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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO José Manuel Neves Oliveira 2º Ciclo de Estudos em Filosofia Interpretação Radical em Donald Davidson 2012 Orientador: Professor Doutor João Alberto Cardoso Gomes Pinto Classificação: Ciclo de estudos:

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FACULDADE DE LETRASUNIVERSIDADE DO PORTO

José Manuel Neves Oliveira

2º Ciclo de Estudos em Filosofia

Interpretação Radical em Donald Davidson

2012

Orientador: Professor Doutor João Alberto Cardoso Gomes Pinto

Classificação: Ciclo de estudos:

Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

Versão definitiva

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Interpretação Radical

Índice

Introdução...................................................................................................................................2

1. Considerações Preliminares....................................................................................................6

1.1 Teoria Semântica da Verdade..........................................................................................7

1.1.1 Convenção-V............................................................................................................9

1.2 Caráter Empírico da Teoria de Significado....................................................................12

1.3 A Mente Segundo Davidson..........................................................................................16

1.3.1 Monismo Anómalo.................................................................................................17

1.3.2 Ações, Razões e Causas.........................................................................................20

1.3.3 Racionalidade.........................................................................................................22

2. Interpretação Radical............................................................................................................26

2.1 Identificação dos Princípios Lógicos.............................................................................27

2.2 Frase Ocasionais.............................................................................................................29

2.3 Tomar como Verdadeiro................................................................................................30

2.4 O(s) Princípio(s) de Caridade.........................................................................................31

2.4.1 O Princípio de Coerência........................................................................................33

2.4.2 O Princípio de Correspondência.............................................................................35

2.5 Triangulação e Objetividade..........................................................................................38

2.6 Indeterminação da Interpretação....................................................................................41

3. Objeções................................................................................................................................46

3.1 A Objeção de Foster.......................................................................................................46

3.2 Caridade é Insuficiente...................................................................................................48

3.3 O Argumento Cético......................................................................................................50

Reflexões Finais........................................................................................................................54

Bibliografia...............................................................................................................................57

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Interpretação Radical

Introdução

O que faz com que uma palavra ou frase tenha um significado? Que capacidade permite aos

humanos usar a linguagem para compreenderem e serem compreendidos? A proposta de

Donald Herbert Davidson (1917-2003) é que o significado de uma expressão só é

compreensível do ponto de vista de um intérprete, i.e., do ponto de vista de alguém que tem

de atribuir significados às frases usadas por outras pessoas e, que ao mesmo tempo, tem de

esperar que as frases por si usadas sejam compreendidas por outros.

Que conhecimento seria então suficiente para que alguém na posição de intérprete

compreenda outros? Davidson defende que a construção de uma teoria de significado para

uma língua começa pela construção de uma teoria de verdade para as frases proferidas pelos

falantes que se pretendem interpretar e no teste empírico dessa teoria de interpretação. Como

as línguas naturais podem, potencialmente, ser usadas para produzir um número infinito de

frases e dado que é impossível a alguém conhecer cada uma dessas frases, a teoria de

interpretação tem, necessariamente, de usar recursos finitos. O significado de cada frase vai

então depender do significado de cada uma das partes mais simples dessa língua.

Davidson concebe então um projeto idealizado de interpretação, no qual o intérprete

tem de redescrever o comportamento verbal e não-verbal de forma a descobrir as crenças dos

falantes e o significado das frases que eles usam. O intérprete não tem conhecimento prévio

das crenças dos interpretados, nem daquilo que as palavras na língua deste significam. Não

pode também pedir a falantes bilingues que o ajudem a compreender o que está a ser expresso

por essas frases. Por estas razões, Davidson apelida este projeto de interpretação radical, já

que responder à pergunta sobre o que é suficiente para interpretar radicalmente um falante

tornará explicito, ao mesmo tempo, o que é suficiente para interpretar qualquer falante (quer

fale a mesma língua que o intérprete ou não).

A teoria formal da verdade que Davidson propõe usar deve obedecer a critérios

empíricos; não fazer uso de noções que a teoria pretende iluminar (como a noção de

significado); poder ser utilizada de forma sistemática para interpretar qualquer uma de um

número potencialmente infinito de frases que podem ser expressas numa língua natural; e

poder ser descrita de uma forma suficientemente detalhada. Uma teoria de significado deve,

segundo a proposta de Davidson, satisfazer todas estas condições.

Para que uma teoria de verdade possa ser assim utilizada, ela tem, antes de mais de ser

modificada para lidar com línguas naturais. Davidson formula várias propostas acerca de

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como tal pode ser feito, e.g., relativizando a teoria de verdade ao momento em que a frase é

proferida pelo falante. A esperança última de Davidson é que a forma lógica das frases das

línguas naturais torne as suas características semânticas analisáveis, e a compreensão do

significado dessas frases possível.

Este trabalho procurará responder a algumas questões relativas à metodologia de

interpretação radical tal como foi proposta por Davidson. Que tipo de dados podem ser usados

como ponto de partida para construir uma teoria de significado para uma língua natural? Que

forma teria essa teoria interpretativa? Que tipo de dados ou indícios empíricos podem

sustentar essa teoria? E, por fim, é possível construir uma teoria interpretativa (semântica) a

partir de dados não semânticos?

O propósito deste trabalho é a compreensão da interpretação radical, pois devido à

natureza sistemática do pensamento de Davidson e ao papel central que o intérprete tem na

sua obra, uma compreensão adequada daquilo que está em causa permite uma melhor

compreensão do resto da obra de um dos filósofos mais importantes e influentes no século

XX.

Com o objetivo de tornar claro o que está em causa no projeto de interpretação radical,

dividi o trabalho em três partes. Na primeira parte, apresento a forma como Davidson usa

algumas teses filosóficas nas suas propostas, mas também a forma como desenvolve propostas

inovadoras para resolver os problemas, bem como as suas propostas para enfrentar alguns

problemas da filosofia — principalmente da filosofia da mente. Assim, apresento a teoria

formal da verdade que constituirá a estrutura das teorias interpretativas. Apresento igualmente

algumas propostas de modificação que Davidson faz para poder usar a teoria na análise de

frases de línguas naturais. Também nesta parte se apresentam as propostas de Davidson em

relação à mente humana: a relação do mental com o físico; a forma como ele explica as ações

humanas e aquilo que as origina; e a importância da racionalidade para entender o mental.

Devido à natureza sistemática da sua obra e ao uso que ele faz das suas próprias propostas

filosóficas em algumas áreas da filosofia para resolver problemas noutras áreas, a primeira

parte deste trabalho reveste-se de particular importância, ao apresentar e esclarecer os

conceitos e as teorias que serão usadas durante o resto do trabalho, bem como os pressupostos

que enformam o pensamento de Davidson.

Na segunda parte descrevo a forma como Davidson defende que a metodologia de

interpretação radical poderia ser posta em prática. Embora a apresentação se faça

separadamente, é importante deixar claro desde já que a separação é um artifício meramente

explicativo. Nenhuma das fases da interpretação radical apresentadas nesta parte pode ser

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considerada isoladamente — nem isoladamente umas das outras, nem independentemente das

teses apresentadas na primeira parte. A identificação de princípios lógicos, a correlação entre

as frases ocasionais às quais o intérprete assentiria e a identificação da atitude de tomar como

verdadeiro — que pode ser identificada por qualquer intérprete —, constituem o ponto de

entrada na compreensão de qualquer língua. A atribuição a um falante de uma lógica como a

do intérprete, permite que o primeiro assuma que o falante raciocina, de modo geral, da

mesma forma que ele. A correlação das frases ocasionais do interpretado com as do intérprete

permite atribuir as mesmas condições de verdade às frases do falante que o intérprete atribui

às suas frases. Assumir que ambos estão a reagir aos mesmos eventos permite ao intérprete

assumir que as condições em que alguém toma uma frase por verdadeira são as condições de

verdade dessa frase. Recorrendo aos princípios mencionados atrás, o intérprete está pronto a

formular hipóteses não só sobre quando o falante está a exprimir uma crença, mas também

sobre as condições que o levam a ter essa crença e a forma como ela é suportada por outras

crenças.

Uma vez na posse de várias hipóteses acerca das crenças dos falantes, o intérprete

pode começar a testar se a teoria que está a construir para interpretar um falante é adequada.

Aplicando, de forma geral, o princípio de caridade a todas as frases que o falante usa o

intérprete pode correlacionar as suas frases com frases do falante, de forma a assumir que as

condições de verdade das suas frases têm são as condições de verdade que o falante atribui às

suas frases. O uso destes princípios permite ao intérprete otimizar o acordo entre ele e o

interpretado. Tal permite começar a fazer sentido das diferenças e daquilo que o intérprete

pensa serem erros do falante.

Porém, mesmo se os falantes estão a reagir a eventos e objetos no mundo que estão a

causar as suas crenças, fica ainda por resolver que eventos e objetos estão na origem de que

crenças — o que Davidson contende é necessário para definir o conteúdo de pelo menos

algumas crenças. Se pode ser estabelecida a correlação entre as reações observáveis de dois

agentes aos objetos e eventos comuns, estabelece-se também — até certo ponto — qual o

evento ou o objeto que causa essa crença. Por fim, se há várias formas de acomodar os

indícios que se observam nas ações de um falante e não há uma forma de confirmar qual é a

teoria mais adequada para interpretá-lo, então, mesmo depois de construirmos uma teoria

completa de interpretação para esse agente, existirão ainda outras teorias que seriam

igualmente bem-sucedidas nessa tarefa.

Na terceira parte apresento três objeções à proposta de Davidson. A primeira objeção

põe em causa que uma teoria de verdade do tipo que Davidson propõe seja suficiente para

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interpretar um falante de uma língua estranha. Nem mesmo saber que essa teoria é uma teoria

para a língua que se pretende interpretar é suficiente. A segunda objeção ataca o coração da

teoria davidsoniana, pondo em causa que o princípio de caridade, tal como é proposto por

Davidson, seja suficiente para interpretar frases de uma língua estranha. A terceira e última

objeção é a objeção cética. Questiona que a interpretação que qualquer teoria de interpretação

deve aceitar não ponha em causa todo o projeto, já que, se for possível construir várias teorias

de interpretação, igualmente verdadeiras, para uma determinada língua o intérprete não tem

modo de escolher qual é a teoria que interpreta de facto a língua estranha nos termos da sua.

As reflexões finais procuram responder às questões levantadas nesta introdução tendo

em consideração as explicações desenvolvidas ao longo do trabalho e as objeções que podem

ser avançadas à interpretação radical.

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Interpretação Radical

1. Considerações Preliminares

A interpretação radical está na base de um ponto de vista metodológico a partir do qual

Donald Davidson se propõe estudar a natureza da mente e do significado. Trata-se de uma

situação hipotética em que não há acesso a tradutores/traduções ou dicionários, nem

conhecimento específico dos estados mentais do interpretado. São estas as características que

tornam este projeto de interpretação radical.

A situação exige assim que se construa, desde o início, uma interpretação dessa pessoa

como falante e como agente. Nesta situação, um intérprete (o intérprete radical) deve produzir

uma interpretação de uma pessoa a partir daquilo que pode observar, ou seja, o

comportamento (verbal e não-verbal) de alguém. Visto que não conhece o significado de

nenhuma frase proferida pelo agente, não tem acesso a falantes bilingues que possam servir de

intermediários, nem existem dicionários disponíveis, o intérprete radical deve construir de raiz

uma teoria que lhe permita interpretar todas as frases que o interpretado profere (atual ou

potencialmente). O resultado esperado é uma teoria que atribua crenças e desejos ao

interpretado e explicite o seu significado. Tal quer dizer também que o intérprete atribuirá, no

final do processo de interpretação radical, conteúdo (proposicional) às atitudes do

interpretado. Se tal puder ser feito, então esse falante terá sido interpretado.

Como é óbvio a teoria usada para interpretar não pode assumir à partida conhecimento

do significado das palavras usadas: tal seria assumir à partida aquilo que se pretende

descobrir. O intérprete radical está confinado a correlacionar as circunstâncias

extralinguísticas (os eventos que ocorrem e os objetos que existem no ambiente num

determinado momento) de uma elocução que possam explicar a causa dessa elocução e as

frases (frases ocasionais, num primeiro momento) proferidas pelo agente. Associando-as aos

seus comportamentos de forma a construir uma teoria acerca das crenças e dos desejos do

interpretado o intérprete pode atribuir significados (na sua própria língua) às elocuções do

interpretado, procurando antes de mais atribuir os mesmos valores de verdade às frases com

condições de verdade semelhantes. Certamente que não bastará para interpretar relacionar

estas frases ocasionais com elocuções do agente. Tal seria manifestamente insuficiente.

Eventualmente, serão também as relações (lógicas e causais) entre as frases plausivelmente

atribuídas ao agente que permitirão a interpretação de frases mais abstratas, i.e., menos

ligadas ao comportamento diretamente observável.

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Interpretação Radical

Na secção 1.1 abordarei a teoria formal em que Davidson se baseia para construir a

sua metodologia de interpretação radical. Na secção 1.1.1 apresentarei algumas modificações

que Davidson propõe fazer a essa teoria formal, para que possa ser aplicada a linguagens

naturais. A secção 1.2 aborda o problema da aplicação empírica da teoria de verdade

construída na secção 1.1.1, visto que é ainda necessário esclarecer mais detalhadamente como

proceder para interpretar alguém. Na secção 1.3 procuro esclarecer as teses davidsonianas

acerca da mente humana, nomeadamente as relações mente-corpo (1.3.1), a teoria da ação que

ele desenvolve (1.3.2) e a forma como ele entende a racionalidade (1.3.3).

1.1 Teoria Semântica da Verdade

Alfred Tarski propôs, num dos seus mais importantes artigos,1 explorar uma maneira de

produzir “uma definição satisfatória de Verdade, isto é, uma definição que seja materialmente

adequada e formalmente correta.”2 Por adequação material entende uma forma sistemática de

apresentar as condições de verdade para cada uma de um número infinito de frases de uma

linguagem. A correção formal diz respeito à semântica da linguagem, i.e., aos termos que

estão definidos e são usados nessa linguagem, e ao seu modo de combinação por forma a criar

frases de complexidade variável a partir das partes mais simples dessa linguagem, pela

aplicação recursiva dos recursos da teoria. A sua intenção não é fornecer o sentido ou a

intensão do termo ‘verdade’ mas somente definir a sua extensão, i.e., as classe dos objetos aos

quais o termo pode ser aplicado, tal que formem expressões verdadeiras (na linguagem para a

qual o termo está a ser definido).

A conceção de verdade que Tarski tem em mente deve conformar-se ou “fazer justiça

à conceção aristotélica clássica de verdade,” ou seja à conhecida definição: “dizer daquilo

que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou

daquilo que não é que não é, é verdadeiro.”3 No entanto considera que tanto a formulação

aristotélica, como outras similares a ela, são pouco precisas e claras. Vejamos então como

Tarski propõe que se construa uma teoria da verdade (que esteja de acordo com a intuição

aristotélica).

Se tomarmos uma frase simples, por exemplo ‘a neve é branca’, sob que condições

podemos afirmar que a frase é verdadeira ou que a frase é falsa? Segundo a conceção

1 Cf. Tarski, 1990. Os exemplos desta secção são retirados daqui. Cf. também Evnine, 1991; Glüer, 2011.2 Tarski, 1990, 75. (Itálico meu)3 Tarski, 1990, 77.

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Interpretação Radical

aristotélica de verdade que o autor usa a frase é verdadeira se a neve é branca, e é falsa se a

neve não é branca. A teoria semântica de verdade tem então de “implicar a seguinte

equivalência: A frase ‘a neve é branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca.”4 A

frase do lado esquerdo da bicondicional contém o nome da frase (uma forma de referir a frase

que queremos analisar) e a frase do lado direito é a frase ela própria. Há duas razões para que

a frase do lado esquerdo inclua o nome da frase, designadamente, que numa frase em que se

afirme que algo é verdadeiro, o que quer que substitua o ‘algo’ não pode ser uma frase, pois

está no lugar de sujeito da frase. Por outro lado, não faz sentido que ao falar de um qualquer

objeto as nossas frases se refiram ao seu nome e não ao próprio objeto.

