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167 Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento RECÔNCAVO BAIANO: ENTRE TEORIAS E PRÁTICAS DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL Jean Baptiste Nardi RESUMO Este artigo procura analisar o desenvolvimento como ideologia. Teve consequências negativas no Brasil, inclusive pela introdução de preconceitos. Apresenta as teorias do desenvolvimento local e as práticas no Recôncavo Baiano. Tenta mostrar que o Território de Identidade é lugar de políticas públicas nacionais e não de desenvolvimento local. A percepção do território seria errônea e inibiria a organização dos atores locais. Os problemas locais e as necessárias ações para solucioná-los deveriam definir o território. Passariam pela formação de um poder local, institucionalizado. Há algumas semelhanças entre Ideologia do Desenvolvimento e relação do global e do local. PALAVRAS CHAVES: desenvolvimento ideologia território Recôncavo Baiano ABSTRACT This article tries to analyze the development as ideology. It had negative consequences in Brazil, inclusive by the introduction of prejudices. It presents the theories of the local development and the practices in Recôncavo Baiano. It tries to show that the Territory of Identity is place of national public politics and not of local development. The perception of the territory would be erroneous and it would inhibit the local actors' organization. The local problems and the necessary actions to solve them should define the territory. They would go by the formation of a local power, institutionalized. There are some likeness between Ideology of the Development and relationship of the global and of the local territory. Keywords: development - ideology - territory - power Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 167-192

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Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento

RECÔNCAVO BAIANO: ENTRE TEORIAS E PRÁTICAS DO DESENVOLVIMENTO

TERRITORIAL

Jean Baptiste Nardi

RESUMO

Este artigo procura analisar o desenvolvimento como ideologia. Teve consequências negativas no

Brasil, inclusive pela introdução de preconceitos. Apresenta as teorias do desenvolvimento local

e as práticas no Recôncavo Baiano. Tenta mostrar que o Território de Identidade é lugar de

políticas públicas nacionais e não de desenvolvimento local. A percepção do território seria

errônea e inibiria a organização dos atores locais. Os problemas locais e as necessárias ações

para solucioná-los deveriam definir o território. Passariam pela formação de um poder local,

institucionalizado. Há algumas semelhanças entre Ideologia do Desenvolvimento e relação do

global e do local.

PALAVRAS CHAVES: desenvolvimento – ideologia – território – Recôncavo Baiano

ABSTRACT

This article tries to analyze the development as ideology. It had negative consequences in Brazil,

inclusive by the introduction of prejudices. It presents the theories of the local development and

the practices in Recôncavo Baiano. It tries to show that the Territory of Identity is place of

national public politics and not of local development. The perception of the territory would be

erroneous and it would inhibit the local actors' organization. The local problems and the

necessary actions to solve them should define the territory. They would go by the formation of a

local power, institutionalized. There are some likeness between Ideology of the Development and

relationship of the global and of the local territory.

Keywords: development - ideology - territory - power

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INTRODUÇÃO

Falar em desenvolvimento é mergulhar num controverso mar de teorias econômicas e de

relações de poder. Desde 1945, o desenvolvimento foi o obsessivo leme da civilização ocidental e

o Cabo da Boa Esperança da nau Terceiro Mundo até o tsunami dos alemães orientais

derrubarem o muro de Berlim e a União Soviética. Em vez de discutir a história meramente

econômica preferimos tratar o assunto do ponto de vista da ideologia, que abre outras

perspectivas, notadamente culturais. Com a globalização o desenvolvimento tomou o rumo do

local ou territorial. Não são noções idênticas. Diferem-se a dimensão do território, as estratégias

e as relações de poder. No estudo do caso do Recôncavo Baiano, entre teorias e práticas, se

evidenciam as dificuldades para atingir os objetivos de desenvolvimento.

A Ideologia do Desenvolvimento

Por mais incrível que parece, apesar da inumerável bibliografia que existe a seu respeito, não

existe uma definição clara, sintética e satisfatória do desenvolvimento. É o que sobressai da

leitura da maioria das obras sobre o assunto (ASSIDON, 1992; BASTOS; SILVA, 1995;

MAGALHÃES, 1996; BRUM, 1998). A primeira, comunicada pelas Nações Unidas em 1986, se

refere ao “direito ao desenvolvimento” e não corresponde de maneira alguma ao conceito que

vigorou durante os 40 anos anteriores (BRUNEL, 2004: 28). O dicionário Houaiss fornece esta, de

sentido comum, “crescimento econômico, social e político de um país, região, comunidade etc.”.

Não cabe aqui discutir os pormenores das teorias a seu respeito nem o processo pelo qual elas se

elaboram. O que nos interesse aqui é propor uma reflexão sobre o desenvolvimento como

ideologia. Nesta ótica, consideramos o Desenvolvimento como a ideia essencial do conjunto das

teorias econômicas e práticas referentes aos países do Terceiro Mundo, que se sucederam ou

completaram entre, aproximadamente, 1945 e 1990.

A ideologia é conceito complexo, entre percepções marxista e não-marxista, explicações

racional e irracional (BOUDON, 1986). No entanto, de forma consensual, e pela sociologia,

emerge esta definição: “É o sistema de referências, enquanto valores, próprias de um grupo, uma

classe ou determinada sociedade e que serve para descrever, explicar, interpretar o mundo e

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orientar e legitimar suas ações” (PIRIOU, 1997: 61). Corresponde perfeitamente à Ideologia do

Desenvolvimento.

Os fundamentos da Ideologia estão na expansão mercantilista e colonização, principalmente

nas Américas, do século XVI até 1750; a Europa cristã proclamava-se “civilizada” e julgava os

outros povos primitivos ou inferiores. Nos anos 1880-1914, após a Revolução Industrial, a Europa

era capitalista e justificou o imperialismo – a conquista de novas colônias no continente africano

e na Ásia – por ideias do tipo “missão civilizadora”, “supremacia do modo de vida” e “gênio da

raça” (J. Bouvier, apud CASTEL, 1997: 4). Não se falava em desenvolvimento, procurava-se o

aumento das capacidades produtivas das colônias em matérias primas ou produtos agrícolas. Por

sua supremacia material, técnica, científica ou intelectual, a Europa considerava-se centro do

mundo, modelo de civilização e de organização econômica. Os Estados Unidos, que passaram a

assumir a liderança mundial, adotaram e aperfeiçoaram o modelo: a sociedade WASP (white,

anglo-saxon, protestant) (ORFEUIL, 1997: 22). Assim se construiu o “sistema de referências e

valores” pelo qual a sociedade europeia, inicialmente, “legitimou suas ações” e se cometeria

provavelmente um erro ao interpretar o desenvolvimento apenas por seus aspectos econômicos:

também era cultural, até religioso.

