Relatorio Boa VistacomAnexos
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INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA SUPERINTENDENCIA REGIONAL DO RIO GRANDE DO NORTE (SR 19)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN FUNDAÇÃO NORTE RIO-GRANDENSE DE PESQUISA E CULTURA - FUNPEC
RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BOA VISTA (RN)
Complementação
Convênio UFRN / INCRA-RN Natal – 2007
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Equipe da pesquisa antropológica:
Julie Antoinette Cavignac – Coordenador (UFRN)
José Antônio Fernandes de Melo – bolsista (UFRN)
Gilson José Rodrigues Junior – voluntário (UFRN)
Sebastião Genicarlos dos Santos – voluntário (UFRN)
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- Pretinho de Angola, Para onde vai?
- Para a Conceição,
Vamo festeja!1
1 “Pretinho de Angola”, versão de canto religioso de Congo coletada por Mário de Andrade (1982: 114-115) em 1928 durante sua viagem no Rio Grande do Norte. Para mais explicações, ver pp.14-15. Interessante notar que “Conceição” é o nome antigo de Jardim do Seridó.
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RESUMO
A comunidade quilombola de Boa Vista é situada no sertão do Rio Grande do Norte, no município de Parelhas. O grupo mantém uma longa memória genealógica que remonta aos meados do século XVIII, época em que a "retirante" Tereza veio se instalar nas terras do coronel Gurjão. A pesquisa documental comprove a ancestralidade da ocupação do território. A memória do grupo é composta pela rememoração dos laços genealógicos fundados nos inter-casamentos, tem, como principal função de determinar a divisão das terras coletivas entre as famílias. O sentimento de identidade é mantido através a reafirmação das relações de parentesco, o compartilhamento de uma narrativa de fundação e de uma história comum e o pertencimento à Irmandade do Rosário. Apesar das mudanças ocorridas na organização econômica e social do grupo, constatamos que as principais formas de solidariedade foram mantidas, mesmo se ressignificadas: as relações de parentesco, a Irmandade do Rosário, a dança do Espontão e a devoção à santa. Ao longo dos anos, a comunidade sofreu vários esbulhos das terras por parte dos proprietários vizinhos. Com o processo de desertificação se agravando e com a crise do algodão, a partir dos anos 1970-80, os moradores tiveram que abandonar gradativamente as atividades agrícolas, empregando-se nas cerâmicas ou tendo que migrar para cidades a procura de emprego. O trabalho agrícola continuou a ser uma atividade de subsistência, apesar das dificuldades encontradas. O território atualmente ocupado pelas famílias que encontra-se na área mais crítica de desertificação da região, tornou-se insuficiente para a manutenção do grupo: as atividades agrícolas encontram-se reduzidas, os mais jovens tem que sair da Boa Vista para procurar empregos nas cerâmicas circunvizinhas, nas cidades da região ou fora do Estado. As mulheres assumem um papel central na vida cotidiana e política do grupo, pois são elas que se projetam como lideranças e que sustem os projetos de desenvolvimento (melhorias da infra-estrutura, artesanato, pesca).
Proposta de delimitação da terra de quilombo: Inclui o local de moradia atual das famílias da comunidade, conhecido por Boa Vista dos Negros (aprox. 200ha.) e áreas cercadas por terceiros que avançam no território tradicional. Engloba terras que pertenciam tradicionalmente à comunidade, nas quais existem dois açudes. O território proposto é constituído por uma pequena área produtiva para plantio, o resto sendo áreas de serra e de caatinga que precisam ser reflorestadas e onde deverão ser implantados projetos de desenvolvimento sustentável. A área a ser proposta equivale à extensão de 445,2676 hectares. A demanda territorial foi objeto de várias reuniões públicas e é consensual entre os membros da comunidade, porém aparece como insuficiente para uma sustentabilidade do grupo e sua reprodução social.
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SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................................................................... 4
SUMÁRIO ..........................................................................................................................................5
ÍNDICE DE TABELAS, FIGURAS E MAPAS ....................................................................................7
INTRODUÇÃO......................................................................................................................................10
Metodologia .....................................................................................................................................12
Apontamentos teóricos....................................................................................................................16
O reinado da Boa Vista ................................................................................................................... 22
DADOS GERAIS................................................................................................................................... 24
1.1. Contexto regional...................................................................................................................... 25
1.1.1. Atividades econômicas.......................................................................................................27
1.1.2. Transformações da paisagem natural: ação antrópica e desertificação .......................... 30
1.2. A comunidade quilombola de Boa Vista .................................................................................. 34
SER ESCRAVO NO SERTÃO............................................................................................................... 36
2.1. Ocupação colonial: índios, negros e ‘marinheiros’ .................................................................. 38
2.1.1. “Plantadores de currais”................................................................................................... 39
2.1.2. As fazendas de criar e o algodão ...................................................................................... 44
2.2. A escravidão no Seridó ............................................................................................................ 48
2.2.1. “Vaqueiros e cantadores” ................................................................................................. 49
2.2.2. Escravos e fugitivos na região do Acauã ......................................................................... 62
2.3. “Negros retintos dançadores de Pulachi” .................................................................................67
OS FILHOS DE TEREZA ......................................................................................................................72
3.1. Tereza e o coronel Gurjão..........................................................................................................73
3.1.1. “De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio...”.................74
3.1.2. Pai Cosme, Mãe velha e Imbém........................................................................................79
3.1.3. A história silenciada......................................................................................................... 82
3.2. Memória e genealogia.............................................................................................................. 88
3.2.1. A casa da pedra e o tesouro dos índios ............................................................................88
3.3.2. A memória dos nomes e as genealogias .......................................................................... 94
3.3. A irmandade do Rosário .........................................................................................................102
3.3.1. Irmandades negras no Seridó.........................................................................................103
3.3.2. Réis e Rainhas na casa do Rosário .................................................................................109
AS TERRAS DA BOA VISTA............................................................................................................... 119
4.1. A transmissão das terras .........................................................................................................120
4.1.1. “... que assinou somente ele, juiz, por ela ser mulher e não saber escrever...” .............. 121
4.1.2. Domingos, Manoel, André... ...........................................................................................123
4.1.3. Terras herdadas, terras compradas ................................................................................128
4.2. “Essa terra é da gente, dos negros”.........................................................................................133
6
4.2.1. O fracionamento das terras ............................................................................................134
4.2.2. Os esbulhos: “a terra sumiu”..........................................................................................139
4.3. Patrimônio: território e família ..............................................................................................149
4.4. Á margens das fazendas e das cerâmicas ...............................................................................154
4.4.1. Brocar o mato.................................................................................................................. 155
4.4.2. A erosão: gado e cerâmicas ............................................................................................163
A BOA VISTA DOS NEGROS: ............................................................................................................166
ORGANIZAÇÃO SOCIAL....................................................................................................................166
5.1. A Boa Vista dos Negros: autonomia perdida e mudanças......................................................167
5.2. Migração.................................................................................................................................. 173
5.3. Os quilombos velhos ............................................................................................................... 176
5.3.1. Parentesco ....................................................................................................................... 177
5.3.2. Moradia e sociabilidade................................................................................................. 180
5.4. Organização política ...............................................................................................................183
5.4.1. Insersão local e fronteiras étnicas...................................................................................184
5.4.2. As mulheres de Boa Vista ............................................................................................... 191
ÁREA PROPOSTA E RECOMENDAÇÕES.........................................................................................198
6.1. Delimitação do território.........................................................................................................199
6.2. O estatuto das áreas requisitadas .......................................................................................... 202
6.3. Perspectivas para a comunidade ........................................................................................... 205
1- Projetos de reflorestamento e preservação da fauna .......................................................... 205
2- Projetos produtivos e geração de renda.............................................................................. 206
3 - Projetos culturais e geração de renda alternativa.............................................................. 207
6.4. Parecer conclusivo ................................................................................................................. 209
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................213
ANEXOS..............................................................................................................................................227
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ÍNDICE DE TABELAS, FIGURAS E MAPAS
Fotografias
Fotografia 1 – Boa Vista e a serra do Marimbondo (jun. 07).............................................................. 64
Fotografia 2 - Pais de Dona Chica e Seu Zé Vieira (jan.07). ............................................................... 80
Fotografia 3 - Casa de Imbém (1941)................................................................................................... 86
Fotografia 4 - Seu Manoel Miguel e Dona Chica no lugar onde ficava a casa de Imbém (março 07).86
Fotografia 5 - Cruz de Cazumbá, José Fernandes da Cruz, marido de Dona Geralda falecido num
acidente em 1990 (março 07). ................................................................................................... 90
Fotografia 6 - Dona Geralda (março 07). .............................................................................................91
Fotografia 7 - Ruinas da casa de Theodôzio (maio 07). ...................................................................... 93
Fotografia 8 - Seu Manoel Miguel e sua esposa, Guiomar (fev. 07). .................................................. 99
Fotografia 9 - Réis de congo (11/abr/1938), Pombal (PB). ................................................................104
Fotografia 10 - Igreja do Rosário, Acari - RN (fev. 07). .....................................................................107
Fotografia 11 - Dona Inácia Caçote com 91 anos (Jardim do Seridó, maio 07). .................................111
Fotografia 12 - Zé de Biu e a zabumba velha feita de caixa de bacalhau (jan. 07)............................. 112
Fotografia 13 - Tambor e Espontão do Rosário (Jardim do Seridó, dez. 2006)................................ 113
Fotografia 14 - Tereza participando da festa do Rosário da Boa Vista (foto de Tereza, s.d., Boa Vista).
................................................................................................................................................... 114
Fotografia 15 - Irmandade do Rosário de Currais Novos (1943). ...................................................... 115
Fotografia 16 - Os negros do Rosário com Dr. Mauro, então prefeito de Parelhas. .......................... 116
Fotografia 17 - Nossa Senhora do Rosário e São Sebatião (Jardim do Seridó, abril 07)................... 117
Fotografia 18- Maria Serafina da Conceição, Imbém (1840-1946)....................................................125
Fotografia 19 - Zé de Paulina fumando cachimbo (maio 07). ............................................................126
Fotografia 20 - Marco da terra na serra do Marimbondo (junho 07)................................................133
Fotografia 21 - Os herdeiros de Theodôsio: Zé de Paulina e Sandro (maio 07). ............................... 135
Fotografia 22 - Os herdeiros de Theodôzio no local onde era a casa de Maria Vicente (junho 07). .144
Fotografia 23 - Zé de Paulina explicando os limites da terra (maio 07)............................................145
Fotografia 24 - Bernardo de Sena e Silva, fundador e professor da escola do sítio Juazeiro entre 1883
e 1914......................................................................................................................................... 157
Fotografia 25 - Florêncio Luciano, prefeito de Parelhas. ................................................................... 157
Fotografia 26 - Rio Cobra (março 07). ...............................................................................................158
Fotografia 27 - Roçado na vazante do açude (maio 07). ....................................................................159
Fotografia 28 - Vegetação na serra do Marimbondo (jun. 07). .........................................................160
Fotografia 29 - Cultivo em vazante - açude (Boa Vista, jun. 07)........................................................160
Fotografia 30 - Área desmatada na serra do Marimbondo (jun. 07)................................................. 161
Fotografia 31 - Criação de porcos (jan. 07)......................................................................................... 161
8
Fotografia 32 - Cerâmica e gado (mar. 07).........................................................................................164
Fotografia 33 - Antiga escola de Boa Vista, hoje centro comunitário (maio 06)...............................169
Fotografia 34 - Parentes da Boa Vista: Sebastião G. dos Santos (Caicó), Luiz E. do Nascimento Neto
(Jardim), Seu Veríssimo e Dona Nina (Parelhas) [Parelhas, março 2007]. ........................... 175
Fotografia 35 - Quintal de uma casa (fev. 07). ................................................................................... 181
Fotografia 36 - Casa de Zé de Paulina e família (maio 07). ..............................................................182
Fotografia 37 - Quintal com tanque de lavar roupa (março 07). ......................................................183
Fotografia 38 - Placa que anuncia a comunidade quilombola de Boa Vista (maio 06).....................185
Fotografia 39 - Casa da Irmandade do Rosário (Jardim do Seridó) - 1863...................................... 188
Fotografia 40 - As pérolas negras (fev. 07) e a dança do Espontão (set. 06)....................................190
Fotografia 41 -Reunião comunitária (maio 07). ................................................................................ 191
Fotografia 42 - Reunião informal na casa de Dona Chica (março 07)...............................................192
Fotografia 43 - Eleição na Associação (maio 06). ..............................................................................193
Fotografia 44 - Discurso de Maria das Graças (Preta) reconduzida na presidência (maio 06). .......193
Fotografia 45 - Cisternas do projeto Água de beber (jan. 07). ...........................................................194
Fotografia 46 - Reunião na Boa Vista sobre os limites da terra - 17/05/07 (Suelma, Elsa e Manoel
Miguel)......................................................................................................................................195
Fotografia 47 - Irmandade do Rosário (s.d.). ..................................................................................... 197
Mapas
Mapa 1: Localização de Parelhas ......................................................................................................... 25
Mapa 2 - Localização de Boa Vista (Parelhas - RN). ............................................................................35
Mapa 3 - Lugares das Festas do Rosário e origem dos quilombolas (Boa Vista). .............................105
Mapa 4 - Ocupantes do território quilombola....................................................................................148
Mapa 5 – Mapada ocupação tradicional de Boa Vista. ...................................................................... 151
Mapa 6 - Croqui da Boa Vista (maio 2006)........................................................................................ 171
Mapa 7 - Demanda territorial .............................................................................................................201
Tabelas
Tabela 1: Taxa de crescimento populacional (1970-1996). ................................................................. 26
Tabela 2 - População do município de Parelhas (2000). .....................................................................27
Tabela 3 - Dados econômicos lavouras temporárias e permanentes - quantidade produzida........... 28
Tabela 4 - Dados econômicos - extração vegetal - quantidade produzida.......................................... 28
Tabela 5 - Dados econômicos - pecuária - efetivo de rebanhos (cabeças). ......................................... 29
Tabela 6 - IDH - Índice de Desenvolvimento Humano....................................................................... 29
Tabela 7 - Dados econômicos – indicadores de pobreza..................................................................... 30
Tabela 8 – População escrava - Rio Grande do Norte e Seridó (1811-1888). ......................................61
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ABREVIAÇÕES
ABA: Associação Brasileira de Antropologia ADCT/CT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal APA: Área de Proteção Ambiental ADECONB: Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista. COECQRN: Coordenação estadual das comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte DAN/UFRN: Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte EDUFRN: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte EMPARN: Empresa Agropecuária do Rio Grande do Norte FCP: Fundação Cultural Palmares FEMURN: Federação dos Municípios do Rio Grande do Norte IBAMA: Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEMA/RN: Instituto de Defesa ao Meio Ambiente do Rio Grande do Norte IDH-M: Indicio de Desenvolvimento Humano Municipal IHGRN: Instituto Histórico-Geográfico do Rio Grande do Norte INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPHAN: Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ITERN: Instituto de Terras do RN ITI: Instituto Nacional de Tecnologia da Informação MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário MP: Ministério Público MPF: Ministério Público Federal NUDES: Núcleo de Desenvolvimento Sustentável ONG: Organização Não-Governamental ONU: Organização das Nações Unidas PRODECOR: Programa de Desenvolvimento das Comunidades Rurais SEPPIR: Secretaria Especial de Políticas para Promoção de Igualdade Racial.
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INTRODUÇÃO
Inácio da Catingueira
Criado de João Luís
É doutor preto formado,
É vigário da Matriz,
Tanto fala como abóia,
Como sustenta o que diz
Inácio da Catingueira2
2 Verso de Inácio da Catingueira transcrito no livro Retalhos do meu sertão de José Bezerra (1978: 19).
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Boa Vista dos negros, comunidade quilombola situada na zona rural do
município de Parelhas, no Seridó norte-riograndense, é conhecida regionalmente
por estar ligada à irmandade do Rosário, perpetuando um culto secular em louvor à
“santa”. As quarenta e duas famílias residentes distribuídas em trinta casas,
somando, ao todo cento e vinte e quatro moradores, ocupam atualmente em torno
de duzentos hectares e se queixam de ter tido, ao longo dos anos, seu território
consideravelmente reduzido sem nunca ninguém ter vendido um “palmo de chão”.
A comunidade, que ainda não recebeu formalmente a certidão de auto-
reconhecimento da Fundação cultural Palmares, apesar deste ter sido emitida em
06 de abril de 2004, encontra-se representada através da Associação de
desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB, criada em 2002.
O grupo solicitou, em 09 de maio de 2004, junto ao Incra/RN, a regularização
fundiária do seu território tradicional.
O relatório aqui apresentado é fruto do convênio assinado em 2006 entre a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) e tem como objetivo complementar e
atualizar os dados coletados em 1998 pelo pesquisador Alecsandro P. Ratts: na
época, este elaborou um relatório técnico-científico da comunidade para o projeto
“Mapeamento e sistematização das áreas de remanescentes de quilombos” da
Fundação Palmares.3 Visa fornecer informações para o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação e a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes
de quilombo, localizadas no município de Parelhas (RN), contendo, por
conseguinte, a descrição dos quadros históricos, geográficos, sociais e
antropológicos, tendo como enfoque principal, a questão territorial e identitária.
Indica os princípios de ordem social e histórica que permitem reconhecer à
3 O relatório encontra-se no processo aberto pelo Incra.
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comunidade de Boa Vista o direito instituído pelo artigo constitucional 68 do Ato
das disposições constitucionais transitórias, da Constituição federal de 1988.4
Metodologia
O relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-
cultural da comunidade quilombola de Boa Vista foi elaborado entre os meses de
outubro e maio de 2007. A preparação deste relatório foi acompanhada por
diferentes representantes e membros da comunidade quilombola citada e os
resultados parciais da pesquisa foram apresentados em duas reuniões públicas, nos
dias 16 de abril e 10 de maio 2007. Da mesma forma, em diferentes ocasiões, houve
uma discussão aberta e coletiva sobre os limites territoriais e, conseqüentemente,
um debate sobre os direitos ligados ao reconhecimento do grupo como quilombola,
tendo chegado, no mês de maio 2007, a um consenso sobre os limites do território
a ser pleiteado.
Utilizamo-nos de pesquisa bibliográfica e documental, de entrevistas e dados
colhidos em trabalhos de campo, especificamente no que diz respeito à elaboração
de genealogias e observação da situação política, aplicando os preceitos da
etnografia. Também, contamos com os dados empíricos recolhidos entre 1990-91 e
outros em 2006 durante pesquisas exploratórias na comunidade (Cavignac 2006).
Devido ao curto prazo para realizar a pesquisa histórica, solicitamos o auxílio de
um aluno do curso de história do CERES/UFRN-Campus de Caicó, Sebastião
Genicarlos dos Santos. A dispersão e a quantidade das fontes primárias disponíveis
e não estudadas dificultou a consulta e realização de uma pesquisa consistente das
fontes documentais. Mesmo assim, no que for possível, procuramos realizar um
4 O direito de reintegração dos territórios tradicionalmente ocupados pelos grupos está previsto no Artigo 68 do ADCT, da Constituição federal de 1988 e a titulação das terras visa garantir o domínio e posse pelos seus ocupantes tradicionais, independentemente da existência de títulos de propriedade, assegurando ainda, em lei, alternativas econômicas viáveis, compatíveis com a cultura e os valores do grupo.
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levantamento de dados em arquivos, institutos e bibliotecas.5 Da mesma forma,
foram solicitadas informações a órgãos públicos estaduais e municipais que
disponibilizaram publicações e documentos, sobretudo no que diz respeito a
questões envolvendo o meio ambiente e a projetos de desenvolvimento em curso.
Acompanhamos o curso de capacitação quilombola do Rio Grande do Norte,
"Participação política e controle social das políticas públicas", em particular, a
oficina sobre regularização fundiária organizada pelo INCRA/RN; evento que foi
realizado pela prefeitura municipal de Parelhas, da COECQRN e da SEPPIR entre
os dias 15 e 17 de março de 2007; nessa ocasião, a questão territorial foi
amplamente discutida. Também, nossa equipe acompanhou em diferentes
momentos os trabalhos dos técnicos do INCRA: o cadastramento das famílias
realizado em novembro 2006, o levantamento cartorial iniciado em 2004, a
pesquisa agronômica e a delimitação do perímetro, em junho 2007. Nessas
diversas ocasiões pudemos observar com mais proximidade o quadro de interesses
e tensões no qual se desenvolve, localmente, a questão territorial.
Os trabalhos de campo foram iniciados em outubro de 2006 e se estenderam
até o mês junho de 2007.6 Nosso trabalho empírico consistiu inicialmente na
5 Realizamos levantamentos bibliográficos na Biblioteca Câmara Cascudo, na biblioteca municipal de Parelhas, no IHGRN, no Núcleo de estudos históricos (NEAD) e no Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses (NCCEN), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bem fizemos pesquisa como em acervos particulares. Contatamos a Prefeitura de Parelhas, através das secretarias de turismo, ensino e de assistência social. Foi também solicitada a realização de uma pesquisa nos cartórios de Parelhas, de Jardim do Seridó e no Fórum de Parelhas. Conforme manda o artigo 68 do Ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) de 1988, tratando-se de documentos referentes a escravos ou a remanescentes de quilombos, a documentação escrita deve ser preservada e tombada pelo IPHAN. Assim, além da documentação referente à Irmandade do Rosário que existe em Jardim do Seridó e, provavelmente na Cúria de Caicó, encontramos vários documentos cartoriais e um título de terras datado de 1889 que está em possessão da Associação. No que diz respeito ao patrimônio construído, existe uma casa em Jardim do Seridó que pertence à Irmandade do Rosário e que representa uma marca arquitectonica importante para manutenção do grupo e da sua história. 6 Como se tratava da complementação e da atualização das informações coletadas em 1998 pelo pesquisador A. Ratts, foram alocados recursos para três meses de trabalho para elaboração do relatório antropológico; prazo que não foi suficiente e que teve que ser estendido sem complementação orçamentária no quadro do convênio. De fato, uma das regras básicas para realização de qualquer estudo antropológico é a familiaridade e a confiança mútua adquirida no
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reconstrução do processo histórico de ocupação territorial e de formação étnica de
Boa Vista, no reconhecimento e no levantamento dos critérios de auto-identificação
dos membros do grupo como sendo quilombolas. Na presente pesquisa, fixamos
nossa atenção em trajetórias de vida peculiares para, posteriormente, remontar o
encadeamento dos fatos segundo a visão dos nossos interlocutores.7 Em todas as
fases do campo, solicitamos que os moradores envolvidos no processo
acompanhassem os nossos trabalhos, sobretudo as lideranças que compõe a
Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB,
através sua presidente Maria das Graças Fernandes da Cruz ou ‘Preta’.8 Para
elaboração deste relatório, desde nossa primeira visita em Boa Vista, tivemos o
cuidado de apresentarmos publicamente a equipe e as razões da nossa presença,
bem como divulgarmos resultados parciais em reuniões pequenas e ampliadas com
as lideranças comunitárias ou os representantes dos diferentes segmentos.9
Utilizamos, também, os dados coletados durante o cadastramento das famílias
moradoras de Boa Vista realizado em novembro de 2006 por funcionários do
INCRA. Fizemos uma adaptação para nosso banco de dados e complementamos as
informações coletadas com novas idas a campo. Também realizamos uma pesquisa
genealógica, contando, sobretudo, com o auxílio das pessoas mais idosas, com o
convívio com os moradores, essencial para conhecer melhor a realidade cotidiana do local, exercício que requer um prazo superior a três meses! 7 Para tanto, inspiramo-nos dos princípios da pesquisa antropológica e sociológica, sobretudo no que diz respeito à memória genealógica (Bourdieu 1983: 11-106; Cabral e Lima 2005; Oliveira 1988, 1995; Zonabend 1986 e 2000). Utilizamos uma metodologia centrada nas histórias de vida e nas relações de parentesco, como a desenvolvida em trabalhos de outros pesquisadores investigando a realidade brasileira, especificamente no Nordeste (Menezes 1992; Sigaud 1993; Woortman 1995), com os aportes do método regressivo adaptado às sociedades pós-coloniais (Wachtel 1990). 8 Conforme manda o artigo n. 6 do Decreto 4887 (nov. 2003) e o artigo 27 da Instrução normativa (set. 2005), a elaboração do relatório deve ser acompanhada por membros da comunidade. Outros moradores de Boa Vista, pessoas que nasceram na comunidade ou que mantém um laço de parentesco com o grupo e que estão interessados em participar do pleito coletivo, acompanharam o processo, mesmo morando em Parelhas, Currais Novos ou Caicó. Vários deles participaram, em momentos diferentes, das discussões e do trabalho da equipe. 9 Foi disponibilizada uma cópia preliminiar do relatório para a Associação comunitária. Também, é prevista a realização de um documentário sobre a Festa do Rosário em 2008.
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objetivo de recolher uma memória do grupo e as percepções nativas sobre a origem
e o passado de Boa Vista. O levantamento genealógico das principais famílias
permitiu que conversássemos de forma tranqüila durante os primeiros contatos e
abordássemos, em outro momento, assuntos ligados à questão territorial, pois não
havia consenso em relação ao pleito territorial. Na ocasião, foram analisadas as
relações sociais tecidas entre os diferentes membros do grupo: relações de
vizinhança, comunitárias, as condições sócio-econômicas das famílias, a divisão
social das tarefas, as formas de trabalho, de lazer ou propostas políticas que se
desenvolvem cotidianamente, orientadas, de modo geral, pelo parentesco. A equipe
participou da vida cotidiana, em épocas diversas do ano, possibilitando a
observação das relações de sociabilidade e dos diferentes usos sociais e funcionais
do território. Não encontramos dificuldades na obtenção de informações, pois
contamos, em todas as ocasiões com a colaboração dos demais integrantes do
grupo, sobretudo os que detem uma memória genealógica mais profunda.
Seguindo o método utilizado em antropologia, foram realizadas ao todo 26
entrevistas semi-diretivas – quinze delas foram gravadas e transcritas – com os
diferentes integrantes da comunidade em conjunto com a observação participante.
Também, realizamos várias reuniões informais entre parentes e vizinhos para
coletar informações sobre a história e a vida cotidiana do local. Ao total, foram dez
visitas dos membros da nossa equipe em Boa Vista, somando um total de mais de
trinta dias de pesquisa empírica. A equipe encarregada de elaborar o estudo
antropológico na comunidade, coordenada pela professora Julie A. Cavignac foi
composta por alunos de graduação da Universidade federal do Rio Grande do
Norte, alunos cursando ciências sociais – José Antônio de Melo (bolsista) e Gilson
José Rodrigues Junior (voluntário) -, e um aluno do curso de história, Sebastião
Genicarlos dos Santos (voluntário).
16
Apontamentos teóricos
Em Boa Vista, a devoção a N. Sra. do Rosário e a narrativa de fundação são
os principais marcos identitários do grupo: o ritual e as performances discursivas
dos eventos são atualizados; essas informam sobre as aspirações futuras do grupo.
Essa perspectiva permite também apreender o discurso nativo e as percepções do
mundo de um grupo que afirma sua diferença na referência a uma dança e a uma
história comum. Por isso, optamos para uma abordagem antropológica que associa
os temas do rito e da memória para iniciar uma reflexão sobre a importância social
(identitária) dessas expressões culturais, assim como dos elementos selecionados
pelos nossos interlocutores. Como aponta Jacques Le Goff (1988: 115), a memória e
a identidade coletiva articulam-se, para se expressar especificamente nos mitos de
origem e na genealogia, mas poderíamos, ainda, incluir as diversas manifestações
culturais ligadas ao culto de N. Sra. do Rosário cujas dimensões memoriais e
identitárias se destacam das outras expressões simbólicas da cultura local. A
memória narrativa e a resistência à escravidão ensaiada na dança do Espontão
possibilitam apreender a versão nativa da história, mesmo se essa foi silenciada.
Também, a memória não é homogênea, pois, sabemos graças os trabalhos
pioneiros de Maurice Halbwachs (1990) e do seu sucessor, Michael Pollak (1989),
que a memória não é uma simples reprodução dos fatos e dos acontecimentos:
apresenta-se como o produto de uma elaboração singular que os indivíduos têm
das suas práticas sociais; é antes de tudo um processo em perpétua mudança. A
pesquisa de parentesco e a utilização do método genealógico servem para entender
as histórias de vida, a constituição das famílias, mas também, possibilitam a
descrição das formas de organização social e política nos termos utilizados pelos
membros do grupo; o que os antropólogos chamam de "ponto de vista dos nativos"
(Geertz 1997).
A forma local de expressar os laços sociais fundamentando a noção de
comunidade é traduzida pela expressão “O povo da Boa Vista”. Assim como foi
demonstrado em outros contextos etnográficos, para os grupos camponeses, o
parentesco aparece como “um componente básico de sua reprodução social”
17
(Woortman 1995: 65), meio pelo qual os quilombolas reconhecem os herdeiros,
expressam o sentimento de pertencimento ao grupo e se identificam com o
território. Assim, a memória genealógica, associada à inscrição do grupo no espaço
tem um papel crucial no “sistema de representação e de identificação local”
(Zonabend 2000: 506). Também, veremos que é possível aplicar o modelo
explicativo da ‘casa’ ou do ‘sitio’ desenvolvido por vários autores, que, antes de
descrever um espaço de reprodução econômica dos grupos domésticos, designa um
conjunto de representações em torno do grupo que se representa como uma
‘grande família’ e, a partir disso, permite pensar as formas de herança dos bens, a
sucessão das terras, mas, também, a reprodução de outras expressões simbólicas
como a transmisão do nome, a história do grupo, o ritual, etc. (Lévi-Strauss 1974;
Mauss 2003; Woortman 1995). Assim, além de um uso tradicional e coletivo das
terras (Arruti 2006: 86-91), respondendo, em Boa Vista, a uma lógica de
transmissão familiar, encontramos um conjunto cultural que é passado de geração
em geração e que podemos designar como sendo uma tradição, com nossos
interlocutores: a permanência de alguns traços codificados da cultura expressa uma
estrutura mais profunda que se reproduz ao longo dos anos na vida cotidiana,
através dos gestos, das expressões lingüísticas ou das formas não verbais de
comunicação, das técnicas, enfim, de um conjunto amplo formado essencialmente
pelos conhecimentos sobre o meio ambiente, as representações simbólicas ligados
a ele, os usos do espaço, as formas artísticas, um vocabulário próprio, as expressões
religiosas, etc. (Lévi-Strauss 1983: XIX). Esses conhecimentos, técnicas e
expressões culturais se inscrevem num espaço e numa temporalidade particular à
sociedade estudada, atualizando-se regularmente e sendo, por conseguinte,
suscetíveis de mudanças. A definição de cultura de C. Lévi-Strauss (Ibid.) como
sendo um "conjunto de sistemas simbólicos" se assemelha ao conceito de habitus
elaborado por Bourdieu (1980: 88), definido como "sistemas de disposições
duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas
estruturantes, quer dizer, enquanto princípios geradores e organizadores de
práticas e de representações" que nem sempre são conscientes.
18
Por outro lado, o grupo estudado distingue-se dos seus vizinhos por serem
chamados e se reconhecerem como ‘negros’. Constatamos que a concepção de
“comunidade” que é associada ao termo “quilombola” foi naturalizada pelos
próprios atores, o que implica o reconhecimento de laços genealógicos, de um
território comum e de um passado compartilhado. Corresponde à definição
presente nos textos legais10:
O direito à propriedade da terra reconhecido no artigo 68 relaciona-se a uma herança, baseada no parentesco, a uma história baseada na reciprocidade e na memória coletiva e a um fenótipo como princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como valor operativo no interior do grupo (Ana Paula Comin de Carvalho in Aba 2006: 47).
Acompanhando Max Weber (1971: 416), encontramos em Boa Vista os
elementos fundantes de um grupo étnico, a saber, a identificação dos moradores
com valores comuns, a crença numa origem compartilhada, e a existência de uma
trajetória histórica própria. Esses elementos revelam-se, sobretudo, através da
descrição dos laços de parentesco travados ao longo das gerações com membros de
outras comunidades quilombolas vizinhas e de pessoas agregadas ao grupo ao
longo da sua história. A longa memória genealógica que pudemos coletar em
campo reflete a preocupação dos integrantes da comunidade em perpetuar a
história das famílias que estão na origem de Boa Vista, pois, como em outras
comunidades quilombolas:
Os critérios de pertencimento que caracterizam os grupos étnicos e que afirmam etnia como um tipo organizacional estão presentes nas situações referidas assim como também as representações sobre uma história do grupo que é continuadamente reconstituído e que invoca uma origem comum coetâna ao momento em que se afirma a autonomia produtiva. Essas representações remetem a uma história que se inicia em que deixam um trabalho subordinado a um senhor e passam a constituir unidades produtivas autônomas, baseadas no trabalho familiar combinado com o uso
10 É preciso esclarecer que o conceito de "quilombo" foi ressemantizado ao longo dessas últimas décadas, sobretudo após a efetivação das primeiras titulações das terras de remanescentes de quilombo no território brasileiro. Ver os trabalhos de Almeida (2002 e 2006) e Arruti (1997 e 2006).
19
comum dos recursos ambientais por um conjunto definido de grupos domésticos (Castanhede 2006: 34).
Assim, o principal critério de definição da ‘fronteira étnica’ que pudemos
observar in loco segue a lógica do "sangue": o pertencimento de um indivíduo ao
grupo pela filiação ou aliança, dá acesso a terra (Barth 1988: 32-33). É o grau de
consaguinidade que define os herdeiros e o casamento torna um estrangeiro,
parente. Por extensão, toda a parentela se encontrará numa relação especial com os
membros do grupo aliado. A unidade do grupo funda-se ainda em relações sociais
privilegiadas determinadas, em parte, pela participação do indivíduo na festa do
Rosário. Além disso, a vizinhança e as relações de trabalho aparecem como as
principais formas de relações com pessoas estranhas à Boa Vista. Assim, o estudo
das relações de parentesco e de sociabilidade aparecem como sendo instrumentos
preciosos que auxiliam a pesquisa etnográfica por oferecer uma ferramenta
metodológica potente e possibilitar o levantamento de dados referentes à
constituição do grupo e à sua história. Mas, como vimos, o sentimento de
pertencimento a um conjunto que é descrito como sendo àquele constituído por
laços de consangüinidade e formas de sociabilidade tecidas entre as famílias de Boa
Vista fundamenta-se numa representação simbólica; é a imagem que o grupo
construiu para si e para os outros e transmitiu ao longo da sua existência, pois,
como o sublinha C. Lévi-Strauss (2003: 61):
(...) um sistema de parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou de consangüinidade entre os indivíduos. Ele só existe na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato.
Reencontramos, então, os mesmos elementos presentes na definição do
grupo étnico: o parentesco, antes de designar um conjunto de relações sociais
definidas pela aliança ou pela consangüinidade, representa um sistema de idéias e
de percepções compartilhadas que corresponde a uma terminologia de nominação
de parentes e a comportamentos prescritos. A dimensão simbólica esta presente na
formação do grupo, seja ele formado por consangüinos ou seja ele constituído
através da afinidade. No caso dos quilombolas, a afinidade designa os indivíduos
20
que se integraram ao grupo, preferencialmente pelo casamento ou pela devoção a
N. Sra. do Rosário e que passam a compartilhar experiências e valores. Assim, o
parentesco e o ritual, ao serem utilizados pelos membros do grupo para afirmar
uma identidade étnica diferenciada, fundamentam as relações sociais.
Caracterizam-se como uma linguagem comum entre os “Negros da Boa Vista” ou
“do Rosário” que compartilham uma história, crença e, geralmente também, um
modo de vida. Nessas experiências sociais, a família ocupa um lugar de destaque,
mesmo se as formas de sustentabilidade do grupo conheceu mudanças, passando
de uma organização econômica em torno das unidades familiares produtivas
(agricultura) a uma vida cotidiana voltada pela procura de bens e serviços
localizados fora dos núcleos de residência, no caso, Parelhas.
Em todo caso, a memória e a dança são intimamente ligadas ao passado do
grupo e se expressa através de uma multiplicidade de expressões culturais, sejam
elas narrativas, artísticas ou rituais. Longe de ser imutável, a cultura, como
qualquer produção social, é submetida a um processo contínuo de mudanças,
obedecendo geralmente a uma determinada lógica. Segundo a definição de cultura
de Eduardo Viveiros de Castro (2002: 209), é "um conjunto de estruturações
potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais variados e de
absorver novos". Essa perspectiva aproxima-se da noção de identidade elaborada
por Manuela Carneiro da Cunha (1994):
(...) pode-se entender a identidade como sendo simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma, uma memória. A cultura não seria, nessa visão, um conjunto de traços dados e sim a possibilidade de gerá-los em sistemas perpetuamente cambiantes.
Observando as relações de parentesco, a sociabilidade e as manifestações
culturais em Boa Vista, podemos visualizar elementos de uma tradição que será, a
cada geração, reformulada em função das mudanças sócio-economicas ocorridas e
da dinâmica do grupo. Assim, veremos, a seguir como a memória e a identidade são
sujeitas a mudanças conjeturais, porém suas variações seguem as de uma estrutura
preexistente aos fatos evenemenciais; a Festa do Rosário aparece como sendo um
dos maiores exemplos da continuidade de uma expressão cultural de um grupo
21
subalterno (Sahlins 1987). Acompanhando os resultados dos trabalhos clássicos em
Antropologia da religião e adaptando-os ao contexto estudado, percebemos que o
rito tem como função principal a reprodução das normas e valores do grupo; a festa
religiosa é o momento durante o qual o grupo se revela e se consolida (Durkheim
1990). Também, a Festa dos negros do Rosário tem outro papel, o de lembrar uma
história invisibilizada: aparece, no final da análise, como uma ‘memória ritual’,
único registro de um passado silenciado (Severi 1993: 361). Não há cantos, só há
uma dança guerreira ao som dos tambores.
Assim, “os Negros da Boa Vista” afirmam-se como grupo étnico,
distinguindo-se dos seus vizinhos “brancos” (os “Barros” e os “Luciano”) e, ao
mesmo tempo, mantém viva uma devoção à Irmandade do Rosário: são
‘depositários’ de uma tradição religiosa secular que eles seguem à risca. Ao
reivindicarem um território, nossos interlocutores encenam práticas culturais
próprias: são conhecidos em toda região por estarem ligados à irmandade do
Rosário, perpetuando um culto em louvor à santa com a dança do Espontão. Se,
hoje, a devoção de N. Sra. do Rosário é considerada como sendo a expressão ritual
de maior importância para o grupo e é utilizada para afirmar uma diferença étnica,
veremos que a narrativa fundadora do grupo e a memória genealógica são também
as principais marcas identitárias dos ‘negros’, pois são constantemente acionadas
ao reivindicar a legitimidade da ocupação do território pelos herdeiros dos
primeiros quilombolas que fundaram Boa Vista.
A partir da perspectiva que prioriza o ritual, a memória, a representação
nativa do passado e a história das famílias, analisaremos aspectos ligados à
afirmação étnica e à territorialidade a partir de um conjunto designado por nossos
interlocutores. Serão analisados elementos da história local, da sociabilidade e da
organização social que podem ser observados ou evocados, como as narrativas
míticas e as versões explicativas da origem do grupo, as expressões idiomáticas, o
sistema de nominação, as estratégias matrimoniais, as técnicas agrícolas, os
cuidados do corpo, as receitas de cozinha, os contratos de trabalho, as formas de
religiosidade, etc. Aproveitaremos para refletir sobre a importância da transmissão
da memória genealógica e da história das primeiras famílias quilombolas na
22
ocasião da definição do território. Para isso, será preciso observar o papel da
solidariedade tradicional fundada nos laços de parentesco, nas redes de
sociabilidade, na patronagem e na constituição da imagem do grupo. Iremos assim,
investigar os processos de afirmação étnica através das vias simbólicas. Desta
forma, analisaremos como a história de fundação de Boa Vista, os laços de
parentesco, incluindo os sugeridos pelo pertencimento à Irmandade do Rosário, as
modalidades de transmissão do nome, a dança e o ritual religioso são definidores
da identidade étnica, pois desenham o contorno do grupo, sendo constantemente
instrumentalizados e atualizados.11 Assim, esses documentos servem para definir o
acesso a terra, justificar a defesa e a recomposição pelo menos parcial de um
território tradicional; veremos que esses elementos aparecem como centrais para o
entendimento da trajetória histórica da comunidade de Boa Vista.
O reinado da Boa Vista
Nosso objetivo principal, neste relatório, consiste na reunião dos elementos
descritivos referentes a ocupação ancestral do território, seu uso, a transformação
da paisagem natural e a importância das terras da Boa Vista para a população
quilombola que, como iremos demonstrar, as ocupam há mais de duzentos anos.
Inicialmente, iremos rapidamente tratar das questões relacionadas ao estatuto dos
remanescentes de quilombo no Seridó norte-rio-grandense e da existência de
comunidades negras na região. Para tanto, precisamos reavaliar a história da
presença dos descendentes dos escravos trazidos da África para o sertão do Rio
Grande do Norte, pois esta não aparece como foco das atenções da historiografia
tradicionalmente praticada a nível local. Esse esboço permitirá entender porque,
apesar dos primeiros registros de escravos estarem presentes na região no século
XVI e, em Boa Vista desde o século XVIII, encontramos poucos registros escritos
11 Nosso referencial teórico inspira-se dos seguintes autores: Castro 2002, Lévi-Strauss 2003, Wachtel 1990, Salhins 1987.
23
sobre a presença histórica de um grupo negro, pois sempre foi colocado à margem
da sociedade e da economia regional.
Na seqüência, iremos recorrer à tradição oral para reconstruir a história
mais recente “dos negros da Boa Vista” e cruzá-la com os registros que
encontramos na literatura regional. Apontamos, em particular, para a originalidade
da trajetória do grupo, fundada numa longa memória genealógica que lembra, a
todo o momento, a sua origem, a legitimidade da ocupação territorial, os limites e a
repartição atual das terras. A compreensão da constituição das famílias, das formas
de sociabilidade intra e extra-comunitária ou das relações sociais travadas com os
vizinhos e com os “irmãos do Rosário” é fundamental para entender a forma de
integração do grupo com a sociedade englobante, as suas atividades econômicas,
suas práticas religiosas e o uso do território. Assim, trataremos especificamente da
ocupação do espaço e da questão territorial, buscando compreender o processo de
esbulho das terras e as mudanças sócio-econômicas que a comunidade conheceu
que, de agrícola, passa a subsistir, em grande parte, das atividades ligadas à
produção da cerâmica, a oferta de serviços, a projetos de desenvolvimento e
auxílios governamentais. Uma tal perspectiva permite também capturar as formas
de organização social e política tais quais são pensadas e ensaidas pelos moradores
de Boa Vista do rio Cobra.
Ao longo da história, verificamos que existe uma continuidade social e
cultural na presença de um conjunto de unidades familiares afro-descendentes que,
hoje, se reconhecem como quilombola: a tradição oral, a longa memória
genealógica, as relações de parentesco se inscrevem num território próprio, a Boa
Vista dos Negros e se atualizam nos corpos, seja na encenação de uma dança
guerreira reservada aos homens, a dança do Espontão, ou nas diversas
reelaborações da herança africana que podemos observar hoje.
24
DADOS GERAIS
25
1.1. Contexto regional12
O município de Parelhas, localizado na micro-região homogênea
Seridó Oriental, tem uma área absoluta de 525,07 km², equivalente a 0,97% da
superfície estadual, com uma altitude média de 266 metros acima do nível do
mar.13 Limita-se ao norte com os municípios de Carnaúba dos Dantas e Jardim do
Seridó (RN); ao sul com Equador; a oeste com Jardim do Seridó e Santana do
Seridó (RN) e a leste com Picuí, Frei Martinho e Nova Palmeira (PB). As principais
vias de acesso a Parelhas são a BR-226 (Natal/Currais Novos) e a BR-427 (Currais
Novos/Carnaúba dos Dantas); RN-288 (Jardim do Seridó/Carnaúba dos Dantas).
Mapa 1: Localização de Parelhas
O município de Parelhas foi criado em 26 de novembro de 1920, pela
Lei n° 478, o povoado de Parelhas foi elevado à categoria de vila tendo sua
12 Os dados aqui disponibilizados foram retirados do documento “perfil do município de Parelhas” elaborado pelo Idema: http://www.rn.gov.br/secretarias/idema/perfil (acessado em 23/03/2007) e de Governo do Estado et alli. 2000, IBGE 2000, Melo 2005, Pan Brasil 2004, Silva 1989. 13 Coordenadas geográficas: latitude: 6º 41’ 16” sul; longitude: 36º 39’ 27” oeste .
26
freguesia criada no dia 8 de novembro, de 1926, data em que o município de
Parelhas foi desmembrado de Jardim do Seridó pela lei de Criação n° 630.
No Seridó, como em todas as áreas semi-áridas, não há um crescimento
populacional significativo e, em particular, verificamos um rápido decréscimo da
população rural a partir da segunda metade do século XX, devido à instabilidade da
economia agrícola, às secas periódicas e ao processo de desertificação (Melo 2005:
64; PAN Brasil 2004: 17). Porém, Parelhas parece destacar-se dos demais
municípios do Seridó, conseguindo manter sua população urbana. Se observarmos
as taxas anuais de crescimento, o município de Parelhas se destaca, tendo um
crescimento populacional elevado em relação à média do Seridó, sobretudo em
relação à sua população urbana:
Tabela 1: Taxa de crescimento populacional (1970-1996).14
POPULAÇÃO TOTAL
POPULAÇÃO URBANA
POPULAÇÃO RURAL
1970-96 1970-96 1970-96 Estado 1,95 3,59 - 0,49
Região do Seridó 0,86 2,99 - 1,59 Parelhas 1,46 3,22 - 2,04
A população total do município em 1985 era de 15.546 habitantes, dos
quais 10.521 moravam na zona urbana; em 1996 contava-se 18.187 habitantes,
sendo 3.533 habitantes na zona rural e 14.654 na zona urbana (Governo do estado
do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 187; IBGE 2000; Silva 1989: 8). No censo
populacional realizado em 2000 (IBGE), o município tinha uma população de
19.319 pessoas, sendo 9.515 homens (49,25%) e 9.803 mulheres (50,75%), com
uma taxa de crescimento anual de 1,52% e uma densidade demográfica de 36,7
hab/km². A zona rural conheceu um amplo decréscimo ao longo das três últimas
14 Governo do estado do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 189.
27
décadas. Acompanhando os dados mais recentes, essa tendência se acentuou
nesses últimos anos15:
Tabela 2 - População do município de Parelhas (2000).
POPULAÇÃO TOTAL
POPULAÇÃO URBANA
POPULAÇÃO RURAL
19.319
15.606 (80,78%)
3.712 (19,22%)
Fonte: IBGE – 2000.
Constatamos que atualmente a população do Seridó é essencialmente
urbana; a cidade de Parelhas, conhecida por sua fabricação de telhas, oferece
possibilidades de empregos nas cerâmicas e na indústria de mineração: em 2005,
das 150 cerâmicas existentes no estado do RN, 22 estavam situadas no município
de Parelhas, contando com aproximadamente 500 trabalhadores (63,19 % dos
empregos); também havia oito indústrias de extração mineral e sete pedreiras
(32,35 % dos empregos). A indústria cerâmica conheceu uma explosão no final do
século XX, pois em 1980 havia oito cerâmicas instaladas na região e, em 2001, 71
(CTmineral 2002; Melo 2005: 58, 78). Porém, a curto prazo, a concentração das
atividades em torno das cerâmicas se tornará insustentável e a mão de obra
empregada nesse setor, composta em parte de quilombola, terá que mudar de setor
de atividade.
Assim, a mudança drástica na economia local reflete-se na composição
demográfica do município: verificamos que a população, tradicionalmente rural,
concentra-se, a partir da segunda metade do século XX, na zona urbana (Melo
2005: 64).
1.1.1. Atividades econômicas
A economia regional, tradicionalmente ligada à agricultura e à pecuária,
conheceu, nas últimas décadas do século XX, uma profunda reconfiguração.
Enquanto a vocação pecuarista do município se mantém, a produção agrícola é
15 Em 2006, estima-se a população residente de 20.608 habitantes. Os dados apresentados aqui foram extraídos do site da Confederação dos municípios < http://www.cnm.org.br/> (capturado em 02/04/07).
28
praticamente nula e a produção extrativa encontra-se em franco declínio. Se, em
1942, 13 das 168 usinas de beneficiamento de algodão e de fabricação de óleo eram
situadas em Parelhas, hoje não encontramos nenhuma (Melo 2005: 72-73). Em
1990, havia 4.400 ha. de lavouras permanentes plantadas e, em 2000, há somente
29ha. No mesmo período, para lavouras temporárias, o número que era de 2.315ha
passa para 556ha.
Tabela 3 - Dados econômicos lavouras temporárias e permanentes - quantidade produzida.
1973 1981 1990 2002
Lavouras temporárias (t)
Algodão Arboreo - - - 7
Batata doce
920
360
180
0
Feijão
728
82
45
152
Milho em grão
490
10
67
175
Lavouras permanentes (t)
Algodão Arboreo
1.328
500
211
3
Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (2000)
Tabela 4 - Dados econômicos - extração vegetal - quantidade produzida.
1991 2000 2001 2002
Carvão vegetal (t) 40 21 22
23
Lenha (t) 190.600 25.931 26.190
24.891
Fonte: IBGE - Produção Pecuária Municipal (2000)
Apesar da tendência ao desaparecimento das atividades agrícolas, a criação
de animais se mantém, sobretudo em relação ao rebanho bovino e ovino. Para o
território a ser pleiteado, é uma das principais indicações de atividades a serem
implantadas para um desenvolvimento sustentável das unidades domésticas locais.
29
Tabela 5 - Dados econômicos - pecuária - efetivo de rebanhos (cabeças). Bovino 6.099 6.710 5.812 5.246 4.984 5.233 6.227
Equino - - 480 116 112 114 116
Galinha - - 1.340 6.195 5.886 5.591 5.840
Ovino 622 1.382 1.640 2.572 2.418 2.442 2.466
Fonte: IBGE - Pesquisa Pecuária Municipal (2000)
Mesmo se a região conhece problemas estruturais em relação a seu
desenvolvimento econômico, Parelhas destaca-se das outras cidades vizinhas pelo
seu dinamismo econômico ligado à presença de cerâmicas, a exploração de
minerais e a um comércio importante.16 Em 2002, foram recenseados 28
“estabelecimentos” que se dedicam a cerâmicas e ao garimpo de pedras, sobretudo
a turmalina. O número de empregos no setor cresce rapidamente: 635 pessoas em
1996, 1.006 em 1999 e 1.777 em 2002 (Melo 2005: 61; 80).
No município de Parelhas, mais de um terço da população recebe de 1 a 3
salários mínimos, com uma renda per capita de R$ 122,97 (IBGE 2000). A
expectativa de vida ao nascer é de 70,253 anos e a taxa de alfabetização de adultos é
de 77,15%. O índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M), em 2000,
era de 0,704, o que coloca o município na 14ª posição no ranking do estado do Rio
Grande do Norte, na 67ª posição no ranking da região Nordeste e na 2.912ª posição
do ranking nacional.17
Tabela 6 - IDH - Índice de Desenvolvimento Humano.
1991 2000
IDH - Educação 0,684 0,781
IDH - Longevidade 0,658 0,754
IDH – Renda 0,509 0,576
IDH - Municipal 0,617 0,704
Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano/PNUD
16 Há duas feiras semanais em Parelhas: uma é realizada da segunda-feira e, a outra, no sábado. 17 Dados do censo do IBGE (2000) disponibilizados no site da VIOLES/SER/UnB: <www.caminhos.ufms.br>, capturados em 02/03/07.
30
Apesar da melhoria geral dos índices (IDH), o município ainda encontra-se
numa situação delicada, contando uma porcentagem elevada de população vivendo
em condições sócio-econômicas precárias:
Tabela 7 - Dados econômicos – indicadores de pobreza.
1991
2000
% de indigentes 41,04% 23,00%
% de crianças indigentes 50,84% 36,08% Intensidade da indigência 39,39% 44,85%
% de pobres 66,61% 51,98% % de crianças pobres 73,59% 65,90%
Intensidade da pobreza 53,79% 44,40% Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano/PNUD
Na sede do município, encontram-se uma grande quantidade de serviços: o
cartório, o fórum judicial, os transportes, uma agência do Banco do Brasil, vários
comércios, a igreja católica principal, etc. A municipalidade de Parelhas possui dois
hospitais, uma unidade mista de atendimento, uma maternidade, sete postos de
saúde e 36 estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Há uma delegacia de
polícia com sete policiais civis e cinco militares (Melo 2005:66).
1.1.2. Transformações da paisagem natural: ação antrópica e desertificação
A situação ecológica da região tem uma incidência direta nas mudanças
ocorridas nas áreas rurais e em particular na comunidade quilombola de Boa Vista
que é situada numa das áreas do semi-árido rigoroso, no “Polígono das secas”.