Partindo das considerações anteriores, o autor propõe então que se substitua uma

qualquer frase arbitrária da nossa linguagem por uma letra, por exemplo ‘p’ e que o nome

dessa frase arbitrária seja substituído por uma letra ‘X’ (o nome da frase pode ser substituído

por qualquer letra desde que se defina explicitamente o que esse nome refere).

Somos agora capazes de formular de forma precisa as condições debaixo das quais

consideramos o uso e a definição do termo «verdadeiro» de tal maneira que todas as

equivalências da forma (T) possam ser afirmadas, e chamaremos a uma definição de

Verdade «adequada» se todas essas equivalências dela se seguirem.5

O resultado, evidente, é uma frase da forma “ ‘X’ é verdadeira se e só se p”.

Agora perguntamo-nos “qual é a relação lógica entre as duas frases: «X é verdadeira»

e ‘p’.”6 A relação interessante aqui é a de equivalência, denominada equivalência da forma-V,

quando falarmos da teoria semântica da verdade. Cada uma das equivalências da forma-V que

possam ser construídas para uma linguagem constitui uma definição parcial de verdade. O

conjunto de todas as equivalências de forma-V de uma linguagem natural L1, constitui uma

definição de verdade para essa linguagem L1. Uma definição de verdade (para uma qualquer

frase de uma linguagem) será adequada se a equivalência — i.e., se a bicondicional — for

verdadeira. Pelos princípios da lógica proposicional, uma equivalência é verdadeira se e só se

ambos os componentes são verdadeiros ou ambos os componentes são falsos. Uma definição

“geral” para uma determinada linguagem tem de ser o conjunto de todas as equivalências da

forma-V que possam ser formuladas para as frases dessa linguagem.7

4 Tarski, 1990, 78.5 Tarski, 1990, 80. (Itálico no original)6 Tarski, 1990, 79.7 É talvez por esta razão que Tarski insiste em dizer que a sua teoria não é uma teoria de verdade no sentido clássico, mas somente que qualquer teoria de verdade adequada tem de implicar equivalências da forma-V para todas as suas frases verdadeiras. O propósito de definir uma teoria deste tipo é definir a extensão dessa teoria, i.e., a classe de todas as frases verdadeiras dessa linguagem.

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Interpretação Radical

Para que a verdade como propriedade de uma determinada linguagem possa de facto

ter a aplicação que Tarski pretende, a propriedade ela mesma não fará parte dessa linguagem,

sob pena de inconsistência. Para tal deve ser efetuada e rigorosamente respeitada uma

distinção entre metalinguagem e linguagem objeto. A linguagem objeto é aquela para a qual

estamos interessados em construir uma teoria semântica de verdade. Para que tal possa ser

feito, a linguagem objeto não pode ser semanticamente fechada, i.e., não pode conter o termo

‘é verdadeiro’. Esse termo só pode fazer parte da linguagem que se usa para analisar a

linguagem objeto, ou seja, só pode fazer parte da metalinguagem. (Se tal não é o caso, a

linguagem está sujeita a paradoxos como o paradoxo do mentiroso).

Por fim falta definir o próprio termo ‘é verdade’, o que Tarski propõe fazer

empregando o conceito de satisfazibilidade. Esta

é uma relação entre objetos arbitrários e certas expressões chamadas «funções

proposicionais». Estas são expressões como «x é branco», «x é maior que y», etc. A sua

estrutura formal é análoga à de frases; no entanto, elas podem conter as chamadas

variáveis livres (como ‘x’ e ‘y’ em «x é maior do que y»), as quais não podem ocorrer

em frases.8

A noção de satisfazibilidade é operacionalizada quando ocorre a substituição das variáveis

livres que ocorrem nas funções proposicionais de forma a obter frases verdadeiras — e.g., se

numa função proposicional “x é branco” substituirmos o ‘x’ por ‘neve’ obtemos a frase

verdadeira a neve é branca. A função proposicional é dita ser satisfeita somente nos casos em

que a variável livre é substituída por um nome de um objeto de forma a tornar a frase

verdadeira, e é dita não ser satisfeita nos outros casos. Desta forma Tarski define o conceito

geral de verdade nos termos da noção de satisfação.

1.1.1 Convenção-V

No centro da interpretação radical está a ideia de uma teoria formal de verdade e, mais

geralmente, que uma teoria formal pode ser usada para criar uma teoria semântica para

línguas naturais. Como diz Davidson

Uma língua pode ser vista como um objecto complexo abstracto, definido dando uma

lista finita de expressões (palavras), regras para a construção de concatenações

8 Tarski, 1990, 91. Sobre o conceito de satisfação cf. também Evnine, 1991.

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Interpretação Radical

significativas de expressões (frases), e uma interpretação semântica das expressões

significativas baseada nas características semânticas das palavras individuais.9

Dadas algumas transformações propostas por Davidson, ele pensa que uma teoria de tipo

definido por Tarski é adequada para dar o significado das expressões de uma língua.10

Davidson esclarece até a ideia básica do seu próprio projeto da seguinte forma

Tal como Tarski, eu quero uma teoria que satisfaça a [teoria semântica de verdade], mas

onde ele assume a noção de tradução para iluminar a de verdade, eu quero iluminar o

conceito de tradução ao assumir compreensão parcial do conceito de verdade.11

O significado das frases é uma função do significado das partes mais simples que as

compõem e da combinação dessas partes mais simples através de operadores lógicos. As

partes mais simples das frases são tratadas como axiomas de um sistema formal que

determina a referência ou as condições de satisfação da aplicação dos termos. Estas

combinações produzem teoremas (na forma de frases-V) que definem o significado das frases

de uma língua natural.

Ainda que o número de frases que podem ser produzidas numa língua natural seja

infinito, o facto de as capacidades humanas serem finitas requer a aplicação de um número

finito de regras sobre um número também finito de expressões da língua. Logo, o número de

expressões a partir do qual as frases são construídas tem de ser finito, assim como as regras de

formação de tais frases — pelo que qualquer teoria de significado adequada para lidar com

línguas naturais também deve ser composicional.

O produto da aplicação desta teoria (as frases-V ou equivalências da forma-V) permite

relacionar de forma simples frases (sejam ou não de uma mesma língua natural) de forma a

definir as condições de verdade de qualquer frase expressa nessa língua.12

Há uma frase-V correspondente a cada frase da língua para a qual a verdade está em

questão, [e] a totalidade das frases-V fixa exatamente a extensão, entre as frases, de

qualquer predicado que tenha a função das palavras ‘é verdadeiro.’ Daqui é claro que

apesar das frases-V não definirem a verdade, elas podem ser usadas para definir a

aplicação correta do predicado de verdade [truth predicatehood]: qualquer predicado é

um predicado de verdade se torna todas as frases-V verdadeiras.13

9 Davidson, 1992, 107. (Itálico meu)10 Cf. Davidson, 1967b; Davidson, 1973b; Davidson, 1976; Evnine, 1991; Glüer, 2011.11 Davidson, 1976, 173. (Itálico meu)12 Cf. Davidson, 1973b.13 Davidson, 1973b, 65. (Itálico meu ) (As traduções dos excertos são da minha responsabilidade. As expressões que aparecem em itálico entre parênteses retos indicam a expressão original, quando existiu dúvida quanto à

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Interpretação Radical

Sigamos o exemplo anterior: “ ‘a neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca.” O

dispositivo atrás descrito permite definir as condições de verdade de uma frase (mais

exatamente do uso de uma frase), sem usar nenhum recurso que não esteja já presente na

própria linguagem em que é usada. Davidson defende efetivamente que a teoria formal da

verdade e a teoria do significado se completam mutuamente, quando afirma que

[…] dar condições de verdade é uma forma de dar o significado de uma frase.

Conhecer o conceito semântico de verdade para uma língua é saber o que é para uma

frase — qualquer frase — ser verdadeira, e isto equivale, num sentido importante que

podemos dar à afirmação, a compreender uma língua.14

Embora não possamos dizer diretamente que a frase-V

(V) ‘A neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca

fornece o significado da frase mencionada, podemos afirmar, com base nas passagens citadas

acima, que Davidson defende que saber o significado de uma frase é saber em que condições

uma frase seria verdadeira e que tal é suficiente para sabermos o significado dessa frase.

Assim, parece defender que o conhecimento das condições de verdade de uma qualquer frase

de uma língua natural é necessário e suficiente para saber o significado dessa frase.

O resultado final da aplicação desta teoria do significado são teoremas que nos

permitem dizer o que uma determinada frase significa, já que a aplicação sistemática deste

processo fornece o significado de qualquer expressão da língua natural que se quer

compreender. A esperança de Davidson é que a aplicação sistemática desta teoria a duas

línguas diferentes (em conjunto com alguns constrangimentos formais) permita criar uma

teoria da interpretação (radical) para línguas naturais.

Ainda assim falta resolver algumas dificuldades relativas a este processo, tal como a

seguinte: dado que aquilo que é requerido da teoria é que produza bicondicionais verdadeiras,

a frase-V:

(V*) ‘A neve é branca’ é verdadeira se e só se a neve é branca e a relva é verde

é aceitável?

Visto que tanto a frase do lado esquerdo da bicondicional como a do lado direito são

verdadeiras, aparentemente teríamos um resultado esperado. Davidson está bem ciente do

tradução das mesmas para português.)14 Davidson, 1967b, 24. (Itálico meu) Cf. também Glüer, 2012.

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problema e tenta resolvê-lo impondo mais restrições à sua teoria de modo a que não produza

resultados tão estranhos, tal como veremos na secção seguinte.

1.2 Caráter Empírico da Teoria de Significado

O sucesso da aplicação a linguagens naturais de uma teoria de verdade modificada só será, no

entanto, confirmada ou não conforme tiver sucesso na interpretação de frases numa linguagem

natural.

Uma teoria de verdade liga o falante e o intérprete: ao mesmo tempo descreve as

capacidades e práticas linguísticas do falante e dá substância àquilo que o intérprete

conhecedor sabe que lhe permite compreender o significado das asserções do falante.15

Se uma teoria da interpretação não tiver sucesso empírico será inútil, pelo que a sua

aplicabilidade tem de ser testada: “uma teoria que passe os testes empíricos é uma [teoria] que

de facto pode ser projetada para casos não observados e casos contrafactuais.”16

“Kurt profere as palavras ‘Es regnet’ e dadas as circunstâncias adequadas sabemos que

essa pessoa disse que está a chover.” E então podemos fazer duas perguntas: “O que

poderemos saber que nos permita dizer isto?” e “De que forma o poderíamos saber?”17 A

questão é, portanto, que conhecimento nos permite interpretar os outros ou, por outras

palavras, que constrangimentos têm de ser aplicados a qualquer teoria interpretativa para

que seja bem sucedida.

Esta estratégia permite substituir a pergunta “O que é o significado?” por outra à qual

talvez seja possível uma resposta mais inteligível: “o que é suficiente um intérprete saber de

forma a entender um falante de uma língua estranha, e como poderia o intérprete sabê-lo?”18

A resposta à pergunta acerca daquilo que permite a interpretação de alguém parece ser o

conhecimento do significado de cada uma das expressões significativas de uma qualquer

língua.19

Visto que as línguas naturais possuem um número finito de expressões básicas, mas

um número infinito de frases podem ser construídas pela combinação destas expressões,

15 Davidson, 2005a, 52.16 Davidson, 1976, 174.17 Davidson, 1973a, 125 e 126, respetivamente.18 Davidson, 1994, 126. (Itálico meu)19 A tradução de um idioma noutro parece aqui ser insuficiente para uma caraterização semântica de expressões de uma língua. Alguém pode saber que a expressão ‘Es regnet’ é traduzida pela expressão ‘Il pleut’ sem que saiba o que nenhuma destas signifique.

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Interpretação Radical

qualquer teoria de interpretação terá de explicar o significado das expressões básicas da língua

e as diferentes formas de combinação, se pretende fornecer uma teoria do significado dessa

língua.20 A ideia geral de partida é a seguinte:

os fenómenos aos quais recorremos são os interesses extralinguísticos e as atividades

que a linguagem permite levar a cabo, e estas são servidas por palavras somente

enquanto as palavras estão incorporadas (ou numa dada ocasião acontece estarem) em

frases.21

Não podemos esperar interpretar as intenções de um falante ao proferir uma frase, sem que

tenhamos uma teoria que nos permita interpretar as suas elocuções. E não podemos interpretar

as elocuções de alguém sem que saibamos quais são as suas intenções ao proferir a frase que

profere, nas ocasiões em que a profere. A teoria da interpretação radical deve, então, explicar

ambos os fatores simultaneamente — e, ao mesmo tempo, tem de se basear em recursos

finitos para fornecer o significado de um número potencialmente infinito de frases. Se tal

puder ser feito, há esperança de explicar de que forma um intérprete pode compreender as

elocuções de um falante de uma qualquer língua (mesmo uma língua completamente

estranha). Como diz Davidson

na interpretação radical, contudo, espera-se que a teoria forneça uma compreensão das

elocuções particulares que não é dada à partida, de forma que os indícios conclusivos

para a teoria não podem ser amostras de interpretações corretas. Para lidar com o caso

geral, os indícios devem ser de um tipo tal que estariam disponíveis a alguém que não

sabe já de que forma interpretar [as] elocuções que a teoria deve explicar: devem ser

indícios que possam ser afirmados sem o uso essencial de conceitos linguísticos tais

como significado, interpretação, sinonímia, e outros que tais.22

A solução de Davidson requer a aplicação sistemática da teoria formal da verdade

proposta por Tarski para a definição de um predicado de verdade numa determinada língua,

‘verdadeiro em L.’ O autor modifica, no entanto, a teoria original, tal que esta possa ser

aplicada a línguas naturais, permitindo incluir elementos indexicais e outras propriedades que

a teoria formal da verdade tal como proposta por Tarski não consegue explicar.

A aplicação de uma teoria de verdade deste tipo ajuda a compreender a forma como

funcionam as linguagens naturais. As vantagens previsíveis do seu uso são: (i) as frases-V

20 Cf. Davidson, 1970b; Davidson, 1973a; Davidson, 1974a.21 Davidson, 1973a, 127.22 Davidson, 1973a, 128. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

permitem definir as condições de verdade de qualquer frase, sem que tenham de aplicar

recursos que não estejam já usados na frase a ser analisada; tal é vantajoso para a teoria de

interpretação radical, visto que evita falar de significados antes de qualquer interpretação. (ii)

O otimismo reforçado pela história da filosofia, (notavelmente o modo como Frege propôs

uma forma de formalizar expressões tais como ‘todos’, ‘algum’ e ‘nenhum’) de que

explicando uma pequena parte simples da linguagem se possa fazer luz sobre as partes mais

complexas, através de métodos recursivos, já que estas partes mais complexas são formadas a

partir das partes mais simples, para as quais sabemos construir frases-V adequadas.23 Atribuir

à verdade um papel central de forma construir uma teoria da interpretação é vantajoso já que,

como diz o próprio Davidson, a verdade

é uma propriedade simples que é predicada, ou não, a elocuções, enquanto que cada

elocução tem a sua própria interpretação; e a verdade está mais apta a ligar-se a

atitudes relativamente simples dos falantes.24

Impostos constrangimentos suficientes para a aplicação da teoria formal da verdade, espera-se

que as frases-V produzidas correspondam a interpretações adequadas, i.e., que tenham como

resultado bicondicionais verdadeiras, mesmo quando relacionam duas línguas diferentes.

