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Saúde em Debate ISSN: 0103-1104 [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Brasil Jardim, Katita; Dimenstein, Magda A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 150-160 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773015 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104

[email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Brasil

Jardim, Katita; Dimenstein, Magda

A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 150-160

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773015

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150 ARTIGO OIUGINAL I ORIGINAL ARTlCLE

A crise na rede: o SAMU no contexto

da Reforma Psiquiátrica

The crisis on network: SAMU at Psychiatric RefOrm context

Katita Jardim I

Magda Dimenstein 2

I Psicóloga; mestre em Psicologia

pelo Programa de Pós-graduação em

Psicologia da Universidade Federal

do Rio Gr.wde do None (UFRN);

supervisora clín ico-insrirucional

do Centro de Apoio Psicossocial

(CAI'S) Irmã Augusrinha; Membro da

coordenação pedagógica da Escola

Técnica do SUS de Sergipe.

kari ra.jardi [email protected]

2 Psicóloga; dourara em Saúde Mental

pelo Instiruro de Psiquiatria da

Universidade Federal do Rio deJaneiro

(IPUB/UFRj); docente do Pcogrnma de

Pós-graduação em Psicologia da UFRN.

[email protected]

RESUMÜ Esta pesquisa investigou as prdticas dos profissionais do Sistema de

Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no que diz respeito aos atendimentos

psiquidtricos na cidade de Aracaju (SE) esuaspossíveis articulações com a Rede de

Atenção Psicossocial (RAPs). A primeira etapa da pesquisafói realizada através de

entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do SAMU. Os resultados indicam

que a concepção de urgênciapsiquidtrica deles se baseia no conceito de agressividade

e que o tempo gasto nas ocorrências psiquidtricas e a falta de capacitação em

Saúde Mental dificultam o tramcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa,

participamos das reuniões de comtrução do protocolo psiquidtrico do SAMU.

PALAVRAS-CHAVE: Crise; Urgência; Saúde Mental.

ABSTRACT This research investigated the profissional practices from SAMU

(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city

ofAracaju (SE), Brazil, and its possible articulatiom to psychosocial services

network. Fieldwork first step was made with SAMU workers by semi-structured

interviews. The results indicate that their urgencypsychiatric conception is based

on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support

and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The

second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol

fór SAMU.

KEYWüRDS: Crisis; Urgency; Mental Health.

Apoio financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamenro de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 150-160, janJdcz. 2008

Anotacao
Título do Artigo: A CRISE NA REDE: O SAMU NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Autor(es): Katita Jardim, Magda Dimenstein a_Katita_Jardim a_Magda_Dimenstein
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JARDIM. K.: DIMENSTEIN. M. • A crise na rede: o SAMU no comcxlo da Reforma Psiquiálrica 151

INTRODUÇÃO

Com o avanço da luta pela consolidação da Refor­

ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final

da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor­

tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.

Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de

Luta Antimanicomial (MNLA) e da Reforma Psiquiá­

trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os

caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise.

Se o intuito da Reforma Psiquiátrica é questio­

nar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o

hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,

preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral

e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual

posicionamento admamos diante de uma pessoa em

crise. É imponante mencionar que as situações de crise

são um dos principais motivos de internação psiquiátrica

no Brasil atualmente OARDIM, 2008).

Isso porque, nesses momentos, a Rede de Atenção

Psicossocial (RArs) que deveria se responsabilizar também

pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à Rede

de Urgência e Emergência (REUE). A REUE é uma das

mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da-estrutura de rede pensada para organizar OSistema Unico

de Saúde (SUS), a RArs e a REUE têm linguagem, timinge

aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,

chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.

Assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências

(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem

regular a demanda diretamente para dentro dos grandes

hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou

comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera­

damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos

serviços substitutivos. Tais serviços passam a operar como

meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de

passagem, visto que no momento de maior necessidade

'devolvem' o louco ao manicômio. Por isso, se faz neces­

sária uma discussão acerca da atenção à crise não somente

pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões

imer-redes, envolvendo também a REUE e outras.

Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi­

gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da

Política Nacional de Atenção às Urgências, o Serviço

de Atendimemo Móvel de Urgência (SAMU), frente às

ocorrências psiquiátricas, bem como as arriculações desse

serviço com a RArs do município de Aracaju (SE).

Algumas definições

Antes de começarmos a falar sobre o histórico do

SAMU, é importante conceituarmos urgência e emergên­

cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo

serviço. As várias definições destes termos ainda não são

claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as

usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,

vamos delimitar O sentido em que estamos utilizando

esses termos para fins de esclarecimento do leitor.

Urgência é uma "ocorrência imprevista de agravo à

saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo ponador

necessita de assistência imediata" (FERNANDES, 2004, p. 2).

Ponanto, a urgência se caracteriza por uma situação em

que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem

risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con­

siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica

da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com

necessidade de imobilizaçãO e crises de asma. É no âmbito

da Urgência que se localiza o atendimemo psiquiátrico.

Já a emergência é definida como a constatação de

condições de agravo à saúde que implicam em risco

de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,

normalmente caracterizadas por declaração do médico

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assistente. Os exemplos seriam as hemorragias, ataques

cardíacos, amputamentos etc. (FERNANDES, 2004). A

escolha dos conceitos foi feita mediante comparação

de algumas definições de urgência e emergência (CON­

SELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1995; STERIAN, 2002;

FERNANDES, 2004 e CAMPOS, 2005), que nos levaram

à constatação de que, salvo algumas divergências, elas

convergem para o exposto.

Em 1986, foi criado no Rio de Janeiro O Grupo de

Socorro e Emergência (GSE) que finalmente contava

com uma equipe composta por médico e enfermeiros

da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.

Foi nesse contexto que o SAMU foi instituído no Brasil,

mais especificamente na cidade de São Paulo, através de

um acordo bilateral com a França. O SAMU brasileiro é

estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se

em muitos conceitos do modelo americano para seus

treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma

Life Suport (PHTLS) 1•

Só em 2002, com a instauração da Política Nacional

de Atenção às Urgências, que o SAMU deixou de ser um

serviço opcional existente em algumas cidades, passando

a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo

pré-hospitalar de urgência. O serviço foi regulamentado

através da Portaria 1864 GM de 29 de setembro de 2003

(BRASIL, 2002; BRASIL, 2003).

Deste modo, conta com uma equipe composta por

médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma­

gem, condurores veiculares e aqueles responsáveis pelo

suporte na central de regulação', Técnicos Auxiliares de

Regulação Médica (TARMS) e rádio operadores. O SAMU

atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,

gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona

segundo regulação médica concernente à gestão dos

Auxos de ofertas de cuidados médicos, criando as ocor­

rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos

públicos (BRASIL, 2002; BRASIL, 2003). É a regulação

médica que interliga o Atendimento Pré-hospitalar

(APH) ao hospital. A função do médico é:

julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar osrecursos necessários ao local, monitorar e orientar oatendimento realizado por outroprofissionalde saúde{ ..} ou [..}por umpopular. Define eaciona ohospitalde reftrência ou outro meio ao atendimento necessário.(SÃo PAULO, 2001 apud CAMPOS, 2005, p. 16).

A partir do recebimento de uma chamada na central

reguladora, atendida por um TARM, que deve acalmar o

solicitante e preencher um formulário eletrônico com a

localização da vítima, dados detalhados do local, pontos

de referência e o motivo da chamada. A partir de então,

o TARM passa a ligação para o médico regulador que

avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de

mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação

médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a

ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já

que há dois tipos de ambulância no SAMU: as Unidades

de Suporte Básico (USBs), que contam com urna equipe

de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as

Unidades de Suporte Avançado (USAs) com uma equipe

formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor

veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de

Tratamento Intensivo (UTI). Depois disso, o médico

decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será

direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para

receber o usuário.

