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Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
Jardim, Katita; Dimenstein, Magda
A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 150-160
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773015
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150 ARTIGO OIUGINAL I ORIGINAL ARTlCLE
A crise na rede: o SAMU no contexto
da Reforma Psiquiátrica
The crisis on network: SAMU at Psychiatric RefOrm context
Katita Jardim I
Magda Dimenstein 2
I Psicóloga; mestre em Psicologia
pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal
do Rio Gr.wde do None (UFRN);
supervisora clín ico-insrirucional
do Centro de Apoio Psicossocial
(CAI'S) Irmã Augusrinha; Membro da
coordenação pedagógica da Escola
Técnica do SUS de Sergipe.
kari ra.jardi [email protected]
2 Psicóloga; dourara em Saúde Mental
pelo Instiruro de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio deJaneiro
(IPUB/UFRj); docente do Pcogrnma de
Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
RESUMÜ Esta pesquisa investigou as prdticas dos profissionais do Sistema de
Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no que diz respeito aos atendimentos
psiquidtricos na cidade de Aracaju (SE) esuaspossíveis articulações com a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPs). A primeira etapa da pesquisafói realizada através de
entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do SAMU. Os resultados indicam
que a concepção de urgênciapsiquidtrica deles se baseia no conceito de agressividade
e que o tempo gasto nas ocorrências psiquidtricas e a falta de capacitação em
Saúde Mental dificultam o tramcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa,
participamos das reuniões de comtrução do protocolo psiquidtrico do SAMU.
PALAVRAS-CHAVE: Crise; Urgência; Saúde Mental.
ABSTRACT This research investigated the profissional practices from SAMU
(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city
ofAracaju (SE), Brazil, and its possible articulatiom to psychosocial services
network. Fieldwork first step was made with SAMU workers by semi-structured
interviews. The results indicate that their urgencypsychiatric conception is based
on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support
and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The
second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol
fór SAMU.
KEYWüRDS: Crisis; Urgency; Mental Health.
Apoio financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamenro de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
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JARDIM. K.: DIMENSTEIN. M. • A crise na rede: o SAMU no comcxlo da Reforma Psiquiálrica 151
INTRODUÇÃO
Com o avanço da luta pela consolidação da Refor
ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final
da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor
tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.
Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de
Luta Antimanicomial (MNLA) e da Reforma Psiquiá
trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os
caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise.
Se o intuito da Reforma Psiquiátrica é questio
nar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o
hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,
preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral
e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual
posicionamento admamos diante de uma pessoa em
crise. É imponante mencionar que as situações de crise
são um dos principais motivos de internação psiquiátrica
no Brasil atualmente OARDIM, 2008).
Isso porque, nesses momentos, a Rede de Atenção
Psicossocial (RArs) que deveria se responsabilizar também
pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à Rede
de Urgência e Emergência (REUE). A REUE é uma das
mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da-estrutura de rede pensada para organizar OSistema Unico
de Saúde (SUS), a RArs e a REUE têm linguagem, timinge
aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,
chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.
Assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências
(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem
regular a demanda diretamente para dentro dos grandes
hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou
comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera
damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos
serviços substitutivos. Tais serviços passam a operar como
meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de
passagem, visto que no momento de maior necessidade
'devolvem' o louco ao manicômio. Por isso, se faz neces
sária uma discussão acerca da atenção à crise não somente
pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões
imer-redes, envolvendo também a REUE e outras.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi
gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da
Política Nacional de Atenção às Urgências, o Serviço
de Atendimemo Móvel de Urgência (SAMU), frente às
ocorrências psiquiátricas, bem como as arriculações desse
serviço com a RArs do município de Aracaju (SE).
Algumas definições
Antes de começarmos a falar sobre o histórico do
SAMU, é importante conceituarmos urgência e emergên
cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo
serviço. As várias definições destes termos ainda não são
claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as
usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,
vamos delimitar O sentido em que estamos utilizando
esses termos para fins de esclarecimento do leitor.
Urgência é uma "ocorrência imprevista de agravo à
saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo ponador
necessita de assistência imediata" (FERNANDES, 2004, p. 2).
Ponanto, a urgência se caracteriza por uma situação em
que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem
risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con
siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica
da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com
necessidade de imobilizaçãO e crises de asma. É no âmbito
da Urgência que se localiza o atendimemo psiquiátrico.
