, pois a

produção é vendida para a obtenção de renda. Mas o mangue só considerado mangue pelos

coletores e para a população geral quando há presença do crustáceo pronto para a captura e

também para a pesca, pois o mangue também considerado espaço para a reprodução e o

berçário de peixes. Então, o mangue é visto só onde tem a presença da Rhizophora mangle,

onde o substrato lamoso é maior, facilitando assim, a construção de tocas para os

caranguejos.

Os campos salinos constituem um ambiente com alta salinidade, a vegetação é pouco

diversa. Porém, ao redor dos campos salinos, na parte continental, a população utiliza para

fazer plantações e pequenos roçados para a sua subsistência, dentre as espécies cultivadas,

a principal é a mandioca Manihot esculenta para a fabricação da farinha, que também é

vendida para a obtenção de renda. Também é plantado milho, feijão e algumas frutas e

Page 13: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

legumes, cuja produção é destinada as escolas do município subsidiada pelo FUNDEB para

incrementar a merenda escolar.

Os campos salinos são visto como local de pouca produtividade, ou destinado à caça de aves

migratórias que descem até o solo para descansar ou se alimentar de pequenos crustáceos,

insetos ou outras fontes de alimentação. É um ambiente em que as populações de baixa

renda que não tem para onde ir ou tiveram que sair de suas residências devido a outros

problemas ambientais, como por exemplo, pela erosão de restingas ou do mangue, com isso

tais populações são obrigadas a migrarem para outros locais, inclusive os campos salinos, já

que muitos são pescadores ou coletores de caranguejos não tem condições de morarem em

locais com melhores condições de saneamento.

As restingas costeiras ou conhecidas popularmente por praias são ocupadas por pescadores

que tiram da “maré” seu sustento e sua renda, a pesca é a principal fonte de renda de tais

populações que se apropriam dos recursos naturais disponíveis no mar. Embora, as praias

sejam utilizadas para o lazer e associada à atividade turística, em Quatipuru tal atividade não

é tão explorada, fazendo com que ainda sejam encontradas vilas de pescadores tradicionais.

As restingas são conhecidas como maré, pelos moradores, mostrando que a dinâmica da

natureza rege a dinâmica sociocultural, traço importante para as analises das representações

sociais sobre as paisagens.

A várzea de maré vem sofrendo forte descaracterização, atualmente, tendo em vista o

desmatamento dessa unidade de paisagem nas porções mais internas do estuário do rio

Quatipuru, onde ocorrem fazendas, com o efetivo plantio de pasto para o gado, tornando

assim, impossível a realização de inventários florísticos para a caracterização e a

quantificação da cobertura vegetal. São também utilizadas para a agricultura, onde famílias

fazem pequenos roçados de mandioca, pomares e criação de animais para o sustento, como

por exemplo, as diversas espécies de aves e mamíferos de pequenos portes. Assim também

a coleta do açaí, Euterpe oleracea, tanto para o consumo próprio como para a venda.

As representações feitas pelas comunidades sobre as várzeas de maré estão relacionadas

com a forma que cada parcela da população interage com a dinâmica do meio natural, com a

subida e descida da maré, os pulsos diários influenciados pela maré. Então, há uma forte

relação com as várzeas, pois são ambientes com diversidade ambiental, facilitando a

diferentes formas de apropriação dos recursos naturais.

Os campos inundáveis são utilizados para a criação de gado, assim também para a criação de

búfalos, Bubalus bubalis, cuja carne faz parte da dieta alimentar, servindo também para a

Page 14: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

locomoção de cargas e até de pessoas, em Quatipuru, o gado é também sinônimo de status,

ou seja, de melhores condições de vida e de consumo. Dependendo da época do ano os

campos inundáveis são utilizados para a criação de peixes, fazendo barragens quando

necessário para impedir a penetração da água salgada, nos períodos chuvosos onde os

teores de sal são menores. Quanto se aproxima o período seco, com aumento do teor de sal,

os peixes são retirados, basicamente para o consumo familiar, como também para a venda. É

um ambiente onde se encontram populações de quelônios, capturados nos períodos secos

para o consumo, através de pequenos incêndios, afugentando os animais e facilitando a

captura. São áreas de uma beleza cênica estonteante, que podem ser utilizadas para diversas

atividades recreativas ou turísticas.

5. Considerações Finais

Os estudos sobre as unidades de paisagem podem servir e são usados para o planejamento

ambiental, com o intuito de conservar e preservar a natureza, levando a um possível

desenvolvimento sustentável. Assim também como mostrar as potencialidades de cada

paisagem, daí a necessidade de conhecer a dinâmica da paisagem. Porém, essa abordagem

está relacionada à Geografia Física, onde os pesquisadores têm desenvolvido várias

metodologias e conceitos sobre o tema ao longo do tempo, principalmente a partir dos anos

1960.

