Relatório Memória Social

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PROJETO ‘MEMÓRIA SOCIAL SOBRE SAÚDE E AMBIENTE; UM PROJETO DE PESQUISA-AÇÃO COM AGRICULTORES FAMILIARES DE SUMIDOURO, R.J. RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA APRESENTADO AO CNPq AUTOR: EDUARDO NAVARRO STOTZ MODALIDADE: AUXILIO INDIVIDUAL DE PESQUISA PROCESSO: 472659/2006-5 PERÍODO: OUTUBRO DE 2006 A DEZEMBRO DE 2008

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Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste relato de memória social.

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  • PROJETO MEMRIA SOCIAL SOBRE SADE E AMBIENTE; UM

    PROJETO DE PESQUISA-AO COM AGRICULTORES FAMILIARES DE

    SUMIDOURO, R.J.

    RELATRIO FINAL DE PESQUISA APRESENTADO AO CNPq

    AUTOR: EDUARDO NAVARRO STOTZ

    MODALIDADE: AUXILIO INDIVIDUAL DE PESQUISA

    PROCESSO: 472659/2006-5

    PERODO: OUTUBRO DE 2006 A DEZEMBRO DE 2008

  • EQUIPE DE PESQUISA

    ANNA BEATRIZ DE S ALMEIDA (DP/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz)

    AUREA MARIA DA ROCHA PITTA (DAPS/Escola Nacional de Sade

    Pblica/Fiocruz)

    CARLOS TADEU GOMES (CIEP SO JOSE DE SUMIDOURO)

    EDUARDO NAVARRO STOTZ (DENSP/Escola Nacional de Sade

    Pblica/Fiocruz) - Coordenador

    FREDERICO PERES (CESTEH/Escola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz)

    GABRIEL SANCHES BORGES (Direito/Universidade Estcio de S- PIBIC

    CNPq-Fiocruz)

    LUSYANA PORTO DA SILVA (Informtica/Universidade Estcio de S- PIBIC

    CNPq-Fiocruz)

    PEDRO LUIZ DE CARVALHO PEREIRA (Histria/Faculdade de Filosofia,

    Cincias e Letras da Fundao Educacional Alm Paraba - IC/FAPERJ)

    RAFAEL DIAS (Geografia/Faculdade de Formao de Professores da UERJ -

    IC/FAPERJ)

  • Apesar de muitas variaes de tempo e lugar, o sistema agroecolgico

    capitalista mostra uma tendncia clara ao longo da expanso da histria

    moderna: um movimento em direo simplificao radical da ordem

    ecolgica natural no nmero de espcies encontradas em uma rea e o

    intrincado de suas interconexes.

    Donald Worster, Transformaes da terra:

    para uma perspectiva agroecolgica moderna

    O dinamismo da economia brasileira no se explica sem uma referncia

    ao sacrifcio imposto a grande parte da populao do pas e ao carter

    extensivo da explorao dos recursos naturais de um vasto territrio. Os

    instrumentos da anlise econmica so inadequados para explicitar

    esses custos sociais e ecolgicos.

    Celso Furtado, O Brasil Ps-Milagre

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. 5 Apresentao: um breve histrico e agradecimentos .................................................... 5 Proposta e problematizao ........................................................................................... 8 Objetivos e metas ........................................................................................................ 13

    MARCO TERICO-CONCEITUAL ............................................................................. 15 A identidade social do campons no sistema capitalista ............................................. 15 A modernizao da agricultura ................................................................................. 19 A Revoluo Verde e sua difuso no Brasil ................................................................ 21 Educao rural na perspectiva dos educandos ............................................................. 31

    PROCEDIMENTOS METDICOS ............................................................................... 34 OBJETIVOS ALCANADOS ........................................................................................ 41 ANLISE DOS DADOS, INFORMAES E OBSERVAES COLETADAS ....... 45

    As transformaes na agricultura em Sumidouro: uma anlise dos dados e informaes econmicas e ambientais ........................................................................ 45

    Da agricultura tradicional moderna ................................................................. 53 A induo do processo de modernizao ................................................................ 60 A agricultura como prtica econmica e o uso de agrotxicos ............................... 70 Impacto do uso de agrotxicos sobre o ambiente a sade dos trabalhadores .......... 80 A conscincia dos limites da agricultura moderna ............................................... 87

    Memorizar uma forma de lutar contra a opresso: as metamorfoses do campesinato em Sumidouro. ............................................................................................................. 96

    A escravido em Sumidouro: memria dividida e dois destinos ............................. 96 Patro rico, meeiro burro ....................................................................................... 107 Ver, avaliar, calar... resistir .................................................................................... 111

    INTERPRETAO DOS ACHADOS DA PESQUISA .............................................. 115 Agrotxicos como risco, perigo e insumo do processo de produo e de trabalho na agricultura .................................................................................................................. 116 A questo da escolarizao na percepo do risco sade ...................................... 122 A questo das alternativas agricultura convencional ............................................. 126 O campesinato e a questo ambiental .................................................................... 129

    CONSIDERAES FINAIS E PERSPECTIVAS ....................................................... 133 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 138 ANEXOS I a III ............................................................................................................. 153

    ANEXO I ................................................................................................................... 154 ANEXO II .................................................................................................................. 155 ANEXO III ................................................................................................................ 157

  • INTRODUO

    Apresentao: um breve histrico e agradecimentos

    A pesquisa Memria Social sobre Sade e Ambiente financiada pelo

    CNPq na modalidade de Auxilio Individual Pesquisa, teve seu primeiro esboo

    elaborado durante a fase final da participao do autor deste relatrio no projeto de

    controle da esquistossomose desenvolvido em alguns bairros do municpio de

    Sumidouro, sob a coordenao de Marisa Soares, pesquisadora do Instituto

    Oswaldo Cruz. Na segunda metade de 2004 estava claro que a esquistossomose

    como uma endemia rural na localidade da Porteira Verde estava controlada. As

    novas questes de sade estavam relacionadas, do ponto de vista coletivo, aos

    usos da gua naquele bairro devido a um matadouro e pocilgas em diferentes stios

    localizados ora acima, ora abaixo, ao longo de cursos dos crregos. O certo que

    havia uma demanda de parte dos moradores por saneamento bsico e a melhor

    forma para resolv-la era mediante a criao de uma associao de moradores. O

    relatrio da pesquisa realizada foi publicado no primeiro nmero da revista

    eletrnica de educao Moambrs http://www.mocambras.org/ .

    Outro problema detectado na pesquisa coordenada por Marisa Soares foi a

    intoxicao dos trabalhadores devido utilizao de agrotxicos na agricultura.

    Pensamos desenvolver um novo projeto que considerasse esse ltimo problema,

    desta vez no como um estudo biolgico ou clnico e sim sociolgico. A

    preocupao, manifestada durante a pesquisa anterior, de saber o que pensavam

    os prprios moradores a respeito dos problemas de sade e das formas de

    enfrent-los, levou-nos a propor um resgate da memria do trabalho dos

    agricultores como parte da avaliao dos motivos do uso de agrotxicos.

    Com apoio Ftima Curty Moura, tcnica do escritrio local da EMATER,

    comeamos, no final do ano de 2005, a esboar um projeto de pesquisa com o

    intuito de ouvir dos moradores mais antigos a histria de suas vidas e, por meio

    delas, da sua infncia, do seu trabalho e da prpria cidade. Pediramos que

    contassem a histria de Sumidouro a partir de suas prprias vidas. Os problemas

    de sade e aqueles relacionados ao ambiente deveriam aparecer no contexto

    dessas histrias.

    Foi assim que nasceu o projeto Memria social sobre sade e ambiente:

    uma pesquisa-ao com agricultores familiares em Sumidouro, Rio de

    Janeiro que imediatamente contou com a participao dos pesquisadores Frederico

    Peres, do Centro de Estudos de Sade e Ecologia Humana da ENSP/Fiocruz e de

  • Anna Beatriz de S Almeida, do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo

    Cruz/Fiocruz.

    O passo seguinte foi ampliar a participao de pessoas do prprio municpio

    no projeto. Vale mencionar especialmente Antonio e Termelita Lavourinha;

    professores do CIEP So Jos de Sumidouro, nas pessoas de Carlos Tadeu Gomes,

    Elaine Gaspar e Iza Fragoso que contriburam para atrair a ateno dos jovens do

    ensino mdio para a importncia de resgatar a memria social dos cidados

    sumidourenses, especialmente dos agricultores. Com eles tentou-se montar um

    Projeto Escolar de Histria Oral.

    importante registrar apoio de Marcelo Vieira de Almeida, coordenador do

    Centro Pr-Memria de Sumidouro (CPMS): graas a ele pudemos explorar um

    arquivo de Recortes de Jornais que ajudou a esclarecer aspectos da agricultura

    sumidourense.

    Por outro lado, descobrimos no CPMS o acervo dos livros de fazenda do

    Baro de Aquino. Ao fazer a consulta, constatamos estarem bem preservados.

    Preocupou-nos, porm, as condies precrias de infra-estrutura do local onde

    estava instalado o CPMS. Acertamos ento com Marcelo Vieira de Almeida a

    transferncia desse acervo para o Arquivo Nacional, de modo a viabilizar o

    tratamento arquivstico e a guarda adequadas. A doao foi feita por Monica

    Pinheiro Gomes, em nome da famlia dos herdeiros do Baro de Aquino.

    Representante do Arquivo Nacional assumiu o compromisso, na medida da

    digitalizao do material, de entrega de cpias em CD Rom para permitir fcil

    acesso aos sumidourenses interessados em pesquisar o acervo.

    Uma equipe local de pesquisa comeou a tomar forma em abril de 2006.

    Ftima Moura, ento estudante de Direito da Universidade Estcio de S Campus

    de Nova Friburgo, Ftima apresentou Gabriel Sanches Borges e Lusyana Porto da

    Silva, colegas da mesma universidade e moradores de Sumidouro.

