RELATÓRIO FINAL I VOLUME -...
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REPÚBLICA DE ANGOLA
REDE TERRA
ELABORADO PELA ADRA – ACÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO
RURAL E AMBIENTE
LUANDA, DEZEMBRO DE 2004
SISTEMAS DE USO DA TERRA AGRÍCOLA EM ANGOLA
ESTUDOS DE CASO NAS PROVÍNCIAS DO HUAMBO, LUNDA SUL E UÍJE
RELATÓRIO FINAL
I VOLUME
2
SISTEMAS DE USO DA TERRA AGRÍCOLA EM ANGOLA: ESTUDOS DE CASO
NAS PROVÍNCIAS DO HUAMBO, LUNDA SUL E UÍJE
1. Introdução
1.1. A Rede Terra, o objectivo do estudo e a equipa de execução
A Rede Terra é um consórcio de organizações não-governamentais (ONG) angolanas e
internacionais ligadas à gestão dos recursos naturais, com o envolvimento das comunidades em
particular, e da sociedade civil angolana em geral, no debate sobre a problemática da terra. Ela
surgiu concretamente quando se sentiu a necessidade de mobilizar a sociedade para tomar
conhecimento e opinar sobre o ante-projecto da lei de terras lançado pelo Governo angolano em
2002 para consulta pública.
Esse debate mostrou, entre outras coisas, que a realidade do País no domínio das terras com fins
agrários é muito pouco conhecida, o que criou imensas dificuldades aos diferentes actores
envolvidos quando tiveram de se pronunciar sobre o assunto. Assim sendo, a Rede Terra decidiu
por bem elaborar um estudo que visasse:
A melhoria do conhecimento sobre a problemática da terra para fins agrícolas em
Angola e em particular sobre as formas de acesso, posse e uso em contextos
diferenciados;
A análise das formas de gestão da terra e de outros recursos naturais pelas
comunidades;
A identificação dos conflitos que ocorrem e suas causas, e os mecanismos e
soluções para os dirimir;
A identificação de questões-chave que possam contribuir para a melhoria das
políticas fundiárias e da legislação do País (Ver Termos de Referência no Anexo
I).
Inicialmente previsto para cinco províncias, o estudo ficou reduzido a três por limitações
financeiras: Huambo, Uíje e Lunda Sul. Para a implementação do estudo, a Rede Terra contratou,
por ajuste directo, a ADRA- Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente, ONG angolana
que tem longa experiência de trabalho junto de comunidades rurais e está envolvida há vários
anos no debate sobre a questão fundiária a vários níveis. Por sugestão da Rede Terra, a ADRA
constituiu uma equipa coordenada por um agrónomo com larga experiência no domínio da
sociologia rural e do desenvolvimento rural, e integrada por dois agrónomos, dois juristas, um
sociólogo e um técnico de desenvolvimento comunitário. Na constituição da equipa a ADRA
procurou envolver técnicos jovens, todos angolanos, para que eles ganhassem experiência na
realização de pesquisas e no domínio da problemática de terras, e associou técnicos da ONG
internacional ACORD e de outras organizações angolanas, como o Centro Cultural Mosaiko e o
Centro de Estudos Sociais e Desenvolvimento (CESD), visando o reforço das suas capacidades
nos mesmos domínios. A lista dos membros da equipa consta do Anexo 2.
No trabalho de terreno nas diferentes províncias, a equipa contou com alguns reforços por parte
de elementos locais que muito contribuíram para facilitar a aproximação às comunidades e o
diálogo com elas e um melhor entendimento da realidade, tendo também eles beneficiado com os
conhecimentos adquiridos ao longo do estudo. No Huambo, a ADRA disponibilizou dois técnicos
da área agronómica – tendo um deles participado também no Uíje e noutros momentos – e foram
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recrutados um topógrafo e dois membros de duas associações de camponeses que já haviam
colaborado anteriormente num estudo promovido pela Development Workshop (DW) sobre a
mesma temática. Na Lunda Sul, a Direcção Provincial da Agricultura e a Federação Luterana
Mundial cederam igualmente um técnico cada. No Uíje, a contribuição da Direcção Provincial da
Agricultura, de um funcionário do Governo Provincial e de um activista local da Rede Terra foi
prestimosa.
A colaboração por parte das instituições governamentais não foi uniforme. O Ministério da
Agricultura e Desenvolvimento Rural (MINADER) não mostrou interesse pelo trabalho e não
facilitou o acesso à informação. O Governo da Província do Huambo não deu resposta ao pedido
de colaboração formulado. O mesmo já não se pode dizer da Lunda Sul e Uíje, onde os governos
provinciais, através dos vice-governadores para as áreas social e económico-produtiva,
respectivamente, foram inexcedíveis na forma como apoiaram as equipas que lá trabalharam.
A equipa liderada pela ADRA agradece a colaboração de todos quantos deram o seu contributo
para a realização do estudo nas diferentes províncias e municípios, e muito especialmente aos
membros das comunidades onde ele teve lugar, pela sua hospitalidade e pela forma pronta como
se disponibilizaram para partilhar a preciosa informação de que dispunham.
1.2. A abordagem metodológica
A ADRA apresentou à Rede Terra uma proposta metodológica que permitiu o desenrolar do
estudo. A selecção das três províncias estudadas foi determinada por razões socioculturais,
agroecológicas e demográficas. O Huambo é o coração da área sociocultural dos Ovimbundu, o
maior grupo etnolinguístico do País, que ao longo da sua história conhecida desenvolveu
aptidões notáveis para o comércio e para a agricultura. Região planáltica de relativamente elevada
densidade demográfica para as condições do país, tornou-se conhecida pela sua importância na
produção de milho, feijão, batata e hortícolas, mas sobretudo pelas habilidades e pelo nível
tecnológico mais avançado dos seus agricultores, quando comparados com os de outras regiões
de Angola. Presentemente, a densidade demográfica da província é de 59 habitantes por
quilómetro quadrado, de acordo com fontes do Governo Provincial.
A província do Uíje embora povoada maioritariamente por pessoas que se reclamam como
pertencendo ao grupo dos Bakongo, apresenta na sua parte sul uma certa influência de grupos
mais ligados aos Ambundu. A região ficou conhecida até à independência e ao início da guerra
civil pela elevada importância da cultura do café, que se adaptou muito bem às condições de
floresta densa húmida e de clima que caracterizam a região, e marcou a vida das suas populações
de forma notável, provocando até um certo abandono das culturas alimentares. A província pode
ser considerada, do ponto de vista demográfico, como sendo de nível médio para as condições de
Angola. De acordo com várias fontes disponíveis, a sua densidade demográfica é de
aproximadamente 30 habitantes por quilómetro quadrado.
A Lunda Sul apresenta características completamente diferentes. Integrando as extensas regiões
arenosas que constituem o sistema do Kalahari e que caracterizam todo o leste de Angola, a
região é habitada principalmente pelos Cokwe, grupo etnolinguístico com grande mobilidade que
durante a colonização teve muito menor contacto com os portugueses, se comparado com os dois
anteriores, e por isso é considerado mais “conservador” e “tradicionalista”, o que afinal significa
maior preservação dos seus usos, costumes e tradições. Trata-se, como as restantes do leste, de
uma província muito pouco povoada, com grandes espaços desabitados entre os aldeamentos,
muito mal servida por infraestruturas e serviços destinados à população. Todavia, nos últimos
anos do período colonial assistia-se a uma progressiva integração dos agricultores locais no
mercado graças ao relativo sucesso conseguido com a introdução da cultura do arroz, na
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sequência de relações comerciais mais antigas com base em produtos de caça e recolecção. A sua
densidade demográfica é a mais baixa das três províncias, situando-se nos cinco habitantes por
quilómetro quadrado, de acordo com fontes do Governo Provincial.
Em cada uma das províncias foram escolhidos municípios com características diferentes. No
Huambo, o da Caála, por estar muito próximo da sede da província e sofrer a sua influência, ter
estado durante a guerra civil mais sob influência do Governo, ter sido servido pelo Caminho de
Ferro de Benguela (CFB) e por estradas que ligam o Planalto Central ao litoral (Benguela e
Lobito) e ao sul do País e ainda por integrar regiões agroecológicas com características bem
específicas como se verá adiante; e o Bailundo, por ser uma região com características diferentes,
menos influenciada pela cidade, com um ruralismo mais acentuado e por ter sofrido maior
influência da UNITA durante a guerra civil, principalmente nos últimos anos.
No Uíje, o critério de selecção dos municípios seguiu a mesma lógica, tendo sido identificados o
município sede, inserido na região cafeeira por excelência dos Dembos-Uíje, com floresta densa
húmida, onde a influência da cidade é mais acentuada, e o do Púri, que integra o chamado
Planalto do Congo e onde o processo de savanização já é um pouco acentuado e a cultura do café,
se bem que ainda importante, já não era – mesmo nos tempos áureos – tão determinante.
Finalmente, na Lunda Sul, dadas as suas características em extensão e isolamento, foram
seleccionados três municípios. Para além do de Saurimo, mais influenciado pela cidade – apesar
de se tratar de uma urbe de pequena dimensão e afectada por uma acentuada interioridade –,
foram integradas no estudo comunidades de outros dois municípios: um situado a sul (Dala) e
outro a leste (Muconda), para permitir o aparecimento de mais factores diferenciadores, visto que
o último integra uma região tradicionalmente ainda mais “esquecida”.
Em síntese, os critérios de selecção das comunidades estudadas podem ser apresentados como
segue:
A proximidade ou afastamento dos centros urbanos e vias de comunicação
mais importantes;
A maior ou menor densidade demográfica e o maior ou menor isolamento;
As diferentes características agroecológicas;
Os sistemas de produção praticados;
A facilidade de acesso (estado das estradas, suspeita de existência de minas…)
A presença de ONGs ou outras organizações que facilitassem a aproximação às
comunidades.
A presença ou ausência de fazendas poderia ter sido outro critério de selecção, mas revelou-se
difícil de considerar (por falta de informação credível) e de conciliar com os restantes critérios. A
questão apresentou-se mais problemática no Huambo onde, para salvaguardar o rigor da pesquisa,
foi feita uma incursão à comuna de Calenga (Kapunje), cuja realidade é muito semelhante à de
Cassoco e possuía no passado maior número de fazendas, para melhor entendimento do que
acontece actualmente.
O estudo desenrolou-se em quatro fases. Na primeira, após a constituição da equipa, procurou-se
recolher informação disponível sobre a problemática da terra em Angola e em particular nas
províncias contempladas e foi elaborada a proposta metodológica. A segunda decorreu no
Huambo e começou com uma sessão de treinamento em que participaram todos os membros da
equipa (com excepção dos que vieram a ser co-optados no Uíje e na Lunda Sul), visando a
socialização do conhecimento do contexto da região, com particular incidência sobre a
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problemática da terra, e a discussão dos aspectos metodológicos. Toda esta equipa participou no
trabalho de campo que teve lugar no Huambo, dividida em dois grupos que trabalharam em
municípios diferentes e com sessões de reflexão diárias sobre a informação que ia sendo
recolhida, tendo o coordenador servido de elemento de ligação entre os dois grupos e monitorado
os aspectos metodológicos. Na terceira fase, as duas equipas constituídas no Huambo trabalharam
em províncias diferentes, na Lunda Sul e no Uíje. Findo todo o trabalho de campo, houve novas
reflexões e foram então elaborados relatórios parcelares relativos aos casos estudados, o que
permitiu, finalmente, a redacção do relatório final, concluindo-se, assim, a quarta fase do estudo.
O calendário das actividades realizadas encontra-se no Anexo 3.
Os Termos de Referência da Rede Terra orientaram a pesquisa para a realização de estudos de
caso. Estes dizem respeito à descrição detalhada e à análise de determinado acontecimento,
situação ou instituição no seu próprio contexto e podem fornecer uma visão ampla e mais ou
menos profunda de alguma coisa, nesta circunstância de distintas comunidades. Os estudos de
caso permitem ainda, geralmente, que as percepções, atitudes e valores dos actores e sujeitos
sejam percebidos com maior clareza do que através de metódos quantitativos. Por isso a pesquisa
privilegiou a análise qualitativa. A metodologia utilizada favoreceu a participação das
comunidades envolvidas e procurou-se um certo equilíbrio de género, embora isto tivesse sido
prejudicado pela menor disponibilidade das mulheres. Na recolha da informação foram utilizadas
fundamentalmente entrevistas semi-estruturadas e grupos focais diferenciados por sexo, idade e
tipo de ocupação dos seus elementos, bem como o mapeamento e a observação directa. Durante
as entrevistas foi possível recolher alguns dados quantitativos que permitiram o cruzamento e a
validação da informação qualitativa e o melhor fundamento de certas conclusões. No Anexo 4
encontra-se o guião que serviu para a recolha da informação.
O trabalho de campo consistiu na realização de entrevistas semi-estruturadas a 220 pessoas entre
homens (62%) e mulheres (38%), velhos e jovens, líderes e liderados, residentes habituais e
desmobilizados, o que representou, em cada caso, pelo menos 10% do universo populacional,
salvo na aldeia de Kivita (Uíje) por razões que se explicarão num dos parágrafos seguintes. O
resultado destas entrevistas foi cruzado com informação recolhida em 33 grupos focais (de mais
velhos, líderes religiosos, jovens e, sobretudo, mulheres para que estas, em menor número nas
entrevistas, pudessem ter oportunidade de exprimir mais livremente as suas opiniões e
preocupações). As superfícies das terras afectas às comunidades estudadas no Huambo e Lunda
Sul foram calculadas com recurso a elementos de cartografia, mas não foi possível fazer o mesmo
para as restantes províncias. O quadro seguinte dá uma ideia das fontes de informação a que se
fez recurso.
Quadro I -Fontes de informação do estudo Nº de entrevistas Nº de grupos focais
Homens Mulheres Homens Mulheres Jovens Huambo 78 40 4 4 - Uíje 40 23 8 (a) 4 - Lunda Sul 18 21 5 (b) 4 4 (c)
Total 136 84 17 12 4 (a) Inclui dois com autoridades tradicionais e dois com líderes religiosos
(c) De ambos os sexos (b) Um dos grupos era apenas de deslocados
A sessão de treinamento inicial e a formação em serviço permitiram a melhoria do conhecimento
dos membros da equipa e dos colaboradores envolvidos. Além disso, no Huambo foi possível a
elaboração dos croquis das terras das quatro comunidades estudadas como primeiro passo para a
obtenção dos respectivos títulos, o que constitui um resultado importante do projecto muito
valorizado pelos membros das comunidades em causa.
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O estudo teve vários constrangimentos e limitações. O primeiro teve a ver com a falta de
colaboração do Ministério da Agricultura que, à solicitação de acesso aos dados sobre concessões
de terras, respondeu que os mesmos eram confidenciais e não mostrou sensibilidade ou interesse
pelos resultados da pesquisa. No Huambo, não foi possível realizar o trabalho numa comunidade
inicialmente escolhida porque as autoridades locais argumentaram que não havia orientação ou
autorização do Governo da Província. Isto integra-se na dificuldade geral com que estudos desta
natureza se deparam em Angola, por falta de sensibilidade das instituições sobre a sua
importância e pela relativa desconfiança que ainda existe por parte das instituições do Estado em
relação a ONGs e consultores independentes. Por outro lado, a ausência de estatísticas fiáveis
obriga ao recurso a informação desactualizada, como é o caso da Missão de Inquéritos Agrícolas
(MIAA). Na Kivita (Uíje) uma falha no processo de aproximação à comunidade fez com que a
amostra de entrevistados ficasse substancialmente reduzida, pois em determinado momento o
soba local determinou a suspensão dos trabalhos. O valor do orçamento foi outro
constrangimento, obrigando à redução do número de províncias e do trabalho de campo, o que
dificultou ou impossibilitou a medição e o cálculo das parcelas de terra. O estado das estradas
impediu, principalmente no Uíje, a escolha de municípios mais afastados da capital da província,
onde os aspectos diferenciadores poderiam ser mais evidenciados.
1.3. Estrutura do relatório
O presente relatório é constituído por um sumário executivo e por cinco capítulos. No primeiro
capítulo faz-se a introdução, reproduzem-se os objectivos e descreve-se a constituição de cada
equipa e a metodologia. No capítulo 2, procura-se dar uma visão geral da perspectiva histórica e
do contexto angolano relativo às terras para fins agrícolas para melhor se entender a situação
actual e as grandes linhas do estudo. No capítulo 3, apresenta-se o resultado comparativo dos
diferentes casos estudados quanto aos sistemas de posse, gestão e uso da terra nas doze
comunidades seleccionadas nas três províncias. No capítulo 4, é feita uma análise jurídica em que
se comparam certos aspectos do Ante-projecto de Lei de Terras com as constatações no terreno.
No capítulo 5 são apresentadas as conclusões finais e algumas recomendações, tendo em vista as
acções futuras da Rede Terra. Entendeu-se por bem apresentar separadamente, num outro volume
considerado anexo, a descrição monográfica das doze comunidades estudadas – estando as da
Lunda Sul condensadas num único texto pelo menor grau de diversificação –, pela extensão a que
o respeito pelo pormenor obrigou, pois de outro modo a leitura e a consulta do relatório não
seriam confortáveis1. É nesse volume anexo onde se encontra quase toda a informação
quantitativa que foi possível recolher.
2. Antecedentes e contexto geral das terras para fins agrícolas em Angola
1 Na grafia dos termos em línguas nacionais procurou-se seguir as regras do alfabeto oficial definido pelo Instituto Nacional de
Línguas. Exceptua-se o caso dos nomes próprios onde se procurou respeitar a grafia como são conhecidos.
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Nos últimos anos do período colonial, antes do início da guerra civil e das agressões externas,
Angola era um notável produtor de bens de origem agrícola e pecuária. Segundo produtor
africano e quarto mundial de café robusta, Angola produzia ainda algodão, milho, mandioca e
banana para seu consumo e para exportação, e era mais ou menos auto-suficiente em carne,
feijão, amendoim, óleo de palma, tabaco e muitos outros produtos. Ao contrário do que muitos
imaginam – e do que é divulgado por certas fontes pouco preocupadas com o rigor da informação
– a maior parte da produção de alimentos de origem agropecuária que chegava aos mercados
provinha do então chamado sector “tradicional”, ou seja, dos pequenos agricultores familiares.
Estes eram responsáveis, de acordo com a MIAA, por 88% da comercialização de milho, 100%
de mandioca, 94% de feijão, 100% de amendoim, 71% de batata, 30% de café, 52% de arroz,
21% de algodão e tinham ainda peso superior na produção de carne, tabaco e banana. Todavia,
tais produtores utilizavam a terra de forma precária, pois não tinham garantidos, através de
títulos, os seus direitos de propriedade ou posse, como acontecia com os agricultores
empresariais, patronais ou “modernos”2.
A questão das terras para fins agropecuários em Angola constitui, desde há muito, uma sucessão
de injustiças que têm origem na forma como têm sido tratados os direitos fundiários dos
agricultores pobres. Com efeito, no período compreendido entre 1880 e 1930, aproximadamente,
quando se desenhou o mapa do País na sequência das campanhas militares de ocupação ou de
consolidação do poder colonial português, foram tomadas medidas político-administrativas que
visavam a submissão das populações à soberania portuguesa e a sua integração na economia
monetária e no mercado colonial. Dentre tais medidas encontrava-se o “Estatuto dos Indígenas”,
que consagrava a discriminação rácica e “civilizacional” e estabelecia um regime jurídico
diferenciado para os habitantes do território consoante eles tivessem ou não a cidadania
portuguesa. Foi nessa lógica que se inseriu a legislação fundiária de 1919, que reconhecia a
existência de terras para uso exclusivo dos “indígenas” (os não cidadãos), sem que isso
significasse a atribuição de outros direitos ou de títulos de propriedade colectivos ou individuais.
As posteriores alterações à lei não alteraram no essencial o carácter “dualista” do regime jurídico
das terras. O Decreto-Lei nº 43894, de 6 de Setembro de 1961, que passou a regulamentar a
ocupação e concessão de terrenos, resultou da pressão política interna e externa em favor da
independência de Angola e procurou, aparentemente, garantir os direitos das populações
autóctones sobre os terrenos por elas ocupados com habitações e cultivos e a salvaguarda dos
respectivos sistemas de uso3.
De acordo com tal Regulamento eram considerados vagos os terrenos que não estivessem
incluídos:
a) No domínio público do Estado e no património privado de Angola então
considerada uma “província ultramarina” de Portugal;
b) Nas reservas, isto é, nos terrenos destinados a fins especiais excluídos do regime
geral de uso ou ocupação;
c) Nas povoações e centros urbanos.
Os terrenos vagos foram então classificados, de acordo com o fim a que se destinavam, em:
2 Na redacção deste capítulo foi utilizada informação do texto de autoria de Fernando Pacheco A questão da terra para fins
agrícolas (ver bibliografia). 3 Outros diplomas legislativos importantes sobre terras no tempo colonial são a Lei dos Baldios do Ultramar, de 1856; a Carta de
Lei de 9 de Maio de 1901, sobre o regime de concessão de terrenos nas províncias ultramarinas; a Lei nº 2001, de 16 de Maio de
1944 – Limites das áreas de concessão de terrenos e tipos de concessões; e a Lei nº 6/73, de 13 de Agosto ou Lei de Terras do
Ultramar. O destaque dado no texto ao Regulamento de 1961 justifica-se pela importância que teve no desenho da situação de
1975 e na influência sobre a situação actual, pois a lei de 1973 não produziu efeitos em termos práticos.
