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    PRIMEIRA PARTE:

    A ANTROPOLOGIA NO QUADRODAS CINCIAS

    1. Cincias Naturais e Cincias Sociais

    Nenhum fi lsofo ou- terico da cincia deixou de se preocuparcom s semelhanas e diferenas entre as chamadas cinciasda natureza ou cincias naturais, comua Fsica, a Qumica,a Biologia, a Astronomia etc., cKas disciplinas voltadas parao estudo da realidade humana e social, as chamadas cinciasda sociedade, cincias sociais, ou, ainda, as cincias hu-manas . Como tais diferenas \sj*o legio, no caberia aquiarrol-las ou indic-las de um ponto de vista histrico. Issoseria uma tarefa para um historiador da cincia e no para

    um antroplogo. Apenas desejaria ressaltar, j que o pontome parece bsico quando se busca situar a AntropologiaSocial (ou Cultural) no corpo das outras cincias, que elasem geral tocam em dois problemas fundamentais e de perto

    _reladonados. Um deles diz respeito ao fa to de que s cha-madas cincias naturais estudam fatos simples, eventosque presumivelmente tm causas simples e so facilmenteisolveis. Tais fenmenos seriam, por isso mesmo, recorren-tes e sincrhcos, isto , eles estariam ocorrendo agora mes-mo, enquanto eu escrevo estas linhas e voc, leitor, as l.A^ matr ia-pr ima da cincia natural, portanto, todo oconjunto de fatos que se repetem e tm uma constgj&t-X6]>

    dadeiramente sistmica, j que podem ser vistos, isolados e,assim, reproduzidos dentro de condies de controle razoveis,num laboratrio. Por isso se diz repetidamente que o pro-blema da cincia em geral no o-de desenvolver teorias,mas o de test-las. E o teste que melhor se pode imaginar

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    e realizar aquele que pode ser repetido indefinidamente,at que todas as condies e exigncias dos observadoresestejam preenchidas satisfatoriamente. Alm disso, a simpli-cidade, a sincronia e a repeti tividade assegur am um outr oelemento fundamental das cincias naturais, qual seja: ofato de que a prova ou o teste de uma dada teoria possaser feita por dois observadores diferentes, situados em locaisdiversos e at mesmo com perspectivas opostas.' O labora-trio assegura de certo modo tal condio de objetividade,um outro elemento crtico na definio da cincia e dacincia natural. Assim, um cientista natural pode presen-ciar os modos de reproduo de formigas (j que pode ter

    um formigueiro no seu laboratrio), pode estudar os efeitosde um dado conjunto de anticorpos em ratos e pode, ainda,analisar o quanto quiser a composio de um dado raioluminoso.

    Em contraste com isso, as chamadas cincias sociais-estudam fenmenos complexos, situados em planos de causa-IirinHp a rtetertpflpflco complicados. Nos eventos que consti-tuem- A-matria= prima do antr op lo gQ* -^^ od logo T-do--his-forinHflr, rio cientista politicando economista p^flQ psiclogo,

    j io ianlnr ftyifum e> reativaes exclusivas^ Me smoquandosujeito est apenas desejando realizar uma aoaparentemente inocente e basicamente simples, como o ato

    de comer um bolo. Pois um bolo pode ser comido porquese tem fome e pode ser comido por motivos sociais e psi-colgicos : para demonstrar solidariedade a uma pessoa ougrupo, para comemorar uma certa data (como ocorre numaniversrio), para revelar que o bolo feito por mame melhor do que o bolo feito por D. Yolanda, para indicar quese conhecem bolos, para justificar uma certa atitude e, ainda,por todos esses motivos juntos. Para que se tenha uma provaclara destas complicaes, basta parar de ler esse trecho eperguntar a uma pessoa prxima: por que se come um bolo?Ver o leitor que as respostas em geral colocam toda essaproblemtica na superfcie, sendo difcil desenvolver uma

    teoria que venha a determinar com preciso uma causa nicaou uma motivao, exclusiva.