Como espaço natural, o Seridó constitui uma importante região natural do semi-
árido nordestino, sendo afetado por secas cíclicas e conhece, cada vez mais, um
processo acelerado de desertificação. Segundo o Plano Nacional de Combate a
Desertificação – PNCD, que define desertificação como a degradação da terra nas
zonas áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas, resultantes de fatores diversos tais
como as variações climáticas e as atividades humanas, o município de Parelhas
31
está inserido em área susceptível à desertificação em categoria muito grave (Sousa
et alli. 2004).18 O clima tropical da região do semi-árido é quente e seco e
caracterizado por uma estação chuvosa irregular que dura num período
aproximado de dois a quatro meses, de janeiro a abril, correspondendo a 65% da
pluviosidade anual e pode se estender até julho (“o inverno”); a estação seca pode
atingir 11 meses e as precipitações médias anuais variam entre 400 e 600 mm. A
temperatura média é de 28,0°C - a temperatura mínima sendo de 18,0°C e a
máxima de 33,0°C. A umidade relativa tem como média anual 64% e contam-se
2.400 horas de insolação.
É igualmente importante destacar os aspectos geológicos e geomorfológicos
do município que são característicos do grupo Seridó. O relevo é de 200 a 400
metros de altitude, compreendendo algumas serras e serrotes. O município de
Parelhas encontra-se inserido, geologicamente, na Província Borborema e no que
diz respeito à bacia hidrográfica, à bacia do Piranhas-Açu. A riqueza mineral no
município possibilitou o desenvolvimento de atividades de mineração já na
Segunda guerra mundial: encontra-se com abundância, quartzos, pegmatitos
mineralizados, micaxistos, mármores, cálciossilicáticas, quartizitos,
metaconglomerados polimictos e ortoanfibólicos, turmalina.19 Há jazidas de gemas
(água marinha, turmalina, laluzita, cordierita, quartzo róseo) e outros minerais
com importância econômica, pelo seu uso industrial: barita, berílio, caulim, nióbio,
tântalo, tungstênio (sheelita), espodumênio, ambligonita, feldspato, coridon.
Também há uma ocorrência da argila para cerâmica vermelha utilizada, em sua
maioria, na construção civil, como tijolos, telhas, blocos, lajes, lajotas e outros
artefatos (Silva 1989: 11-12).
18 Na verdade é o estado como um todo que está suscetível à desertificação: são 48 mil e 706 km2, o que representa 92,3% da área do RN, compreendendo 143 municípios e uma população de 1 milhão e 563 mil e 478 habitantes. Existem áreas de conservação nos projetos de assentamento, em Almas, tem uma área de 250 ha com reserva legal de 50,3 ha., e em Sussuarana, uma área 165 ha com reserva legal de 33 ha. Também há o parque estadual Florêncio Luciano que foi criado pelo decreto estadual no 10.120 em 10.08.88, que encontra-se sob responsabilidade do IDEMA - RN. 19 Em Boa Vista, há uma pedreira cuja atividade cessou há quatro anos.
32
Figura - 1: Minerais radioativos e secundários na região de Parelhas20
A região natural do Seridó tem áreas de relativa fertilidade, porém erodidos
com o uso intenso dos solos, é parte dos ecossistemas da região das caatingas e
florestas deciduais do Nordeste que se caracteriza pela vegetação baixa, seca, com
cactos e arbustos espaçados, árvores espinhosas, formações arbusivas e plantas de
pequeno porte e espalhadas, arbustos e árvores baixas, ralas e de xerofitismo mais
acentuado e capim rasteiro. As espécies mais encontradas são o pereiro, o faveleiro,
o facheiro, o mandacaru, a macambira, o xique-xique e a jurema-preta (Governo do
estado do Rio Grande do Norte et alli. 2000: 46). No Seridó, dos 670 hectares de
cobertura florestal, apenas 150 estão em áreas de preservação permanente e
legalmente não podem ser explorados. Os sinais mais intensos da degradação estão
nos municípios de Parelhas, Cruzeta, Equador, Carnaúba dos Dantas, Currais
20 Figura extraída do pôster: “A radioatividade dos pegmatitos do Serió e seu gerenciamento através de um sistema de informações georeferenciadas” de Reinaldo A Petta, Thomas F. C. Campos e Michael Meyer, UFRN, 2006. Disponível em <http://www.cprm.gov.br/publique/media/Painel41.pdf> (capturado em 03/04/07).
33
Novos, Caicó, São José do Seridó e Acari, cidades afetadas diretamente pela
mineração e cerâmicas, atingindo, em 2001, uma população de 91 mil e 673
habitantes. 21
Um dos efeitos ambientais do uso intensivo do solo e do desmatamento para
uso doméstico e industrial foi o desaparecimento da vegetação nativa nas terras
próximas dos rios e o surgimento de terras estéréis nas antigas áreas de cultivo.
Assim, as formas de desenvolvimento econômico da região e as condições
ecológicas particulares do espaço em que vivem os quilombolas de Boa Vista devem
ser levados em conta no estudo das modificações do território ancestralmente
ocupado pelos remanescentes de quilombo.
21 Em 2001, o Rio Grande do Norte contava com uma população total de 2.849.711 habitantes. Fonte: Seridó: sobram projetos e falta solução, Tribuna do Norte(RN), 18/01/2004, disponível em < www.semarh.rn.gov.br/detalhe.asp?IdPublicacao=1815>, capturado em 19/02/2007.
34
1.2. A comunidade quilombola de Boa Vista
Caracterização – Comunidade quilombola Boa Vista dos Negros
Município: Parelhas
Estado: Rio Grande do Norte
Entidade representativa: Associação de desenvolvimento da comunidade
negra de Boa Vista - ADECONB, criada em 2002
População: 124 pessoas; 76 homens e 48 mulheres
9 crianças de 0 a 5 anos
24 crianças de 06 a 14 anos
13 jovens entre 14 e 20 anos
78 adultos (64 adultos entre 21 e 60 anos e 24 com mais de 60 anos)
Idade média: 56,4 anos
Unidades familiares: 42; unidades domésticas: 30
Média populacional por residência: 4 pessoas
Principais atividades econômicas: serviços (cerâmica), agricultura de
subsistência (lavouras temporárias) e criação de animais (20 cabeças de gado, 10
bodes, 150 galinhas)
Renda média por unidade familiar: 397,26R$ (renda per capita: 99,25 R$)
35
Mapa 2 - Localização de Boa Vista (Parelhas - RN).22
22 Mapa elaborado a partir do mapa da Sudene, disponibilizado pelo Ministério das minas e energia, 2005, no site: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/rgnorte/mapas/PARE179.pdf (caputado em 03/04/2006).
36
SER ESCRAVO NO SERTÃO
A escravidão não deixou traços no Rio Grande do Norte. O tráfico de carne humana, que, infelizmente, também existiu ali, não teve, para honra dos sentimentos humanitários do nosso povo, esse cortejo de atrocidades selvagens praticadas contra uma raça à qual nós brasileiros muito devemos pelo contingente poderoso que ela trouxe à formação do nosso tipo e à constituição do nosso caráter.
Alguns senhores, que se tornaram cruéis no tratamento dos seus escravizados, foram simples exceções da regra.
É que o negro foi quase sempre considerado entre nós uma pessoa da família, sobretudo na zona sertaneja e alguns houve que chegaram a alta posição social (Dantas 1941: 25-26).
37
É preciso esboçar um perfil da colonização do Seridó e entender qual era o
lugar dos escravos numa sociedade organizada em torno das fazendas de criar para
podermos reconstituir a história e o presente da comunidade quilombola de Boa
Vista. As fontes historiográficas consultadas, a documentação escrita e a memória
genealógica apontam para a presença dos primeiros moradores na Boa Vista já
entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Também, os documentos e os
relatos orais atestam a existência de um grupo estável, organizado, gozando de uma
certa autonomia e de um patrimônio no decorrer do século XIX. Como veremos a
seguir, a tradição oral e registros cartoriais atestam que “os negros da Boa Vista”
estavam presentes no local um século antes da compra de uma terra no sítio Boa
Vista do Monte do rio Cobra, documento assinado em 09 de abril de 1889, que os
herdeiros de Theodôzio Fernandes da Cruz conservaram até hoje. Finalmente, a
participação do grupo à festa do Rosário em Jardim do Seridó e à uma irmandade
reservada aos homens pretos desde a época da Colônia são outros índices da
ancestralidade do grupo que remetem diretamente à escravidão. No entanto, e
apesar da presença de escravos nas fazendas da região ao longo dos séculos,
encontramos apenas o registro de um escravo que morre na “fazenda Boa Vista”,
em 1877.
Se a versão oral da história de Boa Vista insiste sobre a doação inicial da
terra aos primeiros povoadores, o relato traz também para o presente a questão da
escravidão, assunto pouco abordado por nossos interlocutores. Herança dos
antepassados que tentaram apagar o estigma, reflexo de uma ideologia dominante
ainda em ação hoje. Assim, o silenciamento de um estatuto infame - do qual os
ancestrais se libertaram - é a maior prova da existência de um passado sofrido
durante o qual “quilombo” era sinônimo de fuga e esconderijo. A ausência de
referência ao passado escravo se explica ainda pela antiguidade da presença do
grupo no local: é normal que hajam poucas lembranças relativas à época anterior a
Abolição, pois os mais antigos sabem que há pelo menos quatro gerações de
quilombolas que nasceram em Boa Vista e que não eram escravos. A memória
genealógica do grupo não consegue ir além do final do século XVIII, início do
século XIX.
38
Sem pretender à exaustividade, iremos mostrar que, ao longo da história do
Seridó, encontramos uma população negra escrava e liberta que está
sistematicamente inserida na economia local, sobretudo a partir do século XIX
(Mattos 1985). A conquista do território e sua ocupação efetiva foram os principais
objetivos dos primeiros portugueses que povoaram o sertão para iniciar a criação
do gado, pilar da economia colonial. O espaço, inicialmente povoado por índios que
resistiram à invasão portuguesa, foi ocupado mais tardiamente pelos colonos e seus
escravos do que no litoral ou outras regiões do Nordeste onde havia um interesse
econômico maior da Coroa portuguesa (Dantas 1941: 40; Lopes 2005; Macêdo
2005). O sertão, inicialmente colonizado por aventureiros requerendo imensidões
de terras, foi também um espaço procurado por populações fugindo da dominação
colonial que encontravam lá um refúgio: os índios e os escravos conhecerem um
destino semelhante, dividiram terras inférteis e foram confundidos numa
alteridade genérica.
2.1. Ocupação colonial: índios, negros e ‘marinheiros’
Depuis longtemps, la population indienne de ces parages a disparu, et il est probable qu'elle n'a jamais été bien considérable; la sécheresse désolante du sol et la rareté du gibier ont dû en éloigner de bonne heure les tribus de Cahétès, de Pitigoaras, et de Carirys qui auraient pu les parcourir. On a remarqué, de bonne heure aussi, que les noirs étaient en général trop insouciants pour faire de bons pasteurs; en sorte que les vastes troupeaux du sertão sont confiés ou à des blancs qui se sont acclimatés depuis longtemps dans ces climats, et qui peuvent en supporter les fatigues, ou à des hommes de sang mêlé qui descendent plutôt de l'alliance des Européens avec les indigènes que du produit des hommes blancs avec leurs esclaves noires. Les mamalucos sont essentiellement propres à la vie aventureuse du sertão et à ses fatigues. 23
23 Denis, Ferdinand, Jean. 1839. Histoire et description du Brésil. Colombie et Guyanes, Paris, F. Didot frères [www.gallica.bnf.fr, capturado em 10/05/2006].
39
Na versão tradicional da história do Seridó é destacada a influência
portuguesa, deixando de lado os outros atores do processo colonial. Assim,
sabemos que as primeiras áreas a serem povoadas no Seridó correspondem hoje às
cidades de Caicó e de Acari e que os colonos trouxeram com eles seus escravos: em
1735, o sargente-mór português Manoel Fernandes Jorge funda a povoação do
Caicó e, Manoel Estevão de Andrade constrói a primeira igreja de Acari em 1737
(Dantas 1961: 13; 161-165; Macêdo 2005: 75).24
2.1.1. “Plantadores de currais” As sesmarias de ontem foram, em nossos sertões, requeridas para ‘povoar com seus gados’ e os criadores tinham, naquele tempo, como única obrigação, o pagamento do dízimo à Igreja. O gado se multiplicava, limitado quando muito pela periódica hostilidade da caatinga, por ser caça mais graúda do gentio ou maior fartura de carne para as onças (Lamartine 1965: 97).
Apesar das primeiras terras terem sido doadas em 1613, no Riacho de
Carnaúbas, é somente a partir da segunda metade do século XVII, após a
dominação holandesa (1633-1654), que é iniciado o povoamento efetivo do sertão e
que os colonos podem criar gado sem temer ataques: as primeiras datas de
sesmarias são as do Acauã (1676, 1679, 1680, 1684), região onde estão situadas
hoje as cidades de Acari, Carnaúba dos Dantas e Parelhas, município onde é
localizada a Boa Vista dos Negros (Dantas 1961: 24; Macedo 2000: 20; Macêdo
2005: 1-5, 35; Macêdo 2007: 37-43; Mattos 1985: 83-88; Medeiros 2004: 8-15).25 A
antiga comarca de Acari que hoje abrange três municípios (Acari, Carnaúba dos
24 No início do século XVIII, foram construídas as três primeiras capelas do Seridó: “uma no Arraial do Queiquó (Caicó) em 1700, outra na Fazenda Serra Negra, em 1735, e a terceira no Acauã (Acari), em 1735”. A freguesia “da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó” foi fundada em 1748 (Macêdo 2005: 66).
25 Em Caicó, encontram-se as ruínas da casa forte do Cuó, já construída em 1683, sendo umas das primeiras construções coloniais erguida no sertão para combater os índios (Macêdo 2005: 5). Antes, em 1670, o Capitão Francisco de Abreu de Lima, conseguiu obter uma sesmaria na ribeira do Espinharas mas não conseguiu demarcá-la (Medeiros Filho 1981:3).
40
Dantas e Parelhas), recebeu os primeiros colonos portugueses vindos de regiões
vizinhas, sobretudo do brejo da Paraíba. Porém, em relação a outras regiões do
Nordeste brasileiro, o interior do Rio Grande do Norte será efetivamente ocupado
no século XVIII, com o fim da guerra dos Bárbaros (Macêdo 2005: 35; Mattos
1985; Puntoni 2002). As fazendas de criar puderam ser instaladas e, mais tarde,
deram origem às primeiras vilas. Assim, Luis da Câmara Cascudo afirma que “no
Rio Grande do Norte a pecuária é a própria história econômica até os primeiros
anos do século XX” (1956: 5).
Antes da instalação das fazendas, encontramos índios ocupando as terras e
barganhando-as com os portugueses: em 1545 e mais tarde, em 1613, na ocasião da
demarcação da sesmaria do Riacho de Carnaúbas, registra-se a intervenção do rei
Canindé, filho do rei Janduí “senhor de gado e de lavoura rasteira”, reivindicando a
propriedade das terras, num espaço delimitado entre a Serra do Piauí e o
Marimbondo, justamente no limite com as terras de Boa Vista dos Negros
(Medeiros Filho 2002: 6; Macedo 2004a; Macêdo 2007: 38-43). Também, nessa
mesma ocasião, aparece a referência a “negros timbus”, quatro escravos do capitão
de ordenanças Antônio de Mello Castro Ribeiro, reclamando o direito de explorar
uma légua de terras por meia de largo na serra do Piauí, “em exponsa à atos
criminaes comettidos contra elles”; direito que lhes foi concedido (Macêdo 2007:
39; Medeiros Filho 2002: 5).26 Nessa mesma data, Cosme Francisco de Bourbon
pede 3X7 léguas “pegando no marco do rei janduí [Maribondo] fazd° peão no logar
Rajada”, o que compreenderia o atual território dos quilombolas de Boa Vista, mas
se sabe ainda que o espaço era também ocupado por índios Pega e Janduí que já
criavam gado (Macêdo 2007: 39). Sem poder encontrar as provas de uma
continuidade histórica entre os atores dessa história e os atuais moradores da Boa
Vista dos Negros, apontamos para um destino comum entre os índios e os negros
26 A terra dos "nêgos" ("Firmino Anto. Roberto Jerella") estende-se até "Caiissara de pedra", lugar próximo a “covas de negros”; interessante notar que há várias referências a sepulturas de negros em Carnaúba dos Dantas e que alguns moradores da cidade mantêm uma memória sobre a escravidão.
41
que habitaram as serras do “Riacho d’Carnhaubbas”.27 Assim, o documento informa
que, no início do século XVII, uma grande parte das terras que hoje correspondem
aos municípios de Carnaúba dos Dantas e de Parelhas estava sob controle dos
índios Pega e "Canindês junduins". Na região, encontramos registros de uma
resistência indígena até, pelo menos, o início do século XVIII, o que atrasou a
ocupação efetiva do espaço: 1717 parece ser a data em que os "tapuias do rei
Janduí" foram expulsos, de forma definitiva das suas terras pelos representantes da
Coroa portuguesa, já que nesse ano constam requerimentos de concessão de
sesmaria e ocupação com criação de gado na região, inclusive por escravos (Macedo
2004a; Macêdo 2007: 39).28
As doações de terras no Seridó só começam a ser efetivadas depois de 1670
(Cascudo 1955: 257-258; Lima 1988: 17; Macedo 2002: 71; Medeiros Filho 1981:
262-263, 1984: 108-109). Encontramos, na obra de Dom José Adelino Dantas
(1961: 26), referências interessantes sobre os primeiros sesmeiros da região que
eram padres: Padre Manoel Timóteo da Cunha, vindo da Paraíba, funda o sítio
Catuturé num local vizinho à atual cidade de Jardim do Seridó. Assim, se a data do
Acauã foi emitida em 1676, é também a primeira sesmaria do Seridó a ser efetivada
(Macêdo 2005: 35; Medeiros filho 1981:3). Ainda no início do século XVIII, havia
áreas não povoadas, pois, em 1706, o Padre Manoel de Jesus Borges elabora um
relatório sobre o povoamento do Seridó, a instalação dos primeiros poços e a
chegada do gado (Faria 1980: 25). Apoiando-se nas cartas de sesmarias e na
27 Há registros de índios “administrados” nos inventários e índios “moradores” e “assistentes” no livro de óbito n.1 de Caicó (1789-1811) que indicam laços de dependência com os proprietários fundiários; estatuto semelhante a dos escravos negros. No testamento de Oliveira Ledo, datado de 1719, há um registro de um “índio mameluco” escravo (Guedes 2006: 111). Também notamos a relativa freqüência de casamentos interétnicos na freguesia de Sant’Ana do Seridó até o início do século XIX (Macedo 2004a; Macêdo 2007: 201-202). 28 O documento foi transcrito por Olavo de Medeiros Filho (1981: 138-139). Graças à consulta de documentos e estudos históricos, sabemos que, até as primeiras décadas do século XVIII, a resistência indígena foi importante em todo Seridó, sobretudo na região onde hoje estão situados os municípios de Carnaúba dos Dantas, Parelhas, Acari, Currais Novos e Cuité, na Paraíba (Macedo 2004a; Medeiros filho 2001: 127-132; Puntoni 2002; Joffily 1977: 118; Lima 1990: 25). A topografia conservou fielmente a lembrança de um passado carregado de massacres, espólios e tentativas de resistência à ocupação colonial (Cavignac 1994).
42
memória oral dos descendentes dos primeiros povoadores, Manoel Dantas (1941:
79), Luis da Câmara Cascudo (1955: 52, 520) e Olavo de Medeiros Filho (2002: 3)
indicam que o povoamento do Seridó foi realizado por colonos portugueses já
instalados no Pernambuco ou na Paraíba vizinha que vieram com seus escravos a
partir da segunda década do século XVIII. Assim, em 1723, na data de sesmaria n.
194, os irmãos Francisco Fernandes de Souza e João Batista recebem seis léguas de
terras no espaço onde hoje são situados os municípios de Parelhas e de Sant’Ana do
Seridó (Medeiros Filho 2002: 29). O Tenente Francisco Fernandes de Souza,
“morador no sertão entre o Cariry e Piranhas” que descobriu “um sítio de terras
entre a serra da Borborema e o Rio do Seridó e Coaty” assim é considerado o mais
antigo entre os pioneiros moradores do território. Apesar da presença dos “tapuias
bárbaros”, o tenente ocupa as terras solicitadas durante mais de vinte anos antes de
mandar, em 1723, uma carta solicitando uma sesmaria de três léguas quadradas,
incluindo a localidade denominada Boqueirão29, “correndo para o sul até os
tanques de Felipe Dias, pegando do lugar donde melhor lhe parecer no riacho dos
Preaes, começando no boqueirão da serrota; sendo demarcadas salteadas, ficando
de fora o que não for capaz” (Guedes 2006: 115-116; Macedo 1942: 6).
Quando o português Tomaz de Araújo Pereira (?-1781 ou 1799) estabelecido
em Acari, na fazenda de Picos, no início do século XVIII, requer uma área próxima
à atual comunidade de Boa Vista, as terras não tinham sido efetivamente ocupadas
por colonos (Medeiros filho 1981: 112)30:
Tomaz de Araújo Pereira, não tendo commodo para crear seus gados, descobrio à custa de seu trabalho um riacho chamado Juazeiro que nasce
29 É o nome atual do açude de Parelhas. 30 Sesmaria, 25 de maio de 1734. Em 25/05/1734, Tomás de Araújo Pereira obtém do governador da Paraíba, Francisco Pedro de Mendonça Gurjão, a data de sesmaria n. 238 com 3x1 léguas no riacho Juazeiro, que nasce ao poente da serra da Rajada e que deságua no Acauã. Em 06/11/1735, o Cel. Lourenço de Góis e Vasconcelos, da Paraíba, obtém a data de sesmaria n. 274 (3x1 léguas) no riacho da Cobra, hoje nos municípios de Parelhas e Jardim do Seridó (Medeiros Filho 2002: 33-34). Entre 1769 e 1777, já havia moradores no ‘Boqueirão’, na fazenda ‘Tanques’, que fica próximo a Boa Vista, no município de Parelhas, na fazenda ‘Angicos’, em Jardim do Seridó, e no ‘Quixeré’, próximo a Carnaúba dos Dantas (Dantas 1961: 37, 42, 98). José Adelino Dantas (1962: 82) achou a escritura de compra da fazenda São Pedro dos Picos de Baixo datada de 1747, em nome de Thomaz de Araújo.
43
por detraz da serra da Rajada, que desagôa para o rio da Cahã e faz barra na ponta da várzea no Pico, e cujo riacho e suas bandas tem terras devolutas e nunca cultivadas; terrenos em que pede três legoas de comprimento e uma de largura, pegando das testadas do sargente-mór Simão de Góes pelo rio acima, ficando o dito rio em meio da dita largura. [grifo nosso]
Assim, graças a Olavo de Medeiros Filho, conhecemos a descendência de
Tomaz de Araújo Pereira que instalou a fazenda de São Pedro, na ribeira do Seridó
e deu origem às famílias Araújo Pereira, Soares Pereira, Dantas Corrêa, Hipólito do
Sacramento, Gomes da Silva, Pais de Bulhões, Barros Gorgônio.31
Porém, a colonização efetiva do espaço aconteceu somente no decorrer do
século XVIII: entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a sociedade
seridoense está estruturada em torno da criação do gado (Macêdo 2007: 78).
Ainda, nessa época, o interior do Rio Grande do Norte continuava despovoado, o
que colocava os colonos em perigo (Andrade 1990: 20; Lopes 1999: 102-105);
situação também relatada por Henry Koster quando atravessou a região do Açu em
1810 (Koster 1978: 96-126). Por exemplo, em 1824, Frei Caneca descansa com suas
tropas na Povoação da Conceição do Azevedo, onde, apesar da “quase inexistência
do comércio”, encontra “farinha, milho, e aguardente, queijos, etc.” e há “uma
igreja nova ainda por acabar” (Dantas 1961: 139). É nesse período que se realiza o
desmembramento das datas de sesmarias em pequenas fazendas – em todo o
Seridó, a herança é o meio mais comum para tornar-se proprietário de terras
(Dantas 2004: 17-20; Mattos 1985).32 Tradicionalmente, os estudos apontam a
31 Tomás de Araújo Pereira (1809-1893), neto do fundador de Acari, grande proprietário de terras e de escravos em Acari e em Extremoz, assumiu a Presidência da Província entre 1824 e 1825, num clima político conturbado; este exemplo mostra claramente a continuidade das elites econômicas e políticas seridoenses (Dantas 1941:36-69; Lamartine 1965: 48-49; Macêdo 2005: 49-51; Monteiro 2002: 147). Também podemos citar Manoel Dantas (1941) filho do Coronel Dantas Correia. 32 Por exemplo, temos uma datação exata para uma área próxima da Boa Vista: a fazenda Carnaúba foi criada por Caetano Dantas Correia filho (1758-1830) entre os anos 1777 e 1778. Podemos pensar que as primeiras fazendas em Parelhas foram instaladas também nessa época. Interessante anotar a presença de padres que recebem terras em herança – terras que não administraram: assim, o Padre Manoel Texeira da Fonseca de Lima (1773-1864), cujo pai era português, nasceu e morreu na fazenda Angicos, no atual município de Jardim do Seridó, recebeu em 1795 do seu tio e padrinho o sítio Malhada da Areia e o sítio São João, na confluência do Acauã e do Seridó – na época estudava em Recife. Voltou ao Seridó, onde atuou como padre, sobretudo em Acari, Conceição (Jardim),
44
fazenda Boqueirão pertencendo a Félix Gomes Pereira nos meados do século XIX,
como sendo o lugar onde nasceu a cidade: era a passagem obrigatória entre a
Paraíba e o Rio Grande do Norte e servia de ponto de encontro para as manadas de
gado com destino à Paraíba e os cavaleiros que iam regularmente para a feira de
Conceição do Azevedo, hoje Jardim do Seridó (Melo 2005: 53-54). Assim, entre o
fim do século XVIII e o século XIX, o espaço encontra-se ocupado com as fazendas
de gado que não requeria sempre a presença do dono nem a de uma mão de obra
numerosa; as ‘sementes de gado’ serão determinantes na forma de organização
econômica e social da região do Seridó.
2.1.2. As fazendas de criar e o algodão
Apesar das lacunas existentes na historiografia local, a região próxima à
comunidade quilombola da Boa Vista foi efetivamente ocupada a partir dos meados
do século XVIII por portugueses já instalados na Paraíba que, pelo visto, ao chegar
no Seridó norte-rio-grandense, não tinham uma grande fortuna (Macêdo 2007:
78). Ao requerer terras, o patrimônio fundiário dos pioneiros aumenta, junto com
suas famílias e seus agregados, escravos trazidos do Recife. Se nesse período há
poucas famílias que moram nas propriedades, a partir do final do século XVIII, a
segunda geração de colonos ocupa o espaço ‘limpo’ das populações indígenas.
O exemplo de Caetano Dantas Correia (1710-1797) é paradigmático da
colonização do Seridó. Aquele que se tornará ‘patriarca’, ‘capitão-mor’ e ‘coronel
das ribeiras do Acauã’, funda a fazenda Picos de Cima, em Acari que incluía, pelo
menos, na época, o atual município de Carnaúba dos Dantas. Temos bastante
informações sobre o primeiro sesmeiro da região, pois existem registros
Currais Novos e Caicó. Deixou como testamenteiro, um outro padre, o padre Francisco Justino Pereira de Brito (1819-1871), primeiro vigário de Jardim do Seridó. Este último deixou uma parte do seu patrimônio – o sítio Pau Furado, no rio Seridó a um outro padre, João Maria Cavalcanti de Brito (Dantas 1961: 99-107).
45
documentais importantes, crônicas fundadas numa memória familiar. Também,
encoontramos estudos históricos recentes que fazem referência a Caetano Dantas:
ele começou a criar gado na segunda metade do século XVIII e residia em Acari.33
Baiano e solteiro, em 1729, decide de deixar Cuité, região serrana paraibana, para
desbravar a região, seguido por sua mãe e por escravos, instalando-se na serra do
Sacco (Lima 1990: 11):
Segundo a tradição oral, ao chegar no Seridó, Caetano, à falta de casa em sua fazenda, ficou morando em uma furna, em companhia de seus vaqueiros, servindo-lhe de cozinheiro um escravo, de nome Gaspar (Medeiros 1981: 120). [grifo nosso]
Com a instalação dos Dantas Correia e da sua famíia – ele teve, ao todo, 19
filhos! -, inicia-se o período do povoamento da região. Aos poucos, o patriarca
constitui um patrimônio fundiário conseqüente, pois, entre 1742 e 1788, requer seis
sesmarias de 3x1 léguas; propriedades situadas entre Acari e Coité onde há terras
devolutas e sobras de terras (Macêdo 2007: 80). Seus filhos irão herdar dos bens
acumulados e irão fundar fazendas nos atuais municípios de Carnaúba dos Dantas
e de Jardim do Seridó (Araújo 2006: 76, 202-204; Medeiros filho 1981: 109-247).34
Entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do século XIX, o interior do estado se
organiza efetivamente, de um ponto de vista administrativo e religioso. O indício da
penetração e da instalação definitiva dos colonos é a nomeação de padres titulares
que acontece a partir de 1748 em Caicó e, para as outras cidades do Seridó, após
1850 (Macêdo 2005: 75; Monteiro 2002: 82-83; Sales 1990: 25-54).35 A partir do
33 A vila Acari foi criada em 1835, desmembrada de Caicó. Passou a estatuo de cidade em 1898 (Macêdo 2005: 75). 34 A filha de Caetano Dantas Correia, Micaela Dantas Pereira (1754-1799), casada com Antônio de Azevedo Maia Júnior (1742-1822), construiu a capela dedicada a N. Sra da Conceição na atual cidade de Jardim do Seridó em 1790 em terras que o casal tinha doado. O patriarca, Antônio de Azevedo Maia (1706-1796) morreu na fazenda Conceição, deixando as terras de herança a seus seis filhos vivos (Dantas 1962: 86; Medeiros 2004: 21) [http://br.geocities.com/tdmedeiros/AntoAzevMaia.html-informação capturada em 19/03/2007]. 35 Antes disso, alguns padres jesuítas circularam no sertão da Capitania do Rio Grande por volta de 1659-61, durante a ‘ocupação’ holandesa, catequizando índios (Puntoni 2002: 76). Manoel Dantas
46
fim do século XVIII, o Seridó se organiza em torno das fazendas de gado, são
construídas estradas, cidades importantes nascem e alguns municípios se
emancipam: em 1788, é criada a Vila Nova do Príncipe, hoje Caicó. Também, no
decorrer do século XIX, são criadas outras vilas e freguesias: em 1835, a de N. Sra.
da Guia (Acari), em 1855, a antiga povoação da Conceição do Azevedo passa a se
chamar Jardim do Seridó, e em e 1858, é criada a freguesia de N. Sra. da Conceição
(Augusto 1954: 132; Azevedo 1962-63: 32; Dantas 1918; Macêdo 2005: 75;
Medeiros 1985: 25-26).
Ainda no século XIX, com o aumento da densidade demográfica e a chegada
de novos colonos que se instalam na região, nos espaços não explorados, a terra
torna-se o principal objeto de conflito entre os recém-chegados e os antigos
proprietários que vêem seu poder declinar. Os novos posseiros começam a cultivar
a terra sem títulos de propriedade. Além disso, a forte natalidade obriga a retalhar
as grandes propriedades e as famílias poderosas de então lutam para conservar o
poder e ditar sua lei, que fazem aplicar de maneira autoritária (Albuquerque, 1989;
Terra, 1983: 1-20; Queiroz, 1968)36. Assim, muitas relações sociais que podemos
observar hoje encontram sua origem na organização da sociedade em torno das
fazendas de criar. As poderosas famílias, herdeiras dos primeiros povoadores,
formam o núcleo da sociedade sertaneja “tradicional”. Uma multidão de
empregados, de domésticos, de caseiros, jornaleiros e criados moram na fazenda ou
são empregados temporários. Na propriedade – e em seus arredores –, os
membros de uma mesma parentela casam-se entre si e se reconhecem como
pertencendo a uma mesma família. Este mundo é percebido como harmonioso,
pois o empregado torna-se parente ou compadre do grande proprietário, recebendo
favores em contrapartida a obrigações materiais e morais, repousa sobre um
conjunto de laços característicos das sociedades agropastoris, e particularmente a
(1941:30) afirma que no final do século XVIII era difícil encontrar um padre para celebrar uma missa. 36 No sertão, calcula-se em 24 hectares a superfície necessária para uma propriedade ser rentável (Bezerra 1987: 20).
47
do Nordeste do Brasil. Essa organização social, comum a todo o Nordeste colonial,
caracteriza-se pelo fato de que o destino do trabalhador – livre ou escravo – está
ligado ao do coronel, nome tradicionalmente dado ao fazendeiro, que nomeava um
gerente ou um morador da fazenda para cuidar da propriedade em sua ausência.
Ao lado da mão de obra escrava, surge uma população camponesa livre,
geralmente sem terra, ensaiando vários regimes de trabalho: o parceiro, o
arrendatário, o morador e o volante convivem com o escravo. A principal
conseqüência é a aumentação da agricultura de subsistência na parte da economia
local (Andrade 1980: 51; Araújo 2006: 182-211; Macêdo 2007: 102-104; Mattos
1985; Takeya 1985: 60-68; Terra 1983: 15). Porém, as mudanças econômicas não
alteram fundamentalmente a estrutura da sociedade organizada em torno das
antigas fazendas de criar e comandada pelos ‘coronéis’ que se tornaram também
donos de usinas de algodão, conservando, ao seu redor, uma mão de obra
numerosa e barata com quem mantém relações de clientelismo (Andrade 1980: 21;
Takeya 1985: 27; Monteiro 2002: 131). Assim, a partir de 1865-70, com a
emergência do algodão e a crise no setor açucareiro, a Lei de Terras – que, no
Seridó, só será aplicada a partir de 1896 - e o fim do tráfego negreiro, o sistema
escravista entra em crise, provocando uma reorganização drástica dos espaços
territoriais, afetando, de modo particular, as populações autóctones e os libertos
(Lopes 2005; Mattos 1985: 86; Oliveira 1999: 23). No final do século XIX,
encontramos escravos que aproveitaram da agitação criada pela revolução de
Quebra-quilos para fazer um levante em Campina Grande, em 1874 (Souto-Maior
1978: 201-202). Para o Rio Grande do Norte, encontramos revoltas no final do
século XIX e encontramos referências a fugas de escravos: oriundos do litoral
potiguar e das zonas açucareiras da Paraíba e do Pernambuco, eles empregavam-se
como vaqueiros nas fazendas do interior ou, quando libertos, instalavam-se fora
dos centros urbanos (Andrade 1990: 18; Jofilly 1977: 118, 441; Maestri 1991: 159;
Medeiros 1978: 97; Moonen 1989: 12; Puntoni 1999: 168-174). Também os
recrutamentos compulsórios, como aconteceu durante a guerra do Paraguai), as
epidemias, a crise na região e as grandes secas do final do século atingem de
maneira radical a economia regional, diminuindo, de modo significativo, a
48
população escrava que estava sendo encaminhada para o Sudeste, destinada a
trabalhar nas plantações de café (Andrade 1990; Mattos 1985: 133-145; Medeiros
1973: 110; Medeiros 1978: 93; Monteiro 2002: 165-68 e 191-193). Assim, o final do
século XIX aparece como sendo um período agitado, de um ponto de visto social e
político. Porém, após a seca de 1877, a cultura do algodão se torna lucrativa e
modifica a paisagem social e econômica da região (Dantas 1941: 123); momento em
que o Seridó conhece uma fase de prosperidade e que passa a ser mais
intensamente ocupada.
Havendo uma grande lacuna de trabalhos históricos referentes ao período
pós-abolicionista, não podemos afirmar com maior exatidão a data de ocupação
das famílias quilombolas em Boa Vista. Porém, o recurso à história oral em tal
investigação serve de importante instrumento para este fim, permitindo traçar o
elo entre os antigos escravos e os remanescentes de quilombo que ocupam hoje a
terra da Boa Vista. Dessa forma, a escravidão no Seridó e a presença dos
quilombolas de Boa Vista devem ser analisadas no contexto das fazendas de gado e
da cultura do algodão formam o quadro social, econômico e cultural no qual a
história local se desenvolveu.
2.2. A escravidão no Seridó
Quando os negros fogem procuram afastar-se dos lugares habitados, escondendo-se nos bosques, invés de fixar–se numa vila distante, tentando passar por pessoa livre. Constroem cabanas, que são chamadas mocambos nos lugares mais ermos, e vivem da caça e dos frutos que podem encontrar. Essas criaturas se agrupam às vezes em número de dez ou doze e é difícil então surpreendê-las, porque o conhecimento que têm das matas vizinhas lhes dá uma forte vantagem contra o grupo enviado contra eles. Algumas vezes toda uma zona é perturbada por uma dessas comunidades que saqueia as roças, roubando bezerros, carneiros e galinhas. Contam histórias em que os negros do Gabão furtam crianças (Koster 1978: 412).
Reunimos, inicialmente, as informações disponíveis sobre a presença
escrava na região, tanto nas fontes históricas primárias encontradas, quanto nos
outros registros feitos ao longo dos séculos – transcritos por historiadores locais –,
com o objetivo de mostrar que Boa Vista se inscreve num conjunto mais amplo, o
49
das chamadas comunidades de remanescentes de quilombo. Uma leitura mais
aprofundada e sistemática dos documentos que teriam escapado à destruição
oficial, no entanto, ainda resta a ser feita pelos historiadores que, em tais
investigações, irão oferecer informações mais consistentes sobre populações de
origem africana no estado, examinando, em particular, o estatuto do escravo no
sertão.
2.2.1. “Vaqueiros e cantadores”
Há poucas referências históricas sobre a presença africana no sertão. Porém,
a reunião dos dados históricos mostra que o Seridó recebeu escravos desde o início
do seu povoamento. Ao contrário do que foi escrito, há, ao longo do período
colonial e no Império, uma presença contínua das populações escravizadas.
Durante as últimas décadas do século XIX, constatamos que, em proporção ao
resto da Província, o número de escravos no Seridó era maior: antes da Abolição, o
Seridó tinha 27,3% dos escravos do total existente no Rio Grande do Norte; número
significativo para uma região que C. Cascudo descreveu como sendo totalmente
branca (Lamartine 1965; Macêdo 2005: 45; Mattos 1985: 136-138).
Mesmo sem dispor de estatísticas nem de estudos históricos específicos,
podemos pensar que após a Lei Áurea, boa parte dessa população permaneceu nas
proximidades das antigas fazendas onde viviam, pois, como afirma Maria Regina
Mattos:
(...) o escravo do Seridó estava, no final do século XIX, engajado na produção de alimentos e no trato com a pecuária de maneira muito específica (Mattos 1985: 125).
Descobrimos, então, uma sociedade voltada para a pecuária na qual o
escravo tinha uma autonomia relativa para cultivar e adquirir um capital com seu
trabalho remunerado; também, a situação de cativeiro no sertão difere do litoral e
evoluiu ao longo dos séculos, sujeita às mudanças na organização da economia e da
sociedade (Macêdo 2007; Monteiro 2002: 100-108). Como veremos, as primeiras
cartas de alforria datam do século XVIII e, no Seridó, desde essa época,
50
encontramos alguns libertos bem sucedidos, como Feliciano, proprietário de uma
fazenda em Acari. Também, veremos, para o século XIX, que existem documentos
históricos nos quais descobrimos escravos que são proprietários de gado e libertos
que adquirem terras. Assim, existem situações sociais historicamente diferenciadas
que devem ser levadas em conta no estudo do passado de uma comunidade
quilombola.
2.2.1.1. Leituras da escravidão
É lógico que o a importação de mão de obra escrava foi menos massiva no
Rio Grande do que em outras regiões: nas cidades portuárias que recebiam navios
negreiros e nas zonas canaviais, o número de cativos era mais elevado. Porém, é
preciso levar em conta, nestas considerações, o contexto de guerra permanente
contra as populações indígenas na região que cessariam somente no século XVIII; a
chamada Guerra dos Bárbaros freiou a entrada dos criadores de gado e dos seus
agregados, entre eles, os africanos escravizados.
De fato, durante os primeiros séculos do período colonial, a resistência
indígena impossibilitou a instalação definitiva de um sistema produtivo gerador de
novas relações sociais, como verificamos em outras localidades do Nordeste. Ainda
é preciso lembrar que a ocupação holandesa (1633-1654) e os conflitos ligados a
essa presença, tiveram como conseqüência a desorganização do sistema produtivo
implantado pelos portugueses no início da conquista (Brandão 1997: 88-96; Lyra
1982). Os primeiros escravos, provenientes de Pernambuco, entram no Rio Grande
do Norte, com mais freqüência, a partir da segunda metade do século XVII,
ficando, porém, concentrados nas zonas açucareiras (Andrade 1990: 24; Cascudo
1955; Medeiros 1978: 88-89). Em meados do século XVII, com a presença
holandesa, o tráfico negreiro no Nordeste aumenta e, com ele, a formação dos
51
quilombos (Puntoni 1999: 150-151; 157; 171-172; Mello 1987).37 É justamente com
os primeiros colonos oriundos da Paraíba e do Pernambuco que os escravos
chegaram no sertão, sobretudo a partir do século XVIII. Assim, acompanhando
parcialmente os trabalhos clássicos dos historiadores locais, podemos pensar que
havia menos escravos e que a mão de obra escrava chegou mais tardiamente no Rio
Grande do Norte do que em outras regiões açucareiras nordestinas. Os mais
importantes engenhos estavam situados nas zonas açucareiras: no sul do estado,
entre São José do Mipibu e Canguaretama e ao norte de Natal, Ceará-Mirim
(Cascudo 1955; Medeiros Filho 1993; Monteiro 2002: 17-94).38
Sabemos também que desde, o início do século XVII, os escravos foram
associados à conquista do território, sendo integrados nas tropas; a participação às
“guerras justas” era um meio de conquistar uma liberdade individual (Portalegre
1994 et alii.: 129; Puntoni 2002: 58). Desde o século XVII, encontramos ‘negros’
livres servindo no exército português (Cascudo 1955: 81-82; Medeiros 2003; Mello
1987; Puntoni 1999: 167; Puntoni 2002: 58, 128, 136)39: os serviços prestados
durante a guerra podiam ser revertidos em cartas de alforria. Os quatros “negros
timbus” que aparecem no documento de 1613, provavelmente originários da costa
Oeste da África (Congo, Guiné ou Angola), são a prova da integração da população
servil ao sistema de conquista territorial, pois na ocasião do acordo feito entre os
37 No início do tráfego, os escravos do Rio Grande foram primeiramente importados da África (Angola, Congo, Guiné), via Recife (Monteiro 2002: 116). No final do século XVI estima-se que havia 20.000 escravos trabalhando em 120 engenhos no Nordeste, concentrados, principalmente, nas cidades de Recife (PE), Salvador (BA) e São Luís (MA) (Pavão 1981: 41). 38 No início do século XVII, encontramos somente três engenhos no litoral potiguar (Andrade 1990: 15; Monteiro 2002: 116). O último escravo conhecido em Natal a chegar da África foi o “Paulo Africano, pescador, dançador de Zambê e tocador de puita que dizia ter desembarcado em Serinhaém”, no Pernambuco (Medeiros 1978: 101). 39 Há registros de “incorporação” de ‘negros’ ao exército dos Janduí e de roubo de ‘negros’, pelos mesmos, aos portugueses, durante a expedição de William Lambertz, em 1645 (Puntoni 1999: 170). A tropa de 1400 homens liderada por Henrique Dias, em 1646, na guerra da restauração pernambucana tinha recrutas de origem diversa, sem que quase nada seja conhecido das especificidades de cada grupo: índios, tapuias, negros, minas, mamelucos, etc. (Puntoni 1999: 167; Puntoni 2002: 58; 136). No século XIX, também havia contingentes inteiros de soldados negros e mulatos (Koster 2003: 72).
52
colonos e o índios, eles recebem terras por terem recebidos “maus tratos” (Macêdo
2007: 39; Medeiros Filho 2002: 5; Monteiro 2002: 116). Em 1695, no auge da
“Guerra dos Bárbaros”, “na Capitania havia mais de 500 homens, entre brancos e
índios, e mais de 100 escravos, todos aptos para a guerra” (Portalegre 1994 et alii:
129).
As queixas relativas à ausência e ao preço da mão de obra servil são outra
prova de que, no Rio Grande, os escravos foram fundamentais para o sucesso do
projeto de exploração do território (Brandão 1997: 102; Cascudo 1955: 121, 187).40
Assim, no relatório dos Presidentes de Província datado de 1862, Pedro Leão
Velloso se queixa da falta dos escravos e da existência de uma população quase
nômade "à mercê dos proprietários de terra".41 No interior, pelo menos para os
estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, os autores parecem
concordar sobre a idéia de que os pequenos proprietários que, de fato, tinham
poucos escravos, compartilhavam o espaço familiar e tinham o mesmo modo de
vida de seus servos. No século XIX, encontram-se escravos nas grandes fazendas de
criação de gado e até nas pequenas propriedades, com um número raramente
superior a cinco (Macêdo 2005 e 2007; Mattos 1985). Neste caso, temos muitos
testemunhos de que esses proprietários os tratavam bem, para que não fugissem
(Albuquerque 1989). Assim, Dom Adelino Dantas (1961: 165) imagina a “mãe
preta”, Maria Fernandes Jorge que nasceu em 1686, escrava da família do fundador
de Caicó, Manoel Fernandes Jorge, que morreu com 135 anos em 1821:
40 Luís da C. Cascudo (1955: 37) anota a presença de um escravo da Guiné em Natal em 1600, "quinze dias após a cidade ter sido fundada", propriedade do primeiro sesmeiro do Rio Grande do Norte, João Rodrigues Colaço. Esse "comprará escravos da Guiné, era a primeira pessoa que começou a roçar e a fazer benfeitorias no Rio Grande (...) O negro foi-nos uma constante mas não uma determinante econômica" (Idem: 44). Mais a frente, o autor repete: "Economicamente, o escravo não foi indispensável no Rio Grande do Norte e etnicamente, constituiu uma constante e jamais uma determinante (Idem: 48). A mesma frase encontra-se textualmente reproduzida, mais de cinqüenta anos depois, num manual de história do RN, destinado aos estudantes (Brandão 1997: 73). 41 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinária do anno de 1862 pelo presidente da província, o comendador Pedro Leão Velloso. Maceió, Typ. do Diário do Commercio, 1862, p. 8. sobre o assunto, ver http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/851/000010.html, capturado em 01/05/2006.
53
Invoco-a, pois, na distância do tempo, como a um anjo de bondade e carinho, de fidelidade e renúncia, presente, quase século e meio, nos lares caicoenses de outrora, sorrindo nas manhãs festivas o sorriso afetivo sobre os berços abertos, ou gemendo com as senhoras donas sobre berços vazios.
Essa imagem idealizada, porem, contempla uma pequena porção da
população: os escravos-poetas que ficaram famosos, como Inácio da Catingueira e
Fabião das Queimadas, fazem figura de exceção. Existem várias referências a
vaqueiros, artesãos, carpinteiros, sapateiros, cortadores de lenha, padeiros, etc., ou
a operários agrícolas que podiam ser alugados pelos seus proprietários para tarefas
específicas (Ballet 1981; Cunha 1971; Lamartine 1965). Alguns escravos pediam
dinheiro emprestado ao proprietário e tinham até bens, geralmente, gado, apesar
da lei, o que ocorria em conseqüência da condição de vaqueiro (Cunha 1987; Garcia
1989; Guerra 1989; Koster 1978; Lamartine 1965). Depois de libertos, os antigos
escravos permaneciam na propriedade dos seus antigos donos como empregados,
outros saíam para o Sul ou para a Amazônia, ou, ainda, tendo mais chances,
conseguiam tornar-se independentes: agricultores, caçadores profissionais,
costureiras, lavadeiras, almocreves, etc. Podiam, também, ficar trabalhando na
propriedade como vaqueiros.
A escravidão, no sertão, foi sistematicamente idealizada pelos cronistas e
escritores locais nascidos na virada do século XIX que, partindo das suas
experiências pessoais, descrevem situações nas quais os filhos dos escravos libertos
pela Lei do ventre livre, recebendo o nome ambíguo de ‘criados’, eram educados
junto com os filhos dos fazendeiros, ainda que empregados nas tarefas domésticas
– pelo menos até a idade da sua emancipação.
No sertão da pecuária e do algodão, o escravo se tornava quase igual ao senhor, um companheiro deste e da filharada. A vida do vaqueiro predispunha para a democratização (Guerra 1989 : 116).
Mesmo se, nesta visão, percebemos uma tentativa - nem sempre explícita –
de tornar mais suave um processo de dominação e uma realidade histórica mais
aceitável, é preciso olhar mais criticamente para os dados históricos que apontam
para situações de dominação ade social e formas de ‘contratos de trabalho’ que
encontramos ainda com freqüência no interior do Nordeste (Koster 1978;
54
Lamartine 1965).42 Para uma tal investigação, precisamos ler nas entrelinhas dos
relatos dos autores locais que, de um modo unânime, descrevem supostas relações
harmoniosas entre fazendeiros e escravos.
Em Tradições populares da pecuária nordestina, livro publicado em 1956,
Câmara Cascudo, aponta para as possibilidades dos escravos de serem mais livres
no sertão do que no litoral:
Os negros Inácio da Catingueira e Fabião das Queimadas, escravos de fazendeiros e grandes cantadores, um de pandeiro e outro de rabeca, eram produtos de impossível nascimento entre o canavial dos eitos açucareiros (Cascudo 1956: 11).
Se encontrarmos esses dois poetas que conseguiram comprar sua liberdade
fazendo verso, podemos pensar fazem figura de excepção em relação à condição da
maior parte da população servil que encontrava dificuldades para libertar-se.
Verificamos ainda tentativas para amenizar a condição das populações de origem
afircana, anunciando o sucesso de um meltingpot; ideologia da ‘mistura’ e da
‘democracial racial’ que encontra ainda seguidores ferrenhos nos meios
acadêmicos:
Se, em face das circunstâncias especiais de tempo e espaço, o negro foi escravo entre nós, o foi em pacífica convivência, tratamento humano e restritas limitações de vida. Liberto antes da lei, participa das mesmas oportunidades dos demais em sociedade, em todos os aspectos da vida e pela vida. Como irmão, sem preconceito, sem segregação (Medeiros 1978: 103).
Estranho constatarmos que, ao contrario do que Tarcisio Medeiros afirma,
as comunidades negras presentes, até hoje, no sertão, encontram-se entre as
camadas mais pobres da população, são localizadas à margem dos núcleos
populacionais e sofrem de preconceito racial. Enfim, nas descrições do cotidiano e
da labuta do homem do campo, é comum que as relações de dominação estejam
42 Como veremos, essa situação aproxima-se da descrita na versão oral da origem de Boa Vista dos Negros.
55
apagadas diante do companheirismo que seria imposto pelas condições climáticas e
pelas dificuldades ligadas à vida no sertão... quase um comunismo primitivo:
Viviam assim os primeiros criadores apojados em pleno ciclo do couro, onde o trabalho de todos os dias mais argamassava as relações entre o marinheiro colonizador e os primeiros escravos levados para a vaqueirice. Cedo tomaram das mesmas vestias. ‘Sinhô’ e escravo campeando juntos, correndo os mesmos riscos – negro correndo ao boi e ‘sinhô’ fazenda esteira no gesto de ajuda mais tarde (...) Tomando coalhada da mesma terrina, bebendo água da mesma borracha e comendo paçoca do mesmo alforge (Faria 1980: 161-162).
Assim, mais do que no litoral, no sertão, as relações entre servos e patrões
são apresentadas como sendo mais igualitárias e democráticas. Mesmo pensando
que este tipo de reflexão releva mais da ideologia do que de uma verdade histórica,
é notório que o sertão oferecia mais possibilidades de fuga do que nas zonas
canavieiras e no universo fechado dos engenhos de açúcar (Macêdo 2005: 43). O
apego dos filhos às mães pretas, às amas de leite, escravas veneráveis que criavam
os filhos e que tinham o mesmo nome de seus proprietários, é tido também como a
prova de certa harmonia social e racial (Dantas 1961: 163). A escravidão atípica do
sertão é lida sob o prisma das teses que G. Freyre desenvolveu para analisar o
universo dos engenhos. Porém, além do romantismo que envolve a representação
da escravidão, podemos pensar que os escravos sertanejos recebiam melhores
tratamentos do que das zonas canavieiras, pois representaram, até as últimas
décadas que precedem a Abolição, uma forma de capitalização substancial para os
fazendeiros ameaçados constantemente pelas secas e crises que agitaram o fim do
século XIX: no sertão, os aspirantes à liberdade pagavam um preço alto, pois,
sendo mais raros, os escravos eram mais valiosos do que em outras regiões
(Macêdo 2007: Mattos 2005: 130).43
43 Por exemplo, Ulisses de Albuquerque (1989) informa que o seu pai, numa propriedade no sertão de Pernambuco, possuia três escravos. Juvenal Lamartine (1965: 15) afirma que, no Seridó o número de escravos nas fazendas não passava de seis.