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De 1ª classe, os abrangidos pelos centros urbanos e seus subúrbios;
De 2ª classe, os terrenos demarcados para atribuição conjunta às populações rurais de
modo a que estas as pudessem utilizar de harmonia com os seus usos e costumes;
De 3ª classe, os terrenos vagos, não incluídos nas categorias anteriores, que se
tornavam, assim, disponíveis para a instalação de fazendas empresariais.
Os terrenos de 2ª classe constituíam, assim, uma espécie de “reservas” e só podiam ser usados e
fruídos em conjunto e segundo normas costumeiras pelas populações das regedorias4 e tinham de
ser demarcados para serem reconhecidos e respeitados. De forma um tanto arbitrária estabeleceu-
se que, em média, cada família deveria ter direito a uma superfície cinco vezes superior à
cultivada anualmente. O espírito da lei de 1961 mostrava claramente a adopção do “dualismo”
expresso na divisão de terras entre grandes empresas e agricultores familiares, tratando-se estes
como se estivessem confinados em “reservas” indígenas5. Embora fosse justificada com “a defesa
intransigente dos interesses e direitos das populações sobre os terrenos por elas ocupados ou
explorados”, a prática revelou-se totalmente contrária, pois os terrenos não foram efectivamente
demarcados, e pouco mais de dez anos depois a situação tornou-se extremamente gravosa para os
rurais e agricultores pobres que viram as suas melhores terras ocupadas por fazendas que, na
maioria dos casos, eram cultivadas em apenas 10% da área titulada. A título de exemplo, e de
acordo com a MIAA, entre os anos 60 e 70 a superfície média dos agricultores familiares havia
passado de 8, 9 a 5,6 hectares no Planalto Central e de 4,1 para 2,0 no Planalto de Malanje, duas
das zonas agrícolas mais importantes do País. Ainda de acordo com a MIAA, nos anos 70 menos
de 6500 agricultores patronais dispunham de 4,5 milhões de hectares de terras (cerca de 700
hectares em média), enquanto mais de um milhão de agricultores familiares dispunham apenas de
aproximadamente 4,3 milhões, o que dá uma média inferior a quatro hectares. O facto de os
agricultores empresariais utilizarem efectivamente apenas 10% das terras que ocupavam (em
média), deixando as restantes sem uso, como reservas para o futuro, tornava a situação ainda mais
injusta.
Angola independente herdou, pois, um sistema “dualista” de posse da terra. Ainda que apenas
para efeitos de análise, é possível afirmar que tal sistema assentava fundamentalmente em dois
tipos agrários com padrões culturais, sociológicos e económicos distintos, quer do ponto de vista
dos objectivos, quer das formas de representação social da terra, do relacionamento entre as
unidades de produção e os agrupamentos humanos a elas ligados, da posição perante o mercado,
da atitude perante o cálculo económico, dos fluxos de energia e da estrutura dos custos de
produção. Embora a realidade seja mais complexa, por causa do continuum existente entre os dois
tipos, é comum falar-se, então, de agricultura familiar e agricultura empresarial. Mas é óbvio que
agricultura familiar não é sinónimo de agricultura de subsistência, nem agricultura empresarial
significa latifúndio. A análise da agricultura angolana dos anos 70 mostra bem essa realidade.
Já naquela época a situação nas três províncias estudadas era bastante diferenciada. Na Lunda
Sul, tal como acontecia em praticamente todo o leste, onde a densidade demográfica era muito
baixa, predominavam os sistemas comunitários de posse da terra. Naquelas circunstâncias,
qualquer membro de uma comunidade tinha o direito de cultivar uma ou mais parcelas do
território afecto a essa comunidade. Tal direito é designado por alguns autores como direito
geral de utilização da terra e nunca é perdido pelos elementos da comunidade ainda que
abandonem o território por período mais ou menos longo6. No Uíje, onde o desenvolvimento da
cultura do café conformava uma nova forma de economia agrícola, as formas de posse
4 A regedoria era uma subdivisão dos antigos concelhos ou postos administrativos (hoje municípios e comunas, respectivamente)
a que se pretendia fazer corresponder as unidades político-administrativas a que haviam sido reduzidos os territórios dos chefes
locais após a conquista dos portugueses. 5 Ver José Negrão – A indispensável terra africana para o aumento da riqueza dos pobres, Maputo, Julho de 2002 (mímeo). 6 Ver Francisco Avillez, obra citada na bibliografia.
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apresentavam alterações relativamente às parcelas com plantações que apresentavam já uma forte
tendência para a propriedade privada, enquanto as restantes se revestiam com as características
antes relatadas. No Huambo, devido à existência de uma relativamente elevada pressão
demográfica, a posse comunitária resumia-se a algumas reservas para recolecção de lenhas, frutos
silvestres, cogumelos e insectos, e a restante terra estava já privatizada de facto. Tanto neste caso,
como no relatado em primeiro lugar para o Uíje, a relação estabelecida por um elemento da
comunidade com uma ou mais parcelas de terra revestia-se de carácter mais duradouro. Neste
caso, fala-se de direito específico de utilização da terra, a que é associado o conceito de
vínculo, que é uma norma jurídica socialmente aceite que assume o valor de um título.
Os acontecimentos que antecederam a independência, o início da guerra e a adopção de um
sistema económico centralizado criaram um novo quadro político em Angola e o problema das
terras deixou, aparentemente, de existir. Com efeito, tendo a Lei Constitucional de 1975 definido
no seu artigo 11º que a terra pertencia originariamente ao Estado e não tendo este determinado as
condições do seu uso e aproveitamento por legislação ordinária como o texto constitucional
previa, as populações que se sentiam injustiçadas ocuparam de forma natural as terras que
consideravam suas quando os portugueses as abandonaram7. Como a política agrícola adoptada
não encorajava a actividade privada, as áreas cultivadas foram genérica e drasticamente reduzidas
e as terras “recuperadas” nem sempre tiveram o devido uso. Por outro lado, o Governo não sentiu
necessidade nem pressão política para legislar sobre terras agrícolas e criou-se uma situação de
facto que hoje é necessário ter em conta do ponto de vista jurídico, pois, caso contrário, comete-
se uma grave injustiça.
A Lei Constitucional de 6 de Maio de 1991 marca juridicamente o fim do período revolucionário
e o inicio das reformas políticas e económicas do multipartidarismo, que viriam a ser
aprofundadas com a Lei Constitucional de 16 de Setembro de 1992. Em ambos os textos é
confirmado que a terra é propriedade originária do Estado, que pode conceder às pessoas
singulares e colectivas o direito de uso e aproveitamento. Entretanto, em Agosto de 1992 foi,
finalmente, aprovada a primeira lei sobre terras na Angola independente, embora reduzida apenas
às questões agrícolas e à concessão de títulos de uso e aproveitamento. Esta lei 21-C/92 consagra
alguns princípios estruturantes substanciais das relações com a terra a saber:
Propriedade da terra originária do Estado;
Transmissibilidade da propriedade da terra;
Aproveitamento útil, racional e integral do solo e da concessão do direito de uso e
aproveitamento;
Garantia do respeito pelos direitos fundiários das populações camponesas;
Irreversibilidade das nacionalizações e confiscos de bens fundiários;
Propriedade estadual dos recursos naturais do solo e subsolo;
Garantia do respeito pela propriedade privada de nacionais e de estrangeiros;
Classificação;
Expropriação por utilidade pública.
Ainda que a fronteira entre a natureza dos princípios não seja linear e rígida, são de destacar
outros princípios directivos também marcantes, pois relevam como critérios orientadores da
decisão de concessão e, logo, mais aplicáveis em sede do processo de concessão dos direitos
fundiários. Alguns dos princípios atrás enunciados ressaltam uma carga fundamentalmente
perceptiva, tais como o do aproveitamento útil, racional e integral e o do respeito pelos direitos
das populações camponesas. Numa dimensão directiva são de enunciar os seguintes princípios:
7 Durante o estudo foram identificadas algumas situações deste tipo na província do Uíje.
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Ordenamento do território ou do aproveitamento racional e integral do solo, como recurso
natural;
Prioridade do interesse nacional e do desenvolvimento sócio-económico;
Precedência na atribuição de uma concessão;
Competência graduada;
Princípio da capacidade demonstrada;
Defesa e protecção do ambiente.
Esta lei viria a ser regulamentada com o decreto nº 32/95 de 8 de Dezembro. Um aspecto
fundamental a sublinhar é o facto de não ter sido feita a nacionalização da terra, pelo que os
terrenos que se encontravam à data da independência em situação de propriedade privada,
mantiveram-se como tal, tendo sido apenas feito o confisco dos terrenos abandonados por antigos
empresários agrícolas.
O presente quadro legislativo, apesar de traduzir uma visão redutora da terra – limita-se a dar
respostas as questões ligadas à agricultura –, oferece uma protecção jurídica de certo modo
aceitável ao sector agrícola. Todavia, não é difícil diagnosticar as suas fraquezas. Desde logo, não
houve a preocupação em atender as particularidades das várias realidades culturais que compõem
o nosso País, procurando dar tratamento igual a situações que são claramente desiguais. Por outro
lado, só se permite a constituição de um direito fundiário, o direito de superfície que, como se
sabe, é um direito real com algumas limitações.
Foram várias outras as críticas com que se defrontou a nova lei 21-C/92. Ela não se ocupou
devidamente do problema “dualista” que alimentou a legislação colonial; não tratou do
reconhecimento do direito de ocupação; não definiu o conceito de “povoação rural”8 – que havia
substituído, de certo modo, o de terrenos de 2ª classe da lei de 1961 – nem estabeleceu o seu
estatuto jurídico; não definiu os direitos fundiários dos diferentes utilizadores; não clarificou as
relações com outra legislação ligada à administração do Estado e ao poder local, ao ordenamento
do território, ao ambiente.
O quadro jurídico e o aparelho institucional para a gestão de terras agrícolas são actualmente
desorganizados e desactualizados, o que permite a ocorrência de atropelos, incoerências e
sobreposições. Dificilmente alguma instituição pode informar com segurança qual a situação real
existente no País e em qualquer das províncias. Um Administrador Municipal, por exemplo, não
sabe ao certo quais as terras do seu município que foram concedidas pelo Ministério da
Agricultura, nem este tem informação exaustiva das terras concedidas pelos Governos
Provinciais. A partir do final dos anos 80 iniciou-se o processo de “redimensionamento” ou
privatização das empresas que eram consideradas do Estado e, depois de 1992, o processo de
concessão de títulos de uso e aproveitamento. De um modo geral, a lei 21-92/C e o respectivo
Regulamento não são cumpridos; os títulos são concedidos sem projectos credíveis que sustentem
os pedidos, as regras de uso da terra não são respeitadas, os prazos de utilização são
ultrapassados. Os organismos provinciais da Agricultura não têm recursos técnicos nem humanos
para atenderem os pedidos, nem para fazerem cumprir a lei. Os títulos são conferidos na maioria
dos casos com base no cadastro de 1975, que está completamente desactualizado e não há
normalmente registos. As áreas concedidas quase nunca têm a ver com a real capacidade dos
empresários, reais ou potenciais.
Fontes do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural revelaram que até à data foram
concedidas 1010 títulos de uso e aproveitamento, totalizando uma área de 2 446 384, 41 hectares.
Estes números não incluem as províncias do Bié, Cabinda e Lunda Norte, porque a segunda
8 Não confundir com “povoação”no sentido da divisão administrativa, que é uma subdivisão da comuna nas áreas rurais e integra
um maior ou menor número de aldeias (ver nota de pé de página 9).
11
nunca enviou processos para concessão pelo Ministério e na terceira ainda existe muita
indefinição sobre a relação entre terrenos para agricultura e para exploração de diamantes.
Também não incluem os títulos e áreas concedidas pelos Governos Provinciais ao abrigo do
artigo 28 da Lei 21-C/92, pois, incompreensivelmente, não são enviadas cópias dos processos
nem outra informação para o MINADAER. Exceptua-se o caso de Luanda, onde os títulos são
passados pela Direcção Nacional de Ordenamento Rural, porque o Governo Provincial apenas
passa “declarações” com validade de dois anos. Isto tudo significa que as áreas reais já
concedidas devem ultrapassar largamente os 2,5 milhões de hectares e aproximam-se
perigosamente – se não já ultrapassaram – da cifra do sector empresarial até 1975 – cerca de 4,5
milhões de hectares.
Foram concedidos 66 títulos com áreas superiores a 10 mil hectares, que dizem respeito,
normalmente, à exploração florestal e pecuária, mas há também casos de café, o que contraria a
Lei 21-C. Quanto aos tipos de concessão, de acordo com o artigo 16º da Lei 11 888 (89%) –
sendo 388 de áreas de café – são a título precário, isto é, são válidas apenas por um período de
cinco anos, o que significa que para a maioria dos casos – ou, pelo menos, para muitos deles – os
títulos estão já caducados. Os restantes foram concedidos por períodos de 10, 15, 20, 25, 40 e 45
anos, sendo este último período o mais frequente com 72 casos (7%), enquanto 13 títulos (1, 2%)
foram concedidos por período ilimitado.
Analisando mais concretamente a situação nas três províncias onde decorreu o estudo, verifica-se
que no Huambo foram concedidos 11 títulos com 25668,43 hectares, todos precários, havendo
em Tchicala Thcoloanga uma única concessão com 14531 hectares (quase 57% da área total
concedida). Na Caála há apenas um título com 3000 hectares, e no Bailundo não há nenhuma
concessão. Como não foi possível obter cifras das concessões distribuídas pelo Governo
Provincial, não se sabe qual é a situação exacta.
Na Lunda Sul foram concedidos dois títulos prefazendo 16 mil hectares em regime precário num
único município, encontrando-se viver-se, também aqui, uma indefinição entre terrenos para fins
agrícolas e para exploração de diamantes. Igualmente não se conhece a situação exacta por falta
de dados das concessões feitas na província.
No Uije, a área e o número de títulos concedidos são muito maiores: 108 930,12 hectares e 109
títulos, estes todos precários e em áreas de café. Isto explica-se exactamente pelo interesse de
empresários (actuais ou futuros) na reabilitação da cultura de café, que outrora teve um peso
importante na economia angolana. Para além desta cifra, foi possível obter dados das concessões
e títulos fornecidos a nível da província, perfazendo 2 466 hectares.
Isto significa que a estrutura de produção defeituosa do tempo colonial, assente em dois tipos
agrários – o familiar ou “tradicional” e o empresarial ou “moderno” – pode estar a reconstituir-se.
Tudo isto traduz-se numa situação de grande vulnerabilidade para aqueles cidadãos que não
conhecem o caminho das instituições e não podem fazer valer os seus direitos e a probabilidade
de ocorrência de conflitos entre quem ocupa a terra de facto e quem dispõe de um título.
Foi nesse contexto que o Governo decidiu elaborar e submeter a consulta pública um novo ante-
projecto de lei de terras com as seguintes notas características:
12
Superação da visão redutora da Lei n.º21-C / 92, de 28 de Agosto, consagrando uma visão
integrada da terra onde todos os fins que a ela se podem atribuir são contemplados
(urbanístico, agrícola, industrial, ambiental, etc);
Superação da visão monista (um só direito) consagrando cinco direitos fundiários: direito
de propriedade privada (só para área urbana); direito de superfície; domínio útil civil (para
a área urbana e rural) e domínio útil consuetudinário (para área rural); direito de ocupação
precária.
O referido Anteprojecto foi muito discutido em vários círculos, com destaque para as
universidades e para a sociedade civil. Apesar das dificuldades e limitações de vária ordem, o
processo de consulta representou um dos pontos mais altos de participação dos cidadãos
angolanos na discussão de problemas da Nação e de afirmação da sociedade civil e sua influência
nas políticas públicas. Não obstante haver muitas vozes contra a sua aprovação nesta altura, a
verdade é que da discussão resultaram contribuições muito positivas para o seu enriquecimento,
com destaque para a introdução de um capítulo dedicado a questões processuais e às formas de
resolução de conflitos fundiários.
3. Estudos comparativos dos sistemas de posse, gestão e uso da terra em
diferentes comunidades das províncias do Huambo, Luanda Sul e Uíje
13
3.1.Introdução
Tendo em conta os objectivos do estudo, entendeu-se que seria difícil a compreensão dos
sistemas de posse, gestão e uso da terra sem conhecimento dos sistemas sociais, políticos e de
poder nas comunidades em causa. Por tal razão, procurou-se fazer uma incursão neste domínio,
não tanto para caracterizar tais sistemas, mas antes para apreender as dinâmicas de mudança e o
seu sentido.
Para efeitos deste estudo é necessário diferenciar os conceitos de comunidade e aldeia. Do ponto
de vista operatório – aquele que interessa para esta pesquisa –, mas sem perder o sentido
sociológico, é possível adoptar a definição que refere comunidade como sendo o conjunto de
grupos e subgrupos com identidade, interesses e preocupações comuns e com consciência de
pertença, situados numa determinada área geográfica ou inseridos num espaço social no qual as
pessoas interagem mais intensamente entre si do que em qualquer outro contexto9. Este conceito
não deve ser confundido com o de aldeia, aqui utilizado, também em termos operatórios, para
designar um aglomerado populacional rural que integra uma povoação ou regedoria10
. Por
comodidade de linguagem utiliza-se, ao longo do texto, o mesmo nome para designar aldeia ou
comunidade, pois sentiu-se que este era o entendimento nos casos estudados. Mas isso não deve
ser entendido como regra, pois, no caso da Chiteta, por exemplo, o conceito de comunidade está
conotado com o todo de um conjunto de aldeias.
3.2.Caracterização geral e contexto das comunidades
As comunidades estudadas foram seleccionadas com base nos critérios já referidos na introdução,
na parte referente à metodologia. O Quadro II permite compreender a sua localização, que pode
ser concretizada nos mapas à escala de 1:100 000 constantes do Anexo 5.
Quadro II – Localização das aldeias estudadas
9 Adaptada de Ezequiel Ander-Egg. Ver Fernando Pacheco “Algumas reflexões sobre desenvolvimento comunitário”, in Relatório Económico de
Angola 2002, Centro de Estudos e Investigação Cientifica da Universidade Católica de Angola, Outubro de 2003. 10 A divisão político-administrativa de Angola inclui as povoações (nas áreas rurais) e os bairros (nas áreas urbanas) como
subdivisões das comunas. Nos termos da Lei Constitucional aprovada em 1992, o funcionamento das povoações e dos bairros
deveria obedecer a legislação específica que, entretanto, nunca foi aprovada. Por tal razão, e pela pouca importância conferida
pelo poder de Estado a esta subdivisão administrativa, a designação “regedoria”, do tempo colonial, ainda é usada pelas pessoas,
principalmente no Uíje e na Lunda Sul, em vez de “povoação”, terminologia oficial. Actualmente no Huambo, a povoação
corresponde com frequência, em termos geográficos e grosseiros, à ombala, que significa, no léxico umbundu, o território de
jurisdição de um soma ou soma inene, isto é, um soba grande na terminologia oficial. Ombala também significa a aldeia onde
reside o soma inene. O território da ombala, por sua vez, divide-se em imbo’s (aldeais), onde a autoridade é exercida por sobas ou
por sekulu’s, consoante a sua importância política e territorial. Na Lunda Sul a regedoria corresponde, grosso modo, ao território
antigo da munganda, chefiado pelo muanangana. No Uíje, a designação regedoria corresponde, ainda em termos grosseiros, à
antiga mbanza, unidade territorial e político-administrativa onde o poder era exercido por um soba grande (mweni-a-mbanza ou
soba mbuta, em língua kicongo). A regedoria, por sua vez, divide-se em hata’s (aldeias ou povos em português) onde o poder é
exercido por um soba ou mfuma-a-hata. “Soba”(com uma entoação semelhante a “sova”) é uma designação que em kicongo
significa, à letra, mudar, trocar. Frequentemente, o soba grande também é designado por regedor, por recuperação da terminologia
utilizada nos últimos tempos do período colonial, principalmente no Uíje e na Lunda Sul.
14
Nº Nome da
aldeia
Povoação ou
Regedoria
Comuna Município Província Distância
à sede do
município
(Km)
Distância à
capital da
província
(Km)
Distância
à estrada
asfaltada
(Km)
1 2
3
4 5
6
7 8
9
10 11
12
Cassoco Etuko
Sailundo Velho
Chiteta Dala Velho
Muazaza
Muatchicuco Samulondo
Kizemba
Kimalundo Kalumbo
Kivita
Sacanombo Vilombo
Ulundo
Chiteta Sayasso
Muazaza
Pimbi Nanguanza
Kizemba
Kimalundo José João
Kassexi
Sede Kuíma
Lunje
Luvemba Sede
Muerieje
Sede Sede
Sede
Sede Sede
Sede
Caala Caala
Bailundo
Bailundo Dala
Muconda
Saurimo Saurimo
Puri
Puri Uíje
Uíje
Huambo Huambo
Huambo
Huambo Lunda Sul
Lunda Sul
Lunda Sul Lunda Sul
Uíje
Uíje Uíje
Uíje
7 54
12
32 10
99
25 7
18
5 ?
23
29 76
102
122 163
77
25 7
?
? ?
23
3 9
4
32 5
0
0 3
12
5 ?
4
3.2.1. No Huambo, a selecção das aldeias foi influenciada pelas características agroecológicas,
pelos sistemas de produção praticados, pela proximidade ou afastamento em relação às sedes dos
respectivos municípios e pela sua história recente face às incidências políticas e militares. Todas
elas pertencem à zona 24 da MIAA11
, mas Cassoco e Cassoma estão localizadas no limite sudeste
da região II da referida zona (influência da “cadeia marginal de montanhas” e da cultura da
batata), Etuko na região IV (cultura extensiva de milho com forte recurso à tracção animal) e as
outras na região IV (cultura do milho e feijão e influência do café arábica na parte norte, onde se
situa Chiteta). Nas aldeias de Cassoco e Sailundo Velho as populações estiveram mais tempo sob
influência do Governo e nas restantes há mais gente que viveu em áreas sob controlo da UNITA.