    A m atria -prima das cincias sociais*^ assim. -so..even-tos com ~dtePhuiioes complicadas e que podem ocorrer emambientes diferenciados tendo, por causa disso, a possibili-

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    dade de.-mudar seu significado de acordo com o ator, asrelaes existentes_num dado-momento e, ainda, com a suagosio -numa cadeia de eventos-ani^rior&-Ji^s teriores. Umbolo comido no final de uma refeio algo que denomina-mos de sobremesa, tendo o significado social de fecharou arrematar uma refeio anterior, considerada como prin-cipal, constituda de pratos salgados. O salgado, assim, ante-cede o doce, sendo considerado por ns separado e maissubstancial que os doces. Agora, um bolo que comido nomeio do dia pode ser sinal (ou sintoma) de um desarranjopsicolgico, como acontece com as pessoas que comem com-pulsivamente. Finalmente, um bolo que o centro de uma

    reunio, que serve mesmo como motivao para o convitequando se diz: venha comer um bolo com o Serginho, um bolo com um significado todo especial. Aqui, ele se tornaum smbolo importante, cuja anlise pode revelar ligaessurpreendentes com a passagem da idade, com as relaesentre geraes, identidades sexuais etc.

    Mas, alm disso, os eventos que aermn de foco ao ci_en-tjsta^social so fatos que fla ratar) mais ocorrendo entrens nu que np poflem gor rpprnHnyjflpg Am condies eon-troladas. De fato, como poderemos ns reproduzir a festa doaniversrio do Serginho? Ou o ritual do Carnaval que ocorreucm 1977 no Rio de Janeiro? Mesmo que possamos reunir

    os mesmos personagens, msicas, comidas, vestes e mobili-rio do passado, ainda assim podemos dizer que est faltandoalguma coisa: a atmosfera da poca, o clima do momento.Enfim, o conjunto criado pela ocasio social que de certomodo decola dela e, recaindo sobre ela, provoca o que po-demos chamar de sobredeterminaes, como a imagem pro-

    jetada numa tela ou num espelho. Diferentemente de umrato reagindo a um anticorpo num laboratrio, o anivers-rio (e todas as ocasies sociais fechadas) cria o seu prprioplano soci.al, podendo ser diferenciado de todos os outros,embora guarde com ele semelhanas estruturais. Esse planodo ref lexo, da circularidade e da sobredeterminao me pa-

    rece essencial na definio do objeto da Antropologia Social(e da Sociologia) e eu voltarei a ele inmeras vezes no de-correr deste volume. Agora, basta que se acentue o seu car-ter de modo ligeiro, somente para revelar como as situaessociais so complexas e de difcil controle, quando as com-

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    paramos com os laboratrios onde os bilogos, qumicos efsicos realizam suas experincias. Realmente, turip yndicaque entre as Cincias, Socia is _e as Cincias Naturais temosuma relao invertida, a saber: se nas cincias naturaisos fenmenos podem ser percebidos, divididos, classificadose explicados dentro de condies de relativo controle e emcondies de laboratrio, objetivamente, existem problemasformidveis no que diz respeito aplicao e at mesmo nadivulgao destes estudos. Na maioria dos casos, o cientistanatural resolve um problema simplesmente para criar tecno-logias indesejveis e, a longo prazo, mortferas e daninhas

    ao prprio ser humano. Isso para no falarmos em desco-bertas que podem trazer ameaas diretas prpria vida e dignidade do homem por seu uso inescrupuloso na reamilitar. Nada mais simples e bem-vindo do que o isolamentode um vrus e nada mais complexo do que esse prprio iso-lamento permitindo a realizao de guerras bacteriolgicase de contaminao.

    No caso do cientista social, ascondies de percepo,classificao e interpretao so complexos, .mas os resulta-dos em .geral no tm conseqncias na mesma proporodTccincia natural. So poucas as teorias sociais que aca-baram tornando-se credos ideolgicos, como o racismo e a