56
2.2.1.2. Herança, fugas e alforrias
Encontramos, com freqüência, a menção feita a escravos nos inventários das
famílias mais abastadas da região; prova de que existiu uma população servil até às
vésperas da Abolição.
De um modo geral, os inventários post-mortem fazem referência a alguns
escravos – raramente passava de seis-, sempre contabilizados ao lado de burros e
jumentos (Macêdo 2007)! No início do século XVIII, em Currais Novos, um escravo
jovem e de boa saúde valia o equivalente a seis bois (Lima 1988: 76). No final do
século XIX, um escravo com as mesmas características, era avaliado na região entre
600$000 e 800$000. Já, as mulheres valiam menos. Um pouco antes da Abolição,
os preços foram multiplicados por dois. Com o testamento de D. Adriana, temos a
prova da existência de um número relativamente elevado de uma mão-de-obra
serva no interior. Ela é esposa do Coronel Cipriano Lopes Galvão, vindo, em 1755,
de Igarassu, Pernambuco.44 Quando faleceu em Currais Novos em 1793, ela tinha
vinte e quatro escravos (Lima 1988: 76; Assunção 1988: 58). Segundo Mattos
(1985: 140), em período de crise econômica, o escravo representava uma forma de
capitalização, pois podia ser vendido pelo seu dono em caso de necessidade.
Nas declarações de sucessão dos grandes proprietários fundiários, nos
arquivos privados e nos registros da Igreja, encontramos elementos preciosos e, às
vezes, pitorescos que informam sobre a vida cotidiana dos proprietários e das
populações de escravos. Por exemplo, nos inventários post-mortem dos
proprietários de escravos, há menção da profissão, da idade, do nome e do estado
de saúde do escravo ou mesmo seu país de origem. Assim, Manuel Pereira
Monteiro da Dinamarca, falecido em 1838, em Serra Negra, que deixa para a sua
numerosa descendência, além de um grande capital em gado - perto de quatro mil
44 Juvenal Lamartine (1965: 38) adquiriu a fazenda Ingá (Acari, RN) que pertenceu ao Capitão Cipriano Bezerro Galvão.
57
cabeças -, vinte e seis escravos, na maior parte dos casos, jovens e gozando de boa
saúde (Cunha 1971: 231-234). Comparado a outros, este inventário nós faz pensar
que o defunto dispunha de uma verdadeira fortuna e que ‘mandava’ em Serra
Negra.
Estudos atestam uma relativa liberdade para a população escrava no final do
século XIX, tanto nas zonas de plantação, no Seridó ou ainda nas cidades
brasileiras onde trabalhavam os “escravos de ganho” (Cascudo 1955: 40-50;
Mattoso 1999; Monteiro 2002: 177 e 182; Macêdo 2007). Nas zonas de engenho,
eles trabalhavam como assalariados ou de uma maneira sazonal (Lima 1988).
Alguns registros informam sobre a divisão do trabalho escravo no sertão e a
hierarquia entre os diferentes ofícios:
O braço escravo era distribuído do seguinte modo: um, carreiro, outro, vaqueiro e dois ou três para os trabalhos de pequena lavoura. As escravas, por sua vez, tinham as seguintes ocupações: uma cozinheira, uma copeira, em regra já libertada pela Lei do Ventre Livre e as demais, fiandeiras. (Lamartine 1965: 15).45
Assim, e cada vez mais, o regime de trabalho escravo se diferencia: a
especialização e a profissionalização dos escravos corresponde ao grau de
integração dos africanos e dos seus descendentes na sociedade brasileira. Pelo
menos, para o período que antecede a Abolição, havia uma grande variação nas
tarefas e o estatuto de cada cativo variava em função do tipo de trabalho efetuado e
do local onde vivia. Assim, com a evocação do personagem do vaqueiro, central na
fazenda, encontramos uma reunião certa ambigüidade em relação à caracterização
do estatuto do ‘negro’ que podia ser livre ou escravo. No seu estudo, Afrânio Garcia
Junior (1989: 27) aponta que, pelo menos no século XIX, no Brejo da Paraíba, uma
região vizinha ao Seridó, os escravos representavam vinte por cento da força de
trabalho. A maior parte deles eram “moradores”. Mesmo sendo dificilmente
contabilizada e apesar das imprecisões em relação ao estatuto, uma população livre
de fato aparece no decorrer do século XIX: os que fugiram, os libertos ou, ainda, os
45 O estatuto de “escrava-liberta” é pelo menos estranho!
58
que exerciam uma profissão ou uma atividade que os permitia reunir um capital;
como iremos ver a seguir, encontramos, na literatura, alguns escravos que
conseguiam economizar o bastante para comprar sua liberdade e a dos seus
parentes.
Encontramos vários registros de alforria, mas entre eles, um merece
particularmente nossa atenção: a libertação de escravos por motivos religiosos. As
damas da sociedade, muito religiosas, teriam assim oferecido os seus escravos aos
santos para pagar uma promessa. O escravo recebia, então, um documento
atestando a sua liberdade – uma carta de alforria – porque os santos não tinham
necessidade de possuir uma mão-de-obra escrava (Lima 1988)! Também, no
Seridó, entre o fim do século XVIII e o século XIX, encontramos várias ‘gerações de
padres’ que irão se tornar grandes proprietários fundiários e donos de escravos.
Alguns tiveram um papel político importante na vida da Província, como Manoel
José Fernandes, morando em Caicó e considerado como sendo “um dos homens
mais ricos do seu tempo”, que registra, no seu testamento datado de 1851, o desejo
de libertar seus cinco escravos... após sua morte que ocorreu em 1858 (Dantas
1961: 117). Análises sistemáticas seriam necessárias para saber se houve libertação
com uma maior freqüência no interior do que no litoral.46 Uma dúvida, então,
persiste quanto ao estatuto do ‘negro’ que podia ser livre ou ter uma atividade
remunerada, continuando a ser escravo, como é o caso dos artesões, dos
comerciantes ou dos agricultores vendendo o produto de suas roças (Cascudo 1955:
498; Koster 2003; Medeiros Filho 1993: 55; Monteiro 2002: 177, 182; Puntoni
2002: 128; Schwartz 2001: 97). Dessa forma, podemos pensar que uma parte da
população negra havia conseguido libertar-se – pelo menos formalmente – do seu
estatuto de escravo e que, em meados do século XIX, havia um quadro diferenciado
na composição social, geográfica e cultural das populações afro-descendentes que
habitavam a região Nordeste, tanto na zona rural ou urbana, quanto no litoral, no
46 Juvenal Lamartine (1965: 77) relata a libertação de Josefa, escrava de um proprietário brutal de Serra Negra, depois do discurso de um advogado em seu favor.
59
agreste ou no sertão. Sabemos que, no Seridó, no período situado entre o final do
século XVIII e o início do século XIX, uma grande porção da população liberta
tinha conseguido libertar-se com seus próprios meios (Macêdo 2007: 226).
2.2.1.3. O fim do regime escravocrata no Seridó
A interdição do tráfico negreiro internacional em 1850 e os fatores
econômicos parecem ser determinantes para o sucesso do movimento humanista
no Nordeste (Mattos 1985).47 Se a partir da Lei do Ventre Livre, decretada em 1871,
os filhos dos escravos nascem livres, é natural que haja um crescimento da
população negra livre a partir desta data: sabemos que alguns pais doaram seus
filhos de mais de cinco anos a libertos para que eles criassem, ou então quando eles
ficavam com os pais, eram empregados na fazenda, sem ter o estatuto de escravo
(Lima 1988). Também, o proprietário condicionava a liberdade do escravo à sua
morte (Mattos 1985; Macêdo 2007). A partir de 1883 é instaurado um imposto por
cabeça de cada escravo e encontramos então alforrias em massa nesta época,
porém, de um modo geral, eram os próprios interessados que custeavam sua
liberdade (Ballet 1981; Macêdo 2007)!
Entende-se, então, porque os proprietários arruinados pelas secas sucessivas
e, sobretudo, pela grande seca de 1877-1879, se vêem na obrigação de se
47 Desde 1850, há a libertação de escravos e o Ceará, neste momento, dá o exemplo para o Rio Grande do Norte na organização de uma campanha abolicionista (Hemeterio Filho 1983: 33; Lamartine 1965: 75). Açu liberta seus escravos em 1885, Caraúbas e Triunfo em 1887 (Monteiro 2002: 205). Se Mossoró foi a primeira cidade do Rio Grande a libertar os seus escravos, no dia 30 de setembro de 1883, só fez seguir o exemplo recente do Ceará (Hemeterio Filho 1983). O movimento abolicionista, que culminará com a abolição do dia 13 de maio de 1888, propaga-se por todo o Nordeste. O fenômeno foi um pouco exagerado por parte de certos autores, entretanto, essas libertações devem ser vistas à luz da situação econômica da região.
60
desfazerem dos seus bens mais preciosos, os escravos, para conseguir reunir capital
e reduzir o número de bocas a serem alimentadas48:
Levas e levas de escravos desceram para a praça do Recife, onde eram vendidos para os cafesaes do sul, sendo com seu produto compradas as mercadorias que iriam matar a fome de seus antigos possuidores.
Bocado bem amargo deve ter sido esse amassado com as lágrimas de filhos da generosa terra sertaneja, onde o escravo foi sempre tratado com brandura, ause como pessoa da família, e que a seca airava à vida dura e cruel das senzalas do sul (Dantas 1941: 120).
Desde 1840, momento no qual se inicia o tráfico interprovincial para o Sul
cafeeiro, principalmente após o período das grandes secas do fim do século XIX, o
Nordeste se priva de grande parte da sua força de trabalho. Se as grandes
plantações do Sudeste tiveram o recurso de uma mão-de-obra de imigrantes
provenientes da Europa, elas se aproveitaram também da desestruturação da
sociedade colonial do Nordeste, recebendo os escravos sertanejos vendidos por
fazendeiros falidos (Dantas 1941; Garcia 1989: 28; Monteiro 2002: 191-193). Frente
à amplitude do fenômeno migratório e dos movimentos pró-abolicionistas,
apoiados pela Inglaterra, nasce, em 1881, uma reivindicação para acabar com o
tráfico interprovincial de escravos (Ballet 1981: 119-125; Monteiro 2002: 165-169).
Com a tentativa de reunir informações acerca da presença escrava no sertão
do Rio Grande do Norte, constatamos que, ao longo dos séculos, a situação das
populações envolvidas no processo colonial é movediça, contrastada e muito mais
complexa do que podemos imaginar. Verificamos que o número de escravos
diminuiu em 1845, ano de grande seca, crescendo a partir de 1860 e caindo de novo
a partir de 1870, décadas nas quais se vêem a instalação e o desenvolvimento da
produção algodoeira nos sertões até os anos 1940 (Cascudo 1955: 380-382 e 838;
Mattos 1985: 133-146; Takeya 1985: 30). Assim, o númeo de escravos cresce em
toda na Província até o final do século, com algumas variações. No século XIX,
época em que encontramos números seriados, a população escrava do Rio Grande,
48 O Ceará, também, vê desaparecer perto de um terço da sua população servil, em menos de dez anos (1872-1880). Para uma descrição das secas, ver Manoel Dantas (1941: 111-154) e 0 “roteiro das sêcas” de Dom José Adelino Dantas (1961: 143-152).
61
que desde o início do século era relativamente estável, aumenta brutalmente em
1844, quando o numero de escravos é multiplicado por dois: são comptabilizados
10.240 ecravos em 1835 e, dez anos mais tarde, em 1844, 23.467. O contingente
escravo fica relativamente estável até a promulgação da Lei Aurea. Reunindo os
poucos estudos que indicam os números de escravos, apresentamos o quadro a
seguir:
Tabela 8 – População escrava - Rio Grande do Norte e Seridó (1811-1888).49
Data Número de escravos no RN
Número de escravos no Seridó
1811 8.072 6.116 [12.363 “negros” dos quais 6.247 livres]
1819 8.109 -
1820 9.109 -
1835 10.240 -
1844 23.467 ou 18.153 -
1855 20.244 ou 3.000 2.179
1870 24.236 -
1872 23.379 ou 13.484 2.624
1873 10.282 1.969
1881 9.367 1.905
1882 9.109 1.298
1883 8.807 1.160
1884 7.627 885
1887 2.161 -
1888 3.716 ou 482 132
Diante das variações constatadas nas diferentes fontes consultadas, fica
difícil saber exatamente quantos escravos foram trazidos para o Rio Grande do
Norte, seus destinos e suas vivências. Porém, a leitura dos trabalhos já realizados e
a consulta das fontes primárias indicam que, desde o período colonial até a
49 Augusto 1954: 13; Lima 1988: 20-21; Macedo 2005: 46; Mattos 1985: 136-138; Monteiro 2002: 131, 156, 192; Santos 1994: 83. Os números em negrito são mais fiéis.
62
promulgação da Lei Aurea, há uma presença constante de escravos na Capitania do
Rio Grande.50
As crises sucessivas modificaram drasticamente o quadro social e já na
segunda metade do século XIX, a população escrava encontra novos meios para
fugir do cativeiro. Assim, os antigos escravos e os agregados das fazendas viraram
trabalhadores sem contrato fixo, "alugando" sua força de trabalho para os antigos
donos que se tornaram patrões. Com os mesmos homens que viviam em torno das
fazendas, ficaram cristalizadas relações e formas de tratamento que foram
herdados de uma relação de dominação secular (Cascudo 1971: 420-423, 429).
Antes de apontarmos para as raras referências encontradas sobre formas de
resistência à escravidão na literatura regional, é interessante anotar que, num
perímetro relativamente próximo à Boa Vista, existiu, em várias épocas, referência
a escravos e libertos. 51
2.2.2. Escravos e fugitivos na região do Acauã
Para entender o contexto de formação da comunidade quilombola de Boa
Vista, é preciso descrever brevemente as condições sócio-históricas nas quais o
“quilombo” surgiu. Nesse sentido, observamos que a região do Seridó, conhecida
por suas secas vê, gradativamente, modificar sua configuração econômica, política
e social. No final do século XIX, a região conhece várias crises econômicas ligadas,
em parte, a ocorrência das secas e a ausência de uma ação e de representantes do
poder central (Terra 1983).
50 Trata-se evidentemente de um esboço que não pretende a exaustividade, pois o acesso às fontes primárias é difícil, tendo em vista a ausência de estudos sistemáticos sobre o tema.
51 Seu Ulisses Potiguar (16/03/07) afirma ter uma cópia de um processo em que escravos se libertaram ganhando na justiça. Porém, diante a exigüidade dos prazos, não tivemos possibilidade de verificar esses dados, nem encontramos cartas de alforrias referentes a Boa Vista durante a pesquisa documental.
63
Encontramos um documento que registra escravos solicitando terras em
1613, porém, é preciso esperar o século XVIII para cruzar com outros escravos na
mesma região: Olavo de Medeiros filho (1981: 113-114) relata o episódio em que um
"negro" ataca mulheres: ele estava escondido numa furna num "lajedo grande da
Rajada", no caminho entre a cidade de Acari e a Serra da Rajada:
José de Azevedo Dantas, descendente da família de Tomaz de Araújo, em um jornalzinho manuscrito que redigia, intitulado "O momento", descreveu um interessante caso ocorrido com Dona Maria da Conceição de Mendonça. Baseou-se José de Azevedo em um relato feito pelo velho seridoense Coronel Quincó da Rajada, o qual, por sua vez, teve em seu poder uns antigos versos compostos por Simplício Francisco Dantas, neto do português Tomaz, intitulados UM NEGRO NU E CRU. Daremos uma nova roupagem ao relato: Dona Maria da Conceição de Mendonça, moradora nos Picos de Baixo, entre os anos de 1753 e 1755, certa feita, à Fazenda dos Picos de Cima visitar a sua filha Josefa de Araújo Pereira, casada há pouco com Caetano Dantas Corrêa. A esposa de Tomaz de Araújo, viajando pela margem do rio Acauã, com uma filha e uma escrava, já de volta á sua casa, viu surgir à sua frente um 'negro horrível, asselvajado, completamente despido', armado de uma foice, vindo fugido de algum engenho do litoral. Logo ao avistar o grupo de mulheres, o negro avançou sobre as mesmas com gestos rancorosos, pretendendo satisfazer seus instintos bestiais. Dona Maria da Conceição pôs-se à frente do grupo, empunhando um espadagão que trouxera consigo, tendo-se travado um combate singular: de um lado, o negro armado de foice; do outro, a matrona sertaneja armada de espadagão!... Depois de muito tempo, o negro, que durante a luta 'dava pulos horríveis', foi finalmente atingido no baixo ventre, caindo por terra com 'grandes gemidos' (...) (Medeiros filho 1981: 113)
Esse episódio, mesmo anedótico, atesta que havia uma presença efetiva de
escravos fugidos na região, desde o século XVIII. O lugar escolhido pelo escravo
fugido não era hospitaleiro, pois é situado entre serras e serrotes que impediam
uma fácil circulação na caatinga – configurações geográficas e ecológicas
semelhantes a da Boa Vista dos Negros.
64
Fotografia 1 – Boa Vista e a serra do Marimbondo (jun. 07).
Apesar da afirmação categórica de que não havia "quilombos nem rebeliões
negras" (Cascudo 1955: 44), encontramos raríssimas referências à revoltas
organizadas. O primeiro registro é o de um “Mocambo de negros com mais de
quarenta arranchados na ribeira do Trahyri” em 1722 (Porto Alegre et alii. 1994:
159; Monteiro 2002: 117). Se esse agrupamento é designado, pelos estudiosos
locais, como sendo o único quilombo do Rio Grande do Norte, sabemos da
existência de várias outras comunidades afro-descendentes cuja história ainda fica
para ser escrita: encontram-se espalhadas em todo o estado e, em particular, na
região do Seridó, em Currais Novos, Acari e na Paraíba vizinha.52 Há também um
registro histórico de um quilombo, correspondendo à definição clássica: o
‘mocambo’ era localizado em Ipiancó, na Serra da Teixeira (Paraíba), numa região
próxima de Boa Vista e foi destruído em 1731 (Jofilly 1977: 367).53
52 Atualmente, no Rio Grande do Norte, são 15 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares. 53 Além disso, ao longo século XIX, existem revoltas de escravos, sobretudo na região litorânea onde era cultivada a cana de açúcar e verificamos que houve múltiplas iniciativas individuais de libertação (Cavignac et alli. 2006).
65
Também, graças ao inventário de Caetano Dantas Correia datado de 1798,
sabemos que o patriarca tinha seis escravos, o que era pouco em relação ao
Sargento-Mor Felipe de Moura e Albuquerque, morador no sitio Belém, em Acari,
que deixou, em 1789, vinte-e-quatro escravos aos seus herdeiros – entre àqueles,
quinze tinham menos de 14 anos (Guerra 1989: 109). Ainda, encontramos registros
esparsos da presença de escravos ou de libertos na região: Oliveiro Ledo, um dos
desbravadores do serão de Piranhas, no século XVII, escolhe libertar uma escrava
“Maria”, entre seus escravos Guiné, Angola, mamelucos e outras ‘crioulinhas’
(Guedes 2006: 111); encontramos a referência a uma “Rosa Maria natural de
Angola” que, no início do século XVIII era casada com o português João Baptista
de Oliveira cujos descendentes vieram para o Seridó fundar a fazenda Barbosa de
Cima, na povoação de Caicó (Dantas 1961: 47). Em 1719 ou 1758, segundo as fontes,
no rio São José - hoje Cruzeta – havia um "crioulo forro", Nicolau Mendez da Cruz
que possuía terras no sertão de Piranhas (Guedes 2006: 111; Medeiros filho 1981:
125). Na literatura regional, encontramos várias referências a Feliciano da Rocha,
liberto, proprietário da fazenda Cacimba das Cabras em Acari, que viveu nos
meados do século XVIII (Dantas 1941: 26-30; Lamartine 1965: 56, 99; Medeiros
filho 1981: 125-126; Macêdo 2007). O ex-escravo nascido e criado em Camaratuba
(PB), passou a morar em Acari onde, segundo os cronistas, ‘criou família’ e
melhorou de vida:
Antonio Pais (de Bulhões) (...) comprou Feliciano José da Rocha, passou-lhe imediatamente carta de liberdade, entregando-lhe uma de suas melhores fazendas de gado para ser vaqueiro. Feliciano enricou, adquiriu a fazenda Barrentas no Acari54, onde morreu em idade avançada, querido e respeitado como um dos homens de bem daquela terra. (Medeiros filho 1981: 126).
Em várias ocasiões, em conversas com pessoas de localidades vizinhaas,
pudemos notar que a fama dos moradores da Boa Vista era, até pouco tempo, a de
54 Notamos que Juvenal Lamartine (1965:99) afirma que Feliciano foi proprietário da fazenda Cacimba das Cabras, em Acari.
66
‘negros escondidos’ que viviam amedrontados.55 Em outros momentos, percebemos
que as populações negras podiam ser confundidas com cangaceiros, pois ocupavam
os mesmos espaços: os bandidos procuravam abrigo nas zonas pouco povoadas, de
difícil acesso e pouco policiadas. Recebiam a ajuda do proprietário da fazenda para
esconder-se nas furnas, nas serras e nas montanhas (Barroso 1912: 125-127).56 Os
jagunços eram guarda-costas ao mesmo tempo em que eram membros de milícias
privadas (Della Cava 1985; Queiroz 1986). Encontravam-se no meio deles escravos
ou libertos que continuavam a serviço de seus antigos senhores (Lima 1988: 80).
Alguns escravos fugitivos, no final do século XIX, escolheram de seguir o destino
dos cangaceiros, como é o caso do ‘negro Luiz’ cuja atuação ia de Pombal (PB) a
Serra Negra do Norte:
Era ele um escravo foragido que, à frente de outros negros, assassinava, roubava, e estuprava por todas aquelas redondezas (Lamartine 1965: 104).
No século XIX, aparecem vários cangaceiros famosos que eram negros:
Lucas da Feira, um escravo fugitivo dos arredores de Feira de Sant’Ana (Ba.), teve
um folheto escrito que conheceu um grande sucesso editorial. Podemos ainda citar
para o Rio Grande do Norte Chico Ferreira, o ‘negro Izidro’, grande ladrão de
cavalos, o negro Artur, originário da região Oeste, ou ainda, a família Canela que
vivia em Sant’Ana dos Matos (Cavignac 1994: 226, 242, 263, 266-270; 578-588).
Na cidade vizinha da Boa Vista, Carnaúba dos Dantas, onde coletamos várias
narrativas de escravos mal-tratados por seus donos, podemos citar o exemplo de
José Venâncio Dantas (1854-1926), fundador da primeira banda de música da
cidade que era filho de João José Dantas e da escrava Vicência Maria do Espírito
Santo, (Porpino 2004: 60).57 Se, em Carnaúba, não há informações sobre a
55 Seu Jozias (20/10/07) conta que Pedro Baeta, quando caçava na serra do Marimbondo gostava de amedrontar os moradores da Boa Vista, atirando para ver o pessoal correr para caatinga. 56 Seu Ulisses Potiguar relata várias histórias do seu tio que escondia bandidos na sua fazenda. 57 Ver no próximo capítulo o depoimento de Seu Jozias da Silva, entrevistado em Carnaúba dos Dantas dia 20/10/2007.
67
existência de comunidades quilombolas, como nos municípios vizinhos - Parelhas e
Acari ou mesmo Currais Novos, existe, no entanto, uma memória referente à
escravidão que indica a presença de indivíduos isolados que se instalaram nos
lugares afastados - em terras pouco cobiçadas - e fundaram famílias; fugiam do
cativeiro ou, quando libertos, procuravam melhorar de vida.
Se na literatura historiográfica e na documentação cartorial e paroquial
consultada, encontramos poucas referências aos escravos, ao contrário, há vários
registros orais sobre situações sociais que podemos associar à escravidão: nas
lembranças dos mais velhos e, sobretudo, as narrativas que colocam em cena almas
e aparições noturnas de antigos ‘cativos’ e fugitivos, surgem, reprentinamente, a
história dos antigos escravos. Também informam que as populações negras
conheceram um destino semelhante ao dos índios, inclusive casando entre si e, em
várias ocasiões, tiveram que se “esconder no meio do mato”.58 Desta forma,
encontramos um novo campo aberto para os historiadores e os antropólogos: a
pesquisa realizada em Boa Vista nos ensina que há um passado escravo escondido
nos documentos escritos e na memória local.
2.3. “Negros retintos dançadores de Pulachi”
O cangaceiro do Norte é selvatico e feroz, sofrendo de um descalabroso nervoso – producto da ancestralidade e do cruzamento ethnográphico (...) O degenerado torvo de faculdades deprimidas (...) com taras psychopatias, desses broncos cérebros de degenerados. Gustavo Barroso (1912: 121; 152-153)
De maneira curiosa, a primeira descrição que encontramos de Boa Vista foi a
do Padre Otávio Pinto, de passagem em Carnaúba, que visitou a comunidade em
1930. Num artigo publicado quatro anos depois no jornal A República, ele reage ao
livro de Câmara Cascudo Viagens no Sertão, no qual o autor afirma
categoricamente não ter visto “nenhum negro” durante sua travessia do semi-
58 José Adelino Dantas (1961: 22-23) relata o sepultamento de um índio (Antonio Carlos) casado com Roza Maria “criôla”, na “capela da Senhora do Rozario” de Caicó, em 1800.
68
árido.59 Apesar de ser escrito no modo picaresco e conter elementos da ideologia
dominante naquela época, podemos, com o auxílio dos quilombolas, registrar
informações importantes que atestam a antiguidade da presença afro-descendente
no local: Padre Pinto descreve sua visita na casa do patriarca da Boa Vista onde
encontra alguns antepassados dos moradores atuais: o velho Teodozio e sua
números prole, a Chica ‘Fael. De todos os relatos escritos, é Otávio Pinto que
fornece informações mais precisas sobre a existência de uma comunidade negra em
“Boa Vista”. Relata que a aldeia contava com mais de 500 habitantes, antes da
terrível seca de 1877 que teve como principal conseqüência o êxodo de uma grande
parte da população.
Além do registro do Padre Pinto, encontramos alguns escritos publicados
localmente que estão disponíveis na biblioteca municipal de Parelhas e poucos
trabalhos de folcloristas locais: retomam, geralmente, as versões contadas sobre a
origem do grupo que destacam a autonomia do grupo num período bem anterior à
Abolição e descrevem a dança do Espontão (Cascudo 1962: 297-98; 1980; Melo
1973). As publicações editadas com o auxílio da prefeitura descrevem episódios e
traços culturais do grupo em questão, e, quase sempre, apresentam a dança do
Espontão e a devoção a N. Sra. do Rosário como sendo caracteríticos da Boa Vista.
Testemunhas de antigos moradores, como àquele de Florêncio Hilariano, o
“Micoquinha”, que afirma que desde 1845, os “negros da Boa Vista vinham vender
cocadas, doces e beijus nos dias das disputas de cavalos, fazendo de mercado uma
velha oiticica que sombreava um bom pedaço de chão no local onde se encontra
hoje o Clube Centenário”. Assim é possível que “os Negros da Boa Vista” já viviam
no local antes da fundação da cidade, em 1856, pois alguns afirmam que, desde
1845, eles vinham para feira vender suas produções agrícolas:
59 Ver em anexo uma cópia do artigo de jornal A República publicado em 1934 e, também, no anexo do livro de L. da C. Cascudo (1975), Viajando o sertão.
69
Ninguém melhor que Micoquinha para falar sobre os negros da Boa Vista, uma raça muito unida e fechada que é apontada como grande responsável pelo desenvolvimento do lugar que se chamava Boqueirão60:
- Eles vieram com a velha Isabel, uma negra muito bonita e de grande liderança; ela veio direto da Europa (sic) para chefiar os negros na fazenda Boa Vista, que jamais chegaram a ser escravos (Micoquinha 1994).
A referência a Europa pode parecer estranha, porém, localmente, designa de
maneira genérica, os paises estrangeiros e poderia mesmo designar a África
(Cavignac 2006). O ponto interessante do relato que é consensual para os
moradores de Parelhas, é que “o povo da Boa Vista” não é visto como descendentes
de escravos, mas como uma “raça unida e fechada”, dirigida por uma mulher
extraordinária e com características físicas peculiares. Segundo outra fonte que
apresenta uma hipótese pouco segura sobre a orgiem da Boa Vista, a comunidade
era um antigo quilombo:
Na localidade de Quintos [Boa Vista, corrigido a mão], no município de Parelhas, existe um aglomerado de negros que, se diz, são remanescentes do famoso Quilombo dos Palmares. São os Negros do Rosário, elementos de uma pigmentação diferente, uma pele de um preto quase azulado. Eles cultuam danças e hábitos que vem dos seus ante-passados e vivem em comunidade como se de fato pertencesse a uma raça diferente. Chegaram a Parelhas certamente após a Libertação dos escravos, pela Lei assinada pela Princesa Isabel, quando ficou sem finalidade o Quilombo dos Palmares e seus residentes foram se dispersando, em grupos (Parelhas 1977: 40).
A imaginação do jornalista, pouco informado da realidade local – o nome da
comunidade descrita esta errada -, é fértil, mas, retoma uma versão que
encontramos de maneira corriqueira, associando as comunidades negras a uma
origem comum, o Quilombo dos Palmares: vai até mais longe, deduz uma data de
fundação para Boa Vista que seria ulterior à Abolição. O artigo reflete ainda a visão
depreciativa e monstra o pouco interesse da sociedade em geral em relação à
história e ao devir das comunidades quilombolas na região.
A partir do final dos anos 1970, professores e alunos da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, sobretudo os universitários que eram ligados ao
60 O autor refere-se a Parelhas.
70
Museu Câmara Cascudo, visitaram regularmente a comunidade. Prof. José Crispin,
professor de Antropologia, levava regularmente turmas de alunos, solicitando
auxílio da prefeitura municipal de Parelhas e a participação da comunidade na
preparação das refeições.61 Vários relatórios de pesquisa, monografias e teses de
dissertações foram produzidos sobre a Boa Vista ou sobre a Irmandade dos Negros
do Rosário: alguns trabalhos de cunho histórico se concentram na história oral
para apontar elementos constitutivos da identidade étnica; outros refletam a
preocupação dos seus autores em descrever problemas estruturais ligados à
marginalização econômica e social do grupo. Finalmente, há uma preocupação em
registrar o processo educativo e experiências de projetos coletivos. Com a excepção
de monografias de final de curso em história produzidas recentemente por
estudantes que mantém laços de proximidade com o grupo (Cruz 2004; Góis
2006), os estudos apóiam-se numa pesquisa empírica superficial e não apresentam
aspectos originais em relação aos outros trabalhos acadêmicos e poucos foram
entregue aos interessados (Mattos 1985: 121; Silva 2006; Weck 2000). O número
elevado de trabalhos acadêmicos produzidos sobre a localidade desde os anos 1990,
por ser um caso exemplar de uma comunidade quilombola “isolada” que mantém
uma tradição religiosa secular, explica também a presença de visitantes, grupos
escolares e estudiosos que, pelo menos desde o final dos anos 1970, vem conhecer a
comunidade.
Em 1998, o pesquisador Alecsandro P. Ratts elaborou um relatório técnico-
científico da comunidade para o projeto “Mapeamento e sistematização das áreas
de remanescentes de quilombos” a pedido da Fundação Palmares e, mais tarde,
61 Informações repassadas pelo professor Crispin, pelo telefone, em fevereiro de 2007. O Prof. Luiz Dutra (MCC-UFRN) que acompanhou o Prof. Crispin na época, disse, que foi feita uma grande quantidade de fotografias da comunidade; documentos que não foram encontrados na instituição. Há um documentário antigo filmado em 1963, por Veríssimo de Melo tratando da festa do Rosário em Jardim do Seridó que não foi localizado. Também existiria uma filmagem sobre a Boa Vista realizada por um professor da UFRN e que vários alunos nossos assistiram, mas esse material não foi disponibilizado. A falta de organização dos acervos de pesquisa e a retenção da informação por parte dos pesquisadores somada à não divulgação dos resultados da pesquisa é generalizada, porém, no que diz respeito à questão quilombola, o problema parece mais agudo.
71
Elizabeth Lima da Silva constituiu um banco de dados para Boa Vista. Esses
relatórios, apesar de serem interessantes, pois fornecem dados sobre a realidade
social vivida pela comunidade há dez anos atrás, não apresentam uma pesquisa
documental conseqüente e descrevem superficialmente os aspectos sociais e rituais
da comunidade que, como vimos, são centrais na definição da identidade
quilombola. Finalmente, é preciso apontar para o esforço do médico aposentado,
ex-prefeito de Parelhas e ex-deputado estadual (PFL), Ulisses Bezerra Potiguar,
estudioso da história de Parelhas, que realizando pesquisas nos arquivos cartoriais
e paroquiais de Parelhas, Jardim do Seridó e Acari, conseguiu reunir uma soma
importante de informações orais sobre a história da Boa Vista e uma quantidade
enorme de documentação escrita sobre Parelhas.
A realização do projeto Inventário das referências culturais do Seridó pelo
MINC/IPHAN-RN que levantou dados referentes ao culto do Rosário, despertou o
interesse de órgãos culturais em nível local: as municipalidades de Jardim do
Seirdó e de Parelhas consideram a dança do Espontão como uma parte significativa
do seu patrimônio cultural. Finalmente, o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos
Norte-Rio-Grandenses da Universidade Federal do Rio Grande do Norte irá
realizar, em 2008, um documentário sobre a festa do Rosário tendo como foco a
comunidade quilombola de Boa Vista. A realização do presente estudo foi facilitado
pelo contato feito com o graduando em história, Sebastião Genicarlos dos Santos
cujo avô nasceu na Boa Vista. Além de trazer resultados documentais conseqüentes
de um ponto de vista documental, a referida pesquisa incentivou alguns membros
da comunidade em iniciar estudos visando a criação de um centro cultural em Boa
Vista – projeto que deve ser realizado com o apoio do Labordoc/CERES-UFRN.
Dessa forma, os remanescentes de quilombo de Boa Vista que foram,
tradicionalmente, objeto de pesquisa, tornam-se, cada vez mais, pesquisadores e
advogados da sua própria causa, produzindo uma reflexão crítica sobre a história.
Como veremos, conseguem, com sucesso, realizar uma síntese entre o passado e o
presente, atualizando os elementos de uma ancestralidade cuja principal referência
encontra-se na tradição oral transmitida pelos mais velhos e na dança do Espontão.
72
OS FILHOS DE TEREZA
Viva Nossa Senhora do Rosário!
Viva São Sebastião!
Viva as pessoas de bem!
Viva a boa sociedade, tronco, ramos e raízes!
73
A história da fundação e a longa memória genealógica compartilhada entre
os moradores fornecem uma legitimidade ao grupo que, até hoje, ocupa as terras de
“Boa Vista dos Negros”. Apoiando-se na tradição oral, os quilombolas apresentam
de forma unânime as circunstâncias do povoamento inicial de Boa Vista num relato
que coloca em cena dois grupos sociais e étnicos diferenciados que irão se distribuir
as terras: empregados recebendo favores dos fazendeiros, negros e brancos. É na
reiteração da genealogia do grupo e da narrativa que informa sobre as
circunstâncias da chegada dos primeiros moradores que se constrói o sentimento
de pertencimento ao grupo e que se explica a divisão do território. Também, a
dança do Espontão, realizada no final do ano em Jardim do Seridó, aparece como
uma outra forma de contar a história: encena ritualmente a luta e a resistência à
dominação sofrida ao longo dos séculos. Assim, a memória narrativa, a genealogia
e a dança aparecem como sendo os definidores da identidade coletiva.
Mostraremos que, apesar da ausência de estudos históricos sistemáticos,
existem evidências históricas que apontam para a existência secular de Boa Vista
dos Negros e, na sua origem, a comunidade era composta por famílias afro-
descendentes que tinha conseguido se libertar e adquirir uma autonomia
econômica, pois identificamos proprietários de terra pelo menos desde 1889; isto é
um ano apenas da Abolição da escravatura.
3.1. Tereza e o coronel Gurjão
O povo pobre pôs os cacarecos à cabeça e tratou de emigrar, ao azar de sua desgraça, em busca dos brejos e portos, morrendo de forme e doenças ao longo das estradas (Dantas 1941: 119).
Encontramos uma versão sedimentada contando a origem da comunidade
quilombola de Boa Vista. Todos reconhecem um ancestral comum, Tereza, uma
retirante que teria sido ‘adotada’ por um fazendeiro, o coronel Gurjão. Os mais
velhos, principalmente, gostam de lembrar a história de Tereza que lembra a vida
dos seus ancestrais. Assim, Dona Chica, Seu Zé Veira, Seu Manoel Miguel e Dona
Geralda mostraram um grande talento e interesse para lembrar os antepassados e
74
em apresentar suas genealogias que convergem para uma origem comum. Porém,
mesmo se, num primeiro momento todos afirmam que nunca houve escravidão em
Boa Vista, ao longo das narrativas e das evocações de um tempo longínquo, há
referencias sistemáticas a índios fugitivos e a escravos.
3.1.1. “De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio...”
Todos nossos interlocutores retomam a versão contada por Chica62 e Seu
Emiliano (1911-2004); este era considerado como a pessoa de referência nos
assuntos ligados à história de Boa Vista (Cavignac 1994: 215). Grande contador de
história dotado de uma memória extraordinária era capaz de citar todos os nomes
dos descendentes de Domingos, em linha masculina:
Essa aldeia de negro aqui, começou de uma mulher. Começou de uma Luzia... Luzia, não, era Tereza, começou de uma Tereza. Essa Tereza, dizem que era negra retirante, vinha de não sei d’aonde, vinha bem de lá (R). Porque ninguém sabem d’adonde essa Tereza vinha.
Agora, quando chegou, era um ano seco. O ano era seco quando chegou aqui. Tinha um tal de um coronel Gurjão. Essa Tereza ficou na casa dele, como criada, como sendo da casa, criada da casa. Ela não ficou como escrava. Ela ficou como criada da casa, e quando ele passou esses negócios de terreno aqui de Boa Vista para ela, esse Coronel Gurjão, mas ninguém sabe quando foi isso... Porque minha avó é de 1825, a minha avó. E minha bisavó, de onde já vem? (R) Eu já sou da quinta geração dela, dessa Tereza.
A Tereza, o primeiro filho dela foi Domingo. De Domingo, foi Roberto. De Roberto, foi Inácio. De Inácio, foi Antônio63, que justamente é meu pai. Ninguém ouviu falar do marido dela. O filho, o primeiro foi Domingo, o outro foi Roberto e o outro foi Inácio, justamente meu pai era filho desse Inácio. Esse Inácio era bisavô de Francisca e ela é filha de Zé Vieira... Imbém era irmã do meu pai. O meu avô, por parte de pai nasceu aqui e aí foi a família todinha... todinho nasceu aqui e se criando aqui. (Seu Emiliano, 1991)
62 Francisca Vieira, Chica, a primeira professora de Boa Vista nasceu na Boa Vista em 1937. Para o depoimento integral, ver Cavignac (1994: 574- 5). 63 Seu Emiliano faz referência a seu pai, Antônio Fernandes da Cruz, Antônio Moreno (1869-1954), irmão de Manoel Gino, de Teodózio e de Imbém que segundo o registro encontrado por Seu Ulisses seriam filhos de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857).
75
Retomando o relato detalhado de Seu Emiliano, e acompanhando a
genealogia descrita por ele, voltamos, aproximadamente, para a segunda metade
do século XVIII; momento em que Tereza, a “retirante”, teria chegado na casa do
coronel Gurjão.64 Segundo uma versão edulcorada da história, o coronel, que
morava no sitio Maracujá, teria doado uma parte das suas terras a Tereza e seu
filho, Domingos, dando assim início à ‘comunidade de Boa Vista dos Negros’. Na
versão contada por Seu Emiliano, Tereza, que era amante do fazendeiro, teve que
ser afastada do domicílio do Coronel Gurjão após sua esposa saber da traição; este
teria presenteado Tereza com as terras da Boa Vista para ela poder criar seu filho.
Seu Zé Vieira, falecido há alguns meses aos 81 anos, acrescenta detalhes à
história de Seu Emiliano e reforça a versão da união extra-conjugal entre o
fazendeiro e a retirante: segundo ele, Tereza veio acompanhada do pai e de duas
outras irmãs. A família pediu ao proprietário um lugar para passar uma noite e foi
o coronel Gurjão que solicitou ao pai deixar Tereza na casa dele. Não se sabe mais
do pai, mas as outras irmãs foram morar na Caatinga Grande e em Jardim do
Seridó.65 Seu Zé de Biu, cunhado de Zé Vieira, afirma que parentes de Tereza foram
morar em sítios nos municípios vizinhos, Jardim do Seridó e Parelhas
(Carnaúbinha, Caatinga Grande e Olho d’Água do Boi).66 Justamente, são lugares
onde encontramos registros históricos de escravos, onde existem comunidades
quilombolas e onde é festejada N. Sra. do Rosário. É como se a desestruturação da
família nuclear original correspondesse ao surgimento de vários outros núcleos de
64 Na verdade, há uma diferença de uma geração entre a versão contada por Seu Emiliano e a de Seu Manoel Miguel. Nesse caso, os desbravadores de Boa Vista teriam chegado no início do século XIX. 65 Informação transmitida por Sebastião Genicarlos dos Santos em 06/05/2006. 66 Seu Jozias da Silva, morador de Carnaúba dos Dantas, entrevistado em 20/10/2007, conta a história de sua avó que era escrava. O pai de Seu Jozias, José Antônio Maria, conhecido também como João Teodora (1877-1960) gostava de contar a história de vida de Maria Negrinha ou Mãe Negrinha, Maria Sabina da Conceição, parteira renomada. Ela veio morar em Carnaúba, casou-se e morreu lá, em 1954. Sua irmã Romana, que ficou com ela em Carnaúba, casou com João Pedro Dantas. Uma outra irmã delas foi morar no Olho d’Água do Boi, localidade situada no atual município de Parelhas. Mesmo se Seu Jozias conta uma história parecida à do mito de origem de Boa Vista e se orgulha de ter tido uma avó ecrava, ele não reconhece laços de parentesco com os moradores da Boa Vista.
76
povoamento na região. Assim, todas as comunidades quilombolas teriam uma
origem comum e manteriam antigas relações de parentesco através das irmãs
abandonadas durante a seca. Também, podemos pensar a narrativa de fundação de
Boa Vista iniciada com uma viagem: seria a metáfora da vinda dos ancestrais
escravizados para o Brasil e do destino dos quilombolas que, ao chegar, se
“espalharam nesse meio de mundo, criando família”.
Há outras versões da narrativa de fundação que incluem algumas
modificações em relação à contada por Seu Emiliano. Uma primeira, relatada por
Seu Ulisses Potiguar (maio 06)67, informa que Tereza teria sido deixada por seus
pais na casa do Cel. Gurjão, durante a grande seca de 1877, para agradecer a ajuda
prestada à família. As outras irmãs de Tereza teriam ficado em outras
propriedades: uma em Carnaúba dos Bezerras – hoje Carnaúba dos Dantas -,
fazenda desta família, outra no Olho d’Água do Boi, fazenda pertencendo à família
de Seu Ulisses, onde havia escravos, e a outra na Serra do Cuité na Paraíba:
Seu Ulisses (16/05/2007) Chica (12/03/1991) Porque quando eles vieram pra’qui numa seca grande e os pais, que eles não deixaram os nomes, tinham três negrinhas. Uma eles deram na Carnaúba, na Cobra, a um tal de um capitão... Deixe-me ver se me lembro o nome dele... depois eu lhe digo. Uma foi para Cuité e outra foi para Olho D’Água do Boi. Na Olho D’Água do Boi extinguisse totalmente, eu só encontrei um que por sinal foi o primeiro caso da cólera, aqui, no município, identificado foi lá. E esse ali da Boa Vista ele ficou por lá, ele fez uma doação de uma área por ali que a gente chama o Riacho do Gavião que ainda é a propriedade deles, viu... daí, como é que se diz, dividiu-se em todo aquele município. Eu ficava assim impressionado e um dia eu peguei Zé Viera, ai ele confessou: - O patrão começou a namorar a pretinha. Aí, a mulher deu escândalo, ele botou a menina
O pessoal mais antigo não se importava, o estudo era um pouco difícil. Aqui ninguém sabia ler, o pessoal mais velho. Quem sabia ler? Ai o pessoal mais velho não se importava, não se preocupava da pessoa saber daquilo. Agora, depois que o estudo ficou mais aprofundado, aí, muitas e várias pessoas aqui para contar a história da comunidade, dizer como a comunidade, desde quando, de onde era os primeiros negros, mas aí, não tem quem diga, a gente não sabe quem foi os primeiros negros. A gente só sabe assim, que os negros velhos diziam que os negros era um Domingos e uma Tereza. Foram os primeiros negros daqui, mas ninguém tem certeza. Ninguém sabe se esse Domingo era o esposo da Tereza e nem ninguém sabe se era o pai ou se não era. Mas se sabe que os negros vem desse pessoal. Olhe, tudo no mundo aqui dos negros vem logo
67 Seu Ulisses Potiguar, médico, foi deputado estadual reuniu uma vasta documentação histórica sobre a cidade de Parelhas e, em particular, sobre a Boa Vista dos Negros.
77
e mandou pra lá, ai foi justamente o inicio...
de Domingo e de Tereza. Mas ninguém não sabe se eram índios. Agora a gente sabe isso porque minha avó, ela morreu com 106 anos, nessa comunidade, e ela nasceu aqui. Ela morreu com 106 anos em 46, 47. Nasceu aqui e aqui morreu com essa idade. Quer dizer que no tempo da escravidão ela já existia.
Constatamos que Dr. Ulisses Potiguar (março 07), retoma fielmente a versão
contada pelos quilombolas, incluindo detalhes históricos e geográficos. Assim,
nessa versão mais “completa”, além de se tratar de uma simples doação de terra, o
filho da união ilícita, Domingos, recebe a propriedade de herança do seu ‘pai’, o
rico fazendeiro. A transmissão ‘natural’ das terras fundamenta ainda mais a
legitimidade da ocupação do território pelos quilombolas. Além de revelar um
segredo e a origem da terra, o relato indica com precisão lugares próximos a Boa
Vista: Carnaúba, Cuité, Olho d’Água do Boi, Cobra, Riacho do Gavião. A referência
à fazenda Olho d’Água do Boi, que segundo Dr. Ulisses é propriedade da sua
família, é interessante, pois remete-nos à existência da partilha ocorrida entre os
herdeiros de Teodôzio em 1859.68
Finalmente, existe uma outra versão da história da fundação de Boa Vista,
desta vez contada por Seu Severino Francisco dos Santos e Dona Quintina Maria da
Conceição (10/05/07) em que Tereza chega grávida na Boa Vista. Mais do que isso,
é escrava – e Seu Severino, que não nasceu na Boa Vista, insiste sobre o fato. Dona
Quitina não deixa claro se Tereza foi libertada pelo seu generoso e rico dono (“um
Barão”) ou por um decreto (“um papel” e a referência à Brasília):
Seu Severino: Esse filho, eu não sei como era o nome não, que não era do meu tempo...
Dona Quintina: Foi um dos primeiros negros que chegaram aqui.
Seu Severino: Ninguém sabe com quem ela (Tereza) era casada... que ela não era casada, ela chegou aqui com um filho e gerou esse povo todinho.
Dona Quintina: Pra mim, esse filho ‘ta bem guardado... Pra minha lembrança, eu acho que esse filho ainda veio guardado...
68 Ver documento em anexo.
78
Julie: Como assim?
Seu Severino: Vinha grávida, quando chegou aqui.
Dona Quintina: Foi um negócio que houve aqui, aqui não, não sei por onde, e eles saíram carregando... por certo pra não judiarem com os negros. Depois, ai soltaram ela aqui. Foi coisa do Barão... arranjou esse papel e ficou lá por Brasília.
Seu Severino: Ela era escrava.
Julie: Essa Teresa era escrava?
Seu Severino: Era escrava!
Dona Quintina: Quando o Barão foi embora, o filho ficou. Ele foi embora e ela não podia ficar só com o menino. Ai ficou, e essa terra foi doada ao filho.
Seu Severino: Agora, esse menino dessa Teresa foi que esbanjou Boa Vista, mas ninguém sabe quem ele é (Risos)... Foi ele quem formou Boa Vista. Mas ai, ninguém sabe como é ele.
Dona Quintina: Eu acho que a gente estamos bem na quinta geração.
Mesmo se nossos interlocutores atualizam a história de Tereza introduzindo
a referência a Brasília e a existência de um título de propriedade, eles retomam os
elementos constitutivos da narrativa: são os mesmos personagens, a situação social
desigual é acentuada, a docação da terra legitima a presença dos quilombolas, a
gravidez, as cinco gerações, etc. Nossos historiadores incluem, também, elementos
que dão um tom trágico à história de Tereza, insistindo sobre o estatuto de escrava
e os maus-tratos recebidos; deixam entender que Tereza, já grávida, foi deixada a
força pelo “Barão”, em Boa Vista (“soltaram ela aqui”), após ter sido maltratada
(“Judiar”). Ao contrário das outras versões, Tereza não é acolhida pelo “patrão”,
mas ela é abandonada. Em vez de vir acompanhada por suas irmãs e ser confiada
pelo pai a um homem que já esta instalado no local, Tereza chega em Boa Vista,
grávida e sozinha, numa situação crítica. É o filho, Domingos, que ao receber a
terra em herança, “forma” Boa Vista: todos os moradores encontrariam-se, então,
ligados por relações de parentesco. Assim, a referência direta à escravidão e a uma
situação de conflito, reintroduz uma história exemplar num contexto histórico mais
amplo, no qual as desigualdades sociais são acentuadas e reforçadas pela
discriminação racial.
79
3.1.2. Pai Cosme, Mãe velha e Imbém
Vimos que há poucas referências feitas à escravidão durante a evocação do
passado feita pelos moradores da Boa Vista. O estigma associado ao estatuto de
‘cativo’ é ainda muito forte: geralmente, os contadores da história que fornece
explicações sobre a origem da comunidade, insistem sobre a liberdade de Tereza
que era retirante. Da mesma forma, as narrativas que coletamos indicam sempre
que os primeiros moradores de Boa Vista dos Negros eram livres ao chegar ao
lugar. Por outro lado, existem referências furtivas a índios que, às vezes, são
confundidos com os escravos, pois “moram no mato”.69 Assim, a recorrência das
figuras indígenas na região do Acauã indica que há uma associação implícita entre
índios e negros fugidos.
Na entrevista realizada em 1991, Dona Chica, faz referência a sua avó Imbém
que nasceu em 1840 na Boa Vista, expressando sua dúvida sobre a sua origem
étnica; ninguém sabe se era ‘índia’ ou ‘negra’. A preocupação com a origem e com o
passado de Boa Vista percebe-se na fala de Dona Chica que traz na memória a
lembrança de ancestrais indígenas: Joana e Antônia (Cavignac 1994: 215). Segundo
seu Manoel Miguel, Joana era casada com Manoel Miguel, seu ancestral; eram
escravos vindo do Brejo, da família Mubuca, originários da serra de Cuité. Os filhos
deles vieram morar e se casar na Boa Vista: Cosme Miguel dos Santos (Pai velho)
que veio morar na casa da pedra casou com mãe Antônia, ou mãe velha, Antônia
Miguel – Antônia Maria da Conceição, nascida na Boa Vista70; João Arcanjo da
Cruz, ou João Miguel, casou com Severina Maria da Conceição, neta de Inácio
Roberto e de Joana; José Vieira ou Zé da Cruz, que casou com Maria Serafina de
69 Em outros trabalhos, mostramos que, na região, a história dos dois segmentos étnicos se confunde e que a ancestralidade indígena é antes ligada a um suposto estado de selvageria no qual se encontravam os antepassados, fugindo das perseguições (Cavignac 1995, 2003, 2006). Uma das possíveis explicações desta ‘confusão étnica’ é que tem relatos da existência de uma escravidão indígena na região, nos séculos XVIII e XIX (Macedo 2000). 70 Um dos filhos de Antonia e Cosme Miguel, Zé Cosme (Miguel) [1913-1992].
80
Jesus, Imbém (1840-1946), avó de Dona Chica. Encontramos ainda Isabel Maria da
Conceição ou Cabel que, segundo Seu Manoel Miguel, era também uma ‘cabocla
braba’ originária do Brejo Paraibano, de Várzea, da família Fael; teria sido adotada
por pessoas da Boa Vista. Cabel teria se casado com Antônio Fernandes Viera ou da
Cruz, o pai de Seu Emiliano, Antônio Moreno (1869-1954).71 Também, segundo
Dona Chica, Toinha ou Mãe velha, a índia originária de Várzea, na Paraíba, teria
casado com Inácio Roberto, nascido nas primeiras décadas do século XIX.72 Esse
último era irmão de André Fernandes Vieira que, por sua vez, era casado com
Joana de Jesus Cassimiro (1825-1896).73
Fotografia 2 - Pais de Dona Chica e Seu Zé Vieira (jan.07).