1 Prehospiral Trauma Life Supporr Commirree and rhe Narional Associarion of Emergency Medical Technicians in cooperarion with the Commirree on Traumaof the American College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospiral trauma life supporr. 4- ed. St. Louis.

2 A regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de Atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, quali­ficando O Ruxo dos pacientes no Sisrema e gerando uma porta de comunicação aberra ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos,avaliados e hierarquizados. (BRASIL, 2001, p. 1).

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Hoje em dia, a rede nacional do SAMU conta com

112 unidades implantadas. No total, 924 municípios

são atendidos pelo SAMU, cerca de 92,4 milhões de

pessoas. Algumas das capitais brasüeiras que possuem a

estrutura do SAMU são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte,

Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, For­

taleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,

Natal, Palmas, PortO Alegre, Porto Velho, Recife, Rio

Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo,

Teresina e Vitória3.

UM ENSAIO METODOLÓGICO

A pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira

em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro

do mesmo ano. A primeira etapa teve como corpus de

análise dez profissionais vinculados ao SAMU de Aracaju,

sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade

entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de

quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi­

pe eram aux.iliares de enfermagem, três eram médicos

reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções

de coordenação: um enfermeiro também coordenador

e uma assistente social gerente (contabilizando quatro

gestores). Escolhemos informantes de influência direra

nos atendimentos psiquiátricos" na gestão das capa­

citações e na regulação médica, POntOS fundamentais

para a prática. A coIera de dados foi realizada através

de entrevistas semi-estruturadas gravadas.

Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro

deles, feito para os médicos e gestores, era composto

por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/GM

e às Urgências Psiquiátricas. Abordava, além disso, a

Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men­

tal e as capacitações realizadas no serviço. O segundo

roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de

enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam­

bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional

de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, além da

formação técnica e das participações nos atendimentos

psiquiátricos. este momento, abriu-se espaço para

relatos de experiências.

Levando-se em consideração que o funcionamento

do SAMU se dá através de protocolos nos quais são cir­

cunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada

tipo de ocorrência atendida, o fato de o SAMU não possuir

um protocolo psiquiátrico constitui um problema.

Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos

serviços responsáveis pelo atendimento às urgências

psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo

operativo, o que fazer com essa situação. Geralmente,

quem lida com isso tende a colocar a 'crise do paciente'

como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar

as necessidades e demandas excessivas da clientela que

o próprio serviço pode estar colapsando (DELL'AcQuA;

MEzzINA, 2005). Nesse ínterim, o SAMU decidiu lidar

com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:

criando um protocolo específico, uma normatização, que

serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que

não é de todo negativo, pois é necessária a construção de

um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria

problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas

e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimenro

técnico e, por fim, mortificando as relações.

Assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de

maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha­

mento das reuniões para a construção do protocolo psi-

.l Boletim: hnp:/Iporral.saude.gov.br/porml/saude/visualizar_texro.cfm?idrxr:23745&janela=. l. Acesso em 6 de março de 2007.

~ Tendo em vista que os profissionais que reaJizam o arendimenro às ocorrências psiquiárricas no SAMU de Aracaju são os médicos (indirerameme. por telefone),os auxiliares de enfermagem e os condurores veiculares (direrameme. no local).

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quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos

junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,

abordaremos somente as reuniões de protocolo.

As reuniões intersetoriais contaram com uma psi­

cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,

dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do

serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o

coordenador clínico do SAMU de Aracaju e da Urgência

Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São

José, órgão responsável pela regulação da demanda de

Saúde Mental na REUE, e o coordenador clínico do

SAMU estadual. Nas reuniões foram observados a relação

entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava

para idealizar esse instrumento. Além disso, a nossa

participação constituiu uma intervenção, tendo em

vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos

pelas ambulâncias do SAMU, geramos discussões a partir

dos casos assistidos e da literatura esquisada. Além da

nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de

2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns

dos participantes: uma médica sanitarista, responsável

pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na Atenção

Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento

de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro­

fissionais do SAMU, quanto a sua regulação e abordagem

no local de ocorrência, o coordenador clínico do SAMU

de Aracaju e do UCM e a psicóloga representante da

coordenação de Saúde Mental.