O desenvolvimento transformou-se em ideologia política após a segunda guerra mundial.

Insere-se no contexto da “guerra fria”, quando o planeta estava dividido entre o mundo liberal e o

socialista com suas áreas de influência respectivas, o resto do mundo (Conferência de Yalta, em

1945). O conceito nasceu em 1949, em discurso proferido pelo presidente americano, Harry

Truman, que declarou que as “regiões subdesenvolvidas” deveriam ser ajudadas. O economista

sueco Gunnar Myrdal divulgou a noção de subdesenvolvimento em 1950 e, dois anos depois, o

francês Alfred Sauvy criou a expressão Terceiro Mundo. A Ideologia baseou-se, então, no

postulado que os países industrializados eram desenvolvidos, como se fosse evidência, fato

incontestável; em consequência e em comparação, os outros países, não industrializados, eram

considerados como subdesenvolvidos. Em outras palavras, o subdesenvolvimento só existiu

porque os “países do Norte” o decidiram. O “sistema de referência” perdeu parcialmente seu

conteúdo cultural em prol de valores contidos no trinômio ocidente, capitalismo e

neocolonialismo.

Os principais objetivos da Ideologia eram deliberadamente políticos. Para os ocidentais, o

desenvolvimento econômico só impediria o estabelecimento de regimes socialistas em países

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mais fracos, em especial, para os americanos, os da América Latina. Via-se o desenvolvimento

como a expansão do capitalismo, associado à noção de crescimento – a acumulação de bens –

que integrava fatores estruturais: industrialização, urbanização, trabalho, instituições etc. A obra

de W.W. Rostow, As Etapas do Crescimento Econômico, publicada em 1960 e qualificada como

“manifesto não comunista”, serviu de base científica à Ideologia. O autor afirmava que todos os

países tinham de se adequar ao modelo dos países industrializados; daí a noção de “atraso” para

aqueles que não entravam nesse quadro.

Entre 1945 e 1975, os países industrializados conheceram a fase de prosperidade conhecida

como “os anos dourados” onde o consumo de massa e a proteção social do Estado eram

sinônimos de “bem-estar”. Ninguém duvidava de o materialismo ser o segredo da felicidade e o

liberalismo o meio para alcançá-la. No mesmo período, a independência das colônias europeias

na África e na Ásia – a maioria conquistada entre 1870 e 1910 – e os conflitos diretos entre os

dois blocos (guerras na Coreia e o Vietnã, crise de Cuba), entre 1950 e 1975, validaram e/ou

consolidaram o conteúdo político da Ideologia.

Para os neomarxistas, a concepção do desenvolvimento, sem sair do econômico, era outra,

talvez mais humanista. A revolução socialista era o único meio para conseguir a justa repartição

dos excedentes materiais e financeiros que devia ser mundial e os leninistas consideravam que

esta se realizava mais facilmente em países com predominância agrícola, caso da maior parte

dos países do Terceiro Mundo. O risco de estes entrarem na área de influência da URSS era

grande. Em reação os ocidentais incentivaram esses países a implantar várias estratégias de

desenvolvimento econômico baseado na industrialização acelerada e estimularam maior

equilíbrio nos intercâmbios internacionais de matérias primas e produtos manufaturados. Foi a

época em que a “ajuda financeira” provocou o endividamento dos países subdesenvolvidos;

também foi o tempo da expansão das multinacionais e, apoiados pelos Estados Unidos, a

instauração de ditaduras na América Latina. Os países subdesenvolvidos eram apenas extensões

territoriais dos países industrializados, um tipo de “colônias independentes” permitindo a

expansão e fortalecimento do capitalismo. Dessa percepção nasceram os termos de “centro” e

“periferia” para designar os países ricos e pobres. Para a Ideologia, os objetivos do

Desenvolvimento eram o crescimento e o fortalecimento do poderio dos países industrializados e

não a autonomia ou independência dos países subdesenvolvidos; as ações eram

economicamente “orientadas” e politicamente “legitimadas” pelo perigo vermelho.

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Culturalmente, expandiu-se a sociedade americana de consumo: refrigerantes, jeans,

hambúrguer, cigarros, seriados televisivos e filmes.

Os choques do petróleo na década de 70 e a crise financeira dos anos 80 abalaram a ordem

mundial e a Ideologia entrou na onda do neoliberalismo anglo-americano. Incapazes de pagar a

dívida os países do Terceiro Mundo foram obrigados a aceitar as exigências das organizações

financeiras internacionais. Estabeleceu-se a hierarquia do subdesenvolvimento do mais a menos

confiável: “Novos Países Industrializados”, “Países em Desenvolvimento” e “Países Menos

Avançados”. No entanto, não se alterou a noção de Desenvolvimento.

O fim da experiência comunista e o desmancho da União Soviética após a queda do muro de

Berlim (1989) marcaram o fim da Ideologia do Desenvolvimento, pelo menos no sentido em que a

concebemos. Desprovido de seu argumento político, a Ideologia era insustentável.

Não havia mais perigo de alastramento do socialismo pelo mundo e todas as teorias sobre o

desenvolvimento caíram por si mesmo. Toda referência terminológica ao Terceiro Mundo

desapareceu, da mesma forma que se extinguiu a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (ajudas

financeiras); a industrialização até apareceu como secundária no processo de desenvolvimento.

Favorecido pelo fortalecimento e a ampliação da União Européia, bem como o maior número de

países com economia consolidada, o capitalismo triunfante passou a ser mais financeiro do que

industrial; a vulgarização das tecnologias de comunicações transformou o espaço-mundo em

rede, facilitando as trocas de informações e as transferências financeiras (PILHON, 2004). O

mundo entrou na fase conhecida como “globalização”. Embaralharam-se todas as antigas e

seguras referências e estabeleceram-se outras, incertas, a “sociedade global” ainda está

construindo o seu sistema de referências e valores.

