Relações Entre Modernidade e Esoterismo Na América Latina_Texto Completo

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Relações entre Modernidade e Esoterismo na América Latina: a Gnose de Samael Aun Weor Marcelo Leandro de Campos 1 Resumo Na presente comunicação, pretende-se dialogar com as bases teóricas que consideram o imaginário mágico-hermético como um dos eixos estruturantes da Modernidade, a partir do Renascimento Italiano. Trata-se da compreensão de que as mudanças que ocorrem no campo religioso ocidental, a partir do triunfo da modernidade e dos processos de secularização então desencadeados, não podem ser compreendidas em sua totalidade sem levar em conta essa dimensão estruturante. Tradicionalmente ligados a cursos de Teologia, sobretudo no caso brasileiro, os estudos sobre religião e religiosidade no contexto da modernidade ocidental deles herdaram a tendência de conferir um papel extremamente marginal às manifestações espiritualistas externas ao campo institucional das igrejas cristãs e, particularmente, do catolicismo. É importante destacar que, desde a década de 1960, existe uma crescente produção acadêmica, sobretudo no campo historiográfico, sobre o esoterismo no ocidente, a partir de estudos sobre o renascimento italiano e o contexto histórico e cultural que marcou o nascimento da modernidade. Nossa proposta é estudar a dialética entre universo encantado e discurso iluminista presente no esoterismo ocidental, como parte dos processos de adaptação do campo espiritualista ao novo cenário secularizado da sociedade moderna. Com este propósito escolhemos, como objeto específico, uma escola esotérica criada por Samael Aun Weor na Colômbia, em 1950, o Movimento Gnóstico Cristão Universal, uma instituição que se associa à tradição gnóstica dos primeiros séculos do cristianismo. Nosso objetivo específico é compreender como ocorre a secularização das próprias doutrinas esotéricas e, em que medida, elas influenciam a formação do novo cenário das 1 Historiador, Mestrando em Ciências da Religião pela PUC Campinas.

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Analise do esoterismo e suas transformações perante a modernidade e a sociedade secularizada. Secularização do esoterismo.

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Relaes entre Modernidade e Esoterismo na Amrica Latina: a Gnose de Samael Aun Weor

Relaes entre Modernidade e Esoterismo na Amrica Latina: a Gnose de Samael Aun WeorMarcelo Leandro de Campos

ResumoNa presente comunicao, pretende-se dialogar com as bases tericas que consideram o imaginrio mgico-hermtico como um dos eixos estruturantes da Modernidade, a partir do Renascimento Italiano. Trata-se da compreenso de que as mudanas que ocorrem no campo religioso ocidental, a partir do triunfo da modernidade e dos processos de secularizao ento desencadeados, no podem ser compreendidas em sua totalidade sem levar em conta essa dimenso estruturante.

Tradicionalmente ligados a cursos de Teologia, sobretudo no caso brasileiro, os estudos sobre religio e religiosidade no contexto da modernidade ocidental deles herdaram a tendncia de conferir um papel extremamente marginal s manifestaes espiritualistas externas ao campo institucional das igrejas crists e, particularmente, do catolicismo. importante destacar que, desde a dcada de 1960, existe uma crescente produo acadmica, sobretudo no campo historiogrfico, sobre o esoterismo no ocidente, a partir de estudos sobre o renascimento italiano e o contexto histrico e cultural que marcou o nascimento da modernidade.

Nossa proposta estudar a dialtica entre universo encantado e discurso iluminista presente no esoterismo ocidental, como parte dos processos de adaptao do campo espiritualista ao novo cenrio secularizado da sociedade moderna. Com este propsito escolhemos, como objeto especfico, uma escola esotrica criada por Samael Aun Weor na Colmbia, em 1950, o Movimento Gnstico Cristo Universal, uma instituio que se associa tradio gnstica dos primeiros sculos do cristianismo. Nosso objetivo especfico compreender como ocorre a secularizao das prprias doutrinas esotricas e, em que medida, elas influenciam a formao do novo cenrio das religiosidades da chamada Nova Era na contemporaneidade latino-americana, e contribuir com os estudos que vm explorando as relaes reversivas entre modernidade e imaginrio mgico-esotrico, restituindo ao seu contexto histrico toda uma importante tradio cultural, religiosa e esotrica que marginalizada com o triunfo do discurso de uma modernidade exclusivamente racionalista.Palavras-chave: gnosticismo samaeliano, secularizao, reencantamento.