Se, em alguns momentos, Dona Chica evoca a presença de escravos
originários da Boa Vista que foram morar em Ouro Branco, cidade vizinha de
Parelhas, ela não tece muitos comentários sobre o fato. A discrição sobre a
71 Encontramos o nome de Antônio Fernandes da Cruz em dois inventários: um primeiro, de Domingos Fernandes da Cruz e um segundo, datado de 1859, de Manoel Fernandes da Cruz, um dos proprietários da Boa Vista (ver em anexo a relação dos documentos encontrados durante a pesquisa documental). 72 Interessante notar, como já foi apontado por nós em outros momentos, que, no que diz respeito à memória indígena, tratam-se sempre de mulheres: as caboclas brabas. 73 Ver em anexo.
81
escravidão por parte dos nossos interlocutores mostra que existe um silenciamento
do passado escravocrata. Assim, por exemplo, Seu Jozias, morador de Carnaúba
dos Dantas relata vários casos de maus tratos relativos a escravos por parte de ricos
proprietários: na Ramada ou Rajada – serra situada entre Carnaúba e Boa Vista –
Zé Martins matou a escrava e sua filha; Pedro Major, que tinha muito escravos,
torturava e chicoteava sistematicamente os desobedientes, amarando-os e
colocando sal nas feridas das vítimas – foi descoberto por Luiza e ficou com a mão
levantada até sua morte, sinal de castigo divino; Estevão levou duas escravas na
serra do Marimbondo para esturpá-las e matá-las; finalmente, Manoel Chico Cara
Preta “judiava” os escravos.74
Já, em 1990, Seu Emiliano, nos relatava a existência de ancestrais indígenas
e de velhas africanas que ninguém entendia, pois falavam uma outra língua. Ao
descrever a genealogia do grupo, informava sobre a existência de dois grupos de
origem étnica diferente:
Primeiro, tem uma parte africana... Mamãe75 dizia que tinha duas nega’ velha’ aqui, era da Angola. Não sei quem trouxe elas aqui. Mamãe dizia que a fala delas não conhecia não, não tinha quem conhecesse, só elas mesmo falavam. Era pra chamar Seridó, chamava Sirisomazieriro (R). Também tem uma parte que tem parte com índio. Tem uma parte que era índio. Porque a gente tem parte com índio... eu, não. Agora é uma família só, por certo que esses mais velhos casaram com uma cabocla braba. Olhe, a avó de Francisca era uma cabocla braba, mas já é da família de ‘Fael (Seu Emiliano 1991). [grifo nosso]
A referência a Angola nos leva diretamente à escravidão, pois existem
registros de gentis ‘d’Angola’ e de ‘Guiné’ nos inventários da região; diz respeito a
um tipo físico e, sobretudo, a escravos nascidos na África (Macedo 2007; Mattos
1985: 120). Seu Emiliano se refere à Isabel Maria da Conceição, filha de Manoel e
Antônia Fael. No entanto, Dona Chica os designam como caboclos que vieram da
Paraíba vizinha num período longíquo que a professora não sabe precisar. É a
74 Em Carnaúba, havia um fazendeiro chamado Quincó da Rajada que era conhecido por sua crueldade. Ver Dantas 2004, Macedo 2004 e Medeiros Filho 1981:113. 75 A mãe de Seu Emiliano chamava-se Maria Luiza da Conceição.
82
mesma Chica Rafael que o Padre Pinto encontrou em 1930 e que morava do outro
lado do rio Cobra, na Várzea do Serrote que, na época, fazia parte da propriedade
de Florêncio Luciano.76
Também, Dona Chica nós repetiu, em várias ocasiões, que a sua avó materna
era uma cabocla braba oriunda do brejo paraibano, da família Mubuca.77 Maria
Bem-Vinda (1902-1994), a avó materna de Dona Chica, era filha de Mãe Antônia ou
Mãe velha (Antônio Maria da Conceição). Ela veio de Várzea ou da serra de Cuité,
na Paraíba com sua irmã, Maria Pequena, que era casada com Pai velho ou Pai
Cosme, Cosme Miguel dos Santos. Por outro lado, sabemos que o pai de Cosme
Miguel, Manoel Miguel, era escravo: ele teria fugido da Paraíba dos maus tratos dos
seus antigos patrões.78 Assim, mesmo sem referências históricas precisas, podemos
avançar que a chegada dos ancestrais de Dona Chica remontam a um período
anterior à Abolição. A presença de índios ou de caboclos, freqüentemente evocados
quando se fala das origens e dos ‘outros tempos’, se confunde com a evocação dos
antigos moradores de Boa Vista.
3.1.3. A história silenciada
Mesmo se há algumas variações, com a referência direta à escravidão,
verificamos que é a mesma história que está sendo contada por Dona Quintina,
inclusive com a indicação da permanência de cinco gerações nascidas em Boa Vista,
fato já apontado por Seu Emiliano. A ancestralidade da Boa Vista, contada em
geração, remontaria então aos meados dos anos 1840, época em que Imbém
nasceu. Os diferentes relatos da fundação de Boa Vista apontam para uma situação
social em que uma jovem mulher, livre e pobre (retirante ou escrava) recebe uma
76 Informação de Dona Chica (07/12/06). 77 Mubuca: nome de origem tupi, designando um tipo de abelha. 78 Informação coletada por Sebastião Genicarlos com seu pai (fev. 07).
83
ajuda de um homem rico e poderoso (barão, patrão, coronel e/ou amante). A partir
daí, Tereza mudará de estatuto, pois se torna “criada da casa”, situação social
inferior que encontramos com certa freqüência ainda hoje na região.79 Assim, trata-
se de um estatuto ambíguo que, por vezes, assemelha-se ao trabalho doméstico ou
mesmo escravo, pois não há relação monetária entre os interessados. A
“hospitalidade”, forma de solidariedade quase obrigatória que encontramos no
sertão, sobretudo no período das secas prolongadas, transforma-se numa relação
de trabalho e/ou de afeto.80 Além da morada, Tereza é presenteada com as terras de
Boa Vista, lugar aonde se estabelecerá e irá criar sua família – inicialmente
composta por um único filho. Importante apontar, desde já, para o estatuto das
terras tal qual aparece nesse relato: a doação inicial por parte de um “coronel”, um
grande proprietário de terras com um poder político dá legitimidade à ocupação do
território. Também, a versão contada por seu Zé Vieira e Dona Quintina coloca em
cena a união extra-conjugal entre Tereza e o Coronel, união da qual nascerá um
filho, Domingos que receberá as terras da Boa Vista como herança – como todos os
moradores de Boa Vista reconhecem ter um laço de filiação com os fundadores, eles
“tem direito à terra”.
De qualquer modo, e retomando um dos ensinamentos do estruturalismo,
sendo que as produções narrativas não refletem a vida social, mas, sua
interpretação: a história da fundação da Boa Vista dos Negros apresenta uma
explicação plausível de como os quilombolas se tornaram donos da terra (Lévi-
Strauss 1970, 2003). São hipóteses relativas à ocupação do território por parte de
populações que fugiram da escravidão, de um modo ou outro. A história contada
oferece uma tradução narrativa de um fato histórico que insiste sobre a origem da
comunidade: todos os moradores da Boa Vista são ligados por uma relação de
parentesco (filiação) em linha direta, de pai para filho; o ato de doação de terra
79 O criado designa geralmente um agregado, uma criança/adolescente que faz companhia aos filhos dos donos e realiza pequenos serviços domésticos em contrapartida da acolhida pela família. Também era o nome dado aos escravos (Bezerra: 19). 80 Manoel Dantas (1941: 117) fala do “espírito de caridade” dos sertanejos.
84
ficou gravado na memória e acompanha a genealogia dos herdeiros de Tereza e
Domingos.
Se escutarmos a narrativa de fundação de Boa Vista e suas diferentes versões
olhando para os documentos encontrados, verificamos que, além da
correspondência apontada por nossos interlocutores entre os nomes citados nas
genealogias e os que foram registrados pelas autoridades locais, a versão da doação
das terras corresponderia às informações contidas no inventário de 1859: não se
sabe a origem das terras da Boa Vista, ao contrário do sítio de Olho d’Água do Boi
que foi comprado. Se como as pesquisas genealógicas e documentais apontam, os
primeiros moradores negros da Boa Vista chegaram entre a segunda metade do
século XVIII e o início do século XIX, é bem capaz que o grupo ocupou o espaço
sem adquirir as terras pois, sabemos que, na região, pelo menos durante o período
colonial, o principal modo de acesso à terra era a doação e, depois de 1850, foi a
herança (Mattos 1985: 82-112). Além disso, a referência sistemática ao “Coronel
Gurjão” nos relatos sobre a origem da Boa Vista encontra um eco na historiografia
local: sabemos que Francisco Pedro de Mendonça Gurjão era governador da
Paraíba em 1734 e que atribui, em 25/05/1734, a Tomás de Araújo Pereira, uma
data de sesmaria no riacho Juazeiro, e, em 1735, ao Cel. Lourenço de Góis e
Vasconcelos, uma data de sesmaria no riacho da Cobra (Medeiros Filho 2002: 33-
34; Tavares 1982: 146-147). Essas duas sesmarias englobam, provavelmente, o
território tradicionalmente ocupado pelos remanescentes de quilombo da Boa
Vista. A memória oral pode ter conservado a marca dos primeiros documentos
históricos coloniais que existem sobre a localidade. 81
Preferimos pensar que a memória genealógica de Boa Vista remonta a um
evento fundador e a um tempo primordial. A história torna-se mito. O evento é
uma seca durante a qual uma “retirante” é acolhida e “adotada” por um fazendeiro.
81 Encontramos um município “Gurjão” nas proximidades de Campina Grande. Segundo Sebastião Genicarlos dos Santos, a expressão “riacho abaixo” designa um percurso que sai da Boa Vista para a localidade vizinha, o Joazeiro. Também é interessante encontrarmos o nome de Luciano como solicitante das terras, pois os atuais vizinhos têm como sobrenome “Luciano”.
85
O tempo remete à época em que as terras eram doadas e que existia uma relação
amigável entre os grandes proprietários fundiários e os seus moradores. Se
tentarmos datar o evento, podemos pensar que Tereza veio durante a ‘grande seca’
de 1791-93 – pois, a data de 1877, lembrada por Seu Ulisses, é ulterior a data de
nascimento de Imbém (1840). O final do século XVIII corresponde à época em que
a memória genealógica aponta como sendo a da chegada de Tereza. A tragédia do
final do século XVIII, presente na memória dos sertanejos nascidos nos meados do
século XIX, é o momento em que um dos “mais abastados fazendeiros da zona do
Seridó, viu-se obrigado a emigrar para a ribeira do Cunhaú, fazendo o trajeto a pé,
transportando à cabeça dos escravos sacos de moedas de ouro e prata” (Dantas
1941: 118). Seria, justamente, o momento da fundação de Boa Vista, conforme a
versão oral que se apoia na memória genealógica dos mais velhos; todos falam de
‘cinco gerações de negros’ nascidos no local. De fato, a doação da terra pelo
fazendeiro vizinho, refere-se a uma época anterior a 1850, data em que é criada a
Lei de Terras e em que o sistema colonial de sesmarias é abandonado (Mattos
1985). A versão oral retrataria, assim, uma troca de favores entre um proprietário
de terras que teria cedido uma parte do seu patrimônio e uma escrava liberta: o que
a história oral lembra é que Tereza ficou nas terras e, no decorrer da história, não
há mais nenhuma referência ao seu primeiro proprietário branco.
Veremos que a reconstrução genealógica permite afirmar que, antes da
Abolição, já existia Boa Vista dos Negros – porém a memória local não especifica se
os moradores eram livres ou escravizados: todos afirmam que Imbém, Maria
Serafina da Conceição, avô de Dona Chica e de Dona Quintina já nasceu livre em
1840; ela morava numa tapera feita de galhos perto do açude “dos Negros”, lugar
que fomos visitar, guiados por Seu Manoel Miguel e Dona Chica. Segundo sua neta,
Imbém tinha costumes estranhos, gostava de morar em baixo das árvores,
levantava-se de madrugada para comer carne assada. Era parteira e fumava
cachimbo.
86
Fotografia 3 - Casa de Imbém (1941).
Fotografia 4 - Seu Manoel Miguel e Dona Chicalugar onde ficava a casa de Imbém (março 07).
Dessa forma, várias possibilidades existem sobre a origem de Boa Vista dos
Negros, além da versão nativa, em que é encenada a doação de terras por parte de
um fazendeiro generoso: os “negros da Boa Vista” podiam ser escravos que, com o
trabalho, conseguiram comprar cartas de alforria – como vimos, a partir dos
meados do século XIX, há vários exemplos de vaqueiros que conseguem reunir um
capital em gado82 – e que continuaram a morar na antiga propriedade. Também,
podiam ser libertos que se instalaram numa terra devoluta ou, finalmente, podiam
ser escravos fugidos ou deixados a sua própria sorte, com a o abandono da
propriedade pelos donos durante uma seca. É ainda possível que uma família de
retirantes ocupou um espaço esvaziado após a grande epidemia de cólera de 1856;
na literatura local, há registros de que os fazendeiros deixavam suas propriedades
ao cuidado de um escravo ou de um vaqueiro (Andrade 1990: 148; Dantas 1961:
82 Não encontramos registros de libertos comprando terras antes de 1850: em Boa Vista, há um título de compra de terra datado de 1889.
87
148; Medeiros filho 1983: 22; Macêdo 2005: 82).83 Também, podemos encontrar
uma combinação dessas diferentes situações: veremos que existem registros orais
de que, na região, se sabia da existência de famílias negras livres em Boa Vista, o
que atraiu escravos fugidos ou recentemente libertos de outros lugares, como o
exemplo de Cosme Miguel dos Santos que veio morar na casa da pedra depois da
Abolição e se casou com uma moça de Boa Vista.84
Apesar das imprecisões, dos silenciamentos e das dúvidas freqüentes em
relação ass dados genealógicos familiares, notamos que é na a evocação da história
antiga das famílias provoca o surgimento da memória sobre escravos e índios;
assim, as referências são também discretas na literatura regional, embora haja uma
miscigenação efetiva, pelo menos no século XIX (Dantas 1961: 22-23). Essa
memória “mestiça” deve ser provocada, pois surge dificilmente e a memória da
escravidão é sistematicamente silenciada, mesmo se ela aparece de forma
inopinada. Segundo nossos interlocutores, o esquecimento do grupo em relação aos
acontecimentos do passado é ligado à falta de interesse dos mais velhos em
repassar a história, à proibição dos jovens em participar das conversas dos antigos
ou à falta de esclarecimentos da população local devido ao analfabetismo e à falta
de assistência por parte do poder público. Porém, podemos pensar que esses
assuntos foram sistematicamente evitados e silenciados como uma estratégia de
proteção de um grupo constantemente perseguido e de defesa para os indivíduos
fugindo um passado servil.
Analisando os documentos existentes, verificamos os ancestrais dos atuais
moradores da Boa Vista dos Negros já tinha a propriedade das terras em Boa Vista
em 1859, mais de duas décadas antes da Abolição da escravatura. Desta forma, a
documentação escrita vem confortar a versão oral da história: nos ensina que o
83 Registra-se, no final do século XVII e no século XVIII “sobras de terras” e “terras devolutas” sendo requeridas por não terem sido utilizadas pelos sesmeiros (Macêdo 2007: 62-78). Apesar de existir, na região de Parelhas, terras não cultivadas no século XIX, não encontramos informações sobre requerimentos de terras nessa época.
84 Segundo Seu Zé de Paulina, a casa da pedra ficaria distante de Boa Vista, perto de Juazeiro, localidade vizinha. Outras pessoas acham que era no sítio Maracujá.
88
destino dos remanescentes de quilombo mudou numa época longíqua – no mínimo
cinqüenta anos antes da Abolição, os servos se tornaram donos de terras e se
esforçaram, ao longo dos séculos, em conservar o patrimônio herdado dos pais.
Desta forma, antes de se atualizar num movimento político, a afirmação étnica
passa pelo reconhecimento de uma ancestralidade atrelada a um território e a uma
memória constantemente revisitada.
3.2. Memória e genealogia
Quando olhamos com mais atenção para as genealogias coletadas,
percebemos um grande esforço para lembrar o passado: a memória genealógica
remonta, em geral, a mais de três gerações. Corresponde a um exercício difícil de
rememoração precisa da história do grupo que vem sendo repetido, sobretudo
pelos mais velhos, aos diferentes visitantes da Boa Vista.
3.2.1. A casa da pedra e o tesouro dos índios
Coletamos um relato interessante sobre moradores da casa de pedra, local
que os mais velhos conhecem e que é situado no Juazeiro. Nessa narrativa, há
referência a um tesouro – provavelmente encantado – associado a uma casa
abandonada por seus construtores, repetindo um esquema narrativo já encontrado
em outros relatos de fundação (Cavignac et. alli. 2006). Aqui, diferentemente do
que acontece em outros grupos quilombolas que não reconhecem as origens
indígenas e africanas, podemos perceber que ‘índios’ e ‘negros’ são utilizados como
sinônimos, pois viviam perseguidos e se escondiam ‘no mato’.
Dona Nuca se refere ao seu tio, João Café que passou um tempo morando na
casa da pedra, em Boa Vista. Justamente, era a casa que Manoel Miguel, o escravo
fugido da Paraíba veio ocupar. Comparando com a genealogia da nossa contadora,
podemos presumir que se trata de um período situado no final do século XIX:
89
Meu tio João Café, não era da Boa Vista, ele era de Jardim do Seridó, não era da Boa Vista, mas ele participava da irmandade do Rosário já fazia muitos anos e era muito amigo do povo da Boa Vista e sempre andava por lá, na casa dos amigos. Aí... Um dia ele arranjou uma morada lá na Boa Vista, nessa casa da pedra. Essa casa da pedra, o povo contava que ela era um canto onde os índios, aqueles negros fugidos se escondiam. Dizem que eles tinham tesouros, muita coisa boa, cabedal de ouro, pote cheio de ouro e tudo. Mas quando foi um dia, eles pressentiram, eles já estavam tudo acostumados a passar tempo escondidos nessa casa da pedra, mas nesse dia eles pressentiram que os perseguidores, aquele povo que queria pegar eles, já vinham bem pertinho, aí eles correram e não puderam levar todo tesouro, aí eles esconderam uma parte lá mesmo na casa da pedra e fugiram com o resto, era tanta coisa boa que eles falavam tanto ouro, muita coisa é porque eu não me lembro mais. Eles correram com o resto da riqueza, mas era muito difícil de levar, muito pesado, aí eles pegaram e esconderam dentro do mato naquela serra do Marimbondo, não tem uma serra do Marimbondo? Pois eles esconderam o resto lá. Quando tio João Café arranjou essa morada, foi morar mesmo nessa casa da pedra, e o povo dizia a ele:
- João Café, aí nessa casa tem um tesouro escondido e qualquer dia vai aparecer uma pessoa e vai te dar...
Que eles dão a todo mundo que mora nessa casa e ninguém têm coragem de receber. Mas tio João Café não acreditava nisso, dizia que não acreditava, dizia que isso era conversa, ali não tinha nada não. Aí quando foi uma noite, ele estava dormindo, estava deitado, já tarde, aí escutou as tropeladas do cavalo. Era uma pessoa que vinha para a casa dele. Aí, a pessoa chegou e chamou, mas ele não respondeu. A pessoa chamou de novo, aí ele abriu a porta: era um homem muito feio, muito esquisito. Disse a ele que aquela riqueza todinha era dele, ele fosse logo na serra buscar o que tinha ficado escondido lá e o da casa tudo era dele. Mas ele não teve coragem de ir. Disse que não queria, a pessoa deu a rédea do cavalo e pelejou com ele para ir buscar que era tudo dele, mas ele não quis, não teve coragem. Aí essa pessoa foi-se embora. Ele me contava muito isso... é porque eu não me lembro direito, mas tinha muita coisa assim que ele contava.85
Assim, segundo informa a narrativa, a casa da pedra, situada entre a atual
Boa Vista e o Juazeiro, era um refúgio para os fugitivos: caboclos ou negros se
escondiam para não serem capturados pelos brancos. Recebiam o nome de ‘índios’
ou ‘caboclos’, pois ‘viviam no mato’ e se confundiam com as populações nativas:
mudavam sempre de lugar e possuíam um valioso tesouro, tão grande que não
pude carregar e que ainda está por ser desenterrado na casa e na serra. O cavaleiro
que veio visitar João Café na casa da pedra com o intuíto de revelar o lugar do
tesouro, é a alma de um antigo morador fugitivo. A presença de um tesouro – ou
85 História contada por Maria do Carmo Nascimento, conhecida como Nuca, coletada por Sebastião Genicarlos dos Santos em Parelhas, 27/06/07.
90
mina -, indica a presença de um fenômeno sobrenatural; idéia reforçada por outros
elementos presentes na narrativas de botija: o sonho, a noite, o cavalo, o segredo, o
perigo, etc. O espalhamento do tesouro do índio/escravo no território da Boa Vista
deixa pensar que, ainda hoje, há mistérios para serem revelados.
Fotografia 5 - Cruz de Cazumbá, José Fernandes da Cruz, marido de Dona
Geralda falecido num acidente em 1990 (março 07).
Outro episódio relatado por Dona Geralda (16/03/07) encena um sonho no
qual aparece a alma de um ‘índio’ que vivia escondido na serra do Marimbondo. O
que parece estranho é que ninguém, na Boa Vista, conhecia a sua existência. A
pessoa que sonhou é tesoureiro da Irmandade do Rosário em Jardim do Seridó,
cidade vizinha, e que deve ter escutado muitas histórias antigas da Boa Vista. Ainda
aqui, a alma do defunto veio visitar a pessoa escolhida para solicitar um
sepultamento digno e que fossem realizadas rezas para salvar sua alma:
Foi seu Turco de Jardim que disse, ele disse que sonhou com esse índio, que era um índio lá na serra. Que pediu para ele fazer uma capelinha lá. Botar uma cruz né? Ai bota lá né? Ai ele disse que ficou só pensando, isso. Ai disse:
- Eu vou lá na Boa Vista!
91
Ai ele conhecia Zeca Barros, ai foi, falou com Zeca Barros e subiu a serra. Deixaram o carro lá em baixo e subiram a serra. Sabe onde ele contou isso a mim? Na rodoviária de Jardim! Ai ele disse que foi, veio no carro, parece que com dois companheiros, e subiram a serra com Zeca Barros. Ai quando chegaram no ponto que ele disse, ‘tava os ossos. Ai ele disse que levou parece que cimento, negócio de coisar, ai fez lá. E ele já ta velho, Sr. Turco. Pois é, ele mexe com a festa do Rosário...
Mais uma vez, o sonho revela segredos e histórias do passado. Segundo
Dona Geralda, o índio que era escondido na serra do Marimbondo recebia auxilio
de alguns moradores que deixavam regularmente comida para ele. Podemos até
pensar que há uma relação entre as duas narrativas, pois tratam de ancestrais que
visitam ainda os moradores da Boa Vista e os que conhecem sua história: o sonho é
a via da revelação do segredo, prova de que houve fatos marcantes no passado.
Fotografia 6 - Dona Geralda (março 07).
Dessa forma, não devemos descartar a possibilidade que Boa Vista era um
lugar de refúgio para as populações perseguidas pelos colonos portugueses. A
“aldeia de negros retintos”, como chama Padre Otávio Pinto, é localizada entre
serras e serrotes que impediam uma fácil circulação na caatinga e que era afastada
dos centros urbanos pelo menos até a década de 1930, quando a expedição
conduzida por Chico Barulhão foi visitar a casa de Teodôzio. A referência a
acidentes naturais e a animais na toponímia lembra constantemente um lugar
92
selvagem: o rio Cobra, a Serra do Marimbondo, o Serrote da Cachoeira, o Serrote
Mata Besta, a Serra do José Enéias, o Serrote Antônio, etc. Também, na serra da
Rajada, havia “inxames inumeraves” e devia haver muitas vespas na serra do
“Maribondo”, bem como se tem registro de onças até o início do século XX
(Macêdo 2007: 39). É bem provável que o lugar era inóspito e que serviu de refúgio
a escravos fugidos e índios perseguidos: Boa Vista é situada ao pé de uma serra
(Marimbondo), na marginal dos caminhos do gado e distante de Acari que, até o
final do século XVIII, era o núcleo colonial mais próximo (Macêdo 2007: 39;
Takeya 1985: 81).
Finalmente, como os mais velhos apontam, é possível que alguns índios
estivesse presente na Boa Vista. Assim, na sua crônica admirativa onde relata sua
visita na comunidade em 1930, o Padre Pinto fala de uma dança, o “pulachi” e de
uma bebida (“a zurema” que deve ser o mesmo que a “jurema”), preparação ritual
bem conhecida das populações indígenas do Nordeste. Ainda, sabemos graças a
Micoquinha (1994) que acompanhou a história do grupo, a existência de uma outra
bebida que devia ser preparada para os períodos festivos mas que os atuais
moradores desconhecem:
Além dos beijus e cocadas que traziam para vender aqui, os negros da Boa Vista eram famosos pela bebida que preparavam. Seu nome era madura, uma mistura de caldo de cana e água (numa mesma quantidade), que eles deixavam aferventar durante 24 horas. Uma bebida muito boa (Micoquinha 1994).[grifo nosso]
Enfim, os mais antigos falam com saudade do tempo em que se faziam festas
na única casa de tijolos que havia na Boa Vista, a casa de Theodôzio onde
aconteciam os eventos importantes da comunidade e onde havia festas (Pinto
1934). Dona Chica (07/12/06) se lembra do casamento de Domiciano e de Matilde
que ocorreu em 1915 e durou quinze dias. Segundo ela, havia ‘fartura’: muita caça,
sobretudo preás, e muitas panelas com xique-xique, milho e mugunzá. O patriarca,
que tinha uma grande prole, morava na casa maior da Boa Vista, a única que não
era de taipa antes da construção das casas nos anos 1960. Segundo Zé de Paulina
93
que nos levou no lugar onde era a casa de Thedôzio, era uma casa grande, de nove
cômodos, com um alicerce de pedra.86
Fotografia 7 - Ruinas da casa de Theodôzio (maio 07).
Os registros orais, ao lado dos documentos e dos poucos monumentos que
existem no local, revelam a existência de uma memória fragmentada. Na versão
nativa do passado que é ensaiada, ressurgem atores até então invisíveis: os
ancestrais indígenas ao lado dos escravos fugidos. São os índios que ensinam os
remédios, preparam as bebidas rituais e conhecem os lugares para se esconder. São
os negros fugidos que revelam a existência de tesouros. As cruzes, as ruínas, as
aparições noturnas e os sonhos são as provas de uma história não revelada e de
uma memória ainda atuante. As narrativas, longe de fornecer elementos que nos
permitiriam informar uma data exata para a fundação de Boa Vista, apresentam
aspectos de um passado que resiste ao esquecimento por estar enterrado nas serras
do Marimbondo. Mesmo se essas histórias não são conhecidas por todos, pois os
mais jovens nem sempre tem paciência de escutar os antigos e conhecem pouco a
serra, os relatos apresentam exemplos de uma liberdade conquistada pela fuga.
Assim, mais uma vez, não se fala em escravidão, cultiva-se a memória dos que
86 Zé de Paulina tirou os tijolos da casa velha para construir uma casa nova nas proximidades.
94
foram perseguidos ou maltratados e que conseguiram se libertarem: as almas dos
antigos fugitivos ainda atormentam os vivos, lembrando seus martírios.
3.3.2. A memória dos nomes e as genealogias
Observamos um paralelismo entre os relatos orais e os registros históricos:
os documentos recolhidos ao longo da pesquisa documental seja eles oriundos dos
cartórios ou dos fóruns (certidões, inventários, títulos e registros de terras), ou
ainda provenientes dos arquivos paroquiais de Jardim do Seridó e de Parelhas
(nascimento casamento, obituários); os registros encontrados parecem convergir
com a versão transmitida pela tradição oral. Assim, o final do século XVIII parece
ser a época em que Boa Vista dos negros foi fundada, um século antes da Abolição:
de fato, os registros da memória genealógica dos nossos interlocutores remontam a
esta época e os documentos mais antigos que foram encontrados fazem referência a
pessoas nascidas entre o final do século XVIII e o início do século XIX.
Assim, é possível fazer uma leitura das genealogias coletadas junto aos
moradores mais antigos da comunidade à luz da documentação encontrada.
Seguindo o raciocínio de Seu Emiliano, o detentor da memória do grupo com quem
tínhamos conversado em 1991, hoje seriam, no mínimo, seis gerações de pessoas
que teriam nascido na Boa Vista, incluindo o filho de Tereza, Domingos. A
referência à avó que nasceu no local, em 1825 [Joana de Jesus Cassimiro?]87,
mostra a profunda memória dos moradores que, com essa referência, comprovem a
antiguidade da presença do grupo no local.88 Constatamos ainda, a reiteração dos
87 No registro de bens de Joana Cassimira de Jesus Vieira encontrado por Seu Ulisses Potiguar, descobrimos que a viuva de Manoel Fernandes Vieira que faleceu em data de 21/07/1896, era moradora do riacho do Gavião. Manoel recebeu em herança a propriedade dos seus pais Domingos Fernandes da Cruz e Josefa Maria da Conceição.
88 Os pais de Seu Emiliano eram: Maria Luiza da Conceição, ou Mãe Galdina, filha de André Fernandes Vieira; o pai - Antônio Fernandes da Cruz, Antônio Moreno ou Toto, era filho de Inácio Roberto da Cruz. Segundo Dona Chica e Manoel Miguel, Inácio Roberto teria nascido nos anos 1820 e tinha um irmão chamado André casado com Isabel (Cabel). Inácio Roberto e André eram filhos de
95
nomes de família tanto na memória dos nossos interlocutores, nas genealogias,
quanto nos registros escritos. Porém, encontramos distorções entre as duas fontes,
pois nem sempre as datas correspondem. Como se evoca o nome de pessoas que
morreram há 20 ou até 50 anos, é natural que haja trocas e imprecisões na
atribuição do laço de parentesco. Porém, a leitura dos documentos encontrados
desperta o interesse dos nossos interlocutores, reconhecendo nomes de ancestrais e
lamentando que os seus pais não contaram a sua história. A experiência, como
veremos, é enriquecedora.
De qualquer modo, se analisarmos a árvore genealógica elaborada com o
auxílio dos registros históricos encontrados durante a pesquisa, verificamos que,
apesar da distância temporal, os atuais quilombolas reconhecem alguns ancestrais:
Figura - 2 - Árvore genealógica reconstituída a partir dos registros históricos encontrados.
Antônio Lotério. Encontramos um registro, em 1859, de um Antônio Eleotério, solteiro, que participa como testemunha do casamento, realizado em Parelhas, de Joaquim Manoel Fernandes (filho de Manoel Fernandes da Cruz, inventariante em 1859) e de Antônia Maria da Conceição.
96
No entanto, a leitura comparada dos documentos escritos e dos registros
orais mostra que se trata de uma mesma história. Os documentos sobre a
comunidade quilombola de Boa Vista, que nunca foram objeto de um estudo
historiográfico, são esparsos e não permitem reconstruir um encadeamento
temporal dos eventos; limitaremo-nos a compará-los aos registros memoriais. A
reiteração dos nomes de família indica, antes de tudo, a existência de casamentos
entre “primos” que os donos da terra não dispunham de uma grande fortuna e, já
na secunda metade do século XIX, estavam preocupados em estabelecer estratégias
endogâmicas com a finalidade de conservar um patrimônio fracionado pela
herança. Por sua vez, a memória narrativa do grupo em questão trabalhou os
eventos e as personagens que marcaram a vida de Boa Vista, apresentando-os
integrados numa seqüência lógica e aceitável pelo grupo, constituindo-se numa
lenda heróica fundada na ancestralidade da retirante Tereza.89
Analisando a atribuição e a transmissão dos nomes, encontramos uma lógica
que corresponde a uma divisão entre os universos masculinos e femininos e, por
conseqüência, à transmissão do patrimônio fundiário. No caso dos homens,
constatamos uma freqüente repetição do nome e do sobrenome de uma geração
para outra: por exemplo, existem três José Vieira (pai-filho-neto). Não sabemos as
datas de nascimento e óbito de José Viera (pai), mas temos datas para José Viera
Filho (1893-1973) e José Viera Neto (1925-2007) – porém, se contamos um período
entre 20 e 30 anos para uma geração, o José Vieira Pai teria nascido entre 1860 e
1870. Da mesma forma, encontramos vários registros orais e escritos para Manoel
Fernandes da Cruz, nome também dado a Manoel Gino, seu filho, e a Manoel
Vieira, seu sobrinho. Temos vários registros paroquiais e cartoriais de Manoel
Fernandes da Cruz, filho de Domingos Fernandes da Cruz e de Josefa Maria da
Conceição, que deve ter nascido no final do século XVIII e morreu em 1856.
Encontramos, no nosso levantamento genealógico, um registro de Manoel
Fernandes da Cruz (Manoel Vieira), que nasceu em 1880 e morreu em 1930, casado
89 Iremos analisar a seguir a transmissão dos nomes e das terras.
97
com Júlia Maria da Luz ou da Conceição ou ainda Júlia Miguel, pais de Dona
Quintina. Por sua vez, Manoel Fernandes da Cruz era filho de Imbém com José
Vieira ou da Cruz. Segundo Zé de Paulina, Manoel Fernandes da Cruz, chamado
também de Manoel Gino ou Timbu, era o nome do seu avô materno, pai de Paulina
Maria da Conceição. Manoel F. da Cruz era casado com Beliza Maria da Conceição,
filha de Leocádia com Teodôzio que era, por sua vez, filho de Manoel Fernandes da
Cruz.
Ainda, quando olhamos para a genealogia de Maria das Graças Fernandes da
Cruz ou ‘Preta’, encontramos um Manoel Fernandes da Cruz que era casado com
Maria Pequena, pais de Gregório Fernandes da Cruz e de Marssonila Maria da
Conceição. Tiveram como filho Zé Preto (José Fernandes da Cruz) [1934-1989], pai
de Preta. Segundo seu de Zé de Biu, Manoel Fernandes da Cruz (Manoel Gino), era
filho de João Gino e de Severina Fernandes do Amaral (Rosário ou Biu) - era o avô
de Zé de Biu. Porém, a esposa de Manoel F. da Cruz é designada como sendo
Tereza Maria da Conceição. Desta forma, a repetição dos nomes em várias gerações
assinala para uma vontade de conservar um patrimônio simbólico inscrito no
nome: a memória. Também, muitas referências são feitas a Theodôzio Fernandes
da Cruz ou a André Fernandes da Cruz que se projetam como os maiores
detentores de terra; eles são os herdeiros de Domingos Fernandes da Cruz.
Finalmente, encontramos o nome de Manoel Fernandes da Cruz nas atas das
reuniões da Irmandade do Rosário, ao lado de outros irmãos que tem como
sobrenome Fernandes da Cruz, Fernandes Vieira ou Vieira: André Fernandes
Vieira, irmão do Rosário em 1865, tinha sido, em 1859, testemunha do casamento
de Antônio Fernandes da Cruz - este filho de Manoel Fernandes da Cruz era um dos
herdeiros da Boa Vista. Na mesma ata, encontramos Manoel Fernandes da Cruz –
devia ser Joaquim Manoel Fernandes da Cruz, também filho de Manoel Fernandes
da Cruz, pois este tinha falecido em 1856 -, já era casado, desde 1859, com Antônia
Maria da Conceição. A assinatura desses dois irmãos consta no livro de atas da
Irmandade do Rosário de Jardim do Seridó de 1865. O pertencimento à Irmandade
do Rosário comprova a ancestralidade negra desses dois moradores do município
de Jardim do Seridó. Da mesma forma, podemos deduzir que Manoel F. da Cruz e
98
seus filhos (Antônio e Joaquim) eram negros, inclusive porque Antonio tinha
escolhido um irmão do Rosário como padrinho de casamento, André. Enfim,
podemos afirmar que Manoel Fernandes da Cruz e seus filhos, irmãos do Rosário
eram libertos, pois no caso contrário, não podia ter estabelecido um inventário.
Assim, a reiteração dos nomes aparece como sendo uma estratégia para
conservar um patrimônio fundiário e simbólico centrado em torno do nome do pai,
pois as mulheres aparecem pouco na distribuição da herança em bens imóveis e na
atribuição do nome da família. Isso explica que nossos interlocutores mantiveram
em particular a memória genealógica em linha agnática; as mulheres aparecem em
casos excepcionais como, por exemplo, quando não tem descendência ‘natural’ e
que adotam uma criança que receberá a herança da família. Na transcrição da
conversa que tivemos na casa de Dona Geralda em 31/01/07, a estratégia de
conservação e de transmisssão em linha masculina das terras pertencendo ao grupo
domestico aparece claramente:
Manoel Miguel: (...) Porque os velhos só ensinaram eles, os homens. As mulheres nunca diziam. A mãe de papai, eu não sei quem é.
Geralda: Eu também não sei não.
Manoel Miguel: Os pais eu sei, mas as mães não.
Julie: Então assim: Galdina era filha de André. E Antonio, que era casado com Galdina, era filho de Inácio?
Manoel Miguel: Era. Quer dizer que eles eram primos. Inácio é irmão de Meméia.
Julie: E Izabel?
Manoel Miguel: Essa Izabel eu não sei não.
Geralda: Não era das Gonzaga que criaram papai? Ah, eu não sei quem era a mãe dela não.
Julie: Cabel, Cabel.
Geralda: Eram as tias de papai, que criaram ele. Agora eu não sei quem eram os pais e as mães delas. Isso é muito velho. Pois é, foi quem criou papai.
Julie: Quem?
Geralda: Essas Cabelas. Parecem que eram três. Era Cabela, que chamava Izabel, Gonzaga e a outra (?) (...)
Antonio: Então quem criou Papai Velho foram as Cabela, foram?
Geralda: (...) Porque papai era filho de Emídio. Agora Emídio era primo de Zé Vieira. Essas Cabela também não eram irmãs de Emídio? Ai pronto papai era sobrinho delas. Ai ele (Emídio) tinha doze filhos e elas pediram
99
papai pro mode criar. Ai eles deram. Ai pronto, as terras delas passaram para papai.
Essa conversa ilustra que havia estratégias desenvolvidas para o mantimento
das propriedades e esclarece as razões que explicam que a memória genealógica em
linha feminina é menos profunda do que a masculina, pois o interesse é menor:
nossos interlocutores deixam bem claro que as terras e os nomes são transmitidos
em linha agnatica. A doação de filhos a terceiros aparece como um fato normal,
justificado pela inexistência de herdeiros e/ou a ausência de fortuna da família. A
adoção acompanha-se de possíveis benefícios para o grupo domestico de origem.
Fotografia 8 - Seu Manoel Miguel e sua esposa, Guiomar (fev. 07).
Também encontramos uma seqüência lógica na atribuição dos nomes de
pessoa: as mulheres, normalmente, adotam “Maria da Conceição” como
sobrenome, incluindo algumas raras variantes: “de Jesus”, “do Amor Divino”, “do
Sacramento”, “da Incarnação”.90 Assim, encontramos, nas genealogias, várias
Antônia Maria da Conceição: uma primeira era casada com André Fernandes
90 Nos registros cartoriais e paroquiais, encontramos uma mesma pessoa com nomes diferentes.
100
Vieira. Um filho de André, Marcimino Fernandes da Cruz casou com Ana Maria da
Conceição e tiveram duas filhas: Severina Maria da Conceição e Luiza Maria da
Conceição (1900?-1970?); essa, casada com Martins, é mãe de nove filhos: Aprígio
Fernandes Vieira, Antônio Fernandes Vieira, José Mauro Vieira, Francisca,
Santina, Severina Maria da Conceição, Ana Maria da Conceição, Maria Melania do
Nascimento e Geralda Maria da Conceição, nascida em 1931, com quem
conversamos em várias ocasiões. Finalmente, encontramos uma outra Antônia
Maria da Conceição, conhecida como Maria pequena ou Maria Miguel, casada com
Cosme Miguel, filho de escravo fugido da Paraíba.
Poderíamos continuar a dar exemplos, mas, apesar da existência de nomes
diferentes numa mesma fratria, fato comum nas famílias nordestinas, verificamos
que nas gerações anteriores àquela dos quilombolas mais velhos, as mulheres
adotavam geralmente “Maria da Conceição” depois do primeiro nome e que os
homens adotavam de forma igual e simultânea, o sobrenome “Vieira”, “Fernandes
Vieira” ou “Fernandes da Cruz”. Sem poder entrar em detalhes, limitaremo-nos a
verificar que há uma plasticidade no emprego dos sobrenomes dos principais
troncos familiares que são considerados como ‘nativos’ (Vieira, Cruz, Fernandes),
em vez que outros sobrenomes não são considerados como ‘fazendo parte’ de Boa
Vista (Miguel, Santos), apesar da antigidade da presença dos seus membros na
localidade.
Também, como é freqüente em toda região, o indivíduo é conhecido pela sua
relação com uma outra pessoa, geralmente a mãe: José Fernandes da Cruz é
conhecido como Zé de Paulina; José Fernandes do Amaral responde ao nome de Zé
de Biu, nome da mãe. Assim, o sobrenome não é utilizado no interior da
comunidade e há uma certa flexividade dos nomes, pois o que prima é a relação que
existe entre os membros e, sobretudo, a filiação. Desta forma, algumas alcunhas ou
primeiro nome foram incorporados aos nomes de família: Gino, Timbu, Maria da
101
Conceição ou Miguel.91 Esses linhagens servem de referência aos herdeiros para
conhecer o grau de parentesco. Se existem algumas diferenças entre a versão da
história registrada nos documentos e a memória genealógica, é que essa funciona
com o registro dos parentes classificatórios: os mais idosos são chamados de pai ou
mãe “velho”, utiliza-se a categoria ‘primo’ ou ‘tio’ para designar um parentesco
mais longíquo.
Como o relato de Seu Emiliano indica, e apesar da fundadora de Boa Vista
ser uma mulher, podemos perceber que são os homens transmitam o nome e, ao
tudo que parece, são eles que herdam preferencialmente das terras; como veremos
a seguir, no levantamento que realizamos sobre a distribuição das terras no interior
do grupo, não há nenhuma mulher constando como herdeira, mesmo se, de fato,
herdam.92 Assim, parece haver um esforço para conservar os sobrenomes
“Fernandes da Cruz” ou “Vieira”, adotados pela maioria dos homens de Boa Vista.
Por exemplo, na genealogia de Seu Manoel Miguel Fernandes, encontramos um
caso interessante: a mãe dele chamava-se Severina Maria da Conceição e o pai dele,
João Miguel ou João Arcanjo da Cruz. Manoel adotou o nome do pai (Miguel) e do
avô materno (Fernandes), mas não herdou o nome diretamente da sua mãe. Os
arranjos da memória e a repetição na atribuição dos nomes, a recorrência dos
sobrenomes em linha masculina e feminina mostra o trabalho de memorização
intenso que fazem os membros das famílias; geralmente, todos são capazes de citar
no mínimo três gerações, em linha direta e colateral. Indica ainda uma vontade de
conservar a identidade do grupo que está inscrita no espaço, pois os nomes dos
ancestrais designam o local onde os herdeiros devem cultivar a terra. Como são os
homens que cultivam a terra, é normal que a memória seja transmitida em linha
masculina, apesar de haver referência a mulheres nos poucos inventários que
encontramos: é o caso de Joana Cassimira de Jesus Vieira, esposa de Manoel
91 Teria um estudo interessante a fazer sobre o sistema de nomeação, inclusive, com o emprego sistemático de alcunhas. 92 Ver mapa a seguir.
102
Fernandes Vieira (1825-1896), filho de Domingos Fernandes da Cruz e de Josefa
Maria da Conceição. Joana deixou em 1906 a herança de Domingos a seus filhos,
José Fernandes Vieira, Emídio Colecino Fernandes, Isabel Maria da Conceição.
Também, encontramos a herança de Domingos Fernandes Vieira no inventário,
datado de 1916, da viúva de André Fernandes Vieira, Antônia Maria da
Conceição e dos seus filhos: Manoel Fernandes da Cruz, Maria Rosalina da
Conceição, Teodôzio Fernandes da Cruz, Antônio Fernandes da Cruz
(Antônio Lotério) e Vicente Fernandes da Cruz. Também, no mesmo ano, Inácio
Fernandes Viera herdou de terras no riacho do Gavião, que sua esposa, Maria
Galdina de Jesus (1826-1886) recebeu de seu pai André, falecido em 1916, e que
provinha da herança de Domingos Fernandes da Cruz. Segundo nossa reconstrução
genealógica a partir dos registros cartoriais encontrados por Seu Ulisses Potiguar,
pelo menos um filha de Domingos e Josefa – Maria Galdina da Conceição ou da
Cruz ou de Jesus -, recebeu a herança dos pais, além de André Fernandes Vieira e
de Manoel Fernandes Viera.
Assim, a partir do estudo da genealogia das famílias Fernandes da Cruz,
Vieira e Miguel93, e contando com a memória dos moradores mais antigos,
encontramos pelo menos cinco gerações de quilombolas que nasceram e moram na
Boa Vista.
3.3. A irmandade do Rosário
O estudo da irmandade do Rosário abre outros caminhos para conhecer o
passado e a atualidade de Boa Vista, pois, como a narrativa de fundação, a dança do
Espontão tem um papel importante de legitimação do pleito coletivo no processo
93 Se tomarmos como referência Marciminiano, avô de Dona Geralda, Zé Viera, avô de Dona Chica, Teododôzio e Antônio Moreno, respectivamente avôs e bisavôs de Zé de Paulina e de Sandro, registramos também no mínimo cinco gerações de afro-descendentes em Boa Vista. Ver as árvores genealógicas em anexo.
103
de reivindicação étnica, insistindo sobre os aspectos tradicionais do ritual. Mas se a
dança é a ocasião do reconhecimento social de um grupo historicamente
marginalizado, é também um momento de festa durante a qual os corpos se
mostram e se libertam. Assim, graças à Festa do Rosário sabemos da presença das
populações africanas na região, desde o século XVIII até hoje. A festa, ao longo dos
séculos, sofreu transformações, o rito religioso tornou-se “folclore”, mas a devoção
continua. Atraindo curiosos e admiradores, o grupo recebe o auxílio intermitente
de agentes locais, sobretudo dos moradores, dos membros da igreja e das
prefeituras de Jardim do Seridó e de Parelhas ou, mais recentemente, do
movimento negro, sendo visitado regularmente por estudantes, professores,
fotógrafos, antropólogos, militantes, etc.
3.3.1. Irmandades negras no Seridó Por esse tempo [1900’s], a irmandade de Nossa S. do Rosário era composta de escravos e libertos que solenisavam a santa de sua devoção com uma festa pomposa e grotesca, na qual, alem de um rei e rainha, devidamente coroados, tomava parte um estado maior de oficiais devidamente uniformizados (Dantas 1941: 25).
Conhecidas em outros contextos etnográficos como congadas e, para
algumas delas, integradas ao ciclo das festas natalinas, as festas das irmandades
pretas foram incentivadas como parte do esforço de evangelização e controle das
populações escravizadas, sendo encontradas com grande freqüência ainda nos
séculos XIX e XX em todo território brasileiro (Abreu 1994; Cord 2003). A festa de
N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos, segundo Luis da C. Cascudo (1962: 230;
1980: 44), existe no Nordeste desde o fim do século XVII, com a primeira coroação
dos Réis do Congo em Recife em 1674. No Seridó, encontramos o primeiro registro
da festa em partir de 1771 e da fundação da Irmandade em 1773 de Caicó, e no
decorrer do século XIX, nas outras cidades (Azevedo 1962-63: 32; Dantas 1961: 19,
104
56-62; Lamartine 1965: 69-80; Medeiros 1985: 25-26).94 Podemos pensar que as
irmandades negras se desenvolveram, sobretudo no século XIX, com a cultura do
algodão, pois essa atividade requereu um número maior de mão de obra escrava.
Fotografia 9 - Réis de congo (11/abr/1938), Pombal (PB).95
A presença da festa em todo Seridó, tanto no Rio Grande do Norte quanto na
Paraíba, é a prova de uma presença histórica de um número de escravos em nível
regional. Até as primeiras décadas do século XX, existiam fortes relações entre os
integrantes das Irmandades do Rosário de diferentes lugares do interior do Rio
Grande do Norte: em Caicó, em Jardim de Piranhas, em Jardim do Seridó, em
Acari, em São Manáu, no Riacho de Fora, no Rio do Peixe, em São João do Sabugi.
94 Até o final do século XX havia uma festa do Rosário. Parece ter sido também o destino da primeira capela de Caicó que foi doada para Irmandade do Rosário; no local, foi construída a igreja do Rosário entre 1826 a 1853 (Dantas 1961: 23) 95 Fotógrafo: Luis Saia. Fotografia da Missão de Pesquisas Folclóricas, imagem retirada do site < http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao>.
105
Também havia festas do Rosário em Santa Luzia, Pombal e Cajazeiras. Para
organização das festas e as eleições anuais dos Réis e das Rainhas, os integrantes
das irmandades das diferentes cidades mantinham contatos regulares.
Mapa 3 - Lugares das Festas do Rosário e origem dos quilombolas (Boa Vista).
Quando colocamos, num mesmo mapa, a localização das Irmandades negras
junto com a referência geográfica dos lugares de origem de alguns moradores
radicados no local e de parentes que moram longe da Boa Vista, verificamos que
existem correspondências entre o registro memorial e o ritual.96 É o sinal, também
que, em torno das irmandades, devia existir uma ampla rede organizada de
solidariedades e que circulava informações. Ainda aqui, tudo converge para pensar
que, na segunda metade do século XIX, havia uma população escrava e liberta
importante em toda a região, para o cultivo do algodão. Assim, em Jardim do
96 Josefa Salete Cavalcante (1975) escreve uma das primeiras dissertações sobre uma comunidade rural negra do sertão nordestino, Talhado, no município de Santa Luzia, no Brejo paraibano onde se festeja Nossa Senhora do Rosário em outubro. Segundo a estudiosa, Talhado ficou relativamente isolado até os anos 1960, quando as primeiras estradas foram feitas.
106
Seridó, após a Lei do Ventre livre, encontramos um livro de registro de
nascimentos específico para os escravos utilizado entre 1871 e 1887. Encontramos
registros da realização da primeira festa em Jardim em 1863 e a criação da
Irmandade em 1885:97
Vindos de outras terras, trazendo seus próprios cultos fetichistas, os imigrantes negros fundaram essas confrarias mais como posição de resistência e defesa contra a prepotência os agressores brancos que por religiosidade. Unidos em organização permitida pelos seus senhores, eles poderiam lutar pelas suas reivindicações libertárias, ajudando-se uns aos outros (Melo 1973: 134).
A igreja dedicada a N. Sra do Rosário em Acari e as festas das Irmandades
negras atestam a presença de um número conseqüente de escravos na região, pelo
menos entre os séculos XVIII e XIX. Também, a existência desses grupos religiosos
compostos por escravos e, provavelmente, libertos, mostra a tentativa de controle
social e moral dessas populações por parte da Igreja. A atuação dessa Irmandade
negra, em todo Seridó, supõe ainda a existência de comunidades organizadas, de
solidariedades, de um sistema de ajuda mútua entre os mais pobres, de formas de
sociabilidade próprias aos grupos, de estratégias de sobrevivência e de valorização
do grupo. Em alguns momentos, esses agrupamentos serviram para fomentar
rebeliões de escravos, como ocorreu nas últimas décadas que antecedem a
Abolição: um ‘quilombo’ foi formado na mata da Mangabeira, no atual município
de Arês, reunindo mais de 100 irmãos do Rosário de São José do Mipibu, Arês,
Papari e Goianinha (Cavignac et alii.; Cascudo 1955: 194).
Assim, acompanhamos K. de Mattoso quando define as irmandades
religiosas como sendo “tecidos de solidariedade”:
(...) elo, refúgio, ajuda mútua e de um outro lado, instrumento de fiscalização, de coesão, de educação (...) centros de verdadeira solidariedade para toda espécie de ajudas mútuas que podiam ser de ordem moral ou material para os doentes e inválidos, até de pensões para viúvas, de dotes para as órfãs ou poupanças para libertação” (Mattoso 1999: 29).
97 No Rio Grande do Norte, somente Caicó e Jardim do Seridó continuam a tradição da festa.
107
Fotografia 10 - Igreja do Rosário, Acari - RN (fev. 07).
A presença de um número importante e contínuo de escravos no Seridó é
atestada pelo funcionamento das Irmandades do Rosário, a partir de 1771, em
Caicó, e no decorrer do século XIX, nas outras cidades (Azevedo 1962-63: 32;
Dantas 1961: 57-62; Lamartine 1965: 69-80; Medeiros 1985: 25-26). Inicialmente
sob a proteção de N. Sra da Guia, a atual igreja do Rosário de Acari foi construída
pelo sargento-mor Manoel Esteves de Andrade entre 1737 e 1738. Em 1863, fica sob
a responsabilidade da Irmandade do Rosário, após a construção da matriz de N.
Sra da Guia construída pelo vigário da freguesia Pe. Tomaz Pereira de Araújo "em
terreno por ele doado para constituição do patrimônio da capela" (Medeiros filho
1981: 109 e 176).98 Em Caicó, a Irmandade dos Negros do Rosário foi criada em
1771, e até hoje, comemora a festa em outubro, no mesmos modos do que os negros
98 Parte das imagens da igreja do Rosário datam do século XVIII: São Pedro, São Miguel, São Gonçalo Garcia e N. S. do Rosário (Souza 1981: 196).