A nova ordem mundial e etapa do capitalismo nos levam a repensar um ponto da Ideologia do

Desenvolvimento. Esta visava a preservar unicamente os interesses dos países dominantes. E

podia ser diferente? Podemos imaginar um comerciante ajudar seus concorrentes a crescer, ou

se desenvolver, e, desta forma, eles terem os meios para tirá-lo do negócio? Visto assim, a noção

de desenvolvimento veiculada pela Ideologia foi uma ilusão: deixou os países não industrializados

acreditarem que poderiam aceder à riqueza enquanto, simultaneamente, se fazia tudo para

impedi-los. Impôs-se um modelo de sociedade e aniquilaram-se as capacidades locais,

notadamente pelas atividades tradicionais, de estabelecer outro tipo de sociedade. A

contradição era inerente à Ideologia. Na linha de pensamento de Lenine, a Ideologia do

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Desenvolvimento teria sido a forma mais evoluída e moderna do imperialismo (LENIN, 1984).

Talvez seja a globalização o estágio supremo do capitalismo e do imperialismo ou a transição

para outro tipo de sociedade...

A Ideologia do Desenvolvimento e o caso do Brasil

Na Ideologia do Desenvolvimento, o subdesenvolvimento era falsa ideia, por ser meramente

relativa, mas correspondia a uma realidade social. O Terceiro Mundo é produto da história. Quase

quatro séculos de dominação e exploração europeia só podiam deixar rastros negativos na divisão

do trabalho e o equilíbrio mundial. Criaram-se países, às vezes artificiais (sobretudo na África),

todos desarticulados ou mal estruturados com semelhantes problemas: forte demografia,

desnutrição, carências produtivas, baixa renda, educação deficiente etc. Nesses países, aceitou-

se o subdesenvolvimento como fato consumado. Vemos o caso do Brasil. A Comissão Econômica

para a América Latina – CEPAL, criada pouco antes de 1950, baseou suas análises de

desenvolvimento sobre as teorias econômicas da Ideologia; os trabalhos dessa agência

influenciaram o pensamento econômico brasileiro por muitos anos (BIELSCHOWSKY, 1996: 11-

29). Segundo João Paulo de Almeida Magalhães, a inexistência de paradigmas ajustados à

realidade brasileira não permitiu a saída do subdesenvolvimento (MAGALHÃES, 1996: 29). Em

ambos os casos, o Brasil aparece como um país “atrasado” e “subdesenvolvido”, de forma

preconceituosa. Mas era realmente o caso em 1950? Não se trata de pensar de maneira

diferente, mudando os ângulos da análise?

Na Europa, a maior parte dos países existia como nação havia séculos quando da

independência da América Latina e ainda mais da África. Como se podia imaginar que os novos

países pudessem de transformar logo em Estado consolidado, ou seja, cumprir em alguns anos ou

algumas décadas o que a Europa fez em séculos, desde a Idade Média? O verdadeiro “atraso”,

dos países do Terceiro Mundo em relação à Europa (excluído o caso dos Estados Unidos) foi

político antes de econômico, isto é, um atraso na linha do tempo e na história.

Nisso, o Brasil se destaca por ter sido a única colônia do continente americano a conservar

sua unidade territorial; as colônias espanholas se dividiram em 16 países e os Estados Unidos

levaram 114 anos para constituir seu território (excluídos Alaska e Hawai). A língua portuguesa

não foi o único motivo: a colônia era muito bem estruturada. Apesar da dimensão quase

continental, a diversidade regional e as diferenças sociais no momento da

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Independência, as estruturas colônias deixaram na sua herança o forte sentimento dos

brasileiros de pertencer ao mesmo país, isto é, a consciência ou identidade “nacional”: o Brasil

existia como nação. Neste sentido não era “atrasado”.

Completando este aspecto político, da Aclamação de D. Pedro I ao falecimento de Getúlio

Vargas (1954), o Estado Brasileiro passou por diferentes fases: Império, República e Estado

Novo; o território organizou-se em províncias, depois em estados; na década de 50, o processo

democrático estava se formalizando. Isso significa que no espaço de 130 anos, muito mais rápido

que os países da Europa, o Brasil conseguiu se dotar das instituições político-administrativas que

necessitava. Eram provavelmente imperfeitas, mais ou menos estáveis, mas tinham o mérito de

existir e a construção do Estado não era fácil num território tão extenso. Politicamente falando,

em 1950, o Brasil não ficava atrás das “nações desenvolvidas”.

Do ponto de vista econômico e social, a situação era outra. Até 1950 o Brasil era

subpovoado(e ainda é). Em 1872, tinha 10 milhões de habitantes e cinco vezes mais em 1950.

Mas a população era mal distribuída. Em 1872, metade vivia na atual região Nordeste e 40% na

região Sudeste; um terço morava nos estados da Bahia e Minas Gerais. Oitenta anos depois, 64%

da população estavam em zona rural; quase a metade vivia na região Sudeste em zona urbana, e

principalmente no estado de São Paulo. A sociedade era tradicional com forte divisão de classes

ou categorias sociais, entre as oligarquias fundiárias/elites governantes e o povo. Neste a

distinção se fazia entre homens livres – incluindo os imigrantes desde 1824 – e escravos até a

Abolição, em 1888; mais tarde, a consciência de raça e renda substituiu a escravista; a

identidade regional e estadual acrescentou-se à brasileira.

A “síndrome colonial” marcou o desenvolvimento econômico, ou seja, deu-se continuidade às

estruturas coloniais com formas mais avançadas. As oligarquias fundiárias dominavam, a

agricultura de exportação e o extrativismo permaneceram como principais atividades, com

destaque do café e da borracha. A região Sudeste se beneficiou do primeiro por diversas razões:

espírito bandeirante ou pioneiro, espaço livre, peso demográfico etc. Não cabe discutir aqui o

processo de industrialização do Brasil que foi objeto de amplas análises (SUZIGAN, 1986). Na

ótica de nosso tema, podemos interpretar a cultura do café como um tipo de “revolução agrícola”

que permitiu o surto industrial, a tímida “revolução dos transportes” pela criação da rede

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ferroviária e, finalmente, o “arranco” – o take-off de Rostow – de toda economia brasileira. Era a

principiante “revolução industrial” à moda brasileira. No resto do país, a economia era de tipo

mercantilista, meramente regional, agrária e comercial, a indústria era mais próxima da

manufatura que da fábrica.