Espera-se ainda que os indícios (que servem de base à teoria) não sejam descrições detalhadas

das crenças e dos desejos dos falantes — tal seria assumir, logo à partida, a interpretação e

isso tornaria o método circular. Mas há que assumir, no entanto, uma interdependência entre

as crenças e os significados das frases proferidas: “um falante toma uma frase como

verdadeira por causa daquilo que a frase significa (na sua língua) e por causa daquilo em que

ele acredita”25 e, além disso, que qualquer falante demonstra a atitude de tomar como

verdadeira uma qualquer frase (que não difere de crer na verdade dessa frase). É importante

explicar a importância disto de forma a esclarecer o principio de caridade,26 já que não é

possível atribuir conteúdos às crenças de alguém, sem que muito do que ele acredita seja

verdadeiro. O que é importante, de facto, é que a teoria usada maximize o acordo entre os

interlocutores, i.e., a teoria implica que o intérprete considere qualquer interpretado como

tendo crenças, na sua maioria, verdadeiras (pelos seus padrões).

Estamos então em condições de esboçar as condições mais básicas necessárias para

proceder à interpretação radical.27 23 Cf. Davidson, 1973a.24 Davidson, 1973a, 134.25 Davidson, 1973a, 134. Acerca da atitude de tomar como verdadeiro cf. secção 2.3.26 Cf. Secção 2.4.27 Cf. Davidson, 1973a, principalmente páginas 136 e segs.

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Interpretação Radical

O primeiro passo a dar é a identificação das constantes lógicas, i.e., a identificação das

palavras que quando usadas pelo intérprete servem como constantes lógicas (tal implica “ler”

a nossa própria lógica na língua do interpretado). O propósito é encontrar a melhor forma de

fazer encaixar as nossas constantes lógicas na língua a ser interpretada como “uma grelha a

ser aplicada à linguagem de uma só vez.”28 Ao fazer isto resolvemos alguns dos problemas

relativos à forma lógica das frases.

O segundo passo procura interpretar as frases que são tomadas por verdadeiras (ou

falsas) consoante as mudanças no ambiente, ou seja, frases ocasionais.29 O primeiro e o

segundo passo limitam a interpretação de predicados e de alguns termos singulares.30

Por fim, interpretam-se as frases cujo valor de verdade não parece variar consoante as

mudanças no ambiente.

Este método pretende resolver o problema da interdependência das crenças e dos

significados tornando as crenças constantes tanto quanto possível, enquanto se procura

[atribuir] significado.31

A base para este constrangimento é uma posição holista que Davidson defende ser central na

compreensão das atitudes proposicionais de agentes racionais, de tal modo que só à luz de

muito acordo sobre que crenças se acredita serem verdadeiras é que podemos discordar sobre

quais são falsas. Somente se considerarmos, até indicação em contrário, que a maioria das

crenças de qualquer interpretado são verdadeiras (quaisquer que elas sejam) podemos

interpretá-lo.32

Se uma teoria formal de verdade, ao tornar explícitas as condições em que uma frase é

verdadeira, dá as condições de verdade dessa frase numa determinada língua (como já foi

assumido atrás), seria fácil pensar que as frases-V dariam o significado de uma frase. Mas não

se segue que, porque uma teoria fornece as condições de verdade, se possa dizer que essas

condições de verdade são satisfeitas. No caso da interpretação radical não sabemos se a

verdade das frases-V é, ou não, satisfeita visto que tal seria assumir a própria interpretação.

28 Davidson, 1973a, 136.29 Um exemplo de uma frase ocasional é o João dizer ‘está a chover’, quando está a chover ao pé do João na altura em que ele profere a frase. Devido ao modo como os valores de verdade destas frases dependem das mudanças no ambiente, Davidson vê aqui uma forma simples de começar a correlacionar, de forma sistemática, valores de verdade das frases do intérprete com valores de verdade das frases do interpretado.30 Incluindo pelo menos alguns predicados diádicos e outros de maior aridade, bem como aqueles que respeitam a termos tais como os termos de massa (não contáveis) e termos gerais.31 Davidson, 1973a, 137. (Itálico meu)32 Não quer dizer que assumamos uma posição de confiança absoluta no poder da razão humana no que diz respeito à formação de crenças verdadeiras, simplesmente que só se considerarmos que a maioria das crenças que alguém possui são verdadeiras é que podemos pretender interpretar.

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Interpretação Radical

Como diz Davidson, referindo-se especificamente ao papel crucial que o holismo desempenha

na sua posição,

o nosso problema atual resulta do facto que na interpretação radical não podemos

assumir que uma frase-V satisfaz o critério de tradução. O que temos ignorado, contudo,

é que fornecemos um critério alternativo: este critério é que a totalidade das frases-V

deverá […] adequar-se otimamente aos indícios sobre frases tomadas por verdadeiras

por falantes nativos. A ideia presente é que aquilo que Tarski assumiu à partida

[outright] para cada frase-V pode ser indiretamente descoberto por um

constrangimento holístico. Se esse constrangimento é adequado, cada frase-V fornecerá

de facto uma interpretação aceitável.33

A referência à tradução é uma referência à forma como Tarski formula a sua teoria. Visto que

a sua pretensão original era que a teoria fosse aplicada a linguagens formais, bastava-lhe

definir as condições de tradução de uma frase noutra para demonstrar a equivalência. O que

Davidson lembra na passagem supracitada é que tal dispositivo não se encontra diretamente à

sua disposição. A interpretação dependerá da construção de uma teoria de verdade para uma

língua natural que possa ser confirmada empiricamente, ou seja, cuja aplicação sistemática

seja suficiente para compreender essa língua natural.

1.3 A Mente Segundo Davidson

Visto que Davidson considera que a interpretação só pode ocorrer através da atribuição de

atitudes proposicionais a agentes, e que não possuindo uma teoria de interpretação para a sua

língua, a única forma de a construir é pela observação de padrões de comportamento, falta

ainda abordar as teorias davidsonianas que procuram explicar a relação mente-corpo e a ação

humana. Assim na secção 1.3.1 abordo o monismo anómalo, a teoria que Davidson

desenvolveu para explicar as relações mente-corpo. Na secção 1.3.2 abordo as suas posições

acerca da ação humana e a causalidade, que nas teorias acerca da mente têm um papel

fundamental que é necessário esclarecer. Não só Davidson defende que as relações entre a

mente e o mundo são de natureza maioritariamente causal, como defende serem também de

natureza causal as relações entre atitudes proposicionais e ações dos agentes. E na secção

1.3.3 abordo a questão da racionalidade, que estando umbilicalmente ligada à secção 1.3.2,

explica a razão por que não podemos atribuir qualquer crença a um agente, sob pena de nem 33 Davidson, 1973a, 139. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

sequer podermos assumir que ele tem uma mente (pelo menos suficientemente semelhante à

nossa) que o torne interpretável.

1.3.1 Monismo Anómalo

O monismo anómalo34 é uma forma da teoria da identidade para a mente defendida por

Davidson que procura explicar a forma como se relacionam eventos físicos (que ocorrem no

cérebro) e eventos mentais. Nas palavras do próprio autor, o monismo anómalo

sustenta que as entidades mentais (objetos e eventos particulares com localização

espácio-temporal) são entidades físicas, mas que os conceitos mentais não são por

definição ou por lei natural redutíveis a conceitos físicos.35

A dificuldade reside na necessidade de explicar de que forma um sistema físico — regido,

portanto, por leis físicas estritas — pode dar origem a um sistema mental que não é regido por

leis estritas e ser explicado como sujeito a essas mesmas leis.

Para explicar como tal coisa, aparentemente contraditória pode ocorrer, Davidson

enuncia três princípios36 argumentando que eles não são contraditórios:

(1) Princípio da Interação Causal: pelo menos alguns eventos mentais interagem

causalmente com alguns eventos físicos. Por exemplo, as atitudes

proposicionais dos agentes (crenças, desejos e intenções) causam ações e,

por outro lado, os conteúdos proposicionais dessas atitudes são, pelo menos

em parte, causados por objetos e eventos no mundo.

(2) Princípio do Caráter Nomológico da Causalidade: se dois eventos estão

relacionados como causa e efeito, então há uma lei estrita que descreve a

relação entre esses eventos, para que estes possam ser integrados num

enunciado (relacional) de causalidade.37

(3) Monismo Anómalo: não existem leis psicofísicas estritas, isto é, leis que

identifiquem tipos de eventos mentais com tipos de eventos físicos.

34 Cf. Davidson, 1970a; Davidson, 1973c; Davidson, 1999.35 Davidson, 1993a, 185. (Itálico meu)36 Estes princípios aparecem formulados originalmente em Davidson (1970a). A formulação aqui apresentada aparece em Davidson (1999). Cf. também Davidson, 1974b.37 Acerca da explicação davidsoniana da causalidade, ver seção 1.3.2.

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Interpretação Radical

E adianta ainda, que se “todos os três princípios são verdadeiros, então aquilo que deve ser

feito é explicar a aparência de contradição.”38 Noutro lugar parece ir um pouco mais longe,

pelo menos no que diz respeito ao princípio (1), quando afirma “todos os eventos mentais

estão causalmente relacionados com eventos físicos.”39

Davidson pensa que a condição (1) é óbvia, ou seja, que crenças, desejos e intenções

causam movimentos corporais e que eventos físicos causam pelo menos algumas crenças.

Estes dois casos constituem formas de relação entre o físico e o mental.

A condição (2) aponta para as diferenças entre conceitos físicos e conceitos mentais.

Os conceitos mentais caracterizam-se por relações lógicas, e por conseguinte obedecem a

critérios de racionalidade e coerência, ficando a sua identificação a dever-se à sua posição no

conjunto mais vasto de todas as atitudes proposicionais do agente.

Os conceitos físicos não. A condição (3) impede o reducionismo do mental ao físico

— quer através da definição de eventos mentais como eventos físicos, quer pela definição de

leis que procurem relacionar o mental com o físico de forma estrita — ao mesmo tempo que

pretende conservar o monismo. Para tal é empregue o conceito de superveniência: “uma

propriedade M é superveniente a um conjunto de propriedades P se e só se M não distingue

nenhuma propriedade não distinguível pelas propriedades em P.”40

O monismo anómalo assemelha-se ao materialismo na sua afirmação de que todos os

eventos mentais são físicos, mas rejeita a tese, normalmente considerada essencial para o

materialismo, de que explicações puramente físicas possam ser dadas dos fenómenos mentais.

“O monismo anómalo revela uma tendência [bias] somente porque admite a possibilidade de

que nem todos os eventos são mentais, enquanto insiste que todos os eventos são físicos.”41

Com esta posição Davidson pretende estabelecer uma explicação do mental, tal que qualquer

exemplar de evento mental é um exemplar de evento físico, numa relação de superveniência.

Esta tese requer que não seja possível formular leis estritas acerca do mental, ou seja,

que “podem existir afirmações gerais verdadeiras que relacionem o mental e o físico” e

podem até apresentar-se sob a forma de leis — podendo ser expressas através de condicionais

contrafactuais e afirmações gerais, cuja correção vai sendo verificada empiricamente — “mas

que não são nomológicas.”42 Para Davidson os predicados mentais e os predicados físicos são

tão dissimilares, que não há leis estritas que os possam relacionar (daí apelidar a sua posição

de monismo anómalo). Em rigor o que está em causa é a redução ontológica de eventos 38 Davidson, 1970a, 209. (Itálico meu)39 Davidson, 1999a, 30.40 Davidson, 1999, 30. (Itálico no original)41 Davidson, 1970a, 214. (Itálico meu)42 Davidson, 1970a, 216. (Itálico no original)

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Interpretação Radical

mentais a eventos físicos devido à natureza causal da relação — que Davidson pensa poder

ser expressa de vários modos.43

Falta somente distinguir entre o que Davidson apelida de leis estritas e leis não

estritas, de forma a compreender claramente o que está em causa no monismo anómalo.

Devemos começar por esclarecer que

leis devem ser frases verdadeiras universalmente quantificadas. Elas devem também ser

nomológicas: devem suportar contrafatuais, e ser confirmadas pelas suas instâncias.

[…] Para serem qualificadas de estritamente nomológicas, não devem conter termos

singulares referentes a objetos particulares, localizações ou tempos. Afirmações

estritamente nomológicas não contêm frases abertas como “permanecendo o resto

igual”, ou “sob condições normais”.44

Para além disso, distingue também entre leis heteronómicas e autonómicas. As leis

autonómicas caracterizam-se pela possibilidade de adicionar condições usando o mesmo

vocabulário que a lei original usa, por exemplo nas leis da física em que novos dados podem

ser introduzidos de forma a tornar uma explicação mais detalhada, sem que esses novos dados

sejam formulados por outra ciência que não a física. Pelo contrário as expressões que podem

denotar leis, mas que necessitam para a sua explicação de usar vocabulário de outras ciências,

são apelidas de heteronómicas, e.g., nas considerações acerca da racionalidade de agentes, em

que o vocabulário tanto da psicologia como da filosofia têm de ser usados para tornar claro

aquilo que está em causa. Este tipo de lei é obviamente muito importante nas considerações

acerca do monismo anómalo, ao permitir relacionar eventos mentais e físicos de forma

complementar, ao mesmo tempo que permite a afirmação da existência de leis (não estritas)

que regulam as relações entre os dois domínios.

São somente os eventos enquanto descritos no vocabulário do pensamento e da ação

que resistem a ser incorporados num sistema determinista fechado. Estes mesmos

eventos, descritos em termos físicos apropriados, são tão suscetíveis de previsão e de

explicação como outros.45

43 Cf. Secção 1.3.2.44 Davidson, 1995b, 203-204. (Itálico no original)45 Davidson, 1974, 230. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

1.3.2 Ações, Razões e Causas

Uma razão (neste caso um par crença-desejo) racionaliza uma ação somente quando descreve

o que o agente pretende ao executá-las e o que o leva a crer que essa é a melhor forma de o

fazer — e.g., uma forma de explicar alguém ter escolhido uma pera em detrimento de uma

maçã é dizer que o agente acha pêras mais saborosas do que maçãs e acreditou que comer

uma pera e não uma maçã seria mais satisfatório.46 A este par Davidson chama razão primária

— a razão pela qual o agente executou uma determinada ação — e afirma ainda que todas as

razões primárias são causas das ações. “Central para a relação entre uma razão e uma ação

que esta explica é a ideia que o agente executou a ação porque ele tinha essa razão.”47

Uma razão racionaliza uma ação somente se nos leva a ver algo que o agente viu, ou

pensou ver, na sua ação — alguma característica, consequência ou aspeto da ação que o

agente quis, desejou, prezou, achou relevante, benéfico, obrigatório, ou agradável.48

Além disso a explicação de uma ação de um agente deve incluir i) a razão pela qual o agente

executa a ação que executa e ii) a crença que a ação executada é apropriada para atingir os

seus objetivos. Portanto apontar a razão pela qual alguém faz algo é apontar a pró-atitude, ou

a crença relacionada, ou ambas. A razão primária é a razão pela qual um agente executa uma

dada ação, e a razão primária é precisamente a causa dessa ação.49

“Redescrever a ação dá à ação um lugar num padrão, e neste sentido a ação é

explicada.”50 Para justificar a afirmação defende que as ações podem ser explicadas a partir de

razões e que, embora as causas sejam separáveis dos seus efeitos, não se segue que as razões

não podem ser causas. Mas a inclusão num padrão mais geral não melhora a nossa

compreensão do que está envolvido na explicação das ações, porque o padrão (no seio do qual

as razões encontrariam justificação) contém ele próprio razões e ações.

A noção de redescrição de uma ação tem ainda de enfrentar outros problemas.

Tomemos o exemplo de um agente que pressiona um interruptor para acender a luz da sua

casa. Esta ação pode ser redescrita apontando as razões que o levaram a executar a ação,

nomeadamente, a crença de que carregar no interruptor acende a luz e o desejo de acender a

46 Cf. Davidson, 1963. Várias razões podem ser apontadas para uma determinada ação. O agente pode ter, por exemplo, preferência por frutas de cor amarela em detrimento de frutas de cor encarnada, da mesma forma que pode preferir frutas que não sejam esféricas, etc. O que importa são as razões que o agente possui e que causam a ação.47 Davidson, 1963, 9. (Itálico no original)48 Davidson. 1963, 3.49 Cf. Davidson, 1963.50 Davidson, 1963, 10. A ideia de padrão refere-se ao conceito de racionalidade. Cf. seção 1.3.3.