    A partir de agosto de 2006, foi possvel inclu-los formalmente no projeto de

    pesquisa na condio de auxiliares de pesquisa, graas concesso de duas bolsas

    no Programa de Iniciao Cientfica CNPq-Fiocruz. Assim, Gabriel Sanches Borges

    passou a desenvolver o projeto Memria social sobre ambiente e sade em

    sumidouro, RJ: um estudo do ponto de vista jurdico, ora concludo; Lusyana Porto

    da Silva teve sua bolsa renovada para dar continuidade ao projeto Memria Social

    sobre ambiente e sade: organizao de uma pgina de internet do projeto de

    histria oral em Sumidouro, RJ. Em 2007, a Fundao de Amparo Pesquisa do

    estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) concedeu duas bolsas de iniciao cientfica a

    Pedro Luiz de Carvalho Pereira, com o projeto de pesquisa Memria social dos

    agricultores de Sumidouro: a gerao da revoluo verde, j concludo e a Rafael

  • Dias, com o projeto A olericultura em Sumidouro: uma aproximao ao

    entendimento do sistema agrrio baseado na pequena propriedade, em fase de

    concluso.

    O apoio do professor Carlos Tadeu Gomes, professor de Histria do CIEP

    998, ao projeto, participando de reunies da equipe e facilitando-nos a visita s

    reas de difcil acesso do municpio, localizadas nas terras frias, foi de grande

    importncia para o conhecimento mais aprofundado da realidade da agricultura em

    Sumidouro.

    A participao de urea Pitta em 2007 foi fundamental na organizao e

    irradiao do programa Fala Sumidouro. O mestre de Acio Flvio Rego deu a

    este programa mais do uma bela trilha musical, reinterpretou o Hino Municipal de

    Sumidouro.

    Devo ao senhor Altivo da Silva e a recepo de sua esposa, Isabel e da filha

    deles, Maura, o convvio de bons momentos, em que as lembranas do passado se

    misturaram com caf, sucos, bolinhos e muito afeto.

    A todos, nossos agradecimentos.

  • Proposta e problematizao

    De acordo com Guilherme Delgado, a importncia da agricultura tem sido

    subestimada uma vez que 35% da populao brasileira dependem da atividade

    agropecuria1. Pesquisas tm demonstrado que, apesar da diminuio de postos de

    trabalho na agricultura esta ainda responsvel pela manuteno de um

    contingente considervel da populao rural, tanto no Estado do Rio de Janeiro

    como em mbito nacional (Carneiro e Teixeira, 1999). Trata-se de um debate em

    torno dos destinos da ruralidade na poca atual (Veiga, 2004).

    Como o municpio se insere neste quadro?

    Vejamos alguns dados demogrficos, econmicos e sociais de Sumidouro

    com base no Censo Demogrfico de 2000.

    Sumidouro um municpio do estado do Rio de Janeiro situado na divisa

    com os municpios de Carmo, Duas Barras, Nova Friburgo, Terespolis e Sapucaia

    que se estende por uma rea de 396 quilmetros quadrados da regio serrana ao

    Vale do Rio Paraba do Sul. rea montanhosa com altitudes variando de 264 a

    1.300 metros em clima tropical de altitude, abriga uma economia essencialmente

    agrcola e uma populao predominantemente situada em rea rural.

    Sumidouro, emancipado da comarca do Carmo e elevado categoria de

    municpio por decreto estadual de 10 de junho de 1890, apresenta, ao longo da

    histria, um baixo crescimento demogrfico, principalmente quando se considera a

    notvel transformao ocorrida no perodo dos anos 1950 a 1980 em nosso pas,

    inclusive no Estado do Rio de Janeiro e na prpria regio serrana da qual faz parte.

    A populao rural tem diminudo relativamente, mas a urbanizao ainda um

    processo lento.

    1 DELGADO G 2005. Comunicao pessoal no Seminrio sobre Excluso social, promovido pelo Instituto DNA Brasil, realizado em So Paulo.

    9

  • Tabela 1

    Ano Total1950 662 7,3 8468 92,7 91301960 1054 9,9 9599 90,1 106531970 1316 12,0 9687 88,0 110031980 1411 12,4 9984 87,6 113951991 2011 15,5 10966 84,5 129772000 2334 16,5 11842 83,5 14176

    Fonte: IBGE - Censos Demogrficos

    Populao Residente por Ano e SituaoSumidouro

    Perodo:1950-2006

    Urbana Rural

    Uma possvel explicao para o fenmeno demogrfico pode ser a migrao,

    vinculada estrutura fundiria e transmisso da herana das pequenas

    propriedades rurais (menos de 1 a 10 hectares) que, de acordo com os dados do

    censo agropecurio de 1995/96, representavam 49% dos estabelecimentos

    segundo esta condio legal. Trata-se do resultado de um longo processo que

    remonta crise da grande propriedade organizada em torno da cafeicultura. O

    colonato inicialmente e, depois, at os nossos dias, a parceria, aparecem como

    formas de transio neste processo. O censo agropecurio de 1995/96 registrou

    37% dos estabelecimentos de Sumidouro sob esta condio legal, a maioria dos

    quais (75%) no grupo de menos de 1 a 5 hectares. A amplitude do sistema de

    parceria um dado importante a ser considerado na pesquisa, sendo sintomtica a

    expresso patro rico, meeiro burro proverbial entre os sumidourenses.

    O fato de ser um municpio predominante rural implica, dentro das

    caractersticas sociais e polticas brasileiras, uma elevada taxa de analfabetismo e

    de alfabetismo funcional na populao com 10 anos ou mais de idade:

    10

  • Tabela 2

    Anos de estudo N habitantes %0 - > 1 1982 17,171 a 3 3808 32,994 a 7 4049 35,078 a 10 729 6,3111 a 14 785 6,8015 ou mais 191 1,65Total 11544 100,00

    Fonte: IBGE, 2004

    Escolaridade das pessoas residentes com 10 anos ou mais de idade Sumidouro - 2001

    O problema do baixo nvel de escolarizao assume importncia dada a

    associao com o uso de agrotxicos apontada na literatura.

    Sabe-se que os efeitos dos agrotxicos sobre a sade humana e o ambiente

    decorrem do modo como os agricultores escolhem, preparam e aplicam

    agrotxicos na olericultura (Agostini, 1997). Importa constatar que o 'uso

    ideal' dos agrotxicos dificultado por diversos fatores, dentre os quais o

    nvel de escolaridade e a falta de orientao tcnica. Mas vale ressaltar

    outra sorte de dificuldades, como as apontadas pela autora, relacionadas ao

    clculo econmico e tcnico envolvido em decises que precisam ser

    tomadas em momentos apropriados na lavoura.

    Nossa proposta de pesquisa, ao levar em conta esta realidade do municpio,

    tinha em mente contribuir, por meio da pesquisa, na identificao do processo de

    mudana:

    Municpio predominantemente rural, Sumidouro uma vasta rea de

    olericultura com uso intensivo de agrotxicos e explorao do solo

    inadequada e danosa do ponto de vista ambiental. Modificar esta situao

    com a participao dos agricultores familiares supe, de um lado, o

    reconhecimento das razes que respaldam tais prticas e, de outro, dar

    visibilidade a alternativas tcnicas e formas diferentes de trabalho rural.

    A pesquisa no se desvinculava de uma orientao educacional, espelhada

    no prprio ttulo do projeto:

    11

  • Do ponto de vista educativo, este projeto de pesquisa insere-se na

    tendncia, assinalada por Damasceno e Beserra, (2004), de discutir a

    educao rural da perspectiva da populao a que se destina, isto , os

    agricultores familiares.

    Do ponto de vista metodolgico, optamos pela histria oral como um mtodo

    de pesquisa-ao:

    Quando a experincia de vida de pessoas de diferentes grupos sociais passa

    a ser utilizada como fonte histrica, uma multiplicidade de pontos de vista

    sobre certos fatos ganha relevncia e, ao mesmo tempo, cada um desses

    pontos de vista confere ao conhecimento das pessoas uma importncia

    antes ignorada. A histria oral torna a histria mais democrtica, tornando

    equivalentes os saberes. Destaca-se, neste aspecto, o fato de que as

    informaes privilegiadas pelos agricultores so aquelas oriundas de seus

    prprios pares, enquanto as informaes dos tcnicos tendem a ser

    avaliadas com desconfiana ou ceticismo (Guivant, 1997). Ao mesmo

    tempo, a histria oral favorece o estabelecimento de vnculos comunitrios

    entre pessoas de diferentes grupos sociais e etrios que, de outra forma,

    dificilmente se conheceriam e trocariam informaes e saberes entre si,

    dado o relativo insulamento que a dedicao do tempo lavoura e as

    distncias num municpio de relevo irregular e rea de 396 km2 impe

    maior sociabilidade.

    No dia 8 de dezembro de 2005 fizemos o primeiro contato com as

    autoridades para apresentar a idia de um projeto de histria oral voltado para a

    problemtica da sade e do ambiente e solicitar apoio para sua realizao em

    Sumidouro. Contvamos com o fato de que a Fiocruz j era uma instituio parceira

    na rea da sade e havia interesse do poder municipal, por meio da Secretaria de

    Agricultura e Meio Ambiente (SAMA), em reduzir os impactos sociais e ambientais

    do uso de agrotxicos na agricultura. De fato, a recepo foi tima, inclusive pela

    indicao de vrios nomes de moradores mais antigos de vrios estratos sociais.

    Neste momento tivemos a oportunidade de conhecer praticamente todo o

    municpio, das terras quentes s terras frias, no percurso do Vale do Paraba

    regio serrana, guiado por Ftima Curty Moura. Informaes sobre a agricultura

    (ciclos da lavoura, tipos de cultivos em cada rea, aspectos vinculados sucesso

    da propriedade) e os limites da olericultura oferecer alternativas de trabalho para

    12

  • todos os muncipes, bem como nomes de possveis pessoas a serem entrevistadas

    foram-nos oferecidas ao longo da excurso.

    Participamos de uma reunio com os produtores de So Loureno na Escola

    Flor do Campo que teve um importante papel na elaborao do projeto de

    pesquisa. Foi o ensejo para pensar um roteiro de entrevista que considerasse

    algumas categorias do pensamento campons em Sumidouro, a saber: trabalho e

    gosto ou capricho; tempo e biografia (casamento, nascimento, morte, sucesso

    da propriedade); respeito. Destas categorias, o trabalho ocupava a centralidade,

    identidade e destino social da maioria. O trabalho distinguia o tempo da

    infncia/adolescncia e o tempo da vida adulta, da dependncia e da autonomia,

    concretizando o tempo da vida de cada um e de todos. Eis as anotaes daquela

    reunio com os agricultores, j ao anoitecer:

    O senhor Jos Joaquim Correia, Z Lulu, lembrou que, quando casou, aos 19

    anos, ainda existia caf no lugar. Conheceu Fernando Gomes de quem

    comprava batata inglesa, colhia em saco de estopa, era um lavouro (3

    hectares de terra). O sogro de Z Lulu plantava cravo. Isso por volta de

    1955. Nas conversas entrecruzadas com outros agricultores, algum fez

    referncia a um dos mais antigos de So Loureno, o senhor Hermes, com

    mais de 80 anos que viveu mais a vida ruim. Os agricultores referiram-se

    s dificuldades de ontem e a comodidade de hoje.