A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,

tempo, capacitações e oprotocolo

A primeira etapa da pesquisa de campo foi cons­

tituída por intermédio de entrevistas. Os dados mais

relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a

concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a

questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação

e a ausência do protocolo psiquiátrico.

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A concepção de urgência psiquiátrica foi associada

de forma unânime pelos entrevistados a 'agressividade'.

É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos

de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com

alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva

às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que

serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de

defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma

postura de medo, que acaba gerando omissão do cui­

dado. Assim, ambas as posturas geralmente progridem

para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,

O SAMU conta com O auxilio do Corpo de Bombeiros,

cordas e muitas ataduras.

Além das práticas in loco, a concepção da urgência

psiquiátrica ligada à agressividade também influencia

diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,

organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou

não uma ambulância para o caso e é responsável pelo

encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde

fixo. Dessa forma, os reguladores acabam por selecionar

a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti­

lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos

pelo SAMU são aqueles que não podem ser transportados

num carro comum, ou seja, os casos que precisam de

um aparato específico para imobilização. Com isso, o

SAMU reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento

psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais

em seus atendimentos.

Outra questão importante é a do tempo. Os ser­

viços de urgência têm de funcionar da maneira mais

breve possível. Quando falamos em casos referentes à

Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um

dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os

atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro

vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a

tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam

resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em

realizar os atendimentos; entendem que uma garota com

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 155

asma precisa muiro mais de uma USB do que um louco

surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.

Apesar de o SAMU ter um Núcleo de Educação

Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é

ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte­

ceram em 2004. Os gesrores afirmaram que a falta de

capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação

sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta

de interesse dos profissionais. Muiros técnicos afirmaram

que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri­

cos; quando perguntamos o motivo, responderam não

saber como agir nesses casos. É importante ressaltar

que o SAMU é um serviço que funciona com base em

prorocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são

eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as

ocorrências. Por isso, a falta de prorocolo psiquiátrico

foi apontada como um item negativo, um agravante

desestabilizador do funcionamento do serviço.

Atualmente, está sendo desenvolvido o prorocolo

da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de Ara­

caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM

e com a gestão clínica dos SAMUS estadual e municipal.

Esse prorocolo busca delinear quais critérios deverão

ser usados na regulamentação para guiar os médicos

a respeiro dos procedimenros que devem ser seguidos

no caso de ocorrências psiquiátricas. Delinear esses

procedimentos é importante para o funcionamenro do

SAMU no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra

o paciente psiquiátrico definitivamente no halldos casos

atendidos e com alta resolutividade.

Entretanto, há a necessidade de segurança e, por

isso, busca-se o controle em tudo que se faz. A estabili­

dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba

por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. A

saúde é a fluidez desse processo. Assim, a formatação de

prática rígidas, como as propagadas pelo SAMU quando

5A Portaria 2048/GM e a Polírica Nacional de Saúde MeneaI.

se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um

grande problema do que de uma solução.

Configurar um serviço dessa forma não seria em­

perrar os fl uxos?

Será que, em lugar de enxergarmos esse 'não saber

o que fazer' como uma grande questão a ser extirpada o

quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade

de afirmação vital?

Ao final dessa primeira experiência, percebemos que

somente entrevistas focadas na legislaçã05, na concepção

de urgência psiquiátrica e nas capaeitações não levariam

a discussão muiro longe, porque poderia desvelar pro­

blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções

práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade

àpesquisa de campo com a segunda etapa, que problema­

tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi­

quiátricas realizadas pelo SAMU de Aracaju, mas também O

movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo

psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de

2007 e não chegou à sua conclusão até então).