108
do Rosário de Acari (Dantas 1961: 57). Existiam fortes relações entre os integrantes
das Irmandades do Rosário de diferentes lugares do interior do RN (Caicó, Jardim
de Piranhas, Jardim do Seridó [irmandade constituída em 1885], Acari [não há
mais festa do Rosário], São Manáu, Riacho de Fora, Rio do Peixe, São João do
Sabugi) e PB (Santa Luzia, Pombal, Cajazeiras) para organização das festas e as
eleições dos Réis e das Rainhas.99 Hoje, só as irmandades de Jardim do Seridó e de
Caicó continuam a tradição e recebem um apoio entusiasta da população local.
Assim, a existência das irmandades negras dedicadas à N. Sra. do Rosário é
a prova mais tangível da existência de uma presença contínua de descendentes de
escravos na região.
A Irmandade do Rosário era composta, em sua quase totalidade, de pretos e pessoas de cor. Anualmente elegiam um rei e uma rainha, os quais por sua vez, constituíam o seu estado-maior, nomeava as damas de companhia e sua própria guarda pessoal. Durante os três dias que duravam as festividades, permaneciam reunidos na casa chamada do Rosário, e ali se divertiam à larga – dançando, bebendo e comendo. Era um alarido ensurdecedor, pois tocavam tôda sorte de instrumentos: gaita, fole, viola, tudo acompanhado de tambores que não cessavam de azucrinar, dia e noite, os ouvidos dos vizinhos.
No derradeiro dia de festa, rei e rainha, ostentando mantos vistosos e uma coroa de papelão enfeitada com cacos de espelhos e fitas coloridas, dirigiam-se à igreja, acompanhados de todo o seu séqüito e precedido de sua guarda de honra, constituída de negros moços, armados de lanças, que cabriolavam à frente dos monarcas. Ao chegarem na Igreja, o rei e a rainha ocupavam duas cadeiras ao centro do templo, enquanto as damas de companhia e o estado-maior sentava-se em derredor, ali permanecendo até o fim da missa, quando se retiravam com o mesmo aparato (Lamartine 1965: 69).
Essa descrição mostra que o ritual encontra-se consolidado desde, pelo
menos, o início do século XX, pois há pouca variação na sua realização atual.
Um estudo sobre as “irmandades de preto” no sertão e o seu papel social
informaria sobre a presença de escravos no interior, ao longo dos séculos.
Possibilitaria, assim, mostrar a existência de solidariedades, de sistemas de ajuda
99 Informação coletada em Caicó em 28/10/1990 junto ao porta-bandeira da irmandade Seu Paulo Mariano. Autores registram também festas feitas em devoção a santos negros em outras localidades do estado: São Benedito, em Pau dos Ferros, São Gonçalo, em Portalegre, Santa Efigênia (Lima 1988: 120; Medeiros 1978: 99).
109
aos mais pobres, de formas de sociabilidade, de estratégias de sobrevivência e de
revalorização do grupo, etc. Hoje, ainda, encontramos algumas desses grupos
atuantes, com bastante dificuldade para manter uma tradição secular: são crenças e
práticas religiosas que sustentam uma afirmação identitária. No caso de Boa Vista,
verificamos que a Irmandade do Rosário permitiu que sejam mantidas, durante
séculos, redes de solidariedade internas e externas, tendo como principal resultado
o fortalecimento do grupo e sua constituição como entidade política autônoma.100
Antes conhecidos como “os Negros do Rosário da Boa Vista”, os quilombolas
reinvidicam hoje uma identidade étnica diferenciada na qual N. Sra. do Rosário
ocupa o lugar central.
3.3.2. Réis e Rainhas na casa do Rosário
O culto a Nossa Senhora do Rosário é um dos principais marcos da história e
da identidade do grupo que se mantém vivo até hoje na comunidade quilombola de
Boa Vista.
Além da festa, existe uma devoção à santa, sobretudo por parte das
mulheres, que expressam sua fé com muita emoção; é difícil abordar o assunto sem
provocar lágrimas que, rapidamente, se generalizam. A imagem, doada por Seu
Ulisses Potiguar, espera há 17 anos um abrigo: desde 2002, uma capela esta sendo
construída com o trabalho dos membros da Associação comunitária que organizam
eventos para arrecadar fundos para terminar a construção. Na terceira semana de
outubro de cada ano, é realizada a festa do Rosário na Boa Vista, mas o evento
festivo mais importante continua sendo a festa do Rosário, em Jardim do Seridó.101
100 Para uma discussão detalhada sobre a presença indígena e negra no Rio Grande do Norte, ver Cavignac 2003. 101 Cogita-se de fundar uma irmandade distinta da de Jardim, pois os devotos da santa são mais numerosos na Boa Vista.
110
Indagando nossos interlocutores sobre a existência de uma lenda sagrada
em torno da imagem da santa, encontramos somente algumas pessoas que A
história da santa relatada por Zé de Biu (junho 07) é a mesma contada que Seu
Turco, tesoureiro da Irmandade em Jardim do Seridó. A narrativa oferece uma
explicação sobre a origem do ritual e o papel dos “negros”102:
Nossa Senhora do Rosário foi encontrada em cima de um toco, “no meio do mato”. Foi levada para a igreja da cidade, mas a ‘santa sempre voltava para o toco” onde tinha aparecido. Os “padres iam com rezas, hinos e procissão”, reconduzindo a santa para a igreja mas, sempre voltava para o toco. Os padres mandaram os negros batendo tambores e cantando. Esses levaram a santa para uma capelinha pertencendo aos negros e a santa ficou lá para sempre. Mas ninguém sabe onde nem quando esse fato aconteceu.
A festa do Rosário representa um dos eventos mais importantes da cidade de
Jardim do Seridó e mobiliza os moradores, mas também, os “filhos ausentes”,
sobretudo pessoas que residem na capital, Natal. Em cooperação com a Igreja,
desde o mês de novembro, são organizadas novenas e arrecados fundos para
subsidiar as despesas da festa do fim do ano: os uniformes dos irmãos, a comida, o
transporte, entre outos, são fornecidos aos membros da Irmandade e a seus
familiares que vêm especialemente para Jardim do Seridó para a ocasião.
A festa começa no dia 30 de dezembro e termina dia primeiro de janeiro do
ano seguinte, seguindo o cerimonial das outras festas religiosas (novenas, missas,
procissões, benção, etc.) com o desfile e a dança ao som dos tambores. A
“brincadeira” reúne anualmente os irmãos de Boa Vista e de Jardim do Seridó bem
como devotos da santa, amigos e parentes: é uma ocasião ímpar de reencontrar os
familiares, de consolidar a devoção à santa e de festejar a passagem do ano com
muita dança e, sobretudo para alguns homens, muita cachaça. Segundo o que
nossos interloctores nos disseram, “antigamente”, a maior parte das famílias da
Boa Vista se mudava para a casa do Rosário levando, “no lombo de jumento” os
mantimentos necessarios para os três dias de festa: redes, lenha para cozinha,
panelas, alimentação – inclusive galinhas vivas! Percorriam à pé os quinze
102 Apresentamos uma versão resumida da história contada por seu Zé de Biu, pois, na ocasião, não foi possível gravar a entrevista.
111
quilômetros que separam Boa Vista de Jardim; os mais jovens aproveitavam o
passeio para namorar ou se distrair, comendo e bebendo no caminho. Hoje, “o
povo da Boa Vista” utilisa o ônibus fretado pelas prefeituras para ir “na casa do
Rosário”, ao encontro da família Caçote, para rezar, “pular” e “farrear” nas ruas de
Jardim.
Fotografia 11 - Dona Inácia Caçote com 91 anos (Jardim do Seridó, maio 07).
Tivemos a chance de conversar com Dona Inácia Maria da Conceição,
conhecida como Inácia Caçote (maio 07), que nós contou que sua avó era escrava:
esta morava no sítio São Roque, hoje situado no município de Ouro Branco, vizinho
a Jardim do Seridó.103 Segundo Dona Inácia, ela teria conseguido comprar sua carta
de alforria, libertando-se para criar seus filhos com o seu trabalho nos campos de
algodão. Na ocasião informou que foi seu pai que construiu a casa do Rosário,
comprando o material da casa com o preço da venda de um boi; este chamou os
homens da Boa Vista para participar da festa do Rosário em Jardim com a “família
Caçote”.
A tradição é mantida com muito cuidado, os integrantes do grupo ficando
sob a responsabilidade do mais antigo, hoje Zé de Biu, “chefe dos negros”, que
103 Dona Chica informa que escravos orginários da Boa Vista foram morar em Ouro Branco.
112
dirige o grupo nas suas apresentações e ensino ao mais novos os passos: José
Fernandes do Amaral, é chefe do grupo e ocupa o cargo há vinte anos; foi juiz
perpétuo durante 45 anos e é um do mais antigos a continuar participando da festa
de Jardim.104 Além de ser um dos mais antigos participantes da festa do Rosário, é
também leiloreiro durante as festas de Jardim do Seridó e de Carnaúba dos Dants,
no Monte do Galo. Seu Manoel Miguel, que não partipa mais, entrou na irmandade
em 1947 e ocupou vários cargos ao longo dos anos.
Fotografia 12 - Zé de Biu e a zabumba velha feita de caixa de bacalhau (jan. 07).
Como nos Réisados ou nas Congadas, há uma eleição anual para escolher o
Rei e a Rainha do ano, o Juiz e a Juíza do ano e perpétuos, o Escrivão, a Escrivã, e,
finalmente o Rei e a Rainha Perpétuos. Todas as irmandades do Rosário obedecem
à mesma lógica:
Tem o rei perpétuo e a rainha perpétua. É Pedro Mariano e Trindade, irmã dele. No ano que não aparece um pra ser rei, ele é que assume no lugar e a rainha também. Mas quando aparece, ele cede a coroa para o rei, paga promessa. O rei e a rainha dá um almoço a nós no dia de hoje a todos os negros do Rosário e ao povo que acompanha o Reinado (Seu Paulo, Caicó, 1990)(Cavignac 1994: 214).
104 Hoje, Zé de Biu é também responsável da casa em Jardim do Seridó durante as festas.
113
Há também o porta-bandeira (bandeirista), que acompanha os dançarinos
(lanceiros) que são comandados pelo Capitão de lança, geralmente uma pessoa
experient. Finalmente, os caixeiros se juntam ao tocador de pífano de Jardim que
nem sempre é presente nas apresentações.
Fotografia 13 - Tambor e Espontão do Rosário (Jardim do Seridó, dez. 2006).
A tradição vem sendo mantida ao longo dos anos, sem muita modificação:
(...) Tem os bombos, tem os pontão que é uns pau’ com as fita’ que eles pilam e tem os tambor´ de bater. São três, quatro tambor. Tem as caixa’... Ai pronto, eles tem parte pra festivo... tem a rainha, tem o réis. A rainha, o juiz, e a juíza do ano, juíza do ano e juiz do ano, juiz perpét´o e a juíza perpet´a, e tem também a escrivã... agora eles são tudo de traje comprido, sabe?... E o Réis com a coroa na cabeça, tem a coroa e agora o outro pessoal não tem não... divisa umas fita, assim do lado, ai aquelas fita’, ´tá indicando que é o Réis perpét´o, que é juiz perpét´o, juiz do ano, ai quando chega o dia da festa, na véspera da festa, ai o pessoal vão se preparar pra aquele encontro do Réis, em jardim do Seridó. É muito bonito o encontro, o pessoal fica, vão pra lá, o Réis e a Rainha fica e se prepara. Ai vão se encontrar lá na porta da igreja... vai no dia 30 ai só vem no dia 1º à noite. Antigamente a gente ai de pés, daqui... ai passa a fita todinha lá .. aí pronto quando eles vão ensaiar aquele encontro, que é o inicio da festa, ai sai o pessoal batendo , batendo pra se encontrar, aí ficam batendo ... aí depois quando é pra ir pra missa, vão tudo preparado, tudo preparado, também tem guarda de honra, que é um menino com u´a menina ... Todas elas têm véus e capela, só quem tem coroa, a juíza do ano e a juíza perpet´a é de véu e capela... Como u´a noiva... Lá em jardim do Seridó, todo ano, é assim, um ano é daqui de Boa Vista e outro ano é de lá, um ano é de lá, o outro é daqui... junta tudo, é os negro´ do Rosário de Jardim e o negro´ do Rosário daqui da Boa Vista, aí lá tem uma missa, se prepara naquele dia, no dia da festa, e quando é de 9 horas, o tesoureiro que é o pessoal de lá, aí vão preparar aquela missa. Aí, na hora daquela missa é que fica, é como fica a passagem do outro ano, aí fica tudo na hora pra saber quem é o Réis do ano e o juiz do ano, todo ano muda, o Réis e o juiz, só nunca muda, é um só, toda vida é o juiz perpét´o, toda vida ele é um só... Desde da vespera, aí assiste ao encontro de Réis, depois, vem tudo pra casa, vem tudo batendo.
114
Troca roupa, quando é à noite vai pra novena, tudo formando, tudo vestido com o pessoal... Aí, no outro dia, se arrumam, vão à missa, a missa é de 10 horas, depois da missa vem, quando é de 4 hora´, aí é a procissão. Mas aí eles sai´, tem as barracas, vão todos formado´ lá pras barracas, são convidado´ pra ir pras casas assim, pessoas de lá, de jardim do Seridó, Dr. Paulo, esse povo, aí vão tudo pronto, não sabe? ... Tinha um jantar, era na casa da gente mesmo, sabe? Apesar quando esse povo, aí tudo pronto, não sabe? ... Tinha um jantar era na casa da gente mesmo, sabe? (Chica 1991).
Fotografia 14 - Tereza participando da festa do Rosário da Boa Vista (foto de Tereza,
s.d., Boa Vista).
A hierarquia é rigorosamente cumprida para que os irmãos possam dançar e
‘brincar’ juntos durante os três dias da festa. A brincadeira e a dança são reservados
aos homens, pois além do esforço físico intenso que é requerido, há um grande
consumo de álcool. Porém, as mulheres participam da festa, dançando e
acompanhando o cortejo. Também são encarregadas das crianças, das tarefas da
casa e da preparação das refeições.
Luis da Câmara Cascudo (1962: 297-298) que participou da festa em 1943,
define a dança como “um bailado de guerra, ao som do tambor marcial”:
Até 1944, havia no Jardim do Seridó, uma cerimônia alusiva ou semelhante: coroação dos Réis (sem denominação do Reino), missa em lugar privilegiado, e nas ruas, um longo bailado guerreiro, acompanhando a tambor a dança do Espontão, pequena lança, sem versos e sem cantos. Apenas um bailado ginástico de ataque e defesa, com lanças e à pé”. (Cascudo 1980: 46)
115
Fotografia 15 - Irmandade do Rosário de Currais Novos (1943).105
Até a roupa lembra soldados e a dança ensaia um combate, com gritos, pulos
e muito ritmo. Ao desfilar nas ruas, os dançarinos param em algumas residências,
para pedir alimentos e dinheiro: a lança é colocada no ombro para significar que a
pessoa deve colaborar com comida, bebida ou dinheiro. A ameaça ritual lembra a
todos que a colaboração é obrigatória e que precisa abrilhantar a festa com a
presença de cada um. O tesoureiro, tradicionalmente, um branco, recebe todo ano
o grupo para fazer uma colação e, geralmente, mantém relações amistosas com os
membros do grupo.106
A Dança do Espontão se destaca das outras festividades realizadas por
irmandades negras por ser antes de tudo uma dança masculina – em traje de
guerreiros - ritmada por percussões, sem canto:
As músicas tocadas pelo pífaro (eles chamam ‘pifa’) com acompanhamento das caixas ou zabumbas, chamam-se “Baionada”, “Catingueira”,
105 Fotografia reproduzida do Dicionário do folclore brasileiro de Luís da Câmara Cascudo (1962: 298). 106 Seu Turco é o tesoureiro da irmandade há mais de dez anos e é auxiliado, na organização da festa por sua esposa, Helena; porém, a contra-gosto, terá que se afastar do cargo em breve por razoes de saúde.
116
“Palmeirinha” e “Piauí”. São melodias vivas e alegres. Próprias da festa ou do grupo de Boa Vista, pois nada ouvimos semelhante noutros folguedos do Estado. Interessante é que os negros não cantam nenhuma melodia. Tocam e dançam apenas, improvisando passos, gingando (Melo 1973: 132).
Fotografia 16 - Os negros do Rosário com Dr. Mauro, então prefeito de Parelhas.107
Na dança do Espontão, não há letras nem melodias, só loas. O ritmo dos
tambores é envolvente e chama atenção do público assistente. Tambéem, durante
os dias de festa, os irmãos do Rosário visitam casas para abençoá-las e arrecadar
bens e dinheiro para a festa. Ao chegar nos domicílios e depois de terem dançado,
os irmãos abençoem a casa visitada, com a fórmula seguinte: “Viva Nossa Senhora
do Rosário! Viva São Sebastião! Viva as pessoas de bem! Viva a boa sociedade,
tronco, ramos e raízes!”.108 Desta forma, o ritmo ocupa todo o espaço musical, o
pífano podendo ser dispensado. Nesse aspecto, se distingue das outras formas de
religiosidade ligadas a irmandades de Pretos, pois, geralmente, a dança
acompanha-se de cantos ou de rezas.
107 SEMECR 1994. 108 Antônio Capitão, 01/01/2006 citado por Góis 2006: 22.
117
Fotografia 17 - Nossa Senhora do Rosário e São Sebatião (Jardim do Seridó, abril 07).
A performance é inteiramente realizada pelos homens, pois a participação
das mulheres é proíbida na celebração oficial e religiosa. Porém, seguindo o cortejo,
mulheres e crianças dançam em louvor a Nossa Senhora do Rosário e a São
Sebastião. Assim, é inegável que a festa e a devoção a N. Sra. do Rosário ocupam
um lugar de destaque no universo cultural e religioso dos quilombolas de Boa
Vista; são eles os principais precursores do evento do fim do ano em Jardim do
Seridó, deslocando-se nos últimos dias do ano, em número importante para passar
três dias na “casa do Rosário” e mantendo acesa a chama da lembrança do passado.
Ocasião, também, de reatar laços de parentesco reais ou rituais e de afirmar uma
diferença.
De fato, a dimensão festiva e ritual da festa não esconde o caráter étnico da
manifestação cultural na qual é ensaiado um cortejo real ao som dos zabumbos.
Seu Zé de Biu, interlocutor privilegiado para os assuntos que dizem respeito à
irmandade, lamenta que alguns grupos quilombolas não queiram mais continuar a
118
tradição: “não querem ser negros”. Essa declaração confirma a importância da
dança na definição identitaria. Assim, podemos definir a Festa do Rosário como um
ritual de inversão controlado pela igreja que, visivelmente, é muito bem aceito por
todos os segmentos da sociedade seridoense (Matta 1981; Turner 1990). Nele, é
regularmente lembrada a opressão sofrida pelos descendentes as populações
escravizadas que aparecem como guerreiros. Apesar de ser vista como ‘folclore’
pela sociedade englobante, em Boa Vista, a performance ritual não perdeu sua
dimensão étnica e memorial: é a expressão dos sentimentos e de uma visão do
passado de um grupo historicamente estigmatizado e marginalizado. Pela
encenação do ritual que atualiza o passado, a identidade do grupo encontra-se
reforçada. É o que Carlo Severi (1993: 361) chama de ‘memória ritual’: é “um tipo
de memória que somente uma ação ritual parece capaz de preservar e que não é
sujeita à mudança histórica”. A Festa do Rosário nós ensina, encenando uma luta
que lembra o tempo de opressão que é silenciado, inclusive pelos próprios
interessados. Efetivamente, na dança do Espontão, que é masculina, não há canto
nem uma trama narrativa. Assim, a dança não deixa de ser uma memória que não
precisa se transformar em palavras: a memória e o ritual formam um conjunto e
expressam uma identidade que se fundamenta num território ocupado
ancestralmente.
119
AS TERRAS DA BOA VISTA
O coronel fez perguntas, leu e releu as escrituras, viu o outro riscar no chão o problema da divida (...) Dia e hora determinado, presentes os litigantes, o coronel apeia da burrinha-de-sela, dá as horas a todos, examina uma e outra escritura, escuta razoes, verifica a picada da cerca, a “cama” da pedra (marca) deslocada e, depois de matutar no problema, chama uns trabalhadores e manda repô-la no lugar. Desabotoa a braguilha e depois de “batizar” a pedra, profere a sentença:
- Agora enquanto tiver catinga de furão macho, quem quiser que se atreva a bolir nesta pedra!
Dizem que até hoje a divisa é respeitada...109
109 Juvenal Lamartine, Velhos costumes do meu sertão, p. 50.
120
Nesse capítulo, iremos mostrar que o sentimento de pertencimento ao
grupo, se é fundado no compartilhamento de uma memória e de uma história, é
também ligado a práticas e a representações simbólicas que são inscritas num
espaço geográfico imediatamente reconhecido ao evocar a “Boa Vista dos Negros”.
A memória genealógica do grupo se apóia na lembrança da distribuição da terra
entre os herdeiros e na relação das invasões realizadas por proprietários vizinhos.
Se o sentimento de autoctonia é presente entre todos os quilombolas, o medo do
enfrentamento dos conflitos foi se atenuando a medida em que a consciência do
direito de ‘retomada’ das terras foi crescendo ao longo dos meses que
acompanhamos o processo; o que se traduz pelo uso da expressão “não podemos
desistir agora, senão vão tomar tudo”. Ao se reapropriar parte do território
tradicional, com o objetivo de obter do título coletivo, aparece a ocasião até então
inédita, para os quilombolas, de reinvidicar direitos e de repensar um passado que
foi silenciado.
Na recomposição da história da “terra da Boa Vista” que ensaiamos,
encontramos várias dificuldades: além da inexistência de arquivos organizados e de
estudos históricos sistematizados sobre a localidade, deparamo-nos com problemas
inerentes ao tratamento dos registros orais. Assim, existem versões contrastivas
dos fatos, dependendo dos estatutos sociais, dos posicionamentos políticos e do
ponto de vista dos nossos interlocutores – que seja o dos quilombolas ou dos
proprietários fundiários vizinhos -, a memória local destacando eventos que são
expressos segundo uma linguagem própria ao grupo. Essa lógica social (Wachtel
1990) precisa ser reencontrada para podermos entender como se constituiu o
território ocupado pelos “Negros da Boa Vista”.
4.1. A transmissão das terras
Encontramos vários registros documentais nos quais aparecem os ancestrais
dos nossos interlocutores e, às vezes, é indicada, também a filiação e o cônjuge da
121
pessoa citada: nos inventários, aparecem como herdeiros, nos livros de registros
das igrejas nos momentos importantes da vida (nascimento, casamento, morte) ou
são padrinhos de batizado ou testemunhas nos casamentos. Porém nem sempre é
possível reencontrar uma correspondência entre os membros das famílias que tem
um registro oficial e os que coletamos na memória dos entrevistados; a atribuição
repetida dos nomes gera confusões. Além disso, as memórias dos grupos familiares
constituem-se de maneira relativamente autônoma, cada um selecionando
indivíduos e eventos em função de interesses particulares.
4.1.1. “... que assinou somente ele, juiz, por ela ser mulher e não saber escrever...”
Para iniciar a viagem no tempo, partimos da leitura de inventários datados
do meado do século XIX. Há um primeiro documento, datado de 1859, estabelecido
na vila de Acary, na “casa de residência do juiz municipal e de órfãos, segundo
suplente em exercícios do termo da dita vila, o tenente coronel João José Dantas”.
Refere-se à partilha de bens do defunto Manoel Fernandes da Cruz (17??–
1856) que era casado com Victorina Maria da Conceição.
Consta, no documento, o registro de uma parte de terra “no Olho d’Água do
Boi”, propriedade que tinha sido anteriormente comprada por 200.000 réis e que
encontra-se indivisa com outros dois proprietários, ambos de nome Antonio: um
era o genro do casal e já havia falecido na época, o outro Antonio era tio de
Victorina e tinha uma parte da propriedade de um valor de 30.000 réis. A parte do
casal foi avaliada em 110.000 réis e contava com uma casa (10.000 réis). Uma
outra terra é registrada em Boa Vista (do rio Cobra) e foi avaliada em 8.000 réis.
Fora as propriedades fundiárias, há poucos bens relacionados para tantos
herdeiros: a viúva, cabeça de casal, e dez filhos. Cada um deles recebe partes de
terras, objetos, e/ou animais (uma vaca magra ou gorda, uma novilhota, uma mesa
velha, uma caixa, uma mala velha, um par de argolas de ouro, etc.). Os semi-
moventes – havia seis cabeças de gado - representavam a metade dos bens da
família (145$000). O total da herança soma 318.000 réis e não há dívidas – a filha
122
Maria tinha emprestado a seus pais 22$000 e um primo chamado Roberto, devia
4$000.110 Assim, a família aparece numerosa para tão poucos bens: contamos 12
adultos, sem contar os cônjuges dos filhos e os netos de Manoel e Victorina que não
são relacionados. As seis vacas de Manoel não chegam a constituir um rebanho,
comparando com o dos grandes fazendeiros como Manuel Pereira Monteiro da
Dinamarca, proprietário em Serra Negra do Norte que deixa aos seus herdeiros
mais de quatro mil cabeças de gado em 1838 (Cunha 1971: 231-234). Desta forma,
podemos deduzir que esta família de agricultores seridoense vivia em condições
precárias; apesar de serem proprietários fundiários, os herdeiros de Manoel
Fernandes da Cruz não pertenciam à classe abastada.111 Para podermos ter uma
idéia do nível sócio-econômico da família, é também possível comparar o valor
total da herança com os preços dos escravos que, no final do século XIX, variavam
entre 600 e 800.000 réis (Mattos 1985: 140). Assim, por exemplo, em 1852,
Joaquim, um mulato de 44 anos, escravo de José Dantas da Silva, morador de
Acari, comprou sua liberdade por 600.000 réis, o que representa o dobro do valor
da partilha dos nossos inventariantes e mais de vinte vacas (Macedo 2004b)!
Assim, ao verificarmos que os escravos conseguiam reunir um pecúlio substancial
para comprar uma carta de alforria, observamos, também, que o escravo
representava um bem muito mais valioso do que a terra.
Ao mesmo tempo, parece natural que os moradores atuais de Boa Vista não
se lembram dos herdeiros de Manoel e de Victorina, sabendo da distância temporal
existente entre eles e os então proprietários de Boa Vista. Porém, ao ler para nossos
interlocutores o nome dos herdeiros de Manoel, constatamos reações de alguns, os
mais velhos, que reconheciam os nomes e os sobrenomes dos seus antepassados. É
como se, ao herdar dos bens, os indivíduos herdava também dos nomes dos seus
110 Além das duas partes de terras, constam no inventário “uma casa muito ruim”, três pares de argolas de ouro, duas caixas velhas, uma mesa velha, um veio de roda e um varão, uma caixa encourada com broxas”, “duas vacas, três novilhotas e duas garrotas”. O inventário foi transcrito por Sebastião Genicarlos e encontra-se no Labordoc – CERES/UFRN, Caicó. Este mesmo documento tinha sido encontrado anteriormente por Dr. Ulisses Potiguar no cartório de Jardim do Seridó. 111 Mesmo se não possuíam muitos bens, os herdeiros tiveram que registrá-los perante as autoridades, pois havia órfãos.
123
pais: Thomásia Manoella da Conceição (viúva), Joaquim Manoel Fernandes
da Cruz (Casado), Joaquina Maria da Conceição (29 anos), Anna Victorina da
Conceição (27 anos), Antonio Fernandes da Cruz (25 anos), Laurentino
Silvestre dos Santos (26 anos), Catharina Maria da Conceição (23 anos),
Victória Maria da Conceição (19 anos), Lorença Maria da Conceição (13
anos).
Além disso, como demostramos, existem correspondências entre as
informações orais e as informações documentais encontradas. Assim, podemos
inferir que há uma relação do inventariado com o grupo estudado: Manoel
Fernandes da Cruz e Victorina Maria da Conceição eram negros e livres,
pertencendo à mesma linha genealógica dos “negros da Boa Vista”. Também,
podemos pensar que filhos do casal foram se instalar no sítio Boa Vista para
cultivar a terra e que os dois grupos aparentados, tendo interesses e bens em
comum (o sítio do Olho d’Água do Boi), continuaram a tecer relações ao longo dos
anos – inclusive, a contratar alianças matrimoniais.
4.1.2. Domingos, Manoel, André...
Ao consultar os registros coletados por Dr. Ulisses Potiguar, encontramos
elementos que permitem relacionar a memória dos moradores atuais de Boa Vista
com os documentos escritos dos seus ancestrais.
O registro de óbito no nome de Domingos Fernandes da Cruz (1784-
1857) informa que este morreu de cólera aos 73 anos em Parelhas. Neste
documento encontram-se registrados os ancestrais dos quilombolas de Boa Vista
como herdeiros: Manoel Gino que também chamava-se Manoel Fernandes da
Cruz e, como vimos, era também conhecido como Manuel Timbu; Antônio
Fernandes da Cruz (1869-1954), também conhecido como Antônio Moreno,
124
pai de Seu Emiliano112; e, finalmente, Theodôzio Fernandes da Cruz (1866-
1951), que segundo nosso levantamento genealógico, era casado com Leocádia,
nascida em 1864, filha de André Fernandes Vieira com Antônia Maria da
Conceição.113 Existe um registro de nascimento encontrado por Seu Ulisses
Potiguar, que indica que Teodôzio era filho de Inácio Fernandes Vieira ou da Cruz
que era casado com Maria Galdina da Conceição, chamada “Tia Galdina” por Dona
Chica; esta última nasceu na Boa Vista em 1864. Por sua vez, Maria Serafina da
Conceição – Imbém (1840-1946) é apresentada por nossos interlocutores como
irmã de Teodôzio, de Antônio Moreno e de Manoel Gino, mas não consta no
inventário.
Quando escutamos nossos interlocutores contar a história dos seus pais, dos
seus avós, ou mesmo dos seus bisavós, voltamos, às vezes, 150 anos atrás,
justamente na fundação da cidade de Parelhas, na ocasião da morte de Domingos
Fernandes da Cruz que, apesar termos encontrado o seu registro de óbito,
nenhuma pessoa viva hoje conheceu; possivelmente muitos dos seus filhos também
morreram de cólera nesse período e precisava conhecer os herdeiros: ao todo,
contam-se seis pessoas que receberam uma parte da herança de Domingos.
Também, aparecem referências freqüentes a famílias e parentes oriundos da
Paraíba. De fato, há um número significativo de pessoas vindas do Brejo (Cuité),
das cidades paraibanas próximas a Parelhas (Taperoa, Lagoa Seca [?],Várzea, Nova
Floresta) ou mesmo das localidades próximas de Boa Vista (Mata Besta). Assim, as
famílias Fael e Miguel ou Mubuca vieram todas da Paraíba e, se levamos em conta a
112 Com certeza, não se trata do mesmo Antonio Fernandes da Cruz, herdeiro de Manoel, que tinha nascido em 1834, mas pode se tratar de um dos parentes com o mesmo nome. 113 A reconstituição genealógica de Dona Chica apresenta Inácio Roberto casado com Antônia, outros dizem que foi André. [Será o ‘primo Roberto’ que aparece no inventário de Manoel F. da Cruz¿]. Também, encontramos na genealogia de Manoel Miguel, Antônia Maria da Conceição, conhecida como Antônia Miguel, pois adotou o nome do seu marido. Precisamos também desconfiar dos registros cartoriais, pois, no século XIX, encontramos a mesma pessoa registrada em ocasiões diferentes com nomes diferentes e também do hábito de mudar de nome que encontramos até hoje: os moradores da Boa Vista adotam os sobrenomes “Viera” e “Fernandes” de forma indiferenciada – é o caso de Zé de Paulina.
125
memória genealógica, provavelmente antes da Abolição114: Manoel Miguel vem
morar na casa da pedra situada perto de Juazeiro, sítio vizinho. Segundo Dona
Chica, é o bisavô do atual Manoel Miguel, cujo filho, Cosme Miguel dos Santos
(“Pai velho”) se casa em Boa Vista com Mãe Antônia ou Mãe Velha (Antônia Maria
da Conceição), originária da Várzea, na Paraíba. Assim, não podemos descartar que
tratam-se de indivíduos ou de famílias que fugiram da escravidão, encontrando em
Boa Vista um refúgio seguro.
Fotografia 18- Maria Serafina da Conceição, Imbém (1840-1946).
Assim, mesmo se existe uma decalagem entre os indivíduos encontrados nos
registros documentais e as genealogias reconstruídas com o auxílio dos detentores
da memória do grupo, surgem alguns elos entre as famílias de Manoel Fernandes
da Cruz e de Domingos Fernandes da Cruz: dois filhos de Manoel Fernandes da
Cruz – falecido em 1856 - Joaquim Manoel Fernandes [da Cruz] e Antônio
Fernandes da Cruz, provavelmente após terem recebido sua parte do inventário, se
114 Lembramos que a pessoa mais antiga da Boa Vista, Imbém, nasceu na Boa Vista em 1840.
126
casam em 1859. Outro indício da ancestralidade quilombola encontra-se no fato de
que as testemunhas dos casamentos foram identificadas pelos mais idosos: André
Fernandes Vieira que era conhecido em Boa Vista como André Lotério casado com
Antônia Maria da Conceição e Antônio Eleotério da Cruz que nasceu em 1834 e
que, seguindo a nossa reconstrução genealógica, era o tio da noiva, irmão de
(Inácio) Roberto. Parece bastante razoável pensarmos que, como os nossos
interlocutores não se cansam de repetir, os herdeiros de Domingos são todos
membros da comunidade e são detentores da terra há várias gerações.115 Também é
lógico que Domingos fosse negro, pois todos os descendentes dos seus herdeiros,
Antônio Moreno, Teodôzio e Manoel Gino que foram respectivamente
reconhecidos como sendo o pai de Seu Emiliano, o irmão de Imbém e proprietário
de terras, o avô materno de Zé de Paulina, se reconhecem como quilombolas.
Fotografia 19 - Zé de Paulina fumando cachimbo (maio 07).
115 A árvore genealógica não é mais segura para as pessoas que nasceram antes de 1850, sabendo a distância temporal que separam as gerações.
127
Porém, provavelmente, Domingos Fernandes da Cruz que encontramos nos
registros cartoriais não era escravo, nem seus herdeiros que, por sua vez, deixam
bens e terras ao morrer. Ainda acompanhando a versão oral da história,
percebemos como a hipótese do estabelecimento definitivo de famílias libertas
numa terra pouca cobiçada se confirma, pois todos os moradores do sítio Boa Vista
insistem sobre o fato de que os seus ancestrais não conheceram a escravidão,
mesmo sabendo que fora da Boa Vista existia pessoas que não eram livres e que
‘índios’ viviam escondidos nas serras. O exemplo dos irmãos Theodôzio, Antônio
Moreno e Imbém que os moradores mais velhos conheceram bem, pois, ambos
faleceram nos anos 1950, mostra que era possível a permanência de libertos em
terras devolutas ou tendo um estatuto similar em pleno período escravista.
No entanto, a existência de inventários de libertos que possuíam terras
parece ser um fato novo que deve ser melhor investigado pelos historiadores. De
fato, se nos estudos consultados, não encontramos inventários de escravos,
existem, porém, alguns inventários de libertos: eram escravos que conseguiram
reunir uma quantia suficiente para comprar sua liberdade e adquirir bens. Como
vimos, geralmente, o capital era reunido em cabeças de gado e servia aos escravos
para se alforriar: de fato, o proprietário tinha, pelo trabalho acumulado do seu
escravo, uma espécie de poupança de que podia dispor a qualquer momento e
impor suas condições.116 Porém, nos estudos consultados, não encontramos
referências especificamente a libertos que irão se estabelecer em terras compradas.
Assim, a hipótese da “doação” faz sentido, sabendo da presença do grupo na Boa
Vista antes da Lei de Terras (1850). Finalmente, podemos pensar também que a
epidemia de cólera de 1856 e as secas de 1877 e 1911 provocaram uma
desorganização da sociedade tradicionalmente voltada para a pecuária e tiveram
como principal conseqüência uma súbita deflação populacional; o que deixou
116 Assim, Mattos (1985: 225) reproduz o inventário da liberta Mariana, em 1877, onde são registradas 11 cabeças de gado, mas não constam terras, só deixa bens móveis e semoventes (animais). Ver também Juvenal Lamartine e Olávo Medeiros que descrevem Feliciano, liberto, proprietário da fazenda Cacimba de Cabras (Acari) nos meados do século XVIII (Lamartine 1965: 56, 99; Medeiros filho 1981: 125-126).
128
espaço para libertos que não tinham terras para se instalar em propriedades
abandonadas por seus donos ou em terras devolutas.
Além da herança de Domingos encontramos, em Boa Vista, um “papel da
terra” que a família de Dona Geralda conservou ao longo dos anos: é o registro de
compra de “quatro partes de terras no sítio Boa Vista do Monte do rio Cobra” que
Teodôzio Fernandes da Cruz adquiriu em 1889 a sua sogra, Antônia Maria da
Conceição que era casada com seu tio André Fernandes Vieira ou André Lotério,
irmão do pai de Teodôzio, Inácio Fernandes Viera. Teodôzio casou com uma filha
de André, Leocádia. Parece difícil pensar que, um ano após a Abolição, um jovem
de 23 anos, tendo saído recentemente da condição de escravo e que,
provavelmente, já tinha filhos para criar, conseguisse reunir um capital que lhe
permitisse comprar terras.117 Curiosamente, há um registro de partilha dos bens de
Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) somente em 1906 – possivelmente na
ocasião da morte de um dos herdeiros, José Fernandes Vieira (?). Aliás, quase
todos os inventários apontam para Domingos como o primeiro “dono” de Boa
Vista, o que vem corroborar a versão oral da história.
Seria necessária uma pesquisa aprofundada e sistemática em arquivos para
poder reconstruir fielmente a genealogia das famílias, porém, verificamos que uma
leitura conjunta dos relatos orais e dos documentos históricos aponta para a
ancestralidade do grupo no local e permite uma visão mais completa da história.
4.1.3. Terras herdadas, terras compradas
Procuraremos, aqui, agrupar as informações disponibilizadas pelos
documentos encontrados por nós e por Dr. Ulisses Potiguar. Verificamos que, de
um modo geral, as informações contidas nos registros cartoriais acompanham os
117 Na época, o vizinho era José Marcolino da Silva, pai de Liciano Luciano, com o qual existem vários conflitos relativos à terra.
129
registros memoriais coletados durante a pesquisa genealógica das famílias de Boa
Vista.
Se a história oficial de Parelhas e da Boa Vista inicia com o surto de cólera
morbus, 1859 é a data dos primeiros registros de casamento de dois filhos de
Manoel Fernandes da Cruz que era casado com Victorina Maria da Conceição:
Joaquim Manoel Fernandes e Antônio Fernandes da Cruz que herdaram do
patrimônio de Domingos.118 No processo aberto no Incra em 2004, consta um
documento datado de 1889 – a terra foi comprada por Theodôzio Fernandes da
Cruz (1866-1951), que, segundo nosso levantamento genealógico, era casado com
Leocádia, filha de André F. Vieira com Antônia Maria da Conceição, nascida em
1864.119 Um registro de nascimento encontrado por Seu Ulisses Potiguar indica que
Teodôzio era filho de Inácio Fernandes Vieira e de Maria Galdina da Conceição e
que nasceu na Boa Vista em 1864. Theodôzio aparece ainda no inventário de
Manoel Fernandes da Cruz e de Antônia Maria da Conceição, com data de 1916,
junto com Marcimino Fernandes da Cruz, de Antônio Fernandes da Cruz e de
Vicente Fernandes da Cruz como sendo os herdeiros de André Fernandes Vieira
que, por sua vez, herdou de Domingos, seu pai.
Retomando as informações coletadas, encontramos informações que
indicam a transmissão das terras da Boa Vista através de herança. Assim, segundo
o inventário de 1859, sabemos que Manoel Fernandes da Cruz era casado com
Victorina Maria da Conceição e tiveram como filhos: Francisca, Vitória Maria,
Tereza. Tereza, por sua vez, teria casado com Domingos Fernandes da Cruz e
tiveram um filho chamado também Domingos Fernandes da Cruz. Assim,
Domingos herdou da parte da propriedade do seu avô (Manoel). Domingos
(filho) casou com Josefa Maria da Conceição e tiveram como filhos Inácio
118 Ver em anexo a relação dos documentos cartoriais e da paroquias. 119 Ver em anexo o documento reproduzido. Na reconstituição da genealogia de Dona Chica, encontramos um Inácio Roberto casado com Antônia, que eram pais de Teodozio Fernandes da Cruz (1864/66-1951) e de Maria Serafina da Conceição – Imbém (1840-1946).
130
Fernandes Viera, André Fernandes Vieira e Manoel Fernandes Viera.120
Encontramos também Maria Galdina da Conceição (Mãe Galdina), constando
como herdeira.
Sistematizando as informações coletadas, chegamos aos seguintos quadros:
Herdeiro Cônjuge filho Cônjuge do filho
netos
Domingos Fernandes da
Cruz
Tereza Domingos Fernandes da
Cruz
Josefa Maria da Conceição
Inácio Fernandes Viera
André Fernandes Vieira
Manoel Fernandes Viera
Cônjuges dos netos
Inácio Fernandes Viera
Maria Galdina da Conceição (ou da Cruz ou de Jesus)
Ana
Cassiano
Romana
Delmira
Teodôzio Fernandes da Cruz
Leocádia
Beliza Maria da Conceição
Manoel Fernandes da Cruz
Manoel Fernandes Vieira
Joana Cassimira de Jesus Vieira
José Fernandes Vieira
Emídio Colecino Fernandes
Isabel Maria da Conceição
Manoel Vieira
Imbém
Júlia Maria da Luz ou Julia Miguel
Dona Quintina
André Fernandes Vieira
Antônia Maria da Conceição do Sacramento ou
Marcimino Fernandes da
Ana Maria da Conceição
Severina Maria da Conceição
120 Sabemos que Inácio Fernandes Viera herdou de terras no riacho do Gavião que sua esposa, Maria Galdina de Jesus (1826-1886) recebeu de seu pai André, falecido em 1916, e que provinha da herança de Domingos Fernandes da Cruz.
131
ou André Lotério
da Incarnação – chamada também Cabel
Cruz
Antônio Fernandes da Cruz
Vicente Fernandes da Cruz
Leocádia
Maria Galdina da Conceição
Luiza Maria da Conceição
Martins
[filhos: Aprígio Fernandes Vieira, Antônio Fernandes Vieira, José Mauro Vieira, Francisca, Santina, Severina Maria da Conceição, Ana Maria da Conceição, Maria Melania do Nascimento, Geralda Maria da Conceição]
Maria Galdina da Conceição (Mãe Galdina)
Antônio Fernandes da Cruz (Antônio Moreno) [filho de Inácio Roberto da Cruz]
Seu Emiliano
Assim, a leitura comparada dos documentos e da memória aponta para uma
ancestralidade comum e uma história compartilhada; a herança das terras segue a
lógica da transmissão preferencial em linha agnática. Mesmo se, nos documentos, a
ligação de parentesco entre as duas famílias mais antigas de Boa Vista – a de
Manoel Fernandes da Cruz e a de Domingos Fernandes da Cruz -, não fica evidente,
encontramos, no entanto, alguns elos que permitem explicar as relações entre os
dois troncos familiares. Porém, graças às informações coletadas, conseguimos
entender como, ao longo dos séculos, os quilombolas desenvolveram estratégias de
casamento endogamico para conservar seu território.
Também, há outros tipos de relações sociais que reforçam os laços de
parentesco, como é o caso dos padrinhos de casamentos: forma escolhidas,
preferencialmente, entre os membros da família mais próxima. Essas pessoas
foram identificados pelos atuais quilombolas: André Fernandes Vieira e Antônio
Eleotério da Cruz foram presentes nos casamentos dos filhos de Manoel Fernandes
132
da Cruz.121 Assim, aparece bastante razoável pensarmos que, como os nossos
interlocutores não cansam de repeti-lo, Domingos – dependendo das versões é
filho ou esposo de Tereza - e todos seus herdeiros, são membros da comunidade e
estão nas terras há várias gerações.
Podemos afirmar que o Domingos encontrado nos registros históricos
também era negro, pois todos os descendentes de Antônio Moreno, de Teodôzio e
de Manoel Gino se reconhecem hoje como quilombolas. Porém, isto não quer dizer
que Domingos fosse escravo, pois possuía bens; de fato, não encontramos, na
historiografia local, escravos com inventários – apenas podiam receber dinheiro e
como vaqueiro, gado. Ainda acompanhando a versão oral da história percebemos
que tudo converge para a idéia de que havia libertos instalados no local, pois os
moradores da Boa Vista dos Negros insistem sobre o fato de que nunca foram
escravizados. Efetivamente, os inventários estabelecidos nos meados do século XIX
indicam a existência de títulos de propriedade no período anterior à Abolição e,
como vimos com a comparação entre a genealogia e os documentos, há uma grande
probabilidade de que os occupantes da terra eram negros libertos.
Hoje, porém, força é de constatar que o território tradicionalmente ocupado
pelos quilombolas encontra-se reduzido. Seu Ulisses Potiguar recolheu do morador
mais antigo, Seu Zé Vieira, falecido no início de 2007, o registro dos limites da terra
que eram situados muito além do atual território ocupado. Havia marcos precisos
que delimitavam as “terras dos negros”: o território estendia-se até as “águas de
Carnaúba”, no topo da serra do Marimbondo, a Pedra furada – hoje situada na
localidade vizinha de Juazeiro -, o sítio Maracujá – no limite com a cidade de
Parelhas -, e a Mareca, lugar que não foi identificado por nenhum dos nossos
interlocutores.
121 Encontramos a certidão de casamento de Joaquim Manoel Fernandes da Cruz datada de 1859 nos arquivos da igreja de Jardim do Seridó que esta reproduzida em anexo.
133
Fotografia 20 - Marco da terra na serra do Marimbondo (junho 07).
Ainda, encontramos pedras fincadas na terra que servem para delimitar as
propriedades, sobretudo em áreas que são pouco freqüentadas, como as serras; são
mais seguras para conhecer os limites do que as cercas efêmeras que podem ser
deslocadas por vizinhos inescrupulosos.
4.2. “Essa terra é da gente, dos negros”122
Como já demonstramos, a versão oral da história informa que a terra “dos
negros” foi doada por um proprietário branco e, depois, foi herdada de geração em
geração. Também, a narrativa não ressalta a origem étnica da ancestral fundadora e
transforma a antiga escrava em retirante, estatuto menos estigmatizante aos olhos
de todos. Assim, a história de Tereza e dos seus descendentes foi reproduzida nas
diferentes gerações, sendo atualizada por cada locutor. No entanto, na versão oral
da história, ninguém menciona as transações financeiras realizadas para aquisição
122 Dona Chica Vieira (1991).
134
de terras que foram feitas no interior do grupo, entre parentes. Analisando os
documentos coletados por nós e comparando-os com a memória genealógica,
descobrimos que a lógica de transmissão das terras é ligada às relações de
parentesco como garantia da integridade do patrimônio fundiário.
4.2.1. O fracionamento das terras
O antigo documento de compra de quatro partes de terra no sítio Boa Vista
do Monte Cobra, com data de 1889, em nome de Theodôzio Fernandes da Cruz,
bisavó materna de Zé de Paulina, serve para iniciar uma viagem na história
relativamente recente de Boa Vista e acompanhar o destino das famílias residentes.
Neste documento reencontramos os primeiros moradores do ‘monte do rio Cobra’ e
que a memória local esqueceu.123
O “papel da terra” foi conservado por Maria do Carmo, filha de Geralda
Maria da Conceição e de José Fernandes da Cruz. São os descendentes de Antônia
Maria da Conceição, falecida em 1896 e de André Fernandes Viera, falecido em
1916; este último era filho de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857), herdeiro
das terras da Boa Vista e do Olho d’Água do Boi. Essa breve reconstituição da
história feita a partir dos documentos cartoriais e dos registros paroquiais
encontrados apresenta a hipótese mais plausível que explica a presença contínua
do grupo na Boa Vista, desde pelo menos o início do século XIX: os primeiros
moradores, ex-escravos, teriam ocupado terras devolutas, como aconteceu em
outras comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte ou teriam ‘recebido’ uma
terra em contrapartida de serviços, como existe no caso dos moradores (Cavignac
et alli. 2006; Queiroz 2002). Mais tarde, com a Lei de Terras de 1850, os
moradores de Boa Vista tiveram que regularizar a posse das suas terras; deve ser
por essa razão que, a partir de 1859, encontramos documentos que comprovam o
esforço dos herdeiros para conservar um patrimônio fundiário que foi, em parte,
123 Ver em anexo o documento.
135
transmitido por herança e complementado através da aquisição de novas partes de
terras.
Fotografia 21 - Os herdeiros de Theodôsio: Zé de Paulina e Sandro (maio 07).
Assim, na produção historiográfica regional, achamos pistas que confirmam
a hipótese da ocupação das terras por famílias pobres – sem especificar se essas
eram constituídas por escravos, libertos, mestiços ou brancos -; sobretudo para o
século XVIII, encontramos vários registros de “sobras”, de sesmarias não ocupadas,
de partes de terras sem títulos de propriedade e de terras devolutas (Guedes 2006:
106, 112; Macêdo 2007: 80; Mattos 1985). Sabemos que as sesmarias nem sempre
foram ocupadas e, quando o foram, era raro que o próprio sesmeiro as ocupassem e
vimos que, de um modo geral, os escravos eram mandados pelos seus proprietários
para ocuparem as terras (Guedes 2006: 120). Vimos ainda que, em 1735, o Cel.
Lourenço de Góis e Vasconcelos, morador da Paraíba, obtém a data de sesmaria no
riacho da Cobra: este rio, ainda hoje, é um marco tradicional que serve para
delimitar o território atual dos quilombolas.124 No documento de requerimento das
terras, encontramos indícios de que houve uma doação, mas, ao tudo que pareça, o
sesmeiro não chegou a ocupar efetivamente a área (Medeiros Filho 2002: 33-34):
124 Também encontramos uma carta de sesmaria de João Soares de Vasconcelos, datada de 1724, que reproduzimos em anexo, e que designa uma doação de terras próximas ao rio Seridó. Não encontramos a reprodução dos originais das cartas de sesmaria de D. Josefa Maria Bandeira de Mello, José Fernandes e Luciano da Silva.
136
O coronel Lourenço Góes e Vasconcellos, morador nesta capitania [Paraíba] tem seus gados e não tem onde os possa crear; e porque no rio Seridó desagoa um riacho que lhe chamarão da Cobra que corre para parte do norte, o qual haverá 12 annos pouco mais ou menos que pediram D. Josefa Maria Bandeira de Mello, José Fernandes e Luciano da Silva, cada um três legoas de terras para cada banda, como é de estylo; e porque entre os ditos D. Josefa e Luciano da Silva a pretenção que toca a dito José Fernandes se acha prescrita e devoluta sem povoação de gado algum, que elle dito fisesse, havendo a tantos annos pedido a dita terra, requeria por isto lhes concedesse a dita sorte de terras que coube a dito José Fernandes que são três legoas de comprido e uma de largo para cada banda pelo riacho abaixo. Fez-se a concessão conforme pedido no governo de Pedro Monteiro de Macedo (Tavares 1982: 146-147). [grifo nosso]
Assim, a sesmaria acima descrita foi finalmente atribuída a José Fernandes e
engloba parte do território tradicionalmente ocupado pelos remanescentes de
quilombo da Boa Vista, pois inclue o rio Cobra que ainda hoje serve de limite
natural. A área doada era imensa e correspondia às doações feitas naquela época
(1x3 léguas) e, provavelmente, o sesmeiro não sabia exatamente onde terminava
sua propriedade. Além da imprecisão dos limites entre as propriedades,
freqüentemente motivo de conflito entre vizinhos, sabemos que havia ‘sobras de
terras’, pois, “entre um e outro terreno cedido deveria existir um vácuo de légua e
meia para uso comunal” (Guedes 2006: 106; Macêdo 2007: 77). Nesse caso, é bem
capaz que, pelo menos até a metade do século XIX, havia terras sem título que
foram regularizadas posteriormente; é possível, também, que essas terras nunca
foram regularizadas, tendo em vista que existem poucos títulos de propriedade
regulares. Os títulos de propriedade que encontramos hoje pertencem apenas a
grandes proprietários fundiários, no caso, Liciano Luciano da Silva. Como vimos,
os nomes são indícios suplementares que sugerem uma continuidade das famílias
tanto brancas quanto negras na região: assim, José Fernandes pode ter sido o
proprietário de terras que tinha escravos que, em algum momento, conseguiram
libertar-se. Esses, geração após geração, retomaram seu nome, para conservar o
direito sobre a terra. Também, “Luciano da Silva”, solicitante das terras no século
XVIII lembra o nome dos atuais vizinhos dos “Negros da Boa Vista”, supostos
proprietários da fazenda Boa Vista.