Todas as aldeias foram abandonadas pelas respectivas populações em diversas ocasiões ao longo
da guerra civil, dirigindo-se para os centros urbanos controlados pelo Governo ou para as matas
junto dos guerrilheiros da UNITA. Apenas em Chiteta se manteve um grupo muito pequeno de
pessoas durante todo o tempo que durou o conflito.
Na Lunda Sul, todas as aldeias estão localizadas ao longo ou muito próximas das estradas
principais que ligam a cidade de Saurimo ao Luena (Moxico, a sul) e à sede de dois importantes
municípios situados a leste e a oeste. Apenas uma (Samulondo) se situa muito próximo de
Saurimo12
. Evitou-se a parte norte devido à influência da actividade diamantífera. Do ponto de
vista agroecológico todas elas estão inseridas na zona 11 da MIAA (Lunda), onde se integra toda
a província da Lunda Sul, caracterizada por uma densidade demográfica reduzida, pelo relativo
isolamento das comunidades, pelo cultivo da mandioca, amendoim e arroz e por uma mais
reduzida presença das instituições do Estado e dos serviços por ele oferecidos ou por outras
entidades (igrejas, empresas, ONGs). Todas as aldeias, à excepção de Samalundo, foram
igualmente abandonadas pelas populações que procuraram refúgio e segurança face à
instabilidade nas suas áreas.
No Uíje foram estudadas duas aldeias situadas no Planalto do Congo (zona 5 da MIAA) e outras
duas na floresta densa húmida de Dembos-Uíje (zona 3 da MIAA), coincidentes com dois
municípios diferentes, sendo um relativamente mais afastado da cidade capital da província. A
cultura do café marcou as comunidades dos dois municípios do ponto de vista económico, social
e político, embora no caso do Púri as incidências tenham sido menores devido ao facto de se
11 No caso de Cassoco entendeu-se por bem alargar o estudo à aldeia de Cassoma que fica ao lado e com a qual são partilhadas
trajectórias e instituições, mas que apresentam, cada uma delas, especificidades que importa reter. 12 Esta localização resulta das estratégias do governo colonial português para combater a guerrilha dos movimentos de libertação a
partir de meados da década de 60, traduzida na criação de concentrações junto das vias principais – as “aldeias da paz” –, para
evitar os contactos com os nacionalistas.
15
tratar de uma região mais savanizada. A usurpação de terras férteis pelos portugueses, o trabalho
forçado nas plantações e na construção de estradas, o pagamento de impostos considerados
injustos e a obrigatoriedade da cultura do café em prejuízo das culturas alimentares, são aspectos
que marcam a história das duas zonas e de toda a província do Uije. Mais recentemente, as
incidências político-militares marcaram as respectivas regiões de forma igual. Teria sido mais
benéfico para as conclusões do estudo se se tivesse optado por outros municípios, como por
exemplo o de Maquela do Zombo, onde os aspectos diferenciadores teriam sido mais marcantes
por causa da proximidade e influência da República Democrática do Congo (RDC).
3.2.2 As aldeias não têm todas a mesma importância em termos de divisão político-administrativa
“tradicional”. Quatro delas são sede de ombala, munganda ou regedoria, o que lhes confere um
estatuto diferenciado. O tamanho e o número de habitantes das aldeias estudadas é muito diverso.
De um modo geral o número de habitantes é muito menor na Lunda Sul (200 a 350 habitantes) do
que no Uíje (1136 a 5570), situando-se o Huambo numa posição intermédia (760 a 1314). O
número de habitantes no Uije é justificado, talvez, pela política de concentração das populações
nas “aldeias da paz”, praticada principalmente a partir dos anos 60 pelos portugueses.
Quadro III – Dados relativos à população e ao tipo de aldeias
Nº Nome da aldeia População residente Tamanho médio da
família
Grupos
etnolinguísticos
predominantes
Tipo de aldeia
1 2
3
4
5
6
7 8
9
10 11
12
Cassoco e Cassoma Etuko
Sailundo Velho
Chiteta
Dala Velho
Muazaza
Muatchicuco Samulondo
Kizemba
Kimalundo Kalumbo
Kivita
2100 737
760
1314
339
286
2256
1190 3048
5770
6
8
6-8 7-10
5-8
Ovimbundu Ovimbundu
Ovimbundu
Ovimbundu
Cokwe
Cokwe
Cokwe Cokwe
Bakongo
Bakongo Bakongo
Bakongo
Aldeia normal “ “
“ “
Sede de ombala Aldeia normal
Sede de munganda
Aldeia normal “ “
Sede de regedoria
“ “ Aldeia normal
“ “
Do ponto de vista etnolinguístico, em cada aldeia há um grupo claramente dominante. Contudo,
tanto no Uíje como na Lunda Sul, notou-se a presença de Ovimbundu que vivem há mais ou
menos tempo nas comunidades estudadas, por força da sua deslocação para prestação de trabalho
sob a forma de contrato, ainda no tempo colonial, em empresas agrícolas ou mineiras, ou por
qualquer outra razão. No Uíje, as aldeias de Kalumbo e Kivita situam-se numa região onde vivem
também subgrupos Ambundu. No Huambo não foi visível a presença de residentes de outros
grupos nas aldeias, mas era notória a presença de indivíduos ou famílias oriundos de outras
regiões da área sociocultural dos Ovimbundu.
No Huambo e Lunda Sul, todas as populações das aldeias estudadas estiveram na situação de
deslocados mais do que uma vez, com excepção de um número reduzido que se manteve sempre
na Chiteta e de toda a população de Samulondo, que foi a única aldeia que nunca se deslocou. No
Uíje, o fenómeno das deslocações não foi tão acentuado. O número de desmobilizados não é
significativo nas aldeias estudadas, excepto no Etuko e, sobretudo, na Chiteta, onde representam
mais de 20% da população total. Em ambas as aldeias os desmobilizados são oriundos da
UNITA. Em Cassoco, os desmobilizados (em número reduzido) são principalmente das forças
governamentais. O número de famílias regressadas da RDC é insignificante nas aldeias da
província do Uije. Em Kivita, por exemplo, apenas foram identificadas três famílias, sendo a do
actual sekulu uma delas, regressada em 1974 e que foi soba até 2003.
16
3.2.3. O grau de instrução das populações é geralmente muito baixo, embora a amostra de
respondentes às entrevistas desse uma ideia significativamente diferente. Isso pode ter acontecido
pelo facto de as pessoas mais instruídas serem mais abertas e contactáveis, mas também porque
muitos entrevistados – principalmente homens – não tinham coragem suficiente para assumirem
que são analfabetos. De um modo geral, os homens possuem um nível de instrução mais elevado
do que as mulheres. Em todas as aldeias foram identificadas pessoas com profissões e habilidades
diversas (carpinteiros, pedreiros, alfaiates, ferreiros, mecânicos, parteiras, etc) mas, de um modo
geral, à excepção das últimas – por razões óbvias – não têm qualquer outra ocupação para além
da agricultura. Entre os jovens com menos de 30 anos praticamente não se encontra ninguém com
tais habilidades. O Uíje e o Huambo são as províncias onde o nível de instrução é mais elevado –
principalmente entre os adultos – o que confirma informações que reportaram estas duas como
sendo as províncias – para além de Luanda – com melhores níveis de escolaridade no tempo
colonial. Em Kimalundo (Uije) foi enfatizado que houve um significativo retrocesso nos níveis de
escolaridade e o mesmo pode ter acontecido nas restantes comunidades.
3.2.4. O espaço vital das aldeias é geralmente bem definido e conhecido pela maioria dos
habitantes, excepto em dois casos na Lunda Sul e no Uíje com determinado tipo de terrenos.
Independentemente do sistema de posse e uso da terra, este espaço e seus limites são
reconhecidos pelos membros da comunidade e pelos das comunidades ou aldeias vizinhas.
Mesmo na Lunda Sul, onde tais espaços são de grande dimensão (por vezes “leva dois ou três
dias a caminhar”, conforme referiu um entrevistado), é difícil identificar alguma “terra de
ninguém” ou livre. O espaço de cada aldeia ou regedoria é reconhecido como aquele em que o
respectivo chefe (soba ou regedor ou com outra designação) exerce a sua autoridade e o seu
“povo” pode instalar ou possuir uma lavra ou parcela de terra ou pode usufruir, desde que não
existam restrições expressas, dos recursos naturais existentes13
. No Huambo, um entrevistado
refere que “cada pessoa no Etuko conhece as terras que eram dos seus antepassados. Eu, a partir
dos 14 anos, já conhecia todas as terras da família, porque o meu pai mostrou-mas e deu-me
algum terreno para trabalhar”.
Em nenhum dos casos estudados a terra foi considerada um constrangimento, com excepção de
Cassoma e Cassoco. Nestas duas aldeias vizinhas, o sistema de produção com base no cultivo de
batata exige áreas superiores às actualmente disponíveis e isto explica a especificidade destas
comunidades, como adiante se verá.
Cassoco e Cassoma representam também o único caso em que não há floresta disponível para os
habitantes, o que afecta as condições de vida da sua população, não apenas em termos energéticos
(acesso à lenha), mas também de alimentos (frutos, cogumelos, insectos, mel, caça miúda) ou de
rendimentos (fabrico de carvão ou venda de bens colectados). Nas restantes aldeias, mas
principalmente na Lunda Sul e ainda mais no Uíje, a floresta representa um recurso fundamental
para a população. Contudo, as formas inadequadas de exploração (principalmente de carvão e de
madeira) poderão contribuir, em todas as situações, para a sua degradação acelerada e para o
desequilíbrio ecológico em cada uma das aldeias consideradas. Pelo contrário, se houvesse um
criterioso sistema de gestão e exploração, a floresta poderia representar, no caso do Uíje e talvez
da Lunda Sul, um precioso capital para o financiamento da reconstrução dos meios de vida locais.
A água não constitui, de um modo geral, um problema, embora a qualidade nem sempre seja a
melhor. As comunidades são quase todas servidas por cursos de água ou fontes com carácter
13 Apenas nas comunidades de Cassoco e Cassoma, por razões que vêem abundantemente expressas ao longo do texto e têm a ver
com a alteração do quadro aldeão, esta definição não é totalmente aplicável, pois elementos dessas aldeias possuem lavras, por
comprar, em outras aldeias.
17
permanente e a distância aceitável. Nem sempre tais cursos de água dispõem de peixe que possa
ser usado para o consumo ou para venda.
3.2.5. Os aldeamentos são normalmente muito pobres e as casas de adobe ou pau-a-pique,
cobertas de capim (colmo) e raramente com chapas de zinco ou telha. Quase todas as aldeias
encontram-se em fase de reconstrução, sendo visíveis muitos espaços à espera de alguém que
ainda não regressou. Em Kivita, no Uíje, há espaços que pertencem a pessoas que foram para a
República Democrática do Congo (RDC) há quase trinta anos e que ainda são aguardados.
No Huambo, a implantação habitacional é relativamente densa mas permite a existência de
espaços para cultivo em redor de cada residência (ocumbo’s, cujas áreas podem chegar a 3000
metros quadrados e onde se cultivam diversos produtos e árvores de fruto). Na Lunda Sul, apenas
na comunidade de Dala Velho se encontram árvores de fruto e em Muazaza e Muatchicuco
cultiva-se milho e tabaco nos tais espaços. No Uíje, a disposição das casas, fruto do sistema de
concentrações levado a cabo pelas autoridades coloniais para isolar as populações dos
guerrilheiros dos movimentos de libertação, não permite a existência de lavras entre as
residências. Em várias aldeias há arruamentos ao longo dos quais se dispõem as casas, noutras as
construções não obedecem a qualquer critério de arrumação.
3.2.6. Em todas as aldeias, sem excepção, os entrevistados revelaram que no tempo colonial
haviam conhecido certos níveis de prosperidade. Deduz-se que tais opiniões tenham respaldo no
facto de, em maior ou menor grau, todas elas terem sido fustigadas fortemente pela guerra e suas
incidências directas (mortes, raptos, deslocações, saques, perdas de animais e culturas, destruição
de casas e descaminho de apetrechos domésticos), mas também pela afectação dos seus modos de
vida e de produção, desarticulação dos mercados, desaparecimento ou fragilização dos serviços a
que tinham acesso14
. Isso foi muito mais evidente no Huambo, onde o grau de afectação pela
guerra foi inequivocamente superior e os níveis de pobreza são mais chocantes.
Na Lunda Sul, uma província “esquecida”, foi importante constatar que as populações têm uma
representação curiosa sobre a cultura do arroz. De cultivo obrigatório até ao início dos anos 60, o
arroz foi sendo apropriado pelos Cokwe e tornou-se uma fonte de rendimento importante e um
notável factor de ligação ao mercado, o que é evocado por alguns historiadores como um
indicador da excelente capacidade destas populações se adaptarem a novas situações15
.
No Uíje, as pessoas não deixam de comparar a sua situação actual com os tempos áureos do café,
o que é possível deduzir pelo tipo de infraestruturas – na maior parte dos casos em adiantado
estado de degradação ou inoperantes – que ainda se notam nas aldeias, tais como abastecimento
de energia eléctrica, abastecimento de água por vezes canalizada, armazéns e equipamentos de
cooperativas de beneficiamento do café16
.
Foi importante constatar também que, apesar das perdas e mágoas que tiveram de enfrentar, os
respondentes valorizam os aspectos positivos da independência como a liberdade, a dignidade, o
fim do trabalho obrigatório e dos impostos injustos e, principalmente, a recuperação da terra que
havia sido usurpada pelos colonos.
14 De acordo com um diagnóstico realizado em 1998 pela FAO e pelo PAM em que o coordenador da equipa deste estudo
colaborou, havia aldeias no Uíje em que alguns habitantes chegaram a produzir no tempo colonial mais de vinte toneladas de café
comercial, o que suplantava a produção de muitos empresários portugueses. Durante a pesquisa agora realizada, um entrevistador
revelou que chegou a possuir 50 trabalhadores permanentes na sua propriedade. 15 De acordo com a historiadora Ana Paula Tavares, que tem em curso uma pesquisa para dissertação de uma tese de
doutoramento sobre Memória, Representação e Identidade entre os Povos da Lunda e Cokwe. 16 Um indicador disso é o facto de, na maioria dos casos, os informadores valorizarem os serviços que as associações de
camponeses e as empresas do Estado prestavam nos anos 70 e início dos 80, quando a guerra não eram tão intensa, e que se sabe
que era bastante frágeis e limitados.
18
3.2.7. A religião e a presença das igrejas cristãs constituíram, desde há muito, um elemento
importante na vida das populações e na influência do seu modo de vida, não só pelas mudanças
sociais e culturais provocadas, mas também pela oferta de serviços, principalmente no domínio
da saúde e da educação. Os seus efeitos junto das populações têm sido demonstrados em vários
textos e o Uíje e o Huambo constituem bons exemplos disso17
. Durante o estudo foi possível
confirmar tal influência em todas as comunidades, incluindo na Lunda Sul onde foi sempre
menos significativa. A sua importância está patente na alteração de hábitos e costumes e de
normas sociais, nas formas de exercício de vários tipos de poder, mas também no acesso a
serviços, hoje quase reduzidos à educação por razões várias. No Huambo não se encontrou entre
os entrevistados ninguém que não professasse uma religião cristã, ao contrário da Lunda Sul,
onde o número de não cristãos tem certo significado, enquanto que no Uíje, como adiante se verá,
é comum encontrar situações em que a convivência de práticas religiosas cristãs e animistas é
usual e assumida.
3.2.8. Para além das igrejas, a presença e influência de outras organizações ou instituições
estranhas às comunidades não tem muito significado. O vazio por parte das instituições do Estado
é notório e a sua presença quase se reduz aos professores que dão aulas em situações por vezes
penosas, dada a falta de instalações e equipamentos. Apenas em duas aldeias do Huambo
(Cassoco e Chiteta) foi possível encontrar infraestruturas construídas pelo Estado angolano após a
independência. Apenas em Chiteta existe uma escola do 2º nível. A falta de escolas deste nível
foi considerada – a par do autoritarismo dos mais-velhos e das “invejas” –, a principal razão de
abandono das aldeias pelos jovens, que saem à procura de oportunidades para estudar ou
conseguir emprego. Postos de saúde funcionais apenas se encontraram em quatro aldeias (duas no
Huambo e duas no Uíje). A existência de serviços de assistência ou extensão agrícola é
praticamente nula ou não se notam os seus efeitos em todas as aldeias. A presença de ONGs é
significativa nas aldeias do Huambo, mas rara na Lunda Sul e no Uíje, o que em parte é explicado
pela gravíssima situação de pobreza na primeira província.
3.2.9. O MPLA é o único partido presente com as suas estruturas e organizações em todas as
aldeias estudadas. A sua influência na vida comunitária é notória e em muitos casos os seus
responsáveis locais integram as instituições comunitárias “tradicionais”, como os conselhos de
apoio aos sobas. Em certas circunstâncias fica-se na dúvida se os responsáveis locais do MPLA
integram tais conselhos pela influência que o partido tem ou se, pelo contrário, eles são indicados
para o partido pelo prestigio e papel que desempenham na comunidade como forma de garantir
fidelidades. A influência do MPLA é ainda complementada pelo prestígio da OMA no seio das
17 Ver por exemplo o texto de Maria da Conceição Neto sobre a influência das missões no Planalto Central, citado na bibliografia.
Caixa n° 1
Um testemunho no Uije
“Depois veio o contrato, os portugueses receberam as nossas matas com o café lá plantado,
muitas vezes o povo ia à Administração receber o contrato na secretaria e calhava nas suas
próprias terras, as pessoas eram obrigadas a abandonar as suas lavras para irem trabalhar as
lavras dos portugueses, o branco pagava ao administrador pelas pessoas que no final do contrato
tinham um dinheirinho que não chegava para nada, porque ainda era preciso pagar os impostos.
Em condições iguais nós ganharíamos mais porque nós dirigimos e trabalhamos, enquanto que o
branco limitava-se a dirigir, não trabalhava só nos mandavam e se aproveitaram disso”.
Testemunho de um entrevistado no Uije.
19
mulheres, como instituição que zela pelos seus interesses e prima pela sua defesa. A presença de
outros partidos é quase insignificante e reduz-se à UNITA em dois casos (Chiteta no Huambo e
Kivita no Uíje), ao PRS (em Dala Velho, Lunda Sul) e à FNLA e PDP-ANA (em Kivita, Uíje).
Kivita foi a única comunidade onde se registou a existência de mais de dois partidos.
Exceptuando o caso de Chiteta no Huambo, a influência dos partidos, que não o MPLA, nas
comunidades é insignificante, mas também vale dizer que não se identificou nenhum problema de
coabitação entre eles.
3.2.10. As dinâmicas comunitárias constituem, frequentemente, efeito da acção de alguns
sistemas-interventores, tais como as associações de camponeses e grupos de senhoras. Contudo,
foi possível identificar algumas delas que são resultado de verdadeiras iniciativas das
comunidades, de que são exemplo a criação de um grupo comunitário para construção e
utilização de uma barragem em Cassoco (Huambo), a organização do serviço de limpeza da
aldeia de Muatchicuco (Lunda Sul) e a gestão comunitária de várias aldeias do Uije. Mas também
há iniciativas individuais, como, por exemplo, em algumas aldeias do Uije onde há geradores,
lanchonetes, televisores e vídeos, um sinal de mudança inequívoco.
3.3. As formas de organização social e as instituições do poder tradicional e sua transformação “Os portugueses receberam terras à força, é verdade, mas houve muita cumplicidade das autoridades
locais, porque uma visita só vê o demónio se o dono da casa lhe mostra” - frase dita num grupo focal
em Kalumbo, Uíje.
Apesar de se encontrarem, em certa medida, algumas características de base comuns, as
diferentes comunidades estudadas apresentam especificidades que são o resultado das suas
dinâmicas próprias e, também, das diferentes influências e pressões a que têm estado sujeitas,
principalmente a partir da implantação militar, administrativa e económica dos portugueses no
todo do território angolano que se consumou no início do século XX. É sobre esta matéria que
trata essencialmente esta secção.
A força de penetração da sociedade englobante produz, normalmente, rupturas nas comunidades
camponesas, a que se seguem, frequentemente, novos equilíbrios gerados pela força de
resistência de tais comunidades. Tais equilíbrios, que, consoante os casos, podem ser mais ou
menos dinâmicos, acabam por traduzir situações heterogéneas, em dependência do grau de
penetração da sociedade envolvente e suas solicitações e do grau de resistência e das dinâmicas
inerentes às próprias comunidades. Nos casos em estudo, a aceitação de novos valores veiculados
pela sociedade envolvente é facilitada porque constitui um meio de integração dos locais na
sociedade dominante (quer a colonial, primeiro, quer a do pós-independência, mais tarde) e de
partilha do poder que lhe é inerente. Importa, pois, reter alguns aspectos da organização social e
do poder nestas comunidades e as suas relações, para melhor se entenderem as suas
representações sobre a terra, de que se falará mais à frente. O destaque dado ao Huambo justifica-
se porque foi a província que mereceu estudo mais aprofundado.