Tendo em vista essa proposta, o espaço do SAMU,

como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões

levantadas, configurando o ponto de partida para se dis­

cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento

dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade

premente de se organizarem estratégias que dêem conta

da atenção à Saúde Mental, o SAMU decidiu construir o

prorocolo psiquiátrico. Assim, a nossa análise foi feita

a partir do acompanhamento das reuniões do grupo

operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação

do atendimenro aos casos que entram nesse circuiro pelo

SAMU e desembocam na Urgência Clínica e Mental do

São José. Escolhemos esse destino com base na conexão

entre os dois serviços: o SAMU como a porta de entrada

da demanda e a UCM de São José como regulador do

fluxo das urgências psiquiátricas na rede.

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. 11. 78/79/80. p. 150-160. jan.ldt.oz. 2008

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156 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica

Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões

de construção do protocolo psiquidtrico

Em maio de 2007, o SAMU fervilhava em meio a

uma crise decorrenre de um processo que se arrastava

desde a aberrura do serviço, quando a Porraria 1864/

GM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada

(BRASIL, 2003). A Porraria, que instirui o SAMU como

dispositivo móvel da Política Nacional de Atenção às

Urgências (BRASIL, 2002), estrurura um serviço capaz

de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o

mal-esrar nos lugares mais distanres, ainda que houvesse

a necessidade de os profissionais ficarem pendurados

numa corda de rappel para um salvamenro verrical

ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. Os

técnicos do SAMU devem se rornar agenres preparados

para enfrenrar qualquer siruação, com 'nervos de aço'

construídos sob um considerável alicerce idenritário.

Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um

serviço como o SAMU, mas a comoção gerada pelas ur­

gências psiquiátricas levantava questões rodos os dias. Os

médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia­

res de enfermagem tinham medo de serem assassinados

duranre os atendimenros, o relacionamenro com a UCM

era complicado e com os CAPS, inexistenre. Surgiu, enrão,

a necessidade de se idealizar um prorocolo psiquiátrico.

Nesse senrido, ficou decidido que o delineamento

desse prorocolo seria feiro em conjunro pela Saúde

Menral e pela UCM, o que conrribuiria para conectar

a rede. Entretanro, estavam sempre lidando com uma

linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar

na simples criação de uma normalização para diminuir

a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços• • •mqUleros com as suas Incerrezas.

Não era só o SAMU que estava em crise. A UCM tam­

bém dava seus sinais. A sua atribuição de urgência clínica

foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,

rodos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento

foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 150-160, janJdez. 2008

que fazia parre da equipe, deixou de ser plantonista e

passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia

e checar todos os internos. O caso é preocupante. Alguns

pacientes com diagnóstico prévio de transrorno psiquiátri­

co com intercorrências clínicas que foram encaminhados

para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a

óbito graças à falta de estrutura do serviço.

Geralmente, nos casos em que o solicitanre atesta

que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui­

átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não

existe conexão direta ou indireta nem encaminhamenros

para a RAPs ou para um núcleo de Atenção Básica: o

atendimento delegado à REUE começa e termina em si

mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um

circuiro mortificado.

O primeiro passo para o 'tratamenro' da crise em

ambos os serviços foi programado para ser a construção do

prorocolo. No enranro, o que poderia dar, de faro, corpo

à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói

ao longo desse processo: a aproximação dos gesrores a fim

de se formar uma rede de apoio social, a familiarização

com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes

de dar suporre aos trabalhadores e aos usuários.

Problemas de articulação da rede surgiram aos mon­

tes. O SAMU não enrendia porque os CAPS têm carros

próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um

de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. A

prioridade do SAMU é atender pessoas que estejam nas

ruas, pacienres encaminhados de algum outro serviço

ficam em segundo lugar na escala de prioridade. A gestão

do SAMU justifica que pacientes nos serviços estão mais

bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,

podendo, dessa forma, esperar para serem transporrados.

Quando, em uma das reuniões, os represenrantes dos

CAPS compareceram, a questão de que eles não têm como

atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com

urgência da ajuda do SAMU, pois nem sempre seus carros

estariam à disposição ou mesmo funcionando.