Modernidade

Quando falamos em modernidade, no campo das cincias humanas e sociais, estamos nos referindo tanto a um perodo histrico (a Era Moderna) quanto a um conjunto de normas, atitudes e prticas scio-culturais que surgem na Europa, se desenvolvem e se espalham pelo mundo, constituindo um processo histrico e cultural que impacta de maneira decisiva o curso da cultura humana (BERMAN 2010, 15-36), inclusive a experincia subjetiva ou existencial, produzindo uma relao especial com o tempo, caracterizada por uma intensa descontinuidade ou ruptura histrica, a abertura novidade do futuro, e uma maior sensibilidade para o que nico no presente.

Enquanto uma categoria histrica, designa um periodo marcado pela transio do feudalismo ao capitalismo; a nvel de mentalidades, a tradio cede lugar ao entusiasmo pelo novo, h um questionamento e ruptura com o pensamento teocntrico; o racionalismo e as cincias empricas tornam-se dominantes no horizonte cultural; o novo esprito iluminista marcado pela f num progresso contnuo a nvel social, cientfico e tecnolgico (FOUCAULT 1995, 17077); o pensamento ontoflico, centrado no Ser, cede lugar ao pensamento epistemoflico, centrado nas possibilidades cognitivas de acessa-lo e orientado para os meios pelos quais podemos nos assegurar do que conhecemos (POND 2001, p. 25) .

Ironicamente, porm, o termo usualmente utilizado como sinnimo de todo esse processo, modernidade, foi criado exatamente em sentido profundamente crtico; a palavra encontrada pela primeira vez num ensaio de Baudelaire intitulado O pintor da vida moderna, de 1864; falando sobre os pintores contemporneos, o autor chama a ateno para forma como alguns deles retratam a fugacidade e o efmero que constituem a experincia da vida nas novas metrpoles urbanas (KOMPRIDIS 2006, 32-59): A Modernidade o transitrio, o efmero, o contingente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutvel (BAUDELAIRE, p. 25).

A Modernidade, no sentido de progresso cientfico e tecnolgico, alimenta expectativas utpicas que, longe de se concretizarem, conduzem a novas realidades carregadas de tenses; Peter Berger retrata a modernidade como uma gaiola de ferro, e Paul Heelas fala em incertezas da modernidade: a racionalizao das sociedades modernas passa a ser percebida pelos indivduos como controle e limitao; as pessoas tornam-se annimas num mundo de produo em massa, as formaes culturais que sustentam tradicionalmente a identidade so destrudas, criando uma sensao de insegurana e perda de referncias. H uma decepo com o triunfo de uma sociedade capitalista onde o trabalho alienante, os polticos so corruptos e a cultura de consumo est minando o futuro do planeta. Tudo isso produz um movimento de reao em que, de um lado, h a seduo por discursos de libertao da represso das instituies; de outro, um movimento em direo dimenso que transcende o humano, em busca de segurana (HEELAS 1996, p. 140-147). Se pensarmos num modelo funcionalista, o universo mgico teria a funo de lidar com as frustraes produzidas pelas recorrentes crises nos processos de racionalizao da sociedade moderna; sua emergncia seria diretamente proporcional crise da viso de mundo dominante e incapacidade das formas religiosas tradicionais de lidar com o novo cenrio (GOODRICK-CLARKE 2008, p. 13); em outras palavras, o avano da modernidade exigiria um mecanismo de reencantamentos regulares para lidar com as tenses criadas pelo prprio processo.

cada vez mais dominante, no entanto, uma viso do magismo como um componente estrutural da modernidade; o motu principal da modernidade, a transio de uma viso teocntrica para uma viso antropocntrica teria, historicamente, um forte componente mgico, na medida em que uma concepo de universo governado por foras mgicas preconiza a subordinao destas foras vontade do mago; nesse sentido, a disposio do cientista, que busca compreender e dominar as leis da natureza , idntica do mago, somente diferindo deste na dimenso de como operacionalizar isso. A historiadora inglesa Frances Yates (1899-1981), especialista no Renascimento Italiano, foi a primeira estudiosa de destaque a chamar a ateno para o papel estrutural ho hermetismo mgico e do esoterismo no mundo moderno: em seu livro Giordano Bruno e a Tradio Hermtica, de 1964, ela defende que o imaginrio hermtico constitui o ponto de partida do pensamento humanista e do mtodo cientfico; a guinada que conduz o homem em direo a uma viso antropocentrista teria uma motivao essencialmente gnstica (YATES, 1991: 492).