    No projeto de pesquisa assim formulamos este entendimento:

    Tomando como pressuposto a capacidade da histria oral de "fazer

    conexes entre esferas distintas da vida" para evidenciar processos de

    transio e observar trajetrias singulares, pensamos na estruturao das

    entrevistas e da busca documental em mdulos temticos que, tendo por

    centro o 'trabalho', possa considerar aspectos da vida cotidiana relacionados

    importncia da famlia ('casa') na cultura do grupo e da participao

    poltica ('cidade'), especialmente das redes e associaes capazes de

    viabilizar o acesso a financiamento e condies de comercializao dos

    produtos das lavouras. Este um dos aprendizados da pesquisa

    anteriormente desenvolvida (Soares; Stotz; Barreto, 2005).

    As pistas surgidas nessa fase exploratria da pesquisa permitiram supor

    que a pergunta formulada para orientar a pesquisa tivesse consistncia.

    Perguntamo-nos:

    13

  • ...ainda existem, na memria e na cultura deste campesinato elementos da

    agricultura orgnica tradicional capazes de se contrapor lgica prevalecente?

    De qualquer modo, preocupamo-nos em admitir a possibilidade de achados

    contraditrios a esta suposio quando escrevemos:

    A relativizao do ponto de vista dos pesquisadores, geralmente

    impregnados pela mentalidade extensionista (Freire, 1971) a partir do

    contraponto oferecido pelas reflexes das cincias sociais, a exemplo do

    estudo das representaes sobre os agricultores (Neves, 1987), de sua

    diferenciao interna (Neves, 1985) e da viso sobre a famlia rural

    (Almeida, 1986; Woortmann, 1990), devem manter os pesquisadores

    atentos quanto aos esteretipos que tradicionalmente cercam o "mundo

    agrrio". A compreenso da forma como se realizou entre ns a chamada

    Revoluo Verde (Peres, 2005) dever ser o alvo preferencial dessa

    relativizao sociolgica.

    Objetivos e metas

    O objetivo geral da pesquisa foi o de construir uma memria social sobre as

    relaes entre trabalho, ambiente e sade em Sumidouro (RJ). Especificamente

    pretendemos:

    1 Identificar as transformaes ocorridas na base tcnica da agricultura

    nos ltimos 40 anos.

    2 Captar a percepo dos agricultores acerca das mudanas nas

    caractersticas ambientais (solo, gua) decorrentes da agricultura intensiva.

    3 Captar a percepo dos agricultores acerca da proteo sade no uso

    de agrotxicos.

    O carter do projeto, voltado para a educao em sade, tambm nos

    conduziu a propor, como metas a realizao, em Sumidouro:

    a) de uma mostra coletiva em Sumidouro, com apresentao de relatos dos

    depoentes (trechos escritos e orais), exposio de fotografias, de documentos e

    instrumentos de trabalho;

    b) da participao dos pesquisadores em reunies de associao de

    produtores para divulgao dos resultados da pesquisa ser incorporada prtica

    14

  • da pesquisa como parte do estmulo e apoio ao desenvolvimento do cultivo

    orgnico;

    c) da difuso do conhecimento sobre o impacto dos agrotxicos na sade

    dos trabalhadores e de suas implicaes ambientais junto s comunidades de

    agricultores familiares em diferentes localidades do municpio de Sumidouro;

    d) do intercmbio de experincias, com a realizao de excurses de

    trabalhadores mais jovens a municpios com agricultura familiar comercial

    organizada em princpios orgnicos, de modo a permitir a abertura da discusso de

    alternativas tcnicas apropriadas olericultura com apoio da EMATER e da

    Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente de Sumidouro;

    e) do desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa em histria oral que

    proporcionasse o avano de estudos interdisciplinares em ambiente e sade. A

    constituio de fontes primrias (depoimentos e documentos textuais e

    iconogrficos) como acervo para esta e outras pesquisas, sob cuidados da Casa de

    Oswaldo Cruz implicaria o apoio desta instituio organizao local dos acervos e

    da prtica de histria oral em Sumidouro de modo a propiciar a apropriao desta

    tecnologia.

    15

  • MARCO TERICO-CONCEITUAL

    Nossa interpretao sobre o comportamento e atitude dos agricultores

    familiares, no que diz respeito problemtica ambiental e sanitria parte do

    pressuposto de que agricultura familiar uma categoria poltica (Neves, 2007),

    instituda por uma poltica pblica especfica, o Programa Nacional de

    Financiamento a Agricultura Familiar (Pronaf), a partir da segunda metade anos da

    dcada de 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

    Referir-se a esta agricultura significa abranger uma polmica espraiada por

    vrios campos de saber cientfico-acadmico, da qual prudentemente nos

    afastamos aqui. Para fins do nosso estudo, centrado na percepo sobre o uso e os

    impactos do uso de agrotxicos, suficiente tecer algumas consideraes gerais

    sobre a agricultura familiar, e assumirmos uma posio neste debate, tendo em

    vista a perspectiva educativa que defendemos.

    A identidade social do campons no sistema capitalista

    O termo familiar serve apenas para indicar, no mbito agrrio e da produo

    agropecuria, uma das caractersticas do campesinato como grupo social especfico.

    Em obra de divulgao, Margarida Moura situa as duas vertentes

    interpretativas sobre a especificidade do campesinato na sociedade moderna: de

    um lado, a que postula, com Marx, a sua subordinao ao modo de produo

    capitalista; de outro, a que advoga, com Chayanov, a autonomia do campons no

    interior deste modo de produo (Moura, 1988). Esta tambm a viso de Ciro

    Flamarion Cardoso em seu estudo sobre a brecha camponesa no escravismo

    moderno (Cardoso, 2004).

    Se a afirmao de Shanin (1980, 44) de que o campesinato no poder ser

    compreendido ou descrito fora da estrutura societria mais geral situada em seu

    contexto histrico verdadeira, ento o processo de trabalho campons uma

    realidade subordinada a outra mais poderosa, capaz de ditar as regras do jogo

    (Moura, 1988, 62), isto , o modo de produo capitalista.

    A questo a ser resolvida na vertente terica da subordinao do trabalho

    campons ao capitalismo diz respeito s razes da sua persistncia, desafio

    histrico e terico enfrentado por economistas, socilogos e historiadores,

    compondo vasta literatura, cujo exame escapa aos propsitos de nossa pesquisa.

    Damos, portanto, a questo como resolvida de modo consistente por alguns outros,

    adotando os resultados alcanados por eles, como nossos pressupostos.

    16

  • De um lado, admitimos a existncia de uma estrutura camponesa com

    algum grau de autonomia no interior do sistema capitalista. A negativa de

    Chayanov levar em conta a subordinao ao capitalismo, afirma Ciro Flamarion

    Cardoso, prejudicou sua contribuio para o entendimento da estrutura camponesa.

    Para o historiador brasileiro, uma estrutura camponesa se caracteriza pelo acesso

    estvel terra (propriedade ou usufruto), pelo predomnio do trabalho familiar,

    pela auto-subsistncia (sem excluso do vnculo ao mercado) e certa autonomia na

    gesto das atividades agrcolas (Cardoso, 2004, 56-7). Esse grau de autonomia

    atinente organizao da produo imediata e confere ao campesinato uma

    elasticidade extraordinria de auto-explorao da fora de trabalho (Soares,

    1981, 206).

    Por outro, deve-se consideramos a possibilidade do capitalismo coexistir com

    e subordinar a produo camponesa e, pois, de explicar a persistncia do trabalho

    campons no interior deste sistema.

    H as duas formas de subordinao da produo camponesa s relaes

    sociais capitalistas, direta e indireta.

    A primeira a que prevalece na agro-indstria da fumicultura, da produo

    de carnes, de leos vegetais, etc. Trata-se da agricultura integrada (Grzybowski,

    1987) na qual se d uma subordinao real do proprietrio-trabalhador familiar

    empresa capitalista em todas as fases do processo de produo e de trabalho.

    A segunda vincula-se ao mercado capitalista. Mas esta forma, por sua vez,

    contempla duas situaes diferentes.

    Margarida Moura assinala que a produo de alimentos a custos

    extremamente baixos no atraente ao investimento de capital em virtude de uma

    lucratividade abaixo da mdia (Moura, 1988, 64). Esta produo contribui para

    rebaixar o valor da fora de trabalho e, portanto, tem impacto positivo no processo

    de reproduo das relaes sociais capitalistas como um todo. Do ponto de vista

    terico, trata-se da produo camponesa vinculada ao mercado, ou seja,

    subordinada competio entre os capitais, ao movimento do capital no setor

    concorrencial da economia (Moreira, 1997).

    Outra situao aquela configurada pelo conflito entre as pequenas

    propriedades e empresas agropecurias voltadas para a exportao, situao na

    qual prevalece a lgica do monoplio. A subordinao indireta do proprietrio-

    trabalhador familiar ao capital cede lugar, cada vez mais, transformao do

    campons em proletrio, mesmo que em tempo parcial. Nas reas de expanso da

    fronteira agrcola, no chamado Arco do Desmatamento da Amaznia2, o conflito via

    2 Os conflitos acontecem igualmente no interior das reas de interesse capitalista consolidadas do sudeste e sul como se percebe nos conflitos entre o Movimento das Mulheres Camponesas e a Aracruz Celulose.

    17

  • de regra se estabelece entre os camponeses e os agentes do mercado de terras

    que viabilizam a expanso das relaes capitalistas no campo.

    O estudo sobre a agricultura familiar em Sumidouro remete primeira

    situao apresentada, quer dizer, da produo camponesa subordinada s relaes

    sociais capitalistas pela via do mercado.