Em suma, o Brasil da década de 50 não era atrasado nem subdesenvolvido, era um país ainda

em construção, com um sistema de referência próprio: o sistema mercantilista e colonial. Estava

numa fase de transição de tipo “pós-colonial e pré-capitalista”. A mudança do sistema de

referências e de estratégias orientadas pela Ideologia do Desenvolvimento então, teria desviado

o país do curso “natural” de sua história, impondo transformações aceleradas para um modelo de

sociedade que não correspondia à sua realidade. Disso surgiria a visão dualista do Brasil,

frequente em autores como Celso Furtado, baseada nas oposições capitalismo/tradicional,

moderno/arcaico ou ricos/pobres (BASTOS; SILVA, 1995: 177). Construiu-se um “novo Brasil”

por cima daquele que existia sem levar em consideração as aspirações tanto da elite quanto do

povo, desprezando-se a realidade geográfica, histórica, econômica e social, a cultura e

identidade brasileira. A maioria dos atuais problemas brasileiros estaria decorrente dessa

“interrupção da história” e no difícil convívio entre dois modelos de sociedade, mais do que nas

disparidades econômicas, ou seja, uma questão cultural.

O Desenvolvimento Local, Sustentável e Cultural: o novo paradigma

Hoje se pensa que o desenvolvimento é uma noção quantitativa e qualitativa que associa o

crescimento da produção a mudanças estruturais na sociedade e melhoria da qualidade de vida

da população. A construção desse paradigma iniciou-se na década de 60 quando se deu conta do

desastroso impacto do capitalismo sobre o meio ambiente, nos países industrializados em

primeiro lugar. A Conferência Biosfera da UNESCO, em 1968, emitiu o conceito de

“desenvolvimento ecologicamente viável”. Vinte anos depois, o Relatório Bruntland da ONU

definiu o desenvolvimento sustentável como “desenvolvimento que se esforça de corresponder às

necessidades do presente sem comprometer a capacidade de satisfazer as das futuras gerações

que seja transmissível em boas condições para as futuras gerações” (BRUNEL, 2004: 35-45).

Desde então, não se pode pensar em desenvolvimento sem preservação do meio ambiente e

sustentabilidade.

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A noção de desenvolvimento local veio um pouco mais tarde, com a globalização. Milton

Santos e Otavio Ianni, entre outros autores, perceberam que, frente ao pensamento único e os

comportamentos padronizados que se espalhavam pelo mundo, erguiam-se mais e mais

reivindicações culturais de comunidades locais. Cresciam as noções de direito, respeito e

dignidade. Mais se queria unificar o mundo nos seus modos de se pensar e viver e mais emergiam

diferenças locais, às vezes em áreas extremamente reduzidas. Assim, a globalização teve um

efeito inesperado: o surgimento do local (SANTOS, 1997; IANNI, 1996). Foi o que John Naisbitt

chamou de “paradoxo global” e Michel Maffesoli até assimila ao tribalismo os microgrupos

sociais que são as populações territoriais (NAISBITT, 1994; MAFFESOLI, 2002: 88-98). O

desenvolvimento passou a ser “local e sustentável”.

O cultural veio completar o paradigma. Em 1966, Edward T. Hall, para quem a cultura era a

“dimensão escondida” do homem, questionava: “Quanto tempo o homem poderá continuar a

ignorar sua própria dimensão?” (HALL, 1971: 232). De fato, a cultura passou a ocupar um

espaço cada vez maior nas sociedades. Samuel P. Huntington, em O choque das civilizações,

interpretou os acontecimentos mundiais, apontando a pluralidade cultural (HUNTINGTON, 2000).

Em 2002, a Declaração Universal da UNESCO considerava a Diversidade Cultural como

“patrimônio comum da identidade” e “fator de desenvolvimento”.

De acordo com Alain Touraine, primeiro interpretamos a realidade social pelo “paradigma

político”e, depois, pelo “paradigma econômico e social”, mas “essas categorias sociais se

tornaram confusas e deixam na sombra uma grande parte de nossa experiência vivida”. Por isso,

diz ele, “Precisamos de um ‘novo paradigma’, pois não podemos mais voltar ao paradigma

político, sobretudo, porque os problemas ‘culturais’ tomaram uma tão grande importância que o

pensamento social deve se organizar em volta dos mesmos” (TOURAINE, 2005: 09-10). A

identidade, os direitos culturais, a mulher, entre outros, são os novos objetos de análise do

“paradigma cultural”.

Assim, no novo e atual paradigma, o desenvolvimento é “local, sustentávele cultural”.

Território, projeto e protagonismo local

O local é apenas relativo ao global e é vago; por isso, muitos preferem falar em

“desenvolvimento territorial”. A abordagem, porém, é diferente. Na teoria do desenvolvimento

local, o território é uma construção subjetiva que se inicia pelo detecto de um problema local a

ser resolvido: é a ação ou o projeto que determina o território e não o contrário (PAULA, 2004;

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MINOT, S.l.s.d). O projeto, ou pacto territorial, “viabiliza a associação de interesses promovida

entre os diversos atores regionais, que se conservam independentes, com vista a obtenção de

determinados objetivos”. Para sua realização, o projeto precisa de uma “estrutura organizacional

que dê conta da constituição de um espaço de interação dos diversos atores e da construção de

uma entidade responsável pelo encaminhamento e implementação das diversas ações

propostas” (COELHO, 2004. Grifos nossos).Há, portanto, necessidade de mobilização das

“competências necessárias à formulação e à execução dos objetivos estratégicos do projeto”

(ABRAMOVAY, 2002: 36). Resumindo, “a chave para a construção de um desenho territorial que

se traduza efetivamente numa unidade de desenvolvimento é o protagonismo local” (PAULA,

2004: 3. Grifos nossos).