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Interpretação Radical

luz na divisão da casa onde se encontra. Mas, sem que o agente saiba, ao acender a luz está

também a permitir que alguém que o tem seguido fique a saber que já está em casa. Desta

forma há duas formas de descrever a ação. Numa delas a ação é descrita como ‘o agente

pressiona o interruptor para acender a luz’ e na outra como ‘o agente avisa o seu perseguidor

de que está em casa.’51

Qualquer que seja a descrição das ações do agente, o único critério necessário é que as

razões façam parte de um sistema de atitudes que possa ser atribuído ao agente de forma a

preservar a sua racionalidade. Visto que a relação entre uma causa e uma ação é entendida

como uma relação entre dois eventos, “no sentido em que um dos eventos causa o outro se for

de facto a razão para ele,”52 essa relação pode ser entendida ao mesmo tempo como racional e

causal, sem que no entanto possa ser entendida em qualquer umas das duas descrições aqui

em causa como uma lei estrita.

A noção de causa que aqui intervém deriva de uma tese específica de Davidson.53 Uma

causa pode ser definida como uma relação entre dois eventos, x e y, tal que há um único

evento x que ocorreu antes de um único evento y, e x foi a causa de y. Embora a relação de

causalidade se aplique a eventos, a descrição dessa relação diz respeito aos termos singulares

que denotam esses eventos. As descrições da relação de causalidade são linguísticas, e podem

ser expressas de formas variadas, mas a relação de causalidade ocorre entre eventos que são

entendidos como particulares, portanto irrepetíveis. A descrição da relação entre x e y não é

importante já que as relações de causalidade obedecem a condições de extensionalidade, i.e., a

substituição de termos coextensionais na frase não altera o valor de verdade da mesma. O

facto de a relação de causalidade poder ser descrita desta forma, permite não assumir à partida

a existência de uma lei estrita que relacione (causalmente) tipos de eventos. Aquilo que

interessa na explicação da causalidade é a estrutura lógica das frases verdadeiras que

expressam relações de causalidade. A frase é verdadeira se e só se o evento denotado pela

primeira expressão causou o evento denotado pela segunda expressão.

1.3.3 Racionalidade

Davidson escreve: “entendo por racionalidade o que quer que envolva pensamento

proposicional.”54 Somente se há um padrão identificável nas ações de um agente, é que ele

51 Exemplo retirado de Malpas, 2010.52 Malpas, 2010, §2.1.53 Cf. Davidson, 1993a; Davidson, 1995b; Evnine, 1991; Malpas,2010, §2.4; Glüer, 2011.54 Davidson, 2001b, xiv. Cf. também Davidson, 1995a; Davidson, 2001c; Ludwig, 2004.

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Interpretação Radical

pode ser considerado racional e a única forma de atribuir estas atitudes proposicionais

particulares a alguém é vê-las como parte de um sistema coerente de atitudes — crenças,

desejos e intenções: “o conteúdo de uma atitude proposicional deriva do seu lugar no padrão

[de todas as atitudes]”55 e “estes princípios são partilhados por todas as criaturas que têm

atitudes proposicionais ou que ajam intencionalmente.”56 Ainda de acordo com Davidson,

um padrão naquilo que é observado é central para a inteligibilidade das escolhas de um

agente; ele determina a nossa capacidade para entender a ação como tendo sido feita

por uma razão.57

Deste ponto de vista, a racionalidade não pode ser entendida como um problema empírico.

Tem de ser assumida à partida e qualquer coisa que se diga acerca da mente deve conformar-

se com ela.

A racionalidade pode ser vista (pelo menos) de um ponto de vista teórico ou de um

ponto de vista prático. No primeiro caso incide sobre a questão de como se chega a ter crenças

verdadeiras, excluindo casos de sorte epistémica. No segundo caso, incide sobre a questão de,

dadas as crenças e os desejos de um agente, como pode este atingir os seus objetivos. O grau

de racionalidade

de alguém depende do grau em que as suas atitudes exibem um padrão […] idealmente

apropriado para a persecução dos seus objetivos práticos e teóricos.58

Davidson defende que é uma condição necessária para a racionalidade de um agente

que este tenha atitudes proposicionais.59 Nesta classe de atitudes proposicionais inclui as

crenças, os desejos e as intenções.

Identificamos pensamentos, distinguimos entre eles, descrevemo-los pelo que são,

somente enquanto eles podem ser localizados dentro de um padrão denso de crenças

relacionadas.60

Ou posto de um modo ligeiramente diferente

Uma das formas como as proposições são identificadas e distinguidas umas das outras é

pelas suas propriedades lógicas, o seu lugar numa rede lógica. Mas então não parece ser

55 Davidson, 1970a, 221. 56 Davidson, 1985, 195.57 Davidson, 2005a, 59. (Itálico meu)58 Ludwig, 2004, 345.59 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1997a. 60 Davidson, 1982, 98. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

possível ter uma atitude proposicional que não está racionalmente relacionada com

outras atitudes proposicionais.61

É patente, portanto, que o autor considera a racionalidade um conceito normativo, i.e., que

constitui o padrão a partir do qual é possível atribuir atitudes proposicionais a um agente.

Davidson defende igualmente que a atitude mais importante é a de crer, quando afirma

que “crença — de facto crença verdadeira — desempenha um papel central entre as atitudes

proposicionais. Deixem-me portanto falar de todas as atitudes proposicionais como

pensamentos.”62 A citação anterior reforça a ideia de que o autor considera que ter

pensamentos é ter atitudes proposicionais e que as crenças têm um papel fundamental para

qualquer agente, pelo que a sua identificação será crucial para a interpretação.

A racionalidade ou capacidade de ter pensamentos implica então o holismo, i.e., a tese

de que as crenças não existem em isolamento, mas que só podem ser identificadas em

contraste com muitas outras atitudes, sem que se possa afirmar sequer qual seria o número

aceitável de crenças que um agente teria de possuir para que se lhe atribuísse a crença de que

a neve é branca, por exemplo. Esta ideia é expressa quando o autor afirma que “as crenças

suportam-se e dão-se conteúdo umas às outras. As crenças têm igualmente relações lógicas

umas com as outras.”63 Para que o agente possua essa crença, defende o autor, é necessário

que possua um grande número de outras crenças, por exemplo que a água é composta por dois

átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio, que pode existir sob diferentes estados físicos,

que é essencial para a vida, que as pessoas praticam desportos na neve, etc. São estas relações

que permitem identificar essas crenças, sempre por relação a outras crenças e conceitos.

Se os pensamentos existem em padrões de muitas atitudes, que se suportam

mutuamente, que tipo de relações existem entre as várias atitudes proposicionais? A resposta

de Davidson é que têm entre si relações lógicas, tais como as proposições. Daqui conclui que

“ter uma só atitude proposicional é ter uma lógica no geral correta, no sentido de ter um

padrão de crenças logicamente coerentes.”64 Isto explica a ligação entre possuir atitudes

proposicionais e ser racional. Davidson afirma mesmo que “um grau de racionalidade ou

consistência é portanto uma condição de possuir crenças.”65 A última frase parece defender

que consistência entre as crenças de um agente é semelhante a ser racional, ou, por outras

palavras, que ser racional é não acreditar (conscientemente), e.g., numa conjunção da forma

61 Davidson, 1985, 189. (Itálico meu)62 Davidson 1982, 99.63 Davidson, 1997a, 124. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1977.64 Davidson, 1982, 99.65 Davidson, 1997a, 124.

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Interpretação Radical

(p&~p). No entanto, tal não garante a impossibilidade de irracionalidade. Somente que o

agente é irracional se estiver consciente da contradição e não modificar pelo menos uma das

suas crenças tal que a contradição deixe de se verificar.66

A teoria de racionalidade que tenho vindo a expor parece enfrentar um problema com

ações e atitudes proposicionais consideradas irracionais (pelos padrões dos intérpretes, pelo

menos). Mesmo assim mencionarei alguns dos ensaios que tratam da questão da

irracionalidade, somente para ajudar a clarificar a racionalidade.

As atitudes proposicionais “nunca são irracionais por si só, mas somente como parte

de um padrão mais vasto.”67 Portanto, só podemos considerar um agente irracional, segundo

Davidson, se presumirmos que ele é racional, visto que

qualquer criatura com atitudes proposicionais, tem de mostrar muita consistência no seu

pensamento e ação, e neste sentido possuir os valores fundamentais da racionalidade;

contudo, ele pode desviar-se destas, as suas próprias, normas.68

Deste ponto de vista, a racionalidade é de tal forma básica na interpretação de qualquer agente

que até as ações e crenças irracionais só o são quando entendidas à luz dos princípios mais

gerais de racionalidade, que Davidson pensa, necessariamente, todas as criaturas capazes de

pensamento possuem.

Qualquer atitude proposicional de um agente tem um lugar no padrão mais amplo de

todas as atitudes proposicionais desse agente e esse lugar garante que a atitude em causa é

logicamente coerente com um número indefinidamente grande de outras atitudes. Logo, não

temos outra escolha a não ser encontrar um padrão de racionalidade no comportamento de um

agente (caso contrário não conseguiríamos compreender nada acerca da forma como esse

agente pensa). Se não conseguirmos atribuir a um agente racionalidade suficiente, não

conseguimos interpretá-lo como um agente, i.e., como alguém na posse de atitudes

proposicionais à luz das quais as suas ações fazem sentido e as suas crenças estão justificadas.

Logo, a interpretação radical obriga a encontrar racionalidade em qualquer padrão de crenças

que possa ser atribuído aos interpretados.

Aquela característica que distingue crenças de outras atitudes é a sua objetividade já

que o seu valor de verdade — serem verdadeiras ou serem falsas — depende não do agente

que possui a crença, mas de algo exterior a esse agente.69 Daí que o caso particular das

66 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1985.67 Davidson, 1985, 192.68 Davidson, 1985, 197. (Itálico no original)69 Cf. Secção 2.5 deste trabalho.

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Interpretação Radical

crenças assuma uma importância especial — dado seu papel central no conhecimento do

mundo. Assim sendo, ser racional implicará sempre ter crenças verdadeiras acerca do mundo

(pelo menos nos seus traços mais gerais). Tal permite, entre outras coisas, que Davidson

rejeite o ceticismo acerca do mundo exterior, por ser incompatível com a mente humana.

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Interpretação Radical

2. Interpretação Radical

Neste capítulo veremos com maior pormenor de que forma o projeto de interpretação radical

poderia ser posto em prática. “No essencial o método será o de correlacionar frases tomadas

por verdadeiras com frase tomadas por verdadeiras através de uma definição de verdade.”70

Embora no método de interpretação radical não se possam separar as várias fases, para

que a explicação fique clara é necessário identificar vários passos que devem ser dados para

que, segundo Davidson, o método possa ter sucesso. Deve ficar no entanto sempre claro que a

separação é artificial e que numa situação de interpretação radical os vários passos referidos a

seguir têm necessariamente de ser dados em conjunto e os seus resultados continuamente

revistos à luz de novas informações.

Assim na secção 2.1 abordarei a questão de como podem ser identificadas as palavras

que expressam princípios lógicos numa língua completamente estranha. A secção 2.2 aborda

o papel fulcral que as frases ocasionais têm na metodologia de interpretação radical. A secção

2.3 tenta tornar mais explícito de que forma um intérprete pode atribuir uma atitude de crença

a alguém, mesmo que não saiba qual é o conteúdo dessa mesma crença. Na secção 2.4

procuro esclarecer o que são e de que forma intervêm na interpretação radical o princípio que

Davidson denominou princípio de caridade. Aqui não só tentarei explicitar quais são as duas

formulações que o princípio pode assumir, como também justificar a sua importância. Na

secção 2.5 é abordada uma questão que se liga diretamente à filosofia do conhecimento de

Davidson, nomeadamente a sua tese que o conhecimento tem três características fundamentais

que se sustentam mutuamente, i.e., o conhecimento da própria mente, o conhecimento de

outras mentes e o conhecimento do mundo exterior. A ideia central exposta nesta parte do

trabalho é a de uma relação entre agentes racionais que procuram comparar as suas reações

mútuas aos estímulos salientes do seu meio, a qual Davidson chama triangulação. Por fim a

secção 2.6 trata de uma das consequências da interpretação radical. Devido à natureza das

relações mente-mundo e à impossibilidade (dada a característica radical da interpretação) de

confirmação externa da teoria que os intérpretes constroem, é possível a construção de várias

teorias de interpretação igualmente bem sucedidas na sua missão, mas incompatíveis entre si.

70 Davidson, 1967b, 35. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

2.1 Identificação dos Princípios Lógicos

O primeiro grande papel que a teoria da verdade vai ter na interpretação radical é na

identificação do padrão de operações lógicas. Este primeiro passo na interpretação radical

requer ler a nossa própria lógica nas ações do interpretado (entre as quais estão elocuções de

frases). Como Davidson afirma: “não temos outra escolha senão projetar a nossa própria

lógica nas crenças de outros” pelo que “a estratégia é assumir que as crenças de um

interpretado são logicamente consistentes.”71 Desta forma, neste primeiro passo aquilo que o

intérprete radical deve procurar é

a melhor forma de adequar a nossa lógica, tanto quanto necessário para produzir uma

teoria que satisfaça a convenção-V, à linguagem nova; isto pode significar ler a

estrutura lógica da teoria de quantificação de primeira ordem (com identidade) na

linguagem, não tomando as constantes lógicas uma a uma, mas tratando pelo menos

esta parte da lógica como uma estrutura a ser adequada à linguagem de uma só vez. Os

indícios aqui serão as classes de frases tomadas sempre como verdadeiras ou tomadas

sempre como falsas por quase todos os falantes (potenciais verdades lógicas) e padrões

de inferência.72

Davidson parece assumir que a referência à lógica de primeira ordem com identidade é, para

qualquer intérprete como nós, metodologicamente necessária para a interpretação e que

qualquer agente racional — i.e., qualquer agente como nós — opera necessariamente segundo

os mesmos princípios lógicos do que nós. Qualquer criatura capaz de pensamento tem uma

estrutura de atitudes proposicionais coerente, i.e., cujas relações entre si não violam princípios

lógicos fundamentais (os quais os agentes têm de respeitar, pelo menos do ponto de vista do

intérprete). Caso contrário a interpretação seria desde logo impossível. Os princípios lógicos

que regem o nosso pensamento têm, necessariamente de ser aplicados a qualquer pensamento

de um agente que queiramos interpretar. Tal necessidade é expressa na seguinte passagem:

71 Davidson, 1980, 157. (Itálico meu) Cf. também seção 1.3.3.72 Davidson, 1973a, 136. (Itálico meu) A convenção-V refere-se à teoria tarskiana de verdade modificada por Davidson de forma a poder ser aplicada a línguas naturais tal que possa servir como teoria de interpretação para essa mesma língua. Nomeadamente que a noção de verdade é um princípio primitivo, que qualquer agente racional é capaz de explicitar e como tal pode ser aplicado na construção de frases-V capazes de interpretar expressões numa língua diferente.

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Interpretação Radical

[s]e a metalinguagem possuir estrutura quantificacional vulgar, é difícil, se não for

impossível, descobrir algo exceto estruturas quantificacionais vulgares na linguagem

objeto.73

Quando, e se for possível resolver questões de forma lógica, o resultado da aplicação

destes constrangimentos formais será a descoberta de padrões lógicos semelhantes em todas

as criaturas racionais. Ler a estrutura da lógica de primeira ordem no pensamento de

qualquer agente capaz de ser interpretado é uma condição necessária para a possibilidade de

interpretação radical: “o resultado da aplicação destes constrangimentos formais é, então,

adequar a linguagem objeto como um todo ao leito procustiano da teoria da quantificação.”74

Desta forma fixa-se como condição necessária para a existência de pensamento que a

estrutura de atitudes proposicionais seja consistente, ou seja, que não contenha contradições

lógicas.