Yates centrou seus argumentos sobre a figura de Giordano Bruno, at ento aceito de forma unnime como um mrtir da cincia. Para ela o imaginrio mgico do hermetismo sobre a proeminncia mgica do Sol que faz Giordano se inclinar com entusiasmo para as idias heliocntricas de Coprnico; e seria justamente sua militncia em torno de idias hermticas a real responsvel por sua conduo fogueira (idem: 392).

O historiador Wouter Hanegraaff, fundador da European Society for the Study of Western Esotericism (ESSWE), destaca a complexidade que envolve as figuras do Renascimento, e o reducionismo que os rtulos identitrios mais usualmente utilizados produz: figuras como Picco dela Mirandola e Giordano Bruno possuem interesses multifacetados que incluem misticismo, alquimia e as leis naturais; so ao mesmo tempo filsofos, magos e humanistas, e sua compreenso envolve o desafio de estudar as relaes entre suas vrias dimenses identitrias (HANEGRAAFF, 2004: 508-512).

Alex Owen, em sua obra The Place of Enchantment: British Occultism and the Culture of the Modern (2004), chama a ateno para um verdadeiro Renascimento Mgico que ocorre nos anos do apogeu do iluminismo ingls, em pleno final do sculo XIX. Ela dirige sua crtica teoria weberiana de entzauberung, desencantamento; Weber sugere uma oposio natural entre encantamento e a sociedade moderna, que estaria alinhada com processos secularizantes de racionalizao e intelectualizao, que conduzem diminuio do papel da religio enquanto eixo estruturante da sociedade. Owen considera um equivoco utilizar o termo desencantamento para fazer referncia a essa questo religiosa, e chama a ateno para os enormes conflitos que a modernidade suscita: se h, de um lado, uma viso triunfante o otimista em relao aos novos tempos, por outro lado h uma crescente preocupao e ansiedade com o rumo das mudanas, e a percepo da modernidade como decadncia de valores. A partir do trabalho de historiadores como H. Stuart Hughes, Jos Harris e Owen Chadwick, Alex Owen demonstra que h um crescente interesse por novas formas de espiritualidade desde o final do sculo XIX, como parte de mudanas na prpria sensibilidade religiosa britnica, em plena Belle Epoque; de fato, est ocorrendo na verdade um encantamento, na medida em que h um crescente interesse pelo mgico, pelo numinoso, e por um estado de esprito aparentemente em desacordo com a perspectiva moderna. Owen chama isso de resgate do irracional, uma viso que vai permitir o progresso na compreenso do funcionamento da mente e da conscincia e a percepo de que h uma relao dinmica entre o racional e o irracional. Estudando os debates intelectuais que circulam no fin de sicle e ao longo da primeira dcada do sculo XX, Alex Owen argumenta que as idias ocultistas podem ser interpretadas como parte dos experimentos para a formao de uma nova subjetividade, adaptada s exigncias da modernidade. O que, paradoxalmente, situaria o ocultismo no centro da vida intelectual britnica anterior 1914, e, portanto, no corao da mentalidade moderna britnica (WALTERS 2007, p. 23-25). Owen observa que forjar uma afinidade com a cincia foi uma das principais estratgias adotadas pelo ocultismo em seu projeto de "remodelar a espiritualidade":The new occultism in particular co-opted the language of science and staked a strong claim to rationality while at the same time undermining scientific naturalism as a worldview and rejecting the rationalist assumptions upon which it depended (OWEN 2004, p. 13).