Finalmente, a referência sistemática ao “coronel Gurjão” na narrativa de
fundação, nós projeta para os meados do século XVIII, sendo Francisco Pedro de
137
Mendonça Gurjão governador da Paraíba em 1734.125 Assim, a memória oral
conservou a marca dos primeiros documentos históricos coloniais que existem para
a localidade. Porém, não podemos continuar a fazer uma leitura comparada entre a
memória e o documento, porque, após 1735, encontramos somente registros
escritos datando do final do século XIX: é o contrato de compra e venda entre
Teodôzio e Antônia Maria da Conceição que foi assinado em 1889. Desta forma, a
leitura comparada dos registros paroquiais e das genealogias permite ‘tapar’ as
zonas de esquecimento para reencontrar os laços existentes entre os antigos
moradores de Boa Vista e os atuais quilombolas: é nesse intervalo que deve ter
acontecido a instalação dos primeiros negros livres na Boa Vista.126 É justamente
esse momento que foi apagado da memória coletiva: o grupo criou uma versão
mítica, eliminando o estigma da escravidão e explicando a presença dos ancestrais.
O que podemos avançar, à luz dos estudos que retratam o processo de colonização
do espaço regional, é que as terras doadas aos sesmeiros nas primeiras décadas do
século XVIII deram nascimento a fazendas de criar. Uma delas era a fazenda Boa
Vista que, por sua vez, foi desmembrada em pelo menos três sítios: a Boa Vista dos
negros, dos Luciano e dos Barros. A prova histórica explicando a presença secular
dos “negros” no meio dos “brancos” ainda não foi encontrada, porém, a narrativa
insista sobre dois elementos: a liberdade e as terras de Tereza; eventos fundantes
permitindo a emergência do grupo. Assim, a tese da Boa Vista ser formada, na sua
origem, por libertos e, possivelmente ter se tornado um lugar de refúgio para os
que desejavam sair da escravidão se confirma: já no final dos anos 1980, o
Professor Crispin afirmava que “esta colônia não tem a sua origem em uma
formação quilombola, mas sim na ‘concentração de negros libertos em terra livres e
disponíveis’” (in Mattos 1985: 121).
125 Em outro momento, vimos que a toponimia conserva a história local: aqui, encontramos um município “Gurjão” nas proximidades de Campina Grande, na Paraíba.
126 Solicitamos uma pesquisa cartorial sobre a existência de possíveis documentos e registros cartoriais relativos aos moradores de Boa Vista.
138
Voltando aos documentos, encontramos de novo Theodôzio Fernandes
da Cruz (1866-1951), herdeiro de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) e
de Josefa Maria da Conceição (?-1896). Theodôzio tentou ampliar seu
patrimônio e garantir sua posse, pois em 1889 e 1896, compra terrenos a seus
vizinhos e parentes. A existência de um contrato escrito, numa sociedade onde a
oralidade dominava, mostra o quanto o patriarca da Boa Vista dos Negros estava
preocupado em oficialisar o ato de compra. Assim, a existência de documentos de
compra e venda, mesmo sem valor legal, além de atestar a antiguidade da presença
do grupo no local, é a prova cabal de uma autonomia econômica dos remanescentes
de quilombo; em plena expansão da cultura do algodão127, Theodôzio devia ter
economizado um pecúlio suficiente para adquirir essa propriedade e construir uma
casa de tijolos – sinal de certa prosperidade.
Quando Theodôzio encontra o Padre Pinto, em 1930, a situação do velho
capitão parece ter mudado radicalmente, o que aparece claramente no seu
depoimento:
- Antigamente éramos uns 500 negros residentes aqui em Bôa-Vista, começou o capitão, com certo orgulho. Mas devido aos anos consecutivos de seca eles foram emigrando para os brejos. Na serra do Coité (Pb.) há outra aldeia de negros. Outrora isso aqui tinha vida e era divertido, seu doutô. O zambe rolava noite e dia ao som do pife, do tabuque e da puita. A beberragem era franca. Tempo de festa, este terreiro se enchia de gente e luminária. A dança preferida era o pulachi, saracoteado lascivo dos quadris e das umbigadas. Havia também o xangô e os pagés que preparavam a surema (sortilégios) para a cura de mandiga e de espinhela caída.
Hoje, nada mais disso existe, acrescentou, finalmente, o velho Capitão, baixando a voz cheia de saudades. A seca veio e acabou com nosso povoado e com os nossos divertimentos (Pinto 1934).
Escutando o velho Teodozio relatar as conseqüências da seca de 1877 que
obrigou muita gente a sair da Boa Vista para poder ‘escapar’, ecoa a fala dos
moradores mais antigos sobre as dificuldades que conheceram. Em algumas
ocasiões, a fome era tão grande que se fazia de tudo para obter comida:
127 O período áureo do algodão durou do inicio do século XIX até os anos 1930 (Dantas 2004: 30).
139
Manoel Miguel: Olhe, o sistema daqui, não é do meu tempo não, mas eu ouvi meus avôs dizer... Tinha umas nega’ aqui, até da família de Geralda, que ganhavam isso ou aquilo outro (...)
Geralda: Trocava as terras por cachimbo de fumo, saca de farinha. O marido de Joana Grande não trocou uma filha por uma saca de farinha? Ele vinha do Brejo, ai vinha com cinco filhas e um menino. Ai ele vinha com fome, ai deu a menina. Trouxe a farinha e veio comendo até aqui. (31/01/07)
Assim, a escassez de alimentos levou os antepassados a situações extremas,
como doar crianças: ao deixar um filho na casa de quem podia sustentá-lo, salvava
também o resto a família. Esse retrato das dificuldades de existência no passado
que inclue uma memória dos deslocamentos, remete à história de Tereza e ao mito
de fundação que analisamos. Mostra, também, situações sociais que podem ser
associadas à escravidão, através da referência velada aos ‘criados’.
A existência de documentos escritos e a presença de uma ‘memória longa’
(Zonabend 1986), são indícios que apontam para uma autonomia do grupo bem
antes da abolição da escravidão, mesmo se, na próxima vizinhança, havia escravos
até 1877.128 É também possível que o passado ligado à escravidão foi apagado da
memória do grupo por ser um evento traumático; de qualquer forma, como aponta
a lembrança dos mais velhos, a Boa Vista dos Negros existe independentemente de
um contexto escravista. Junto, os relatos orais e os documentos históricos
comprovam a ancestralidade do grupo e permitem uma visão mais completa da
história local e, sobretudo, possibilita a coleta de uma visão nativa do passado.
4.2.2. Os esbulhos: “a terra sumiu”
128 Mesmo se não foram encontrados cartas de alforria nas nossas pesquisas nos arquivos paroquiais e no acervo particular de Seu Ulisses, há, pelo menos um registro de óbito do escravo Domingos em 1877, no sitio Boa Vista.
140
Como aconteceu em outras comunidades quilombolas existentes no Seridó,
notadamente em Currais Novos e Acari, houve uma redução progressiva das terras
de uso comum oriundas de um processo de herança (Queiroz 2002: 80). Escutando
os relatos de esbulho das terras, deparamo-nos com uma situação na qual os
moradores foram ‘imprensados’ pelos seus vizinhos inescrupulosos. Recolhemos
vários testemunhos contando como as terras foram invadidas, os vizinhos puxando
as “cercas”. 129
Os problemas de terra entre vizinhos eram geralmente resolvidos com o
recurso a uma autoridade que decidia onde iam ser colocadas as cercas. Seu
Manoel Miguel (11/05/07) contou, em várias ocasiões, uma partilha que deve ter
acontecido no início do século XX e que inaugurou o processo de invasão das terras
ocupadas pelos moradores mais antigos:
Teodôzio chamou Zé Bezerra que era um capataz de Currais Novos, ai Zé Bezerra ficou de vir não pode vir, mandou Dr. Tomaz que era filho dele, filho de Zé Bezerra. Ai no dia certo, Dr. Tomaz não pode vir. Ai mandou Alonso Bezerra. Ai Alonso veio e dividiu as terras:
- Olha aqui, eu vou deixar um corredor aqui, de quatro braças, de corredor. Ai nem Teodôzio descem pro rio e nem Marcolino sobe pra serra morre aqui. Esse corredor nem fica pra Teodôzio nem fica pra Marcolino. Esse corredor eu vou dar pra Maria Felix
Ai essa Maria Felix... Ficou pra ela. Ai foi um tempo que deu uma chuvada aqui grande, ai o riacho botou a cerca abaixo ai Sinia, já era de Sinia, tirou a cerca dele e ficou só a de Teodôzio. Ai tomou as quatro braças, e na dele, né? Porque não era dele nem de Teodôzio, era dessa Maria Felix.
Esse episódio relativamente recente na história do grupo revela que os
moradores eram subjugados ao poder dos grandes proprietários que, tendo acesso
aos representantes do poder local, conseguiam impor seu ponto de vista; também,
Dona Geralda (30/01/07) relata que Dr. Arno Macedo, então prefeito de Parelhas,
pediu para o seu pai, Martins – João Gomes da Silva – para entregar o “papel da
terra” para ser remetido ao Banco, mas nunca houve retorno e o “papel” se perdeu.
129 Ouvimos diversas histórias sobre a venda de terras na Boa Vista “trocadas por cachimbo de fumo” (Manoel Miguel).
141
Sem ter a possibilidade de se defender, porém inconformados, os quilombolas
contestavam as invasões e conservam a memória destas.
Destacamos o papel de intermediário – um personagem inflente - que
ajudava a resolver os conflitos entre vizinhos. Seu Ulisses, confirmando a versão
contada por Manoel Miguel, acrescenta detalhes:
Julie: chamaram uma pessoa... Alonso Bezerra
Ulisses: Era meu tio.
Julie: Era seu tio?
Ulisses: Era meu tio, irmão do meu pai (...) Ele era mediador, era tarado por isso. Antigamente existiam os mediadores. Meu avo, dizem, que eu não conheci, ele morreu um ano antes de eu nascer, ele era um homem muito comedido e muito austero e hoje aqui numa questão de terra... A gente chamava o velho Joaquim dos Santos, mas era Joaquim Martiniano dos Santos ... com o velho que é da família Mendonça Pacifico, uma questão de terra, besteira! Então ele chamou meu avô, o Pacifico, para ser o intermediário dele. Seu Joaquim dos Santos, chamou seu Antão. Seu Antão era bom nisso, entendeu tudo de acordo, meu avo era mais austero...(16/03/07).
Apesar das relações de patronagem existentes entre personalidades
influentes e os moradores da Boa Vista, o esbulho das terras aconteceu.
Numa conversa com Dona Geralda, Manoel Miguel (31/01/07) detalhou o
caso e torna-se mais claro no que diz respeito aos corredores que eram traçados
para possibilitar o acesso ao rio e às serras. Esses corredores ainda servem para
delimitar as propriedades:
Manoel Miguel: Ai a luta de Duda [Marcolino] é que tinha a cerca
Julie: Duda era do pessoal daqui?
Manoel Miguel: Era. Ele não era da família da gente, mas era daqui.
Manoel Miguel: Ai ele tinha uma cerca aqui... Essa cerca passava dentro do rio... Ai, bem aqui, tinha uma casa, que se chamava casa de Maria Vicente (...) tinha uma briga aqui na Boa Vista. Essa nega tinha uma parte de terra aqui. Ai ninguém sabe essa terra onde está. (...) Ai essa cerca vinha aqui, tirava no rio e passava ali perto. Passava ali bem encostado numa casa que ele fez ali... Ai chegava descia assim, chegava lá no Riacho arrudeava fazia um corredor. Foi a questão que eu disse ontem... então foi Alonso Bezerra (...) Zé Bezerra não pode vim. Era para vir Dr. Tomás [Tomás Salustino] não pôde vir... Ai ele colocou Zé Bezerra (...) Como esses dois não pôde vim, ai botou Alonso Bezerra que é da família também, não sabe... Esse morava aqui em Parelhas... Ainda tem família dele ai em Parelhas (...) Ai ele foi e disse:
142
- Olhe, essa terra aqui nem Marcolino sobe para a serra e nem Teodôzio desce para o rio. Isso ai (...) pode me chamar para ir que eu vou...
E disse:
- Essa cerca não emenda. Nem Teodôzio tira a cerca dele, nem Marcolino tira a dele. Fica o corredor aqui. E esse corredor aqui nem fica pra Teodôzio, nem fica para Marcolino. Que eu vou dar a Maria Félix. Ai Sinia foi e desmanchou o corredor, emendou a terra acolá e tomou o canto da terra (...)
Geralda: Quando Duda era vivo a cerca era para lá daquela pedra preta, tu se lembra?
Manoel Miguel: Lembro. Sinia pode ter tomado essa parte de cá.
Geralda: … ter tomado de Eduardo. Ai Eduardo veio e entrou na terra dos negros.
Manoel Miguel: Ai não pode. Nós não somos bestas. Porque se fosse comigo eu tinha dito:
- A cerca daqui não sai!
Seu Manoel, que passou mais de quinze anos morando na serra de Cuité, na
Paraíba, voltou a morar na Boa Vista com sua esposa Guiomar. Isso explica que não
acompanhou “o avanço das cercas”. A falta de reação dos ‘negros’ explica-se pelas
alianças políticas que os vizinhos brancos conseguiam para tornar os casos a seu
favor e pelo medo de represalhas. O que não era explicitado, no início da nossa
pesquisa, ficou cada vez mais claro ao longo das conversas que tivemos com os
moradores. Notamos o mesmo sentimento de injustiça e de revolta face aos
avanços dos proprietários vizinhos.
Mesmo com o auxílio de seu Florêncio Luciano, antigo grande proprietário
vizinho do sítio Maracujá e prefeito da cidade de Parelhas durante vários
mandatos, as terras foram tomadas nos anos 1950:
Manoel Miguel: Amaro Ferreira [sogro de Sinia] foi quem cercou ali. Ai foi um bocado de negro lá em seu Florêncio. Ai seu Florêncio veio. Era um bicho amigo da gente (...) Aqui quem resolvia as coisas, era seu Florêncio. Ele dizendo uma coisa, os negros atendiam. O capataz daqui era ele. Era fazendeiro. Era rico ele. Antigamente, do rio até a rua, era terra dele. Hoje não tem mais nada. Ele não tinha filho, aí passou para o sobrinho (...) Ai ele [seu Florêncio] veio. Ele disse:
- Compadre Amaro você entrou nas terras dos negros
(...) Ai por causa disso brigaram... Quer dizer, brigaram não, trocaram palavras (...). Ai disse:
- Como você já puxou a cerca pra cá, daqui você não passa, a serra você não sobe. É dos negros!
143
Ai ele foi, com raiva, não apareceu mais por lá... Aí também foi num tempo que vieram fazer uma demarcação aqui. Ai Sinia foi mandou colocar uma cerca. Ai disse:
- Isso aqui é meu e sobe aqui.
Ai nós disse:
- Não, nós vamos tomar...
Foram deixando pra lá, deixando pra lá e eles entrando, viu. Porque eu alcancei um cerca que passava aqui, arrodeava esse serrote. Ainda domingo nós fomos por ela. Tem até umas coisas lá que eles botaram, pra que as varas num encoste no chão… Ai essa terra chamava de Professor Guerra… Seu Guerra, era um professor de Caicó, ele foi embora, arrendou a terra à Amaro Ferreira, ai Amaro Ferreira puxou a cerca pra frente. Ai nós fomos, quer dizer nós não, eu era muito novo os outros mais velhos, foram a Zé Florêncio. Zé Florêncio era um bichão aqui. Ai Zé Florêncio disse:
- Compadre Amaro, você tomou as terras dos meus filhos, você tomou que sua terra num passava acolá não!
- Não! Eu não tomei não…
E morreram intrigados. Ai seu Amaro disse:
- A cerca fica onde tá, eu não mexo não!
O apoio de representantes políticos e de pessoas influentes visando a
impedir o avanço das cercas não foi suficiente. Apesar da oposição dos
quilombolas, não houve a possibilidade de reverter o quadro e o processo de
esbulho das terras foi se intensificando. Com o tempo, os invasores agiram como se
fossem os donos legítimos e a impunidade foi reconduzida: as terras foram
“tomadas” e vendidas a terceiros. Os invasores de ontem hoje reinvidicam um
direito, mesmo sem possuir títulos de terras. Após a venda das terras, ficou mais
difícl ainda dos quilombolas reintegrar suas posses, tendo em vista a inexistência
de regularização fundiária.
144
Fotografia 22 - Os herdeiros de Theodôzio no local onde era a casa de Maria
Vicente (junho 07).
Outros casos, mais recentes, são lembrados por Manoel Miguel, Dona
Geralda e Maria, sua filha (31/01/07):
Manoel Miguel: E ele [Pretinho] veio parar nessas terras aqui porque ele comprou a Lucas Marcolino.
Geralda: Essa daqui?
Manoel Miguel: Tudo. A terra toda. Mas não tinha não, aqui não.
Geralda: (...) Ai depois que ele comprou a Lucas Marcolino, aí foi que aumentou, passando pra terra dos outros. Que dizem que Lucas Marcolino foi falar que não tinha terra na serra. Só tinha dez braças da cerca para lá. Ele disse que a terra do pai só tinha dez braças da cerca para lá... Que a gente chamava as cachoeiras. Ai ele disse:
- Não, é até subir a serra!
Mentira! (...) Apois, é Pretinho [José Clemêncio] que botou a terra de José no papel dele. Ai José quando aqueles meninos vieram, num tempo desse, falaram a José pra tirar. Ai José foi lá no filho dele, que ele morreu. Ai o filho dele disse que fazia o negócio com José para ficar como ‘tava mesmo, porque ele não tinha condições de tirar. Ai nisso ficou.
Julie: Ele não demarcou? Mas a terra vai até lá na serra?
Geralda: É de José. De José não, é da família toda, é gente que só...
Julie: José quem, como é o nome dele?
Geralda: A terra acho que não ‘tá no nome dele não. Deve tá no nome do finado Teodôzio.
Manoel Miguel: De Augusto. Augusto é neto de Teodôzio. E José já é bisneto, não sabe?
Geralda: Quando Augusto veio aqui falou com o delegado, mas nada resolveu. Só que o delegado disse que ele não tirasse um cavaco lá.
Julie: Eles tão tirando é lenha né?
145
Geralda: É, tirando lenha. (31/-1/07)
A existência de conflitos anteriores ao início do processo de regularização
fundiária explica o receio e alguns moradores a enfrentar novos embates e a medir
forças com proprietários com quem mantem ainda laços de dependência. A
impunidade de indivíduos com maior poder aquisitivo e disponde de apoios
políticos locais foi relatada em várias ocasiões e ao longo da história da espoliação
das terras da Boa Vista.
Fotografia 23 - Zé de Paulina explicando os limites da terra (maio 07).
Também, os moradores de Juazeiro, localidade vizinha, se apossaram das
terras, provavelmente, aproveitando-se do falecimento do seu dono. Uma vez a
cerca instalada, é difícil retira-la sem represalhas.
Maria: Olhe, essas terras aqui, ela vai do rio até a lagoa de Carnaúba, ela não era partida em canto nenhum. Duardo130 cercou essa frente todinha, porque o homem de quem ele comprou essa terra... Ele vendeu a parte todinha que tava cercada. Ele disse:
- Eu vendi o que estava cercado, e o que estava cercado era de meu pai.
Pronto, a cerca ‘ta lá, do jeito que ele vendeu. Só que depois que ele vendeu, ele foi aprofundando a cerca, aprofundando a cerca, e onde ele botava a
130 Duardo é alcunha de Eduardo Barros. Hoje, seu filho, Inácio Barros da Silva, o representa.
146
cerca ele dizia que era dele, ai por fim ele já tava tomando todinha até em cima da serra. Só no ano passado, quando o INCRA veio, eu tive conversando com o dono, o que foi o dono da terra, ele disse que não vendeu um palmo sem ser cercado.
Julie: Quem era esse homem?
Maria: Zé Marcolino. O INCRA foi lá na casa dele e ele explicou tudo bem direitinho.
Manoel Miguel: É que disseram que pra cerca de Duardo ainda tem um pedacinho, mas lá na frente ele tomou todinho (...)
Geralda: Lucas Marcolino disse que só tinha dez braças da cerca pra lá, da cerca velha, agora da nova eu não sei dizer...
Maria: Ele apavorou, quando ele viu o INCRA, ele apavorou.
Geralda: Ele ficou doido. No dia que o INCRA veio, a gente passou aqui por cima. Ai ele ‘tava lá em cima, ficou em pé e passou o tempo todinho olhando. Quando ele veio de lá, veio direto pela Boa Vista procurar saber quem era o pessoal que tinha passado. Ele sabia que era o INCRA. Ai pronto, no dia que a gente foi, a gente foi por aqui, nessa avenida aqui. (31/01/07).
A estratégia para um proprietário vizinho se apossar de terras, é abusar da
boa fé e da amizade dos quilombolas: assim, o pai de Eduardo fez amizade com
uma senhora já idosa e, quando esta morreu. A busca de títulos de propriedade
realizada pelo Incra foi negativa para os vizinhos conhecidos como Eduardo Barros
(hoje, seu filho, Inácio Barros da Silva), Joel (Joel Paulino Dantas) e Pretinho (José
Clementa da Silva), mas mesmo assim, alguns dos ocupantes da terra continuam
intimidando os quilombolas. Ao longo dos meses foram relatadas tentativas de
pressão para o grupo desistir do processo de regularização fundiaria. Assim, a
ausência de um controle e de uma proteção em relação aos ocupantes tradicionais
de terras sem título de propriedade, abre brechas para os conflitos e despertar a
velha lógica do despotismo mantido durante séculos pelos representantes da elite
local. A impotência do poder público em fazer respeitar o direto dos herdeiros,
aliada ao constrangimento da perspectiva de um conflito entre vizinhos, explica o
desamparo dos membros do grupo.
Atualmente, dois membros da comunidade têm título de posse (Zé Vieira,
com 2 ha. e Manoel Miguel, com 5 ha.). Os títulos de posse fazem referência ao
“sítio Boa Vista”; pesquisa cartorial realizada pelo Incra confirme que não há títulos
regular de propriedade. Todos os moradores da Boa Vista dos Negros e alguns
147
moradores de Parelhas reconhecem que houve ‘avanços de cercas’ e que vizinhos
(“Eduardo”, “Sinina” e “Pretinho”) ‘tomaram’ terras que foram desocupadas por
seus antigos moradores que, na época, não quiseram ou não puderam contestar o
acontecido. Constatamos que, em todos os casos de esbulho relatados por nossos
interlocutores, e mesmo com o apoio de personalidades influentes, os interessados
conseguiram reverter a situação.
Hoje, encontramos um território cujo uso coletivo foi impossibilitado pela
aposição, por terceiros, de cercas no interior do espaço produtivo. Usando de uma
autoridade conferida pela situação econômica e social que ocupavam, os vizinhos
invadiram as terras da Boa Vista dos Negros, de modo sistemático e sem ser
impedidos pelas autoridades locais, mesmo após a intervenção de Florêncio
Luciano. Parece normal, então, que os interessados não puderam reagir.
Atualmente, são aproximadamente 200 hectares ocupados pelos quilombolas: isso
significa que mais da metade do território tradicionalmente ocupado foi “tomado”.
Assim, quando visitamos a comunidade, em maio de 2006, encontramos uma cerca
atravessando o campo de futebol, colocada por “Duardo” que insiste, até hoje, em
afirmar-se dono de quase 30 há de terras encravadas dentro do território
quilombola: chegou a construir uma casa no pé da serra, num local antes ocupado
por uma senhora idosa, sem herdeiros, que teria prometido, ao morrer, de doar sua
terra ao atual ocupante.131 As autoridades locais tiveram que intervir para reverter
essa situação constrangedora e retirar a cerca que partia a comunidade em dois e
impedia a utilização do campo de futebol. Dois outros vizinhos invadiram, em
épocas diferentes, terras: Joel Paulino Dantas, aproveitou da ausência de um dos
herdeiros para cercar uma parte da serra do Marimbondo (27,6 há.), no limite com
o município de Carnaúba dos Dantas. Também, os herdeiros de José Clementa da
Silva (Pretinho), com os quais alguns quilombolas mantêm relações de vizinhança e
de trabalho, se declaram, sem apresentarem a documentação legal, como “donos”
de terras, estendendo a propriedade até a serra. Finalmente, Liciano Luciano da
131 Informação fornecida por D. Geralda (fev. 07). Hoje, é seu filho, Inácio Barros da Silva, que responde no lugar de Eduardo Barros.
148
Silva, grande proprietário de terras no município, afirma possuir 209,7 há. em duas
partes, ao leste e ao oeste, cercando os moradores e dividindo o território coletivo.
Com a presença de técnicos do Incra fazendo o levantamento dos limites do
território, a pressão exercida pelos confinantes aumentou e o sentimento geral,
entre os quilombolas, que era de medo, se transformou em indignação: todos
sentem a urgência de uma regularização fundiária antes de serem expulsos das suas
próprias terras.
A demanda territorial encaminhada pela Associação comunitária, que
representa em torno de 445 hectares e que foi discutida em várias ocasiões em
reuniões públicas, visa reverter uma série de esbulhos acontecidos recentemente.
Podemos representar a situação atual num croqui ilustrativo:
Mapa 4 - Ocupantes do território quilombola.132
Importante salientar, finalmente, que as terras contempladas pela
solicitação de regularização fundiária em favor dos quilombolas foram invadidas
por terceiros num período recente e que ficou na memória de todos – ao longo do
século XX. Até este momento, e mesmo sabendo que o território não era suficiente
132 Croqui elaborado a partir do mapa realizado pelo técnico do Incra-RN, Ivan da Costa Brito (21/10/07).
149
para atender às necessidades da população num futuro próximo, os quilombolas
não quiseram, requerer terras que foram invadidas anteriormente, mas, conforme
depoimentos orais – inclusive coletados por Dr. Ulisses -, as ‘terras da Boa Vista’
eram muito mais extensas. Desta forma, a demanda territorial poderá ser
reformulada em função das necessidades do grupo.
4.3. Patrimônio: território e família
Analisando as genealogias e escutando as histórias das famílias de Boa Vista,
podemos perceber estratégias endogâmicas na escolha dos cônjuges, mesmo se
verificamos alianças matrimoniais realizadas fora do grupo de origem.
Assim, as relações de parentesco formam a base da organização social,
espacial e política do grupo: quando indagados, todos, sem nenhuma exceção,
reconhecem uma ancestralidade comum e sabem como tornaram-se parentes.
Assim, o lugar de nascimento, os laços consangüíneos e as alianças matrimoniais
produzem limites e fronteiras no que se refere à ocupação e à reivindicação do
direito sobre o território tradicionalmente ocupado (Arruti 2003: 35). A regra de
filiação bilateral aplica-se para herança das terras, mesmo se os homens parecem
privilegiados, e determina a repartição do uso das terras que fica sob a
responsabilidade do pai de família.133 Assim, a lógica que rege as relações de
parentesco encontra-se materializada no solo, na forma de repartição do uso das
terras coletivas que, antes das invazões feitas por vizinhos, não eram cercadas:
através da leitura das árvores genealógicas e das narrativas do grupo, podemos
encontrar a origem da divisão das terras entre as famílias da comunidade.
Com o auxílio de alguns moradores, elaboramos um mapa que retrata a
distribuição das terras entre os herdeiros de Domingos, com seu tamanho
133 Lembramos que, pelo menos até o final do século XIX, a forma de aquisição de terra mais comum era a herança (Mattos 1985: 82 – 112).
150
respectivo indicado em braças. O mapa reflete o uso da terra até os anos 1970,
momento em que a economia algodoeira irá afundar, provocando uma mutação
drástica das condições de vida dos moradores. Até a crise da economia local, o
algodão era cultivado por pequenos e grandes proprietários que recorriam à mão-
de-obra externa à propriedade. Os trabalhadores alugavam sua força de trabalho,
sobretudo no momento da colheita. Também, encontramos o cultivo do ‘ouro
branco’ era consorciado com culturas de subsistência em pequenos roçados (feijão,
milho, jerimum, fava, etc.), que permitia o sustento das famílias mais pobres:
O algodão como cultura comercial, desenvolveu-se como parte integrante da produção de subsistência, na qual o lavrador produzia não só alimento para o auto-consumo, mas também alimentos ou outras mercadorias para a venda (Takeya 1985: 68).
Incluímos, no mapa, os limites do território tradicionalmente ocupado pelo
grupo, fronteiras marcadas por acidentes naturais (rio, serra, pedras), e a
localização de monumentos históricos (a casa da pedra, a cruz do escravo) e de
casas dos antigos moradores:
151
Mapa 5 – Mapada ocupação tradicional de Boa Vista.134
134 Mapa elaborado a partir dos relatos de Manoel Miguel, Dona Chica e Dona Geralda (fev. 07).
152
Constatamos uma diferença importante entre a ocupação tradicional e o
espaço hoje ocupado pelos quilombolas. Segundo o depoimento de Seu Manoel
Miguel, as “terras dos Negros” iam até o atual açude de Zeca Barros, até a barragem
de Casimiro. Seu avô, chamado também Manoel Miguel, veio do Brejo para morar
na Boa Vista e se instalou no lugar nas primeiras décadas do século XX.
Hoje, os descendentes de Teodôzio, de Marcimino, de Antônio Moreno e de
Zé Vieira continuam morando e plantando nas terras dos seus avôs, com a exceção
da serra que não é mais utilizada, em parte, por causa da ocupação desta por
indivíduos externos ao grupo que proibiram o seu acesso, colocando cercas. Assim,
a memorização da genealogia parece responder a uma necessidade material e
simbólica: a preservação e o controle das terras herdadas – o que representa
também a memória do grupo. Verificamos, ainda, que nas genealogias, aparecem
de modo preferencial os homens, responsáveis do cultivo dos roçados e do
mantimento do grupo doméstico – porém, seria imprudente caracterizar o grupo
como tendo uma descendência agnática. A transmissão do nome e o acesso à terra
se faz de forma indiferenciada, pelos homens ou pelas mulheres, no entanto que
trata-se de parentes consangüíneos. De modo geral, é o homem que comanda o
trabalho da terra (roçado e animais de criação), a mulher, os filhos e os colaterais
“ajudam”. Assim, uma das principais funções da longa memória genealógica
encontrada em Boa Vista é a identificação de quem está habilitado a receber a terra
em herança, pois a lógica de transmissão diz respeito, de maneira estrita, aos laços
de parentesco.
Como demostramos, o uso tradicional do território é múltiplo e permite
certa autonomia para os grupos camponeses. Responde à lógica do sítio, definido
como um “espaço total complexo, constituído de espaços menores articulados entre
si, correspondendo cada um destes limites a determinadas atividades igualmente
articuladas, como que numa relação de insumos-produtos” (Woortman 1998: 167).
No Seridó, o “sítio" pode designar um "sítio de terras", quer dizer, uma parte de
uma propriedade rural ou faz referência a uma pequena propriedade, fazendola
(Mattos 1985: 82–112). Enfim, de maneira mais geral, serve para opor o rural à
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153
cidade. Por definição, o sítio designa um espaço delimitado onde há uma produção
agrícola e frutífera sucetível de surprir as necessidades do grupo doméstico.
O que encontramos hoje na Boa Vista, é o resultado do uso intenso e
contínuo de um espaço natural desde pelo menos o fim do século XVIII, a serviço
das atividades de subsistência (pecuária, cultivo do algodão e agricultura familiar).
O território tradicionalmente ocpado pelos quilombolas está ainda claramente
dividido entre moradia, cultivo, coleta, criação e pasto para animais (gado). Mesmo
se as condições ecológica e sócio-econômicas sofreram mudanças drásticas, os
moradores continuam realizando trabalhos agrícolas, mesmo se não tiram mais o
seu sustento da terra. O abandono forçado das atividades agrícolas, em grande
parte ligado ao intenso processo de desertificação, aliado ao impedimento do
acessso a partes do seu território que foram invadidas. As famílias dos primeiros
herdeiros continuam instaladas nas suas terras, com habitações agrupadas em
torno da “casa mãe”, o que revela uma tendência de uma residência matrifocal: as
casas dos filhos são construídas nos quintais ou nas proximidades da residência
principal, o que permite a realização de pequenos serviços domésticos mútuos e
uma vida social mais intensa. Notamos uma circulação intensa dos vizinhos que se
deslocam para fazer uma visita, mandar um recado, assistir televisão ou pedir um
alimento. De dia, as casas ficam de portas abertas e são fechadas unicamente
quando a família se recolhe para dormir. Assim, a segmentação do grupo leva à
formação de linhagens patrimoniais que são inscritas no espaço: cada núcleo
familiar é formado por uma casa central de onde sairão os filhos que irão se
estabelecer nos arredores. Assim, em Boa Vista, o acesso à terra e à moradia se faz
essencialmente por herança. Coloca-se em ação um sistema complexo obedecendo
a regras de descendência e de aliança que determinam os direitos do uso do solo.
Aqui, como em todo sertão nordestino, a unidade elementar (a família nuclear) se
espelha numa unidade maior, o “sítio”, que é vista como o território do conjunto
das unidades familiares que são inter-ligadas por laços de parentesco (Woortman
1995). De fato, a noção de casa elaborada por Claude Lévi-Strauss (1974), pode ser
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
154
aplicada ao nosso caso, com algumas modificações. A ‘casa’ é antes de tudo um
princípio organizador em torno do qual as sociedades, sobretudo as camponesas, se
organizam: é uma pessoa moral que detém um patrimônio material, composto
essencialmente por um domínio fundiário e por bens imateriais (nome, crenças,
tradições). Essa noção, que é muito próxima do “estabelecimento” de M. Mauss
(2003: 437) ou do território, permite analisar conjuntamente elementos da
organização social e aspectos simbólicos.135
Desta forma, não se pode pensar um grupo social fora da sua inscrição num
determinado espaço geográfico, desvencilhado das condições ecológicas e materiais
que dispõe. Também, devem ser levadas em conta as dimensões culturais que, em
muitos casos, servem para marcar uma fronteira étnica. No nosso caso,
encontramos na história de fundação de Boa Vista, na atribuição dos nomes, nas
estratégias matrimoniais, elementos constitutivos de um sistema cultural próprio
ao grupo. Esses elementos tendem a convergir num mesmo sentido, o da
conservação do patrimônio fundiário e da continuidade do grupo no território.
4.4. Á margens das fazendas e das cerâmicas
Na Boa Vista, encontramos diferentes modalidades sociais de produção
econômica: a exploração agropecuária, a criação de pequenos animais, o cultivo de
culturas temporárias realizado nas terras próximas ao açude, na vazante do “açude
dos Negros”, no rio Cobra e do riacho Gavião, nos quintais das residências e em
hortas domésticas onde são cultivadas algumas hortaliças. Porém, fica claro que
sabendo das condições ecológicas atuais e a quantidade de terras disponíveis para o
135 A leitura simbólica do território está presente em autores clássicos de tradição francesa (Halbwachs 1990; Leenhardt 1971).
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155
grupo, a população local não consegue sobreviver das atividades desenvolvidas em
meio rural e os jovens devem se deslocar da comunidade para encontrar seu
sustento. Iremos descrever, aqui, as atividades econômicas realizadas pelas
famílias quilombolas e o uso do seu território.
4.4.1. Brocar o mato
Se, na origem, trata-se de uma região agrícola, organizada tradicionalmente
em torno das fazendas de criar gado e da cultura de algodão, hoje, atividades
agrícolas de pequeno alcançe servem de complemento para o sustento das famílias
e para responder à lógica de uma economia informal que utiliza a troca e é fundada
nas relações de inter-conhecimento.136
No Seridó, a produção do algodão durou do inicio do século XIX até os anos
1930, época em que as atividades agrícolas declinaram rapidamente; o que teve
como principal conseqüência um forte êxodo rural: entre 1950 e 2000, a população
seridoense que era majoritariamente rural passou a ser urbana (Dantas 2004: 30,
74). Mesmo se, nessas últimas décadas, a organização econômica e social da região
se modificou profundamente, pois, como vimos, a produção agrícola e o seu
consumo respondiam a uma lógica fundada nas relações de parentesco e eram
tradicionalmente voltadas para o provimento das necessidades das unidades
domésticas. Constatamos ainda hoje que a solidariedade inter-geracional é forte e o
convívio cotidiano entre os membros da família multiplica as ocasiões de trocas de
bens, de serviços, de favores e de informações. As formas de sociabilidade são
136 Parelhas, em 1921, era descrita por Manoel Dantas (1941: 72) como uma “prospera vila” que “sustenta galhardamente o desenvolvimento do nosso progresso”. Para informações sobre a formação da economia e da sociedade do Seridó, ver Macêdo (2005 e 2007).
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156
determinadas pelas relações de consangüinidade e de aliança que caracterizam as
sociedades rurais, sobretudo as do Nordeste brasileiro (Woortman 1995).
Historicamente, como vimos, o destino dos trabalhadores – livres ou
escravos – estava diretamente ligado ao fazendeiro ou coronel. A expressão
“camponês sem terra empregado numa propriedade” encobre, de fato, várias
realidades e diferentes estatutos (Garcia Jr., 1989: 117-120; Santos, 1981: 60-83)137.
Em geral, o agricultor firma um contrato com um proprietário que cede uma
parcela de sua terra em troca de uma parte de sua produção e/ou de serviços. Esse
contrato não é habitualmente escrito e baseia-se num contrato oral e numa relação
de confiança entre os dois contratantes (Garcia Jr. 1989: 28). À cultura do algodão,
era associada culturas de subsistência, como o feijão, a mandioca ou o milho, e a
criação de animais, o que garantia uma certa autonomia para o grupo. Monteiro
(2002: 131) demonstra que, ao longo do século XIX e XX, diferentes contratos são
travados entre os proprietários de terras e os pequenos agricultores, geralmente
também vizinhos, que não tinham terra suficiente. Se, nessa configuração
econômica e nas formas de contratos de trabalho, existe certa autonomia social e
econômica dos grupos camponeses, a dependência dos pequenos agricultores com
os fazendeiros encontra-se reforçada. O fazendeiro, que era ao mesmo tempo
patrão e compadre, construtor de capela, hoje médico e homem político, detinha
um poder quase absoluto, numa sociedade na qual as leis eram feitas por ele e para
ele, o que Juvenal Lamartine chama de “obediência respeitosa” (Lamartine 1965:
47-50):
A organização das famílias sertanejas, de forma quase patriarcal, mantinha os parentes próximos e até os mais distantes reunidos em torno de um ascendente de maior prestígio, ao qual dedicavam uma certa obediência e lhe seguiam os conselhos e a orientação (Lamartine 1965: 47).
137 Ver a classificação dos tipos de agricultores do IBGE: proprietário, arrendatário, parceiro, ocupante; e do INCRA: trabalhador rural, assalariado, empregador rural. Aqui, seria preciso distinguir o rendeiro do proprietário.
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157
Podemos pensar que, na região de Parelhas, algumas famílias abastecidas
mantiveram relações hierárquicas com os moradores de Boa Vista. Assim, podemos
pensar que foi o caso de Virgínio Vaz de Carvalho, proprietário do sítio vizinho
(Juazeiro), que, no local, construiu um cemitério para enterrar as vítimas da cólera
(1856).
Fotografia 24 -
Bernardo de Sena e Silva, fundador e
professor da escola do sítio Juazeiro entre
1883 e 1914.138
Fotografia 25 - Florêncio Luciano, prefeito de Parelhas.139
O seu filho, Bernardo de Sena e Silva, fundou uma escola em 1883 onde
estudaram personagens influentes na vida política local como, por exemplo,
Florêncio Luciano, fazendeiro que foi prefeito de Parelhas e, antes, líder do Partido
Popular no Seridó ou os "Perrepistas”, como eram conhecidos:140
Nos anos vinte, Florêncio Luciano já era influente empresário e político da região, posição que nunca perdeu até os dias atuais. Chefe político dos mais categorizados, ele foi prefeito de Parelhas durante três mandatos, desenvolvendo principalmente o setor educacional do município (...)
138 Ver em anexo “Resenha de Parelhas” (2005). 139 SEMECR 1994. 140 Fonte: “Parelhas” <http://pt.wikipedia.org/wiki/Parelhas> [capturado em 04/05/07].
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158
Agricultor, ele também foi pioneiro na implantação de várias práticas modernas, tendo sido um dos primeiros a adotar a utilização de sementes selecionadas de algodão Mocó, melhorando a produtividade de suas plantações de fibra longa. (Parelhas, 1977: 4)
Fotografia 26 - Rio Cobra (março 07).
Assim, Dona Geralda conta as dificuldades que ela conheceu, tendo que
deixar Boa Vista com seu esposo que ficou empregado durante mais de vinte anos
em fazendas vizinhas. Insiste sobre o fato da impossibilidade de sustentar sua
família com as atividades de subsistência; essa situação foi amenizada com a
implantação da indústria de cerâmica, sobretudo a partir dos anos 1990:
Julie: Eu pensava que lá no brejo era melhor do que aqui.
Geralda: Não sei, ele veio do brejo.
Manoel Miguel: As coisas só não eram mais ruins aqui por causa do algodão.
Julie: Lá, não tem algodão não
Manoel Miguel: Não. O povo vem pra cá, da serra do Cuité, do Brejo (...)
Geralda: Uma turva de gente...
Manoel Miguel: Uns ia daqui pra lá e se casava, ai pronto ficou aqui e lá, no Brejo. Mas acabou foi tudo, ai ta tudo passando fome, aqui e lá. Se não fosse essas cerâmicas, já tinha morrido todo mundo de fome.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
159
Geralda: É que em Carnaúba tem um homem, ele já é rico, tem umas sete cerâmica.
Manoel Miguel: Genilson.
Geralda: E ele sustenta esse povo todinho graças a Deus... Dodoca vai, ele assina a carteira, ai compra um carrinho (...).
Maria: Aqui o proprietário que tem mais terra é o (...), ele já é falecido, que é da família de Carlinea, acho que você já foi lá... É o proprietário que tem mais terra, mas tá todinho... Algum trabalhador quiser é por conta, porque eles não querem mais se responsabilizar (março 07).
Apesar das mudanças ocorridas do ponto de vista da organização social e
econômica na região, as relações de dependência em relação aos vizinhos brancos
aparecem claramente na fala dos quilombolas: às formas de contrato de trabalho,
acrescentam-se laços de sociabilidade característicos da vizinhança em meio rural e
de trocas de bens e serviços. As atividades agrícolas realizadas hoje em Boa Vista,
são um pálido reflexo do que se fazia, até os anos 1970: pelos depoimentos dos
nossos interlocutores, aparece claramente que, apesar das dificuldades, o grupo
conseguia se manter em grande parte graças às atividades agrícolas.
Fotografia 27 - Roçado na vazante do açude (maio 07).
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160
Seguindo o modo tradicionalmente utilizado no Seridó, o cultivo é realizado
nas vazantes do açude, do rio Cobra e do riacho do Gavião: feijão, milho, batata
doce, melões, melancias e pastagem para os animais, sobretudo (Lamartine 1965:
43; Mattos 1985: 174).
Fotografia 28 - Vegetação na serra do Marimbondo (jun. 07).
Fotografia 29 - Cultivo em vazante - açude (Boa Vista, jun. 07).
A cultura em vazante permite aproveitar os sedimentos depositados nos
leitos dos rios e dos açudes: são propícios a uma exploração agrícola e, geralmente,
as terras são relativamentes fertéis.141 Na região, as áreas desmatadas e utilizadas
para a agricultura são, em geral, ocupadas pelas culturas de palma forrageira, agave
e algodão, além de milho e feijão, porém, na Boa Vista somente as culturas de
subsistência são cultivadas. Devido à qualidade do solo encontrado nas serras, que
é pouco espesso, cascalhento ou pedregoso, e mesmo com fertilidade natural alta,
praticamente não há cultivo devido ao relevo acidentado e à falta d’água (Souza et.
alli. 2004). A extração de lenha e madeira para uso doméstico foi proibida em
141 Solicitamos ao Incra um estudo agronômico que não foi concluído até este momento.
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161
razão do estado de desertificação da região, porém, sabe-se que áreas distantes dos
núcleos habitados pelos quilombolas são desmatadas por vizinhos.
Fotografia 30 - Área desmatada na serra do Marimbondo (jun. 07).
A pecuária, que sempre foi determinante na economia da região, foi
complementada recentemente com a introdução de uma pequena criação de ovinos
e caprinos devido à adaptação desses animais frente aos bovinos, alimentando-se
predominantemente do pasto natural. Essa atividade, essencialmente feminina, é
considerada como acessória, porém, representa uma reserva para a economia
doméstica em caso de necessidade ou nas ocasiões festivas.
Fotografia 31 - Criação de porcos (jan. 07).
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162
Se, como vimos, a posse das terras, a liberdade e a endogamia são afirmadas
simultaneamente como marcas definidoras do grupo, no entanto, em várias
ocasiões, nossos interlocutores lembram que os moradores da Boa Vista
mantinham laços de dependência com seus vizinhos mais ricos. É o que a
afirmação de Dona Chica traduz:
Essa terra é da gente, dos negros, mas quase todo mundo tem roçado fora. Não dá para se manter. Só casava negro com negro (Chica 1991).
A autonomia do grupo sempre foi frágil, pois, como Dona Chica lembra, os
moradores precisavam trabalhar fora da comunidade para se sustentar. Mesmo
inscritos numa rede de parentesco endogâmica e vistos como ‘fechados’, os negros
da Boa Vista estavam numa situação de dependência econômica como seus
vizinhos que eram reforçados por laços de compadrio. Corresponde à situação
descrita por Afrânio Garcia Jr. (1989: 28) quando explica a estratégia dos grandes
proprietários fundiários que disponibilizavam suas terras em troca de uma ampla
rede de dependentes com quais mantinham laços de tipo hierárquico:
Os senhores utilizavam assim seu patrimônio fundiário para criar uma rede ou uma clientela de indivíduos submetidos à sua dependência, rede que lhes garantia um poder social tão grande quanto maior fosse o número de indivíduos que o compunha.
Os laços de dependência fundados numa desigualdade social instituída e
num preconceito racial permitiram que, depois da época áurea do algodão, durante
a crise estrutural do sistema econômico que fragilizou o grupo e esvaziou a Boa
Vista, vizinhos gozando de apoios políticos puderam se apossar de partes de terras
sem encontrar uma resistência aberta por parte dos moradores. A situação
histórica de dependência evocada pelos quilombolas em várias ocasiões explica o
receio de alguns em participar mais ativamente do processo atual de ‘retomada’ das
terras.
Se, hoje, com as transformações da paisagem econômica da região, a
situação evoluiu, encontramos, no entanto, marcas dessa dominação sofrida pelas
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
163
camadas subalternas; alguns grandes proprietários de terra souberam se adaptar à
nova configuração e mantiveram seu prestigio e seu poder em nível local, pois as
formas de contrato de trabalho, mesmo assalariado, geram relações de
dependência econômica, política e moral.
4.4.2. A erosão: gado e cerâmicas
Considerando o território atual, as atividades econômicas agrícolas já não
podem sustentar o grupo. A tendência da economia local, sobretudo a partir dos
anos 1990, foi de se reconvertir para a produção de cerâmica.
Como já foi apontado por A. Ratts ou Elisabeth Silva142, o uso intensivo do
solo com a cultura do algodão e a pecuária associado ao desmatamento para uso
doméstico e industrial, teve como principal conseqüência o aparecimento de um
processo de desertificação que é considerado atualmente como sendo muito grave.
As condições ecológicas e as formas de desenvolvimento econômico da região
foram redefinidas. O abandono gradativa das atividades agrícolas foi acompanhado
do desaparecimento gradual das pastagens naturais ou plantadas, e do aumento
significativo da vegetação de caatinga baixa e esparsa.
142 Ver no processo, estudos dos autores sobre a comunidade Boa Vista dos Negros solicitados pela Fundação Palmares em 1998. Em um artigo publicado em 2000, Alecsandro Ratts faz referência à Boa Vista como uma das seis comunidades quilombolas do Nordeste que foram registradas até 1998 (Ratts 2000: 321). Em 2007, existem 15 comunidades certificadas pela Fundação Palmares no Rio Grande do Norte.
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Fotografia 32 - Cerâmica e gado (mar. 07).
A água dos açudes é usada principalmente para o abastecimento da
população em água, enquanto as águas subterrâneas são pouco abundantes,
ocorrendo de modo esparso em pequenas falhas no substrato cristalino ou no leito
de rios e riachos possuindo, em geral, alto teor de salinidade.
O estudo realizado no Seridó paraibano por Sousa et. alli. (2004), numa
região vizinha ao município de Parelhas, resume bem a crise enfrentada pelas
populações rurais durante o final do século XX. Note-se uma evolução dos fatores
socioeconômicos mais importantes no que diz respeito ao processo de
desertificação, durante o período de 1970 a 1995. Também, de 1960 a 1996,
observa-se, uma diminuição significativa da população, devida, em parte, a uma
forte migração da população rural para a área urbana.143 As dificuldades da vida no
campo, principalmente na época das secas. Enquanto a pecuária conhece uma
expansão, agravando os problemas de erosão do solo, a participação da agricultura
na economia local diminuía de maneira considerável, pois não existe projeto de
agricultura irrigada na região. Sendo assim, o estado crítico em que se encontra o
143 Entre 1950 e 2000, a população do Seridó, que era majoritariamente rural, passou a ser urbana (Dantas 2004: 74).
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165
território dos quilombolas de Boa Vista demanda um esforço conjugado de vários
órgãos governamentais e não-governamentais para desenvolver projetos de
preservação ambiental e de sustentabilidade econômica.
Assim, verificamos que, além de uma redução drástica do território
quilombola tradicionalmente ocupado – de quase 500ha., hoje os moradores tem
acesso a 200ha. -, houve uma degradação generalizada do meio natural, devido, em
parte, à ação predatória da atividade cerâmica. O uso não predatório dos recursos
naturais do território ocupado pelas famílias de Boa Vista, no passado e no
presente, garantiu a preservação do meio e a reprodução social do grupo. Sendo
assim, o desenvolvimento de projetos produtivos alternativos envolvendo a criação
de gado bovino e outras espécies resistentes ao clima do sertão, associado ao
desenvolvimento de uma agricultura familiar em terras de uso comum parece ser a
melhor saída para a comunidade quilombola. Porém, além de ser primordial para a
sustentabilidade do grupo, o território quilombola de Boa Vista tem uma dimensão
social e cultural que deve ser destacada.
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A BOA VISTA DOS NEGROS:
ORGANIZAÇÃO SOCIAL
O fazendeiro não queria
Sua filha apaixonada
Por aquele vaqueiro moço
Viraram um gadinho manço
Dentro da mata feixada...
A paixão de um vaqueiro, J. C. Barbosa, Natal, 1980.
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Ao lado da pecuária (criação e manejo de gado), a cotonicultura e as culturas
de subsistência foram os pilares da formação e da reprodução da sociedade
tradicional no Seridó. Hoje, a indústria da cerâmica, apesar dos múltiplos danos
ambientais que essa atividade proporciona, serve de sustentação para a economia
local.144 Constatamos que a economia mudou de uma agricultura de subsistência
associada a um trabalho assalariado em fazendas vizinhas, marcado pela
precariedade dos contratos, para uma oferta de mão de obra essencialmente
masculina. Assim, atualmente, Boa Vista tende a ser utilizada como um lugar de
morada de famílias cujo chefe é empregado numa cerâmica e um espaço de refúgio
em caso de dificuldade econômica de um membro da parentela: aposentados,
crianças, viúvos, mulheres solteiras são acolhidos na comunidade. É o que explica a
distribuição relativamente homogênea das rendas constituída, em grande parte, de
aposentadorias e pensões. Porém, mesmo se não se constitui mais numa unidade
econômica, constatamos que a comunidade quilombola de Boa Vista soube
desenvolver estratégias para manter uma coesão social que passa por uma
solidariedade tendo como base as relações de parentesco.
5.1. A Boa Vista dos Negros: autonomia perdida e mudanças
Sabemos, por experiência própria, que não podemos contar com o socorro público (...) seu efeito nas populações flageladas tem sido, sobretudo, deslocá-las, habitua-las à madraçaria, humilha-las por meio da esmola, implantando nelas hábitos de corrupção e vírus de moléstias contagiosas (Dantas 1941: 127).
Podemos pensar que, pelo menos no período entre o fim do século XIX até
os anos 1970, a “comunidade de Boa Vista” gozava de certa autonomia: segundo o
144 Manoel Dantas (1941: 117) cite outras ‘industrias’: “extração da borracha, industria do leite, o couro salgado, as peles de cabra”.
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168
relato dos nossos interlocutores, a agricultura de subsistência e o “trabalho
alugado” nas propriedades vizinhas, representavam as principais fontes de renda.
No entanto, o grupo era marginalizado e vivia numa situação de exclusão social.
Assim, percebemos que a comunidade quilombola de Boa Vista destacava-se dos
outros agrupamentos familiares existentes na zona rural do município por serem
excluídos socialmente por pertecerem a um grupo étnico diferenciado e
participarem da Festa do Rosário. Essa identidade diferenciada reforça as provas
da presença dos quilombolas no local desde, pelo menos, antes da primeira metade
do século XIX.