Já a emergência é definida como a constatação de
condições de agravo à saúde que implicam em risco
de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,
normalmente caracterizadas por declaração do médico
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assistente. Os exemplos seriam as hemorragias, ataques
cardíacos, amputamentos etc. (FERNANDES, 2004). A
escolha dos conceitos foi feita mediante comparação
de algumas definições de urgência e emergência (CON
SELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1995; STERIAN, 2002;
FERNANDES, 2004 e CAMPOS, 2005), que nos levaram
à constatação de que, salvo algumas divergências, elas
convergem para o exposto.
Em 1986, foi criado no Rio de Janeiro O Grupo de
Socorro e Emergência (GSE) que finalmente contava
com uma equipe composta por médico e enfermeiros
da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.
Foi nesse contexto que o SAMU foi instituído no Brasil,
mais especificamente na cidade de São Paulo, através de
um acordo bilateral com a França. O SAMU brasileiro é
estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se
em muitos conceitos do modelo americano para seus
treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma
Life Suport (PHTLS) 1•
Só em 2002, com a instauração da Política Nacional
de Atenção às Urgências, que o SAMU deixou de ser um
serviço opcional existente em algumas cidades, passando
a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo
pré-hospitalar de urgência. O serviço foi regulamentado
através da Portaria 1864 GM de 29 de setembro de 2003
(BRASIL, 2002; BRASIL, 2003).
Deste modo, conta com uma equipe composta por
médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma
gem, condurores veiculares e aqueles responsáveis pelo
suporte na central de regulação', Técnicos Auxiliares de
Regulação Médica (TARMS) e rádio operadores. O SAMU
atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,
gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona
segundo regulação médica concernente à gestão dos
Auxos de ofertas de cuidados médicos, criando as ocor
rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos
públicos (BRASIL, 2002; BRASIL, 2003). É a regulação
médica que interliga o Atendimento Pré-hospitalar
(APH) ao hospital. A função do médico é:
julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar osrecursos necessários ao local, monitorar e orientar oatendimento realizado por outroprofissionalde saúde{ ..} ou [..}por umpopular. Define eaciona ohospitalde reftrência ou outro meio ao atendimento necessário.(SÃo PAULO, 2001 apud CAMPOS, 2005, p. 16).
A partir do recebimento de uma chamada na central
reguladora, atendida por um TARM, que deve acalmar o
solicitante e preencher um formulário eletrônico com a
localização da vítima, dados detalhados do local, pontos
de referência e o motivo da chamada. A partir de então,
o TARM passa a ligação para o médico regulador que
avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de
mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação
médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a
ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já
que há dois tipos de ambulância no SAMU: as Unidades
de Suporte Básico (USBs), que contam com urna equipe
de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as
Unidades de Suporte Avançado (USAs) com uma equipe
formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor
veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de
Tratamento Intensivo (UTI). Depois disso, o médico
decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será
direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para
receber o usuário.
1 Prehospiral Trauma Life Supporr Commirree and rhe Narional Associarion of Emergency Medical Technicians in cooperarion with the Commirree on Traumaof the American College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospiral trauma life supporr. 4- ed. St. Louis.
2 A regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de Atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, qualificando O Ruxo dos pacientes no Sisrema e gerando uma porta de comunicação aberra ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos,avaliados e hierarquizados. (BRASIL, 2001, p. 1).
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Hoje em dia, a rede nacional do SAMU conta com
112 unidades implantadas. No total, 924 municípios
são atendidos pelo SAMU, cerca de 92,4 milhões de
pessoas. Algumas das capitais brasüeiras que possuem a
estrutura do SAMU são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte,
Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, For
taleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,
Natal, Palmas, PortO Alegre, Porto Velho, Recife, Rio
Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo,
Teresina e Vitória3.
UM ENSAIO METODOLÓGICO
A pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira
em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro
do mesmo ano. A primeira etapa teve como corpus de
análise dez profissionais vinculados ao SAMU de Aracaju,
sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade
entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de
quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi
pe eram aux.iliares de enfermagem, três eram médicos
reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções
de coordenação: um enfermeiro também coordenador
e uma assistente social gerente (contabilizando quatro
gestores). Escolhemos informantes de influência direra
nos atendimentos psiquiátricos" na gestão das capa
citações e na regulação médica, POntOS fundamentais
para a prática. A coIera de dados foi realizada através
de entrevistas semi-estruturadas gravadas.
Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro
deles, feito para os médicos e gestores, era composto
por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/GM
e às Urgências Psiquiátricas. Abordava, além disso, a
Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men
tal e as capacitações realizadas no serviço. O segundo
roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de
enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam
bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional
de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, além da
formação técnica e das participações nos atendimentos
psiquiátricos. este momento, abriu-se espaço para
relatos de experiências.