    lufa^d classes, adotados por naes e transformados em va-lores nacionais. As mais das vezes, as chamadas teorias^ so-ciais so racionalizaes ou perspectivas mais acuradas paraproblemas que percebemos, ainda que tais problemas nosejam realmente objetivados com muita clareza. Neste sen-tido, o cientista social tende a reduzir problemas correndomesmo o risco de simplificar demais as motivaes de certoseventos observveis num^ sociedade ou poca histrica. Masraramente seus resultados podem ser transformados em tec-nologia e, assim, podem atuar diretamente sopre o mundo.35m gerai, o resultado prtico do trabalho do cientista social visto fora do domnio, cientfico e tecnolgico, na regiodas artes: nos filmes, peas de teatro, novelas, romancese~contsThde as idias de certas pesquisas podem ser apli-adas, produzindo modificaes no comportamento social.Mas preciso observar que _mais fcil trocar de autom-vel ou de televi so e aceitar inovaes tecnolgicas (ta isinovaes fazem parte do nosso sistema de valores), do quetrocar de valores, simblicos ou-pol ticos .

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    MIS voltemos ao ponto j colocado. Vimos que uma dasdiferenas bsicas entre os dois ramos de conhecimento eraque os fatos sociais so, geralmente, irreproduzveis em con-dies controladas. claro que aes sociais podem ser re-produzidas no teatro e no cinema, mas aqui a distncia queexiste entre o ator e o personagem recriado um dado quevem modificar substancialmente a situao. Alm disso, osatores seguem um texto explicitamente dado, enquanto quens, atores fora do palco, seguimos um texto implicitamentedado que a pesquisa por causa disso mesmo deseja descobrir.O problema bsico, assim, continua: os fatos sociais so

    irreprodtfziveis eimronqies controladas e. por isso, quasesempre fazem parte do passado. So eventos a rigor hist-ricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nuncana forma de uma experincia. Realmente, no posso ver ecertamente jamais verei uma expedio de troca do tipokiUa, to esplendidamente descrita por Malinowski; ou umrito de iniciao dos Canela do Brasil Central que Nimuen-daju narrou com tanta mincia. Do mesmo modo, no possosaber jamais como se sente algum diante dos eventos cr-ticos da Revoluo Francesa ou como foram os dias queantecederam a proclamao da Repblica no Brasil. Podemos,obviamente, reconstruir tais realidades (ou pedaos de rea-

    lidade), mas jamais clamar que nossa reconstruo a ver-dadeira, que foi capaz dc incluir todos os fatos e que com-preendemos perfeitamente bem todo o processo em questo.Tal totalizao impossvel, embora possa ser um alvo de-sejvel para muitos cientistas sociais. Mas ns sabemos muitobem a diferena que existe entre a teoria das ondas hertzianase um rdio transmissor e receptor, que so aparelhos queum fsico conhece totalmente e os pode fabricar. Por isso que existe uma ligao direta entre cincias naturais etecnologia. E a nossa relao com um evento complexo comoa Revoluo Russa ou mesmo o problema do incesto, fatossociais que ns podemos conhecer bem, mas com que man-

    temos sempre uma relao complicada, como se, entre o acon-tecimento e ns, existissem zonas conhecidas e reas profun-das, insondveis. Nossas reconstrues, assim, diferentementedaquelas realizadaiTpelos cientistas naturais, so sempre par-ciais, dependendo de documentos, observaes, sensibilidadee perspectivas. Tudo isso que pode utilizar os dados dispo-

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    nveis ou solicitar novos dados ainda no vistos. por causadisso que nossas teorias, digamos, do inccsto, no so capa-zes de gerar uma tecnologia do incesto. Podem gerar tera-pias, mas, mesmo aqui, nosso conhecimento continua funda-do num processo complexo, nunca numa relao como aquelaque existe entre um qumico c as drogas que pode fabricar.

    Os fatos que formam a matria-prima das cincias so-ciais so, pois, fenmenos complexos, geralmente impossveisde serem reproduzidos^ embora possam ser observados. Po-demos observar funerais, aniversrios, rituais de iniciao,trocas comerciais, proclamaes de leis e, com um pouco de

    sorte, heresias, perseguies, revolues e incestos; mas, almde no poder reproduzir tais eventos, temos de enfrentar anossa prpria posio, histria biogrfica, educao, interes-ses e preconceitos. O problema no o de somente _re-produzir e observar o fenmeno, mas substancialmente ode como observ-lo. Todos os fenmenos que so hoje partee parcela das chamadas cincias sociais so fatos conhecidosdesde que a primeira sociedade foi fundada, mas nem sem-pre existiu uma cincia social. Assim, classes de homens di-versos observaram fatos e os registraram de modo diverso,segundo os seus interesses e motivaes; de acordo com aqui-lo que julgavam importante. O processo de acumulao que

    tipifica o processo cientfico algo lento cm todos os ramosdo conhecimento, mas muito mais lento nas chamadas cin-cias do homem.