O objetivo de nossa pesquisa, realizada no mbito do mestrado em Cincias da Religio da PUC Campinas e orientada pela professora Ana Rosa Cloclet, justamente verificar como se realiza essa relao estrutural entre modernidade e esoterismo na Amrica Latina; para isso nos propusemos a analisar a literatura doutrinria de uma escola esotrica colombiana, o Movimento Gnstico Cristo Universal, fundado por Victor Manuel Gmez, autointitulado Mestre Samael Aun Weor.Esoterismo

imporante esclarecer o que entendemos por esoterismo, dada a variedade de significados que o termo adquiriu a partir da dcada de 1960. As tradies esotricas ocidentais tm suas razes no Mediterrneo romanizado, nos primeiros sculos da era crist; so fruto de uma combinao da filosofia grega com os cultos de mistrios como o orfismo e o mitrasmo, uma filosofia religiosa ou religio filosfica, que rene percepes filosficas sobre o homem (antropologia), a existncia e a realidade (ontologia), o cosmos e a natureza. Tais ideias se relacionam com questes religiosas como a sacralizao da natureza e do si mesmo, alm de uma concepo holstica do universo.

Uma de suas caractersticas a teoria das correlaes cosmolgicas (correspondncia entre o microcosmo e o macrocosmo). Tais noes de correspondncias simblicas entre terreno e divino so herdadas do pensamento platnico, bem como o conceito de alma diferenciada do corpo humano. Sob tal perspectiva, a filosofia perde sua funo dialtica e passa a ser cultivada como um modo de alcanar o conhecimento intuitivo das coisas (gnose) a partir de uma experincia de xtase, de iluminao. O hermetismo, por sua vez, surge como uma religio filosfica, que contem uma revelao (gnose), sendo a priso da alma no corpo e sua aspirao de retorno ao lar o motivo recorrente na literatura gnstica (YATES, 1991: p. 16).

O imaginrio hermtico experimentou um importante processo de institucionalizao e difuso na antiguidade tardia; em seguida foi alvo de uma sistemtica perseguio por parte do cristianismo ortodoxo e praticamente desaparece do horizonte histrico nos sculos seguintes. a partir da redescoberta de textos da antiguidade, vindos para a Europa a partir da queda de Constantinopla, no final do sculo XV, que surge um renovado interesse pelo hermetismo. O imenso interesse despertado pelos textos inaugura o hermetismo renascentista e, no crculo erudito de pensadores humanistas - sobretudo, na Itlia -, surge uma intensa produo de textos sobre magia, astrologia, alquimia e Cabala.

nesse ponto que entram os estudos da Histria do Esoterismo Ocidental: historiadores como Frances Yates, Pierre Rifard, Antoine Faivre e Wouter Hanegraaff chamam a ateno para a ntima relao entre o imaginrio hermtico e a cultura humanista renascentista, e sua importncia na formao de um ambiente cultural favorvel ao desevolvimento cientfico. Ao mesmo tempo, procuram demonstrar que as escolas esotricas somente se institucionalizam e desenvolvem medida que encontram um ambiente social onde estejam presentes processos de secularizao e laicizao. Isso explica, em grande medida, que as primeiras escolas esotricas europias tenham seu bero em pases protestantes, como Alemanha e Inglaterra, ou em pases catlicos onde a burguesia teve xito em operar uma forte secularizao de suas instituies poltico-sociais, quebrando assim o monoplio sobre prticas e idias religiosas exercido pela Igreja Catlica. O exemplo europeu, clssico, a Frana, bero do Martinismo e de grandes esoteristas como Martines de Pasqualis e Eliphas Levi.

Esse modelo estrutural se repete nas amricas: as instituies esotricas se institucionalizam a partir dos Estados Unidos protestante, desde a segunda metade do XIX, e no Mxico aps a revoluo de 1910; a proximidade geogrfica com os Estados Unidos e a precoce consolidao de uma sociedade laica faro com que Mxico, Cuba e Porto Rico se tornem o trampolim a partir da qual o esoterismo institucionalizado chegar a toda Amrica. Assim, ns temos a Sociedade Teosfica nascendo na cidade de Nova Iorque, em 1875; nessa mesma cidade surge, em 1915, uma das maiores instituies esotricas da modernidade, a Antiga e Mstica Ordem Rosacruz (AMORC), fundada por Harvey Spencer Lewis (1883-1939); Max Heindel (1865-1919), outro pioneiro do esoterismo americano, aps alguns anos de participao intensa em sociedades teosficas, fundou em 1909 a Fraternidade Rosacruz, em Oceanside, Califrnia.