    A existncia do campesinato como grupo social especfico implica em

    identificar as prticas adotadas por membros deste grupo para garantir a sua

    reproduo social (Soares, 1981). Essas prticas, afetadas pelas situaes acima

    apontadas, envolvem: o destino dado a cada dos membros da famlia pela definio

    da herana da propriedade; as atividades de auto-subsistncia e, pois, o saber

    prtico da autonomia camponesa; as redes de compadrio e vizinhana que se

    imbricam na relao com o poder no nvel local, inclusive com os agentes tcnicos e

    de financiamento da agricultura.

    Obviamente no se pode pensar a reproduo social do campesinato no

    capitalismo sem a interveno do Estado que tende a se fazer sob a tica da

    acumulao de capital, da expanso das relaes sociais capitalistas e, portanto, da

    seleo dos interesses das diferentes fraes de classe implicadas. Tal interveno

    tem de ser examinada, assim, luz da diversidade das situaes de subordinao

    apresentadas esquematicamente acima.

    Como veremos adiante, no item dedicado Revoluo Verde, a ao do

    Estado volta-se em parte para impulsionar a oferta de alimentos em quantidade

    suficiente e preo baixo para garantir a reproduo da fora de trabalho na

    economia capitalista. Com isso, subsidia a produo camponesa, viabilizando a sua

    reproduo. no interior desta ao que se apresenta o extensionismo rural

    enquanto elemento da reproduo social do campesinato.

    As prticas camponesas implicam o desenvolvimento da conscincia social

    que, como adverte Luiz Eduardo Soares, necessariamente relacional. Para fins da

    presente pesquisa, voltada para a construo da memria social, este o ncleo da

    questo conceitual sobre o campesinato que nos interessa aprofundar. Com a

    palavra o antroplogo brasileiro:

    ... a questo da especificidade no s um dilema conceptual de definio

    cientfica, um problema vivido pela sociedade, enfrentado e pensado por

    ela, em direes diversas e contrastantes evidentemente. Sua traduo para

    o drama corrente vivido a problemtica da identidade social, to

    marginalizada em estudos cientficos. (Soares, 1981, 213)

    18

  • A assuno da identidade camponesa no Brasil faz parte da histria dos

    movimentos de trabalhadores rurais desde o ps-guerra e, de modo mais

    expressivo, de meados da dcada de 1950 em diante. Contudo, aps o golpe militar

    de 1964, esta contra-revoluo preventiva como a cunhou Vasco Leito da Cunha

    - cujas conseqncias ainda estamos a avaliar, o campesinato deixou de se ver

    assim. Poucos a reivindicam, preferindo se ver como proprietrios, meeiros,

    posseiros, arrendatrios, assentados ou acampados. A retomada da identidade de

    classe pelo Movimento das Mulheres Camponesas uma novidade que se expressa

    publicamente:

    Somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatrias, meeiras,

    ribeirinhas, posseiras, bias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas,

    quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem terra, assentadas...

    Mulheres ndias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da

    diversidade do nosso pas. Pertencemos classe trabalhadora, lutamos pela

    causa feminista e pela transformao da sociedade. (MMC, 2008)

    A concepo dominante sobre o campesinato compreende este grupo como

    manifestao da resistncia de modos de vida tradicionais, opostos

    modernizao. A falta de escolarizao, a ignorncia e a superstio tm sido

    destacadas como caractersticas deste grupo social. Vale transcrever aqui uma

    memria do psiclogo social Serge Moscovici, devido relevncia da dimenso

    scio-cultural dada por este autor na tipificao do campesinato:

    Mas, quando o tempo estava bom, gostava de me aproximar dos

    camponeses para escutar o que falavam sobre seus animais, o crescimento

    dos cereais ou a qualidade das colheitas. Que saber minucioso e concreto!

    Sempre admirei seu empirismo e ceticismo com relao a tudo aquilo de que

    no tinham experincia direta. Eles acreditavam somente no que tinham

    visto. Sua epistemologia tinha como princpio muitas vezes reiterado: s o

    que est na mo no mentira. Empirismo e ceticismo que deixaram sua

    marca em mim. Junto com uma outra, mais ntima e mais forte, que percebi

    mais tarde. O campons est sempre exposto ao frio e secura, morte

    das crianas e dos animais. Cristo, sem dvida, mas com um fundo pago

    comum a todos, a magia era para eles um recurso contra os maus dias e um

    refgio para os melhores. Era a pedra angular de seu mundo cheio de bons

    e maus pressgios. Consolar os pobres, curar os doentes, trazer de volta o

    amor infiel, ter belos filhos. (...) Bem entendido, todos estavam convencidos

    19

  • de que nada acontece por acaso; um sentido esconde outro sentido, um

    gesto imprudente chama outro gesto que o repare. Cada um vigiava o outro,

    com o ar de quem dizia: Estou de olho em voc, e tanto os pequenos

    quanto os adultos prestavam ateno em tudo para ver se se tratava de boa

    coisa. (Moscovici, 2005, 67-8)

    O comportamento social do campons supe uma atitude permanentemente

    atenta e, pois, o talento da observao para os detalhes, cujos sentidos somente se

    tornam compreensveis numa totalidade intuda a cada momento da vida. Ele se

    pe diante de ns como o personagem Pedro Orsio, homem simples, frente ao seo

    Alquiste, cientista, no conto O Recado do Morro, de Guimares Rosa: enquanto o

    primeiro raciocina de modo fragmentado e espontneo, o ltimo pensa como ns,

    pesquisadores cientficos, continuado (Stotz, 2001, p. 28).

    A idia de mundo do campons concreta, assentada na verificao prtica

    das coisas. Sua viso de mundo contempla a possibilidade de que o mundo seja

    regido por diversas foras, segundo a lgica dominante em cada esfera da vida

    (Ngokwey apud Minayo, 1988). Por isso o sobrenatural tambm constitui a

    realidade, cuja vigncia to certa como a do clima e a ao das doenas e pragas

    nas lavouras.

    Tais observaes remetem ao reconhecimento da problemtica da

    identidade social acima apontada e, simultaneamente, servem como advertncia

    contra os esteretipos sociais que invadem o campo cientfico nas reas de

    conhecimento aplicado, como o caso da Sade Pblica.

    A modernizao da agricultura

    Como afirmamos no incio deste tpico, a pequena agricultura, instituda

    como objeto da poltica de governo por Fernando Henrique Cardoso e em seguida

    por Luis Incio Lula da Silva, agora sob a responsabilidade do Ministrio do

    Desenvolvimento Agrrio (MDA), ganhou um novo estatuto, diferente do tradicional

    sentido de estudos sobre o campesinato. A agricultura familiar, ao emergir como

    um tema acadmico (Abramawoy, 1997; Neves, 2005), repe a discusso sobre o

    desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

    Em boa parte isto se deve ao fato de que a modernizao da agricultura se

    sustentou nas grandes empresas e no benefcio da acumulao do capital privado

    (Carneiro, 1997), o que levou os estudiosos a ressaltar os processos de excluso

    social e poltica do campesinato. interessante observar, neste sentido que o

    estudo de Leonarda Musumeci (1987) destaca a importncia assumida pela grande

    20

  • produo na poltica governamental voltada para a modernizao da agricultura

    nos anos 1960 a 1980. Mas ressalva que esta:

    ... no se deu por um caminho nico e totalmente excludente [cf. Sorj

    (1980, p.117)], como tambm que no se revelou qualquer inferioridade ou

    incapacidade intrnseca da pequena produo (onde lhe foi facultado o

    acesso aos recursos necessrios) para fornecer respostas rpidas erigidas

    como critrio de eficincia da ao do estado no setor agrcola. (Musumeci,

    1987: 175).

    Entretanto, o processo da difuso da revoluo verde entre os camponeses

    ou trabalhadores da agricultura familiar pouco conhecido ainda que se saiba

    bastante a respeito do uso de agrotxicos (Meirelles, l c 1995; Peres, 1999;

    Moreira, J C et al. 2002; Fehlberg L CC, Lutz, L V e Moreira A H, 2003; Menasche,

    R., 2004; Peres, F; Rozemberg, B; Lucca, S R de. 2005).

    De qualquer modo, parece-nos importante no confundir a adoo dos

    pressupostos prticos da agricultura tradicional com uma mentalidade tradicional.

    Crenas e prticas tradicionais podem expressar esta mentalidade no caso de

    grupos camponeses no integrados ao mercado e, portanto, s relaes sociais

    capitalistas. Trata-se da agricultura de subsistncia que hoje se reduz cada vez

    mais s populaes tradicionais (quilombolas, indgenas, ribeirinhos).

    Mas todas estas denominaes colocadas entre aspas representam

    interpretaes sobre a Histria do Brasil contemporneo. O termo modernizao

    baliza uma viso das mudanas necessrias ao desenvolvimento capitalista e,

    portanto, estabelece uma valorizao sobre o que avanado e atrasado.

    Para Moacir Palmeira, a modernizao da agricultura a compreenso

    (Graziano da Silva, 1987) das transformaes tcnicas ocorridas na agricultura que,

    associadas indstria produtora de insumos e bens de capital, mantiveram

    inalterado o padro histrico de concentrao da propriedade agrria. Tais

    transformaes definem o desenvolvimento do capitalismo no Brasil: Palmeira

    (1989) apia-se em estudo de Guilherme Delgado para assinalar que o

    investimento de capital nas atividades agropecurias teve e continua a ter a

    motivao de uma taxa de lucro

    ... comparativamente vantajosa, dentro dos marcos de uma determinada

    poltica econmica e considerada a conjuntura do mercado, a outras

    aplicaes financeiras (Delgado, 1985, parte II). (Palmeira, 1989, 88)

    21

  • Em outros termos, no se pode pensar o capitalismo no Brasil no perodo

    recente, inclusive no campo, sem considerar a hegemonia do capital financeiro.

    Palmeira chama ateno ainda para a ao do Estado na modernizao da

    agricultura, vinculada s mudanas na legislao social (Estatuto do Trabalhador

    Rural, Funrural), criao de incentivos fiscais, investimentos em infra-estrutura

    pblica e poltica creditcia a juros subsidiados, dentre outras medidas.

    A importncia da poltica creditcia na modernizao da agricultura ressalta

    sobre as demais medidas, uma vez que propiciou a incorporao, pelos capitalistas

    mas tambm pelo campesinato, dos pressupostos da Revoluo Verde, sem os

    quais, a rigor, no se poderia falar em mudana no padro tcnico da agropecuria

    no Brasil. Dada a importncia do tema para a nossa pesquisa, resolvemos dedicar

    algumas pginas a sua apresentao e avaliao.