    2. Uma Diferena Crucial

    Mas de todas essas diferenas a que considero mais fun-damental a seguinte: nas cincias sociais trabalhamos comfenmenos que estfrft frqj perto de n6t pois pretendemosestudar eventos humanos, fatos que nos pertencem integral-mente. O que significa isso?

    Tomemos um exemplo. Quando eu estudo baleias, estudoalgo radicalmente diferente de mim. Algo que posso perce-ber como distante e com quem estabeleo facilmente umarelao de objetividade. No posso imaginar o universointerior de uma baleia, embora possa tomar as baleias pararealizar com elas um exerccio humanizador, situando-as como

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    ocorre nos desenhos animados e nos contos de fadas, comouma rplica da sociedade humana. Embora possa incorporaras baleias ao reino do humano, poderei imaginar o quesentem realmente esses cetceos? claro que no. Essadistncia irremedivel dada ao fato de que jamais podereitornar-me uma baleia que permite jogar com a dicoto-mia clssica da cincia: aquela entre sujeito (que conheceou busca conhecer) e objeto (a chamada realidade ou ofenmeno sob escrutnio do cientista). As teorias e os m-todos cientficos so, nesta perspectiva, os mediadores quepermitem operar essa aproximao, construindo uma ponteentre ns e o mundo das baleias.

    Mas, ao lado disso, h um outro dado crucial. que euposso dizer tudo o que quiser em relao s baleias saben-do que elas jamais iro me contestar. Poderei, claro, sercontestado por um outro estudioso de baleias, mas jamaispelas baleias mesmas. Estas continuaro a viver no imensooceano de guas frias, nadando em grupos e borrifandoespuma independentemente das minhas dedues e teorias.Isso significa simplesmente que o meu conhecimento sobreas baleias no ser jamais lido pelas baleias que jamaisiro modificar o seu comportamento por causa das minhasteorias de modo direto. Minhas teorias podero ser usadaspor mim mesmo ou por terceiros para modificar o compor-tamento das baleias, mas elas nunca sero usadas direta-mente pelas baleias. Em outras palavras, nunca me torna-rei um cetceo, do mesmo modo que um cetceo nunca po-der virar um membro da espcie humana. por causa dissoque teorias sobre baleias e sapos so teorias, isto , conhe-cimento objetivo, externo, independente de baleias, sapos einvestigadores.

    Mas como se passam as coisas no caso das cinciassociais ?

    Ora, aqui tudo muito mais complexo. Temos, em pri-meiro lugar, a interao complexa entre o investigador e o

    sujeito investigado, ambos como disse Lvi-Strauss situados numa mesma escala. Ou seja, tanto o pesquisadorquanto sua vitima compartilham, embora muitas vezes nose comuniquem, de um mesmo universo das experincias hu-manas. Se entre ns e os ratos as diferenas so irredut-veis, homens e ratos pertencem a espcies diferentes, sabe-

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    mos que os homens no se separam por meio de espcies,mas pela organizao de suas experincias, por sua histriae pelo modo com que classificam suas realidades internase externas. Por causa disso ningum pode virar baleia, ratoou leo, mas todos podemos nos tranformar em membrosde outras sociedades, adotando seus costumes, categorias depensamento e classificao social, casando com suas mulhe-res e socializando seus filhos. Rezando aos seus espritos edeuses, aplacando a ira e agradecendo as bnos dos seusancestrais, obedecendo ou modificando suas leis, falando bemou mal sua lngua. Apesar das diferenas e por causa delas,

    ns sempre nos reconhecemos nos outros e eu estou incli-nado a acreditar que a distncia o elemento fundamentalna percepo da igualdade entre os homens. Deste modo,quando vejo um costume diferente que acabo reconhecendo,pelo contraste, meu prprio costume.