Visto que o problema e a ação definem o território, este pode corresponder a uma rua, um

bairro, um município, uma bacia hidrográfica, uma região etc. O risco é a proliferação de

territórios “fabricados” pelos responsáveis políticos que procuram lugares de gestão e de

projetos (DI MÉO; BULÉON, 2005: 75). Da iniciativa dos atores locais até a realização do projeto,

passando pela criação de uma entidade institucional, coloca-se a questão do poder local, mas

“quem possui a autoridade, representatividade e legitimidade para decidir sobre o futuro das

pessoas?” questiona Juarez de Paula (PAULA, 2004: 3). O problema está na concepção do poder

local e, mais especificamente, na tomada de decisão.

Poder local e decisão

O poder não é somente político-administrativo, institucional (MICHAUD, 2002;

ALBUQUERQUE, 1986). Para Jean-Luc Guichet, existem três tipos de poder. O primeiro é a

“capacidade de fazer”; uma disposição concreta, qual o artesão que fabrica o seu objeto. O

segundo é a “capacidade de mandar fazer” ou vontade e possibilidade de dispor do outro,

individual ou coletivo. O terceiro é a autoridade que se define como a “capacidade de ser

obedecido”, sem coerção nem persuasão e “somente depende de seu reconhecimento por parte

dos sujeitos aos quais ela se aplica” (GUICHET, 2004: 4-12). Em termos de desenvolvimento, o

poder local seria a combinação dos três; dependeria, por um lado, da qualidade das relações

sociais entre os diversos atores para chegar a acordos mutuais plenamente aceitos e, por outro

lado, da conformidade ao sistema político nacional e a lei na sua organização institucional.

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Segundo Maria da Glória Gohn, a concepção de poder local mudou na década de 90. A

intensificação do movimento participativo, comunitário, associativo fez com que passasse “a ser

visto como espaço de gestão político-administrativa e não como simples sede das elites

(econômicas, sociais e políticas)”. Surgiu desse movimento a noção de “esfera pública” que

permitiu, cada vez mais, integrar as organizações da sociedade civil na gestão pública, bem como

a incorporação de temas até então poucos abordados pelo poder local: meio ambiente, mulher,

cultura e identidade, etc. Emergiu um novo conceito político: a “governança” (GOHN, 2001: 34-

40). Nesta, “a decisão, em vez de ser propriedade de alguém (indivíduo ou grupo), deve resultar

da negociação permanente entre os atores sociais” (DEFARGES, 2006: 7). Nessa perspectiva,

conforme Elenaldo Teixeira, o poder local “é aqui entendido como relação social em que a

sociedade civil com todos seus componentes (organizações, grupos, movimentos), é um dos

atores, e, embora limite-se por uma territorialidade, nela não se esgota” (TEIXEIRA, 2002: 20)

Essa definição insere-se na visão da democracia onde o poder é compartilhado com a

sociedade num todo, numa real gestão participativa. Cresce a importância do governo municipal

onde ela mais se exerce. No entanto, na prática, constata-se que há quase sempre mútua

desconfiança nas reuniões entre a sociedade civil e os governantes. Geralmente, a participação

se limite à troca de informações na consulta popular, por vezes, a busca de termo de acordo, mas

a decisão ainda depende exclusivamente daquele que possui o poder (COTTENAVE;

NEUSCHWANDER, 2005: 116-117). A participação assim seria uma forma de os governantes

legitimarem suas decisões por uma base supostamente democrática (NARDI, 2010: 109-111) e

aproximar-se-ia da gestão participativa autoritária, “orientada para a integração e o controle

social da sociedade e da política” (GOHN, 2001: 20). Para ser realmente participativa, haveria de

ter co-decisão, ou seja, repartição das responsabilidades sobre o conteúdo e os efeitos das

medidas tomadas. Para isso acontecer, é preciso reunir estritas condições: direito de todos à

participação, igualdade na escolha dos tópicos discutidos e na votação, e, por fim, uma “situação

que permita a todos os participantes desenvolver, à luz de suficiente informação, uma articulada

compreensão do assunto necessário à regulação de interesses contestados” (Robert Dahl apud

TEIXEIRA, 2002: 34).

Mas a participação e a democracia local não podem se resumir à condescendência dos

governantes e as reivindicações do povo que não alterariam o poder de decisão e uma

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enganadora democracia local. No espírito do “protagonismo local”, a participação deveria ser

liberal e proceder de um “movimento espontâneo dos indivíduos” (GOHN, 2001: 20). Seria

diferente do velho fundo utópico das assembleias populares, deliberativas e detentoras do poder,

até o fim do Estado, a forma revolucionária onde “a participação se estrutura em coletivos

organizados para lutar contra as relações de dominação e pela divisão do poder político” (GOHN,

2001: 20). Neste aspecto, de acordo com Pablo González Casanova, houve uma mudança de

paradigma: “As ‘lutas de libertação’ e as ‘lutas de classes’ aparecem como um fenômeno

terminado. Como conceitos obsoletos. Em vez da ‘libertação’ propõe-se a ‘inserção’ ou

‘integração’, e, em vez da luta social, a ‘solidariedade humanitária ou empresarial’” (CASANOVA,

2000: 46-62). Prevalece então a participação democrático-radical, baseado na ideia de

cidadania para a construção de “uma nova realidade social, sem injustiças, exclusões,

desigualdades, discriminações, etc.” (GOHN, 2001: 19). Em suma, a “ditadura dos excluídos e

das minorias” substituiria a do proletariado. Mas Teixeira salienta o maior problema técnico da

participação:

Como inserir no processo os excluídos que não dispõem das condições

mínimas sequer da sobrevivência material, quanto mais de informações

e condições psicológicas para tomar parte num processo demorado,

complexo, sem possibilidades de atendimento imediato de suas

necessidades? (TEIXEIRA, 2002: 35).

Por definição, o poder local é restrito, por um lado, à execução da ação ou do projeto e, por

outro lado, ao território onde ela, ou ele, se implementa. Pode ser diferente de um território para

outro. Mas, em todos os casos, é a resultante de um longo processo de elaboração que se inicia

pela organização, formal ou informal, de pessoas. A institucionalização aparentar-se-ia à criação

de associação com elaboração de estatuto legal. Nisso não se raciocina em termos políticos – o

governo vigente ou a forma de participação – mas sim em termos de ação e território: quem faz,

como e onde. Que seja uma pessoa ou um grupo de pessoas, previamente estabelecem-se o modo

de escolha, as condições contratuais de exercício do poder, as modalidades de validação das

decisões bem como o seu controle. E assim em diante, estipulam-se cada aspecto do poder.