    A Revoluo Verde e sua difuso no Brasil

    Revoluo Verde o conjunto de conhecimentos tcnico-cientficos sobre

    desenvolvimento de variedade de cereais de alta produtividade com apoio na

    quimificao e mecanizao da agricultura. Estes conhecimentos, acumulados

    desde meados do sculo XIX na Europa e nos EUA, deram origem, entre 1930 e

    1950, a sistemas agrcolas tendentes monocultura3. Esta agricultura em larga

    escala e elevada produtividade exigiu alta dosagem de nitrognio na adubao e,

    em conseqncia, de agrotxicos para combater doenas e pragas, insumos de alto

    custo, implicando transferncia de renda para os fabricantes, poluio ambiental,

    resistncia de pragas e problemas para a sade dos trabalhadores. O padro foi

    transferido para os pases capitalistas perifricos por iniciativa do governo dos EUA

    e de fundaes privadas, mediante a constituio de centros internacionais de

    pesquisa agrcola do milho no Mxico e de arroz nas Filipinas e de instituies

    nacionais de pesquisa na Amrica Latina entre 1957 e 1964 (Sartori et al, 1998).

    Esta orientao foi endossada pelos sucessivos governos militares e tcnicos

    da rea no Brasil a partir de 1964. Eis o que se afirma em documento da Empresa

    Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (EMBRATER) publicado em 1975:

    O aumento da produo ou o crescimento da economia agrcola poder ser

    alcanado atravs da incorporao de novas reas e/ou da modernizao da

    agricultura. A modernizao expressa a incorporao de padres tcnicos,

    vigentes em centros mais desenvolvidos, por parte dos centros mais

    3 A agroqumica resultou do esforo blico duas guerras mundiais, afirma Jos Lutzenberger (2004): a primeira deu origem aos adubos nitrogenados solveis de sntese; a segunda, os herbicidas do grupo do cido fenoxiactico (2,4-D e outros) e os inseticidas organofosforados do grupo parathion e organoclorados como o DDT.

    22

  • tradicionais. Na agricultura, a modernizao se refere ao processo de

    melhoria da produo agrcola pela adoo de tcnicas modernas (Empresa

    Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural, 1975a: 19). (apud

    Oliveira, 1984: 77).

    O processo foi, como assinala Musumeci (1987), induzido pelo Estado. A

    instituio do crdito rural, em 1966; a criao e funcionamento da Empresa

    Brasileira de Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA) em 1972-73 e da EMBRATER em

    1974; o lanamento do Plano Nacional de Defensivos Agrcolas (PNDA) em 1975

    (Pessanha, 1985) so alguns marcos significativos do processo poltico-institucional

    de modernizao do campo. O indicador mais significativo do sucesso da Revoluo

    Verde no Brasil foi, sem dvida, a expanso das lavouras de soja na regio sul com

    a adaptao de cultivares oriundas dos EUA a partir da dcada de 1960, uma

    cultura praticamente desconhecida dos agricultores, rapidamente incorporada por

    eles graas aos ganhos de renda alcanados com as exportaes. A soja, ao

    cumprir o mesmo papel desempenhado pelo caf no sculo XIX, a cultura que

    mais tem incorporado as tcnicas modernas do binmio fertilizante-agrotxico. A

    propsito, eis o que se l na pgina da Embrapa dedicada Soja no Brasil:

    O explosivo crescimento da produo de soja no Brasil, de quase 260 vezes

    no transcorrer de apenas quatro dcadas, determinou uma cadeia de

    mudanas sem precedentes na histria do Pas. Foi a soja, inicialmente

    auxiliada pelo trigo, a grande responsvel pelo surgimento da agricultura

    comercial no Brasil. Tambm, ela apoiou ou foi a grande responsvel pela

    acelerao da mecanizao das lavouras brasileiras, pela modernizao do

    sistema de transportes, pela expanso da fronteira agrcola, pela

    profissionalizao e pelo incremento do comrcio internacional, pela

    modificao e pelo enriquecimento da dieta alimentar dos brasileiros, pela

    acelerao da urbanizao do Pas, pela interiorizao da populao

    brasileira (excessivamente concentrada no sul, sudeste e litoral do Norte e

    Nordeste), pela tecnificao de outras culturas (destacadamente a do

    milho), bem como impulsionou e interiorizou a agro-indstria nacional,

    patrocinando a expanso da avicultura e da suinocultura brasileiras.

    (Embrapa, 2004)

    O PNDA estimou metas de consumo nacional, de elevao da produo

    nacional e de implantao de novas fbricas no pas (Pessanha, 1985). O crdito

    rural foi o principal instrumento para o aumento do consumo nacional, menos para

    o investimento do que para o custeio dos insumos. De acordo com Jos Prado Alves

    Filho, o sucesso da incorporao tecnolgica da Revoluo Verde dependeu de uma

    23

  • oferta de crdito que vinculou emprstimos a aquisio de agrotxicos. No caso do

    Banco do Brasil, este vnculo era obrigatrio: 15% do valor dos emprstimos para

    custeio estava destinado aquisio de agrotxicos. Entre 1974 e 1981, a parcela

    do crdito rural destinada a esta compra aumentou de 5 para 8% do volume do

    crdito total de custeio, principalmente para as culturas de soja, trigo e algodo.

    Um indicador importante que oferece uma viso mais aproximada do consumo de

    agrotxicos o da relao entre valor do crdito sobre as vendas do setor que

    elevou-se de 54% em 1977 para 71% em 1980 (Alves, 2002).

    Os efeitos nocivos dos agrotxicos descritos por vrios autores e polticas

    restritivas adotadas nos pases de capitalismo desenvolvido, com a imposio de

    reduo do uso e produo de certos produtos (organofosforados e herbicidas) e a

    proibio de outros (organoclorados) (Peres, 1999) no deixou de ter

    conseqncias no Brasil, ainda durante o regime militar. No Rio Grande do Sul e no

    Paran, o movimento de reao ao uso indiscriminado de agrotxicos partiu de

    engenheiros agrnomos e ambientalistas. No Rio Grande do Sul destaca-se o nome

    de Jos Lutzemberg e da Associao Gacha de proteo ao Ambiente Natural

    (AGAPAN). Em 1977 a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul instituiu a

    obrigatoriedade do Receiturio Agronmico, vinculado ao financiamento agrcola,

    uma medida incorporada pelo Banco Central em 1978. O receiturio tornou-se

    poltica oficial em 1981 mas, devido a falta de controle social mediante a

    complementao de outras polticas pblicas o instrumento deixou de cumprir seu

    objetivo original (Alves Filho, 2002) e nunca foi implantado de modo amplo no pas

    (Pessanha, 1985: 10).

    O impacto sobre a sade dos trabalhadores e no ambiente foi denunciado

    por engenheiros agrnomos fitossanitaristas do Paran reunidos no XI Congresso

    Brasileiro de Agronomia, realizado em Curitiba de 22 a 26 de outubro de 1979, uma

    vez que o consumo de agrotxicos foi considerado trs vezes maior do que o

    necessrio (Pessanha, 1980: 9).

    Em 1982, a repercusso da denncia da contaminao das guas do Rio

    Guaba por agrotxicos, ao ameaar a populao da capital do Rio Grande do Sul,

    levou o governo estadual a proibir o uso de organoclorados, especificar princpios

    ativos de uso restrito e instituir o Receiturio Agronmico. No ano seguinte, foi

    aprovada neste estado a lei estadual no. 7.747/83, a primeira lei sobre agrotxicos.

    Sistematizava o conjunto de medidas legais implantadas at ento, servindo de

    modelo para a elaborao de projetos de lei em 12 unidades da Federao.

    A reao da Associao Nacional de Defensivos Agrcolas (ANDEF), criada

    em 1974 e do Sindicato da Indstria de Defensivos do Estado de So Paulo no

    tardou a se fazer sentir, com ao, em maro de 1983, junto Procuradoria Geral

    24

  • da Repblica sob argio da inconstitucionalidade das leis estaduais face

    competncia da Unio para legislar sobre normas gerais de proteo sade. A

    deciso final do Supremo Tribunal Federal em maio de 1985 reafirmou a posio da

    Procuradoria contrria ao, legitimando as legislaes estaduais, com alguns

    vetos importantes, dentre os quais o direito das entidades civis impugnarem o

    registro de determinados produtos nos rgos fiscalizadores (Pessanha, 1985: 11).

    Denncias da contaminao de rios e da intoxicao de trabalhadores rurais

    apareceram na imprensa no municpio paranaense de Maring durante a dcada de

    1980:

    No binio 82/83 foram totalizados 1.600 casos de intoxicao e 26 mortes.

    Segundo o jornal [Estado do Paran], os agrotxicos mais prejudiciais

    sade e responsveis pela contaminao de um nmero to elevado de

    pessoas so os seguintes: Endrex-20, com 187 vtimas no estado;

    Nuvacron-400, com 145; Furadan, com 174; Folidol-60, com 168; Azodrin,

    com 149; Metaxystox, com 131 casos. As pessoas contaminadas so

    geralmente bias-frias. (Paula, 1998, 143-44)

    O processo de regulamentao do uso de agrotxicos culminou com a

    formulao da Lei no. 7.802, conhecida como a Lei dos Agrotxicos, de 11 de julho

    de 1989, regulamentada pelo Decreto 98.816, de 11 de janeiro de 1990,

    substitudo pelo Decreto 4.074, de 4 de janeiro de 2002.

    Uma nova conscincia social tomou corpo ao longo dos debates e embates

    apontados entre os engenheiros agrnomos. J em 1980, o autor acima citado

    escrevia:

    ...j h uma forte corrente na classe agronmica que preconiza uma

    reviso da tecnologia para aqui transplantada, que faz do solo substrato

    estril, demandante permanente de fontes exgenas de nutrientes para

    plantas. Procedente de regies ecolgicas diversas das nossas, essa

    tecnologia, tpica de naes desenvolvidas, vem sendo presentemente

    reavaliada nos prprios pases de origem, pois passou a provocar uma

    elevao dos custos de produo, sem que se obtivessem incrementos

    correspondentes nos nveis de produtividade (Pessanha, 1980a: 4).