    Quando estudei os nomes pessoais entre os Apinay doNorte do Estado de Gois e vi que, entre eles, os nomeseram mecanismos para estabelecer relaes sociais, foi quepude reconhecer imediatamente o papel dos nomes entre ns.Aqui, percebi, os nomes servem para individualizar, paraisolar uma pessoa das outras e, assim fazendo, individuali-zar um grupo (uma famlia) de outro. O nome caracteriza,

    o individuo, pois os nomes so nicos e exclusivos, conv otermo xar. demonstrando a surpresa que dois ou mais no-mes idnticos podem causar. Lembro que a palavra xar de origem tupi e significava originalmente meu nome. Elatem assim a virtude de relacionar dois indivduos cujosnomes so comuns, indicando, junto com a boa surpresa,algo que talvez no devesse ocorrer, pois o nome tem umcarter exclusivo na nossa sociedade. Entre os Apinay eos Timbira em geral, porm, os nomes no individualizammas, muito ao contrrio, estabelecem relaes muito impor-tantes entre um tio materno e o sobrinho, j que ali os nomesso sistematicamente transmitidos dentro de certas linhas de

    parentesco. Os genitores jamais devem dar os nomes aos seusfilhos que sempre os devem receber de parentes situados emcertas posies genealgicas, entre as quais se destaca a dotio materno. De acordo ainda com essa lgica, os nomessempre devem passar de homem para homem e de mulherpara mulher, algo bem diferente do que ocorre em nosso

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    meio, onde eles so transmitidos obedecendo a uma lgicapessoal o fundada numa livre escolha. Se tirarmos o sobre-nome, o nome de famlia, que legitima direitos a proprieda-de, o nome prprio ou primeiro nome 6 algo que pode variarmuito quando escolhido e dado. De fato, falamos em darum nome criana; quando na sociedade Timbira muitomais apropriado falar-se em transmisso de nomes, ato querevela melhor o sistema de nominao vigente naquela so-ciedade. Mas, alm disso, os nomes Timbira do direitos apertencer a certos grupos cerimoniais muito importantes,pois so grupos que atuam durante os rituais e tambm nas

    corridas carregando toras, esporte nacional destas tribos.Assim, papis sociais so transmitidos com os nomes pr-prios e grupos de pessoas com os mesmos nomes desempe-nham os mesmos papis.

    Um sistema de nomes prprios, to coletivo como essedos Timbira, nos faz pensar de imediato nas possibilidadesde um sistema oposto, isto , num sistema de nominao emque os nomes fossem absolutamente privados e individuali-zados de tal modo que a cada indivduo no s correspon-desse um s nome, mas que tal nome fosse mesmo comoque a expresso de sua essncia individual. Pois bem, talsistema parece existir entre os Sanum do Norte da Ama-

    znia (cf. Ramos, 1977) onde os nomes prprios so se-gredo. Temos, pois, neste exemplo, o modo caracterstico deproceder a comparao em Antropologia Social e, por meiodela, descobrir, relativizar e pr em relao o nosso sistema(ou parte dele), pelo estudo e contato com um sistema di-ferente. Pois se os nomes dos Timbira so coletivos e os dosSanum absolutamente individualizados (at mesmo ao limi-te de tomarem-se sigilosos), o nosso sistema fica como quenuma posio intermediria, como um conjunto que, ao mes-mo tempo que individualiza, tambm permite a apropriaoe a expresso do coletivo. Mas preciso observar que onosso sistema como o dos Sanum parece contrastar

    violentamente com o Timbira, na medida em que o seu eixoest em acentuar indivduos e grupos exclusivos. Sem o con-traste e a distncia que o sistema de nominao dos Tim-bira coloca, seria difcil tomar conscincia do nosso sistema,num primeiro passo, para poder relativiz-lo apropriadamen-te. A histria da Antropologia Social, alis, como veremos

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    um pouco mais adiante, a histria de como esses diferen-tes sistemas foram percebidos e interpretados como formasalternativas solues e escolhas para problemas co-muns colocados pelo viver numa sociedade de homens. Ecomo esse tipo de encaminhamento se constitui num momen-to importante no sentido de unir o particular com o uni-versal pela comparao sistemtica e criativa: relacional erelativizadora.