3.3.1. No Huambo, a organização social e as instituições do poder a nível das comunidades
estudadas, e com maior incidência em Cassoco e Cassoma, experimentam um processo de
mudança social profunda, que começou com a ocupação efectiva da região na época referida e
que foi acelerada pela presença das missões cristãs e com a construção do Caminho de Ferro de
Benguela (CFB)18
. Tal processo de mudança resulta da inserção dos camponeses num complexo
cultural diferenciado, mas neste caso isto é particularmente relevante pelo facto de tal mudança
ser intensa e processar-se num período de tempo relativamente curto. Isto terá sido possível,
18 Ver Neto, Maria da Conceição, obra citada.
20
talvez, pela instabilidade económica e social vivida na região após a derrota militar com os
portugueses e com o fim do tráfico de borracha por volta de 1913, o que fez com que os
Ovimbundu perdessem para os portugueses o domínio do comércio na região.
O processo de mudança social nas comunidades estudadas no Huambo está patente:
Na erosão do chamado poder tradicional e no desaparecimento de outras instituições
sociais e políticas;
Na perda progressiva do poder pelos chefes “tradicionais” em favor de instituições
“modernas” como o Estado, as igrejas, os partidos políticos, as ONG, as novas
organizações comunitárias que começam a surgir (associações camponesas, núcleos
comunitários e de senhoras, comissões de pais, grupos de água e saneamento, etc);
Na diminuição da influência do poder mágico-religioso e dos “mais-velhos”
principalmente sobre os jovens, que procuram escapar a tais poderes abandonando as
aldeias pelas mais diversas razões (serviço militar, negócios, emprego);
No aumento, lento mas progressivo, do protagonismo das mulheres e jovens na vida
comunitária;
No aparecimento de comportamentos mais individualistas e menos solidários entre os
membros das comunidades;
Na perda da importância da família extensa a favor da família nuclear e do individuo;
Na forma de casamento, em que o “tradicional” dá lugar ao religioso, e no sistema de
herança, em que o matrilinear é substituído progressivamente pelo patrilinear19
;
Nas alterações dos sistemas produtivos e de posse e uso de terra, como adiante se verá.
Porém esse notável processo de mudança social não se oferece sempre com o mesmo grau de
intensidade. Cassoco e Cassoma são, de longe, as aldeias em que o quadro de transformações é
mais radical. A explicação pode ser encontrada numa maior influência dos factores de pressão
anteriormente referidos e numa maior inserção na economia de mercado no passado colonial, mas
também na continuidade do mesmo tipo de pressões no período pós-independência, pelo facto de
tais comunidades terem ficado na área de influência do Governo durante quase todo o tempo de
duração da guerra civil. Noutro extremo situa-se Chiteta, onde o peso das instituições do poder
“tradicional” e do poder mágico é muito maior, apesar de registarem idêntico nível de pressões e
de mudança nas outras vertentes. Aqui, a justificação pode ser uma maior exposição à influência
do poder da UNITA durante vários anos, que, como se sabe, geria estes aspectos relacionados
com o poder “tradicional” de forma diferente da do Governo nas áreas sob seu controle.
Das instituições “tradicionais” que sobreviveram – embora modificadas – é de referir em
primeiro lugar o osongo, clã ou família extensa, não pelo que ele representa em termos de
parentesco, mas pelo significado que hoje tem a nível de organização da vida da aldeia. Com
efeito, no passado as residências nas aldeias eram construídas em espaços de afinidade de
parentesco, ou seja, as pessoas do mesmo osongo viviam num determinado “bairro” sob a
autoridade do “mais-velho” da família. Mais tarde, o tipo de afinidade passou a ser de ordem
religiosa. Hoje, isto só se mantém para algumas situações, e o osongo tornou-se uma unidade
territorial e administrativa descentralizada em relação ao soma (soba) e de menor complexidade,
onde a chefia é determinada pelo habitante mais antigo.
Outra instituição sobrevivente e de grande importância é o onjango, um conselho constituído por
mais velhos ou notáveis, hoje também integrado por alguns jovens e, em casos raros e eventuais,
por mulheres, que funciona como órgão de consulta do chefe e de moderação do seu poder mais
ou menos autoritário. O seu prestígio e influência são reduzidos em Cassoco, mas muito
19 A mudança não é taxativa. No Etuko, por exemplo, o actual sekulu herdou o poder de um tio seu que ainda está vivo.
21
acentuado em Chiteta – talvez pelas razões já avançadas em parágrafo anterior –, onde os
membros do onjango ainda são conhecidos pelos antigos títulos-função, de acordo com os
diferentes papéis que desempenham, o que hoje já é raro noutras comunidades. O onjango
também funciona como tribunal (e nesse caso muda de designação para elombe) vocacionado
para a gestão de uma justiça mais preventiva do que repressiva, para a solução de diferentes tipos
de conflito, quer se trate de pequenos roubos ou adultérios, quer de problemas de poder ou
conflitos de terras, podendo existir em diversos níveis ou instâncias, desde o osongo à ombala,
passando pelo imbo (aldeia normal). O onjango ainda detém alguma importância no processo
educativo dos jovens, embora também exerça um papel negativo sobre eles, na medida em que
procura condicionar, por vezes, a sua liberdade individual e a mobilidade social.
Sobrevive também, em parte, o poder do soma inene (ou soba grande) que se estende por uma
unidade territorial e político-administrativo relativamente grande que é a ombala (que no
Bailundo ainda é diferenciada entre grande e pequena); do soma (soba) que tem uma área de
jurisdição menor, mas que geralmente é integrada por um conjunto de aldeias; e do sekulu, que
normalmente se restringe a uma aldeia. Embora o seu poder económico esteja muito afectado
pela perda progressiva do poder sobre a terra, os chefes ainda mantêm algum ascendente sobre os
seus súbditos enquanto peça importante da regulação social e representam as respectivas
comunidades perante estranhos, sejam elas do Estado ou de quaisquer outras instituições. Em
algumas comunidades do Huambo e do Uije os sobas dispõem de uma espécie de milícia
(akuendjevelombe no Huambo e masalali malu yalue ou masoladi ma hata no Uije, conforme são
exclusivas do sobado ou da aldeia).
As informações recolhidas e outras disponíveis sobre o poder dos soma’s (literalmente traduzido
por “chefes”) e sobre as relações dentro das ombala’s e das aldeias são confusas e contraditórias.
Isto pode ter a ver com o elevado grau de perturbação e perplexidade produzido por influências
diversas (portugueses, igrejas, Governo, MPLA, UNITA, ONGs) ao longo de muitas décadas,
mas também com a intenção deliberada das pessoas manterem alguma opacidade sobre as
estruturas e relações a fim de preservá-las de agressões e pressões externas, na medida em que
isso ainda for possível. Um dos aspectos mais contraditórios diz respeito à forma como, em caso
de sucessão, os chefes são escolhidos. Para a equipa do estudo ficou claro que não há uma regra
única, que tudo depende de cada situação e do respectivo contexto, e que tanto é verdadeira a
prática de escolha entre os herdeiros da mesma linhagem, como a da aceitação das pressões
políticas exteriores às comunidades para designação de um certo “candidato”, e até a realização
de eleições ou, pelo menos, de discussões ou debates sobre dois possíveis candidatos. Nos casos
em que a realização de eleições foi dada a conhecer à equipa (tanto no Huambo como no Uije) os
derrotados foram investidos no cargo de adjuntos ou acomodados noutra situação de destaque.
Todavia, no caso de Chiteta, outros informadores revelaram outras versões dos factos. Fica-se
com a convicção de que é necessário aprofundar a pesquisa sobre esta questão, e que o assunto
deveria ser retomado, quer pelas instituições oficiais, quer pelos centros de pesquisa
independentes que, felizmente, começam a surgir no país.
Para uma tentativa de compreensão da organização territorial e do poder – e com as reservas
decorrentes do que se afirmou no parágrafo anterior – apresenta-se o quadro seguinte, que
pretende estabelecer as relações possíveis entre o território e o poder, por um lado, e o sistema
endógeno ou “tradicional” e o oficial por outro:
22
Quadro IV - Relação entre autoridade e território nas comunidades do Huambo
Designação oficial da autoridade Designação local da autoridade
(em umbundu)
Território onde se exerce
Soba grande ou regedor Soma inene Ombala
Soba Soma Imbo linene
Sekulu Sekulu Imbo
? Usongui yo songo Osongo
A nível da família e das formas de herança, as alterações no Huambo são significativas e devidas
às influências cristãs. Hoje, a família nuclear, a monogamia e o sistema de herança por via
patrilinear são comuns e constituem a regra. Mesmo quando a tradição procura afirmação, há
mecanismos de recurso para fazer valer as novas vontades. Um exemplo muito frequente é a
doação de bens por parte de um pai aos seus filhos ainda em vida para evitar que eles possam ser
usurpados por sobrinhos.
Em relação às práticas de feitiço e “invejas”, também se nota uma mudança importante em
Cassoco e Cassoma, principalmente no seio dos jovens, mas já na Chiteta, principalmente, essas
práticas são ainda muito marcantes na vida das comunidades, como já se referiu.
A mulher tem vindo a protagonizar mudanças no seu papel a nível da família e da vida
comunitária, embora tal processo seja muito lento e precário. Os aspectos mais importantes têm a
ver com o seu envolvimento no mercado – quase em igualdade de circunstâncias com o homem –
na vida das associações e dos núcleos comunitários – onde se nota alguma preocupação com a
afirmação da sua identidade e um aumento gradual da participação nos processos de tomada de
decisão – e nas relações com os actores externos à comunidade (partidos políticos, igrejas,
ONGs), factos que propiciam contactos e informação úteis ao processo de conquista de novos
papéis e de relações de género mais equilibradas. Em algumas comunidades, a mulher participa
no onjango, embora de forma pontual e para tratar de assuntos de menor importância, mas já não
pode ser de desprezar o facto de, pelo menos em duas comunidades, se haver constatado que uma
ou outra mulher havia comprado terra com os seus próprios recursos.
As mudanças provocaram também uma estratificação social mais nítida, apesar dos actuais níveis
de pobreza. Em Cassoco e Cassoma e regiões vizinhas foi possível identificar três níveis bem
distintos: os “ricos”, que se assumem como autênticos empresários, com ligações às cidades e
seus mercados – incluindo os de Benguela e Luanda –, cujas lavras (parcelas) ultrapassam no seu
conjunto, por vezes, os 20-30 hectares, recorrem a mão de obra remunerada de forma mais ou
menos regular e têm algum equipamento patrimonial (alguns têm viaturas de aluguer para
transporte de pessoas e mercadorias); os “remediados”, que têm menos terras e empregam
trabalhadores, prestam serviços com as suas charruas de tracção animal sob a forma de aluguer e
estão também ligados aos mercados, mas circunscritos fundamentalmente ao Huambo; e
finalmente os “pobres”, mulheres sózinhas, velhos ou homens pouco ou nada inseridos no
mercado, que não têm recursos para além da terra – por enquanto – e, por vezes, um número
muito reduzido de animais de pequeno porte. Nas restantes comunidades – mais desmunidas –
encontram-se actualmente quase que apenas pessoas inseridas nos dois últimos níveis, mas foi
suficientemente revelada a forte probabilidade de, a curto prazo, emergirem pessoas que, graças à
poupança ou a “negócios” praticados por si ou por familiares em Luanda, se venham a tornar
também empresários do primeiro nível de estratificação. Isso pode acontecer também como
resultado do negócio do carvão que proporciona rendimentos anormalmente elevados, como
adiante se verá.
23
3.3.2. – Na Lunda Sul, o processo de mudança social não provocou tanta perturbação nas
instituições comunitárias, embora sejam notórias alterações nos usos e costumes inerentes à
cultura Cokwe, principalmente quando se estabelecem relações mais próximas com a cidade de
Saurimo. Na base da organização social encontra-se uma instituição semelhante ao osongo do
Planalto Central designada por mianangana, enquanto o onjango tem correspondência no cota
(lê-se tchota), sendo muito importantes os papéis diferenciados deste: apoio à gestão comunitária,
resolução de conflitos, educação de jovens para a vida, aconselhamento à produção. As mulheres
não têm acesso ao cota. Na área da povoação (ou regedoria, correspondente à munganda em
termos grosseiros), o poder é exercido pelo muanangana (soba grande) aos quais se subordinam
os mwana wa cihunda (soba) e os muhatu, cujos territórios de jurisdição são para os dois casos a
cihunda (aldeia), de maior ou menor relevância. Os mwata’s (chefes) são, em qualquer nível, os
elementos de ligação com os antepassados e representam-nos na terra, mas é notório que o seu
poder autoritário tem vindo a ser moderado em relação ao passado. Também neste caso se
poderia fazer a correspondência (com as mesmas reservas) no quadro que se segue:
Quadro V - Relação entre autoridade e território nas comunidades da Lunda Sul
Designação oficial da autoridade Designação local da autoridade
(em cokwe)
Território onde se exerce
Soba grande ou regedor Mwnangana Munganda
Soba Mwana wa cihunda Cihunda
Sekulu Muhatu Cihunda
? ? Mianangana
O conceito de família está muito ligado à matrilinearidade, embora se encontrem processos de
mudança, a poligamia é assumida mas pouco praticada e o poder do feitiço é menos forte do que
seria de imaginar, tendo em conta os outros aspectos e outras informações20
.
Também na Lunda Sul, por influência das igrejas e dos partidos políticos e do maior acesso à
informação, é assumido hoje que a mulher participa mais na vida comunitária do que no passado
e, deste modo, está a despertar para a defesa de alguns dos seus direitos. Isto não impede que
continue a prevalecer a ideia de que a “mulher só vê e alcança aquilo que lhe é permitido por
estar empoleirada no ombro do marido”.
Na Lunda Sul, a população é globalmente menos pobre do que no Huambo porque o acesso aos
recursos é mais equilibrado, principalmente em termos de terras e floresta, embora não se
encontrem os empresários que lá aparecem. Contudo, foi possível identificar famílias que
possuem mais recursos, através de poupanças conseguidas a partir das ajudas humanitárias ou
porque iniciaram mais cedo e com mais dinamismo o seu processo de recuperação da produção
agrícola. Do mesmo modo, alguns profissionais (como por exemplo as parteiras) conseguem
alguns rendimentos com os serviços que prestam, a níveis muito reduzidos. É isto que permite a
algumas pessoas empregarem alguma mão-de-obra eventual. Estes, os membros do MPLA, os
professores, os catequistas e outros membros do cota são os que se encontram no topo da
hierarquia social e têm poder político.
3.3.3. Nas comunidades estudadas no Uíje, o processo de mudança social é igualmente profundo.
Pelo que foi entendido pela equipa, está-se perante uma espécie de sincretismo cultural, uma
amálgama de culturas diferentes cujos elementos coexistem, por vezes de modo contraditório, em
termos culturais, sociais, religiosos e de organização do poder.
20 Na província do Moxico, por exemplo, sabe-se que este fenómeno tem tido um incremento notório nas últimas décadas,
principalmente nas cidades. É possível que nas comunidades estudadas não tivesse havido abertura suficiente para se falar do
assunto, que se reveste de delicadeza, principalmente quando tratado com estranhos.
24
A base da organização social das comunidades no Uíje acompanha o que acontece geralmente na
área sociocultural kongo e está bem representada pela kanda, clã ou família alargada, que é um
conceito muito ligado à terra no sentido agrário e que, ao contrário do que se viu com o osongo,
permanece uma instituição influente no sistema de organização e regulação social. O conselho,
designado localmente também por sobado, correspondente ao onjango, apresenta, por sua vez,
aspectos mais alterados, tanto no que respeita à composição como às funções, não havendo um
padrão comum às comunidades contactadas. Ao contrário do Huambo e da Lunda Sul, ninguém
utilizou a palavra mbanza como unidade territorial correspondente à ombala ou à munganda, mas
todos usam o termo regedoria. Esta é o resultado de uma série de transformações que ocorreram
com as mbanza’s ao longo de muitas décadas e hoje há uma redefinição dos espaços de tal modo
que cada município, independentemente da sua dimensão e de outras características, está dividido
em 12 regedorias. Em cada aldeia há “bairros” que representam também unidades administrativas
descentralizadas, que gerem aspectos importantes da vida comunitária e cujos responsáveis estão
frequentemente representados nos sobados da respectiva aldeia.
No Uíje não é possível generalizar as formas de organização do poder, pois cada regedoria ou
aldeia (hata) apresenta as suas próprias especificidades no que respeita às formas de escolha ou
eleição dos chefes. Pode dizer-se, no entanto, que a nível de cada regedoria e aldeia o poder é
exercido por uma “presidência”, espécie de triunvirato ou troika constituído pelo regedor (ou
soba, se for na aldeia), pelo seu adjunto e por um sekulu. Este representa no conjunto o poder
“tradicional”, dos antepassados, nalguns casos designado por insadi wa hata ou por mbanda
mbanda e faz a conexão com o poder “moderno”e a cultura “tradicional”. Sobre a forma de
acesso ao poder, as informações recolhidas e outras disponíveis permitem concluir – ainda que
com certas reservas – que mais importante que ser de uma linhagem dominante (dos chefes), deve
um candidato ter um determinado perfil que todos são capazes de definir: pessoas com juízo,
carisma e prestígio. Em muitos casos o soba e outros elementos do “triunvirato” podem ser
eleitos para um mandato com duração estabelecida (três ou cinco anos, em regra).
Caixa nº 2
Elegendo o soba e o sekulu
Na eleição do sekulu e do soba toda a população participa. O processo de eleição é precedido de uma
reunião entre mais velhos (homens e mulheres) da aldeia. Nesta reunião, os presentes fazem o balanço do
trabalho das pessoas e decidem pela substituição e/ou recondução da direcção da aldeia. Fazem as
escolhas e submetem a sua decisão e aprovação pelo povo. Em princípio, não existem diferenças entre os
processos de eleição do soba e do sekulu. O escolhido nunca participa na reunião de escolha.
Também aqui é possível apresentar o quadro de correspondência entre os sistemas endógeno e
exógeno em termos territoriais e de autoridade, mas sempre com as mesmas reservas:
Quadro VI - Relação entre autoridade e território nas comunidades do Uíje
Designação oficial da autoridade Designação local da autoridade
(em kicongo)
Território onde se exerce
Soba grande ou regedor Mweni-a-Mbanza Mbanza
Soba Soba Hata
Sekulu Mfumu-a-hata Kibelo
25
A estratificação social no Uíje não corresponde, hoje, a uma diferenciação em termos de riqueza
actual, mas sim de bens, prestígio e capital social forjados no tempo áureo da actividade cafeícola
e no papel das respectivas kanda’s no exercício do poder ao longo dos tempos. Porém, os níveis
de produção e comercialização de mandioca e de feijão começam a constituir um factor de
diferenciação pela possibilidade de poupança e acesso a bens de capital ou prestígio (geradores,
televisores, vídeos). A entreajuda ainda se faz sentir nos trabalhos agrícolas e noutras actividades.
3.4. A representação social da terra
“Esta terra é nossa porque a herdamos do soma Chiteta, o fundador, que quando chegou aqui não
encontrou ninguém. Ele é o nosso pai e todo o mundo sabe disso e pode testemunhar” – palavras de um
entrevistado na Chiteta.
Por representação social pode entender-se uma forma de pensamento social e prático orientada
para o domínio do meio social, material e ideal que permite o entendimento das visões e
percepções dos actores em relação a determinados processos sociais condicionados pelo contexto
onde a representação emerge.21
Quando se fala de representação social da terra refere-se, pois, a
um saber do senso comum que, neste caso, permite compreender as relações que o homem, em
contextos diferenciados, estabelece com a terra e condicionam os sistemas de produção e os
modos de vida.
O estudo procurou captar as percepções e visões dos membros das diferentes comunidades em
relação à terra de acordo com os contextos em que se inserem. No Huambo, possivelmente como
resultado das profundas transformações sociais verificadas ao longo de todo o século XX, já
abordadas, do aumento da pressão demográfica e da instalação de propriedades agrícolas
pertencentes a europeus, a terra foi-se tornando um bem raro e de disputa enquanto que, ao
mesmo tempo, emergia nas comunidades um novo tipo de elemento social: o empresário agrícola
autóctone que, inserindo-se gradualmente numa lógica de mercado, aspira a um estatuto
semelhante ao dos agricultores portugueses que lhes serviram – assim como aos seus
antepassados mais próximos – de referência. Embora vivendo no espaço físico da aldeia, ele
encontra-se funcionalmente num outro espaço social, conformado pelo mercado e pelas relações
que vai estabelecendo com as instituições, e torna-se relativamente independente nos
rendimentos. O seu papel na comunidade permite, entre outras coisas, oferecer empregos
permanentes ou eventuais aos grupos mais pobres. Embora ainda em número reduzido, vários
deles já possuem títulos individuais de uso e aproveitamento a coberto da lei 21-C/91.
Isto provoca uma profunda alteração na visão que se tem da terra e na percepção do seu valor
utilitário. A terra está a deixar de ser vista estritamente no campo das representações simbólicas e
dos sistemas de valores no quadro de uma determinada filosofia de vida e começa a ser encarada
gradualmente como um factor de produção – e isto altera as regras de acesso e as formas de uso,
de posse ou propriedade e de transmissão intervivos e por herança, como se verá na secção
seguinte.
Nos anos 60, de acordo com a MIAA, reconhecia-se no Huambo – e na zona 24 em geral – a
existência de dois subsistemas de utilização da terra: um “estabilizado”, com as parcelas
vinculadas aos indivíduos ou às famílias e que compreendia as terras de baixa (onaka e ombanda)
e os ocumbo’s; e um outro não “estabilizado”, sem vinculação definida, correspondendo a lavras
da encosta ou do alto (epia, osenda). O estudo revelou que actualmente todas as lavras estão
“estabilizadas” e vinculadas22
, incluindo as reservas florestais, embora no caso de Sailundo Velho
21 Conforme Denise Jodelet, citada por Nelson Lourenço. Ver bibliografia. 22 Conclusão idêntica encontra-se no estudo sobre Comunidades e Instituições Comunitárias no Huambo, realizado pelo ADRA e
Save The Children Fund-UK em 1997 (ver bibliografia).