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica 157

Surge, então, uma questão crucial: a falta de res­

posta aos episódios de crise dos usuários dos CAPS e de

outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos

principais fatores que contribuem para o fortalecimen­

to da lógica manicomial, exatamente por direcionar

essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda

se mantêm fortes por serem consagrados pela própria

rede substitutiva como O serviço indicado para atender

prontamente a crise do usuário por meio de internações

e intervenções medicamentosas.

Enquanto ambulatório que acompanha longitudi­

nalmente um usuário constante, essa realidade do CAPS

pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu­

niões de construção do protocolo, de que o médico é O

profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto

que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias

se sustenta na grande maioria das vezes por conta das

crises. Da mesma forma, a falta de preparo dos profis­

sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento

intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar

na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso

fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se

fazer é conter o paciente.

Essa posição centrada no médico, principalmente

no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta

os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos

principais argumentos utilizados como justificativa para

a não-atenção à crise nos CAPS é a fal ta de psiquiatras na

rede. Muito ainda gira em rorno do psiquiatra quando

nos reportamos à crise. Apesar disso, nós já tivemos vá­

rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem

psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde

Mental6 (LANCETTI, 2006).

Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen­

tral da captura da loucura. A crise é o momento em que a

RAPs se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da REUE

que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente

medicalizada. Tendo em vista que tanto a RAPs quanto

a REUE compõem o SUS, mas, não conversam muito

entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível

vira uma agressão à vida da pessoa.

A construção do protocolo será muito eficaz para

o SAMU funcionar, mas em nenhum momento foi ques­

tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen­

temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de

um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios

tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma

simplificação diante da complexidade da vida. A crise,

vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações

de supressão: a medicação e a internação compulsórias.

Tendo isso em vista, questionamos: a quem serve

esse protocolo? O que significa um protocolo nesse

contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças

em protocolos?

O trabalho na urgência requer uma sensibilidade do

técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir

sentido para o que está acontecendo, buscar informações

do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades

dele. Apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,

nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,

estamos lidando com pessoas em momentos de intenso

sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua

diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela

iden tidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça

a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma

norma, favorecendo a violência simbólica.

Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS

(integralidade, eqüidade e humanização), importantes

norteadores de uma prática ampla. A 'integralidade' con­

siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas

6 Para um maior aprofundamenro sobre isso consultar UNCElTl, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucirec, 2005; ROTELLI, F.; LEONARDIS, O.; MAuRI, O.DesinstitucionnliZllfão. São Paulo: Hucirec, 2001.

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. 11. 78/79/80. p. 150-160. jan.ldt.oz. 2008

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158 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica

as suas necessidades e, para isso, é importante que haja

integração das ações, pressupondo a articulação da saúde

com outras políticas públicas que tenham repercussão na

área e na qualidade de vida dos indivíduos. A 'eqüidade'

tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se

em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de­

siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem

precisa de menos (CUNHA; CUNHA, 1998). A 'humaniza­

ção' é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no

processo de produção de saúde (BRASIL, 2004).

Com base nisso e nos princípios da Reforma

Psiquiátrica é que defendemos uma Aexibilização do

protocolo, que deve servir como um dispositivo para

disparar ações consoantes com a necessidade imediata do

sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,

fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à

própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.

O SAMU, em vez de servir como um mero transporte

com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva

e que contemple as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.

Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun­

cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.

Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam

se constituindo enquanto analisadoras do SAMU de uma

maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi­

mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por

que não pensarmos em estratégias que humanizem o

SAMU de forma que todas as ocorrências possam seguir,

de maneira palpável, as diretrizes do SUS?

À GUISA DE UMA CONCLUSÃO

A Reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por

buscar a descontrução de uma instituição secular, como

é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez

mais estratégias de guerra e um caminhar constante.

Stltid~ em Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. n. 78/79/80, p. 150-160, janJdez. 2008

A acomodação e convencionalização de uma verdade,

a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz

voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.