No caso da AMORC, a loja de Porto Rico fundada em 1916; a primeira loja mexicana surge em 1919; a rpida expanso pela Amrica Latina vai levar constituio de uma Seo Hispano-Americana na sede mundial, em 1926. A Sociedade Teosfica chega Cuba em 1905, e no ano seguinte a Porto Rico e Mxico.

A chegada e circulao das idias esotricas na Amrica Latina segue basicamente o mesmo roteiro das idias iluministas e das utopias poltico-sociais que agitam o Velho Continente a partir do sculo XVIII: elas chegam trazidas por estudantes oriundos das famlias tradicionais que vo estudar na Europa ou atravs de comerciantes cujos negcios os colocam em contato com os dois continentes.

O esoterismo acolhido e se expande em crculos burgueses fortemente comprometidos com as novas idias vindas da Europa e Estados Unidos; seu espao natural so os grandes centros urbanos, onde ocorre intensa circulao de idias e se pode com relativa liberdade praticar um discurso anticatlico. Em suas primeiras dcadas as instituies esotricas vo se desenvolver principalmente nos crculos manicos, constitudos em sua maioria por comerciantes, profissionais liberais, funcionrios pblicos, militares e acadmicos.A Gnose e Samael Aun Weor

O Movimento Gnstico, fundado na Colmbia, em 1950, inicialmente como uma dissidncia da Antiga Ordem Rosacruz, teve seu primeiro fluxo de expanso direcionado para o norte; devido perseguio que a instituio vivia por parte da Igreja Catlica e das instituies rosacruzes, Samael mudou-se para o Mxico, em 1955, de onde os gnsticos progressivamente espalharam-se para o mundo todo. Seu projeto original era atingir os Estados Unidos e a partir de l atingir a Europa; mas a Gnose samaeliana esbarrou numa dificuldade imprevista, o enorme preconceito com que os missionrios latinos eram recebidos na sociedade norte-americana, o que fez com que ela ficasse limitada s comunidades latinas, no sul do pas; o sonhado salto em direo Europa somente vai ocorrer na dcada de 1970, a partir de missionrios que trabalhavam no Canad.

A doutrina de Samael revela, em linhas gerais, as tenses inerentes relao entre esoterismo e modernidade, num discurso ambguo que constitui, ao mesmo tempo, uma reao da espiritualidade aos valores modernos e uma forte apropriao de elementos do discurso racionalista-cientfico, esgarando a possibilidade de combinaes mltipas entre mentalidade crist, tradies mstico-esotricas e racionalismo secular. No primeiro momento h uma defesa da tradio, com uma crtica severa ao materialismo e individualismo vigentes e um apelo de volta s origens do cristianismo primitivo, da qual os gnsticos samaelianos se consideram representantes. No segundo h, como na Teosofia, um esforo em apresentar as prticas esotricas como tcnicas de experimentao cientfica das realidades metafsicas, seguidas de um esforo erudito para explicar racionalmente as leis que governam estes fenmenos; o rtulo de religioso preterido por termos como cincia gnstica ou conhecimento mstico-cientfico; Samael, amide, definido por seus seguidores como um antroplogo.

Um exemplo eloqente desta ambigidade discursiva pode ser observado na prtica que constitui o cerne da doutrina samaeliana, o exerccio de Magia Sexual. Os gnsticos samaelianos acreditam que o desenvolvimento espiritual pleno do ser humano inclui um trabalho de criao de corpos em outras dimenses da natureza, como o mundo astral e o mundo vital; estes corpos serviriam como veculos de manifestao para a conscincia e o processo de criao depende das secrees sexuais produzidas pelo corpo fsico. Estas secrees so sublimadas atravs de uma tcnica elaborada de Ioga sexual, uma apropriao de exerccios tntricos da religiosidade hindu, conhecidos como Sahaja Maithuna, em que ocorre a unio sexual sem que se chegue ao orgasmo. O discurso que legitima a prtica baseado na tradio: essa tcnica teria sido conhecida por todos os povos antigos; o prprio Jesus, no imaginrio gnstico, teria sido um praticante de Magia Sexual, auxiliado, nesse sentido, por sua esposa espiritual, Maria Madalena.