26
isso não tenha ficado completamente claro. Em Cassoco e Cassoma, 52% dos entrevistados têm
reservas, enquanto no Etuko a percentagem baixa para 20. O direito geral de utilização da terra
deixou de existir e em seu lugar, em todo o tipo de parcela, incluindo as reservas (salvo uma ou
outra excepção), surgiu o direito específico. Por isso, nas comunidades estudadas no Huambo
não se pode falar de terras comunitárias mas sim de propriedade privada, ainda que do
ponto de vista jurídico-legal isto não seja totalmente verdadeiro ou reconhecido. Tal não impede
que qualquer comunidade, no seu conjunto, assuma a propriedade ou a posse da terra que lhe diz
respeito e que, como se viu na secção 3.2.4., está sempre bem identificada.
Na Lunda Sul, as representações são de outro tipo. Nas comunidades estudadas está presente
uma visão metafísica do cosmos, que atribui a propriedade da terra tanto aos vivos como aos
antepassados23
e ainda a Deus (Nzambi), cabendo aos muata’s a sua gestão. Todavia, uma
pequena nuança é introduzida por alguns muata’s que se aproveitam de tal representação para
assumirem a posse efectiva da terra no sentido “moderno” do termo. Isto implica a existência de
um sistema de propriedade comunitária da terra na Lunda Sul, ao contrário do que se viu no
Huambo, em que o direito geral de utilização é o único reconhecido, o que significa que nenhum
membro da comunidade é “dono“ de qualquer parcela, podendo apenas utilizá-la por um certo
período, não lhe sendo garantida qualquer relação privilegiada com ela. O conceito de vínculo
individual ou familiar não tem aqui qualquer significado, mas aqui também a comunidade assume
a “propriedade” da terra a ela afecta no seu todo. Contudo, em alguns casos (poucos), as famílias
voltaram a ocupar as mesmas parcelas de antes das deslocações, o que pode ser um indício do
início de processo de mudança.
No Uíje, a situação é mais complexa. Como se viu, o conceito de kanda tem implicações no
regime de acesso à terra, e por isso esta não é pertença apenas de um indivíduo mas sim de todos
os membros do clã ou linhagem, o que implica também os antepassados A cultura do café
introduziu um factor de mudança nas relações dos autóctones com a terra, isto é, na sua
representação social. Nos anos 60, também no Uíje se reconhecia a existência de dois
subsistemas: um, sem qualquer vinculação das famílias às parcelas cultivadas, normalmente com
culturas alimentares anuais ou bianuais (caso da mandioca) que, por serem conhecidas na altura
como géneros “pobres”, não conferiam valor à terra; e outro, com as parcelas bem vinculadas,
onde se desenvolviam as plantações de café. Isto permitia que os camponeses com três ou mais
hectares de café pudessem ser considerados “agricultores”, isto é, empresários, dentro de um
quadro sociológico e económico similar ao que foi descrito para o Huambo e fez com que
tivessem surgido, os primeiros agricultores negros com títulos de propriedade, principalmente a
partir da década de 60, a coberto da lei de 1961, conhecidos no Uíje como “demarcantes”, ainda
que em número reduzido. O aumento da pressão demográfica, associado à ideia de recuperação
da terra dos antepassados que havia sido usurpada pelos colonos e ainda a valorização das
culturas anteriormente consideradas “pobres” provocaram mudanças nas visões e percepções,
mas as mudanças não são uniformes – e isso foi confirmado pelo estudo24
. Nas aldeias
estudadas no município do Uíje há ainda terras comunitárias e nas do Púri não, o que parece
um paradoxo. Não foi possível perceber a razão directa desta diferenciação, mas ficou a ideia de
que isto talvez seja o resultado da própria diversidade social, política e até cultural no Uíje e que,
se se tivesse conseguido pesquisar outros municípios ou situações, muito provavelmente o
confronto com as diferenças seria bastante maior. Tais representações têm depois efeitos nos
sistemas de herança e transmissão como se tratará já a seguir.
23 Em Muazaza os informantes referiram claramente que a terra pertence ao fundador (Muazaza), que terá morrido possivelmente
há mais de cem anos. 24 Em Kizemba, três entrevistados admitiram que o Estado “como Deus na terra”, pode tirar à terra das pessoas se entender que o
deve fazer.
27
3.5. O acesso à terra e sua posse, gestão e transmissão
“As terras são o único que nos resta depois de perdermos tudo na guerra”. “Quem não tem terra é como
quem não tem emprego”. Frases ditas por membros da comunidade do Km 25 (Huambo).
3.5.1. Em todas as comunidades estudadas, sem excepção, foi garantido que actualmente o
acesso à terra não constitui problema para os seus membros, quer se trate de residentes, quer
de ausentes, ainda que tal ausência tenha a duração de várias décadas25
.
As formas de acesso estão relacionadas com as representações das comunidades e das pessoas. A
mais comum é a herança, que se encontra em todas as comunidades estudadas. Contudo, ela não
se processa de forma linear. De um modo geral, são os filhos (o caso das filhas será tratado em
secção própria) que herdam ou, nas comunidades onde ainda prevalece o sistema matrilinear, os
sobrinhos, ou ambos. Os utentes, com muita frequência, fazem doação de terras aos presumíveis
herdeiros ainda em vida, não apenas para ajudá-los a começar o ofício de agricultor por conta e
risco próprios, mas também para evitar que os mecanismos tradicionais de atribuição de herança
– com os quais muitas vezes não estão de acordo – sejam desencadeados mais tarde em prejuízo
dos herdeiros que eles consideram, como se se tratasse de um testamento antecipado.
Depois da herança, a compra é a forma de acesso com mais significado. Porém, apenas em
Cassoco e Cassoma se pode falar verdadeiramente de um mercado de terras, ainda que informal26
.
Nas outras comunidades do Huambo, a compra e a venda são condicionadas por razões culturais
e de segurança. As pessoas não vendem porque querem preservar o futuro dos filhos e só o fazem
quando sofrem algum tipo pressão: económica (falta de recursos, necessidade de pagamento de
uma multa) ou jurídica (falta de aproveitamento, como se viu em Chiteta) ou simbólica (quando
aparecem as “invejas” e os feitiços). Os compradores são, geralmente, pessoas com recursos da
comunidade que utilizam as suas poupanças para criar capital fundiário ou “vientes” de outras
regiões que se queiram instalar, e o processo de negociação não envolve outras partes, nem
sequer os sobas, que apenas são informados para que fique “registado” de modo informal. Na
Lunda Sul, a terra é abundante e por isso não se coloca a questão: ninguém tem necessidade de
comprar ou vender. No Uíje, as coisas passam-se de modo diferente. A compra é possível mas
apenas se a sua posse resultou de outra forma de acesso que não a herança. Como o conceito de
kanda está muito ligado à terra, ninguém pode vender terrenos herdados porque eles não lhe
pertencem verdadeiramente, mas sim aos membros da kanda – vivos e antepassados. É possível
que este sistema ou mecanismo já esteja a ser alterado, mas isso não foi notado no estudo. No
Uíje, os “vientes” ou pessoas de outras regiões – caso evidente dos Ovimbundu que foram para lá
na época do contrato – não podem adquirir terra por compra, algo que permite reflectir sobre as
restrições da cidadania quando o direito costumeiro prevalece.
A ocupação livre já não se verifica no Huambo, é comum na Lunda Sul e é condicionada no Uíje
a certos terrenos (as “queimadas”) cuja propriedade ou posse é confusa. Aqui, em alguns casos
diz-se que um jovem pode ocupar terra livremente, desde que longe da aldeia (deduz-se fora do
território afecto à comunidade); noutros, refere-se que a ocupação dentro dos limites das terras
das comunidades é precária e temporária, apenas possível durante um ciclo de culturas não
permanentes. Em Kimalundo, por exemplo, 17% dos entrevistados declararam que ocuparam
certas parcelas de forma livre, mas eram, sobretudo, mais-velhos, o que pode significar que tal só
era possível no passado.
25 Em Kivita foi dito que as terras das pessoas que se refugiaram na RDC há cerca de 30 anos estão “guardadas” para que elas, ao
regressarem, não entrem em conflito com os que permaneceram. 26 Em qualquer das comunidades do Huambo constatou-se que a prática de compra e venda já é antiga, possivelmente de antes da
década de 60.
28
Quando não se herda e não é possível a compra nem a ocupação livre, só resta a cedência ou
empréstimo, com ou sem retribuição de alguma forma. Isto acontece quando um “viente”,
alguém que queira instalar-se na aldeia, procura obter terra para trabalhar enquanto não consegue
adquiri-la por compra. Contudo, o empréstimo é sempre condicionado pelo tempo e pelas
restrições no uso: não podem ser feitas benfeitorias de qualquer tipo (plantações, construções,
valas de irrigação e drenagem) e não pode haver transmissão, nem sequer por herança. Não se
registou entre os entrevistados nenhum caso de hipoteca ou qualquer outra forma de acesso.
Apenas em Kimalundo se constatou que 30% dos entrevistados tiveram acesso à terra sob a
forma de aluguer (empréstimo com retribuição). Em Samulondo (próximo de Saurimo) se
constatou que os deslocados pagam uma verba, quase simbólica, ao muata pela cedência de
terras, o que faz pensar na evolução dos costumes quando se está em situação de rarefacção da
terra. Estas foram, pois, as diferentes formas de acesso identificadas.
3.5.2. Também em relação à posse ou propriedade da terra é necessário recorrer aos diferentes
modos de representação social para se entenderem as formas de que elas se revestem em cada
caso estudado. No Huambo, o sentimento de posse ou propriedade privada é inquestionável e
decorre do direito específico de utilização e do correspondente vínculo estabelecido, incluindo as
reservas na maioria das circunstâncias27
. Não foi admitida por qualquer entrevistado a
possibilidade de um soba interferir na propriedade, podendo, pois, qualquer proprietário decidir
livremente o que fazer dela. Apenas na Chiteta se colocou uma excepção: o soba pode retirar a
terra a quem não a trabalha, porque é entendido que esta é uma norma fundamental numa região
em que a terra é um bem raro, mas isso não foi suficientemente confirmado e pode, ainda, ter
acontecido num determinado contexto. Mas foi também na Chiteta que um grupo focal (de “mais-
velhos”) informou que a comunidade tinha “cedido” ao Estado o terreno para construção de uma
escola do II nível28
. Na Lunda Sul, não se fala de posse ou propriedade privada porque a terra é,
toda ela, comunitária. No Uíje, a posse ou propriedade privada é admitida por todos, mas
condicionada nas situações em que a terra é herdada, pelo facto de se considerar que, nesta
circunstância, a verdadeira propriedade é da kanda, ou seja, é indefenida em termos de direito
positivo. Contudo, a equipa do estudo foi informada que nasce um mercado de terras à medida
em que “as pessoas vão escapando ao controle da kanda”. Ainda no Uíje, é confusa a posse ou
propriedade dos terrenos de “queimadas”, pois não ficou claro se se trata de terra vinculada ou
comunitária.
3.5.3. Quando a posse ou propriedade da terra é privada, a sua gestão é totalmente da
responsabilidade dos respectivos utentes. A gestão só é acometida aos regedores (sobas grandes),
sobas e sekulu’s quando a terra é comunitária, como acontece sempre na Lunda Sul e em algumas
crircunstâncias no Uíje. No que respeita às florestas, ainda que os espaços estejam vinculados, o
usufruto de certos bens continua a ser comunitário ou de “acesso aberto”, como é o caso das
lenhas, do aproveitamento de material de construção, da recolecção de frutos, cogumelos e
insectos – e isto acontece em todos os casos estudados29
. Por tal razão, a sua gestão global é da
responsabilidade dos chefes, tendo em conta os seus múltiplos usos e porque os benefícios são
diferenciados e há normas para a sua utilização ou exploração (como, por exemplo, que não
podem ser instaladas lavras ou ser fabricado carvão por estranhos). O mesmo acontece com a
água, cujo acesso é livre, tendo-se verificado apenas uma excepção no Uíje, quando a “fonte” se
27 Um entrevistado declarou na Chiteta possuir uma reserva com 25 hectares, o que é verdadeiramente notável. Note-se,
entretanto, que a propriedade das áreas florestais não está suficientemente bem definida. Em algumas comunidades a informação
obtida era contraditória. Se alguns respondentes diziam claramente que as reservas estavam vinculadas na sua totalidade, outros
referiam que a gestão da floresta pertencia ao soma, que zelava pelo cumprimento das normas da sua utilização. 28 No entendimento das pessoas não cabe que as terras que receberam dos seus antepassados pertençam ao Estado, porque para
elas o Estado é refém dos que o gerem, ou seja, dos governantes. 29 O mesmo pode acontecer com as pastagens. Sobre o assunto, ver também Júlio Morais Os Anteprojectos de leis de terras e do
ordenamento do território na perspectiva do meio rural, Seminário Terras e Direito da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto, Setembro de 2002.
29
encontra numa propriedade privada, isto é, quando o rio ou outro curso de água está dentro dos
limites de uma propriedade privada, o que representa um indicador claro da mudança no tipo de
propriedade.
3.6. Os casos específicos das mulheres, dos deslocados e dos desmobilizados
3.6.1. As unidades de produção são, regra geral, de carácter familiar, o que pode remeter a
questão específica das mulheres para o quadro da família. Todavia, há aspectos específicos e
delicados que é preciso ponderar. Em primeiro lugar, a questão da herança. De acordo com as
normas costumeiras em vigor em quase todas as comunidades estudadas, uma mulher não herda
dos pais porque se parte do princípio de que ela, ao casar, vai beneficiar da terra do marido.
Ainda que as normas prevejam reparações para o caso de ela permanecer solteira, muitos
entrevistados, principalmente no Huambo, afirmaram que as famílias acautelam os interesses das
filhas tornando-as herdeiras ou doando-lhes terra ainda em vida dos utentes. Do mesmo modo,
quando o marido morre, também de acordo com as normas costumeiras usuais, a família deste
procura ficar com a terra quando não existem filhos ou quando ela volta a casar. O acesso das
mulheres à terra é, pois, restringido (normalmente recebem parcelas mais pequenas do que
as dos homens) e precário e condicionado, porque só ficam com a terra em certas condições.
Paradoxalmente, foi possível identificar pelo menos duas mulheres em diferentes comunidades do
Huambo que adquiriam terras e apresenta-se a caixa nº 3 como exemplo, para se ter uma
dimensão do que se está a relatar. No Púri (Uije) também foi referido que as mulheres podem
comprar terra. Estes são aspectos a ter em devida conta na aplicação do direito costumeiro e que é
necessário rever.
* Equivalente a cerca de 200 dólares
** Um dia de charrua corresponde, aproximadamente, a ¼ de hectare.
3.6.2. Em quase todas as aldeias estudadas – salvo uma excepção na Lunda Sul (Samulondo) e
em todos os casos no Uíje, em que a deslocação se revestiu de formas diferentes – as populações
estiveram praticamente em situação de deslocadas por várias vezes e por tempo mais ou menos
longo. Nenhum entrevistado revelou a existência de qualquer tipo de descriminação ou de
conflito verificado na altura do regresso dos membros da comunidade. Isto demonstra que,
Caixa nº 3
Linda Nassussu, uma mulher de Cambongue-Caála
Nasci em 1949, na comuna do Chiumbo, município do Cachiungo, província do Huambo. Tive cinco
filhos, dois morreram. Estudei na missão Evangélica do Dondi de 1964 a 1967 e depois dei aulas
numa aldeia do Chiumbo. Devido à guerra, em 1983 vim para o município da Caála, porque já tinha
perdido o marido que foi na "guerrilha" e desapareceu em 1981. Quando cheguei na aldeia de
Cambongue, ombala de Mussili, me emprestaram terra para construir e trabalhar e comecei a dar
aulas, até consegui pagar quarto para o meu filho estudar na Caála e hoje tem o curso médio e me
ajuda muito.
Em 1996 comprei dois terrenos, um ocumbo e outro ombanda, este ano comprei uma lavra por 16 mil
kwanzas*. O primeiro terreno é para dois dias de charrua, o segundo seis e o terceiro sete* *. Tenho
também uma onaka de dois dias de charrua. Consegui no ano de 2003 comprar uma junta de bois,
com ela trabalho muitas lavras e tenho trabalhadores para sachar e lhes pago milho ou dinheiro (100
kwanzas/dia/pessoa). Também empresto ou alugo os bois. Tinha seis porcos, alguns morreram e
outros vendi, comprei uma carroça. Tenho seis galinhas e consegui cobrir a casa com zinco e telha.
Aqui nem tudo é fácil, ainda mais quando és mulher e de fora, existem invejosos, mas é preciso
trabalhar para que os meus filhos não passem por onde eu passei.
Agora fui escolhida para coordenadora da associação, é muito trabalho mas ganho conhecimentos e
ajudo as outras a se levantarem porque ainda estão muito em baixo.
30
quer o direito geral, quer o específico, são realidades bem concretas e que há modos e
mecanismos de regulação que velam pela aplicação dessa norma. Quem pretende instalar-se em
qualquer comunidade pode negociar com os chefes, embora corra sempre o risco de receber terra
de menor qualidade. Isso também aconteceu com as pessoas dessas mesmas comunidades quando
estiveram na condição de deslocadas durante o conflito armado30
. É possível que se pudessem
obter outros dados se se tivesse conseguido estudar a situação nos municípios de Maquela do
Zombo ou da Damba, onde a presença de regressados da RDC é mais significativa, embora em
número ainda reduzido, de acordo com fontes do OCHA.
3.6.3. Situação idêntica verifica-se com os desmobilizados. Nas comunidades estudadas, o
número de desmobilizados é relativamente reduzido, salvo na Chiteta (20% dos residentes) e no
Etuko, onde quase todos são oriundos das antigas Forças Militares da UNITA, e no Cassoco, em
número reduzido e onde a presença de ex-soldados das forças governamentais é mais
significativa. Não houve nenhuma evidência, durante o estudo, de qualquer tipo de
descriminação em relação aos antigos militares, o que não significa que isso não possa vir a
acontecer.
3.7. Os conflitos de terras e sua gestão
Quase todos os entrevistados de todas as comunidades garantiram a inexistência de
conflitos, dificuldades ou problemas no acesso à terra, fosse ela doada, herdada ou comprada,
ou desvalorizaram a sua existência. Os poucos conflitos relatados ocorrem principalmente no
Huambo, raramente no Uíje e nunca na Lunda Sul, o que está em correspondência com a menor
ou maior abundância da terra enquanto factor de produção ou de prestígio. Acontecem entre
pessoas da mesma família na altura da definição dos limites das terras recebidas por herança, ou
quando alguém se aproveita da ausência dos seus vizinhos ou qualquer outra oportunidade para
estender os limites das suas parcelas. Podem ainda ocorrer problemas ou conflitos entre mulheres
e os familiares dos respectivos maridos por ocasião de ausências prolongadas destes ou por
morte.
Não foram identificados conflitos entre comunidades vizinhas por disputa de limites. Como se
referiu em 3.2.4, os limites dos espaços pertencentes às comunidades são bem definidos e
conhecidos. Apenas no Uije se registou um conflito entre a comunidade de Kivita e uma que fica
próxima (Kibala), que já vem desde antes de 1961 e é relativa à disputa de um espaço onde os
membros desta última possam cultivar.
Não se registou nenhum conflito entre as comunidades e fazendeiros. No Huambo, apenas em
Cassoma e Sailundo Velho foram identificadas fazendas nas áreas afectas às comunidades. Na
primeira, há uma propriedade de 420 hectares privatizada a favor de um dirigente provincial e,
talvez por isso, ninguém se referiu a ela, mas também apenas uma pequena parte está na área de
Cassoma, a restante já integra a comuna da Calenga. Em Sailundo Velho, a fazenda existente
ainda não foi retomada e por isso não há qualquer posicionamento da comunidade, mas os
entrevistados referiram que não levantarão qualquer problema se um eventual novo dono agir
como o português que lá estava, que na época proporcionou emprego e acesso a bens na loja que
lá havia instalado.
Na Lunda Sul, encontraram-se fazendas abandonadas em Dala Velho e Muazaza, que agora estão
a ser recuperadas por pessoas ligadas às respectivas Administrações municipais, mas não se
30 De um modo geral em todas as aldeias ainda há espaços vagos de terras pertencentes a pessoas que ainda não regressaram
porque “estão à espera do que vão dar as eleições”.
31
referiram conflitos. Em Muatchicuco existem duas pequenas fazendas sem expressão e sem
interferência na comunidade.
No Uíje, o número de fazendas é muito maior. Na aldeia de Calumbo foram identificadas sete
antigas fazendas, encontrando-se a maior parte delas a ser reactivada por fazendeiros “filhos da
terra” ou a serem aproveitadas pela população, apenas num caso a posse atribuída a um indivíduo
caboverdiano que sempre teve bom relacionamento com a população. Em Kivita havia três
fazendas que foram “recuperadas” pela população local, tendo cada família ou indivíduo ocupado
a sua parte, não ficando claro se tais partes correspondiam efectivamente à propriedade anterior
ou se são fruto de uma nova partilha31
. Em Kizemba, a única fazenda existente foi entregue pelo
Estado a uma associação de camponeses local, mas está agora a ser reclamada, a título pessoal,
pelos herdeiros de um antigo dono que também é “filho da comunidade” e a havia perdido para
um português, ainda no tempo colonial, para pagar uma dívida.