A diferenciação racial e social observada durante a investigação, começa pela
terminologia utilizada localmente para designar a comunidade e para diferenciar
“os Negros da Boa Vista” dos seus vizinhos brancos. Pois existem pelo menos três
Boa Vista: a “dos negros”, que nós ocupa aqui, a dos Barros e dos Luciano, famílias
brancas com os quais os quilombolas mantém relações de trabalho e de vizinhança.
Denominada como “Boa Vista dos Negros” para diferenciá-la dos outros sítios de
Boa Vista. Nas vizinhanças, existe a “Boa Vista dos Barros” e “dos Luciano” onde
moram famílias que mantém relacionamentos de trabalho, de compadrio e de
amizade.
Como o território atualmente ocupado pelo grupo é descontínuo, com cercas
que separam o grupo familiar de “Zé de Paulina” do resto do grupo, existe
constrangimento para as famílias residentes: o trânsito entre os diferentes núcleos
residenciais é difícil. Parte do território tradicional é ocupada por unidades
familiares que mantém laços de parentesco e de cooperação – o que representa em
torno de 200ha. de terras, situadas entre o rio Cobra (ao sul), a serra do
Marimbondo (ao norte), o “Serrote” (ao leste) e o “corredor de Mariquinha” que faz
limite com o sítio Juazeiro. Vários conflitos existem com os ocupantes do entorno
do território, entre outros, relativos à impossibilidade do uso do território pelos
quilombolas no que diz respeito à plantação, à criação de animais e ao acesso à
água.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
169
As quarenta e duas famílias da comunidade estão concentradas em trinta
casas, formando pequenos núcleos habitacionais que são distribuídos ao longo das
duas estradas de terra que atravessam a Boa Vista, não longe da estrada asfaltada
(RN 086).145 As estradas de barro dão acesso à outras localidades, em particular,
Juazeiro, onde estão situadas as escolas de nível primário e alguns serviços (posto
de saúde e pequenos comércios).
Fotografia 33 - Antiga escola de Boa Vista, hoje centro comunitário (maio 06).
O núcleo social de Boa Vista situa-se em torno do antigo grupo escolar, do
posto de saúde e da capela dedicada a N. Sra do Rosário que ainda está em
construção, mas onde já foram realizados cultos e algumas reuniões. Nesse centro,
são desenvolvidas as atividades coletivas: o trabalho associativo, as reuniões
comunitárias, as novenas, as festas, etc. Assim, há quatro anos acontece a festa do
Rosário, em outubro: visa arrecadar fundos para a construção da igreja, a
realização de projetos comunitrários e a organização da festa de dezembro que
continua sendo o evento social mais importante do local.
145 Em 1997, havia aproximadamente 170 habitantes, distribuídos em 30 famílias (Parelhas 1997).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
170
Do ponto de vista da infra-estrutura, as casas são todas de alvenaria, com
banheiro, água encanada e tratada. Há um açude, um poço comunitário, dois
reservatórios de água e um desanilizador. O posto de saúde atende as famílias do
local e conta com uma agente de saúde que pertence à comunidade. Não há serviço
de transporte municipal, os moradores que não dispõe de meio de transporte, tem
que utilizar o sistema de moto-táxi para ir até a sede do município. A antiga escola,
criada em 1958 para atender a comundiade quilombola, cuja primeira professora
foi Dona Chica, não funciona mais desde 1998; no local, são realizadas as reuniões
e funciona como centro comunitário. Até o primeiro grau, os alunos de Boa Vista
vão estudar na Escola Estadual Bernardo de Sena e Silva do povoado Juazeiro que
começou a funcionar em 1883.146 As crianças de Boa Vista estudam, tendo acesso
pelo transporte escolar disponibilizado pela prefeitura de Parelhas.
Apesar dos problemas ligados à falta de infra-estrutura e à ausência, durante
décadas, de políticas públicas voltadas para a população quilombola, ao longo dos
anos, e graças à mobilização das suas lideranças comunitárias, a comunidade
conseguiu manter laços com autoridades locais, trazendo benefícios e construíndo
pequenas obras. A mobilização e a atuação das lideranças femininas possibilitaram
o desenvolvimento de projetos de melhoria das condições de vida, no que diz
respeito ao acesso à educação, à saúde e ao emprego.
146 Ver em anexo “Resenha de Parelhas” (2005).
171
Mapa 6 - Croqui da Boa Vista (maio 2006).
172
Interessante verficarmos que Boa Vista se destaca, no município, como
sendo uma das poucas comunidades rurais que continuam tendo uma atividade
agrícola de subsistência, apesar das mudanças econômicas ocorridas na região,
tanto do ponto de vista econômico e ecológico; assim, verifica-se uma população
residente relativamente estável ao longo dessas duas décadas. Porém, a população
quilombola de Boa Vista tem uma renda per capita inferior a do município (99,25
R$ em vez de 125,00 R$); desta forma, encontra-se em risco social.
Os laços de parentesco e as relações sociais construídas historicamente com
os vizinhos e os proprietários fundiários definem os limites do grupo quilombola e
sua ocupação espacial. Porém, como pudemos demostrar, o território
tradicionalmente ocupado até início do século foi drasticamente reduzido, quando
os esbulhos de terras se acentuam. De modo progressivo, chegamos à situação atual
em que o território já não corresponde mais àquele ocupado pelos primeiros
herdeiros de Domingos. Além disso, o território quilombola encontra-se numa das
áreas mais críticas de desertificação da região. Como conseqüência direta,
observamos uma redução drástica das atividades agrícolas desde os anos 1990,
levando, assim, os segmentos mais jovens a sair da Boa Vista para procurar
empregos nas cerâmicas circunvizinhas, e a morar na sede do município, nas
cidades vizinhas, nas capitais da região e do Sudeste.147 Verificamos também que
muitas mulheres deixaram de morar em Boa Vista por falta de opção de trabalho.
Assim, Boa Vista perdeu sua frágil autonomia que era constituída por uma
economia primitiva (coleta/caça/pecuária/agricultura) combinada a um trabalho
assalariado. Hoje, se configura como um bairro rural destinado a oferecer moradia
para as famílias quilombolas – encontramos muitos aposentados e crianças -, e
acolher os parentes menos favorecidos. Constatamos, ao entrar na Boa Vista, e
apesar da taxa de desemprego e das condições de vida dificieis, não haver um
147 Segunda Tereza (45 anos) há muitas famílias originárias da Boa Vista morando em São Paulo, na favela do Rubacão.
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173
índice preocupante de alcolismo nem presença de droga, sobretudo entre os mais
jovens.
Desta forma, os membros da comunidade quilombola conservam laços de
solidariedade importantes para a reprodução social e a transmissão dos valores do
grupo; é por isso que, em relação a outras comunidades quilombolas do Rio Grande
do Norte, Boa Vista aparece como um modelo de organização e de coesão social.
5.2. Migração
Segundo as palavras de Teodôzio relatadas pelo Padre Otávio Pinto em 1934,
antes da terrível seca – quer dizer, anes de 1877 -, havia mais de 500 pessoas na
Boa Vista. Hoje, contam-se um pouco mais de cem pessoas. O declínio demográfico
explica-se pelas dificuldades econômicas enfrentadas secularmente pela
comunidade, agravadas pela crise da cotonicultura que acabou desorganizando a
economia agrícola do Seridó. Atualmente, notamos que uma parte conseqüente da
população residente na Boa Vista é composta por idosos e crianças que, nem
sempre, são integrados em programas sociais.
O processo de migração, que já foi muito importante nas décadas anteriores,
concretiza-se pela referência a parentes “morando fora”. Historicamente,
constatamos que há uma circulação de pessoas que mantém relações de trabalho,
de afinidade e de parentesco com pessoas oriundas da Serra do Cuité. Também,
verificamos um grande número de indivíduos que tiveram que sair da Boa Vista
para procurar emprego nas cidades vizinhas, na capital do estado (Natal) ou
mesmo no Sudeste (São Paulo). Nas últimas décadas, com as possibilidades de
emprego no setor cerâmico, constatamos uma tendência a estabilização da
população residente em Boa Vista, apesar de constatarmos ainda a saída das
mulheres; os homens encontrando mais possibilidades de emprego do que suas
esposas.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
174
Verificamos, ao longo da nossa pesquisa empírica, que existem laços
seculares mantidos entre os moradores da Boa Vista e os da serra do Cuité.148
Temos informações de que, pelo menos desde o início do século, havia relações
regulares entre o Seridó e a Paraíba: Juvenal Lamartine (1965: 43) afirma que o
feijão e a farinha de mandioca vinham da serra do Teixeira, na Paraíba, a lombo de
jumento e a rapadura vinha do Cariri, no Ceará. Assim, o fundador de Carnaúba
dos Dantas, Caetano Dantas Corrêa (2°), continuava a se aprovisionar na Paraíba
vizinha, onde há serras férteis:
(...) o mesmo morou na sua fazenda Carnaúba, ainda existindo vestígios de sua velha residência, à margem do rio do mesmo nome (...) certo dia foi fazer uma farinhada na serra do Cuité (Medeiros filho 1981: 195).
Interessante notar que, ainda no início do século XIX, os proprietários da
fazenda Carnaúba, no município vizinho, mantinham roçados e uma casa de
farinha na serra de Cuité (Dantas 2004: 18-19). Porém, como vimos, a situação
ecológica e econômica da região sofreu modificações importantes. Dr. Ulisses
Potiguar (16/03/2007), sublinha as consequencias da crise da economia local:
Não deu mais para eles viver ali, que o terreno é muito pouco não tem agricultura, não tem meio de vida. É tanto que muitas mocinhas que trabalhando aqui de domesticas, outros trabalham naquelas propriedadezinhas a agricultura, tem umas que foram para Currais Novos, como eles têm um rumo que foi para Cuité ali a Serra do Cuité.
Assim, Como pudemos constatar, as estratégias para conservação da
unidade familiar e as formas de solidariedades são múltiplas. Essas funcionam
além das fronteiras do grupo residente em Boa Vista: notamos que há uma
mobilidade geográfica dos “parentes” que podem contar com seus “primos” ou
“tios” que vivem nas localidades como Parelhas, Acari, Caicó, Currais Novos, Natal,
148 Não foi possível investigar essa temática em profundidade durante a pesquisa atual.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
175
Rio de Janeiro, São Paulo, etc.149 De modo recíproco, os ‘parentes’ são
constantemente recebidos nas casas de Boa Vista, podendo ficar longos períodos
hospedados sem que haja constrangimento. São formas de relacionamento
fundadas em solidariedades tradicionais.
Existe uma rede de parentes e agregados que têm experiências em comum
compartilhadas na Boa Vista, nas casas da ‘família’ ou durante as festas de Jardim
do Seridó. Ao encontrar-se, cada indivíduo lembra ao outro quais são os laços que
os unem. A circulação de ‘parentes’ desenha redes de sociabilidade e laços de
reciprocidade.
Fotografia 34 - Parentes da Boa Vista: Sebastião G. dos Santos (Caicó), Luiz E. do Nascimento Neto (Jardim), Seu Veríssimo e Dona Nina (Parelhas)
[Parelhas, março 2007].
149 Segundo nosso censo realizado entre outubro 2006 e maio 2007, das 30 unidades familiares, 11 chefes de família migraram para outras localidades do Rio Grande do Norte e cidades no Centro-Sul, sobretudo São Paulo.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
176
Também, pudemos constatar que existem vários membros dos núcleos
familiares que se deslocaram para as capitais regionais ou no centro-sul. Essa
situação parece ter se intensificada com a crise da economia tradicional que
podemos verificar desde as últimas décadas do século XX. Já em 1991, Seu
Emiliano afirmava:
Hoje em dia já tem pouco porque também este mais moço vai se deslocando para São Paulo, pra Minas, pra Bahia... muita gente da família aqui já está espalhada. Muita gente e a gente não. Os mais velhos vão ficando aqui porque os velhos não tem mais pra onde ir (Seu Emiliano 1991).
Assim, mesmo se muita gente migrou para conseguir um trabalho ou
melhorar de vida, não significa que os laços familiares e a solidariedades se
desfizeram totalmente. Várias pessoas voltaram para morar na Boa Vista após ter
passado várias décadas fora, sendo acolhidos por parentes que ficaram no local; é o
caso típico dos netos sendo criados por seus avós. Outros migrantes exprimem o
desejo de voltar ou visitam regularmente os parentes. Também, é freqüente que as
famílias se encontram em ocasiões especiais, como por exemplo, a festa do final do
ano. Então, hoje, mais do que ser uma unidade de produção, Boa Vista
desempenha um papel cultural e social fundamental: é um lugar de referência para
os ‘parentes’ que saíram e que, a todo momento, são susceptíveis de voltar.
5.3. Os quilombos velhos
Os elementos que fundamentam a ordem social e que permitem entender a
lógica de reprodução e continuidade do grupo são as relações de consangüinidade e
de aliança.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
177
5.3.1. Parentesco
O parentesco é o principal elemento que se destaca na hora da afirmação
identitária bem como aparece como um princípio de organização da história (Le
Goff 1988: 115); uma prova disso é que as comunidades quilombolas identificadas
no estado são conhecidas regionalmente por seus patrônimos (Cavignac et alli.
2006).150 No caso de Boa Vista, vimos que o pertencimento do individuo ao grupo é
determinado pelo seu lugar na parentela e que este é um elemento regulador da
distribuição das terras entre os herdeiros.
Segundo Zé de Biu, antigamente, não havia casamentos inter-étnicos e
pudemos observar as estratégias matrimoniais para conservar as terras “na
família”. Porém, a consaguinidade reinvidicada pelos moradores deve ser
relativizada, pois encontramos casamentos com outros membros de comunidades
quiombolas, sobretudo na serra do Cuité, na Paraíba, pessoas que são pensadas
como parentes. Assim, entre muitos outros, Seu Manoel Miguel e Dona Quintina
procuraram seus parceiros na Paraíba vizinha: eles, e seus descendentes, podem
reinvidicar o acesso à terra. Também, podemos lembrar Seu Veríssimo que, ao se
casar, passou a morar em Parelhas, mas continuou, até se aposentar, a cultivar um
roçado em Boa Vista, passando o dia com os parentes. Da mesma forma, um
individuo externo ao grupo continua trabalhando as terras de Seu Zé Vieira, não
pode pleitear terras.
Assim, o principal critério de definição dos limites étnicos que pudemos
observar em campo segue a lógica do "sangue" que tem como principal funçao
identificar os herdeiros das terras. As relações de consangüinidade definem quem
pertence ou não ao grupo. Assim, todos se reconhecem com os descendentes de
150 Podemos citar, por exemplo, os “Leandro” em Sibaúma (Cavignac et alli. 2006). Também, grupos indígenas seguem a mesma lógica - "os Mendonça" do Amarelão (João Câmara), "os Eleotérios" do Catu (Canguaretama).
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178
Teodôzio, Marcimino, Gregório Timóteo e Antônio Fernandes da Cruz. São os mais
velhos ocupantes do território que as gerações atuais “alcançaram”.
01 02
03 04 05 06
07 08
09 1011
12 1314 1516 17 18 19 20 2122
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31 3233 34
35 36 37 38 39 4041 42
43 44
45 46 47 48 49 50 51 52 53
54 55 56 57 58 59 60 61 62
63 64
6566
67 68 69 70
71 72 73 747576
77
78
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81 82
838485
86 87 8889 90 91
92939495 96 97
104
105106107108
109
110 111 112113 114 115 116117
118
119 120 121 122 123
124 125 126
127 128 129 130 131
132
133 134 96
136 137 138
139
98 99 100 101 102 103140
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143
144 145
146
147 148 149
150
151
135
Árvore genealógica 1 - Geral (Famílias da Boa Vista)151
Através do exame das árvores genealógicas, podemos observar a ocorrência
de vários casamentos na parentela, como era de praxe no Seridó, pelo menos até o
fim do século XIX: Dom José Adelino Dantas, encontra uma solicitação de
dispensa de consangüinidade datada de 1870, pois os noivos Manoel André de
Medeiros e Felicidade Maria de Jesus, “nimiamente pobres por si e por seus pais;
mas trabalhadores, morigerados e capazes de cumprir as obrigações do estado a q.
151 Ver em anexo o nome dos indivíduos.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
179
Aspirão”, eram parentes em quarto grau tripilicado, ou ‘primos’: os seus bisavôs
eram irmãos que tinham casado com duas irmãs (Dantas 1961: 159-160). Esse
registro, entre outros, mostra a preocupação dos Seridoenses com a sua genealogia
e comprova que há uma ampla memória relativa a seus ancestrais. No discurso
sobre o passado e na observação dos fatos registrados, o aparece que o processo de
segmentação do grupo se efetuou a partir dos ancestrais comuns, uma mulher,
Tereza e seu filho, Domingos. Como em Santa Luzia (Cavalcanti 1975), em Boa
Vista, importante frizar que as lideranças são mulheres, na ausência dos homens
que trabalham fora da comunidade, nas cerâmicas.
A pesquisa genealógica e da terminologia utilizada para designar relações de
parentesco, deixou aparecer estratégias matrimonias e formas de sociabilidade
próprias à família de Boa Vista. Sem poder falar de uma endogamia em termo
estrito, verificamos que existem poucas uniões matrimoniais de moradores fora do
núcleo de Boa Vista ou da Serra de Cuité. Também, podemos constatar que existem
práticas cotidianas, estratégias matrimoniais e momentos rituais – como a festa do
Rosário -, que servem antes de tudo para manter as alianças já constituídas ou para
renovar laços com parentes vivendo em outras localidades no Rio Grande do Norte
(Parelhas, Currais Novos, Acari, Jardim do Seridó, Caicó), na Paraíba (Cuité, Picuí)
ou em outros estados, notadamente São Paulo. Como em outras sociedades
fortemente endogâmicas e, sobretudo, nos grupos onde exemplifica-se o modelo do
"casamento árabe", em Boa Vista encontramos a união de filhos de irmãos, numa
prática preferencialmente agnática. Aqui, encontra-se associada estruturalmente a
filiação e a aliança, a consangüinidade e a afinidade (Barry 2000: 68; Bonte 2000:
39-40). Também, encontramos formas de parentesco espiritual: a "parteira" é
chamada de ‘comadre’ pela parturiente e de ‘mãe’ pela criança 152 Assim, a relação
matrimonial não é a única forma de aliança. Essas relações, fundadas numa rede de
152 Imbém e Mãe Galdina eram as parteiras de Boa Vista.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
180
parentes reais e rituais formam uma parentela estendida e na sociabilidade de
interconhecimento, servem de base à vida social. Assim, o sistema de parentesco e
de aliança que encontramos em Boa Vista é fundado na indiferenciação dos primos
e das formas de casamento "num grau próximo": o casamento com alguns parentes
é autorizado ("primo/a", "tio/a", "sobrinho/a") sem que possamos identificar uma
regra prescritiva para as alianças. Porém, aparece uma "ideologia agnática", pois
como vimos, de um modo geral, são os homens que legam os seus nomes, que
fundam as linhagens e asumam o papel riutal. Porém as mulheres são as
representantes mais estáveis dos grupos domésticos, no caso de uniões sucessivas
ou múltiplas.
Assim, a idéia compartilhada de ser um grupo familiar reforça o sentimento
de identidade fundado num sentimento de uma ancestralidade compartilhada e de
um compadrio ritual que se forma ao participar da Festa do Rosário.
5.3.2. Moradia e sociabilidade
Em Boa Vista, a família estendida e a co-residência formam a base da
organização social e da sociabilidade. Segue o modelo do sítio camponês tal qual
encontramos nas zonas agricolas do Nordeste brasileiro (Woortman 1995)
Em torno dos núcleos familiares, que tem como principal função a
residência, são desenvolvidas atividades múltiplas, sobretudo em termos de
reprodução social, cultural, econômica e política. Em cada unidade residencial ou
em cada núcleo habitacional, podem residem várias famílias nucleares que mantém
laços de consangüinidade ou de aliança. A tendência é que se mantém a unidade
residencial da família em torno da casa “sede”, que pode ser a da mãe, da irmã ou
de um dos cônjuges. Encontramos, então, uma lógica de agrupamento residencial.
A família extensa que reside no núcleo familiar é composta pelos parentes em linha
direta - avôs, pais, filhos, irmãos -, os agregados e seus respectivos filhos que
constroem suas casas no “terreiro” da família-tronco. Não é raro de encontrar três
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
181
gerações dividindo um mesmo “quintal” e muitas vezes, a criação dos filhos fica a
cargo dos avôs, pois os pais trabalham fora de casa. Notamos que os laços de
parentesco formados na geração ascendente / descendente formam a base que
possibilita a atualização das relações de vizinhança. Assim, a unidade residencial é
definida pelas relações de parentesco e de vizinhança e essas se concretizam através
da troca de bens e de serviços.
Quando Boa Vista ainda tinha uma vocação agrícola, os grupos domésticos
eram também unidades de produção: "A relação entre a casa, esfera doméstica e de
reprodução, e a produção é principal elemento formador de unidades sociais no
plano aqui chamado de unidade de vizinhança" (Castanhede 2006: 27). As formas
de produção mudaram, porém, como já apontamos, as formas organizacionais e de
solidariedade permaneceram: a permanencia de espaços de trabalho comum e a
lógica da residência em torno das unidades domésticas dos pais são um exemplo
entre outros. Desta forma, o tipo de organização social que descrevemos aqui, as
relações de parentesco tem um papel fundamental.
Fotografia 35 - Quintal de uma casa (fev. 07).
Assim, podemos encontrar similitudes com estudos realizados em
sociedades onde não há unidades de trocas matrimoniais claramente identificáveis;
esses casos representam o maior desafio dos especialistas da antropologia do
parentesco. Dessa forma, o parentesco aparece como a construção socialmente
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
182
definida de uma identidade considerada como natural onde é transmitido
sexualmente um principio que se expressa como substância (Barry 2000: 67-73).
Aqui, é o sangue que determina o pertencimento ao grupo, pela atribuição dos
nomes das duas linhagens principais (Fernandes da Cruz, Vieira) e outras menos
importantes (Silva, Miguel, Santos) que, no final, formam "uma confusão só".
Também o pertencimento a um ‘tronco’ ordena o princípio de identidade. Porém,
os que ficaram são vistos como os herdeiros "mais legítimos", pois descendem em
linha direta de Tereza ou, mais recentemente, de Teodôzio, o dono das terras.
Fotografia 36 - Casa de Zé de Paulina e família (maio 07).
Apesar das mudanças na organização da economia local, verificamos que há
uma relativa manutenção da organização social. A configuração espacial da Boa
Vista responde a uma lógica de agrupamento familiar. A vida doméstica ocupa o
cotidiano das esposas cujo marido trabalha fora da Boa Vista. Enquanto os homens
são ausentes durante o dia, as mulheres e as crianças estão onipresentes na
comunidade: as tarefas domésticas estão sendo realizadas por eles. Além da casa,
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
183
as mulheres cuidam dos animais e dos quintais onde são realizadas as atividades
domésticas: lavagem de louça, de roupas, hortas, etc.
Fotografia 37 - Quintal com tanque de lavar roupa (março 07).
Diante das mudanças observadas na organização social e econômica do
grupo, observamos, no entanto, a manutenção das atividades rurais, refletidas
através das falas coletadas, mostrando que as estratégias de sobrevivência tem
como projeção para o futuro do grupo o desenvolvimento das atividades agro-
pecuárias. Assim verificamos que, geralmente, são as pessoas mais idosas que
continuam exercendo uma atividade agrícola, mesmo se essa não é suficiente para
suprir as necessidades do grupo familiar, pois podemos considerar o grupo em
situação de precariedade econômica.
5.4. Organização política
Em Boa Vista, a liderança emerge das relações de parentesco, do convívio
entre vizinhos, mas, também, da capacidade do indivíduo em se relacionar com os
representantes do poder local e, com isso, trazer benefícios para o grupo. Ao longo
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
184
da pesquisa, verificamos que a discussão em torno do processo de “retomada das
terras” consolidou a identidade do grupo e proporcionou uma reflexão interessante
sobre a história do grupo.
5.4.1. Insersão local e fronteiras étnicas
Aparecem duas formas de relações que os moradores da Boa Vista tecem
com a sociedade englobante: a primeira é tradicionalmente ligada ao universo
masculino, pois são as relações definidas pelo trabalho, tendo como referência a
figura do “patrão”, seja ele fazendeiro ou ceramista. O outro tipo de relacionamento
pode ser encontrada no estabelecimento de relações com fundamento festivo, ritual
ou religioso, que é também, tradicionalmente, ligado ao mundo dos homens.
Porém, cada vez mais, as mulheres ocupam o espaço das relações com a sociedade
civil, se constituindo como os atores políticos mais atuantes no interior do grupo.
Além da festa do fim do ano em Jardim, o compadrio aparece como uma
possibilidade de reforçar laços sociais existentes e representa uma alternativa para
garantir um apoio financeiro no caso de necessidade (doença, transporte, emprego,
etc.). Com as mudanças ocorridas nas relações de trabalho, com uma maior
fiscalização do trabalho assalariado nas cerâmicas, a tendência é de que os
padrinhos sejam, cada vez mais, procurados entre os “parentes da Boa Vista”.
Desde 1998, com o levantamento de dados realizado pela Fundação Palmares e,
mais tarde, em 2004, com a formalização da solicitação de regularização fundiária
através da abertura de um processo no Incra, o grupo reinvidicou, com o auxílio de
um vereador, o território atualmente ocupado; porém, naquela época, não estava
muito claro para todos, a possibilidade de requerer as terras que pertenciam à
comunidade.153 A ausência de clareza em relação aos procedimentos a serem
153 É o que explica a necessidade de identificar, novamente, os limites do território a ser pleiteado.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
185
tomados, à legislação, à ausência de interlocutores diretos para expressar as
dúvidas, à falta de uma articulação com outros grupos quilombolas inibiram o
processo. A decisão de retomar as terras que foram invadidas ao longo dos anos
não foi uma decisão fácil de ser tomada, em grande parte, com medo das
represálias dos vizinhos. Várias reuniões públicas, a participação em oficinas em
nível regional e nacional e, sobretudo, muitas conversas com as pessoas mais
idosas foram necessárias para fortalecer a posição das lideranças no tocante à
regularização fundiária e consolidar a demanda territorial.
Fotografia 38 - Placa que anuncia a comunidade quilombola de Boa Vista
(maio 06).
Já no mês de janeiro, muitos já expressavam o seu desejo em “retomar as
terras”. Assim, Dona Geralda, que morou durante um tempo fora da Boa Vista e
retornou par criar seus filhos, ficou inconformada ao saber das tentativas de
intimidação por parte de proprietários:
Geralda: Eu quero...
Maria: Nós quer, do jeito que eles tão imprensando... imprensa uns dacolá, imprensa outros do outro lado. Quando for por fim, as novas gerações que vão nascendo não vão ter nem onde pôr uma casa. Porque eles tão imprensando e ta ficando só essa tirinha aqui, dessa cerca daí, daqui a pouco não vai ter canto mais para construir uma casa!
Manoel Miguel: Do campo. Do campo não, da estrada pra cá.
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186
Maria: É, eles colocaram um marco bem pertinho da casa de Matilde... Porque essa estrada ai não é mais. Eduardo disse que não era mais terra da gente, era dele.
Geralda: Mentira! (...) Ele tem um papel falso! Ele fez um papel falso, que ele chegou numas terras que um pessoal tava cortando lenha... Ele chegou lá e disse:
- Ó aqui, o papel da terra!
O homem que é uma pessoa, que é um agricultor, olhou e disse que o papel era falso, que àquele papel não tava registrado no cartório. Se no caso já tivesse registrado, mas ele disse que não tinha nada a ver, que a gente não se preocupasse que a briga dele não ia ser entre nós e ele, ao ser dele e do INCRA. A gente paga o sindicato direto...
Maria: Eles se apavoraram, quando o INCRA veio aqui. O homem lá em Carnaúba passou uma cerca bem no meio da terra do meu avô. Ai achou pouco passar a cerca, fez mais uma barragem. Eu nem fui lá, mais depois disso, mas a barragem ele está concluindo, mesmo no meio, mesmo no centro das terras do meu avô.
A consciência do direito constitucional de reinvidicar as terras
tradiconalmente ocupadas e perdidas, é presente nos discursos dos mais velhos que
vivenciaram as espoliações e os conflitos existentes se exacerbaram; o que teve
como conseqüência direta a maior participação dos homens na decisão sobre os
limites da terra que antes não paricipavam ativamente das reuniões coletivas.
Além disso, como já demonstramos, os processos de afirmação étnica
tradicionalmente acionados se realizem através das vias simbólicas, sobretudo no
plano ritual e na instrumentalização de elementos relacionados à religiosidade,
pelo pertencimento à irmandade do Rosário. Essas marcas identitárias estão sendo
reelaboradas, com a entrada do grupo no campo político, o aparecimento e o
‘apoderamento’ de algumas lideranças que se materializa no pedido de
regularização fundiária. Porém, ainda aqui, além da tomada de consciência política
por parte dos membros mais jovens que se caracteriza com o uso de uma
linguagem militante e uma reapropriação da palavra “quilombo”, constatamos que
a tradição vem sendo reinterpretada de maneira singular: há uma importância
dada ao corpo, com o uso de sinais de africanidade (cabelos) e a ‘retomada’ da
dança do Espontão pelos mais jovens, integrada com outros modos de expressão
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187
musicais e corporais que pertencem ao universo cultural contemporâneo,
sobretudo através da organização de um grupo de percussão e bandas de forró.
Apesar de uma inserção razoável no município e uma ‘paz racial’, os
quilombolas sofrem com discriminação que encontra suas raízes na historia local.
Isso é perceptível a partir das formas de tratamento que são utilizadas por
membros externos ao grupo: são tratados com condescendência pelos
representantes da elite local e pela sociedade englobante que utilizam expressões
como “a negralhada”, “meus neguinhos”, “os pretinhos”, etc. A discriminação
latente aparece nas entrelinhas da conversa que tivemos com Manoel Miguel
(11/05/2006):
Julie Cavignac – Quer dizer que aqui a comunidade nunca teve problema?
Manoel Miguel – Não.
Manoel Miguel – Tratava bem. A gente nessa vida aqui, toda vida fomos [bem tratados], logo hoje que tem esse negócio de racismo, mas graças a Deus, pra gente nunca houve não. Se houve, não sei. A parada é dura pro lado do negro viu!
Julie Cavignac - Mas é porque tem gente que diz que os meninos são maltratados nas escolas, que brigam…
Manoel Miguel - Tomará que não, assim brigar, briga. De brigar, briga, mas de ser maltratado, eu não sei não!
Julie Cavignac – Vocês se importavam em serem chamados de negro?
Manoel Miguel - Não nunca se importemos não. Tem uns cabras que ainda hoje são semvergonhosos, dizem:
- Nego!
- Eu vou lhe entregar…
Ai respondem:
- Eu não lhe chamei de nego!
Julie Cavignac - Mas porque… assim, às vezes as pessoas chamam “os pretinhos”...
Manoel Miguel – Não, mas aqui… quando vai assim, é “Os negros da Boa Vista”. Agora, mais novo, agora, é os quilombos! Tem uma história de quilombos. Tem os quilombos velhos e os quilombos novos.
Julie Cavignac – Quem são os quilombos velhos?
Manoel Miguel – É a gente. É eu, é Zé de Biu, esse povo mais velho, não sabe? Agora, os quilombinhos. Foi Dr. Antonio que inventou isso. Dr. Antonio, prefeito.
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188
Fotografia 39 - Casa da Irmandade do Rosário (Jardim do Seridó) - 1863.
O sucesso regional do grupo de dança do Espontão, aliado à divulgação de
temas ligados à luta contra a discriminação racial incentivou ações por parte da
municipalidade em relação ao grupo, sobretudo de um ponto de vista cultural. Os
“quilombinhos”, grupo de dança composto por crianças que reproduzem o ritmo e
a dança do Rosário, foi criado há três anos. Outro grupo de percussão surgiu
recentemente. Apesar das mudanças sociais e econômicas, a dança do Espontão
não foi abandonada, pelo contrário, foi retomada como sinal de afirmação étnica,
conjuntamente com outras expressões musicais e corporais que fazem diretamente
referência à imagem da África veiculada em eventos culturais quilombolas
(percussão, dança, capoeira). Ao sair do domínio sagrado e passando para a esfera
do político, a tradição se renova: os ‘negros do Rosário’ recebem constantemente
convites para se apresentarem e foram incluídos como atração turística no roteiro
do Seridó elaborado pelo Sebrae local em 2004! Em 2005, com o auxílio da
prefeitura de Parelhas, foi formado um grupo de dança composto por 25 crianças,
chamado “os quilombinhos”, que se apresentam com uma certa freqüência em
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189
eventos de âmbito local.154 Recentemente, as mulheres também criaram o grupo de
dança africana, as “Perolas Negras”, com referências claras a passos, figurinos e
cabelos de inspiração africana.
154 Revista Prea, Natal, Fundação José Augusto, n. 15, nov/dez. 2005, [http://www.fja.rn.gov.br/arquivos/Prea_15Net2.pdf, p.60], capturado em 30/04/2007.
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190
Seguindo uma tradição iniciada por seus ancestrais, os quilombolas de Boa
Vista expressam na dança e na música sentimentos de pertencimento a um grupo
étnico e uma visão do passado de um segmento social historicamente estigmatizado
e marginalizado. Assim, a dimensão étnica e memorial das novas formas de danças
encontra–se reproduzida e atualizada.
Fotografia 40 - As pérolas negras (fev. 07) e a dança do Espontão (set. 06).
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191
Fotografia 41 -Reunião comunitária (maio 07).
Um dos principais pontos que dificultou a tomada de decisão em relação às
terras foram as boas relações travadas com os vizinhos; muitas famílias escolheram
os proprietários brancos, detentores de um estatuto social mais elevado para serem
padrinhos dos seus filhos. O compadrio, tipo de relação desigual presente em
contextos etnográficos diferentes revela-se na sua dimensão mais completa: aos
laços de dependência, acrescentam-se relações de trabalho ou afetivas. Assim, há
várias pessoas originárias de Boa Vista dos Negros morando nas “Boas Vistas dos
brancos”, empregados domésticos que, ao crescer na vizinhança, se integraram à
família.
5.4.2. As mulheres de Boa Vista
Vista como uma comunidade organizada e atuante, apesar das dificuldades
econômicas e da marginalização secular do grupo, Boa Vista adquiriu um
reconhecimento local por manter uma das tradições mais antigas da região e ser,
ainda hoje, a maior festa de Jardim do Seridó. Durante a pesquisa, verificamos que,
na sua grande maioria, são as mulheres que se envolvem nas questões políticas
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192
locais e que, na vida pública, são elas que se projetam como lideranças. Foram
nossas interlocutoras privilegiadas, ocupando os cargos representativos cujas
funções necessitam um nível de estudo superior ao resto do grupo: são professoras,
enfermeiras e presidentes da associação comunitária além de serem mães de
famílias e conselheiras.
Com o auxílio de Florêncio Luciano, então prefeito de Parelhas, Dona Chica
começou a ensinar em 1954 na escola de Boa Vista. Na época, a escola era de palha
e, em 1958, Dona Chica conseguiu construir a primeira escola em tijolo que foi
batizada do nome de “Maria Serafina de Jesus. Ao lado do “salão” foi também
construída uma casa onde a professora morava com sua família, durante 24 anos.
No início, Dona Chica era também merendeira e tinha em torno de 20 alunos.
Depois, em 1962, houve um projeto de construção de casas e Dona Chica se mudou
para sua casa atual. Recebeu o auxílio de Tereza, Teca, filha de Dona Geralda, que
passou 14 anos trabalhando como merendeira.155 Em 1968, Dona Chica terminou o
curso primário em Juazeiro e depois, participou de diferentes projetos (Madureira,
Saci) e finalizou o segundo grau antes de se aposentar.
Fotografia 42 - Reunião informal na casa de Dona Chica (março 07).
155 Ensinou durante trinta anos, de 1954 a 1989.
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193
Assim, a atuação de Dona Chica, primeira professora negra do local, serviu
de exemplo para as lideranças atuais que se espelharam na sua experiência,
mostrando que, apesar das dificuldades, era possível introduzir melhorias na
comunidade. Assim, desde os anos 1960, Boa Vista recebeu alguns benefícios
conseguidos com alianças feitas em nível local. Porém, a patronagem continuava
sendo o modo mais comum de se relacionar com pessoas influentes. Assim, em
1962, com verbas do governo do Estado, foi construído o açude e as primeiras casas
de tijolo (Cruz 2004: 45).
Fotografia 43 - Eleição na Associação (maio
06).
Fotografia 44 - Discurso de Maria das
Graças (Preta) reconduzida na presidência (maio 06).
Atualmente, vários projetos ligados à municipalidade estão presentes na
comunidade quilombola de Boa Vista. A Secretaria municipal de assistência social,
através do Programa de atenção integral à família (PAIF), implantou um centro de
referência e assistência social – CRAS, Casa das famílias, e atende as necessidades
do grupo (Silva 2006: 22). Também, no município existem vários programas
sociais que beneficiam a comunidade quilombola de Boa Vista: o Programa de
erradicação do trabalho infantil - PETI (Ministério do desenvolvimento social), o
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
194
Programa sentinela (Ministério do desenvolvimento social), a Bolsa família
(Ministério do desenvolvimento social), o Programa de saúde da família
(Ministério da saúde), o Programa Brasil alfabetizado (Ministério da educação) e,
finalmente, o Projeto quilombolas (Secretaria especial de políticas de promoção da
igualdade racial-Presidência da República).156
Fotografia 45 - Cisternas do projeto Água de beber (jan. 07).
A Prefeitura municipal de Parelhas, a COECQRN e a SEPPIR organizaram,
em março de 2007, um curso de capacitação quilombola do Rio Grande do Norte
intitulado "Participação política e controle social das políticas públicas". Um
projeto chamado “Água de beber”, implantado pelo Governo do estado do Rio
Grande do Norte, recebendo apoio do Ministério do Meio ambiente e contando
com uma parceria da Secretaria dos Recursos Hídricos-SERHID, de Agricultura e
Pesca - SAPE e a prefeitura de Parelhas foi instalado em setembro de 2005. O
156 Dados disponibilizados no site da VIOLES/SER/UnB: <www.caminhos.ufms.br>, capturado em 02/03/07.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
195
projeto, que associa um desanilizador de água à criação de peixes (tilápia), tem
como principais objetivos a melhoria da dieta, o aumento da renda da população
local e a redução dos riscos ambientais.157 Assim, a continuidade de projetos
implementados aparece como sendo um dos maiores desafios para Boa Vista.
Fotografia 46 - Reunião na Boa Vista sobre os limites da terra - 17/05/07 (Suelma, Elsa e Manoel Miguel).
Desta forma, as mulheres assumem um papel importante na vida cotidiana e
política do grupo, o que se acompanha de um aparente desinteresse dos homens
por questões políticas: são as mulheres que, nas instâncias externas que
representam a Boa Vista (professoras, agentes de saúde e presidente da
157 Ver o artigo: “Águas residuais são usadas para a criação de peixes”, Diário de Natal - cidades – 29/09/2005. Após uma interrupção no programa em 2006-07, o projeto foi retomado em maio 2007, mas encontra, de novo, problemas de funcionamento ligados ao fornecimento da água.
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196
Associação158, participando de projetos em cooperação com a prefeitura). Os
homens, em idade de trabalhar, são empregados nas cerâmicas circunvizinhas e
nem sempre se projetam como atores do desenvolvimento local.159 Apesar dos
homens continuarem a ser os provedores do lar, constatamos que as mulheres,
cada vez mais, ocupam o espaço político: estão à frente dos principais cargos e
responsabilidades, pois, além da disponibilidade, existe uma disparidade entre
homens e mulheres quanto ao nível educacional e as profissões: são professoras,
enfermeiras, membros da associação comunitária que tem um trânsito facilitado
nas secretarias, nos órgãos representativos e representam a Boa Vista nas reuniões
estaduais ou nacionais. Estão à frente das decisões coletivas e dos projetos
comunitários, inclusive na discussão sobre o território a ser pleiteado. Porém, a
atuação das mulheres no campo político interno e externo não implica numa
mudança radical das relações de parentesco – sobretudo na escolhas dos cônjuges
– e na divisão sexual do trabalho. Mesmo se, entre os mais jovens, sobretudo os
homens, há pouco interesse para a história do grupo e os assuntos políticos,
percebemos, no entanto, uma forte consciência étnica que se expressa nos cuidados
com a aparência física e com a preocupação em continuar a tradição da “Dança do
Espontão”.160
158 A Associação de desenvolvimento da comunidade negra de Boa Vista - ADECONB, foi criada em 2002 e tem como presidente eleita em maio de 2006 Maria das Graças Fernandes da Cruz - Preta. 159 Existe um site que apresenta fotografias da comunidade quilombola de Boa Vista, ligado a um projeto de defesa dos direitos humanos. Ver: http://www.dhnet.org.br/w3/cedan/index.html 160 Chamou-nos bastante a atenção o número de pessoas da comunidade (maioria de mulheres, mas também alguns homens mais jovens) que fazem penteados chamados “afros”.
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197
Fotografia 47 - Irmandade do Rosário (s.d.).161
Assim, aparece claramente que, além da questão política, é preciso que a
dimensão simbólica e cultural esteja presente na definição dos grupos étnicos, pois
essa tem um papel importante: são experiências religiosas, culturais e históricas
compartilhadas – ainda que alguns de seus elementos sejam também utilizados
parcialmente pelos grupos vizinhos. Sabemos, desde Barth (1988) e outros autores,
como N. Wachtel (1990), que a identidade étnica pertence ao universo simbólico; é
construída e acionada de modo diferente, dependendo dos contextos sociais e
políticos em que os agentes a reivindicam. Aqui, o auto-reconhecimento como
quilombola passa pela reiteração da história, a dança do Espontão, a devoção à
santa e o sentimento em relação à terra. Todos esses elementos apontam para uma
identidade em constante reelaboração a partir de um fundo cultural comum
designado pelos própios autores como tradicional.
161 Fotografia retirada do jornal “Parelhas, um pouco da sua história e do seu espaço geográfico” (SEMECR 1994). Interessante notarmos a presença de mulheres dançando. Provavelmente, dever ser durante as visitas realizadas pelos membros da irmandade nos arredores da Boa Vista para solicitar ajuda para despesas da festa.
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198
ÁREA PROPOSTA E RECOMENDAÇÕES
Daqui, essa zona de silêncio, por quase meio século, pela perda dêsses preciosos documentos, que se desprezaram e se transformaram em pó, sob o olhar indiferente de muitos reverendos curas. O certo, porém, é que, da série acima enumerada, o primeiro traz a data de 1788, rico de cicatrizes e de mutilações gloriosas, é verdade, mas teimando em não perecer.
Dom José Adelino Dantas, Bispo de Garanhuns, Homens e fatos do Seridó antigo, 1961, p.9.
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199
As informações coletadas durante a pesquisa empírica, nos arquivos e na
bibliografia consultada para elaboração deste relatório antropológico, informam
sobre a presença ancestral dos remanescentos de quilombo em Boa Vista e fornece
elementos para subsidiar a solicitação de regularização fundiária. Como
verificamos, a comunidade de Boa Vista consta em documentos históricos que
datam de quase duzentos anos e em registros da literatura local. Além disso, a
presença de uma longa memória genealógica e a existência de conflitos territoriais
nos registros memoriais comprovam que os quilombolas ocupam o espaço desde
pelo menos o início do século XIX e que manifestam a vontade em continuar no seu
território.162 Assim, os levantamentos documentais e empíricos comprovam que o
pleito dos remanescentes de quilombos é legítimo. Por outro lado, condizem com o
a legislação em vigor na definição, delimitação e titulação dos territórios dos
remanescentes de quilombos.163
Após a descrição da história da comunidade e considerando a
ancestralidade, as tradições culturais e as formas de organização socioeconômica
das famílias que residem em Boa Vista dos Negros, foi identificado o território a ser
titulado.
6.1. Delimitação do território
162 Ver capítulo 2 deste relatório. 163 Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias ; Artigos 215 e 216 da Constituição Federal; Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962; Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964; Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966; Decreto nº 433, de 24 de janeiro de 1992; Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 e alterações posteriores; Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003; Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003; Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT (decreto Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002 e decreto 5.051, de 19 de abril de 2004).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
200
Segundo o conhecimento local, o grupo sofreu perdas territoriais ao longo
dos anos. Apesar de saber que perderam áreas importantes para o seu sustento, os
quilombolas reconhecem de maneira absoluta que Boa Vista é limitada ao sul pelo
rio Cobra, ao norte, as águas de Carnaúba, na chã da serra do Marimbondo, a leste
pelo “corredor de Mariquinha” e a oeste pela estrada RN-086. Corresponde, em
parte às terras herdadas que pertenciam à Domingos Fernandes da Cruz que
morreu de cólera aos 73 anos em Parelhas e de Manoel Fernandes da Cruz cuja
partilha foi realizada em 1859.164
Lembramos que é imprescindível o acesso ao território natural composto
por serras, planície, rios e açudes seja facultado aos quilombolas para reprodução
de práticas produtivas e de valores próprios ao grupo. Também, como o território
identificado deve ser necessário e suficiente à reprodução social do grupo em
conformidade com as especificidades de seus usos, costumes e tradições, é
importante que esteja facultado o domínio e o uso de áreas de caatinga e de serras
ainda preservadas para a coleta de frutas silvestres e, se for o caso, a caça.
O processo aberto em 2004 no Incra visa à reivindicação de um direito
assegurado constitucionalmente, a saber, o direito de ter acesso a uma propriedade
coletiva e definitiva do território ocupado e utilizado imemorialmente pela
comunidade quilombola de Boa Vista. O grupo chegou, em maio 2007, após várias
reuniões, a um acordo, sobre a demanda territorial a ser solicitada e corresponde,
em parte, ao território tradicionalmente ocupado:
164 Foi solicitado aos Cartórios de Jardim do Seridó e de Parelhas o registro dos imóveis oriundos da herança de Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857) e de Manoel Fernandes da Cruz (17??–1856).
201
Mapa 7 - Demanda territorial
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
202
6.2. O estatuto das áreas requisitadas
O território quilombola de Boa Vista corresponde, em parte, a antigas
sesmarias de Tomás de Araújo Pereira (1734 - n. 238 com 3x1 léguas) e de
Lourenço de Góis e Vasconcelos (1735, com 3x1 léguas no riacho da Cobra)
(Medeiros Filho 2002: 33-34; Tavares 1982: 146-147). Corresponde, em parte,
às terras herdadas que pertenciam à Domingos Fernandes da Cruz e à
Manoel Fernandes da Cruz. Consta ainda que, em 1889, através de escritura
particular, foi estabelecido um documento de compra de “quatro partes de
terras no sítio Boa Vista do Monte do rio Cobra” entre Teodôzio Fernandes
da Cruz (1866-1951) e Antônia Maria da Conceição, sogra e tia do comprador. 165
No que diz respeito às terras de propriedade de Liciniano Luciano da
Silva que, em grande parte encontram-se sob penhora judicial desde 1999166, e
as que foram invadidas por vizinhos (Licianao Luciano da Silva, Inácio Barros
da Silva e Joel Paulino Dantas), é preciso fazer cumprir a LEI Nº 8.629, de 25 de
fevereiro de 1993 da função social da terra. Até hoje, parte das propriedades são
improdutivas, pois contam com grandes áreas de caatinga em parte degradadas,
sobretudo na serra ou são constantemente alvo de desmatamento por parte dos
invasores.
Acompanhando um dos eixos principais da política pública atual, a saber,
a superação da pobreza e a garantia da segurança alimentar das populações de
baixo poder aquisitivo, uma das prioridades do Ministério de Desenvolvimento
Agrário é a redução das desigualdades, da pobreza e da falta de perspectivas em
que se encontra cerca de 25% da população brasileira. A criação de um Plano
territorial de desenvolvimento sustentável (PTDS) permite:
165 Dr. Ulisses Potiguar encontrou um outro registro de compra de terras com data 22/07/1896, passado entre Theodôzio Fernandes da Cruz e Joaquim Bião dos Santos. 166 Ver as fls. 119, 120 do processo Memo/Incra/SR-19/G/n°127/04.
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203
[...] a formulação de uma proposta centrada nas pessoas, que leva em conta os aspectos de interação entre os sistemas socioculturais e os sistemas ambientais, e que considera a integração produtiva e a utilização competitiva dos recursos produtivos como meios que permitem a cooperação e co-responsabilidade ampla de diversos atores sociais (Brasil, Ministério do desenvolvimento agrário 2003: 31).
Assim, a recente Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) foi instituída por meio do Decreto
nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, e a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário por meio do
Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto
5.051, de 19 de abril de 2004, garante o direito à propriedade da terra,
determinado pelo artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de 1988.167
A comunidade quilombola de Boa Vista (RN) esta situada numa área
semi-árida que recebe atenção especial do governo Brasileiro, por isso deve
receber uma atenção prioritária (PAN Brasil 2004). As conseqüências são
múltiplas e tem um efeito direto sobre o bem estar das populações locais: há
uma redução da cobertura vegetal, verifique-se um assoreamento dos rios,
açudes e barragens. Nas áreas de sobrepasto, como existem vários na área da
comunidade quilombola, constata-se uma perda da produção agrícola de
subsistência e uma salinização dos solos. No entanto, segundos estudos do
Ministério das Minas e energias, existem várias fontes de abastecimento de água
subterrâneas que devem ser preservadas:
167 A PNPCT “tem como principal objetivo promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.” (art. 2o) e “reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos.” (art 3o VI)
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
204
Figura 3 - Fontes de águas subterrâneas.168
Desta forma, é preciso que sejam implementadas ações de
reflorestamento e de remanejamento das áreas ainda preservadas,
acompanhando as diretrizes do Plano Estadual de Combate à Desertificação.
Ainda não é possível avaliar exatamente os danos que uma devastação desse
tipo representou para população local que tirava parte do seu sustento da coleta
não predatória de espécies nativas e auxiliava na preservação do meio natural.
É necessário que sejam tomadas medidas emergenciais, pois existe uma
situação de risco de um ponto de vista social, devido às condições ambientais.
Assim, apontamos para a necessidade de criação de áreas protegidas por
legislações específicas. É necessário acompanhar o que determina o artigo XIII
do cap. II da lei no 9.985, de 18 de julho de 2000 que instituiu o Sistema
nacional de unidades de conservação da natureza – SNUC e que tem como
objetivo "proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e
168 Ministério das minas e energia, 2005, disponível em: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/rgnorte/mapas/PARE179.pdf (caputado em 03/04/2006).
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promovendo-as social e economicamente". Efetivamente, o território
tradicionalmente ocupado inclui uma área ainda relativamente preservada de
vegetação nativa. Como são áreas de risco ambiental, entendemos que é
necessário que a emissão de um título coletivo da área, no seu conjunto, em
favor da população quilombola.
6.3. Perspectivas para a comunidade
Várias possibilidades se desenham para um desenvolvimento sustentável
que deverá ser realizado em acordo com as características sócio-culturais e
históricas da comunidade quilombola de Boa Vista. Para que haja um
desenvolvimento sustentável, é preciso haver uma compatibilidade entre
objetivos sociais, econômicos e ambientais em todos os níveis; a justiça e a
equidade sociais devem ser priorizadas, com o reconhecimento da diversidade
cultural e da efetivação de uma política de preservação eficaz da biodiversidade
(Arruti 2003a: 253).
Diante a situação de risco social em que a população quilombola
encontra-se e a diversidade do ecossistema, ora ameaçada, existem várias
possibilidades de desenvolvimento sustentável. Entre outras, destacamos:
1- Projetos de reflorestamento e preservação da fauna
a – Reflorestamento
É importante que os projetos de reflorestamento que poderão ser
realizados, estejam elaborados em acordo com as necessidades da comunidade
quilombola que deve ser parte na elaboração destes, bem como deve ser
envolvida no gerenciamento da área a ser preservada e tornar-se agente na
fiscalização das áreas protegidas.
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Ações de proteção e de recuperação das matas ciliares nas margens e
leitos do rio Cobra e riacho Gavião devem ser realizadas, visando a garantir a
manutenção das nascentes e, se for o caso, reverter o quadro atual de
assoreamento. Faz-se necessária, portanto, a reposição da cobertura vegetal das
margens dos rios e riachos, sobretudo as que foram desmatadas e que o
reflorestamento seja feito com espécies nativas. Além disso, devem ser
implementadas ações de proteção e de recuperação dos mananciais para manter
a floresta nativa próxima aos cursos d’água que passam pela comunidade,
assegurando sua existência futura.
b - Preservação da biodiversidade das espécies animais e
vegetais169
O projeto de manejo florestal que pode vir a ser implantado deve ser
voltado para o benefício coletivo, e deve receber o auxílio do governo federal, do
governo estadual, da municipalidade, podendo receber assessoria técnica de
Ong's.
Devem ser priorizadas as áreas de matas primárias;
Associada à preservação ambiental é interessante que haja uma
reintrodução de espécies nativas (abelhas, aves e mamíferos).
2- Projetos produtivos e geração de renda
169 cf. Convenção de Diversidade Biológica (CDB) e Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)].