A paisagem não se restringe apenas a Geografia Física, hoje há muitos trabalhos mostrando o

caráter cultural da paisagem, mostrando que uma mesma fisionomia poderá revela paisagens

distintas dependendo do observador, mas a paisagem cultural também tem seu caráter

holístico e integrador, porém, a paisagem não é entendida a partir da base física natural. A

paisagem seria uma construção do homem, seu trabalho de transformação da natureza em

objetos culturais. Daí a paisagem é algo material palpável e observável, assim como uma

construção intelectual.

Os relatos sobre as estratégias de subsistência utilizadas pelos moradores destas

comunidades e sua percepção sobre as dinâmicas dos ambientes que os circundam, mostram

uma superposição entre a dinâmica natural do meio costeiro e a dinâmica antrópica praticada

pelas duas comunidades, destacando-se os fenômenos das subidas das marés que

introduzem a água salina por vastas áreas de campo inundável, onde é praticada a agricultura

principalmente, as queimadas praticadas nas matas e nos campos no passado, o que gerou

alterações em vários componentes da paisagem local, seja de ordem física como o aumento

Page 15: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

da sensação térmica e biológica com a diminuição do número de animais silvestres como

aves e mamíferos utilizados como alimentação através da caça.

Referências

BERTRAND, G. Paisagem e geografia física global: um esboço metodológico. Cadernos de

Ciências da Terra. São Paulo, n. 13, 27p. 1971.

FERREIRA, V. O. A abordagem da paisagem no âmbito dos estudos ambientais integrados.

GeoTextos. Uberlândia, v.6, n. 2, p. 187-208. 2010.

FURTADO, L. G. Características gerais e problemas da pesca amazônica no Pará. Boletim

do Museu Paraense Goeldi. Belém Vol. 6. Nº 1. p. 41-93, junho de 1990.

LUCHIARI, M. T. D. P. A (re) significação da paisagem no período contemporâneo. In:

ROSENDAHL, Z; CORRÊA, R. L. (org.). Paisagem, Imaginário e Espaço. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 2001. P. 9-28.

MAXIMIANO, L. A. Considerações sobre o conceito de paisagem. RA´E GA. Curitiba n. 8, p.

83-91. 2004.

METZGER, J. P. O que é ecologia de paisagens? Biota Neotropica. Campinas, v. 1, n. 1, p.

1-9. 2001.

NETO, R. M. Considerações sobre a paisagem enquanto recurso metodológico para a

geografia física. Caminhos de Geografia. Uberlândia, v. 9, n. 26, p. 243-255. 2008.

NUCCI, J. C. Origem e desenvolvimento da ecologia e da ecologia da paisagem. Geografar.

Curitiba, v. 2, n. 1, p. 77-99. 2007.

SANTOS, M. Por uma Geografia Nova: da crítica à geografia a uma geografia crítica. São

Paulo: Hucitec, 1978.

SCHIER, R. A. Trajetórias do conceito de paisagem na geografia. RA´E GA. Curitiba, n. 7, p.

79-85. 2003.

SENNA, C. S. F. Mudanças da paleovegetação e dos paleoambientes Holocênicos da

planície costeira do nordeste do estado do Pará, entre as baias de Marapanim e

Maracanã. INPA/UA: Manaus, 2002. p.115. (Tese).

Page 16: REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS … · REPRESENTAÇÂO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR COMUNIDADES TRADICIONAIS NA AMAZÔNIA:

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

SENNA, C.S.F.; OLIVEIRA, D. S.; ABSY, M. L. Composição, abundância e diversidade de

tipos polínicos em paleoambientes holocênicos do estuário do rio Marapanim, Estado do Pará.

In: Mendes, A.C; Prost, M. T; Castro, E. (Orgs.). Ecossistemas Amazônicos: Dinâmicas,

Impactos e Valorização dos Recursos Naturais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, p.

79-97. 2011.

SENNA, C. S. F. Análise palinológica e sucessão vegetal durante o Holoceno nos

ecossistemas costeiros do município de Quatipuru – Pará. Relatório de Atividades de

Pesquisa. Museu Paraense Emílio Goeldi; Belém – Pará. 2010.

SILVA, M.M. T. Bioecologia e produção comercial do caranguejo-uçá (Ucides cordatus

Linnaeus, 1763) em Quatipurú, Pará. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará,

Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural, Programa de Pós-Graduação em Ciência

Animal, Belém, 2008

TRICART, J. Ecodinâmica. Rio de Janeiro: IBGE, 1977.

VENTURI, L. A. B. Recurso Natural: a construção de um conceito. Geousp. São Paulo, n. 20,

p. 9-17. 2006.

VITTE, A. C. O desenvolvimento do conceito de paisagem e sua inserção na geografia física.

Mercator. Fortaleza, v. 6, n. 11, p. 71-78. 2007.

___________ A ciência humboltiana e a geografia física. Mercator. Fortaleza, v.10, n. 23, p.

71-82. 2011.