    Mais de uma dcada depois, Jos Maria Gusman Ferraz fazia o seguinte

    diagnstico:

    25

  • O modelo de agricultura nascido da Revoluo Verde praticado h muitos

    anos no Brasil e em outros vrios pases, onde o aumento do uso de insumo,

    mecanizao e monocultivo visando somente a produtividade e a ampliao

    da fronteira agrcola, com pouca ou quase nenhuma preocupao com a

    degradao ambiental, est se esgotando (EMBRAPA, 1994).

    O reconhecimento destas limitaes (Raij, 1998) assimiladas ao paradigma

    da revoluo verde no tem conduzido a uma reviso de seus princpios e

    tampouco do sistema agrcola implantado. Antes, suscita o apoio a uma nova

    revoluo, ou a uma nova fase da Revoluo Verde, a dos transgnicos.

    A nova fase da Revoluo Verde tenta responder aos impasses criados pela

    fase anterior, a saber, a resistncia cada vez maior das pragas, doenas e ervas

    daninhas que implicaram em doses mais fortes e custos mais altos dos

    agrotxicos. A ferrugem na soja exemplifica o esgotamento tecnolgico dos

    agrotxicos qumicos. Ao basear-se nos novos conhecimentos da biologia molecular

    e da engenharia gentica, a terceira fase abre caminho para a incorporao das

    tecnologias qumicas no aprimoramento de plantas conhecidas como transgnicas.

    As plantas passam a conter, em seus genes caractersticas resistentes a algum

    produto (herbicida, inseticia, fungicida, acaricida, etc.) que elimina espcies

    invasoras, pragas ou doenas. Trata-se, na verdade de plantas resistentes a

    agrotxicos, biocidas que entram na cadeia alimentar, tanto do solo como dos

    animais e humanos que as consomem. Contudo, a falta de estudos sobre a

    toxicidade encarada pelos defensores dos Organismos Geneticamente Modificados

    como prova de sua ausncia (Loureiro e Oliveira, 2004).

    Os argumentos a favor dos transgnicos envolvem a alegao de aumento

    da produtividade, diminuio da quantidade de agrotxicos e, portanto, dos gastos

    com este insumo e reduo da contaminao ambiental. Em contrapartida, as

    crticas suscitam a necessidade de uma agricultura sustentvel no apenas do

    ponto de vista econmico, mas tambm ambiental, social, tcnico e cultural

    (Primavesi, 1992), capaz de revalorizar os conhecimentos do agricultor vinculados

    agricultura artesanal, principalmente no que diz respeito ao manejo do solo

    (Veiga, 1991), mais adequados s regies climticas do tipo tropical e subtropical

    como o caso de pases como o Brasil.

    O esgotamento do desenvolvimento tcnico-cientfico orientado pelos

    interesses da indstria agroqumica devido a preocupaes crescentes com o

    aumento da produo agrcola em condies de sustentabilidade tem aberto

    caminho para pesquisas de microbiologia do solo. Contudo, este caminho tambm

    pode ser atalhado. A advertncia de Cruz, Rocha e Campos Jr. (2005: 256) sobre a

    26

  • necessidade de manejo do solo para a construo de uma microbiota diversificada

    e eficiente no controle de fitopatgenos de solo, dificilmente obedecer ao

    princpio da precauo se a tcnica tornar-se de uso comercial.

    A polmica em torno da diversidade das vias de desenvolvimento econmico

    atesta a possibilidade de mais de uma via de desenvolvimento cientfico-tcnico,

    (Lacey, 1998) e, tambm, de poltica pblica.

    relevante lembrar, neste sentido - em que pese a tendncia ao

    monocultivo implicada na descoberta - a aplicao da fixao biolgica do

    nitrognio feita por Johanna Dbereiner na aclimatao da soja s condies do

    solo e clima brasileiros em 19634, no mbito da Comisso Nacional da Soja:

    "Os geneticistas da comisso, todos com formao norte-americana,

    achavam que trabalhar com bactrias era brincadeira de cientista, que no

    tinha aplicao alguma. O melhoramento gentico da soja nos Estados

    Unidos foi feito com adubao nitrogenada. Eles selecionaram a soja que

    respondia melhor adubao. Mas eu reagi. Nas reunies, tivemos uma

    discusso muito forte tentando convenc-los a fazer o melhoramento da

    soja sem adubo nitrogenado - que era muito caro para o Brasil - e com a

    aplicao de bactrias, o que conseguimos. A soja, devido deciso tomada

    pela comisso, foi selecionada e melhorada para produzir muito sem adubo

    nitrogenado, aproveitando a simbiose entre as bactrias e as razes da

    planta. Com isso, calculando de modo muito conservador, o Brasil est

    economizando anualmente cerca de US$ 1 bilho. Se a soja (...) tivesse sido

    melhorada com adubo, provavelmente o Brasil jamais poderia competir no

    mercado internacional. (...) O preo baixo da soja brasileira, hoje em dia,

    funo desse fato".

    Mesmo este ganho na lavoura da soja comeou a ser revertido em 2003,

    quando governo federal autorizou a plantao e comercializao de soja

    transgnica em nosso pas.

    Diversidade de caminhos de desenvolvimento cientfico-tcnico o que se

    vislumbra como cenrio para a agricultura no contexto da mudana climtica

    global.

    De um lado, o trilhado pelas empresas multinacionais no novo e espetacular

    campo dos transgnicos. o que j est em curso, num processo liderado pelas

    multinacionais como Dupont, Monsanto e Syngenta com vistas a desenvolver

    4 Matria dedicada a J Dbereiner na Embrapa Agroecologia na pgina http://www.cnpab.embrapa.br/aunidade/johanna.html

    27

  • variedades de milho resistentes s secas e, obviamente, a pesticidas cujo

    consumo inclusive seria reduzido (CIB, 2008).

    Por outro, uma variante da biotecnologia que se apia na prpria

    biodiversidade para desenvolver plantas resistentes ao aumento de temperatura de

    at dois graus de temperatura. Ao comentar a previso de que apenas cana-de-

    acar e mandioca conseguiro ter ganhos de produo, o engenheiro agrcola

    Eduardo Delgado Assad, da Embrapa

    lembra que esse tipo de transgenia diferente daquele que confere s

    plantas resistncia a herbicidas e pesticidas, sobre o qual se diz contrrio.

    No caso da transgenia para enfrentamento das mudanas climticas

    usaremos a biodiversidade para proteger a prpria biodiversidade. (Ferraz,

    2008, 47)

    Ainda h que se situar a alternativa da agricultura orgnica, baseada na

    agro-ecologia (Altieri et al, 1999).

    Estas so possibilidades de desenvolvimento. Analisando o processo em

    curso, dominado pela agricultura convencional comandada pela indstria de

    fertilizantes e agrotxicos, importante considerar que a revoluo verde

    representou um grave problema na medida de sua universalizao para todos os

    sistemas agrcolas, nalguns dos quais, a exemplo do praticado na olericultura em

    regime de pequenas propriedades, o uso de fertilizantes e agrotxicos era

    inadequado.

    A importncia econmica do consumo de agrotxicos no Brasil fica evidente

    quando se verifica que o pas situou-se, em 1983, em 4 lugar (Pessanha, 1985) e

    passou a ser, a partir de 1990, o 3 maior consumidor de produtos agrotxicos no

    mundo (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1998). Para Letcia Rodrigues,

    gerente da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa), o pas j o 2 maior

    consumidor mundial (O Estado de So Paulo, 30/07/2008: Intoxicao por

    agrotxicos aumenta 14% em SP).

    A situao do mercado de agrotxicos em 2005, segundo dados do Sindicato

    Nacional das Indstrias de Produtos para a Defesa Agrcola (SINDAG) era a

    seguinte:

    28

  • QUADRO 1

    MERCADO DE AGROTXICOS NO BRASIL - 2005

    Agrotxicos Consumo de agrotxicos por culturaHerbicida 40,8% Soja 50%Fungicida 30,9% Algodo 10%Inseticida 23,7% Milho e cana de acar 7%

    Tratamento de sementes 4%Trigo, caf e citros 3%Arroz 2%Demais culturas (hortalias e

    frutferas)

    11%

    Fonte: SINDAG, Embrapa Meio Ambiente, 2008.

    O mercado nacional de agrotxicos exclusivamente na agricultura

    movimenta, segundo SINDAG elevados valores US$4,495 bilhes em 2004 e

    4,244 bilhes em 2005 num amplo espectro de culturas. Vale assinalar que o

    consumo de agrotxicos concentra-se praticamente na soja, mas ressalta o fato de

    que, nas demais culturas, dentre as quais hortalias e frutferas, este consumo

    representou 11% do total em 2005. Tais dados, ainda que pontuais, expressam

    uma tendncia de aumento do consumo de agrotxicos em ingrediente ativo por

    unidade de rea para estas culturas no perodo compreendido entre 1990 e 2000.

    Esta foi uma das avaliaes da reunio das autoridades do Ministrio da

    Agricultura, ANVISA e IBAMA que se reuniram em maro de 2008 para analisar o

    uso de agrotxicos no adequados e autorizados para lavouras tradicionalmente

    organizadas na agricultura familiar como hortalias, frutas e leguminosas (Embrapa

    Meio Ambiente, 2007).

    O aumento das intoxicaes por agrotxicos registrados pelo Sistema

    Nacional de Informao Toxicolgicas (Sinitox) da Fiocruz serve de alerta. Matria a

    Agncia Estado divulgada na internet (UOL Cincia e Sade, 2008) d conta de

    que no Brasil os intoxicados somaram 9.585 em 2006, nmero 17% maior do que

    em 2005, quando foram registrados 8.167 casos. A Organizao Mundial de Sade

    (OMS) afirma que os registros no mostram o real alcance do problema, j que,

    para cada caso notificado, estima que outros 50 no chegam ao pblico. Fazendo

    as contas, dados 1.965 envenenamentos acumulados em So Paulo no ano de

    2006, seriam 96.285 vtimas intoxicadas que no entraram nas estatsticas deste

    estado. De acordo com a coordenadora do Sinitox, Rosany Bochner:

    29

  • "O fato de termos mais intoxicao indica tambm que os produtos esto

    sendo cultivados com mais txicos e as frutas, legumes e verduras acabam

    comercializados com excesso de resduos".

    (...)

    Os problemas nos produtos in natura esto expressados nos ndices de

    reprovao do Programa de Avaliao de Alimentos do governo federal

    (Para). A maioria das amostras analisadas foi reprovada por excesso de

    resduos txicos ou utilizao de substncias no recomendadas para a

    cultura.