Levando-se em consideração que o funcionamento
do SAMU se dá através de protocolos nos quais são cir
cunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada
tipo de ocorrência atendida, o fato de o SAMU não possuir
um protocolo psiquiátrico constitui um problema.
Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos
serviços responsáveis pelo atendimento às urgências
psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo
operativo, o que fazer com essa situação. Geralmente,
quem lida com isso tende a colocar a 'crise do paciente'
como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar
as necessidades e demandas excessivas da clientela que
o próprio serviço pode estar colapsando (DELL'AcQuA;
MEzzINA, 2005). Nesse ínterim, o SAMU decidiu lidar
com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:
criando um protocolo específico, uma normatização, que
serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que
não é de todo negativo, pois é necessária a construção de
um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria
problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas
e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimenro
técnico e, por fim, mortificando as relações.
Assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de
maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha
mento das reuniões para a construção do protocolo psi-
.l Boletim: hnp:/Iporral.saude.gov.br/porml/saude/visualizar_texro.cfm?idrxr:23745&janela=. l. Acesso em 6 de março de 2007.
~ Tendo em vista que os profissionais que reaJizam o arendimenro às ocorrências psiquiárricas no SAMU de Aracaju são os médicos (indirerameme. por telefone),os auxiliares de enfermagem e os condurores veiculares (direrameme. no local).
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quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos
junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,
abordaremos somente as reuniões de protocolo.
As reuniões intersetoriais contaram com uma psi
cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,
dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do
serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o
coordenador clínico do SAMU de Aracaju e da Urgência
Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São
José, órgão responsável pela regulação da demanda de
Saúde Mental na REUE, e o coordenador clínico do
SAMU estadual. Nas reuniões foram observados a relação
entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava
para idealizar esse instrumento. Além disso, a nossa
participação constituiu uma intervenção, tendo em
vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos
pelas ambulâncias do SAMU, geramos discussões a partir
dos casos assistidos e da literatura esquisada. Além da
nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de
2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns
dos participantes: uma médica sanitarista, responsável
pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na Atenção
Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento
de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro
fissionais do SAMU, quanto a sua regulação e abordagem
no local de ocorrência, o coordenador clínico do SAMU
de Aracaju e do UCM e a psicóloga representante da
coordenação de Saúde Mental.
A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,
tempo, capacitações e oprotocolo
A primeira etapa da pesquisa de campo foi cons
tituída por intermédio de entrevistas. Os dados mais
relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a
concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a
questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação
e a ausência do protocolo psiquiátrico.
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A concepção de urgência psiquiátrica foi associada
de forma unânime pelos entrevistados a 'agressividade'.
É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos
de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com
alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva
às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que
serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de
defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma
postura de medo, que acaba gerando omissão do cui
dado. Assim, ambas as posturas geralmente progridem
para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,
O SAMU conta com O auxilio do Corpo de Bombeiros,
cordas e muitas ataduras.
Além das práticas in loco, a concepção da urgência
psiquiátrica ligada à agressividade também influencia
diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,
organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou
não uma ambulância para o caso e é responsável pelo
encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde
fixo. Dessa forma, os reguladores acabam por selecionar
a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti
lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos
pelo SAMU são aqueles que não podem ser transportados
num carro comum, ou seja, os casos que precisam de
um aparato específico para imobilização. Com isso, o
SAMU reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento
psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais
em seus atendimentos.
Outra questão importante é a do tempo. Os ser
viços de urgência têm de funcionar da maneira mais
breve possível. Quando falamos em casos referentes à
Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um
dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os
atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro
vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a
tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam
resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em
realizar os atendimentos; entendem que uma garota com
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 155
asma precisa muiro mais de uma USB do que um louco
surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.
Apesar de o SAMU ter um Núcleo de Educação
Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é
ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte
ceram em 2004. Os gesrores afirmaram que a falta de
capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação
sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta
de interesse dos profissionais. Muiros técnicos afirmaram
que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri
cos; quando perguntamos o motivo, responderam não
saber como agir nesses casos. É importante ressaltar
que o SAMU é um serviço que funciona com base em
prorocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são
eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as
ocorrências. Por isso, a falta de prorocolo psiquiátrico
foi apontada como um item negativo, um agravante
desestabilizador do funcionamento do serviço.