A estrutura é formal no sentido em que é possível aplicá-la a qualquer conjunto de

atitudes proposicionais de um agente e que não precisa de levar em conta o seu conteúdo. Este

constrangimento requer somente que o intérprete construa a sua teoria de interpretação para

que essa teoria produza concordância nos aspetos mais básicos do pensamento. Assim, o

intérprete deve modificar a sua teoria de interpretação para que as ações e elocuções do

interpretado continuem a preservar os princípios lógicos. O contrário tornaria a interpretação

completamente arbitrária e portanto impossível. Por exemplo quando alguém afirma

verdadeiramente a frase “O Pedro é mais alto do que o Miguel” tem também de afirmar a

verdade da frase “O Miguel é mais baixo do que o Pedro” sob pena de passar a ter duas

crenças que violam os princípios lógicos mais elementares. Caso isso não aconteça, cabe ao

intérprete modificar a estrutura da sua teoria (das suas crenças em relação ao significado das

frases afirmadas pelo interpretado) de forma a acomodar a verdade de ambas as frases,

preservando as leis do pensamento — de acordo com o que Davidson apelida de princípio de

caridade (Cf. secção 2.4.1). O intérprete tem, repetindo a frase de Davidson, de fazer a lógica

do interpretado acomodar-se no leito procustiano da sua própria lógica.

O mesmo se passa com o interpretado, já que este é simultaneamente intérprete. Ele

tem de acomodar os seus princípios lógicos ao padrão lógico dos pensamentos da pessoa que

está a interpretar. A mutualidade destes princípios cria espaço suficiente para que os erros de

parte a parte tenham significado. Só desta forma é possível discordar de forma compreensível

acerca de crenças tidas por qualquer agente e só se for possível discordar acerca de alguns

73 Davidson, 1974a, 150-151.74 Davidson, 1974a, 151.

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Interpretação Radical

pormenores ou identificar erros, é possível confirmar empiricamente a teoria de interpretação,

pois o intérprete está obrigado a modificar o padrão de crenças que atribuirá ao interpretado

de forma a vê-lo sempre como uma criatura racional.

2.2 Frase Ocasionais

Tendo identificado as palavras que servem o propósito de operadores lógicos na linguagem do

interpretado e as implicações que isso traz, o intérprete procura atribuir valores de verdade a

frases ocasionais — aquelas cuja verdade ou falsidade depende de condições presentes na

altura em que são proferidas — tais como ‘está a chover’. Visto que esta frase é verdadeira se

e só se está a chover, nas imediações de quem a profere e é falsa se não é esse o caso, essa e

outras frases ocasionais são indispensáveis para atribuir significado a alguns termos da

linguagem.75

A interpretação de predicados comuns e nomes depende fortemente de elementos

indexicais no discurso, tais como demonstrativos e tempo, já que são estes que mais

diretamente permitem que predicados e termos singulares estejam relacionados com os

objetos e eventos no mundo.76

Também a existência de demonstrativos e outros elementos indexicais nas linguagens

naturais não pode ser ignorada nem posta de parte como irrelevante. Como lembra Davidson,

os demonstrativos não podem ser eliminados de uma linguagem natural sem perda ou

transformação radical, não restando portanto alternativa senão acomodar a teoria a

eles.77

A sua proposta é modificar a teoria de verdade de forma a relativizar, não as frases, mas

elocuções de falantes a tempos. Uma teoria deste tipo teria como resultado que as condições

de verdade da frase seguinte poderiam ser expressas da seguinte maneira: ‘Estou cansado’ é

verdadeiro se (potencialmente) proferido por S, no momento t, se e somente se S está cansado

no momento t.78

75 A estratégia é que podendo atribuir significado a um número suficientemente vasto de frases, é mais fácil atribuir significado às restantes, tendo o holismo como uma condição necessária para que haja pensamento e assumindo que o pensamento é expresso pela linguagem.76 Davidson, 2005a, 64. (Itálico meu)77 Davidson, 1967b, 33. (Itálico meu) O exemplo que se segue é retirado do mesmo ensaio.78 Em que S refere o sujeito que profere a frase e t o momento em que a frase é proferida.

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Interpretação Radical

O uso de frases com elementos indexicais permite um teste muito mais sensível para

correlacionar frases tomadas por verdadeiras por um agente com frases tomadas por

verdadeiras por outro agente, já que mudanças nas condições que se verificam nas

imediações destes mudam os valores de verdade que lhes são atribuídos. São estas frases

ocasionais que permitirão a Davidson afirmar que, embora só uma crença possa justificar

outra crença, algumas partes desse conjunto terão de estar ligadas ao mundo exterior, de tal

forma que não é possível um sistema de crenças coerentes em que não exista nenhuma

proposição verdadeira acerca do mundo, o que de outra forma seria uma objeção plausível ao

holismo que Davidson defende.79

2.3 Tomar como Verdadeiro

Uma das atitudes mais importantes a detetar numa situação de interpretação radical é a atitude

de tomar como verdadeiro que, se puder ser detetada pelo intérprete, vai possibilitar-lhe

descobrir, pelo menos algumas das crenças que o interpretado toma como verdadeiras. A

vantagem de tentar identificar esta atitude perante frases é a descoberta de crenças do

interpretado, sem que se saiba ainda qual é exatamente o seu conteúdo.

Se as frases que o falante toma por verdadeiras podem ser identificadas sem saber com

exatidão qual o conteúdo de cada uma delas, então esta estratégia permitirá ao intérprete

descobrir pelo menos que frases o interpretado usa para exprimir crenças, ficando por definir

qual o seu conteúdo.

Esta [atitude] é, certamente, uma crença, mas é uma atitude única aplicável a todas as

frases, e portanto não exige que sejamos capazes de fazer distinções específicas entre

crenças. É uma atitude que um intérprete pode plausivelmente identificar antes de

interpretar, já que pode saber que uma pessoa pretende expressar uma verdade sem ter

nenhuma ideia de que verdade seja.80

Davidson vai mesmo ao ponto de, no fim desse mesmo parágrafo, afirmar que todas as outras

atitudes podem ser descobertas a partir da atitude de tomar como verdadeiro, já que não vê

diferença entre tomar como verdadeiro e crer que é verdadeiro e assume, igualmente, que as

crenças são as atitudes proposicionais mais básicas de qualquer agente. A mesma ideia é

expressa noutro ensaio:79 Cf. também secção 2.5.80 Davidson, 1973a, 135. (Itálico no original)

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Interpretação Radical

parece-me que a justificação básica para tomar frases empíricas como verdadeiras é

dada pelas condições em que observamos que elas são tomadas por verdadeiras.

Quando tivermos sucesso em relacionar as frases observacionais de um falante com as

nossas, teremos descoberto o que justifica o falante a tomá-las como verdadeiras.81

Portanto, o conteúdo das atitudes proposicionais terá de levar em conta as relações

lógicas entre as crenças do agente. As crenças mais básicas, aquelas crenças que mais

diretamente dizem algo acerca do mundo, são provocadas por estímulos periféricos. O

holismo das atitudes proposicionais em conjunção com o uso de frases ocasionais para detetar

o valor de verdade atribuído a algumas frases simples, permite alargar o conjunto de crenças

do interpretado que o intérprete pode correlacionar com as suas próprias crenças. Desta forma

descobre que valores de verdade os interpretados atribuem a cada uma das suas crenças sem

assumir à partida um conhecimento detalhado sobre as crenças do interpretado. O objetivo é

que a partir desta fase se torne possível ao intérprete formular hipóteses plausíveis acerca do

conteúdo de algumas das crenças dos agentes e tentar confirmá-las empiricamente,

principalmente em conjugação com o princípio de caridade. Se conhecer as condições de

verdade é compreender o significado de uma frase, então conhecer as condições de verdade

que um intérprete atribui às frases que usa é também compreender essas frases. As

implicações para a teoria de interpretação radical são óbvias: esta relação entre as frases do

intérprete e do interpretado é essencial para a atribuição de significados a frases usadas por

qualquer falante.

2.4 O(s) Princípio(s) de Caridade

O princípio de caridade, também por vezes chamado princípio de acomodação racional, tem

por objetivo restringir as teorias interpretativas de forma a maximizar as semelhanças e

explicar as diferenças entre a forma como agentes usam a língua.82

Entender os pensamentos e as ações de pessoas envolve o ajustamento imaginativo das

crenças e valores do intérprete às atitudes do interpretado, um processo que requer a

acomodação de um sistema normativo noutro.83

81 Davidson, 1999d, 460. (Itálico meu)82 Cf. Davidson, 1973a; Davidson, 1974a; Davidson, 1975; Davidson, 1991; Davidson, 1992; Glüer, 2011.83 Davidson, 1993b, 168. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

Estes princípios são necessários para que se obtenha uma teoria interpretativa adequada, ou

seja, que possibilite ao intérprete construir

uma caracterização de verdade-para-a-língua-estranha que resulte, tanto quanto

possível, numa relação das frases tomadas como verdadeiras (ou falsas) pelo

interpretado com as frases tomadas como verdadeiras (ou falsas) pelo linguista.84

No mesmo parágrafo, o autor explica que esta necessidade de encontrar acordo entre o

intérprete e o interpretado (ou entre o linguista e o nativo) tem dois aspetos que devem ser

considerados. Por um lado, as frases de um e de outro correspondem a eventos e objetos

salientes no ambiente próximo comum a ambos (no caso mais simples de interpretação). Este

primeiro aspeto força já o acordo entre ambos. Por outro lado, é necessário que o intérprete

imponha as suas próprias normas de racionalidade na interpretação que faz das atitudes

proposicionais que explicam, potencialmente, o comportamento verbal e não-verbal do

interpretado, sob pena de “tornar a compreensão impossível.”85 Por outras palavras

[a] estratégia geral […] é escolher condições de verdade que tenham tanto sucesso

quanto possível em permitir aos falantes de uma língua tomar as frases como

verdadeiras quando (de acordo com a teoria e o ponto de vista do construtor da teoria

acerca dos factos) essas frases são verdadeiras.86

Tal permite não só aplicar o conceito de erro, como cria constrangimentos às

interpretações plausíveis. Quanto mais o intérprete tiver de se afastar dos seus próprios

princípios de racionalidade, mais difícil será ver o interpretado como um agente. Ao não

assumir à partida que intérpretes e interpretados partilham um mundo comum, com objetos e

eventos semelhantes, é impossível que exista qualquer interpretação, já que não é possível

atribuir erros a alguém a quem não possamos atribuir racionalidade. Como diz Davidson

crenças, intenções e desejos são identificados, primeiramente, pelas suas relações

causais com eventos e objetos no mundo, e, em segundo lugar, pelas suas relações entre

si.87

De tal forma que é muito difícil atribuir erros a um agente com o qual não tenhamos muitas

crenças em comum. Nesse caso nem sequer é possível apontar onde reside o erro, já que, do

84 Davidson, 1967b, 27. (Itálico meu)85 Davidson, 1967b, 27. Acerca das relações causais estabelecidas entre dois ou mais falantes e objectos e eventos no mundo, cf. seção 2.5.86 Davidson, 1974a, 152. (Itálico meu)87 Davidson, 1985, 195-196. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

ponto de vista do intérprete, só existe erro.88 No extremo, um agente ao qual não possamos

imputar racionalidade não é um agente de todo: não tem pensamentos. Por outro lado o

princípio de caridade não exige do interpretado que não tenha crenças falsas — tal seria uma

tese demasiado forte para ser aceitável ou plausível. Aquilo que o princípio de caridade

determina é que “encontremos acordo suficiente tal que nos permita fazer sentido dos

desacordos.”89 Ou posto de outra forma: “uma teoria forte fracamente suportada, mas em

pontos suficientes, pode produzir toda a informação que precisamos acerca das […] palavras

e frases.”90

O princípio de caridade pode ser distinguido em dois princípios distintos. Seguindo a

proposta de Davidson chamarei ao primeiro princípio de coerência e ao segundo princípio de

correspondência. Não há assim um único princípio de caridade que possa ser formulado para

toda e qualquer língua. Ambos os princípios têm de ser aplicados de forma a permitir a

construção de teorias de interpretação e o seu sucesso é julgado pelo sucesso na interpretação

de frases de uma determinada língua. A aplicação dos princípios de caridade permite

interpretar e a interpretação permite justificar a aplicação dos princípios de caridade. Ambos

os aspetos são indissociáveis. Se rejeitamos qualquer deles não temos forma de construir uma

teoria de interpretação, ou seja, a aplicação dos princípios de caridade é uma condição

necessária para a interpretação radical.

2.4.1 O Princípio de Coerência

Uma das condições necessárias para o sucesso da interpretação radical é que o intérprete

atribua ao interpretado racionalidade quanto baste para que erros possam ser detetados. Mas

esta racionalidade não é subjetiva.

Aquilo que depende de nós é a aplicação das nossas próprias normas [de

racionalidade], já que não podemos verificar se as nossas normas são as mesmas que as

das outras pessoas, até que encontremos uma adequação razoável entre as delas e as

nossas.91

88 Cf. Davidson, 1977a; Davidson, 1983.89 Davidson, 1999b, 342. (Itálico meu)90 Davidson, 1977b, 225. (Itálico meu)91 Davidson, 1999d, 460. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

Um das formas de entender a racionalidade, como já vimos, é que qualquer agente racional —

e por conseguinte qualquer agente capaz de ser intérprete e que seja interpretável — tenha um

conjunto de atitudes proposicionais coerente.

As crenças são identificadas somente num padrão denso de crenças. […] Se eu

suponho que alguém acredita que uma nuvem está a passar à frente do Sol, eu suponho

que alguém possui o padrão certo de crenças para suportar essa crença, e que estas

crenças que eu assumo que alguém tem devem, para fazer o seu trabalho de suporte, ser

suficientemente como as minhas crenças para justificar a minha descrição das crenças

de alguém como a crença de que uma nuvem está a passar à frente do Sol. Se eu estou

certo em atribuir esta crença a alguém, então esse alguém deve ter um padrão de crenças

muito semelhante ao meu. Não admira, então, que eu possa interpretar as crenças de

alguém somente se o interpretar de forma a colocar-nos em larga medida de acordo.92

Embora a coerência desse conjunto de atitudes proposicionais não garanta a verdade de todas

as crenças, garante pelo menos que a maiorias dessas crenças são verdadeiras. Uma forma de

esquematizar o argumento em causa é a seguinte:93

1. Pensamentos com conteúdo proposicional têm propriedades lógicas (são implicados e

implicam outros pensamentos).

2. Se as relações lógicas de um pensamento o identificam (parcialmente) como o

pensamento que é, então os pensamentos não podem ser totalmente incoerentes. Se

fosse esse o caso, não conseguiríamos identificar nenhum pensamento.

3. Logo, se um intérprete pretende compreender o pensamento de alguém, então deve

encontrar (no pensamento do interpretado) um grau suficiente de coerência.

4. Se o intérprete não encontra racionalidade suficiente no pensamento de um

interpretado, a interpretação não pode ter sucesso.

5. Logo, o princípio de coerência é necessário para a interpretação de qualquer agente.

Como escreve Davidson, “acordo não produz verdade, mas muito daquilo que é acordado

deve ser verdadeiro se algo do que é acordado é falso.”94

92 Davidson, 1977a, 200. (Itálico meu. Ao traduzir a citação mudei o texto da segunda para a terceira pessoa do singular, de forma a que fizesse sentido em português.)93 O argumento é expresso em Davidson, 1999b, 343. (Adaptado)94 Davidson, 1977a, 200. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1983; Davidson, 1991.