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Desta forma, são os atores locais que avaliam a necessidade de uma instituição de poder que

elas criam e controlam e, assim tomando as decisões, elas verdadeiramente são, individual e

coletivamente, donas do poder.

Tomando por objeto de análise o Recôncavo da Bahia, vamos tentar ver como se aplicam as

teorias na prática.

O Recôncavo Baiano: região e lugares de identidades

Antes de tratar de desenvolvimento e território no Recôncavo Baiano é preciso entender de

que estamos falando. A noção de região é amplamente discutida entre os geógrafos e, com

frequência, prefere-se falar em espaço e “organização espacial” (CORRÊA, 1986), “estrutura

social” e “sistema de ações” (SANTOS, 2008). Uma região pode ser natural, administrativa,

urbana, industrial ou complexo territorial de produção (NOJON, 1992). Sintetizando, para definir

uma região é preciso reunir na dimensão espacial os aspectos físico-geográficos,

socioeconômicos, político-administrativos, étnicos e culturais. É uma área em que todos esses

elementos se integram para formar uma entidade única, coerente, dentro de limites claramente

delineados.

Em uma primeira abordagem, o Recôncavo se apresenta como “a terra circunvizinha da Baía

de Todos os Santos”, região natural limitada, horizontalmente, pelo mar e o sertão semiárido e,

verticalmente, sem verdadeiro confim. A análise da formação econômica, social e espacial traz

melhor compreensão do espaço regional. O aspecto predominante no território são as relações

sociais que se estabelecem num processo histórico combinatório assim como diz Milton Santos:

Modo de produção, formação social, espaço – essas três categorias são

interdependentes. Todos os processos que, juntos, formam o modo de

produção (produção propriamente dita, circulação, distribuição,

consumo) são histórica e espacialmente determinados num movimento

de conjunto, e isto através de uma formação social (SANTOS, 1979: 14).

Na época colonial, o Recôncavo foi um modelo de organização: a plantation. O açúcar era o

motor da economia e tudo girava em torno dele. Houve assim uma divisão do trabalho em

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subáreas: a dos canaviais (Santo Amaro) e a da economia de subsistência (Cachoeira, Nazaré)

para a produção de gêneros alimentícios, com alguma especialização. Nos campos da Cachoeira

se produzia o fumo que servia de moeda no tráfico negreiro, a área de Nazaré fornecia lenha para

os engenhos, madeira para os estaleiros de Salvador e a construção civil, além de objetos de

argila, cerâmica. A baía e os rios eram as principais vias de comunicação além de abastecer em

peixes. Em volta, o sertão era o lugar da criação de gado. Era uma região coerente, pelos critérios

da época.

Após a Independência, Cachoeira perdeu sua posição central e dominante em prol de Feira de

Santana. Desagregaram-se as subáreas, partindo para diferentes direções. A zona dos canaviais

permaneceu sem alteração (salvo a abolição da escravidão em 1888) até os anos 50 do século

XX, quando o petróleo surgiu e alterou sua estrutura econômica e social. A parte sul, sem grandes

oportunidades, quase estagnou, continuando a viver de atividades tradicionais. A área fumageira

teve outro rumo. O século XIX foi o auge do consumo dos charutos e o fumo da Bahia era um dos

mais apreciados no mundo, principalmente na Europa. Até 1940, representou 30% ou mais do

valor das exportações baianas. A partir de 1850, aumentou o número de armazéns de fumo para

exportação e apareceram as fábricas de charutos de Cachoeira e São Felix, expandindo-se os

estabelecimentos para outras cidades da região, em especial Cruz das Almas e Feira de Santana.

O Recôncavo fumageiro foi, sem dúvida, uma das primeiras e raras regiões no interior do Brasil a

possuir um verdadeiro “tecido industrial”.

As atividades econômicas, a divisão do trabalho, assim construíram o espaço e determinaram

as relações sociais, ou seja, fizeram o Recôncavo. A cana de açúcar, o fumo, a pesca, a cerâmica,

constituíram o substrato ou as raízes de várias identidades dentro do mesmo território. O fumo

permitiu manter uma relativa coerência regional. É isso que permite afirmar que, hoje, não existe

uma identidadeno Recôncavo, mas sim uma forte diversidade cultural.

Hoje, o Recôncavo é um dos vinte e seis Territórios de Identidade da Bahia cujo processo de

formação é muito diferente deste que acabamos de apresentar.

Incoerências do Território de Identidade

Os Territórios de Identidade têm sua origem nas microrregiões que, em 2000, haviam sido

resultantes de um processo de elaboração pelo IBGE, iniciado antes de 1960. Assim, em algumas

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delas, os limites flutuaram, municípios passaram de um censo para outro de uma microrregião

para outra. Em 1960, a “Zona do Recôncavo” compreendia vinte e três municípios, incluindo

Salvador, e outros que, em 1975, estavam em outras microrregiões. Era parte da região

denominada “Grande Recôncavo” que incluía Feira de Santana e Alagoinhas. Ainda em 1975,

vinte e seis municípios compunham a microrregião do “Recôncavo Baiano”, entre os quais

alguns, depois, foram incorporados à microrregião de Feira de Santana; Castro Alves já estava

nesta e entrou na do Recôncavo, talvez em 1995. Finalmente, em 2005, vinte municípios

formavam a microrregião, estranhamente considerada “de Santo Antônio de Jesus”, que se

transformou em “Território de Identidade do Recôncavo”.

Relativamente às outras divisões do Estado da Bahia, o Território padece de algumas

incoerências. Os 20 municípios pertencem à mesorregião “Metropolitana de Salvador”, mas

dezenove estão no Eixo de Desenvolvimento “Grande Recôncavo”, dezoito na Região Econômica

“Recôncavo Sul”; doze dependem da Região Administrativa de Cruz das Almas e seis da de Santo

Antônio de Jesus. Os dois municípios de São Sebastião do Passé e São Francisco do Conde

pertencem a outras microrregiões, regiões econômicas e administrativas; Cabaceiras de

Paraguaçu e Castro Alves estão incluídos na região semiárida, o sertão (SEI, 2012).