    A propsito da avaliao e reavaliao toxicolgica de agrotxicos realizadas

    no mbito do Programa de Anlise de Resduos de Agrotxicos em Alimentos

    (PARA, 2008), em decorrncia da observao do uso de agrotxicos no

    autorizados ou acima dos Limites Mximos de Resduo permitidos em oito culturas

    agrcolas de consumo regular pelos brasileiros durante o ano de 2007, surgiu uma

    forte reao dos fabricantes e do Sindicato das Indstrias de Defensivos Agrcolas

    (SINDAG) que paralisou juridicamente a ao da ANVISA. A proibio legal do

    Programa sob alegao de falta de transparncia da agncia franqueou a

    importao de ingredientes ativos proibidos na Unio Europia, China e ndia a

    partir de julho de 2008 (EcoDebate, 2008a). Apesar de o Brasil ser signatrio da

    Conveno de Roterd que impe limitaes ao comrcio internacional de

    substncias perigosas, a Justia favoreceu os interesses industriais amparados no

    Ministrio da Agricultura contra os Ministrios da Sade (Anvisa) e do Meio

    Ambiente, processo gerador de tenses interministeriais (Ecodebate, 2008b; CTA,

    2008).

    Outra questo polmica a relativa aos minor crops (pequenas culturas

    sem suporte fitossinatrio adequado) ora em pauta na regulamentao da

    Instruo Normativa Interministerial nmero 20 (MAPA/ANVISA/IBAMA). A

    autorizao temporria para uso de vrios agrotxicos para culturas nas quais no

    estavam autorizados a regulamentao est em processo de finalizao por outro

    Grupo de Trabalho das mesmas instituies (BRASIL, 2008) pode representar

    uma legitimao das prticas abusivas vigentes e agravamento dos impactos do

    uso de agrotxicos na sade dos trabalhadores e no ambiente (solo, gua,

    polinizao por insetos, etc.).

    Na verdade, trata-se da retomada de um processo que remonta a 2005, por

    ocasio da mobilizao dos ruralistas do agronegcio denominada tratorao para

    renegociar a dvida agrria e modificar a legislao ambiental. Uma das exigncias

    era a livre importao de agrotxicos ou a flexibilizao das exigncias de avaliao

    30

  • toxicolgica ou ecotoxicolgicas. Os movimentos sociais e inmeras entidades da

    sociedade civil assumiram ento uma posio contrria em carta enviada a Roberto

    Rodrigues, ento ministro da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (ANVISA,

    2005; Carta, 2005).

    Ao longo da histria do desenvolvimento econmico e poltico do Brasil

    pode-se perceber o predomnio dos interesses do que se convencionou chamar de

    complexo agroindustrial (Delgado, 1985; Kageyama, 1987) fortemente

    organizados no Ministrio da Agricultura com apoio na bancada ruralista no

    Congresso Nacional. Ainda durante a ditadura militar, as diferentes agncias do

    governo federal agiam concertadamente em favor desses interesses. Neste sentido

    vale observar que em fevereiro de 1981, portaria do Ministrio da Sade alterou a

    classificao toxicolgica dos agrotxicos que at ento era baseada em portaria

    anterior pela qual

    ... cerca de 96% dos produtos pertenciam s classes I e II, devendo,

    portanto, serem controlados pelo instrumento da receita [agronmica].

    (Alves, 2002, 112)

    A diminuio da abrangncia da medida de controle permitiu, segundo

    Sebastio Pinheiro, a reclassificao de produtos extremamente e altamente txicos

    (classes I e II) para medianamente e pouco txicos (classes III e IV) (Alves, 2002)

    da qual tem se beneficiado at hoje empresas produtoras de agrotxicos. o caso

    de herbicidas como o Roundup da Monsanto, classificados como pouco ou

    medianamente txicos apesar de estudo (Dallegrave, 2003) comprovar

    experimentalmente a toxicidade do produto do ponto de vista reprodutivo.

    Como vimos anteriormente, os novos avanos na transgenia permitem s

    empresas produtoras de sementes divulgarem produtos considerados (pelos seus

    dirigentes e tcnicos) menos txicos. Isso vale inclusive para a produo das

    hortalias onde se constata at o momento o sobre-uso de agrotxicos. o caso da

    Seminis Brasil, subsidria da Monsanto dedicada a pesquisa e produo de hbridos

    resistentes a doenas. As sementes de hortalias so apresentadas como

    alternativas sustentveis, ora por dispensar agroqumicos, ora por reduzir o seu

    uso, como o caso dos hbridos de cebola, alho-por e pimentas que exigem

    menos gua, fertilizantes, agrotxicos e mo-de-obra. (Seminis Brasil, 2008)

    Como se percebe, um novo captulo da Revoluo Verde no Brasil est em

    curso e aparentemente estamos na marcha-r de conquistas consideradas

    histricas.

    31

  • Educao rural na perspectiva dos educandos

    Qualquer estudo tenham ou no conscincia disto os pesquisadores -

    pertence a um determinado campo intelectual caracterizado pela sua temtica,

    questes e referenciais tericos e metodolgicos. No caso de pesquisas definidas

    pela sua orientao como o da educao rural, dever-se-ia agregar a estas

    caractersticas a perspectiva ideolgica5 assumida pelos pesquisadores.

    Foi assim que definimos esta insero:

    Do ponto de vista educativo, este projeto de pesquisa insere-se na

    tendncia, assinalada por Damasceno e Beserra, (2004), de discutir a

    educao rural da perspectiva da populao a que se destina, isto , os

    agricultores familiares. (Stotz, 2006)

    Os estudos expressam a produo de objetos cientficos construdos e

    desenvolvidos em programas de ps-graduao em clara articulao com os atores

    sociais que os reivindicam como parte integrante de sua prpria identidade,

    interesses e perspectivas. Este o caso do CPDA Programa de Ps-graduao de

    Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro que em 2003 tinha um de seus ncleos de pesquisa

    organizado em torno do tema Movimentos sociais e polticas pblicas no campo,

    sob a responsabilidade da professora Leonilde Servolo Medeiros.

    Provavelmente a criao do NEAD Ncleo de Estudos Agrrios e

    Desenvolvimento Rural do Ministrio de desenvolvimento Agrrio em 2004 teve um

    papel indutor de pesquisas nos programas de ps-graduao. De qualquer forma, o

    NEAD tem apoiado os encontros da Rede de Estudos Rurais, j em sua terceira

    edio. Temas como luta pela terra e poltica fundiria, questo ambiental, saber

    campons, agricultura familiar, direitos sociais trornaram-se parte da agenda dos

    estudiosos (NEAD, 2006; Terceiro encontro, 2008).

    H tambm iniciativas desenvolvidas no mbito de projetos institucionais

    como o HOSANA Homem, saber e natureza (1992-1994), apoiado pela Fapesp e

    voltado para investigar temas ligados lgica da natureza e tica do

    ambiente junto a comunidades de pescadores do litoral e de lavradores do interior

    5 Por ideologia entendemos, de acordo com Maurice Dobb, o conjunto coordenado de convices e idias ou filosofia social compartilhada por certos grupos da sociedade numa poca histrica (Dobb, 1973). Este entendimento comum a Schumpeter (History of Economic Analysis, 1954). Em nota de p de pgina, Dobb assinala o ponto de vista de Schumpeter de que os juzos de valor revelam a ideologia mas no so a sua ideologia (idem, 12). Esta perspectiva congruente com a da sociologia da cincia (construtivismo) que assinala os compromissos do pesquisador com seu tempo, lugar e posio na sociedade.

    32

  • do Estado de So Paulo. O projeto foi uma articulao entre o grupo Aldebar

    observatrio a olho nu e o Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UNICAMP. O

    componente rural ficou sob a responsabilidade de Carlos Rodrigues Brando

    (Brando, 1999).

    Importa considerar, em todas essas iniciativas, o papel do agricultor na

    chamada questo ambiental. Como assinala Wanderley (1999),

    Mais recentemente, tem se aprofundado, no interior dos estudos rurais, a

    necessidade de alargar a percepo dos agricultores, para alm de sua

    condio de produtor, mero agente de uma atividade econmica. J falei

    anteriormente da preocupao com sua condio de cidado, participante da

    sociedade.

    Desconhecido at pouco tempo como sujeito, cidado, trabalhador, o

    campons acaba por conhecer da poltica ambiental apenas a sua face repressiva,

    como Carlos Rodrigues Brando constatou na sua pesquisa em Joanpolis, na Serra

    da Mantiqueira:

    Entre muitas outras coisas, chama ateno a maneira imprpria como a

    atualidade da questo do ambiente e uma decorrente legislao ambiental

    tm sido levadas aos homens e s mulheres do campo. Sem, sequer, um

    pequeno manual adequado s suas culturas e sem qualquer oferta, por

    precria que seja, de um acesso inteligente aos mesmos conhecimentos e

    preocupaes que nos roubam a calma dos dias e o sono das noites, tudo o

    que se conhece a respeito dos problemas do meio ambiente , em algumas

    comunidades rurais de So Paulo e de Minas Gerais, onde estive

    pesquisando, a ao sempre tida como arbitrria e injusta da Polcia

    Florestal, da Floresta, da Florestal, to temida hoje entre os camponeses,

    guardadas as propores, quanto o foram a polcia militar e as foras

    armadas entre aqueles que um dia sonharam organizar os homens do

    campo para que eles fizessem por sua conta a justia poltica que a maioria

    deles reconhece lhes faltar at hoje. (Brando, 1999, 16)

    A preocupao em dar aos agricultores o lugar e o papel de sujeitos

    ressaltada por Muller, Lovato e Mussoi (2003), nem sempre considera as

    dificuldades da incorporao desses atores sociais lgica e aos valores implcitos

    nas propostas alternativas agricultura convencional (Terceiro encontro, 2008).

    Vejamos, pois, estas contribuies.

    33

  • Admitir que os agricultores possam ser, mais do que participantes, atores no

    processo da formulao, implementao e avaliao da poltica pblica voltada para

    a agricultura requer, como advertem Muller, Lovato e Mussoi (2003, 105)

    ... criar as condies necessrias para que os agricultores sejam os sujeitos

    de seu prprio desenvolvimento, garantindo a sustentao poltica das aes

    e projetos locais.