Atualmente, está sendo desenvolvido o prorocolo
da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de Ara
caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM
e com a gestão clínica dos SAMUS estadual e municipal.
Esse prorocolo busca delinear quais critérios deverão
ser usados na regulamentação para guiar os médicos
a respeiro dos procedimenros que devem ser seguidos
no caso de ocorrências psiquiátricas. Delinear esses
procedimentos é importante para o funcionamenro do
SAMU no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra
o paciente psiquiátrico definitivamente no halldos casos
atendidos e com alta resolutividade.
Entretanto, há a necessidade de segurança e, por
isso, busca-se o controle em tudo que se faz. A estabili
dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba
por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. A
saúde é a fluidez desse processo. Assim, a formatação de
prática rígidas, como as propagadas pelo SAMU quando
5A Portaria 2048/GM e a Polírica Nacional de Saúde MeneaI.
se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um
grande problema do que de uma solução.
Configurar um serviço dessa forma não seria em
perrar os fl uxos?
Será que, em lugar de enxergarmos esse 'não saber
o que fazer' como uma grande questão a ser extirpada o
quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade
de afirmação vital?
Ao final dessa primeira experiência, percebemos que
somente entrevistas focadas na legislaçã05, na concepção
de urgência psiquiátrica e nas capaeitações não levariam
a discussão muiro longe, porque poderia desvelar pro
blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções
práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade
àpesquisa de campo com a segunda etapa, que problema
tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi
quiátricas realizadas pelo SAMU de Aracaju, mas também O
movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo
psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de
2007 e não chegou à sua conclusão até então).
Tendo em vista essa proposta, o espaço do SAMU,
como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões
levantadas, configurando o ponto de partida para se dis
cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento
dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade
premente de se organizarem estratégias que dêem conta
da atenção à Saúde Mental, o SAMU decidiu construir o
prorocolo psiquiátrico. Assim, a nossa análise foi feita
a partir do acompanhamento das reuniões do grupo
operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação
do atendimenro aos casos que entram nesse circuiro pelo
SAMU e desembocam na Urgência Clínica e Mental do
São José. Escolhemos esse destino com base na conexão
entre os dois serviços: o SAMU como a porta de entrada
da demanda e a UCM de São José como regulador do
fluxo das urgências psiquiátricas na rede.
Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. 11. 78/79/80. p. 150-160. jan.ldt.oz. 2008
156 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica
Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões
de construção do protocolo psiquidtrico
Em maio de 2007, o SAMU fervilhava em meio a
uma crise decorrenre de um processo que se arrastava
desde a aberrura do serviço, quando a Porraria 1864/
GM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada
(BRASIL, 2003). A Porraria, que instirui o SAMU como
dispositivo móvel da Política Nacional de Atenção às
Urgências (BRASIL, 2002), estrurura um serviço capaz
de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o
mal-esrar nos lugares mais distanres, ainda que houvesse
a necessidade de os profissionais ficarem pendurados
numa corda de rappel para um salvamenro verrical
ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. Os
técnicos do SAMU devem se rornar agenres preparados
para enfrenrar qualquer siruação, com 'nervos de aço'
construídos sob um considerável alicerce idenritário.
Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um
serviço como o SAMU, mas a comoção gerada pelas ur
gências psiquiátricas levantava questões rodos os dias. Os
médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia
res de enfermagem tinham medo de serem assassinados
duranre os atendimenros, o relacionamenro com a UCM
era complicado e com os CAPS, inexistenre. Surgiu, enrão,
a necessidade de se idealizar um prorocolo psiquiátrico.
Nesse senrido, ficou decidido que o delineamento
desse prorocolo seria feiro em conjunro pela Saúde
Menral e pela UCM, o que conrribuiria para conectar
a rede. Entretanro, estavam sempre lidando com uma
linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar
na simples criação de uma normalização para diminuir
a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços• • •mqUleros com as suas Incerrezas.
Não era só o SAMU que estava em crise. A UCM tam
bém dava seus sinais. A sua atribuição de urgência clínica
foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,
rodos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento
foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,
Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 150-160, janJdez. 2008
que fazia parre da equipe, deixou de ser plantonista e
passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia
e checar todos os internos. O caso é preocupante. Alguns
pacientes com diagnóstico prévio de transrorno psiquiátri
co com intercorrências clínicas que foram encaminhados
para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a
óbito graças à falta de estrutura do serviço.