    Mas alm da problemtica colocada pelo deslocamentodos sistemas (ou subsistemas), deslocamento que permite acomparao e uma percepo sociolgica, relativizada ou devis, existe uma outra questo crtica nestas diferenas entreas cincias sociais e as cincias naturais. Trata-se doseguinte:

    Quando eu teorizo sobre os nomes Apinay, isto , quandoconstruo uma interpretao para esse subsistema da socie-dade Apinay (ou Timbira), eu crio uma rea complexaporque ela pode atuar em dois sistemas diferentes: o meue o deles. Em outras palavras, quando eu interpreto o sis-tema de nominao Apinay, eu entro numa relao de re-flexividade com o meu sistema e tambm com o sistemaApinay. Posso ir alm da minha comunidade de cientistas,para quem estou evidentemente criando e procurando apre-sentar minha teoria, discutindo minhas hipteses e teoriascom os prprios Apinay! Esse um dado fundamental erevolucionrio, pois foi somente a partir do incio deste s-culo que ns antroplogos sociais temos procurado testarnossas interpretaes nesses dois nveis: no da nossa socie-dade e cultura e tambm no nvel da sociedade estudada, como prprio nativo. Esta atitude, que certamente um evolucio-nista vitoriano do tipo Frazer consideraria uma verdadeiraheresia acadmica, que tem servido como veremos nodecorrer deste livro para situar a Antropologia Social nocentro epistemolgico de todo um movimento relativizadorque eu reputo como o mais fundamental dos ltimos tem-pos. Porque quando apresento minha teoria ao meu objetos

    eu no a-fistou me abrindo para uma relativizao dos meusparmetros epistemolgicos, como lambem fazendo nascer umplano de debate inovador: aquele formado por uma dialticaentre o fato interno (as interpretaes Apinay para os seusprprios nomes), com o fato externo (as minhas interpre-

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    taes dos ji om cs A pinay). E essa dialtica acaba por inven-tar um plano comparativo fundado na reflexividade, na cir-cularidade na crtica sociolgica, o que c radicalmente di-ferente da comparao bem comportada, onde a conscinciado observador fica inteiramente de fora, como uma espciede computador csmico, a ela sendo atribuda a capacidadede tudo dar sentido sem nunca se colocar no seu prprioesquema comparativo.

    essa possibilidade de dialogar com o nativo (informan-te) que permite ultrapassar o plano das convenincias pre-conceituosas interessadas em desmoralizar o outro. ela

    que tambm impede a Antropologia Social contempornea deutilizar aqueles esquemas evolucionistas fceis, que situamos sistemas sociais em degraus de atraso e progresso, colo-cando sempre o nosso sistema como o mais complexo, omais adiantado e o que, por tudo isso, tem o direito sagrado(dado pelo tempo histrico legitimador) de espoliar, explo-rar e destruir tudo em nome do chamado processo ci-vilizatrio. Podemos ento dizer que nesta avenida abertapela possibilidade do dilogo com o informante que jaz adiferena crtica entre um saber voltado para as coisas ina-nimadas ou passveis de serem submetidas a uma objetivi-dade total (os objetos do mundo da natureza) e um saber,como o da Antropologia Social, constitudo sobre os homensem sociedade. Num caso, o objeto de estudo inteiramenteopaco e mudo; noutro, ele transparente e falante. No casodas cincias sociais o objeto muito mais que isso, eletem tambm o seu centro, o seu ponto de vista e as suasinterpretaes que, a qualquer momento, podem competir ecolocar de quarentena as nossas mais elaboradas explanaes.

    A raiz das diferenas .entre- cincias naturais_e. ccin-cias sociais fica localizada, portanto, no fato de_ que a na-tureza no pode falar diretamente com o investigador; aopasso que cada sociedade humana conhecida um espelhoncf a nossa prpria existncia se reflete. ,

    M >ntropologias e Antropologia

    Procurando definir um lugar para a Antropologia Social, preciso no esquecer as relaes da Antropologia com seus

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