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Interpretação Radical

2.4.2 O Princípio de Correspondência

Uma das teses de Davidson em relação ao conhecimento do mundo exterior é de que este tipo

de conhecimento depende, de uma forma crucial, dos objetos e eventos no mundo que causam

o conteúdo das crenças proposicionais dos agentes e também da história da formação dessas

crenças.95

O nosso conhecimento do mundo depende direta ou indiretamente de sequências causais

elaboradas e arriscadas que são originadas por eventos […], progridem através do

sistema nervoso, e terminam em crenças.96

A importância disto para a interpretação radical é que, assumindo que todos os agentes

partilham um mundo comum que existe independentemente das mentes dos agentes, é

plausível afirmar que vários agentes reagirão de forma semelhante a eventos e objetos nesse

mundo. Davidson vai até ao ponto de afirmar que o sucesso na comunicação interpessoal

demonstra essa proposição:

comunicação bem sucedida prova a existência de uma partilhada, e em larga medida

verdadeira, imagem do mundo.97

Deste ponto de vista, a própria “perceção é proposicional: quando olhamos ou sentimos ou

ouvimos acreditamos.”98

O propósito destas afirmações não é excluir a priori a possibilidade de os agentes

estarem errados (nem mesmo se estiverem completamente de acordo entre si). Mas apenas

assumir que agentes diferentes reagem de modo similar a objetos e eventos no mundo e é isto

que permite começar a fazer sentido dos desacordos. Assim, quando a reação que o intérprete

espera, dado um estímulo qualquer não é a reação esperada, ou os agentes estão a reagir a

estímulos diferentes, ou as teorias de interpretação devem ser revistas para acomodar as

diferenças e confirmar a teoria de interpretação.

Também quando uma criança aprende um língua, aprende a reagir da forma que os

seus interlocutores (que já dominam a língua à qual a criança está a ser iniciada) esperam

dados os estímulos comuns, i.e., os objetos e eventos salientes que ocorrem na proximidade

de ambos. A criança é recompensada, consoante a sua reação ao que se passa à sua volta está,

95 Cf. Davidson, 1983; Davidson, 1990; Davidson, 1991. Cf. também seção 2.5.96 Davidson, 1990b, 47.97 Davidson, 1977a, 201.98 Davidson, 1999c, 732. Cf. também Davidson, 1997c.

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Interpretação Radical

ou não, de acordo com os critérios do interlocutor (no caso de uma criança a aprender uma

primeira língua). Claro que este cenário só se aplica no início e às frases mais simples de uma

linguagem. À medida que o domínio da língua vai aumentando, a criança usa frases cada vez

mais distantes destas frases mais simples que começou por aprender, embora as frases que

ligam o que é dito ao mundo sejam ainda as frases iniciais mais simples.99 O essencial desta

ideia é expressa noutros ensaios:

enquanto aderirmos à intuição básica de que nos casos mais simples [as] palavras e [os]

pensamentos se referem àquilo que os causa, é claro que não pode ser o caso de que a

maioria das nossas crenças é falsa. […] Nos casos mais básicos, a aplicação determina

o conteúdo de um conceito.100

Ou ainda,

[o] conhecimento das circunstâncias em que alguém toma uma frase por verdadeira é

central para a interpretação.101

Um argumento que procura sustentar esta ideia pode ser formulado do seguinte modo:102

1. O modo como aprendemos frases que descrevem o conteúdo empírico das nossas

perceções — i.e., o modo como aprendemos com outros a reagir de formas

semelhantes a objetos e evento salientes no nosso meio — garante que essas frases

têm uma relação com o mundo (já que crenças acerca de algo são, tipicamente,

causadas por esse algo).

2. Se essas frases estão estreitamente ligadas com o mundo, é pouco plausível que sejam

falsas (o conteúdos das atitudes expressas por essas frases envolvem os objetos que as

causam).

3. Outras frases não ligadas diretamente à perceção devem ainda o seu conteúdo às

primeiras (através de relações lógicas), pelo que não podem também ser falsas (sob

pena de incoerência).

4. Logo, ainda que não seja plausível dizer de todas as nossas crenças que correspondem

aos objetos e eventos do mundo, é plausível dizê-lo de algumas.

99 Cf. Davidson, 1999b.100 Davidson, 1990, 196. (Itálico meu)101 Davidson, 1975, 162.102 Davidson, 1999b, 343. (Adaptado)

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Interpretação Radical

As passagens anteriores sugerem que Davidson subscreve uma forma de externalismo

físico,103 tal que as crenças dos agentes — pelo menos as crenças mais básicas — têm, como

foi dito atrás uma ligação direta com o evento ou objeto que as causou. A ideia é ainda mais

explícita na citação que se segue:

[s]e o externalismo é verdadeiro, não pode haver dúvidas de como o conhecimento do

mundo exterior é possível. Se é constitutivo de alguns pensamentos que o seu conteúdo

é determinado pelas suas causas normais, então o conhecimento dos eventos e

situações causadoras não pode requerer que o pensador estabeleça independentemente

a existência de um mundo exterior que causa esses pensamentos. Claro que o

externalismo não demonstra que juízos percetivos particulares, até do tipo mais simples,

não possam estar errados. Aquilo que demonstra é que não pode acontecer que a

maioria desses juízos esteja errada, pois o conteúdo dos juízos erróneos deve basear-se

no conteúdo dos corretos.104

Mas não deve ser esquecido que tal não é suficiente para a justificação dessas crenças. Esta só

pode surgir da coerência entre as crenças. E de forma indireta Davidson pretende que essa

justificação é suficiente para afirmar que os agentes não podem estar maciçamente errados

acerca do mundo. As relações de coerência lógica permitem justificar as crenças de um

agente. Se não é possível ter um conceito, sem o relacionar com muitos outros que lhe

confiram conteúdo, então um agente está justificado em ter a maioria das crenças que tem. A

justificação de uma crença acaba por envolver sempre uma ligação com o mundo porque é

esta ligação que torna a crença aquilo que ela é — direta ou indiretamente, por relação lógica

com outras crenças que têm uma ligação direta com o mundo. Logo, basta que qualquer

agente racional tenha crenças justificadas para que tenha uma imagem largamente correta do

mundo. Se o intérprete está a priori certo acerca do mundo que os rodeia, resta somente criar

uma forma de comparar os conteúdos das suas crenças de forma a criar acordo entre eles, i.e.,

uma forma de interpretar radicalmente.

A comparação de crenças coerentes de vários agentes é, ainda assim, insuficiente para

determinar qual o conteúdo das suas crenças. Para tal Davidson socorrer-se-á da noção de

triangulação, apresentada na secção seguinte.

103 Embora tenha denominado o externalismo de Davidson como externalismo físico, o autor parece defender que o externalismo tem também uma componente histórica e social. Cf. Davidson, 1987.104 Davidson, 1988b, 196. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

2.5 Triangulação e Objetividade

Os princípios de caridade permitem comunicação entre diferentes agentes — procurando

padrões de racionalidade nas outras mentes, ao mesmo tempo que comparam as reações

mútuas aos eventos e objetos nas suas proximidades. Este tipo de interação parece demonstrar

que há uma componente essencialmente social no pensamento de qualquer agente (a juntar à

componente racional e física). No entanto há uma pergunta que fica por responder: “como

determinar que dois ou mais agentes estão a reagir ao mesmo estímulo?” A resposta de

Davidson passa pela defesa de que o conceito de triangulação é necessário para determinar

qual é o conteúdo de uma atitude proposicional.105

Davidson descreve a interação entre dois ou mais agentes como uma forma de

triangulação: uma situação em que dois falantes estão em comunicação entre si, podendo

comparar as reações mútuas relativamente a objetos exteriores a ambos de forma a fixarem o

conteúdo das suas atitudes proposicionais. “Sem este triângulo, existem dois aspetos do

pensamento que não conseguimos explicar (…) objetividade do pensamento e (…) conteúdo

empírico.”106 De facto, Davidson defende que

não poderiam existir pensamentos numa mente se não existissem outras criaturas

capazes de pensamento com as quais a primeira mente partilha um mundo natural.107

Um agente amarrado ao chão impossibilitado de se mexer, não teria forma de interagir

com o mundo a partir de diferentes perspetivas, de tomar novos pontos de vista, condição

fundamental para que haja pensamento.108 A triangulação permite a cada agente comparar a

sua reação com a reação de outros agentes ao mesmo tempo que fixa o evento ou objeto que

está a provocar a reação que todos observam nos outros. “A minha tese” escreve Davidson109

“é que este compromisso é essencial tanto para a linguagem como para o pensamento

proposicional.”

A identificação dos objetos de pensamento funda-se, então, numa base social. Sem uma

criatura a observar outra, a triangulação que localiza os objetos relevantes num espaço

público não poderia ter lugar.110

105 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1986; Davidson, 1988b; Davidson, 1991; Davidson, 1997a.106 Davidson, 1997a, 129.107 Davidson, 1988b, 193.108 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1991.109 Davidson, 1999c, 731.110 Davidson, 1990a, 202. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1997a.

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Interpretação Radical

Num ensaio anterior já tinha escrito:

o tipo de triangulação que eu descrevi, embora obviamente não seja suficiente para

estabelecer que uma criatura possui o conceito de um objeto particular ou tipo de objeto,

é necessário para haver resposta de todo à questão acerca de que conceitos os seus

conceitos são.111

A comparação da posição de um agente com a posição de outros agentes permite ao primeiro

começar a identificar o estímulo que está a causar a sua reação e a de outros.

A interpretação de qualquer frase depende do seu posicionamento numa rede de outras

frases. Mas a rede deve estar ligada ao mundo através do tipo de triangulação que é

fundamental para a interpretação radical.112

A natureza causal de tal relação com o mundo não garante só por si a individuação de um só

facto ou objeto que esteja a causar a crença do agente. O que Davidson defende é que este

cenário permite fixar os estímulos que causam as crenças dos agentes não na mente destes ou

nos seus órgão percetivos, mas sim nos objetos e eventos exteriores a eles e aos quais reagem

de formas variadas.

[A]quilo que determina os conteúdos dos nossos pensamentos e elocuções não está

confinado aquilo que está dentro da pele. Os nossos pensamentos não criam o mundo

nem simplesmente o representam [picture it]; estão ligados às suas fontes exteriores

desde o início, sendo essas fontes a comunidade e o ambiente que sabemos que

ocupamos conjuntamente.113

Davidson defende que a triangulação é uma condição necessária para a formação de crenças,

ao permitir definir o seu conteúdo: o vértice do triângulo (formado pelos dois agentes) onde

está localizado o estímulo periférico, i.e., o evento ou objeto que dá conteúdo à crença.114

Ainda assim, afirma que a triangulação não é suficiente para determinar o conteúdo exato

dessa crença, mas que somente desta forma é possível esclarecer de que objetos tratam os

conceitos do agente.

O que dá à minha crença o seu conteúdo, e à minha frase o seu significado, é o meu

conhecimento daquilo que é necessário para que a minha crença seja verdadeira . Já

111 Davidson, 1988b, 198. (Itálico meu)112 Davidson, 1999d, 460.113 Davidson, 1999c, 732. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1988b; Davidson, 1991.114 Cf. Davidson, 1988b, Davidson, 1992; Davidson, 1990b; Davidson, 1999c; Glüer, 2008.

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Interpretação Radical

que crença e verdade estão relacionadas desta forma, crenças podem servir como as

atitudes humanas que relacionam a teoria da verdade com as preocupações humanas.115

Só através da interação de dois ou mais agentes, em comunicação entre si, se pode determinar

qual o estímulo que causa a reação de cada um deles. E se não é possível determinar o que

está a causar os estímulos desse agente, não é possível determinar que língua ele fala, já que

falar uma língua “requer que as frases sejam combinadas com os objetos e os eventos no

mundo.”116

Davidson argumenta que as interações de uma única criatura somente com o seu

ambiente não determinam aquilo a que está tipicamente a reagir. […] Causas

determinam o conteúdo [das atitudes proposicionais] somente em situações sociais,

como causas comuns.117

Por outro lado, a triangulação serve igualmente para que Davidson explique a posse

que cada agente racional tem do conceito de objetividade — a tese de que as atitudes

proposicionais dos agentes são verdadeiras ou falsas independentemente do que pensemos ser

o caso. Apenas a interação com outros agentes cria ainda um espaço onde podem surgir

desacordos e correções.

Nada no mundo contaria como uma frase, e o conceito de verdade não teria portanto

aplicação, se não existissem criaturas que usassem frases proferindo-as ou escrevendo

exemplares delas. Qualquer explicação completa do conceito de verdade deve portanto

relacioná-la com interação linguística atual.118

Quando agentes estão em comunicação cria-se espaço para determinar se os conceitos são ou

não corretamente aplicados. Ao esperar que outro agente reaja tal como eu reajo aos estímulos

exteriores, torna-se evidente que não seria possível aplicar corretamente um conceito se não

existisse uma regra para a sua aplicação (regra essa que depende da forma como uma

determinada comunidade linguística usa a língua). “Os pensamentos têm condições de

verdade e os conceitos têm condições de satisfação.”119

Esta posição é simplesmente a rejeição de uma posição subjetivista em relação à

verdade e não uma afirmação de uma teoria objetivista.120 Davidson pretende defender que

115 Davidson, 1988a, 189. (Itálico meu) Cf. Também Davidson, 1997b.116 Davidson, 1992, 120.117 Glüer, 2009, 1010. (Itálico meu)118 Davidson, 1988a, 181. (Itálico meu)119 Glüer, 2008, 1016.120 Cf. Davidson, 1988a; Davidson, 1995a; Davidson, 1997b.

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Interpretação Radical

uma teoria adequada de verdade deve ter em conta que a verdade é uma propriedade das

proposições e das frases que usamos para as exprimir, assim como das atitudes das quais são o

conteúdo. Portanto, neste aspeto é subjetivista, ao ligar a verdade àquilo que são os interesses

e as crenças das pessoas. Mas, por outro lado, defende que a verdade não depende somente

daquilo que as pessoas pensam ser o caso, embora rejeite teorias da correspondência porque

tornam a verdade num conceito ao qual as pessoas não conseguem aceder. A verdade é então,

para Davidson, um conceito primitivo, i.e., um conceito que qualquer agente racional domina

— embora não se siga daqui que as pessoas saibam que proposições são verdadeiras. A noção

de verdade como conceito primitivo permite ainda compreender que Davidson proponha

formas de modificar a teoria semântica de verdade proposta por Tarski tal que possam ser

aplicadas a linguagens naturais (Cf. secção 1.1.1).

2.6 Indeterminação da Interpretação

A triangulação permite ao intérprete apurar quais são as causas prováveis das atitudes

proposicionais dos agentes — de entre todas as causas possíveis das suas crenças e das

crenças de outros. Mas ainda assim não é possível afirmar qual o objeto ou evento que causa

uma determinada crença de agente, nem excluir outras descrições alternativas que possam ser

igualmente bem sucedidas nessa missão, pois o holismo que caracteriza o mental permite que

várias explicações sejam plausíveis — dadas modificações suficientes na estrutura de crenças

do agente — de forma a preservar a racionalidade.121

Se não existem leis físicas estritas que regulem a mente (monismo anómalo) e se as

crenças são causadas por eventos e objetos, então há várias maneiras diferentes, mas

igualmente bem-sucedidas, de explicar a interpretação das frases de um agente, preservando a

racionalidade das suas crenças (do ponto de vista do intérprete). Mesmo que eventos e objetos

no mundo causem sensações que por sua vez causam crenças, as sensações não possuem

conteúdo proposicional — não são razões para agir ou atribuir crenças aos agentes que o

intérprete procura compreender.

Esta relação causal (sensações-crenças) não pode ser explicada por leis estritas, visto

ter como objeto atitudes proposicionais. “As melhores descrições que somos capazes de dar

da maioria dos eventos não são descrições que sejam explicadas, ou possam alguma vez ser

121 Cf. secções 1.3.3 e 2.4.1.

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Interpretação Radical

subsumidas, em leis estritas.”122 Se não é possível haver leis que descrevam estas relações

entre as sensações e as crenças que elas causam, então há variadas formas de explicar um

mesmo comportamento, bastando para tal fazer modificações suficientes no conjunto de

crenças que se atribuem ao interpretado. E estas atribuições de crenças ao interpretado são

tudo aquilo que temos ao nosso dispor para o compreender. Como Davidson afirma

claramente “aquilo que ninguém pode [...] descobrir dada a totalidade de indícios relevantes

não pode fazer parte do significado.”123 A indeterminação é uma consequência inevitável dos

dados que temos aos nosso dispor para interpretar: “se há indeterminação, é porque depois de

todos os indícios recolhidos, modos alternativos de expressar os factos ainda estão em

aberto.”124 A “indeterminação ocorre quando um vocabulário é suficientemente rico para

descrever um fenómeno de mais do que uma forma.”125 Assim,

redescrever um evento não pode mudar aquilo que [esse evento] causa, ou mudar a sua

eficácia causal. Eventos, ao contrário de agentes, não estão preocupados com a forma

como a sua causa é descrita.126

O que se mantém constante é aquilo que interessa na explicação da racionalidade, não o

vocabulário usado na explicação. A extensionalidade que Davidson atribui às relações de

causalidade é aquilo que explica a possibilidade de redescrições das atitudes proposicionais

dos agentes. Se ‘uma cirrose causou a morte de Fernando Pessoa’ é uma frase verdadeira,

então também será uma frase verdadeira que ‘uma cirrose causou a morte de Alberto Caeiro.’