Da mesma forma que existe diversidade cultural, a região possui vários pólos de atração. Feira

de Santana, embora externa, atrai praticamente todo o norte e leste do território. A área de

influência de Santo Antônio de Jesus cobre apenas uma pequena parte no sul do Recôncavo. As

cidades de destaque dentro do território têm uma importância relativa. Santo Amaro e Cachoeira

são, talvez, mais cidades históricas que reais centros econômicos. Cruz das Almas seria, de fato,

o centro do Recôncavo porque foi – e ainda é – “Capital do fumo”, isto é, o lugar onde se

concentrou a principal atividade regional durante quase um século. Hoje é sede da Universidade

Federal do Recôncavo.

O processo de construção do Território de Identidade do Recôncavo, sem verdadeiramente

entrar em contradição com sua formação socioeconômica, não apresenta a coerência

requisitada para fazer deste uma região. Assim como diz Franklin Coelho, “as experiências têm

demonstrado que não se impõem identidades territoriais. Estas identidades se constroem

socialmente a partir de um espaço social herdado” (COELHO, 2004. Grifos nossos). A incoerência

territorial é grande fator de perturbação na política de desenvolvimento local, mas não a única. É

o que vamos tentar comprovar agora.

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O Recôncavo: território rural?

Em 2003, simultaneamente à instauração da Secretaria do Desenvolvimento Territorial do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), implantou-se o Programa de Desenvolvimento

Sustentável de Territórios Rurais. Este, por decreto de 25 de fevereiro de 2008, transformou-se

em Programa Territórios da Cidadania com a criação de 60 territórios distribuídos por todo o país,

sendo vinte e nove na região Nordeste.

O objetivo geral do Programa é a ”superação da pobreza e geração de trabalho e renda no

meio rural por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável”. Os objetivos

específicos são: a inclusão produtiva das populações pobres dos territórios, o planejamento e

integração de políticas públicas, a universalização de programas básicos de cidadania e, por fim,

a ampliação da participação social.Os territórios rurais se caracterizam “por um conjunto de

municípios unidos pelo mesmo perfil econômico e ambiental que tenham identidade e coesão

social e cultural”. A identificação dos territórios tem por base: menor IDH; maior concentração de

agricultores familiares e assentados da Reforma Agrária; maior concentração de populações

quilombolas e indígenas; maior número de beneficiários do Programa Bolsa Família; maior

número de municípios com baixo dinamismo econômico; maior organização social; pelo menos

um território por estado da Federação (TC, 2011a).

Em verdade, não se procedeu a nenhum estudo para a criação dos territórios: mudou-se

simplesmente o nome das microrregiões do IBGE. Ora, estas não são sistematicamente rurais,

elas foram estabelecidas em função de critérios geográficos e econômicos, antes de sociais. Por

outro lado, a urbanização crescente do Brasil entre 1940 e 2000 (de 50 para 80%), a mudanças

produtivas e comerciais, a industrialização modificaram a configuração não somente das regiões

como todo o estado da Bahia. Somente um terço dos habitantes dos dezessete municípios do

Território Portal do Sertão vive na zona rural e, hoje (2011), dois terços da população territorial

moram nos seis municípios da Região Metropolitana de Feira de Santana. No Território do

Recôncavo a situação é a mesma. A população é de 576.672 habitantes (dados de 2010) e a taxa

de urbanização é de 69,2%, com variações

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municipais de 26,8 até 87,2 %. Sete cidades têm mais de 20 mil habitantes até 80 mil; nove

estão entre cinco e vinte mil e somente quatro têm menos de cinco mil habitantes, número

inferior ao limiar do IBGE para definição de uma cidade. Visto de outro ângulo, 80% da população

total vivem em onze municípios.

Assim o Recôncavo, território supostamente rural, na realidade, é uma região urbana,

salientando que na urbanização se consideram cidades, vilas e aglomerações menores. Ainda

subsistem problemas na agricultura, mas não são mais fundamentais como antigamente. O

território não se adequa aos critérios do Programa que o criou.

A pobreza em questão

Ninguém pode negar que o Programa Bolsa Família seja uma necessidade para as pessoas

mais carentes, mas o Recôncavo, como Território de Identidade, realmente pode ser considerado

como pobre?

Dez de seus municípios estão entre os 50 primeiros municípios baianos no ranking do IDH

Municipal, num total de 415. No que diz respeito ao Índice de Desenvolvimento Econômico, oito

estão no primeiro quarto do ranking dos municípios baianos pelo Índice de Desenvolvimento

Econômico e também oito pelo Índice de Desenvolvimento Social, sendo, respectivamente,

dezesseis e treze na primeira metade (SEI, 2012).

No período 2008-2010, o território teve 70.262 famílias beneficiadas pelo Bolsa Família, o

que corresponde a 241.701 pessoas e 42% da população em 2010. Quer o Governo Federal

aumentar o número? É esta a visão do desenvolvimento dos governantes? O benefício é um

paliativo que, todo o mundo sabe, não pode se substituir a uma política de geração de empregos e

renda: é improdutivo.

A análise do mercado formal de trabalho, em 2008, mostra carências estruturais. Os números

corroboram o que foi dito acima: o setor “agropecuária, extrativa vegetal, caça e pesca”

representa apenas 4,2% dos empregos e 6% juntando a extração mineral. O primeiro empregador

é a administração pública (33%) de localização urbana. Entre os dois, com percentagens

sensivelmente próximas, situam-se o comércio, os serviços, a indústria de transformação; a

construção civil representa somente 3,6% dos empregos. Por outro lado, cinco municípios

concentram 67% dos empregos, a maioria em áreas periféricas do território. Globalmente, o

Recôncavo ocupava 60.690 pessoas, os seja, uns 10% da população. Considerando que um

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emprego deveria sustentar 3,44 pessoas (média por domicílio) e que há 167.605 domicílios,

haveria um déficit de mais de 100 mil empregos no território.