Um segundo discurso, fortemente cientificista, explica o modus operandi e a efetividade do exerccio, a partir do impacto que o exerccio teria sobre as glndulas endcrinas do organismo e a produo de hormnios e outras secrees fisiolgicas, descrevendo uma srie de experimentos mdicos e cientficos que apoiariam estas afirmaes. Finalmente, estas explicaes evoluem para uma anatomia oculta, resultado das experimentaes metafsicas do prprio Samael, em que ele relaciona as reaes dos diferentes rgos do corpo com seus pontos energticos, os chakras; os quais, por sua vez, esto ligados s outras dimenses do universo e aos veculos espirituais do praticante.

Concluindo, essa estrutura discursiva e doutrinria comum a diversos grupos espiritualistas e esotricos, o que sugere uma forma funcional de lidar com demandas comuns do homem moderno. O que nos traz de volta a dois elementos que j abordamos nesse texto: de um lado, a leitura de Nicholas Goodrick-Clarke, de que as tenses criadas pela modernizada requerem um mecanismo regular de reencantamentos; do outro, a interpretao de Alex Owen, de essa busca por uma conciliao entre uma perspectiva racionalista com um forte interesse pelo mgico e pelo numinoso constitui, de fato, parte do processo de formao de uma nova subjetividade, adaptada s exigncias da modernidade, e produzindo uma variedade de novas propostas espiritualistas cuja vitalidade constitui, talvez, um dos retratos mais evidentes da crise da prpria modernidade.

Bibliografia

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BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. New York and Toronto: Vintage Books, 1995.

GOODRICK-CLARKE, Nicholas. The Western Esoteric Tradition: a historical introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008.

HANEGRAAFF, Wouter. The Study of Western Esotericism New Approaches to Christian and Secular Cultur, in Peter Antes, Armin W. Geertz, Randi R.Warne. New Approaches to the Study of Religion, pp. 489-566; Berlim: Walter de Gruyter, 2004.

HEELAS, Paul. The New Age Movement. Cornwall: Blackwell, 1996.KOMPRIDIS, Nikolas. The Idea of a New Beginning: A Romantic Source of Normativity and Freedom. In Philosophical Romanticism. New York: Routledge, 2006.

OWEN, Alex. The Place of Enchantment: British Occultism and the Culture of Modern. Chicago: Chicago University Press, 2004.

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YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradio Hermtica. So Paulo: Circulo do Livro, 1991.

____________ . The Rosicrucian Enlightnment. Londres: Edighoffer & Roland, 1971. Historiador, Mestrando em Cincias da Religio pela PUC Campinas.

As caractersticas gnsticas da modernidade so defendidas, entre outros, pelo filsofo alemo Eric Voegelin; ele destaca, por exemplo, o que ele chama de imanentizao do significado da existncia, a converso de poderes divinos em capacidades do homem, como uma idia gnstica que vai conduzir a elementos modernos como autodeciso individual, liberao e revoluo. Ver, a respeito, VOEGELIN, Order and History vol. V: In Search of Order, The Collected Works of Eric Voegelin, Vol. XI. University of Missouri Press, 2000.

Breve Histria sobre la creacion de la Gran Logia Hispanoamericana de AMORC. Disponivel em: HYPERLINK "http://www.biblioteca.amorc6.org/historia-y-tradiciones"http://www.biblioteca.amorc6.org/historia-y-tradiciones; ST: Nuestra historia en Puerto Rico; de Aramis Lpez Tirado; disponvel em: HYPERLINK "http://sociedadteosoficapr.org/histo_pr.htm"http://sociedadteosoficapr.org/histo_pr.htm; Site oficial da ST no Mxico: HYPERLINK "http://www.sociedadteosofica.mx/somos.html"http://www.sociedadteosofica.mx/somos.html

Passado, Presente y Futuro de la Francmasoneria. VALLEJO, Victor Hugo, 2001; disponivel em: HYPERLINK "http://www.astroescuela.com/logiarmonia39/contenido/documentos/politano/pasado_presente.htm"http://www.astroescuela.com/logiarmonia39/contenido/documentos/politano/pasado_presente.htm

Sobre Magia Sexual, ver WEOR, Samael. O Matrimnio Perfeito. So Paulo: MGCUBNO, 1991.

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