A mesma causa pode ser descrita como ‘uma doença crónica do fígado devido ao consumo

excessivo de álcool,’ sem que o valor de verdade da frase que descreve o evento mude, já que

‘doença crónica do fígado devido ao consumo excessivo de álcool’ e ‘cirrose’ têm a mesma

extensão, i.e., podem ser substituídos mutuamente sem prejuízo para o valor de verdade da

frase em que ocorrem.

No caso de atitudes proposicionais o caso é análogo. A preferência de um agente por

pêras em detrimento de maçãs pode ser explicada, por exemplo, pela preferência deste por

frutos encarnados em relação a frutos amarelos, desde que a escolha possa ser descrita tal que

a racionalidade que o intérprete atribui ao agente se mantenha inalterada. A única forma de

compreender as crenças, escolhas, ações e intenções de uma pessoa é à luz de muitas outras

122 Davidson, 1993a, 191.123 Davidson, 1979, 235. (Itálico meu)124 Davidson, 1974a, 154.125 Davidson, 1998, 316.126 Davidson, 1993a, 189. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

atitudes proposicionais: “[…] o conteúdo de uma atitude proposicional deriva do seu lugar no

padrão”127 das atitudes proposicionais dessa pessoa.

A nossa teoria de interpretação deve igualmente ser suficientemente flexível para que

o intérprete a possa ajustar, à medida que interpreta outro agente, a um número de frases cada

vez maior já que a atribuição de racionalidade ao interpretado deve ser necessariamente

preservada, não comprometendo a possibilidade de lhe atribuir qualquer atitude e por isso a

própria possibilidade de interpretação radical.

Cada um de nós pode pensar mas suas próprias frases (os nos seus conteúdos) como

números; eles têm múltiplas relações entre si e com o mundo . Mantendo inalteradas

estas relações, podemos relacionar as nossas frases com as frases desse falante, e com

as atitudes desse falante, de modos diferentes sem mudar de ideias sobre aquilo que o

falante pensa e o que ele quer dizer. Do mesmo modo como inúmeros conjuntos de

números nos permitem representar [keep track] as mesmas estruturas complexas do

mundo, também as nossas frases podem ser usadas de variadas formas para

representar [keep track] as atitudes de outros, e dos significados das suas frases.128

Mas o facto de rejeitarmos significados fixos para cada palavra numa linguagem natural não

significa a rejeição da objetividade ou de factos: “não há nenhuma relação simples entre o

estímulo e o pensamento resultante.”129 Estes dependem do padrão de relações que se

estabelece entre os falantes, as suas frases e o mundo (o ambiente que os rodeia) e só “o

padrão é invariante.”130

Esta necessidade de ajustar a teoria a novos dados que surgem no decorrer do processo

de interpretação radical leva Davidson a rejeitar, igualmente, que convenções linguísticas

tenham um papel essencial na interpretação de frases. Portanto, não faz sentido falar de

línguas, “não se uma língua é algo como muitos filósofos e linguistas têm suposto.” E

continua um pouco mais à frente defendendo que a ideia de que “uma estrutura partilhada

claramente definida que falantes da língua aprendem e aplicam a casos”131 deve ser

simplesmente abandonada.

Se não existem convenções que regulem o modo como os falantes de um língua a

usam, então existirão várias formas de construir uma teoria de interpretação para essa língua.

127 Davidson, 1970a, 221.128 Davidson, 1998, 317. Cf. também Davidson, 1974c.129 Davidson, 1997c, 136. (Itálico meu). Cf. também Davidson, 1979.130 Davidson, 1998, 317. (Itálico meu). Cf. Davidson, 1974c.131 Davidson, 1986, 107. Cf. também Davidson, 1984.

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Interpretação Radical

Tal não põe no entanto em causa a possibilidade de interpretação radical, pensa Davidson, já

que

[…] enquanto intérpretes somos muito bons a chegar a interpretações corretas de

palavras que nunca tenhamos ouvido antes, ou de palavras que nunca tenhamos ouvido

com o significado que o falante lhes está a atribuir.132

Quando um falante usa uma metáfora, ou no decurso da comunicação comete um erro,

ou se desvia de alguma forma daquilo que é o uso normal, ou comete um lapso de língua, é

ainda possível que o intérprete compreenda o que está a ser dito — mesmo se isso se afasta da

teoria de interpretação que usa.133 Se a intenção do falante é devidamente compreendida pelo

intérprete, então não há razão para pensar que a interpretação foi mal sucedida.

Se o processo de comunicação é o processo mediante o qual qualquer falante de uma

língua compreende o que é dito e é compreendido por outros, como somos capazes de

compreender erros e lapsos de língua? Dado que os falantes de qualquer língua parecem ser

capazes de fazer adaptações automáticas e correções instantâneas quando comunicam, o que

explica essa capacidade?

A explicação que Davidson avança passa por distinguir duas condições que ocorrem

em qualquer comunicação. Por um lado, cada um dos falantes tem aquilo que ele chama de

teoria primária; por outro, à medida que são interpretados e se interpretam mutuamente estão

a construir também uma teoria provisória.134

Para o ouvinte, a teoria primária [first meaning] expressa a forma como ele está à

partida preparado para interpretar uma asserção do falante, enquanto a teoria provisória

[passing theory] é a forma como ele interpreta de facto a asserção. Para o falante, a

teoria primária é aquilo que ele crê ser a teoria primária do intérprete enquanto a sua

teoria provisória é a teoria que ele pretende que o intérprete use.135

Posto de modo mais simples: “a teoria que de facto usamos para interpretar uma frase é

adaptada à ocasião [geared to the occasion].”136 Aquilo que é necessário para qualquer

falante compreender e ser compreendido é que as teorias provisórias de todos eles tenham o

132 Davidson, 1984, 277. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1986. Um raciocínio similar é feito para explicar a compreensão de metáforas. Nesse caso, Davidson defende que compreendemos o significado de uma metáfora somente porque sabemos o significado que o interpretado e o intérprete atribuem a cada frase em condições normais. Cf. Davidson, 1978.133 Cf. Davidson, 1986; Davidson, 1994b.134 Estes termos são introduzidos em Davidson, 1986.135 Davidson, 1986, 101. (Itálico no original)136 Davidson, 1986, 101. (Itálico meu)

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Interpretação Radical

suficiente em comum para que as atitudes expressas por eles possam ser entendidas. Davidson

escreve mesmo:

não penso que habitualmente compreendemos aquilo que outros dizem, refletindo

conscientemente sobre o significado daquilo que dizem, apelando a alguma teoria de

interpretação, ou apelando aquilo que pensamos serem os indícios relevantes. Fazemo-

lo, a maior parte do tempo, facilmente, até automaticamente.137

A passagem citada parece sugerir que o conhecimento explícito de uma teoria da interpretação

não é necessária para interpretar um agente. Davidson parece estar assim a defender que há de

facto uma forma de descrever uma teoria formal de interpretação para uma dada linguagem,

mas que essa teoria não precisa de ser explicitamente conhecida pelo intérprete para que a

interpretação tenha sucesso. Desde que a comunicação tenha sucesso não é necessário

conhecimento de uma teoria formal. O verdadeiro teste está na capacidade que as pessoas têm

de compreender e de serem compreendidas.138

137 Davidson, 1994b, 112. (Itálico meu)138 Cf. Davidson, 1994b.

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Interpretação Radical

3. Objeções

Uma teoria como a que Davidson formula, pela sua complexidade e âmbito de aplicação atrai,

como seria de esperar, muitas críticas e objeções. Este capítulo tem como objetivo expor

algumas delas.

Assim a secção 3.1 aborda uma das primeiras objeções sérias à interpretação radical. O

seu autor, John Foster sugere que ou um intérprete tem conhecimento explícito de uma teoria

adequada para a interpretação e assume aquilo que pretende demonstrar; ou o intérprete

pretende construir uma teoria suficiente para a interpretação de um agente e para que tenha

sucesso deve violar os constrangimentos que Davidson coloca à partida. Na secção 3.2

apresentam-se duas teorias que pretendem demonstrar, partindo de argumentos diferentes, que

o princípio de caridade que foi formulado por Davidson é inadequado para a função que este

pretende que desempenhe na teoria. E por fim, na secção 3.3 apresento aquele que é, a meu

ver, o problema mais grave que a teoria de interpretação radical enfrenta: o argumento cético.

Dada a indeterminação da interpretação, os seus autores sustentam que a interpretação radical

é impossível, já que se existem várias formas incompatíveis de descrever uma teoria da

interpretação e se essas formas são igualmente aceitáveis, não existe forma de escolher entre

elas.

3.1 A Objeção de Foster

Uma das objeções ao projeto de interpretação radical foi formulada por Foster.139 Conhecido

na literatura como ‘o problema de Foster’ põe em causa que a teoria de Davidson seja

interpretativa, i.e., que seja suficiente para produzir uma interpretação das frases de um

falante, visto que o conhecimento de uma teoria adequada à interpretação de um falante viola

os constrangimentos que Davidson impõe à própria teoria.

Foster considera que uma teoria de significado apropriada tem de explicar o

significado de cada frase a partir da sua estrutura. O sucesso da explicação dessa capacidade

para compreender uma língua natural reside, não em tentar esclarecer que conhecimento

implícito ou explícito deve um agente possuir para que compreenda essa língua, mas que

139 Cf. Foster, 1976; Speaks, 2010 (secção 2.2.1).

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Interpretação Radical

conhecimento seria suficiente para que o agente tenha a capacidade de a compreender: que

teoria deverá um agente conhecer que lhe permita interpretar todas as frases que possam ser

produzidas numa língua natural. Com isto quer explicar a semântica (ou pelo menos alguma

da semântica) de uma língua, independentemente da “forma psicológica que essa

competência”140 possa assumir. Foster apelida qualquer teoria que permita uma compreensão

da língua uma teoria interpretativa.

Numa teoria genuinamente interpretativa, as expressões da linguagem objeto são

designadas pelo que se chamam descrições estruturais, descrições que são construídas a

partir dos nomes dos símbolos mais simples da linguagem conjuntamente com o

predicado ou termo funcional que significa concatenação.141

E mais à frente continua a sua explicação:

Uma teoria de significado não explica o significado, mas não existe melhor modo de

explicá-lo que descobrindo as condições que essas teorias devem cumprir e a forma

como essas condições devem ser implementadas.142

A formulação de uma teoria de verdade interpretativa não pretende portanto explicar o

significado de expressões apelando ao significado de expressões mais simples, mas sim

definir o que são as condições suficientes para o caráter interpretativo de uma teoria de

verdade. Foster explica-o através duma analogia com teorias científicas: em vez de tentar

explicar o que todas as teorias científicas têm em comum, devemos investigar as condições

que têm de ser cumpridas para que sejam consideradas científicas.

Foster não considera, porém, que a teoria que Davidson formula seja interpretativa, e

fornece alguns contra exemplos. Dada uma frase, e.g., ‘a neve é branca’, o significado pode

ser expresso da seguinte forma: ‘a neve é branca’ é verdade em L se só se a neve é branca

(sendo que L é a língua portuguesa). No exemplo anterior há simplesmente a relação

extensional entre duas frases, sem recurso a nenhum conceito intencional — e.g., “…

significa que …” — e a estrutura da frase pode ser facilmente descrita usando os recursos da

lógica proposicional, nomeadamente o cálculo das condições de verdade de uma

bicondicional material. A simplicidade deste método é o que o torna vulnerável a objeções,

pois se a única condição requerida por Davidson é que a frase do lado esquerdo da

bicondicional tenha o mesmo valor de verdade que a frase do lado direito da bicondicional, a

140 Foster, 1976, 2.141 Foster, 1976, 3. (Itálico no original)142 Foster, 1976, 4.

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Interpretação Radical

teoria parece ter então como consequência que uma frase como “a neve é branca é verdadeira

em L se e só se a relva é verde” é também uma consequência aceitável da teoria.

O problema é que parece que qualquer teoria que implique pelo menos uma frase-V

para cada frase da língua implicará igualmente mais do que uma frase-V para cada frase

da língua.143

Se, seguindo Jeff Speaks, para cada frase pudermos construir mais do que um frase-V, não

temos forma de saber qual é de facto a frase interpretativa.

Por outro lado, Foster argumenta que saber que uma determinada frase-V é

interpretativa não é suficiente para compreender um interpretado. Tomemos como exemplo a

seguinte frase-V: ‘snow is white’ é verdadeiro em L se e só se a neve é branca. Se o único

critério para que uma frase-V seja interpretativa é a equivalência material entre a frase que

está à direita e a frase que está à esquerda da bicondicional, então pode ser o caso que as

frases tenham de facto significados diferentes. Nesse caso a teoria não seria suficiente para a

interpretação.

Foster parece no entanto ignorar um pormenor da teoria que Davidson formula: que as

bicondicionais são teoremas144 provados a partir de axiomas que regulam a teoria de

interpretação para essa língua e que podem ser extraídos do padrão de frases que o falante usa,

dado tempo suficiente. Assim, depois de ter sido descoberta qual a denotação de (pelo menos

alguns) termos singulares e condições de satisfação de alguns predicados da língua do falante,

estes podem ser projetados para casos desconhecidos, de tal forma que seja possível construir

uma prova que tenha como resultado uma bicondicional que permita correlacionar as frases de

um intérprete com as frases de um falante.

3.2 Caridade é Insuficiente

Como foi dito atrás, o princípio de caridade ou de acomodação racional tem como objetivo

colocar restrições suficientes à interpretação que é possível fazer de um agente. Kirk Ludwig

e Ernest Lepore145 consideram que o princípio de caridade tal como Davidson o descreve não

é suficiente para interpretar um agente.

143 Speaks, 2010, §2.2.1.144 Cf. Davidson, 1976.145 Cf. Lepore e Ludwig, 2007.

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Interpretação Radical

Os autores lêem na obra de Davidson três formulações do princípio de caridade. “A

formulação que consideramos básica tem importantes consequências para o estatuto da teoria

alcançado pela sua aplicação”146 e por esta razão expõem as três formulações, para justificar

qual é a leitura mais adequada e por que razões pensam que nenhuma delas é suficientemente

boa para alcançar o que Davidson esperava que pudessem alcançar.

À primeira leitura possível chamam ‘Veracidade’ e definem-na da seguinte forma:

“Para todo o falante S, tempo t, frase s, ceteris paribus: S toma como verdadeiro s em t se e só

se s é verdadeiro.”147 Este princípio determina que as frases que um agente toma por

verdadeiras num determinado momento são verdadeiras se as condições que o levam a tomar

a frase como verdadeira se mantêm inalteradas. Mas, argumentam os autores, é necessário

igualmente que a teoria que emerge da aplicação deste princípio seja interpretativa e

projetável no futuro (servindo para interpretar frases desconhecidas).

A segunda leitura possível é chamada ‘Interpretatividade’. O princípio é expresso da

seguinte forma: “Para quaisquer frases s1 e s2, de modo geral, se s1 é uma frase-L

indutivamente confirmada e s2 é a sua frase-V correspondente então s2 é interpretativa.”148

Lido desta forma o princípio de caridade parece dizer “a maioria das crenças de um falante

acerca do seu ambiente são verdadeiras.”149 Basta que o intérprete possa atribuir a um

interpretado a atitude de tomar como verdadeira uma determinada frase que estará,

plausivelmente, justificado em considerar que essa frase é verdadeira, pois o assentimento

dado a essa frase dependerá do ambiente próximo partilhado por ambos.