O facto de não se terem identificado conflitos não significa que eles não possam estar
latentes ou que não venham acontecer por alteração do equilíbrio instável que caracteriza
cada um dos contextos32
. Pode haver receio, também, de se abordar a questão em certas
circunstâncias, devido ao peso de algumas pessoas envolvidas. Na realidade, o ambiente na Caála
por ocasião do estudo não era o mais adequado para tratar do assunto, pois vivia-se o conflito do
Km 25 (ver caixa nº 4) e falava-se de outros dois (Kalweyo e Kassupi). Por outro lado, a relativa
inércia actual do sector da agricultura empresarial e o ambiente pouco atractivo para o
investimento nas áreas rurais não motivam a procura de terras ou a implementação de projectos
agrícolas empresariais. Assim sendo, é natural que os conflitos venham a ocorrer quando as
circunstâncias os proporcionarem, como foi claramente o caso do Km 25. O mesmo poderá
acontecer no Uíje, onde, se o café hoje não é uma cultura atractiva, pode acontecer que a
exploração de madeira venha a alimentar o desejo de obtenção de rendimentos elevados por parte
de possíveis interessados, dada a qualidade das espécies existentes, sem se ter em conta os
interesses das populações que reclamam a sua propriedade.
31 Este pode ser um caso típico de “recuperação” de terras por parte de pessoas que se sentiam legítimos donos e que, por livre
iniciativa, e sem qualquer impedimento por parte dos representantes do Estado, decidiram agir para retomarem uma propriedade
que consideravam sua (ver capítulo 2). O Ante-projecto de lei de terras ignorou-os por completo. 32 Como se sabe que aconteceu já noutras regiões do País, como, por exemplo, em Luanda e nos Gambos.
32
A solução dos conflitos é proporcionada normalmente no seio da família ou das famílias
envolvidas (restritas ou alargadas) e, caso não seja possível, as questões são levadas às várias
instâncias existentes a nível da aldeia ou da regedoria e são tratados do mesmo modo e com as
mesmas regras relativas aos outros diferentes tipos de conflitos, isto é, através dos conselhos
existentes a esses níveis que, em tais circunstâncias, se revestem da função de tribunal. De acordo
com todos os entrevistados, nenhum conflito de terras é levado à Administração, salvo se envolve
pessoas ou instituições “oficiais” ou “da cidade”.
3.8. O papel das autoridades tradicionais
O papel das autoridades costumeiras na gestão da terra está directamente relacionado com os
sistemas de representação social e de utilização das parcelas. No Huambo, onde a posse ou
propriedade privada está assumida de forma inquestionável, esse papel resume-se a:
Na Lunda Sul, os chefes (muata’s) são responsáveis pela gestão da terra nos limites do território
(cihunda), competindo-lhes a cedência de terra para os “vientes” que desejem instalar-se,
condicionando-se tal cedência à construção prévia de casa própria. A eles e aos seus “auxiliares”
Caixa nº 4
Conflito de terras no Km 25 (Caála, Huambo)
O Km 25 é uma pequena região situada entre a Caála e o Kuíma onde a ADRA (ONG angolana)
intervém há cerca de quatro anos, primeiro apoiando o regresso das populações que se haviam
deslocado para a sede do município e depois a reinstalação e reconstrução de serviços e a
segurança alimentar.
O Governo da Província do Huambo decidiu implementar um projecto agrícola na região que
previa o envolvimento da população local, a instalação de empresários agrícolas privados e a
realização de experiências para o cultivo de soja e café arábica, com assistência técnica brasileira.
O processo foi conduzido sem o devido envolvimento das populações – apenas foram informados
alguns chefes, segundo elas – e desencadeou uma série de acontecimentos que culminaram com a
apresentação de uma queixa da comunidade ao Tribunal do Huambo, alegadamente contra a
Administração Municipal da Caála que, na sua óptica, orientou os técnicos que “invadiram” as
suas terras com tractores sem a sua autorização, o que levou à suspensão dos trabalhos. Este caso,
a par de outros que sucederam no município, levou as populações que haviam cedido parcelas de
terra anteriormente para instalação de fazendas a recuar e a acusar os sobas de terem-nas traído.
Algumas delas pensam levar os seus assuntos também ao tribunal.
Preservar o direito que assiste a cada membro da comunidade de possuir terra para
cultivar;
Testemunhar o vínculo de alguém a uma parcela quando isso é solicitado;
Garantir, aos membros da comunidade que se ausentam, a posse das suas parcelas de
cultivo e de habitação;
Facilitar negociações de empréstimo ou compra de terras por parte de pessoas
estranhas à comunidade;
Zelar pelo cumprimento de normas sociais (ver caixa nº 5) relativas ao acesso e uso de
terras e à exploração de recursos naturais;
Resolver conflitos quando solicitado pelas partes envolvidas, recorrendo para isso ao
onjango em cada nível, desde que o osongo não o tenha conseguido;
Gerir a floresta e os recursos que ela incorpora, quando existem.
33
no conselho (cota) compete ainda zelar pelo cumprimento das normas gerais de utilização da
terra e uso ou exploração dos recursos naturais.
No Uíje, as atribuições são muito semelhantes às do Huambo, mas aqui constatou-se (em
Kizemba) o uso da escrita para registo dos actos de compra e venda e quando há necessidade de
se testemunhar um acto ou uma situação.
Isto mostra que não é completamente verdade que tais autoridades tenham perdido todo o poder
em termos de gestão da terra. É certo que, quando a posse ou propriedade é privada, o poder de
intervenção dos chefes fica muito reduzido, mas mesmo nessa circunstância ele não é anulado.
Na Lunda Sul, como se disse, o muata é como se fosse o “dono” da terra, na medida em que
representa o fundador, o verdadeiro proprietário, mas está impedido de a vender ou ceder de
qualquer outro modo a título definitivo.
3.9. Os sistemas produtivos: constrangimentos e potencialidades
Uma das razões habitualmente apontadas para justificar políticas de terras a favor dos grandes
empresários é o mito propalado – e tantas vezes denunciado – de que os agricultores familiares
pobres são refractários a inovações e ao progresso e incapazes de utilizar tecnologias avançadas e
atingir produtividades elevadas, e ainda de que eles são meros produtores para a sua própria
subsistência. O estudo mostrou que esta ideia é falsa é preconceituosa. Como já foi referido, o
processo de mudança social permitiu o aparecimento de empresários nas comunidades como um
novo elemento social e isto mostra bem que os agricultores familiares não constituem um todo
homogéneo33
. Dados históricos mostram que os agricultores angolanos obtinham produtividades
e rendimentos por unidade de superfície que não eram muito inferiores aos obtidos pelos
fazendeiros, facto mais de assinalar quando as condições de acesso ao crédito, aos imputes em
geral e à assistência técnica eram profundamente desequilibradas em prejuízo dos agricultores
33 O moçambicano José Negrão denuncia igualmente este tipo de preconceito e mostra bem que isso acontece em vários países
africanos (ver bibliografia).
Caixa nº 5
Algumas normas sobre o uso de terras em vigor nas comunidades estudadas
Qualquer membro da comunidade tem direito a uma ou mais parcelas de terra e, mesmo
que se ausente, a sua parcela ou as suas parcelas são guardadas e os chefes são
responsáveis por zelar para que ninguém as ocupe a título definitivo.
Os forasteiros só têm direito a terras emprestadas e não podem comprar (esta regra está a
ser posta de lado no Huambo);
As pessoas que receberam terras por empréstimo não as podem ceder a nenhum título, nem
por herança, e não podem fazer qualquer tipo de benfeitoria, incluindo a plantação de
árvores;
As mulheres herdam terra dos pais em quantidade inferior à dos irmãos e podem perdê-la
quando se casam;
No Uíje, a terra herdada não pode ser vendida (porque pertence à kanda);
Na Lunda Sul, um forasteiro só recebe terra depois de construir casa na aldeia;
A pastagem e a apanha de lenha são livres em qualquer parcela pertencente à comunidade
por parte dos seus membros;
O trânsito de pessoas e animais e o acesso à água são livres (apenas no Uije se encontrou
um caso de apropriação privada de acesso à água do rio);
Os produtos da floresta podem ser recolectados livremente, mas ninguém estranho à
comunidade pode instalar lavras ou fabricar carvão.
34
familiares34
. Estudos dos anos 70 e mais outros recentes (1997) mostram que no Huambo os
agricultores familiares poderiam ser agrupados em quatro tipos diferenciados35
:
Um primeiro, representado por mulheres sózinhas, viúvas, separadas ou com maridos
ausentes, com uma lógica de subsistência bem vincada, mas que não conseguem produzir
o suficiente para o seu sustento e por isso têm que trabalhar frequentemente como
assalariados para os mais abastados;
Um segundo, constituído por homens, por vezes velhos, voltados para um quadro
"tradicionalista"e fechado, pouco abertas a inovações e que limitam a sua acção ao propósito da subsistência. Igualmente não conseguem garantir o seu sustento e o das
famílias com o resultado da sua produção própria e por isso procuram também emprego
assalariado. É um tipo muito comum actualmente, por causa da gravíssima situação de
pobreza e da falta de oportunidades locais;
Um terceiro tipo diz respeito aos que procuram assegurar em primeiro lugar a produção
para a subsistência, mas organizam a sua actividade numa lógica de mercado.
Presentemente encontram-se afectados por tudo quanto aconteceu, mas demonstram vontade e capacidade para reactivar a sua produção. Alguns deles conseguiram já uma ou
mais juntas de bois e dão emprego a pessoas necessitadas;
Finalmente, os mais ricos, que gostam de ser designados por agricultores. São elementos
que “não se preocupam com o sustento porque já está garantido, colhem normalmente
mais de duas ou três toneladas de milho, têm no mínimo dez cabeças de gado, têm casa de
telha, zinco ou luzalite e podem empregar muitos assalariados”. Nalguns casos têm
camião ou motorizada e já tiveram tractor. Estão inseridos num quadro sociológico já
diferenciado, têm contactos com a sede do município (onde por vezes vivem) ou mesmo
com outros poderes, nas cidades, e ambicionam um estatuto sócio-económico diferente o
mais rapidamente possível36
.
Situação similar era possível encontrar no Uíje, onde o café foi determinante para o
estabelecimento da estratificação, que presentemente já não verifica. Contudo, o prestígio e
capital social acumulados conferem aos antigos agricultores mais abastados oportunidades para
encontrarem outras soluções.
34 Ver, por exemplo, Jacinto Carriço em A economia da pequena empresa no Planalto Central, referido na bibliografia. 35 Ver Plano de Desenvolvimento do Huambo e Fernando Pacheco em Comunidades e Instituições Comunitárias no Huambo,
ambos citados na bibliografia. 36 Um destes agricultores, entrevistado em Cassoco, faz actualmente dois mil dólares/ano só com o aluguer das suas juntas de bois
com charruas.
35
O que o estudo revelou foi que o nível de pobreza nas comunidades é extremamente elevado e
que a recuperação dos sistemas produtivos é penoso nas actuais circunstâncias, pelas
limitações inerentes ao próprio sistema e também ao aparelho institucional de apoio à
produção. Com solos pobres, com instrumentos de trabalho rudimentares, sem equipamentos,
com sementes extremamente degradadas, sem crédito e sem assistência técnica, não é possível
fazer milagres.
Caixa n° 7
O milho não dá
“Trabalho muito nas minhas lavras mas o milho não dá. Em 2003 colhi somente 200 quilos, que me dão
para comer apenas durante 80 dias, a mim, à minha mulher e aos meus quatro filhos. No resto do ano é
desenrascar com fruta e cana que consigo vender. O milho da lavra da minha mulher só dá comer fresco,
mas acaba na frescura dela. Antes tinha galinhas e cabra, foram sabotadas pelos militares em 2000”.
Palavras de um entrevistado de Sailundo Velho.
As unidades de produção agrícola são sempre fragmentadas, isto é, são constituídas por mais de
uma parcela37
ao longo da catana (ver esquema). Isto acontece por três razões principais. A
primeira tem a ver com o nível tecnológico, pois, nas circunstâncias em que aquelas famílias
trabalham existe a preocupação de tirar partido dos diferentes níveis de fertilidade das várias
posições da catena: os agricultores sabem que os terrenos de baixa e da sua bordadura acumulam
detritos lavados das encostas pelas fortes chuvas e por isso tentam aproveitá-los da melhor forma
que lhes é possível e nesse aspecto, como noutros que se verão, as habilidades dos agricultores
do Huambo são notoriamente avançadas. A segunda razão diz respeito à segurança, visto que
numa agricultura de risco, exposta a várias contingências para as quais não têm defesas ou
alternativas, os agricultores procuram defender-se das calamidades naturais (excesso ou falta de
chuvas, ocorrência de pragas e doenças) diversificando o uso das parcelas no tempo e no espaço,
e fazem esforços para garantir alimentos ao longo do ano. Finalmente, os agricultores procuram
com o parcelamento gerir o calendário agrícola de forma a não terem excessivos picos de
trabalho nem longos períodos ociosos. No Huambo é muito importante a exploração do terreno à
volta das residências (ocumbo), que apresenta um nível de fertilidade mais elevado devido à
acumulação de detritos orgânicos dos animais e resultantes da actividade humana, o mesmo
acontecendo com a elunda, local de antigo aldeamento.
37 Os agricultores têm normalmente os diferentes tipos de lavra de acordo com a sequência da catena (encosta). No entanto, os
mais pobres não conseguem cultivar as lavras de baixa em quantidade suficiente, quer porque o acesso é mais difícil, quer porque
exige mais dispêndio de energia, humana ou de outro tipo. Esta divisão das unidades de produção num número elevado de
parcelas e sua dispersão, justificada do ponto de vista tecnológico e da organização da produção e do trabalho, é um dos principais
obstáculos ao cadastro individual das unidades de produção familiares.
Caixa nº 6
Um agricultor empreendedor de Cassoma (Huambo)
Inácio Kimbondo tem 38 anos e é secretário do sekulu de Cassoma e Presidente do
Núcleo das Associações da Ombala de Sacanombo. Só herdou um hectare de terra do
seu pai e hoje possui 28 hectares, dos quais 18 de regadio por gravidade. Toda essa
terra foi obtida por compra. Tem 20 trabalhadores permanentes, fora os eventuais.
No ano de 2003 vendeu batata no valor de mais de dez mil dólares. Pensa comprar
uma viatura este ano ou para o próximo.
36
Esquema de aproveitamento da catena no Huambo38
As sementes utilizadas pelos agricultores em todas as comunidades estudadas são geralmente de
fraquíssima qualidade, por estarem extremamente degradadas ou por não terem requisitos
mínimos para serem usadas, pois muitas vezes são adquiridas no mercado como se fossem bens
destinados ao consumo directo. As sementes distribuídas pelas ONGs são pouco adaptadas e
olhadas pelos agricultores com muita desconfiança, o que os leva, frequentemente, a dar-lhes
outros fins como o consumo directo. Os instrumentos de trabalho, não constituindo um grave
problema, são poucos e caros. Cassoco e Cassoma são as únicas comunidades onde a quantidade
de gado de tracção e de charruas já tem algum significado. Nas restantes do Huambo o número é
muito reduzido devido à falta de recursos, e na Lunda Sul e no Uíje não há tradição nem
conhecimento do uso de tracção animal.
Os solos são geralmente pobres, com excepção das aldeias do Uíje (principalmente as do
município sede), mas só no Huambo há tradição do uso de fertilizantes, orgânicos (estes
principalmente nos ocumbo’s) e químicos, que são caros (35 dólares por saco de 50 quilos) e de
difícil aquisição. Na Lunda Sul e no Uíje, a perda de fertilidade é compensada com a utilização
de pousios mais ou menos longos porque não há problemas de terras, ao contrário do que
acontece no Huambo.
Em quase todas as comunidades – incluindo algumas da Lunda Sul – encontraram-se agricultores
que fazem recurso à mão-de-obra eventual e por vezes temporária, variando as remunerações
entre valores correspondentes a 100-150 kwanzas/dia no Huambo e 150-200 no Uíje. É um outro
indicador de que não estamos em presença de uma agricultura de subsistência típica. Todavia,
não foi analisada a situação do trabalho infantil. Sendo conhecido o facto de as famílias
recorrerem ao trabalho dos filhos a partir dos 10-12 anos, não se tem ideia do trabalho
“assalariado” de crianças e adolescentes nas unidades dos já considerados empresários.
As produtividades são extremamente baixas e revelam o nível tecnológico incipiente e a falta de
imputes e de assistência técnica, o que afecta imenso o nível dos rendimentos das famílias. A
situação é particularmente preocupante no Huambo. Uma família média, em termos de número de
activos de trabalho e de energia, faz, no máximo, dois hectares de milho por ano que produzem
menos de 600 quilos nas condições actuais. Tal família necessita de, pelo menos 800 quilos de
38No Uije é possível encontrar um esquema idêntico com designações próprias em língua kikongo, mas que variam de umas
regiões para outras. Em Kivita, por exemplo, onaka corresponde a ndombe, ombanda a ndimba e ongongo a nguakitilomongo e
mongo, consoante se situa na encosta ou no alto. No Uije não se encontra uma lavra correspondente ao ocumbo.
37
milho para não passar fome, e se é certo que pode fazer recurso a outros produtos, então já não
terá energia para chegar aos dois hectares da principal cultura alimentar. Nestas circunstâncias
como ela, a família, poderá sobreviver? Situações preocupantes foram também identificadas na
Lunda Sul, onde os agricultores clamam pela reactivação da cultura do arroz para puderem
melhorar os seus rendimentos, e ainda no Uíje, devido à situação do café, para o qual não se
vislumbram outras alternativas que não seja o recurso às culturas da mandioca e do feijão, tirando
partido de uma conjuntural elevação de preços. Para todos os casos, porém, não se notam
medidas de política no sector agrícola capazes de produzirem efeitos a nível dos rendimentos das
famílias.
Ainda no Huambo, a situação só não é mais grave porque o agricultor Ocimbundu manifesta
tradicionalmente uma notável habilidade para tirar partido das condições ecológicas que se lhe
oferecem para se inserir em circuitos mercantis, e para utilizar os conhecimentos que vai
adquirindo por contacto com sistemas de produção tecnologicamente mais avançados39
. Foi o que
aconteceu em Cassoco e Cassoma onde, tal como noutras áreas do Planalto Central e em
particular na sua região II, se verifica, como se viu, um engenhoso aproveitamento dos terrenos
de acordo com a sua posição catenária, procurando-se tirar proveito da topografia e dos diferentes
níveis de fertilidade, jogar com os diferentes calendários culturais, gerir o tempo e dispor de
alimentos e de produtos para o mercado ao longo do ano. É isto que permite aos agricultores de
algumas das aldeias estudadas no Huambo trabalharem todo o ano e fazerem duas ou três culturas
ao longo deste período, situação verdadeiramente notável nas condições de Angola.
Caixa nº 8
Alberto Cassinda um agricultor do Cassoco (Huambo
Alberto Cassinda um agricultor do Cassoco (Huambo Sou Alberto Cassinda, nasci no Cassoco há 38
anos, casado pela Igreja Católica. Tenho seis filhos, fiz a 5ª classe e tenho a profissão de pedreiro. Sou
também cantineiro e Presidente da Associação Pepisa (significa algo que dá sabor). O meu pai já tinha
terra e muita batata (era o rei da batata), aprendeu na Calenga e os de Kapunje aprenderam com
Cassoco e outros aprenderam com Kapunje. Eu faço como ele, trabalho muito. A igreja ajuda-me a não
ter medo das “invejas”, nem a acreditar que os antepassados tenham capacidade de fazer chuva. Tenho
seis lavras no Cassoco e uma em Kapunje, no total são 21 hectares, dos quais quatro são ombanda e
onaka. Também tenho ocumbo. Na onaka faço milho, feijão e tomate, este a partir de Agosto para colher
em Dezembro, dá muito dinheiro. Na ombanda (horta) faço cenoura, cebola e repolho, desde Abril até
Junho. A cebola e a batata semeadas em Agosto, se o riacho aguentar, crescem com o calor e dão muito
dinheiro. Mesmo sem adubo, nessas condições um hectare de batata pode produzir até 7500 quilos, dá
mais de cinco mil dólares. Se tiver adubo posso tirar mais. Tenho 25 trabalhadores eventuais a quem
pago 100 kwanzas por dia e duas juntas de bois com charruas. Não tenho mais bois porque dão muito
trabalho. Só tenho galinhas. Herdei toda a minha terra do meu pai antes de ir para a tropa nos anos 80.
Ele tinha mais de 30 hectares que havia herdado e comprado.
Não tenho título, mas o soma e os osongo’s podem testemunhar. A minha mãe e os meus sobrinhos
tomaram conta da minha terra enquanto estive na tropa. O irmão do meu pai quis “recuperar” essa terra
mas não conseguiu. Os conflitos acontecem com as ausências, mas o soma resolve-os com os sekulu’s e os
osongo’s. Eu costumo alugar as minhas terras, recebo pagamento, mas não entregaram as terras aos
39 Um entrevistado referiu que um agricultor da Calenga colheu 3700 kgs de batata utilizando 200 kgs de semente e uma adubação
intensa de 500 kgs, correspondente a quase 20 toneladas por hectare, o que é impressionante e revelador do potencial deste tipo de
agricultura nas condições em que é realizada. É preciso ter em conta, ainda, que as produções deste ano (2003/2004) foram
prejudicadas devido ao excesso de chuvas no início de 2004.
38
maridos, entregaram a mim, porque em trabalho bem. Agora são viúvas, ainda trabalham hortícolas, mas
não sofrem, porque pensaram bem.