    Contudo, se h algum que deve ser primordialmente educado, este o

    prprio educador, o pesquisador e o tcnico. Mesmo no se percebendo como

    educadores, eles o so em suas relaes com os agricultores, interessados em

    modificar a conscincia deles para introduzir mudanas no modo de praticar a

    agricultura. A importncia dos estudos cientficos voltados para a educao deste

    educador, de modo a facilitar o processo de escuta dos agricultores fica evidente

    na seguinte passagem do artigo dos autores acima citados:

    Diante disso, imprescindvel que haja uma maior compreenso acerca das

    reais necessidades dos agricultores, seus valores, suas motivaes e a lgica

    que orienta e d sentido s suas decises, seu modo de viver e de se

    relacionar com seu entorno fsico e scio-econmico. (Idem, p. 105)

    Reconhecer os membros de um grupo social como sujeitos no implica em

    deixar de questionar as prticas consideradas destrutivas. Na identificao das

    questes relevantes sobre a relao entre as questes agrria e ambiental, Valeria

    Comitre aponta6 simultaneamente para a dificuldade de entender a agricultura

    como prtica preservacionista e para a necessidade de viabilizar o dilogo e a

    expresso dos conflitos de interesse ao se tratar da poltica pblica sobre recursos

    naturais (Terceiro encontro, 2008).

    6 A autora debateu os trabalhos apresentados na sesso 1 Meio ambiente e recursos produtivos - do GT2 Interfaces entre a questo agrria e a questo ambiental, apresentando questes para discutir no grupo durante o 3. Encontro da Rede de estudos Rurais (Terceiro encontro, 2008).

    34

  • PROCEDIMENTOS METDICOS

    Nosso ponto de partida do trabalho de campo, ou seja, da identificao dos

    possveis depoentes, contou com o apoio de Ftima Curty Moura. importante

    registrar que ela sugeriu um contato com pessoas de autoridade governamental no

    municpio, e, portanto, a publicizao do projeto de pesquisa. Assim que no dia 8

    de dezembro de 2005 conversamos com o assessor do prefeito, Luis Henrique Silva

    e com o secretrio de Agricultura e Meio Ambiente, Silmar Serafim. Eles acolheram

    bem a idia e indicaram alguns nomes de pessoas com mais de 80 anos capazes de

    falar coisas interessantes sobre cidade, a agricultura e a problemtica ambiental. As

    indicaes sugeriam idosos pertencentes a grupos sociais distintos, sugesto que

    acatamos e acabamos por incluir com um critrio a mais na seleo dos depoentes

    baseada na identificao pelos depoentes, de sua rede de reales pessoais

    (parentes, compadres, vizinhos).

    Uma deciso que se fortaleceu depois de visitarmos o cemitrio local,

    enquanto fazamos hora para visitar o segundo dos nossos depoentes.

    Olhamos para a separao entre os tmulos com lpide e os com simples

    placas numeradas fincadas no cho. Tambm aqui observamos a permanncia das

    diferenas sociais7.

    FIGURAS 1 E 2 Cho dos pobres e dos ricos

    Circulamos entre as lpides e encontramos a seguinte (Figura 2) inscrio

    tumular: Deus resiste aos soberbos/ mas aos humildes concede a graa (Tiago

    4,6-54).7 A diferena tambm administrativa. De acordo com um informante local, o cemitrio dividido entre a Igreja (Irmandade, Apostolado) e a Prefeitura. Esta se encarrega de enterrar os pobres, identificados por uma placa fincada no cho.

    35

  • Perguntamo-nos: a inscrio no seria uma mensagem destinada aos

    cidados sumidourenses? Na oposio entre soberbos e humildes estaria contida

    uma crtica cujo alvo poderia ser a elite local, ainda desconhecida para ns?

    Os versos do apstolo Tiago parafraseiam Provrbios, 3, 34, cujo sentido

    um pouco diferente: Se Ele escarnece dos zombadores/ concede a graa aos

    humildes. A mensagem de Tiago mais radical: alm do verbo resistir ter o

    sentido de um inequvoco posicionamento ao lado de quem sofre, a palavra

    soberbo adjetivo substantivado, denota algum arrogante, que se supe mais

    elevado que o outro, superior, pretensioso.

    De fato, este foi um dos sentidos que apareceu com bastante fora nos

    depoimentos dos irmos Jos e Altivo da Silva que, segundo as mesmas indicaes,

    seriam descendentes de ex-escravos.

    Pouco tempo depois, percebemos, no exemplar do opsculo Histria de

    Sumidouro, de Luis Henrique da Silva, uma imagem8 da porteira de entrada da

    fazenda do Baro de Aquino no qual estava inscrita a frase: Para que tanto

    orgulho se o nosso futuro a morte (Figura 3).

    Figura 3

    Porteira na Estao de Trem

    importante assinalar que a nossa presena como grupo de pesquisa

    produziu, infelizmente, um efeito negativo sobre tais registros, pois a porteira com

    a imagem acima reproduzida foi retirada da entrada da antiga estao ferroviria

    de Baro de Aquino. Porm, a fotografia disponvel na forma virtual pela internet,

    serve para contestar o vandalismo daqueles que se sentiram atingidos com a

    8 A imagem reproduzida encontra-se disponvel na pgina , elaborada por Ralph Mennucci Giesbrecht, no endereohttp://www.estacoesferroviarias.com.br/efl_ramais_1/fotos/braquino.jpg

    36

  • mensagem e pretenderam apagar o passado. O virtual tornou-se o real jamais

    visto pela maioria!

    Estvamos, portanto, a entrar em contato com uma denncia moral dos

    poderosos, embora revestida de sentido religioso.

    Neste sentido importante constatar a impossibilidade, persistente at o

    final da pesquisa, de conseguir entrevistar as pessoas das famlias mais

    importantes ou da elite local. Conseguimos nos aproximar delas, obtendo doao

    de documentos e informaes, mas nada alm. Atitude diametralmente oposta dos

    agricultores das chamadas terras frias de Sumidouro, acolhedora e, em certos

    casos, at de exposio dos fatos mais difceis das suas vidas.

    Numa pequena cidade como Sumidouro, as redes de parentesco pareceram-

    nos definir, ao lado daquelas de cunho econmico, as redes sociais subjacentes de

    cada um de nossos depoentes tanto mais porque um percentual de

    aproximadamente 80% dos moradores encontra-se na rea rural e dependem da

    atividade agropecuria. Isso revelou ser uma constatao parcialmente verdadeira.

    As redes eram mais fragmentadas e diversificadas que supnhamos, tanto em

    virtude do predomnio de constituio de famlias nucleares numa vasta rea de

    pequenos proprietrios e parceiros, como pelo fato de que, sobrepostas a estas se

    desenhava uma outra rede, de carter poltico.

    Ao longo do perodo assinalado foram realizadas 25 entrevistas com

    moradores mais antigos de Sumidouro, cujos depoimentos, devidamente

    autorizados nos termos do Comit de tica em Pesquisa, foram em sua maior parte

    transcritos e se encontram em fase de edio e de sumarizao. Cada depoente foi

    fotografado e em alguns casos houve doao de fotografias e outros documentos

    pessoais9.

    Quanto relevncia do roteiro das entrevistas, com sua nfase na trajetria

    de vida dos depoentes (casa, trabalho, cidade), constatamos que, alm de

    favorecer os trabalhos da memria (Bosi, 1971), propiciou a conexo entre

    diferentes esferas da vida social e evidenciou processos de transio (Thompson,

    2002) desconhecidos por ns.

    A entrevista, principalmente a de tipo semi-estruturada, um processo de

    conhecimento cuja complexidade escapa conscincia dos dois sujeitos envolvidos

    porque, como nos lembra o filsofo tcheco Karel Kosik, um processo marcado

    pela ambigidade o conhecimento tanto reflexo, como projeo e ainda

    avaliao (Kosik, 1976). Por isso, a entrevista tem um carter indeterminado e

    inconcluso que precisa ser objeto de um esforo da interpretao. A entrevista no

    9 Os depoentes cederam os direitos sobre o depoimento oral para a Casa de Oswaldo Cruz e assinaram o termo de consentimento esclarecido no qual tomaram cincia dos e acordo com os objetivos da pesquisa e reconheceram a cesso de depoimentos.

    37

  • um conjunto de falas que podem ser simplesmente transcritas e analisadas

    segundo temas especficos; um texto complexo, aberto a influncias, a exigir o

    desvendamento do valor conferido a certas prticas e crenas implicadas nos

    eventos dos quais o entrevistado participou e d seu testemunho.

    Verificamos, mais uma vez, que o significado da histria oral o de ser um

    mtodo adequado para captar os significados que certos eventos ou processos

    tiveram para os depoentes e, em conseqncia, para o prprio grupo social no qual

    se inserem de suas relaes sociais e polticas mais amplas. Mas igualmente, em

    alguns casos, de processos ou ngulos ignorados pelos historiadores. Neste sentido

    inclumos, no final do roteiro, as seguintes perguntas: Gostaria de deixar algum

    recado para os sumidourenses? Uma ltima pergunta: o(a) sr(a) lembra de algum

    acontecimento diferente ou mesmo fantstico que tenha presenciado?

    Sabamos que a histria oral , inevitavelmente, uma prtica de construo

    de fontes que instaura uma relao scio-cultural cujos sentidos, para ns, teriam

    de ser (re)descobertos no decorrer da pesquisa. Pressupnhamos a necessidade de

    controlar os aspectos mais evidentes na relao entre pesquisador e depoente, a

    exemplo, de um lado, da induo de respostas e, do outro, da projeo de

    identidades expressas na valorizao do prprio depoimento.

    Este ltimo aspecto vinha inevitavelmente associado, sabamos, ao fato de

    sermos estrangeiros hospedados na cidade. De fato, o nosso distanciamento

    propiciou, em muitas oportunidades, maior autonomia para os nossos depoentes

    falarem de aspectos da vida considerados mais problemticos no cotidiano das

    relaes sociais. Certamente a idade avanada de nossos depoentes, entre 80 e 97

    anos, facilitou esse processo devido ao desprendimento de compromissos sociais

    consagrados em nossa sociedade.

    A maior parte das entrevistas foi conduzida pelo coordenador da pesquisa,

    com a participao, sempre que possvel, dos auxiliares de pesquisa, estudantes de

    graduao, moradores do municpio que obtiveram bolsas de iniciao cientfica.

    Embora este