A outra forma de entender o princípio de caridade os autores chamaram ‘Caridade’,

sustentando que esta é a leitura mais correta da tese que Davidson tem em mente quando

formula este princípio. A ideia pode ser expressa do seguinte modo: “Para qualquer falante S,

tempo t, crença b, ceteris paribus: b é uma crença de S em t e provocada [prompted] pelo

ambiente de S se e só se b é verdadeira.”150 Esta formulação do princípio torna as crenças

acerca do ambiente a parte da teoria tida como fixa e a partir da qual o intérprete atribui

significados. Ao fazer isto, o intérprete parte do princípio que as crenças do agente são

causadas pelos mesmos objetos e eventos que estão a causar as suas próprias crenças para que

só o significado varie. Assumindo que todos os agentes têm sensivelmente as mesmas

146 Lepore e Ludwig, 2007, 185.147 Lepore e Ludwig, 2007, 186.148 Lepore e Ludwig, 2007, 188. Em que uma frase-L descreve a frase que um intérprete está a tomar como indício de que um agente S toma como verdadeiro algo, num determinado momento; e a frase-V expressa as condições de verdade dessa frase. 149 Lepore e Ludwig, 2007, 188.150 Lepore e Ludwig, 2007, 189.

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Interpretação Radical

capacidades e reações ao mundo partilhado — e portanto crenças que são na sua maioria

verdadeiras — é então possível atribuir conteúdo proposicional às atitudes de um agente. Mas

ainda assim, Lepore e Ludwig contendem que ‘Caridade’ não garante que as condições que o

intérprete “identifica como provocando a crença sejam as condições que constituem o

conteúdo dessa crença.”151

Estes autores consideram que nenhuma das formulações do princípio de caridade são

adequadas para cumprir as funções que Davidson lhes quer atribuir. Para que um agente possa

usar o princípio de caridade para interpretar outro agente, este precisa de ser reformulado de

uma forma mais forte, chamada ‘Graça’. Este princípio pode ser definido da seguinte forma:

Ceteris paribus, quando substituímos ‘p’ em (S)

(S) S crê em t que p,

com uma frase que expressa o conteúdo de uma crença provocada pelo ambiente de S, a

crença expressa igualmente uma condição no ambiente de S que provoca essa crença.152

Este princípio determina que a crença que um agente S tem, num momento t, pode ser

interpretada como sendo acerca do ambiente que provoca essa crença, e que conteúdo essa

crença expressa, dadas as condições do ambiente.153 Tal como nos princípios anteriores, a

condição ceteris paribus permite que os dados da teoria sejam modificados conforme seja

necessária a adaptação a novos dados. Por outro lado, a quantas mais frases o intérprete já

atribuir significado, mais dados tem para modificar as atribuições anteriores de forma a

preservar a racionalidade do agente.

3.3 O Argumento Cético

O método de interpretação radical consiste na construção e teste empírico de uma teoria de

verdade que aplicada a uma língua natural seja suficiente para a interpretar, sem que o

intérprete saiba algo acerca dessa língua natural. Lepore e Ludwig afirmam que se há uma

teoria capaz de interpretar uma língua natural, então há um número indefinido de outras

teorias capazes de fazer precisamente a mesma coisa e que não é garantido à partida que as 151 Lepore e Ludwig, 2007, 193-194.152 Lepore e Ludwig, 2007, 194.153 Os autores referem que a ligação entre as crenças e as condições no ambiente circundante que as causam começam a ser referidos como importantes por Davidson a partir do ensaio A Coherence Theory of Truth and Knowledge. Cf. também Davidson, 1983; Davidson, 1991; Glüer, 2008.

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Interpretação Radical

várias teorias sejam compatíveis umas com as outras (de facto a sua tese é que as teorias são

incompatíveis). Logo, a indeterminação da interpretação torna impossível o projeto de

interpretação radical.154

Os autores começam por descrever o processo de interpretação radical. Começando

pela identificação das frases que um falante toma por verdadeiras, para as quais o intérprete

deverá recolher dados empíricos que sustentem a respetiva atribuição de uma crença ao

falante. A partir da hipótese de que o falante toma uma frase por verdadeira, o falante formula

uma hipótese acerca do que causou essa crença. Cabe ao intérprete aplicar o princípio de

caridade a essa frase. Desta forma, tentará atribuir ao falante crenças que sejam, do ponto de

vista do intérprete, justificadas e, até indícios em contrário, crenças partilhadas acerca de

objetos e eventos no seu ambiente próximo. A partir dos passos anteriores, o intérprete está

em condições de construir hipóteses, a serem confirmadas empiricamente, acerca do conteúdo

das crenças do falante, tal que possa atribuir um conteúdo suficientemente semelhante às

crenças de ambos. A partir destas frases que expressam, por hipótese, o conteúdo das crenças

dos falantes, o intérprete tentará extrair alguns pormenores semânticos da língua do falante,

nomeadamente qual a referência de alguns dos nomes próprios usados pelo falante e quais as

condições de satisfação que ele atribui aos predicados — de notar que todo este processo está

sujeito à revisão, mediante indícios e hipóteses novas acerca do que o falante diz. Nada no

processo garante a infalibilidade do intérprete: trata-se somente a otimizar o processo, de

forma a melhorar gradualmente a sua aplicação.

Se os únicos dados que estão ao dispor de um intérprete para interpretação de outros

agentes provêm dos comportamentos observáveis (linguísticos e não linguísticos) destes,

então como vimos atrás (Cf. secção 2.6) há várias formas de atribuir significados e crenças a

um interpretado.

Se é possível fazer atribuições diferentes para um mesmo comportamento observado e

que ao mesmo tempo sejam incompatíveis entre si, então não é possível proceder à

interpretação radical. “Este argumento está contudo refém da possibilidade de fornecer um

argumento a priori para”155 conhecer uma teoria suficiente para a interpretação radical de um

falante. Se considerarmos que um agente tem a atitude de tomar como verdadeira uma

determinada frase ‘p’, então há mais do que uma forma de lhe atribuir a respetiva crença, pois

podemos formular várias hipóteses com igual sucesso na explicação da posse da crença. Se há

várias formas de descrever a atitude de tomar como verdadeiro, então há várias maneiras de

154 Cf. Lepore e Ludwig, 2007.155 Lepore e Ludwig, 2007, 222.

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Interpretação Radical

construir uma teoria a partir da qual se possa iniciar o processo de interpretação. Depois de

atribuir crenças ao falante, esses dados podem ser tratados por várias teorias diferentes.

Não só este método implica indeterminação da interpretação, como implica também

subdeterminação da teoria pelos dados, pelo menos até surgirem novos dados que permitam

decidir entre as teorias. Embora haja subdeterminação das teorias em relação aos dados, pode

ainda ocorrer que só uma delas seja verdadeira. No caso particular da indeterminação, ambas

as teorias são verdadeiras, mas incompatíveis.

Dado isto, se há mais do que uma forma de atribuir crença, então existirão duas teorias

igualmente aceitáveis para atribuir uma crença a esse agente. Os autores defendem que dadas

duas hipóteses de explicação dessa crença, e.g., h1 e h2, duas hipóteses podem ao mesmo

tempo explicar essa crença e serem incompatíveis entre si, i.e., atribuírem conteúdos

diferentes à crença desse agente.

Assim, a indeterminação surge supostamente porque existem diferentes formas de […]

atribuir significados a frases e conteúdos a crenças, todos os quais são igualmente bem

sucedidos dados os restantes constrangimentos aceitáveis, na explicação de frases

tomadas por verdadeiras.156

Os dados disponíveis para interpretação, continuam os autores, “consistem nas circunstâncias

nas quais os falantes tomam frases por verdadeiras.”157 Assim sendo, é plausível dizer que

“existem diferentes formas de distribuir valores de verdade a frases nestas circunstâncias de

forma a preservar o princípio de que os falantes devem ser tratados como estando de forma

geral corretos acerca do seu ambiente.”158 De facto é necessário que existam várias formas de

atribuir crenças aos interpretados. Se tal não fosse possível, isso impediria desde logo a

revisão da teoria de interpretação de forma a conservar a atribuição de racionalidade ao

interpretado.

Se tudo o que foi dito atrás é verdadeiro, então pode concluir-se que não há nenhuma

teoria cujo conhecimento seria suficiente para interpretar um agente (do ponto de vista do

intérprete radical). Se é possível que o intérprete construa duas ou mais frases que expressem

a crença que está a atribuir ao interpretado, se essas frases descrevem de forma igualmente

eficiente que frase o interpretado toma por verdadeiras e se a frase que ele toma por

verdadeira fará parte de uma teoria de verdade interpretativa para a língua do interpretado,

156 Lepore e Ludwig, 2007, 238. (Itálico meu)157 Lepore e Ludwig, 2007, 238.158 Lepore e Ludwig, 2007, 238.

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Interpretação Radical

então o intérprete não tem — dados os constrangimentos impostos pela teoria — forma de

decidir qual das frases escolher.

O modo de rejeitar esta conclusão apenas pode passar pela rejeição de que os indícios

que o intérprete radical tem à sua disposição para iniciar a interpretação não são a priori

suficientes para a tarefa que são chamados a executar.

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Interpretação Radical

Reflexões Finais

Parece-me natural que uma teoria que procure explicar tanto a partir de recursos tão escassos,

chame sobre si muita atenção e seja objeto de muitas críticas dos mais variados setores. Mais

ainda quando o autor das teorias propõe soluções de caráter sistemático, em que o seu

trabalho desenvolvido em várias áreas da filosofia acha aplicação em outras áreas filosóficas,

aparentemente afastadas. Este trabalho procurou mostrar que o projeto de interpretação

radical constitui uma proposta interessante para a resolução do problema do significado. Em

vez de partir da atribuição de significados a proposições e palavras a que de seguida os

falantes acederiam (tal como Platão defendia que os filósofos acederiam a um mundo

inteligível através da reflexão filosófica), a ênfase é colocada na capacidade de compreender

uma linguagem e, mais especificamente, naquilo que seria suficiente para interpretar qualquer

língua natural. Dada a forma como Davidson considera que mente humana funciona, e dado

considerar que tudo o que diz respeito ao significado é publicamente acessível, pensa que é

possível construir uma teoria que dê o significado de frases de uma língua natural. A estrutura

dessa teoria é dada por uma teoria semântica da verdade apropriadamente modificada.

Numa primeira fase, o intérprete começa por identificar uma atitude comum a todos os

agentes — a atitude de tomar como verdadeiro. Esta atitude combinada com a observação do

uso de frases ocasionais permite construir as primeiras hipóteses acerca do conteúdo de

crenças do interpretado. Visto que o valor de verdade destas frases muda conforme a ocasião

em que são usadas pelos falantes de uma língua o intérprete pode começar a formar hipóteses

acerca das palavras que são usadas como conectivos lógicos, termos singulares, termos gerais

e predicados. Isto permite ao intérprete começar a correlacionar as frases que expressam as

suas crenças em relação à mudanças salientes no meio envolvente, com as frases que

expressam as crenças do interpretado.

Numa segunda fase, o intérprete, tendo construído já várias hipóteses acerca do que

será o conteúdo das atitudes do falante, aplica de forma geral o princípio de caridade às

primeiras hipóteses de forma a rejeitar as que obrigariam o intérprete a considerar que os

falantes não são racionais ou que as suas crenças não dizem respeito aos objetos e eventos

salientes no meio ambiente comum. De forma a restringir os objetos que podem estar a causar

as crenças dos agentes, Davidson propõe ainda que o conteúdo é fixado através de um

processo de triangulação. Dois ou mais agentes em comunicação entre si reagem a eventos e

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Interpretação Radical

objetos salientes no ambiente comum. O ponto que é comum à reação de ambos permite

determinar com mais precisão o que causa cada atitude de cada um dos agentes. Dada a forma

de externalismo que ele defende — Davidson considera que o conteúdo de atitudes

proposicionais é, pelo menos em parte, fixado pelos objetos que causaram essas crenças —os

conteúdos das crenças dos agentes podem ser determinados com um grau razoável de

segurança. Ainda assim é possível construir várias teorias de interpretação igualmente

verdadeiras, mas incompatíveis entre si, já que a referência das palavras depende da língua

dos falantes. Visto que não há mais dados acerca do significado do que aqueles que podem ser

descobertos por um intérprete informado, há várias forma de fixar as referências dos termos, o

que equivale a dizer que a referência é relativa. O intérprete procura confirmar a sua teoria de

interpretação à medida que vai atribuindo significado a um número cada vez maior de frases

do interpretado.

O uso de uma teoria formal da verdade de tipo tarskiano para estruturar a teoria

interpretativa acaba por introduzir dados relativos às ações verbais e não verbais dos

interpretados para os redescrever em termos das atitudes proposicionais que as causam (dado

que a teoria que Davidson formula para explicar a ação passa pela redescrição das ações de

um agente em termos das razões que o levaram a executá-las). Tal permite construir as

primeiras hipóteses acerca do significado das frases. Dado que não está ao alcance de um

intérprete assumir à partida que uma teoria é adequada para interpretar frases numa qualquer

língua, a atitude de tomar como verdadeiro, conjuntamente com o uso de frases ocasionais e a

aplicação dos princípios de lógica de primeira ordem, funciona como uma estrutura imposta à

totalidade de atitudes atribuíveis ao interpretado. Se é possível fazer isto, há, prima facie, um

ponto de partida para começar a atribuir significados a algumas das crenças dos interpretados.

Mas é uma teoria de interpretação radical como a que foi descrita ao longo do trabalho

suficiente para compreender uma língua estranha? Dada a escassez de dados que Davidson

acha estarem disponíveis para concretizar um tal projeto, e dado que até uma teoria completa

deixa ainda espaço para indeterminação, a resposta parece ser negativa.

Ainda assim, a teoria pode ainda impor constrangimentos suficientes às hipóteses

formuladas, para fazer uma aproximação interessante e, ao fazê-lo, ajudar a iluminar muitos

aspetos relativos à mente e ao significado. Partindo da ideia de que a racionalidade é um

conceito normativo, e que portanto não poderíamos ver uma pessoa como capaz de

pensamento e de comunicação verbal se não for racional; partindo também da ideia que

qualquer pensamento estará constrangido por princípios lógicos necessários, e que o conteúdo

de qualquer crença depende, pelo menos em parte das suas relações com objetos e eventos no

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Interpretação Radical

mundo e das suas relações lógicas com outras crenças, o intérprete está impossibilitado de

atribuir crenças a alguém que violem estes princípios. Se tal fosse o caso, perderia a

oportunidade de entender essa pessoa como tendo pensamentos.

Se somarmos a isto a proposta de Davidson de que as reações das pessoas em relação a

estímulos comuns permitem, pelo menos, fixar com maior segurança aquilo que está na sua

origem e, dado o tipo de externalismo que defende, qual é o conteúdo dessa crença; e também

o princípio de caridade a que qualquer intérprete deve obedecer que lhe permite defender que

as criaturas capazes de pensamento não podem ter crenças sobre o mundo que sejam

maioritariamente falsas, Davidson conclui que é possível construir uma teoria que seja

suficiente para interpretar qualquer uma de um conjunto infinito de frases que um falante

possa usar. Mesmo se formos mais pessimistas, a abordagem aos problemas da filosofia da

mente permitida por esta estratégia fazem com que ela deva ser levada em conta.

Mesmo que a teoria não seja suficiente para interpretar uma língua, um estudo da

interpretação radical é proveitoso. O intérprete radical é a personagem central em quase toda a

filosofia de Donald Davidson, pelo que a compreensão da interpretação radical possibilitará

um estudo mais detalhado da sua obra e portanto uma melhor compreensão do pensamento de

uma dos filósofos mais influentes do século XX. Trata-se, enfim, de um trabalho que continuo

a fazer e que espero continuar a fazer no futuro.

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