Ainda que em quantidades diminutas, em todas as comunidades foi possível constatar a
preocupação de canalizar uma parte da produção para o mercado. No Huambo, a principal cultura
de rendimento é a batata e, mais acessoriamente, as hortícolas, o trigo e algumas leguminosas40
.
Na Lunda Sul, enquanto se espera pelo arroz procura-se produzir mandioca para o mercado. No
Uíje, é digna de realce uma menção à importância que a cultura de feijão manteiga está a ter na
região e à chikuanga (mandioca em conserva) produzida em Kivita, que é muito procurada
(inclusivé na RDC) e está a permitir aos seus produtores a obtenção de rendimentos inesperados,
o que mostra bem que com criatividade e incentivos é possível encontrar soluções adequadas para
os problemas.
Para enfrentarem a pobreza que as fustiga, as famílias das comunidades onde existe floresta
dedicam-se ao fabrico de carvão. No Etuko e Sailundo Velho esta actividade atinge níveis
verdadeiramente preocupantes pelos estragos causados no ecossistema e na própria
sustentabilidade futura das comunidades e pelos danos causados à saúde de quem está
directamente envolvido do fabrico. Mas naquelas condições de pobreza é tentador optar por uma
solução que rende, por exemplo, 150 dólares por semana – como se faz no Etuko e Sailundo
Velho, as duas comunidades mais pobres estudadas no Huambo –, montante que, com a produção
de milho – menos de 300 quilos por hectare e dois hectares cultivados anualmente no máximo –
só será possível de alcançar num ano.
A terra – em termos quantitativos – não parece constituir constrangimento para os sistemas
produtivos em uso nas comunidades estudadas. Pelo menos é essa a opinião dos respondentes. A
única excepção constatada foi em Cassoma, onde a quantidade de terra disponível por família
(7,5 hectares incluindo as reservas e as áreas não agrícolas) é manifestamente insuficiente para o
cultivo da batata, que precisa da incorporação de terrenos ”descansados”, ou seja, que estiveram
em pousio, para garantir produtividades minimamente aceitáveis41
. Situação idêntica poder-se-á
viver, a curto prazo em Cassoco, embora a área média por família seja aí mais do que o dobro
(16,7 hectares). Por essa razão, é nestas comunidades que surge, com mais intensidade, o
florescimento do mercado de terras, que faz com que aqueles que tenham mais recursos
financeiros procurem adquirir mais terras que os mais pobres irão vender, o que provocará a sua
concentração nas mãos dos menos desfavorecidos e o aumento da pobreza e de vulnerabilidade
para a maioria da população. As áreas médias calculadas para as outras comunidades do Huambo
(não inferiores ou pouco inferiores a 20 hectares em termos gerais) são suficientes para garantir
um desenvolvimento sustentável para cada uma das famílias e para as comunidades. Isto implica
que sejam tomadas medidas para que se desencadeiem processos de desenvolvimento sustentável
e de gestão de recursos pela comunidade que possibilitem o aumento das produtividades e das
produções. Na Lunda Sul e no Uíje não foi possível fazer os cálculos das áreas das comunidades
e as correspondentes áreas médias por família, mas, porque a terra não constitui constrangimento
de maior, isso acaba por não ser relevante, desde que não sofram pressões insuportáveis42
.
40 A tradição comercial dos Ovimbundu, remonta há séculos atrás, com os escravos, o marfim e a borracha. No início do século XX, com a
ocupação do Planalto Central pelos portugueses, os Ovimbundu viram a sua actividade de comércio afectada e estão agora a recuperá-la. Ao longo
do tempo, os conhecimentos adquiridos foram passando de pais para filhos e isso foi importantíssimo para o aperfeiçoamento das habilidades. No entanto, a guerra e a retracção da actividade económica puseram em causa essa cadeia de transmissão e isso terá consequências no processo de
recuperação destas comunidades.
41 Recorde-se, como se viu no capítulo 2, que a área média de que os agricultores familiares dispunham nos anos 70 no Huambo
era pouco superior a cinco hectares e isso era razão para se acreditar na sua inviabilidade. 42 A lei de 1961 indicava que as áreas a atribuir a cada comunidade seriam de cinco vezes a área agricultada anualmente para
garantir as rotações e pousios que permitem a recuperação da fertilidade inicial. Isso era algo que fazia pouco sentido porque não
39
Porém, a terra poderá ser um constrangimento no Huambo se não forem tomadas medidas
adequadas para impedir a sua cedência para agricultores empresariais, acautelar a pressão
demográfica e promover a criação de empregos não agrícolas para os jovens rurais. Poderá
ainda ser um constrangimento sempre que os pequenos agricultores estiverem interessados em
aumentar o número de cabeças de gado, pois, naquelas circunstâncias, não são possíveis cargas
superiores a uma cabeça para cinco hectares. Por outro lado, enquanto não for encontrada solução
adequada para o problema da fertilidade, haverá sempre necessidade de incorporação de novas
áreas, o que não se afigura possível naquelas condições. Daí que se recomende a urgente pesquisa
de novos sistemas de produção agrosilvopastoris para permitir a melhoria da fertilidade e da
estrutura dos solos. Um passo a dar de imediato poderia ser um melhor aproveitamento dos
ocumbo’s que, com fertilizações adequadas e defesas contra a erosão, poderiam ser mais
intensivamente trabalhados e proporcionar produtividades bem maiores. Se a superfície de um
ocumbo tiver 0,25 hectares, com boas fertilizações e outras técnicas um agricultor pode colher
mil quilos, com menos dispêndio de energia do que em dois hectares, onde, nas actuais
circunstâncias, produz menos de 600 quilos.
Para além dos constrangimentos foi possível também identificar potencialidades que, com a
devida assistência, poderão concorrer para a melhoria da situação e que se podem sintetizar como
segue:
O conhecimento e as habilidades dos agricultores de certas regiões do Huambo devem ser
valorizados, potenciados e aproveitados para trocas de experiências e de conhecimentos
que favoreçam os agricultores de outras regiões;
Os recursos florestais da Lunda Sul e do Uíje podem ser utilizados para melhoria dos
meios de vida e dos rendimentos económicos das famílias numa base sustentável e para a
reconstrução das comunidades locais;
O conhecimento sobre a instalação e gestão de pequenos regadios poder servir para novos
e mais ousados programas de desenvolvimento de perímetros irrigados com baixo custo e
tecnologia acessível;
As culturas alimentares na Lunda Sul, em particular mandioca, amendoim e arroz, têm
boa aceitação e podem servir de base do arranque de uma agricultura comercial;
O mesmo pode acontecer no Uíje com mandioca, feijão, amendoim e fruteiras, tirando
partido da forte ligação das populações ao mercado.
Em síntese, é possível enumerar os principais constrangimentos dos sistemas produtivos
analisados e respectivas propostas de solução, a ter em conta em futuros projectos de
reconstrução e desenvolvimento numa perspectiva de sustentabilidade.
PROBLEMA SOLUÇÃO SUGERIDA
1. Baixo nível de fertilidade dos solos (muito grave no
Huambo e moderado na Lunda Sul)
1. Pesquisa de novos sistemas de produção em geral e
agrosilvopastoris no Huambo; melhor aproveitamento dos
ocumbo’s no Planalto Central com maior intensificação
cultural, o que poderá implicar, em alguns casos, recurso aos
sistemas de regadio simples; promoção do uso de fertilizantes
químicos e orgânicos e de correctivos de acidez; promoção do
uso de defesas contra a erosão.
2. Sementes degradadas 2. Promoção de programas de experimentação e de
multiplicação de sementes adaptadas; incentivos aos
agricultores para produção, selecção, tratamento e
conservação de sementes próprias; construção de armazéns
comunitários e associativos com equipamento mínimo para
se tinham em conta, além do mais, as necessidades e capacidades diferenciadas dos agricultores, nem os níveis de fertilidade
diferenciados de cada parcela. Com excepção dos casos de Cassoco e Cassoma, as áreas das diferentes comunidades estudadas
parecem razoáveis desde que não sofram mais pressões e se encontrem sistemas de produção adequados e soluções sustentáveis
para o problema da fertilidade.
40
tratamento de sementes; colaboração com o Instituto de
Investigação Agronómica.
3. Défice de energia da mão de obra e falta de condições para
o alargamento das áreas de cultivo
3. Desenvolvimento de pequenos programas de uso de
tecnologias adaptadas às condições locais que possam
diminuir o esforço humano; fomento do uso da tracção
animal para trabalho agrícola e transporte; programas de
defesa contra a erosão.
4. Falta de imputes agrícolas em geral e de sistemas de
crédito
4. Promoção de programas de micro-finanças.
5. Carência de animais de pequeno porte 5. Promoção de programas de fomento de criação de animais
com base no crédito associativo.
6. Inexistência de sistemas de assistência técnica e de
promoção da agricultura familiar
6. Influência política para adopção de sistemas de extensão e
assistência técnica adequados à promoção da agricultura
familiar e dos agricultores pobres; apoio às Estações de
Desenvolvimento Agrário (EDA’s); promoção de programas
de desenvolvimento comunitário com ênfase no aumento da
produção alimentar e dos rendimentos das famílias.
7. Degradação do património florestal e dos recursos nele
contidos
7. Desenvolvimento de programas de gestão dos recursos
naturais pelas comunidades que possibilitem a produção de
bens alimentares e energéticos e a obtenção de rendimentos
numa base sustentável.
8. Funcionamento deficiente dos mercados 8. Política de influência sobre a dinamização de mercados
rurais que possam contribuir para o fomento da produção
agropecuária.
4. Algumas reflexões sobre o visto e o escrito no ante projecto de lei de terras
Em matéria jurídica o estudo confirmou algumas suspeitas sobre a bondade de algumas soluções
avançadas pelo Anteprojecto de Lei de Terras e revelou também as suas virtudes43
. Não cabendo
aqui uma análise exaustiva do Anteprojecto, é importante, no entanto, tecer algumas
considerações sobre o que a realidade deu a conhecer em contraposição com o que ante projecto
de lei refere. Todavia, há que reter que a realidade constatada no estudo é bastante mais
complexa, diversa e difusa daquela que o Anteprojecto de lei retrata. É sabido, por outro lado,
que uma lei não pode retratar tudo, mas apenas captar as evidências e os aspectos essenciais e a
descrição das situações mais representativas e não as marginais.
4.1. Os direitos fundiários e o acesso à terra
Os direitos fundiários são todos aqueles que se podem constituir sobre a terra: o direito de
propriedade privada, de superfície, enfiteuse (o Anteprojecto de Lei de Terras divide em domínio
útil e domínio consuetudinário), etc. No estudo de casos efectuado podemos surpreender alguns
desses direitos, uns constituídos formalmente (pouquíssimos casos) e a grande maioria resultando
da posse não titulada e regulada sobretudo pelas regras do direito costumeiro. Colocando o foco
no caso em que o direito costumeiro prevalece, poder-se-ia dizer que o constatado no Huambo
43 Na altura da conclusão deste relatório ainda não havia sido promulgada nem publicada a nova Lei de Terras, pelo que as
considerações apresentadas se reportam ao Anteprojecto.
41
permite concluir que se está em presença, de facto, de um direito fundiário muito próximo do
regime de propriedade privada. Na realidade, qualquer utente de terras nas comunidades
estudadas pode usar, fruir e dispor das terras que a comunidade reconhece serem suas, e, em
consequência, nasce um mercado de terras onde esta adquire um determinado valor. Contudo, o
poder de disposição tem algumas restrições – e uma delas é a falta de um título e de registo44
.
Trata-se, pois, de um poder de disposição quase ilimitado, mas não ilimitado. No Uije, as
restrições ainda são maiores, na medida em que o poder de disposição – ou de venda, mais
concretamente – é condicionado pelas relações familiares, visto que a terra, em muitos casos, é
considerada pertença da kanda, isto é, dos familiares vivos e antepassados, embora o sentimento
de propriedade privada encontrado seja muito forte45
.
Por estas razões, talvez não se possa falar, com toda a propriedade, que no Huambo e no Uije se
esteja perante uma situação de propriedade privada, mas apenas de posse privada, no sentido de
“tenência”, isto é, do direito de uso e de usufruto, o que inclui a alienação, mas com limitações.
Na Lunda-Sul, o quadro fundiário é de certo modo diferente. Predominando o direito geral de
utilização da terra, em rigor estamos na presença de um direito muito próximo do domínio
consuetudinário proposto pelo Anteprojecto de Lei de Terras. As famílias são, desde logo, o meio
por onde passa o acesso e manutenção do direito que se “constitui” sobre a terra.
Neste quadro, o acesso à terra no Huambo é assegurado fundamentalmente por herança ou
compra, podendo, ocasionalmente, haver casos de empréstimos com determinadas condições. No
Uije, o acesso faz-se por herança, compra ou aluguer, mas há casos excepcionais de ocupação
livre, sendo o direito de compra vedado aos forasteiros. Na Lunda Sul, o acesso à terra é livre. No
que concerne às mulheres, o acesso é condicionado e limitado, no sentido em que recebem por
herança – quando tal acontece – menores quantidades de terra do que os outros herdeiros do sexo
masculino e perdem o direito de posse quando contraem matrimónio, o que põe em confronto o
direito costumeiro e o direito e o direito do Estado, consagrado na Lei Constitucional e no Código
da Família.
Se se analisar a correspondência que o Anteprojecto de Lei de Terras faz entre os vários tipos de
direitos e tipos de terrenos na área rural (terrenos comunitários e domínio útil consuetudinário)
fica-se com algumas reservas quanto à bondade dessa solução. E o fundamento que alicerça a
referida reserva está subjacente às influências que o direito costumeiro sofreu ao longo do tempo.
A proposta avançada ancora-se nas referências que se tem de um passado e, como se vê, já não
compagina os hábitos e costumes actuais.
4.2. O conceito de comunidades rurais
Apesar dos perigos inerentes a qualquer definição (abre quase sempre flancos para a crítica),
aconselha a melhor técnica legislativa a elaboração dos conceitos mais importantes de qualquer
matéria legiferante. Neste sentido, o Anteprojecto, no seu artigo1º, c), ensaia uma definição de
“Comunidades Rurais”, referindo que são “comunidades de famílias vizinhas ou compartes que,
nos meios rurais, têm os direitos colectivos de posse, de gestão e de uso e fruição dos meios de
produção comunitários, designadamente, dos terrenos rurais comunitários por elas ocupados e
aproveitados de forma útil e efectiva, segundo os princípios de auto-administração e auto-
gestão, quer para sua habitação, quer para o exercício da sua actividade, quer ainda para a
consecução de outros fins reconhecidos pelo costume e pelo presente diploma ou seus
44 Há que ter em conta, também, que é natural que o sentimento da propriedade esteja ainda “tocada” pelos costumes, o que faz
com que, por exemplo, os pais considerem que a terra é um património intocável que deve ser transmitido aos filhos. 45 Na caixa 6.1. do volume II é apresentado m exemplo de como a posse de m pedaço de terra se transfornma gradualmente de
comunitária em privada.
42
regulamentos”. Todavia, esta definição extensa tem um sentido e alcance que não corresponde à
realidade do Huambo e do Uíje e só com necessárias adaptações encaixar-se-á no modus vivendi
da Lunda-Sul. Desde logo, nem todas as comunidades têm direitos colectivos de posse: no
Huambo e Uíje há quem tenha títulos de uso e aproveitamento da terra emitidos ao abrigo da Lei
n.º 21-C/92, de 28 de Agosto e as famílias “fraccionam” a terra entre os seus membros num
regime muito próximo ao da propriedade privada, como se viu. Este conceito na Lunda-Sul teria
alguma razão de ser, mas com um senão nada despiciendo que se aplica também às outras
províncias. É preciso colocar a questão de saber se a ombala ou munganda, ou seja, a povoação
no sentido oficial, que na visão sociológica pode corresponder a várias aldeias, seria a designada
“comunidade rural” ou se é necessário “descer” até às aldeias. Na verdade, o conceito
sociológico de comunidade rural não é tão exacto, homogéneo e restrito como avança o
Anteprojecto: uma aldeia, nesta perspectiva jurídica, é uma comunidade rural; na perspectiva
sociológica aqui apresentada a situação é mais complexa e faz todo o sentido questionar porque
não operar com os conceitos “endógenos” de ombala ou munganda, ou ainda de “povoação” –
conjunto de aldeias com matriz sociológica e antropológica comum e sob responsabilidade de
uma determinada autoridade dita tradicional46
. Quanto à forma e modo de gestão dos terrenos
comunitários, apenas a situação nas comunidades da Lunda-Sul corresponde à ideia central do
conceito oferecido pelo Anteprojecto. Acresce-se a tudo isto o facto dos serviços de cadastro
terem dificuldades para definir as áreas que albergam as comunidades.
4.3.Tipologia dos terrenos e os casos estudados
O Anteprojecto de Lei de Terras propõe uma tipologia de terrenos que, em confronto com os
casos estudados, obriga a algumas observações.
Os terrenos rurais são classificados, para efeitos do Anteprojecto, em função dos fins a que se
destinam e do regime jurídico a que estão sujeitos, em terrenos rurais comunitários, agrários,
terrenos agrários, terrenos florestais, terrenos de instalação e terrenos viários (artigo 22º, 1 do
Anteprojecto de Lei de Terras). Esta tipologia é sugestiva mas presta-se a perplexidades, na
medida em que criará compartimentos estanques. Um habitante da aldeia de Sailundo-Velho
(Bailundo) terá um terreno comunitário ou agrário? Como se viu, em Sailundo Velho – como em
todas as comunidades estudadas no Huambo – não há, em rigor, terrenos comunitários.
Sendo certo que o tipo de terreno existente na referida localidade não foi classificado, não pode
ser considerado como agrário, uma vez que este tem essencialmente finalidade agrícola (artigo
22º, 3 do Anteprojecto de Lei de Terras), mas estando afecto a outras finalidades (habitação e
outros fins reconhecidos pelos costumes) não terão guarida no referido enquadramento.
Por outro lado, não se prevê a imbricação entre as diferentes finalidades dos terrenos,
compartimentando-os de um modo rígido como se se estivesse numa situação ideal. A ausência
de uma norma que estabeleça a previsão de uma situação intermédia, em que dois ou mais fins se
inter-cruzassem (comunitário e agrícola ou agrário e florestal, ou ainda comunitário e florestal e
46 Compare-se esta definição com a avançada na secção 3.1. Desde já ressalta-se os aspectos relacionados com a identidade, os
interesses e o sentimento de pertença que conformam um quadro diferente do que é proposto no Anteprojecto. Por outro lado,
compare-se, também, por exemplo, os casos de Chiteta, onde o conceito de comunidade é aplicável ao conjunto de aldeias que
integra a ombala, e de Cassoco e Cassoma, duas aldeias separadas apenas por uma estrada mas que correspondem a duas
comunidades distintas.
43
de instalação, etc..) não resolve os problemas que se colocam hoje no âmbito dos conflitos que
surgem a este nível. Por conseguinte, não são estes os tipos de terrenos que existem nestas áreas.
Não sendo comunitários nem agrários, coloca-se a questão: de que tipo serão os terrenos de
Sailundo Velho? Esta lacuna deriva do facto de o referido Anteprojecto não traduzir as
dinâmicas recentes e as influências que estas localidades sofreram ao longo dos tempos e a
mudança social que tanto se tem referido neste relatório. Na actualidade, o quadro jus
fundiário do Huambo distancia-se largamente das concepções inseridas no Anteprojecto de
Lei de Terras. Assim, os terrenos visitados no Sailundo Velho – e em todas as outras
comunidades estudadas no Huambo e no Uíje – são seguramente rurais mas não
correspondem ao conceito nem à classificação do Anteprojecto, pois nele entroncam o fim
agrícola e outros (habitação e outros regulados pelos hábitos e costumes). A classificação dos
terrenos rurais, na subclassificação “agrários” (artigo 22º, 3), traduz um dos objectivos
primordiais deste Anteprojecto de Lei de Terras que é o de acautelar os investimentos privados
(de estrangeiros e de alguns nacionais). Esta visão pode pôr em causa o combate à pobreza, que
deve ser uma prioridade no nosso contexto, a nível de tratamento político e jurídico.
4.4. Garantias dos direitos fundiários e formas de resolução de litígios
As garantias dos direitos dos cidadãos constituem uma premissa constitucional e traduzem-se no
conjunto de meios que a ordem jurídica põe à sua disposição para que eles possam fazer respeitar
os seus direitos em caso de perigo ou violação. Para lá das garantias constitucionais e infra-
constitucionais (estabelecidas por outras leis ordinárias), este Anteprojecto propõe um capítulo
dedicado a disposições processuais. Esta solução, que resultou do contributo das organizações da
sociedade civil, apesar de constituir de per si e em abstracto um ganho, comporta em concreto
algumas desvantagens.