Geralmente, nos casos em que o solicitanre atesta
que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui
átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não
existe conexão direta ou indireta nem encaminhamenros
para a RAPs ou para um núcleo de Atenção Básica: o
atendimento delegado à REUE começa e termina em si
mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um
circuiro mortificado.
O primeiro passo para o 'tratamenro' da crise em
ambos os serviços foi programado para ser a construção do
prorocolo. No enranro, o que poderia dar, de faro, corpo
à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói
ao longo desse processo: a aproximação dos gesrores a fim
de se formar uma rede de apoio social, a familiarização
com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes
de dar suporre aos trabalhadores e aos usuários.
Problemas de articulação da rede surgiram aos mon
tes. O SAMU não enrendia porque os CAPS têm carros
próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um
de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. A
prioridade do SAMU é atender pessoas que estejam nas
ruas, pacienres encaminhados de algum outro serviço
ficam em segundo lugar na escala de prioridade. A gestão
do SAMU justifica que pacientes nos serviços estão mais
bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,
podendo, dessa forma, esperar para serem transporrados.
Quando, em uma das reuniões, os represenrantes dos
CAPS compareceram, a questão de que eles não têm como
atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com
urgência da ajuda do SAMU, pois nem sempre seus carros
estariam à disposição ou mesmo funcionando.
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 157
Surge, então, uma questão crucial: a falta de res
posta aos episódios de crise dos usuários dos CAPS e de
outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos
principais fatores que contribuem para o fortalecimen
to da lógica manicomial, exatamente por direcionar
essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda
se mantêm fortes por serem consagrados pela própria
rede substitutiva como O serviço indicado para atender
prontamente a crise do usuário por meio de internações
e intervenções medicamentosas.
Enquanto ambulatório que acompanha longitudi
nalmente um usuário constante, essa realidade do CAPS
pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu
niões de construção do protocolo, de que o médico é O
profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto
que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias
se sustenta na grande maioria das vezes por conta das
crises. Da mesma forma, a falta de preparo dos profis
sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento
intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar
na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso
fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se
fazer é conter o paciente.
Essa posição centrada no médico, principalmente
no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta
os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos
principais argumentos utilizados como justificativa para
a não-atenção à crise nos CAPS é a fal ta de psiquiatras na
rede. Muito ainda gira em rorno do psiquiatra quando
nos reportamos à crise. Apesar disso, nós já tivemos vá
rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem
psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde
Mental6 (LANCETTI, 2006).
Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen
tral da captura da loucura. A crise é o momento em que a
RAPs se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da REUE
que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente
medicalizada. Tendo em vista que tanto a RAPs quanto
a REUE compõem o SUS, mas, não conversam muito
entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível
vira uma agressão à vida da pessoa.
A construção do protocolo será muito eficaz para
o SAMU funcionar, mas em nenhum momento foi ques
tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen
temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de
um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios
tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma
simplificação diante da complexidade da vida. A crise,
vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações
de supressão: a medicação e a internação compulsórias.
Tendo isso em vista, questionamos: a quem serve
esse protocolo? O que significa um protocolo nesse
contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças
em protocolos?
O trabalho na urgência requer uma sensibilidade do
técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir
sentido para o que está acontecendo, buscar informações
do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades
dele. Apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,
nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,
estamos lidando com pessoas em momentos de intenso
sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua
diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela
iden tidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça
a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma
norma, favorecendo a violência simbólica.
Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS
(integralidade, eqüidade e humanização), importantes
norteadores de uma prática ampla. A 'integralidade' con
siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas
6 Para um maior aprofundamenro sobre isso consultar UNCElTl, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucirec, 2005; ROTELLI, F.; LEONARDIS, O.; MAuRI, O.DesinstitucionnliZllfão. São Paulo: Hucirec, 2001.
Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. 11. 78/79/80. p. 150-160. jan.ldt.oz. 2008
158 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica
as suas necessidades e, para isso, é importante que haja
integração das ações, pressupondo a articulação da saúde
com outras políticas públicas que tenham repercussão na
área e na qualidade de vida dos indivíduos. A 'eqüidade'
tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se
em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de
siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem
precisa de menos (CUNHA; CUNHA, 1998). A 'humaniza
ção' é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no
processo de produção de saúde (BRASIL, 2004).
Com base nisso e nos princípios da Reforma
Psiquiátrica é que defendemos uma Aexibilização do
protocolo, que deve servir como um dispositivo para
disparar ações consoantes com a necessidade imediata do
sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,
fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à
própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.
O SAMU, em vez de servir como um mero transporte
com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva
e que contemple as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.
Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun
cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.
Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam
se constituindo enquanto analisadoras do SAMU de uma
maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi
mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por
que não pensarmos em estratégias que humanizem o
SAMU de forma que todas as ocorrências possam seguir,
de maneira palpável, as diretrizes do SUS?
À GUISA DE UMA CONCLUSÃO
A Reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por
buscar a descontrução de uma instituição secular, como
é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez
mais estratégias de guerra e um caminhar constante.
Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 150-160, janJdez. 2008
A acomodação e convencionalização de uma verdade,
a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz
voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.
Esse imperativo por constantes criações e movimen
tações é a grande inspiração dos movimentos antimani
comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e
propiciem uma Auidez da vida em todas as direções, e não
a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e
precipitadas. Por isso, O nosso campo de atuação tende a
se expandir e a se reinventar todos os dias.
Assim, focar o SAMU, um serviço altamente medica
lizado que, para alguns, não é compatível em nada com
os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização
da Reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que
nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali
dades ainda não exploradas. A nossa pesquisa, em suas
inúmeras idas e vindas, percotreu caminhos inter-redes
para conhecer o trabalho dos técnicos do SAMU, pensar
em suas possíveis articulações a fim de problematizar a
atenção e a resposta à crise na cidade de Aracaju.
Apesar de o SAMU ter um histórico de hesitações no
atendimento a casos psiquiátricos, O que inclui uma falta
de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,
de acordo com atribuição da Portaria 2048/GM de 5 de
novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará
chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de
aproximarem-se da RAps a fim de construir o protocolo.
Esse momento é especialmente importante, a despeito
de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa
a gerar frutos; na última reunião para a construção do
protocolo, realizada em meados de novembro, alguns
gestores da RAPs e da REUE decidiram que, após quase
um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de
compartilharem essas questões com todos os trabalha
dores de am bas as redes.
Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte
ceu o I Encontro Inter-Redes de Atenção à Pessoa em
Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no COlHeX[Q da Reforma Psiquiátrica 159
cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do
protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de
se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni
cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro
enCOntro de muitos outros já planejados.
Além disso, o SAMU se mostrou um serviço com pos
sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que
os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,
O que viabiliza a inclusão da família no processo, bem
como a rapidez no atendimento que, feito no momento
propício, pode evitar internações e permitir encaminha
mentos mais eficazes e potentes.
O acolhimento se mostrou a principal força para o
estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em
crise na produção de sentido. Assim, a crise pode ser rein
ventada como potência transformadora, momento para
engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu
tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a
comunicação como fundamento e os afetos como direção,
ele se torna 'improtocolável', aberto, totalmente flexível
para se adequar às situações que se apresentarem.
Isso nos remete a uma discussão que já começa a
se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os
gestores da Saúde Mental: o papel dos CAPS na atenção
à crise. Com a recusa dos CAPS ao atendimento à crise
e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos
vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio
nalização dos serviços mais emblemáticos da Reforma
Psiquiátrica. A estratégia que deveria abrir caminho
para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado
demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos
para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um
serviço fechado cheira a manicómio.
Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e
sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida
e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e
passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra
balho que procuramos realizar são atos de forte cunho
político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico
mial. Por isso, impera um incómodo, um movimentar
incessante e criativo que rodopia no caos da vida. As
certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades
que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade
de essência podem conferir um território confortável
e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo
vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à
própria mOrte. Vivemos numa guerra constante contra
a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera
uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.
Deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades
que podem ser criadas com O intuito de despertarmos
para a transitoriedade potente e criativa da vida.
A necessidade de preparar os técnicos de ambas
as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum
é necessário. As oficinas virão com esse propósito, mas
não podem ser a única tentativa. Além da programa
ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria
significativo intercambiar os profissionais para que
conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da
rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é
importante haver prudência ao aproximá-los. No que
diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,
seria interessante que pessoas fossem estrategicamente
plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis
sionais serviriam como aproximadores, disseminadores
de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam
incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar
alguns fluxos previamente estabelecidos.
Precisamos nos aventurar em outros mundos
possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter
nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica
manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é
a questão da crise e de quais significados ela pode as
sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos
nos responsabilizar. Os movimentos antimanicomiais
ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios
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160 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica
de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua
operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e
cabe a todos nós levá-las a diante.
Este trabalho é uma convocação, um chamado para
uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de
nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um
convite à experimentação e à invenção de outros mundos
possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto
pessoas e profissionais.
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