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É importante que sejam implementados projetos de desenvolvimento
sustentável visando a melhoria da vida cotidiana das famílias quilombolas, a
geração de renda e a criação de empregos em nível local.
a- Projetos de pecuária em áreas coletivas (serras) e de agricultura
familiar na áreas cultiváveis (sobretudo nas vasantes dos rios e açudes) e cultivo
de espécies frutíferas locais como meio para incrementar a renda das famílias
quilombolas.
b- Realização de atividades extrativistas e processo de beneficiamento
das frutas nativas (por exemplo o umbu). Aqui se incluem atividades de coleta
seletiva de espécies vegetais e animais e o uso múltiplo de produtos florestais
(madeira, cipós, folhas, raízes, seivas, frutas, etc.);
c - Ampliação de projetos de aqüicultura orgânica, criação de uma
cooperativa de pescadores e de instalações para tratamento, beneficiamento e
distribuição do pescado.
3 - Projetos culturais e geração de renda alternativa
a- Implementação de ações do IPHAN-Minc visando a preservação do
patrimônio cultural, sobretudo manifestações ligadas à Irmandade do Rosário, a
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documentação histórica que encontra-se em arquivos particulares, cartórios e
paróquias, e tombamento da “casa do Rosário” como patrimônio construído; a
Irmandade e a Associação comunitária devem ser consultadas nas ações a serem
implementadas, pois pertencem a um conjunto cultural “de reminiscências
históricas dos antigos quilombos” 170;
b – Manutenção e implementação de cursos e de capacitação (sobretudo
artesanato); essas ações poderiam ser realizadas em curto prazo no sentido de
implementar ações imediatas relevando do Programa Brasil quilombola e
atender a população de jovens que estão numa situação de risco social.
c - Implementação de uma estação digital e de cursos de informática para
responder às necessidades locais;
d- Implantação do projeto do museu de Boa Vista apresentando aspectos
relevantes da história e da cultura do grupo e incluindo trilhas de descoberta do
meio ambiente (serra e caatinga);171
A implementação de projetos de desenvolvimento sustentável
possibilitariam uma boa integração em nível local e nacional do grupo em
questão, tendo como principal objetivo o bem estar e a integridade da população
local que atualmente vive numa situação de risco social e terão, como benefício,
a preservação da história e da cultura local.
170 Tratando-se de documentos referentes a escravos ou a remanescentes de quilombos, conforme o artigo 68, do Ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) de 1988: "ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos" (parágrafo 5o, artigo 216). 171 Já existe um projeto de museu por parte da associação comunitária que deve iniciar ainda em 2007. Foi elaborado um projeto de Ponto de cultura (Minc) pela Associação comunitária.
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Recomendações:
- Solicitação de uma ação de salvaguarda da documentação histórica e ao
patrimônio construído referente à Irmandade do Rosário;
- Acompanhamento do processo de titulação pelo Ministério Público
Federal;
- Agilização do Incra nos processos adminitrativos.
6.4. Parecer conclusivo
O território coletivo aqui descrito, além do compartilhamento de um
espaço comum, possibilite a inscrição material da história do grupo e o uso
comum da terra; como vimos, o uso coletivo do espaço natural e cultivado foi,
durante o passado, uma estratégia escolhida para que o grupo se mantivesse no
local, a terra aparecendo como essencial para a subsistência das famílias e a
reprodução dos valores comuns.
Para as famílias quilombolas, a titulação irá assegurar o domínio e a
posse de suas terras tradicionalmente ocupadas. Além de suprir as necessidades
econômicas do grupo, a terra tem um valor histórico-cultural inestimável: o
território sustenta os processos que visam o reconhecimento e a elaboração de
uma história diferenciada em nível local. Garante a continuidade das famílias
quilombolas, sua reprodução física, além de permitir o reconhecimento político
e a valorização de um grupo historicamente marginalizado e que continua a ser
alvo de preconceitos.
Como já mostramos, a identidade coletiva deve ser levada em conta na
discussão sobre a questão fundiária: elementos diferenciais como a identidade
étnica, a ancestralidade comum, as formas de organização social e política
distintas, os elementos lingüísticos e religiosos devem entrar em consideração
na discussão da demanda territorial a ser realizada pelos quilombolas. A
pesquisa histórico-documental e genealógica mostra que a comunidade
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quilombola de Boa Vista é ocupada de maneira contínua desde, pelo menos, os
meados do século XIX, sofrendo contínuas ameaças ao seu território.
A titulação do território da comunidade quilombola de Boa Vista se
adequa ainda às diretrizes presentes na Constituição Federal de preservação e
sustentabilidade dos territórios quilombolas visando a melhoria das condições
de vida e o fortalecimento da organização das comunidades remanescentes de
quilombos por meio da promoção do acesso aos bens e serviços sociais
necessários ao desenvolvimento, considerando os princípios sócio-culturais
dessas comunidades. As políticas públicas a serem implementadas devem ser
voltadas para o desenvolvimento da comunidade, respeitar a singularidade
cultural do grupo e as práticas sociais tradicionais e comunitárias.
Das razões para titulação:
A ocupação ancestral foi comprovada documentalmente e pela pesquisa
etnográfica. Apesar de haver somente dois títulos de posse emitidos em nome
dos quilombolas, existe um uso contínuo e comprovado do território requerido;
o que tem como conseqüência a aplicação do direito constitucional. Até a década
de 1980, a população tirou seu sustento do rio (água potável), dos terrenos
cultiváveis, das serras e das matas nativas. Desde pelo menos o início do século
XX, os moradores sofreram pressões, sobretudo, por parte do atual proprietário
das terras circunvizinhas (Liciniano Luciano da Silva) e do seu pai (José
Marcolino da Silva), sendo impossibilitados por eles e outos intrusos de ocupar
certas áreas indispensáveis à reprodução de um modo de vida tradicional;
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Existem registros orais que relatam tentativas de cooptação de membros
da comunidade, há comprovação do uso de má fé na cessão das terras por parte
de ocupantes externos à comunidade;172
A população local não pode usufruir plenamente dos recursos naturais
necessários para o seu sustento (serra, mata). Há mais de trinta anos, a
comunidade sofre com as conseqüências de um desenvolvimento predatório,
com o desmatamento da maior parte do seu território tradicional, de danos
irrecuperáveis no rio após os anos 1940, o que representa um perigo para a
integridade do grupo e sua reprodução. De fato, os quilombolas foram lesados
com esses danos ambientais e por diversos ocupantes que cercaram
indevidamente terrenos historicamente ocupados pelo grupo;
As terras que foram cedidas por membros da comunidade e que
encontram-se de posse de indivíduos externos a elas foram desmatadas e
degradas. Também algumas delas não atendem à função social da terra, pois
não são produtivas. Por tanto, recomenda-se a aplicação da legislação em vigor
para o benefício de uma população que encontra-se numa situação de risco
social;173
São necessárias ações urgentes visando a preservação do meio ambiente
que encontra-se seriamente degradado e a aplicação das diferentes legislações
ambientais, pois parte da comunidade esta situada numa área de alto risco de
desertificação. Também, recomenda-se que haja uma implementação de
projetos ambientais no sentido da melhoria das condições de vida atuais e
futuras das populações locais.
172 É o que explique que o Ministério Público foi acionado através de uma denúncia feita em julho 2007. 173 Ver arts. 3º e 12 da lei n. 4.504 - de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o estatuto da terra e arts. 2º e 9 da lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Ver também a resolução da CONAMA n.237, de 19.12.1997, arts.3 e 10 da Lei n.6.938, de 31.08.1981, e art. 02 Lei n. 4.771, de 15.09.1965 e a medida provisória n 2.166-67, de 24.08.2001.
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ANEXOS
Documento 1 - Carta de Sesmaria de João Soares de Vasconcelos (1724).
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Documento 2 - Inventário de Manoel Fernandes da Cruz (1859) – Caicó, Labordoc – Ceres, UFRN.
1859
ACARY
Defunto Manoel Fernandes da Cruz, casado que foi com Victorina Maria da Conceição. Deste
termo.
Escrivão e Herdeiros.
Auto
Ano do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e cinqüenta e nove, aos vinte e dois dias
do mês de julho do dito ano, nesta Vila do Acary da Comarca do Seridó, e Província do Rio Grande do
Norte, em casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício do termo da dita
vila o tenente coronel João José Dantas, onde eu escrivão de seu cargo vim; por ele juiz me foi dito que lhe
constava haver falecido Manoel Fernandes da Cruz, casado que foi com Victorina Maria da Conceição,
ficando herdeiros menores de vinte e um anos; e porque era do seu dever proceder a inventário e partilhas
de todos os seus me ordenara que sem perda de tempo, notificasse a viúva do dito finado Manoel
Fernandes da Cruz par no dia vinte e sete [parte ilegível]
Certidão
Dou fé notificar Victorina Maria da Conceição, viúva de Manoel Fernandes da Cruz, deste termo,
para no dia vinte e sete do mês corrente com pena de prisão comparecer na presença do juiz de
órfãos desta vila para receber juramento e fazer [acessórias?] declarações para se proceder no
inventário dos bens de seu casal. Acary 23 de julho de 1859.
Manoel Jorge de Medeiros.
Termo de juramento e declaração da cabeça de casal.
Aos vinte e sete dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e cinqüenta e nove anos. Nesta vila do Acary,
em casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício desta vila, o tenente
coronel João José Dantas, onde eu escrivão do seu cargo vim, e sendo aí presente Victorina Maria da
Conceição, viúva que ficou de Manoel Fernandes da Cruz, por ele juiz foi lhe deferido juramento nos santos
evangelhos [ilegível]... o dobro da sua valia, e incorrer no crime de perjúria. E sendo por ela aceito o dito
juramento declarou que o sobredito seu marido Manoel Fernandes da Cruz tinha falecido no dia quinze de
outubro de mil oito centos e quarenta e nove, sem testamento algum, deixando dez filhos cujos nomes e
idades declararia no título de herdeiros, e que prometia dar a carregação todos os bens, debaixo das penas
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que lhe tinham sido anunciadas de que fiz este termo, que assinou somente ele juiz por ela ser mulher e
não saber escrever. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas.
TÍTULOS DE HERDEIROS
CABEÇA DE CASAL
Victorina Maria da Conceição
FILHOS
• Maria Victorina da Conceição – viúva
• Thomásia Manoella da Conceição - viúva
• Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado
• Joaquina Maria da Conceição – 29 anos
• Anna Victorina da Conceição – 27 anos
• Antonio Fernandes da Cruz – 25 anos
• Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos
• Catharina Maria da Conceição – 23 anos
• Victória Maria da Conceição – 19 anos
• Lorença Maria da Conceição – 13 anos
CERTIDÃO
Dou fé notificar a Antonio Manoel Dantas para em vinte e quatro horas vir a juízo com pena de prisão em
receber juramento de curador dos órfãos.
Acary 27 de julho de 1859.
Manoel Jorge de Medeiros.
TERMO DE JURAMENTO DO CURADOR
E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, sendo aí presente Antonio Manoel Dantas, se lhe deferio o
juramento dos santos evangelhos, debaixo do qual se lhe encarregou que em tempo competente se louvasse
por parte dos órfãos, que requeresse em favor deles tudo quanto julgasse justo e proveitoso, e que desse ao
curador geral as informações que ele pedisse, assim o prometeu fazer debaixo de responsabilidade, de que
fiz este termo que ele assinou com o sobredito juiz. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
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Dantas
Atonio Manoel Dantas.
CERTIDÃO
Dou fé notificar a viúva cabeça de casal, os herdeiros, o curador dos órfãos, e o promotor público na
qualidade de curador geral para hoje às duas horas da tarde se louvarem com a pena de revelia, e para
todos os mais termos deste inventário até a sentença final. Acary 27 de julho de 1859.
Manoel Jorge de Medeiros
TERMO DE LOUVAÇÃO
E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, sendo presentes a viúva cabeça de casal, herdeiros maiores e
curadores se louvaram [...?] em Manoel Victoriano da Silva Santos, e em João Paulo Dantas para avaliarem
os bens deste inventário, de que fiz este termo eu Manoel Jorge de Medeiros digo termo, em que o juiz
assinou com os curadores, a rogo da viúva cabeça de casal, e co-herdeiros por não saberem escrever
assinou Joaquim Cesário Brasil. Eu Manoel Jorge de Medeiros
Escrivão o escrevi.
Dantas
Antonio Manoel Dantas
Targino Gomes pereira
A rogo da inventariante Victorina Maria da Conceição, e dos herdeiros Maria Victorina da Conceição –
viúva, Thomásia Manoella da Conceição – viúva, Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado, Joaquina
Maria da Conceição – 29 anos, Anna Victorina da Conceição – 27 anos, Antonio Fernandes da Cruz – 25
anos, Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos, Catharina Maria da Conceição – 23 anos, Victória Maria
da Conceição – 19 anos, Lorença Maria da Conceição – 13 anos.
Joaquim Cezario Brasil
CERTIDÃO
Dou fé ter notificado aos louvados retro nomeados para avaliarem os bens que a cabeça de casal der a
carregação, e para antes disso receber juramento.
Acary. 27 de julho de 1859
Manoel Jorge de Medeiros
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TERMO DE JURAMENTO DOS LOUVADOS
E logo no mesmo dia mês ano e lugar, sendo presentes os louvados nomeados para avaliação dos bens
deste inventário por ele juiz, lhes foi deferido o juramento nos santos evangelhos, debaixo do qual lhes
encarregou que bem a na verdade, segundo entendessem em suas consciências, avaliassem os bens, que
lhes fossem apresentados, pertencentes a este inventário de Manoel Fernandes da Cruz. E sendo por eles
recebido o dito juramento assim o prometeram fazer debaixo de responsabilidade, de que fiz este termo
que todos eles assinaram como sobredito juiz. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
João Paulo Dantas
Manoel Victoriano da Silva Santos
ASSENTADA
E logo no mesmo dia mês e ano e lugar, onde eu escrivão vim com os louvados, se procedeu a carregação e
avaliação dos bens pela maneira seguinte.
MÓVEIS
Um par de argolas de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis.___3$000
Outro par de argola s de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis._3$000
Outro par de argola s de ouro com o peso de uma oitava por três mil réis._3$000
Duas caixas velhas a mil réis cada uma que importam dois mil réis______2$000
[Transporte] onze mil réis.______________________________________11$000
Uma mesa velha por mil réis.____________________________________1$000
Um veio de roda e um varão por quatro mil réis._____________________4$000
Uma caixa encourada com broxas por três mil réis.___________________3$000
SEMOVENTES
Uma vaca gorda por trinta mil réis._______________________________30$000
Uma vaca solteira magra por vinte e cinco mil réis.__________________25$000
Três novilhotas a vinte mil réis cada uma, que importam sessenta mil réis._60$000
Duas garrotas a quinze mil réis cada uma, que importam trinta mil réis.____30$000
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145$000
BENS DE RAIZ
Uma parte de terras no sítio Boa Vista do valor quatro mil réis por oito mil
réis.___________________________________________________8$000
Uma parte de terras no sítio Olho D’agua do Boi comprada por duzentos mil réis, sendo cento e
dez mil réis de seu casal, sessenta mil réis de seu finado genro Antonio, e trinta mil réis do finado
Antonio tio dela inventariante, cuja parte foi avaliada nos mesmos cento e dez mil réis
._____________________________________________________110$000
Uma casa no valor no mesmo sítio muito ruim no valor de dez mil
réis.__________________________________________________10$000
128$000
DÍVIDAS ATIVAS
Disse que devia a este casal sua filha Maria vinte e dois mil réis.___22$000
Disse que devia seu primo Roberto quatro mil réis._______________4$000
DÍVIDAS PASSIVAS, FUNERAL E BENS DECLARA–NADA
E logo pela viúva inventariante Victorina Maria da Conceição foi declarado na presença dele juiz,
e de mim escrivão, que entedia em sua consciência, havia dado a carregação todos os bens
pertencentes a este inventário, protestava dar todos os mais que lhe lembrassem até ao auto de da
partilha, fazendo esta sua declaração e protesto debaixo do juramento, que havia recebido, de que
fiz este termo que assinou somente ele juiz, por ele ser mulher, e não saber escrever eu Manoel
Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas.
TERMO DE DECLARAÇÃO DOS LOUVADOS
E logo pelos louvados abaixo assinados foi dito na presença do mesmo juiz, e de mim escrivão,
que eles sem ódio ou afeição e segundo entendiam em suas consciências haviam avaliado todos os
bens pertencentes a este inventário, e que faziam esta declaração debaixo do juramento que
haviam recebido de que fiz este termo , que eles assinaram com o sobredito juiz. Eu Manoel Jorge
de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
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João Paulo Dantas
Manoel Victoriano dos Santos
AUTO DE [ALIMPAÇÃO?] DA PARTILHA
Aos vinte e oito dias do mês de julho do ano do nascimento do nosso senhor Jesus Cristo de mil
oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary, e casa de residência do juiz municipal e de
órfãos, segundo suplente em exercícios do termo da dita vila, o tenente coronel João José Dantas,
onde eu escrivão do seu cargo vim, e sendo aí presentes a viúva cabeça de casal, os co-herdeiros ,
e curadores, pelo dito juiz me foi ordenado que eu lesse a carregação e avaliação dos bens deste
inventário, bem como a carregação das dívidas ativas, e passivas, que a cabeça de casal tinha
declarado; e satisfazendo eu a esta determinação, disse ele a sobredita viúva, co-herdeiros e
curadores que, tendo alguma coisa a ponderar ou requerer o fizessem neste auto, para lhe deferir
como fosse de justiça no despacho da deliberação da partilha. A viúva, co-herdeiros e curadores
disseram que nada tinham a proceder, nem a requerer. O sobredito juiz ordenou que o inventário
se lhe fosse concluso: de tudo fiz este auto que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros
escrivão o escrevi, e assinei, assinando a rogo da viúva cabeça de casal, e dos co-herdeiros por não
saberem escrever. Joaquim Cesário Brasil.
Jorge de Medeiros
Dantas
Antonio Manoel Dantas
Targino Gomes Pereira
A rogo da inventariante Victorina Maria da Conceição, e dos herdeiros Maria Victorina da Conceição –
viúva, Thomásia Manoella da Conceição – viúva, Joaquim Manoel Fernandes da Cruz – Casado, Joaquina
Maria da Conceição – 29 anos, Anna Victorina da Conceição – 27 anos, Antonio Fernandes da Cruz – 25
anos, Laurentino Silvestre dos Santos – 26 anos, Catharina Maria da Conceição – 23 anos, Victória Maria
da Conceição – 19 anos, Lorença Maria da Conceição – 13 anos. Joaquim Cesário Brasil
CONCLUSÃO
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o
escrevi.
DESPACHO
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O escrivã faça os autos com vistas as partes e curadores, e os notifique para se louvarem [os partidores?]
vila de Acary 28 de julho de 1859
Dantas.
TERMO DE PUBLICAÇÃO E DATA
E logo no mesmo dia mês e ano pelo juiz me foram dados estes autos com seu despacho supra de que fiz
este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
TERMO DE VISTA
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos com vistas as partes de que fiz este termo. Eu Manoel
Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Vistas partes e curadores. 28 de julho de 1859.
DATA
E logo no mesmo dia mês e ano pelas partes e curadores m foram entregues estes autos sem resposta
alguma, de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
CERTIDÃO
Dou fé ter notificado a viúva cabeça de casal, co-herdeiros, e curadores, para se louvarem em partidores.
Acary. 18 de julho de 1859.
Manoel Jorge de Medeiros
TERMO DE LOUVAÇÃO
E logo no mesmo dia mês e ano sendo presentes a viúva cabeça de casal, co-herdeiros e curadores, se
louvaram unanimemente para partidores eu Joaquim Cesário Brasil e Joaquim Gomes da Silva Dantas, de
que fiz este termo, em que o juiz com os curadores assinou e a rogo da viúva cabeça de casal e co-herdeiros
por não saberem escrever, assinou Manoel Victoriano da Silva Santos. Eu Manoel Jorge de Medeiros
escrivão o escrevi.
Dantas
Antonio Manoel Dantas
Targino Gomes Pereira
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A rogo de Victorina Maria da Conceição, Maria Victorina da Conceição, Thomasia Manoella da Conceição,
Joaquim Manoel Fernandes, Anna Victorina da Conceição, Laurentino Silvestre dos Santos, Antonio
Fernandes da Cruz, Victoria Maria da Conceição e Lourença Maria da Conceição.
Manoel Victoriano dos Santos.
CERTIDÃO
Dou fé ter notificado os louvados nomeados Joaquim Cesário Brasil, e Joaquim Gomes da Silva Dantas
para comparecerem em juízo prestarem juramento, e partirem os bens deste invetário. Acary 29 de julho
de 1859.
Manoel Jorge de Medeiros
TERMO DE JURAMENTO DOS PARTIDORES
E logo no mesmo dia Mês e ano sendo presentes os avaliadores digo presentes os partidores Joaquim
Cesário Brasil, e Joaquim Gomes da Silva Dantas, lhes deferio o juiz o juramento aos santos evangelhos,
encarregando-lhes de bem e fielmente sem dolo afeição ou malícia partirem os bens deste inventário; e
sendo por eles recebido o dito juramento assim o prometeram fazer de que fiz este termo. Em que o juiz
com os partidores assinou. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
CONCLUSÃO
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o
escrevi.
CONCLUSOS
Somados os bens do monte se dividam em duas partes iguais, uma delas se adjudique a viúva, e a outra, se
divida em tantas partes iguais quantos os filhos do finado. Vila do Acary 29 de julho de 1859
Dantas
DATA
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240
Aos vinte e nove dias do mês de julho do ano de mil oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary e
casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo suplente em exercício do termo da dita vila o
tenente coronel João José Dantas, onde eu escrivão do seu cargo fui vindo. Sendo aí pelo dito juiz me
foram dados estes autos com seu despacho supra, e retro de que fiz este termo eu Manoel Jorge de
Medeiros escrivão o escrevi.
CERTIDÃO
Dou fé intimar o despacho retro a viúva, co-herdeiros, e curadores. Acary 29 de julho de 1859 Manoel
Jorge de Medeiros
PARTILHA
E logo no mesmo dia mês e ano e lugar,m sendo presentes os partidores Joaquim Gomes da Silva Dantas, e
Joaquim Cesário Brasil, aí por eles com o dito juiz se procedeu a partilha pela maneira seguinte.
Acharam eles juiz e partidores importarem os bens móveis em dezenove mil réis.
19$000
Acharam importarem os semoventes descritos neste inventário em cento e quarenta e cinco mil réis
145$000
Acharam importarem os bens de raiz também descritos na quantia de cento e vinte e oito mil réis
128$000
Acharam importarem as dívidas ativas em vinte e seis mil réis
26$000
318$000
acharam estas quatro verbas retro importaram na de trezentos e dezoito mil réis
318$000
Acharam que dividida esta quantia em duas partes iguais pertencia à meação da viúva cabeça de casal a
quantia de cento e cinqüenta e nove mil réis
159$000
Acharam que dividida esta quantia em dez partes iguais por serem dez os filhos vinha a pertencer a cada
um deles a de quinze mil e novecentos réis
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
241
15$000
E por esta maneira houveram eles juiz e partidores esta partilha, para na conformidade dela satisfazerem
os respectivos pagamentos, observando-se a maior igualdade possível: de que fiz este termo que todos
assinaram . Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da meação da viúva Victorina Maria da Conceição no inventário de seu defunto
marido Manoel Fernandes da Cruz, cuja meação importou na quantia de cento e cinqüenta e nove mil réis.
Haverá uma vaca gorda avaliada na quantia de trinta mil réis
30$000
Haverá uma vaca solteira magra avaliada em vinte e cinco mil réis
25$000
Haverá uma caixa avaliada em três mil réis
3$000
Haverá uma mesa velha avaliada em mil réis
1$000
Haverá a dívida da de Roberto de quatro mil réis
4$000
Haverá a parte de terras do sítio Boa Vista avaliada em oito mil réis
8$000
Haverá uma novilhota avaliada em vinte mil réis
20$000
Haverá na dívida da herdeira Maria da quantia de vinte e dois mil réis, a quantia de vinte mil réis
20$000
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
242
Haverá na parte de terras do sítio Olho d’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis a quantia de trinta e
oito mil réis
38$000
Haverá a casinha do mesmo sítio avaliada em dez mil réis
10$000
E por esta maneira houveram eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da meação da sobredita viúva, de
que fiz este termo, que todos assinaram.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da herdeira Maria no inventário de seu pai Manoel Fernandes, cuja
legítima importou cna quantia de quinze mil e novecentos réis.
Haverá no que deve ao monte a quantia de dois mil réis
2$000
Haverá uma caixa avaliada em três mil réis
3$000
Haverá uma caixa avaliada em mil rés
1$000
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’Água do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de doze
mil e novecentos réis
12$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a legítima da he co-herdeira Maria, de
que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
243
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Thomasia, do que lhe pertenceu por morte de seu pai
Manoel Fernandes, que [?] a quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá um par de argolas de ouro avaliado em e três mil réis
3$000
Haverá uma mala velha avaliada em mil réis
1$000
Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis
7$500
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de quatro
mil e quatrocentos réis
4$400
12$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da he co-herdeira
Thomasia, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Joaquim no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá um veio de roda e um varão avaliados em quatro mil réis
4$000
7$500
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de onze
mil e novecentos réis
11$900
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
244
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro
Joaquim, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Joaquina no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá um par de argolas avaliado em três mil réis
3$000
Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis
7$500
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e quatrocentos réis
5$400
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira
Joaquina, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Anna no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e que
importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá um par de argolas de ouro avaliado em três mil réis
3$000
Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis a quantia de sete mil e quinhentos réis
7$500
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
245
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e quatrocentos réis
5$400
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira Anna,
de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Laurentino no inventário de seu pai Manoel Fernandes,
e que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá em uma novilhota avaliada em vinte mil réis, a quantia de dez mil réis
10$000
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e novecentos réis
5$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro
Laurentino, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima do co-herdeiro Antonio no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá em uma novilhota avaliada em vinte mil réis, a quantia de dez mil réis
10$000
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
246
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e novecentos réis
5$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima do co-herdeiro
Antonio, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Catharina no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá em uma garrota avaliada em quinze mil réis, a quantia de sete mil réis
7$500
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de oito
mil e quatrocentos réis
8$400
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira
Catharina, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Victória no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá em novilhota avaliada em vinte mil réis, quantia de dez mil réis
10$000
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
247
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e novecentos réis
5$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira
Victória, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
Pagamento feito a sorte da legítima da co-herdeira Lourença no inventário de seu pai Manoel Fernandes, e
que importou na quantia de quinze mil e novecentos réis.
15$900
Haverá em novilhota avaliada em vinte mil réis, quantia de dez mil réis
10$000
Haverá na parte de terras do sítio Olho D’agua do Boi avaliada em cento e dez mil réis, a quantia de cinco
mil e novecentos réis
5$900
E por esta maneira Houveram, eles juiz e partidores por satisfeita a sorte da legítima da co-herdeira
Lourença, de que fiz este termo que todos assinaram. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Dantas
Joaquim Gomes da Silva Dantas
Joaquim Cesário Brasil
CONCLUSÃO
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o
escrevi.
[Conclusos?]
Vistas as partes e curadores vila do Acary 30 de julho de 1859.
Dantas
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
248
DATA
E logo no mesmo dia mês e ano pelo juiz me foram dados estes autos com seu despacho supra, de que fiz
este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
TERMO DE VISTA
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos com vistas as partes e curadores de que fiz este termo. Eu
Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
Vistas as partes e curadores em 30 de julho de 1859
O curador [gal?] Targino Gomes Pereira.
Conformamo-nos com as partilhas. Vila do Acary 30 de julho de 1859.
A rogo de Victorina Maria da Conceição, Maria Victorina da Conceição, Thomasia Manoella da Conceição,
Joaquim Manoel Fernandes, Joaquina Maria da Conceição, Anna Victorina da Conceição, Laurentino
Silvestre dos Santos, Antonio Fernandes da Cruz, Catharina Maria da Conceição, Victoria Maria da
Conceição, Lourença Maria da Conceição.
Manoel Victoriano da Silva Santos Antonio Manoel Dantas.
Tem estes autos a selar [cruz e iniciais?] folha de papel escritas da taxa de sessenta réis cada uma, e dez
quinhões hereditários da taxa de cento e sessenta réis cada um. Vila do Acary 9 de setembro de 1859.
O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.
Nº3 Ra $660
P.G. de selo mil e seis centos réis, vila do Acary 9 de setembro de 1859.
O escrivão procurador
Dantas
P.G. De selo mil e seis centos réis, de dez quinhões [seriditanis?] da taxa de cento e sessenta réis cada um
vila do Acary 9 de setembro de 1859.
O escrivão procurador
Dantas
CONCLUSÃO
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
249
E logo no mesmo dia mês e ano faço estes autos conclusos, de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de
Medeiros escrivão o escrevi.
CONCLUSÕES
Visto que estas partilhas estão conformes com o despacho da deliberação as [prilgo?] por sentenças para
que paguem assim todas as custas [?], vila do Acary 10 de setembro de 1859.
João José Dantas
DATA
Aos dez dias do mês de setembro do ano de mil oito centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary. Em
meu escritório pelo juiz municipal e de ófãos em exercício me foram dados estes autos com sua sentença
supra, e me foi prdenado que notificasse a viúva inventariante para comparecer em juízo, e prestar
juramento de tutoria dos órfãos seus filhos de que fiz este termo. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o
escrevi.
CERTIDÃO
Dou fé ter intimado a sentença retro as partes , e curadores. Vila do Acary 17 de setembro de 1859.
O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.
CERTIDÃO
Dou fé ter notificado a viúva inventariante para comparecer em juízo, e prestar juramento de tutoria dos
órfãos seus filhos. Vila do Acary 17 der setembro de 1859.
O escrivão Manoel Jorge de Medeiros.
TERMO DE JURAMENTO A TUTORIA
Aos dezessete dias do mês de setembro do ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oito
centos e cinqüenta e nove, nesta vila do Acary, e casa de residência do juiz municipal e de órfãos segundo
suplente em exercício do termo da dita vila o tenente coronel João José Dantas onde eu escrivão do seu
cargo fui vindo. Sendo aí presente a Victorina Maria da Conceião mãe dos órfãos descritos neste inventário
lhe deferio o dito juiz o juramento dos santos evangelhos encarregando-lhe de bem e fielmente administrar
as possessões dos órfãos seus filhos, cuidar de sua educação e administrar seus bens; e sendo por ela aceito
o dito juramento assim o prometeu fazer, e disse que renunciava todas as leis e isenções que a seu favor
alegar possa, de que para constar mandou o juiz fazer este termo em que a rogo da inventariante por não
saber escrever assinou. Eu Manoel Jorge de Medeiros escrivão o escrevi.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
250
Dantas
A rogo de Victorina Maria da Conceição
Manoel Victorino da Silva Santos.
CUSTAS
Para o juiz
Jur. Ao inv, e louv.___1$400
Dito ao cur. E part.___$600
Part.______________2$000
Conta______________3$000
Auto e Jur._________2$000
Termos___________2$200
Publicações_______1$200
Not. E int._________30$000
Part.___________2$000
Raza______________________________________________________________
39$000
Av. [?] grates _____4$000
Part._____________4$000
Curadores________6$000
Selos___________2$260
62$000
Dantas.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
251
Documento 3 - “Documento da terra” – contrato de compra e venda de Teodozio Fernandes da Cruz (1889).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
252
Documentos 4 - Documentos paroquiais (Jardim do Seridó - Rn).
Casamentos Aos 29 de Janeiro de mil oito centos e cinqüenta e nove, ao meio dia, na capela das Parelhas, filial desta matriz, tendo precedido as canônicas denunciações, sem impedimento, confissão e exame de doutrina cristã, em minha presença, e das testemunhas, Miguel Ângelo da Cruz, casado, e Antônio Eleotério da Cruz, solteiro, moradôres nesta freguesia, se uniram em matrimônio por palavras de presente, e receberam as bênçãos nupciais os meosparoquianos Joaquim Manoel Fernandes e Antônia Maria da Conceição, filhos legítimos: elle de Manoel Fernandes da Cruz, já falecido e de Victorina Maria da Conceição: Ella, de Joaquim Teixeira da Fonseca, e de Brizida Maria da Conceição; de que para constar fiz lá mesmo e assento que assignei com as testemunhas á do qual lavro este termo, que tão bem assigno. O Vigrº. Vizº. Francisco Justino Pereira de Brito.
Em outros documentos, aparecem José Fernandes de Oliveira/ filho de Eufrazina Maria da Conceição. [livro I de casamentos. PG3 Frente] e Joaquim Garcia do Amaral [livro I Pg. 6 verso].
Aos sete dias do mez de junho de mil oito centos e cinqüenta e oito, pelas cinco horas da tarde, no sítio Boa Vista desta freguesia, tendo precedido as canônicas denunciações, sem impedimento, confissão, comunhão, exame de doutrina cristã, em presença do reverendo Manoel Teixeira da Fonseca, de minha licença, das testemunhas Monoel Martins Francisco de Medeiros, Manoel [Unscelino?] de Araújo, solteiro moradores nesta freguesia, se uniram em matrimônio por palavras de prezente, e receberão as bênçãos nupciais os meos paroquianos Joaquim Rodrigues Xavier, Raimunda Nonata de Jesus, naturais e moradores nesta freguesia, filhos legitmos: elle, de Severino Chaves Pequeno, e de Anna Joaquina dos Prazeres; ella, de Callisto Teixeira da Fonseca, e de Anna Maria da Conceição, de que para constar fez o dito padre assento, que assignou com as testemunhas, à vista do qual lavrei este termo que assigno. O Vigrº. Vizº. Francisco Justino Pereira de Brito.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
253
Documento 5 - Casamento de Joaquim Manoel Fernandes da Cruz (filho de Manoel Fernandes da Cruz e de Vitória Maria da Conceição) e de Antonia
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
254
Maria da Conceição (filha de Joaquim Teixeira da Fonseca e de Priscila Maria da Conceição) em Jardim do Seridó (1859).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
255
Documento 6 - Assinatura dos irmãos do Rosário, Livro da irmandade do
Rosário, Jardim do Seridó - RN (1865?) onde constam os nomes de Manoel Fernandes da Cruz e de André Fernandes Vieira.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
256
Documento 7 - Livro de Batizado de Escravos (1871-1887), igreja de Jardim do Seridó - RN.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
256
Documento 8 - Registros documentais
DOCUMENTOS PAROQUIAIS
CASAMENTOS
Data tipo lugar interessado1 interessado2 testemunha1 testemunha2 Párroco Fonte 29/01/185
9 casament
o Parelhas Joaquim Manoel
Fernandes (pai: Manoel Fernandes
da Cruz, já falecido; mãe: Victorina Maria da
Conceição)
Antônia Maria da Conceição (pai:
Joaquim Teixeira da Fonseca; mãe:
Brizida Maria da Conceição)
Miguel Ângelo da Cruz (casado)
Antônio Eleotério da Cruz (solteiro)
Vigrº. Vizº. Francisco
Justino Pereira de
Brito.
livro de casamentos da paróquia de Nossa
Senhora da Conceição/ Jardim do Seridó-RN.
Livro I, verso da página 13. Ano do livro 1857-
1885 Dr. Ulisses Potiguar
1859 casamento
- José Fernandes de Oliveira/ filho de
Eufrazina Maria da Conceição.
- - - - livro I de casamentos. PG3 Frente.
1859
casamento
- Joaquim Garcia do Amaral.
- - - - livro I Pg. 6 verso.
07/06/1858
casamento
sítio Boa Vista
Joaquim Rodrigues Xavier
(pai: Severino Chaves Pequeno;
mãe: Anna Joaquina dos Prazeres)
Raimunda Nonata de Jesus (Pai: Callisto
Teixeira da Fonseca; mãe: Anna Maria da
Conceição)
Manoel Martins Francisco de
Medeiros (morador nesta
freguesia)
Manoel [Unscelino?] de Araújo, solteiro (morador nesta
freguesia)
Vigrº. Vizº. Francisco
Justino Pereira de
Brito.
Livro I de casamentos, Pg. 8 Verso
08/09/1859
casamento
Jardim Antônio Fernandes da Cruz (I)
(pai: Manoel Fernandes da Cruz, falecido;
Mãe: Victorina Maria da Conceição)
Alexandrina Florentina do Amor Divino (pai: Roberto Fernandes da Cruz,
falecido)
André Fernandes Vieira
Laurentino Silvestre dos
Santos
Vigrº. Vizº. Francisco
Justino Pereira de
Brito.
livro I Pg. 19. verso
17/01/1854
casamento
? Herculano (filho natural de Ma. José do Rosário)
Gonçala (Pai: José Bernardo Fernandes;
mãe: Catarina Ma., nasc. Em Sta. Luzia,
PB)
- - - Dr. Ulisses Potiguar Filha: Romana
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
257
BATIZADOS
Data
tipo lugar interessado Pai Mãe Outros Párroco Fonte
01/08/1869 Batizado Parelhas Inácia Joaquim Bianor de Santana
Antonia Ma. de Jesus
Dr. Ulisses Potiguar
20/01/1875 Batizado Parelhas Margarida Antônio Fs. Da Cruz Alexandrina do Amor Divino
Dr. Ulisses Potiguar
19/05/1885 Batizado
Parelhas Felicidade - - Escrava Dr. Ulisses Potiguar
ÓBITOS
Data
tipo lugar interessado Pai Mãe Esposo(a) outros Fonte
10/01/1856 ÒBITO Parelhas Gonçalo Vieira da Cruz (1759-1856)
- - Viúvo de Joaquina Ma.
Morreu de Cólera em Parelhas aos 97 anos
Dr. Ulisses Potiguar
10/01/1857 ÒBITO Parelhas Domingos Fernandes da Cruz (1784-1857)
- - Josefa Maria da Conceição (?-
1896)
Morreu de Cólera em Parelhas aos 73 anos
Dr. Ulisses Potiguar
15/01/1873 ÒBITO Parelhas Petronila Antônio Vieira da Cruz
Alexandrina Laurentina do Amor Divino
Moradora em Boa Vista
Dr. Ulisses Potiguar
? ÒBITO Parelhas Joaquina José Fs. Vieira Ma. Serafina do Sacramento
Parda (8 dias) Dr. Ulisses Potiguar
26/02/1886 ÒBITO Parelhas Maria Galdina da Conceição (1826-1886)
- - Inácio Fs. Vieira Morreu aos 60 anos Dr. Ulisses Potiguar
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
258
DOCUMENTOS DE CARTÓRIO
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
259
Data Nº Regis
tro
Localidade/ Cartório
Inventariante Esposo(a) Herdeiro/Filho1
Herdeiro/ Filho2
Herdeiro/ Filho3
Herdeiro/ Filho4
Herdeiro/ Filho5
Outros herdeiros/filhos
Fonte
Xxx - Parelhas Domingos Fernandes da
Cruz (1784-1857)
Josefa Maria da Conceição
(?-1896)
Antônio Fernandes da Cruz
Teodozio Manuel Gino
- - - Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses
Potiguar)
1859 - Acary Manoel Fernandes da
Cruz (17??-1849) *
Victorina Maria da
Conceição (+)*
Tomásia Manoella
da Conceição
(viúva)
Joaquim Manoel Fs. da Cruz* (casado)
Joaquina Maria da
Conceição (1830-?)
Ana Victorina Maria da
Conceição (1832 -?)
Laurentino Silvestre
dos Santos
(1833-?)
-Antônio Fernandes da
Cruz (C) (1834-?)
-Catarina Maria da Conceição
[1836-?] {Catarina Fael?} -Victoria Maria
da Conceição (1840-?)
-Lorença Maria da Conceição
(1846-?)
Dr. Ulisses Potiguar
LABORDOC (CERES-UFRN)
1906? 1394 Parelhas José Fs. Vieira Ma. Luiza Gonzaga
Emidio Colecino Fernande
s
Isabel Ma. da Conceição
Herança de Domingos
Fernandes da Cruz /Josefa
Maria da Conceição
Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses
Potiguar)
11/09/1916
1395 Parelhas Antônia Ma. da Conceição
(viúva)
Manoel Fs. Da Cruz
Ma. Rosalina
da Conceição
[Leocádia] Teodozio Fs.
Da Cruz
Massimino Fs. Da Cruz
Antônio Fs. Da Cruz
Vicente Fs. Da Cruz
Herança de André Fs. Vieira
[Herança de Domingos
Fernandes da Cruz /Josefa
Maria da Conceição]
Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses
Potiguar)
11/09/1916
1395 Parelhas “Terra no Riacho do
Gavião”
Inácio Fs. Da Cruz
Maria Galdina de Jesus (+)
Herança de Maria Galdina
de Jesus (esposa)
[Herança de Domingos
Fernandes da Cruz /Josefa
Maria da Conceição]
Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses
Potiguar)
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
260
Títulos de compra de terras, herança e registros de bens
Data Tipo Nº registro lugar Proprietário/Herdeiro(s) Vendedor / nome de quem herdou
Estado civil /Infos. Fonte
22/07/1896 Escritura de compra
1462 ? Teodozio Fs. Da Cruz Joaquim Bião dos Santos
- Dr. Ulisses Potiguar
? Herança 668 ? Herança da mulher Antônia Ma. do
Sacramento [Herança de Domingos
Fernandes da Cruz /Josefa Maria da
Conceição (?-1896)]
? Escritura de compra
131 ? André Fs. Vieira “Laurentino de tal” Poente: Teodozio (genro)
José C. Dantas José P. Santos
Dr. Ulisses Potiguar
xxx Registro de bem 1394 Parelhas Joana Cassimira de Jesus Vieira (faleceu em 1906?)
Herança de Domingos Fernandes da Cruz
/Josefa Maria da Conceição
Viúva de Manoel Fs. Vieira que
faleceu em 21/07/1896, na
Boa Vista, Riacho do Gavião.
Cartório único de Parelhas (Dr. Ulisses
Potiguar)
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
261
GENEALOGIAS (Dr. Ulisses Potiguar)
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
262
Data Lugar Interessado Esposo(a) Filho1 Filho2 Filho3 Filho4 Filho5 Filho6 Filho7 Fonte
xxx Xxx Maria Serafina José Vieira Inácio Fernande
s Vieira
Dr. Ulisses Potiguar
xxx Xxx Inácio Fernandes Vieira
Maria Galdina da Conceição
(ou da Cruz o u
de Jesus)
Delmira (1871-?)
Teodozio (1864-?)
Ana(1860-?)
Cassiano (1862- ?)
Romana (1860-?)
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Manoel Fernandes da Cruz*
Victorina Maria da
Conceição*
Francisca (1840-?)
Vitória Maria
(1842-?)
Tereza (1836-1857?)
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Tereza (1836-1857?)
Domingos Fernandes da
Cruz
Domingos Fernandes da Cruz
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Domingos Fernandes da Cruz
Josefa Ma. da Conceição (?-
1896)
Antônia Ma. da
Conceição (da
Incarnação / do
Sacramento)
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Antônia Ma. da Conceição
André Fs. Vieira
Maria (1861-?)
Dorotéia (1863-?)
Leocádia (1865-?)
Joaquina (1866-?)
Massimo (1866-
?)(T)
Galdina (1868-?)
Josefa (1876-?)
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx José Fs. Vieira Maria Balbina - Francisca Maria da
Conceição
Cosme (1866-?)
Damiana (1866-?)
Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Teodozio Leocadia Beliza (casado
com Manoel Timbu)
Luis (louco)
Dionísio (casado
com Sebastiana
)
Manoel Ramira Maria Francisca Dr. Ulisses Potiguar
xxx xxx Dr. Ulisses Potiguar
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
263
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
262
Documento 9 - Artigo do Padre Otávio Pinto (A República, 1934)
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
263
Documento 10 - Árvores genealógicas
01 02
03 04 05 06
07 08
09 1011
12 1314 1516 17 18 19 20 2122
23 24 25 26 2728
29 30
31 3233 34
35 36 37 38 39 4041 42
43 44
45 46 47 48 49 50 51 52 53
54 55 56 57 58 59 60 61 62
63 64
6566
67 68 69 70
71 72 73 747576
77
78
7980
81 82
838485
86 87 8889 90 91
92939495 96 97
104
105106107108
109
110 111 112113 114 115 116117
118
119 120 121 122 123
124 125 126
127 128 129 130 131
132
133 134 96
136 137 138
139
98 99 100 101 102 103140
141 142
143
144 145
146
147 148 149
150
151
135
Árvore genealógico 1 - Geral
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
264
01 02
03 04 05 06
07 08
09 1011
12 1314 1516 17 18 19 20 2122
23 24 25 26 27
28
29 30
31 3233 34
35 36 37 38 39 4041 42
43 44
45 46 47 48 49 50 51 52 53
54 55 56 57 58 59 60 61 62
63 64
6566
67 68 69 70
71 72 73 747576
77
787980
81 82
838485
86 87 8889 90 91
92939495 96 97
104
105106107108
109
110 111 112113 114 115 116117
118
119 120 121 122 123
124125 126
127 128 129 130 131
132
133 134 96
136 137 138
139
98 99 100 101 102 103140
141 142
143
144 145
146
147 148 149
150
151
135
153 154
152 Árvore genealógico 2 - Árvore genealógica de Chica, Manoel, Quitina, Zé De Paulina.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
265
154 123
187 188 189 190 191 192 193
167169
163 166 18 168
10 104
170
194 195 196 197 198 199 200 201
205 206 207204
215
208 209 210
213 214
212
202 203
216 217
211
218
113 155
156 157 158 159 162161 153
171 172 173 174 175 176 177 178
83 84
179
164 165
185 186181 182 183180 184
160
Árvore genealógico 3 - Árvore genealógica de Preta e Dona Geralda.
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
266
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
267
Relação dos nomes da árvore genealógica geral dos moradores de Boa Vista dos Negros
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
268
1. DESCONHECIDO 2. TERESA 3. DESCONHECIDO 4. DESCONHECIDO 5. DOMINGOS 6. JOSEFA MARIA DA CONCEIÇÃO 7. ANTONIO FERNANDES DA CRUZ
(ANTONIO LOTERO) 8. DESCONHECIDO 9. INÁCIO ROBERTO 10. ANDRE 11. ISABEL 12. ANTONIO FERNADES DA CRUZ 13. TEODOSIO FERNANDES DA CRUZ 14. MANOEL GINO 15. CASSIANO 16. MARIA SERAFINA 17. VICENTE 18. MARCIMINIO 19. JOSÉ ANDRE 20. GARDINA 21. LEOCADIA 22. MARIA ANDRE 23. MANOEL MORENO 24. EMILIANO FERNANDES 25. IZIDIO 26. SEVERINA MARIA DA CONCEIÇAO 27. ANA MARIA DA CONCEIÇAO 28. JOÃO ARCANJO DA CRUZ 29. MANOEL COSME 30. MARIA JOANA 31. MARIA MIGUEL 32. JULIA MARIA 33. JOSEFA MIGUEL 34. PEDRO ARCANJO DA CRUZ 35. MANOEL MIGUEL 36. JOSÉ MIGUEL 37. BEATRIS 38. ISAURA 39. MAURA 40. DIONISIA 41. GUIOMAR 42. CLOTILDES MARIA DE JESUS 43. JOSÉ MIGUEL 44. JOANA MARIA DA CONCEÇÃO 45. MARIA 46. TERESA 47. JULITA 48. FIRMINA 49. MARGARIDA 50. JULIETA 51. LAURA 52. ANTONIA 53. LAURO 54. JOSÉ MIGUEL 55. LAURO FERNANDES 56. MIGUEL FERNANDES 57. AMAURI 58. JOACI 59. MAURICIO 60. MARIA MARCIA 61. MARIA DO CÉU 62. JOANA DA CONCEIÇAO NETA 63. COSME MIGUEL 64. ANTONIA MARIA DA CONCEIÇÃO
65. JOSÉ COSME 66. JOSÉ FERNANDES VIEIRA 67. JOSÉ HERCULANO VIEIRA 68. MANOEL FERNANDES VIEIRA 69. APOLINARIA MARIA TOLENTINA 70. MARIA TOLENTINA 71. PEDRO 72. QUITINA 73. MARIA JULIA DA CONCEÇÃO 74. ISAURA 75. SEVERINO 76. MARIA FRANCISCA 77. MARIA BENVINDA 78. JOSÉ FERNANDES VIEIRA 79. FRANCISCA (CHICA) 80. JOSÉ FERNANDES DO AMARAL (Zé
de Biu) 81. JOÃO FERNANDES DA CRUZ 82. SEVERINA ROSARIO DO AMARAL 83. ROSENO 84. ROSARIO 85. ACENO 86. CHICO ROSENO 87. MARIA 88. DAMIANA 89. MARIANA 90. ANANIAS 91. BENEDITA 92. RAIMUNDO 93. DOMINGOS FERNANDES DO
AMARAL 94. SEVERINO ROSARIO DO AMARAL 95. TERESA 96. IRENE 97. BIBIANO 98. JOSÉ FERNANDES DO AMARAL
FILHO 99. ALDECI 100. ADEILSOM 101. ADMILSOM 102. ALDEMIRA 103. ALDECINA 104. ANTONIA MARIA DA CONCEIÇÃO 105. PEDRO COSME 106. SEVERINA COSME 107. ANA COSME 108. LUIZA COSME 109. MARIA 110. BELIZA 111. LUIZ 112. MARIA 113. MANOEL 114. DIONISIO 115. FRANCISCA 116. ZUMIRA 117. JOÃO GINO 118. TERESA MARIA DA CONCEÇÃO 119. MANOEL GINO 120. MIGUEL 121. ELIAS 122. PEDRO 123. MATILDE 124. PAULINA 125. JOSEFA 126. INACIO
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
269
127. ANTONIO 128. PETRONILA 129. MARIA 130. FRANCISCA 131. GORETE 132. SEBASTIANA MARIA DA
CONCEIÇÃO 133. FRANCISCO 134. AUGUSTO 135. GERONIMO 136. AUGUSTO 137. PAULO 138. MARIA 139. DESCONHECIDO 140. VITORIA 141. ISAQUE NEWTOM 142. MARIA ISABEL 143. JOSEFA 144. MISSIAS 145. MOISES 146. MARIA DAS DORES 147. ALEXANDRE 148. ALEILSOM 149. ALESSANDRA 150. HELIENE 151. ADISOM
277
Documento 11 - Registro de óbito de José Fernandes Vieira.
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271
Documento 12 - Mapa das terras solicitadas (Reunião 22/04/07).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
272
Documento 13 - Mapa das terras solicitadas (Reunião 06/05/07).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
273
Documento 14 - Mapa explicativo dos limites oeste do território (Dodoca
09/05/07).
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
274
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
275
Tabela 9 - Perfil dos moradores de Boa Vista (dados levantados a partir do cadastramento das famílias quilombolas - INCRA).
Nº CRIANÇAS ATE 14 ANOS
ESCOLARIDADE RENDA FAMILIAR R$
LAÇOS DE PARENTESCO/OBS
0 3ºSERIE 600 Não quilombola
0 FUNDAMENTAL 400 Vive com parentes em casas separadas da comunidade.
1 FUNDAMENTAL 415 -
2 FUNDAMENTAL 195 Filha adulta que mora com os pais
0 ? 700 -
1 FUNDAMENTAL 565 Mora com sua família e toma conta do tio
1 FUNDAMENTAL 350 -
3 FUNDAMENTAL 95 Mora numa casa emprestada (parente)
0 5ºSERIE 700 Filho adulto mora com a mãe
0 FUNDAMENTAL 700 -
0 ? 1.100 Filha mora com o casal (idoso) e tomam conta de um neto de um outro filho
0 2ºSERIE 700 -
0 FUNDAMENTAL 350 Mora na casa do sobrinho
0 FUNDAMENTAL 700 Mora com filhos adultos
0 FUNDAMENTAL 350 Mora numa casa sozinha, perto do irmão e da cunhada.
0 FUNDAMENTAL 700 Maria de pedro
0 4ºSERIE 700 Não quilombola
0 FUNDAMENTAL 700 Um casal sem filhos (idosos)
0 FUNDAMENTAL 700 -
0 FUNDAMENTAL 350 -
2 FUNDAMENTAL 845 -
2 FUNDAMENTAL 445 -
7 FUNDAMENTAL 445 -
1 FUNDAMENTAL 400 -
1 FUNDAMENTAL 350 Viúva
2 2°GRAU 350 -
0 4ºSERIE 350 Chefe de família não quilombola, casado com uma quilombola
4 FUNDAMENTAL 445 Mora com parentes em casas separadas do resto do grupo
2 2°GRAU 95 Viúva
1 FUNDAMENTAL 150 Trabalha como empregada doméstica na casa de uma vizinha
1 FUNDAMENTAL 0 Vive com os pais
R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
276
1 FUNDAMENTAL 260 -
1 2°GRAU 180 -
2 2°GRAU 600 Presidente da Associação, vive próximo à sogra
4 FUNDAMENTAL ?
1 FUNDAMENTAL 700
277
Documento 15 - Resenha de Parelhas
(2005).
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R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
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R e l a t ó r i o A n t r o p o l ó g i c o - B o a V i s t a / R N 2 0 0 7
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