Salta à vista, desde logo, a atribuição de personalidade jurídica e capacidade judiciária às
comunidades (artigo 70, 3). Esta solução inovadora representa uma grande vantagem em termos
teóricos e processuais, pois constitui uma garantia muito forte sob o ponto de vista processual e
também substantivo47
, mas colocam-se algumas reservas quanto à bondade da solução encontrada
pelo Anteprojecto. E a dificuldade sentir-se-á quando se tiver que reconhecer as referidas
comunidades rurais. Escreveu-se já, noutro lugar, sobre as debilidades do conceito de
comunidades rurais oferecida pela citada proposta legislativa. Em boa verdade, um regulamento
poderá corrigir esta imprecisão, bastando para o efeito acrescentar que, de acordo com a
representatividade dos lesados, poderão ser reconhecidas personalidade jurídica e sobretudo
capacidade judiciária (susceptibilidade de poder estar em juízo por si só ou por meio de um
representante legal) às populações de uma só aldeia ou de várias aldeias, tendo em conta o seu
desejo e a abrangência do problema. Assim, se a população de uma aldeia estiver a sofrer esbulho
ou a ocupação desta não corresponder aos termos da lei, dever-se-á reconhecer capacidade
judiciária para esta poder pleitear nos tribunais; se o esbulho abranger várias aldeias ao mesmo
tempo, então não fará sentido que se reconheça capacidade judiciária caso por caso. Em todas as
circunstâncias vale dizer que as dificuldades de precisão do conceito de comunidade rural
encontrarão nesta matéria o terreno mais movediço, cuja engenharia jurídica exigirá mais
trabalho de vulto para poder arquitectar uma saída airosa para o imbróglio que o Anteprojecto
apresenta. Não havendo necessidade de propor mecanismos de resolução de problemas de difícil
entendimento, urge em última instância – já que o Anteprojecto foi aprovado com a referida
solução – corrigir a referida previsão legislativa nos seus regulamentos.
47 A jurista Antonieta Coelho apresentou em 2002 a Comissão Constitucional da Assembleia Nacional uma proposta para inclusão
de direitos das comunidades na futura Constituição, onde é feita larga alusão aos direitos sobre os recursos naturais e, em
particular, sobre a terra. Nessa proposta está expressa a necessidade de reconhecimento de capacidade jurídica às comunidades
locais e a ideia de se rever a legislação no sentido da descentralização administrativa que “devolve” poderes de tomada de decisão
às comunidades.
44
Atendendo que o pluralismo jurídico e a arbitragem como meio de resolução de conflitos
fundiários nos termos propostos podem constituir uma grande vantagem, o artigo 82º do
Anteprojecto aponta uma determinada direcção e opção: «1. Os litígios relativos aos direitos
colectivos de posse, gestão, de uso e fruição e do domínio útil consuetudinário dos terrenos
rurais comunitários serão decididos no interior das comunidades rurais, de harmonia com o
costume vigente na comunidade respectiva. 2. Se uma das partes não estiver de acordo com a
resolução do litígio nos termos enunciados no número anterior, será o mesmo decidido pelos
tribunais …». Este artigo, levanta algumas interrogações e abre flancos para críticas capazes de
fazerem correr rios de tinta. Mas, não sendo este lugar para discutir questões doutrinárias de
elevada abstracção, vale dizer que este reconhecimento do direito costumeiro, ou melhor, da
justiça comunitária (no dizer do Anteprojecto), provoca alguns receios. Em primeiro lugar, são
várias as lacunas existentes na justiça comunitária no País. Se se tomar como exemplo os casos
estudados, que justiça teríamos se no Sailundo Velho ou em Muatchicuco ou em Kivita não se
respeita o princípio da igualdade entre o homem e a mulher? Se em Kivita um indivíduo de outro
grupo etnolinguístico ou área sociocultural não pode comprar terra? Como resolver os casos dos
cidadãos membros das comunidades que têm títulos no seio de terras das comunidades? O regime
suplectivo, ou seja, o recurso subsidiário aos tribunais não teria eficácia num quadro social como
os destas regiões onde as regras do direito costumeiro prevalecem sobre as normas do direito do
Estado, nem este tem conhecimento ou presença institucional, nem sequer os actores
comunitários se revêem em normas e decisões que lhes são estranhas. Esta é uma área de grande
conflitualidade entre o direito de Estado e o direito costumeiro –ou das práticas costumeiras,
como alguns o entendem –, de difícil solução nos tempos mais próximos porque o paradigma dos
nossos juristas tem sido a importação de figuras e conceitos sem a preocupação com o que isso
tem a ver com a nossa realidade.
Por outro lado, a referida justiça só abrange os direitos colectivos de posse dos terrenos
comunitários, designações cujas imprecisões já foram aludidas atrás. Desse modo, no Huambo e
no Uíje não haverá justiça comunitária, pois não há – nos casos estudados – direitos colectivos
nem terrenos comunitários. Convém ainda notar que no seio das populações rurais uma crescente
preocupação com a obtenção de títulos – colectivos ou individuais – pelo que estes representam
em termos de segurança, dado o reconhecimento gradual da primazia do direito positivo e escrito
sobre o direito costumeiro.
4.5. Breves notas sobre algumas das consequências jurídicas das soluções avançadas pelo
Anteprojecto de Lei em relação aos casos estudados
A grande consequência jurídica que se pode esperar da futura lei de terras é a sua não aplicação
nalguns pontos e a criação de conflitos em outros. Poderá constituir letra morta o registo de todas
as terras nas áreas rurais – tendo em conta o prazo, os custos e a capacidade institucional –, com o
risco de se colocarem os possuidores à mercê dos grandes interesses económicos, de empresas e
de indivíduos afortunados. Esta situação, que já tem acontecido nalgumas regiões do País, só será
resolvida se os tribunais forem eficazes para apurar as várias irregularidades que surgem na
atribuição de terras.
Outro aspecto que terá dificuldade de vingar na prática será o da tipologia dos termos e direitos
consagrados: em primeiro lugar não se crê, tendo em atenção os casos estudados, que o domínio
útil civil e consuetudinário irá encontrar aceitação. É possível que, estando estes desfasados da
realidade, possam permitir o encobrimento de outros direitos como o da propriedade privada, ou
até, numa situação de transitoriedade, encontrar novos direitos fundiários, que contemplem por
exemplo, os casos em que há imbricação de direitos colectivos e individuais. O anteprojecto
prevê as “terras comunitárias” como uma realidade estática e isso pode ser entendido com
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positivo ponto de vista da defesa dos direitos das comunidades, mas já se viu que a realidade é
dinâmica e apresenta-se, hoje, muito diferente. A regulamentação da futura lei deverá contemplar
tal situação, assim como os mecanismos e procedimentos para conciliação de interesses gerais e
particulares, tendo em conta que poderão aparecer oportunismos de vária ordem.
Também pode redundar num fracasso o mecanismo suplectivo da justiça estadual. Este
expediente encontrado é inconstitucional pois viola a tutela jurisdicional efectiva consagrada pelo
artigo 43º da Lei Constitucional.
Corre-se o perigo de se criarem conflitos em regiões onde não haja terras comunitárias se houver
tal classificação, como são os casos do Huambo e de outros mais. Numa situação como esta a
aplicação da lei resultaria numa injustiça para os cidadãos. Em zonas onde haja terras
comunitárias e pessoas com títulos o resultado seria a perda destes em detrimento daqueles.
Por outro lado, uma matéria que poderá ser potencial geradora de conflitos será a da não
colocação de regras para sanar conflitos de direitos, ou seja, deveriam ser estabelecidas regras
especificas para resolução de conflitos entre direitos fundiários e/ou entre direitos fundiários e
outros direitos (florestal, industrial, de exploração mineira).
5. Conclusões do estudo e algumas recomendações
Tratando-se de um estudo de caso, ou melhor, de um conjunto de estudos de caso, as conclusões
que se adiantam são legítimas apenas para as situações analisadas, pelo que a sua generalização
não deve ser considerada, salvo se houver semelhanças contextuais que o permitam. Porém as
províncias do Huambo e do Uije são suficientemente representativas do todo País, pelo que se
entende que a pertinência deva ser devidamente aferida.
As comunidades estudadas apresentam todas uma característica comum: fustigadas em maior ou
menor grau pela guerra e pelas contingências de uma política económica e social em desfavor das
áreas rurais, encontram-se hoje extremamente fragilizadas e desmunidas do pouco de que
dispunham antes da guerra, como imputes agrícolas, equipamentos, animais, utensílios
domésticos. Do pouco que lhes resta, assume particular relevância a terra e o desejo de a
conservarem. A equipa responsável pelo estudo não tem dúvidas em afirmar que o estudo
confirmou plenamente o que já se acreditava ser a mais crua verdade: o tratamento indevido da
questão da terra pode agravar de forma substancial as já difíceis e precárias condições de vida dos
pobres rurais e provocar situações sociais e políticas desastrosas.
Nos anos 70, no quadro da dinâmica do movimento pela independência e da consequente
implementação das políticas reformistas do governo colonial português, estas comunidades
experimentaram processos de mudança social cujas representações conformam um determinado
quadro de referências. Principalmente no Huambo e no Uíje, mas também na Lunda Sul, as
economias dos agricultores encontravam-se num processo de integração plena no mercado. Trata-
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se, à primeira vista, de um sinal de prosperidade – e isto ficou patente na forma como os
respondentes o afirmaram. Todavia, esse processo teve alguns efeitos perversos, que provocaram
mais dependência e vulnerabilidade em relação às pressões e influências da sociedade
envolvente, aumentando a degradação ambiental. Isso também teve consequências nas
modificações do quadro aldeão ou comunitário, abundantemente referidas ao longo do relatório.
Mas a história não volta atrás, e o que sobressaiu do estudo foi um desejo enorme das pessoas em
retomarem os processos produtivos interrompidos com a guerra. Acresça-se a isto o facto de a
guerra ter acelerado as mudanças de comportamento, por factores de vária ordem. Resta a quem
tem mais poder e informação ajudá-las a encontrar novas linhas de rumo que tenham em
conta os erros do passado, o contexto actual e os conhecimentos hoje existentes que
permitem a adopção de sistemas de produção mais sustentáveis.
A situação actual das terras em Angola é de grande complexidade. Os sistemas de uso e
propriedade da terra nas comunidades estudadas são muito diversos e fruto da mudança social
referida. Apenas na Lunda Sul é possível falar de propriedade comunitária da terra no sentido
comum que se lhe dá em África. No Huambo, o sistema estudado é completamente diferente e aí
a terra está privatizada na totalidade. No Uíje, o sistema encontrado pode ser considerado como
estando em transição entre os das anteriores, mas muito mais próximo do segundo. Assim, é
lógico que só na Lunda Sul se encontrem terras livres, de acordo com o entendimento
comum. Estes aspectos podem ser indicadores importantes para a definição de uma política
fundiária futura.
Outra conclusão da maior importância a reter do estudo é a de que nas comunidades estudadas a
terra não constitui actualmente um problema que preocupe as populações, incluindo os
deslocados e desmobilizados. Mesmo na única comunidade em que as áreas médias parecem ser
insuficientes (Cassoma no Huambo), isso não foi apresentado como uma preocupação imediata.
Apenas os agricultores mais ligados ao mercado parecem ter a percepção devida da situação, pelo
que começaram já a adquirir terras nos espaços de aldeias próximas, um indicador da ruptura do
quadro aldeão tradicional. Mas isso pode ser aparente, pois o que se verifica em certas regiões de
onde chegam notícias preocupantes (Kuanza Sul, Huíla, Kunene) faz pensar que a terra pode vir a
constituir um sério problema a médio ou mesmo a curto prazo. O que provocou a situação de
Cassoma foi sobretudo o aumento demográfico. Se não houver encaminhamento urgente da
força de trabalho rural para outras direcções e se forem autorizadas novas concessões de
terras para instalação de fazendas na região – e é possível generalizar para quase toda a
província do Huambo – as unidades familiares não terão qualquer viabilidade e entrarão
em colapso, com consequências no aumento da pobreza e provavelmente na instabilidade
social. Mas esses perigos não terão origem apenas na instalação de fazendeiros estranhos às
comunidades. A dinâmica social e empresarial que se constatou nas regiões estudadas na
Caála – e o mesmo poderá acontecer noutras – sugere que os empresários locais emergentes
estão a fazer acumulação de capital que lhes permite comprar terra aos pobres e isso levará
à concentração fundiária nas suas mãos a curto e médio prazo, com o mesmo tipo de
consequências.
O que se diz no parágrafo anterior não invalida uma outra igualmente importante conclusão: as
mulheres, por força do estatuto social menor de que usufruem nestas comunidades, em contraste
com a lei oficial vigente que lhes reconhece direitos iguais aos dos homens, beneficiam de
direitos à terra restritos e condicionados. Esta é uma situação que dever ser encarada – ainda
que com as devidas cautelas – por todos os actores que têm intervenção nas áreas rurais.
Em relação a deslocados e desmobilizados, ao contrário do que por vezes se diz, não parecem
necessários cuidados especiais com a situação, pois os seus problemas podem ser perfeitamente
resolvidos no quadro comunitário ou costumeiro, salvo quando as pessoas são de outras origens
etnoculturais, situação em que os direitos se tornam também restritos e condicionados.
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O facto de não haver problemas graves com a terra não significa que as populações que integram
destas comunidades não devam merecer uma urgente e especial atenção. Na verdade, os níveis de
pobreza detectados são muito preocupantes, particularmente no Huambo. Apesar de haver
localmente empresários emergentes com notáveis dinâmicas de crescimento do seu património, a
esmagadora maioria da população não tem condições para, sem ajuda exterior à comunidade,
enfrentar a pobreza. Isso está patente na forma como algumas delas estão a procurar soluções,
vendendo terra ou utilizando de forma inadequada os recursos florestais de que dispõem, sem
terem em conta o futuro. Por outro lado, as instituições do Estado estão muito longe das
comunidades e bastante fragilizadas, sem recursos e, sobretudo, sem ideias inovadoras nem visão
adequada para enfrentarem os problemas com que se deparam, como os da baixa produtividade
do milho no Huambo, da reintrodução do arroz na Lunda Sul e da crise do café no Uíje, só para
citar alguns exemplos. Em particular, a situação no Huambo justifica que as atenções dos
interventores (Estado, ONGs, Igrejas, doadores) privilegiem a região, algo que não é
facilmente aceite por algumas instituições do Governo.
Apesar dos progressos verificados nos dois últimos anos, continua ainda a haver grande
perplexidade à volta do conhecimento sobre a problemática das terras para fins agrícolas e muito
mais no que respeita à gestão das terras a nível nacional. Essa foi uma das razões que levaram a
que se achasse ser prematura a aprovação da lei. Não havendo condições para a sua
implementação, colocar-se-ão toda a sorte de problemas e injustiças. Por outro lado, há aspectos
que é necessário continuar a estudar e haveria toda a vantagem em conhecer outras realidades
africanas, principalmente na região austral. Esta é, aliás, uma questão que deve merecer cuidada
atenção. A prevista integração regional, com a consequente liberdade de circulação para pessoas
e capitais, vai trazer novos problemas que terão, desde já, de ser encarados.
É patente nas comunidades estudadas uma flagrante e generalizada falta de informação
sobre a questão das terras e sobre os processos políticos do País. Apenas em 30% havia
alguma informação sobre a lei de terras, embora sempre muito limitada. Isso acontece mesmo em
aldeias que se situam muito próximas das sedes dos municípios, o que permite imaginar o que
sucederá noutras paragens. Para além do mais, a falta de informação afecta a marcha para a
autonomização gradual que algumas comunidades estão a experimentar em Angola, fundamental
para a sua participação em processos de mudança e para a construção da cidadania.
Finalmente, é preciso ter em linha de conta que a futura lei de terras vai provocar dificuldades
de vária ordem que é necessário saber enfrentar, como os decorrentes da manutenção do
princípio “dualista” que, embora se reconheça difícil de contornar nas actuais
circunstâncias, apresenta aspectos de difícil convivência problemática face aos dois tipos de
direito, formal (do Estado) e costumeiro; o problema do registo das “terras comunitárias”
devido à sua natureza real e à falta de capacidade das instituições e de recursos financeiros
por parte das populações; a falta de segurança das comunidades enquanto não tiverem os
seus títulos e muitos outros. Agora que a nova lei está em vias de ser implementada, é
necessário lutar para que ela seja considerada uma “lei de bases” que permita a elaboração e
aprovação de outras leis que venham a corrigir muitos dos erros e imprecisões constatados.
Muitos dos aspectos referidos nestas conclusões reforçam as ideias defendidas desde há muito
pela Rede Terra e por várias outras organizações da sociedade civil angolana. A realidade rural
angolana é pouco conhecida e a nova lei deveria ter sido antecedida por estudo plurisectoriais nos
domínios da história, antropologia, sociologia, agronomia, economia e direito costumeiro que
permitissem um melhor domínio sobre o “estado da arte” e comparações com as realidades de
outros países africanos com os quais temos afinidades e soluções por eles encontradas para os
problemas comuns. Se uma nova lei de terras é necessária e não deve ser desvalorizada pela ideia
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de estabilidade que transmite, é urgente uma política agrícola adequada que reflicta os problemas
da agricultura angolana e os desejos e interesses dos agricultores. Dificilmente numa situação tão
diversificada será possível encontrar soluções homogéneas que contemplem os interesses de
todos. Por isso a solução para a questão rural deve ultrapassar a competição entre os sectores
empresarial e familiar e radicar, antes, na sua complementariedade como base de um
desenvolvimento endógeno e modernizante. Assim sendo, o melhor domínio para o investimento
privado será, pois, o do estabelecimento de parcerias em que os agricultores pobres entram com a
terra e o trabalho e os investidores com o capital e com o conhecimento técnico e de mercado em
acções a montante ou a jusante do ciclo produtivo. Esta seria uma boa estratégia para se dar um
golpe no “dualismo”.
Tendo em conta o que ficou plasmado acima, tornam-se pertinentes as seguintes recomendações:
1. Que a Rede Terra desenvolva uma estratégia de influência política a diversos níveis visando:
1.1. A formulação de uma política agrária por parte do Governo que tenha em conta e
diversidade do País e os problemas reais dos agricultores pobres, garantindo-lhes
segurança em termos de propriedade das terras de que dispõem e do acesso a quem não a
tenha;
1.2. A adopção de um programa de apoio aos agricultores familiares para que eles possam
obter títulos e registar as suas terras nos termos da lei;
1.3. A adopção, pelo Governo, de medidas que orientem a cedência de terras a empresários
apenas com base em estudos adequados e independentes e após verdadeiras negociações
com as populações envolvidas. Tais estudos deverão contemplar soluções para os
problemas dos agricultores que, eventualmente, possam ser prejudicados;
1.4. A adopção, pelo Governo, de uma orientação que suspenda a concessão de terras em
regiões críticas, particularmente no Huambo e noutras regiões problemáticas. No caso
particular do Huambo recomenda-se o estudo de possíveis parcerias entre os sectores
empresarial e o familiar para fomento da agroindústria, fundamental para a criação de
empregos para os excedentes de mão de obra existentes;
1.5. O aprofundamento, pelo Governo, do processo de descentralização que permita às
instituições do pode comunitário ou tradicional um novo papel na gestão da terra,
principalmente no que respeita ao registo.
1.6. O desenvolvimento de estudos que permitam um melhor conhecimento da realidade rural na
sua complexidade e diversidade e a assumpção de novos sistemas de produção que possam
dar solução, de modo sustentável, aos problemas que afligem os agricultores das três
províncias contempladas neste estudo;
1.7. O desenvolvimento de estudos sobre as soluções encontradas noutros países em situações
similar;
1.8. A adopção, pelo Governo, de uma estratégia de desenvolvimento da agricultura familiar
que possa contribuir para o fim da situação dualista actual.
2. Que as ONG que integram a Rede Terra e outras implementem projectos e programas
dirigidos às comunidades no sentido de:
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2.1. Promover a acção cívica de cidadãos para que as comunidades possam, progressivamente,
assumir a defesa dos seus direitos;
2.2. Dar combate à pobreza através de acções na área da produção agrícola, da gestão dos
recursos naturais e do fomento de emprego rural não agrícola;
2.3. Participar nos esforços que conduzam à adopção de novos e mais sustentáveis sistemas de
produção;
2.4. Conceber programas que contribuam para uma estratégia de desenvolvimento da
agricultura familiar.
3. Que a Rede Terra e as ONG que trabalham nas áreas rurais promovam acções de
defesa dos direitos dos agricultores pobres à terra, nomeadamente:
3.1. Influenciando o Governo no sentido de apoiar a demarcação das terras comunitárias e
tornar os mecanismos mais simples e descentralizados;
3.2. Apoiando projectos de demarcação de terras comunitárias nas áreas mais empobrecidas;
3.3. Estabelecendo acordos com os serviços oficiais de cadastro para que estes possam ser
dotados de mais capacidades e direccionar as suas acções a favor dos agricultores pobres.
4. Que a Rede Terra continue a prestar a devida atenção ao problema da legislação e em
particular à elaboração dos regulamentos previstos por forma a que:
4.1. Os regulamentos venham a ser adequados às especificidades de cada região (por exemplo,
a existência ou não de terras comunitárias);
4.2. Sejam contemplados os mecanismos específicos de resolução de eventuais conflitos;
4.3. Sejam estabelecidos diferentes regimes para os casos em que o domínio útil consuetudinário
tenha de conviver com o domínio útil civil e o direito de superfície para os terrenos
emparcelados para cada cidadão;
4.4. Seja clarificado o conceito de comunidade tentando aproximá-lo do conceito sociológico
que advém da realidade constatada, o que poderá traduzir-se numa flexibilidade que
contemple tanto uma aldeia, como um conjunto de aldeias, ou parte de uma aldeia,
consoante as afinidades, identidades e pertenças que concorrem para o próprio conceito;
4.5. Seja introduzido um mecanismo específico de protecção dos cidadãos com títulos nas áreas
consideradas comunitárias;
4.6. Sejam contempladas as normas sociais em vigor que não conflituem com o direito formal,
após seu levantamento e estudo exaustivo;
4.7. Seja clarificado o acesso à justiça para que o acesso à justiça estadual não seja condicional
ao recurso prévio à justiça comunitária.
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5. Finalmente, que a Rede Terra e outras organizações promovam ou incentivem a
promoção de novos estudos sobre a realidade rural e fundiária do país que lhe permitam
melhor exercer a sua influência sobre as políticas públicas.