Esse imperativo por constantes criações e movimen­

tações é a grande inspiração dos movimentos antimani­

comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e

propiciem uma Auidez da vida em todas as direções, e não

a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e

precipitadas. Por isso, O nosso campo de atuação tende a

se expandir e a se reinventar todos os dias.

Assim, focar o SAMU, um serviço altamente medica­

lizado que, para alguns, não é compatível em nada com

os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização

da Reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que

nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali­

dades ainda não exploradas. A nossa pesquisa, em suas

inúmeras idas e vindas, percotreu caminhos inter-redes

para conhecer o trabalho dos técnicos do SAMU, pensar

em suas possíveis articulações a fim de problematizar a

atenção e a resposta à crise na cidade de Aracaju.

Apesar de o SAMU ter um histórico de hesitações no

atendimento a casos psiquiátricos, O que inclui uma falta

de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,

de acordo com atribuição da Portaria 2048/GM de 5 de

novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará

chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de

aproximarem-se da RAps a fim de construir o protocolo.

Esse momento é especialmente importante, a despeito

de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa

a gerar frutos; na última reunião para a construção do

protocolo, realizada em meados de novembro, alguns

gestores da RAPs e da REUE decidiram que, após quase

um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de

compartilharem essas questões com todos os trabalha­

dores de am bas as redes.

Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte­

ceu o I Encontro Inter-Redes de Atenção à Pessoa em

Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no COlHeX[Q da Reforma Psiquiátrica 159

cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do

protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de

se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni­

cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro

enCOntro de muitos outros já planejados.

Além disso, o SAMU se mostrou um serviço com pos­

sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que

os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,

O que viabiliza a inclusão da família no processo, bem

como a rapidez no atendimento que, feito no momento

propício, pode evitar internações e permitir encaminha­

mentos mais eficazes e potentes.

O acolhimento se mostrou a principal força para o

estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em

crise na produção de sentido. Assim, a crise pode ser rein­

ventada como potência transformadora, momento para

engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu­

tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a

comunicação como fundamento e os afetos como direção,

ele se torna 'improtocolável', aberto, totalmente flexível

para se adequar às situações que se apresentarem.

Isso nos remete a uma discussão que já começa a

se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os

gestores da Saúde Mental: o papel dos CAPS na atenção

à crise. Com a recusa dos CAPS ao atendimento à crise

e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos

vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio­

nalização dos serviços mais emblemáticos da Reforma

Psiquiátrica. A estratégia que deveria abrir caminho

para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado

demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos

para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um

serviço fechado cheira a manicómio.

Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e

sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida

e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e

passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra­

balho que procuramos realizar são atos de forte cunho

político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico­

mial. Por isso, impera um incómodo, um movimentar

incessante e criativo que rodopia no caos da vida. As

certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades

que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade

de essência podem conferir um território confortável

e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo­

vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à

própria mOrte. Vivemos numa guerra constante contra

a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera

uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.

Deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades

que podem ser criadas com O intuito de despertarmos

para a transitoriedade potente e criativa da vida.

A necessidade de preparar os técnicos de ambas

as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum

é necessário. As oficinas virão com esse propósito, mas

não podem ser a única tentativa. Além da programa­

ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria

significativo intercambiar os profissionais para que

conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da

rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é

importante haver prudência ao aproximá-los. No que

diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,

seria interessante que pessoas fossem estrategicamente

plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis­

sionais serviriam como aproximadores, disseminadores

de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam

incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar

alguns fluxos previamente estabelecidos.

Precisamos nos aventurar em outros mundos

possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter­

nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica

manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é

a questão da crise e de quais significados ela pode as­

sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos

nos responsabilizar. Os movimentos antimanicomiais

ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. 11. 78/79/80. p. 150-160. jan.ldt.oz. 2008

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160 JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no comex[Q da Reforma Psiquiátrica

de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua

operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e

cabe a todos nós levá-las a diante.

Este trabalho é uma convocação, um chamado para

uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de

nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um

convite à experimentação e à invenção de outros mundos

possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto

pessoas e profissionais.

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Recebido: abr.l200S

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