O real déficit seria muito inferior. A economia informal preenche as lacunas dos dados

oficiais, fornecendo, talvez, metade dos empregos formais que faltariam; estes trazem renda,

mas sem os benefícios sociais. Os Programas de Economia Solidária (federais) também

incentivam atividades associativas ou cooperativistas. Eles utilizam os Territórios de Identidade

como base de atuação. Iniciaram-se com a instauração da Secretaria Nacional de Economia

Solidária, em 2004, e foram implantados em todo o país, em 2005. Em 2007, existiam na Bahia

1.611 empreendimentos em 210 municípios, colocando o Estado em terceira posição após o Rio

Grande do Sul e o Ceará (SENAES, 2009). O Centro Estadual de Economia Solidária de Feira de

Santana, aberto em 2008, na espera de outros centros, atende vários territórios inclusive o do

Recôncavo. Neste existiam 79 empreendimentos em 2007, dos quais 55,7% estavam em sete

municípios, em Cruz das Almas e em volta deste (MTE, 2012).

Identificar o território do Recôncavo somente a partir dos agricultores familiares, assentados

da Reforma Agrária, as populações quilombolas e indígenas e o número de beneficiários do

Programa Bolsa Família é muito surpreendente. Não corresponde em nada à sua realidade.

Nenhum desenvolvimento local poderá sair desta definição.

Os casos dos transportes e do fumo

O desenvolvimento passaria, então, pela análise das características regionais, a identificação

dos reais problemas locais que determinam a ação para solucioná-los e define o território. Para

isso é preciso investir em outros campos, agir sobre a infraestrutura, os transportes em primeiro

lugar. Basta circular um pouco pelo Recôncavo para ver as carências do sistema rodoviário. A

BR101 é o quase único eixo territorial que tem boas condições de tráfego, a maioria das estradas

é de terra e/ou em péssimas condições. A mobilidade horizontal é uma premissa para a

mobilidade vertical. Quantos moradores são obrigados a procurar empregos nas grandes cidades

como Feira de Santana e Salvador, por falta de oportunidade nas suas terras? As pessoas deixam

o território. Não seria melhor que pudessem viajar cotidianamente de sua casa para as cidades

mais próximas? Em 2009, existiam 81.913 veículos do Recôncavo, entre os quais 77% eram

particulares, divididos pela metade entre carros e motos. O que mais chama a atenção é o

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baixíssimo número de ônibus e microônibus: 2.223, ou seja, 21 por mil habitantes (IBGE

CIDADES, 2012). Considerando que a grande maioria estaria no transporte urbano, quantos

veículos coletivos estariam interligando os municípios? E isso sem falar que se dificultam o

escoamento da produção local, a distribuição de produtos em geral, o que limite a criação de

empresas e restringe todo o potencial de crescimento da região. A verdadeira pobreza do

Recôncavo estaria nesse “vácuo” do sistema rodoviário territorial.

O caso da decadência do fumo é outro crucial problema do Recôncavo. Envolveria o território

de uma dúzia de municípios só, tendo Cruz das Almas como “capital”. É um problema agrário,

pois os fumicultores possuem pouca terra e não há nela cultura tão rentável quanto o fumo. No

caso, a questão é a dimensão da terra e não o que se cultiva nela. Qual atividade pode substituir a

solanácea no campo? O problema também é urbano, já que milhares de famílias dependem dos

armazéns de beneficiamento e das fábricas de charutos, principalmente em Cruz das Almas.

Fechando todos os estabelecimentos fumageiros, quais empresas, industriais ou não, poderiam

dar tantos empregos e em que setor de atividade? Se a atividade viesse a extinguir-se (o que é

provável), afinal, qual seria o impacto econômico e social no Recôncavo? As consequências do

fim da atividade, portanto, é o tipo de situação que poderia motivar os governos municipais e a

sociedade civil em se organizar para preparar a substituição do fumo por outras atividades e não

unicamente agrícolas. Isso é válido para qualquer atividade regional em declínio. Infelizmente,

constata-se que nada é feito neste sentido apesar de todo o mundo ser consciente do problema

há anos. Pelo contrário, no quadro da política federal contra o tabagismo e de acordos

internacionais, instâncias e grupos, inclusive o MDA encarregado do desenvolvimento territorial,

tentam erradicar a atividade no Recôncavo, sem propor soluções viáveis. A questão, hoje, não é

manter o fumo ou não, mas o que se pode fazer sem ele.

É preciso, portanto, avaliar os pontos fracos e fortes, as ameaças, as oportunidade do

“território fumageiro”. Somente depois disso, será possível definir estratégias de

desenvolvimento para o futuro da dessa área do Recôncavo. Em breve, trata-se de criar um

projeto de desenvolvimento local, independentemente do “Território Recôncavo”. Para que isso

acontece, a iniciativa deveria proceder da sociedade local, não é o que vemos se realizar.

De forma geral, as disparidades geográficas, econômicas, políticas, sociais e culturais e a

ausência de cidade dominante, ou centro, seriam o maior empecilho para qualquer tentativa de

elaboração de um projeto global para o Território de Identidade do Recôncavo. Como imaginar a

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instauração pelos atores locais (quais seriam?) de um órgão local ou regional “independente”

que, mais do que um conselho, funcionaria como o “governo” de um território definido pelas

instanciais federais e não pelos atores mesmos? Voltamos, então, à essencial questão: em que

lugar está o poder?

As organizações territoriais: a negação do Recôncavo

O Programa Territórios da Cidadania criou uma ampla estrutura de gestão. Mobiliza dezenove

ministérios e outros órgãos do Governo Federal, entre os quais bancos. Existem três conselhos: o

Comitê Gestor Nacional, o de Articulação Estadual e o Colegiado Territorial. Este é composto por

“Representantes das três esferas de governo e da sociedade em cada território”. Seriam

representantes da sociedade civil: “agricultores familiares, pescadores, indígenas, quilombolas,

povos e comunidades tradicionais, jovens, mulheres; associações comerciais, industriais, da

agricultura, cooperativas; universidades e escolas técnicas; outros”. Basicamente, quem toma as

decisões é o Comitê Gestor Nacional. O de Articulação Estadual divulga e coordena o Programa. O

Colegiado Territorial o aplica e, com a participação da sociedade civil, identifica as demandas

(TC, 2011b).

Essa estrutura põe em cheque qualquer política de desenvolvimento local. O poder é

exclusivamente federal, pela posse unilateral da decisão. Os órgãos intermediários que são o

governo estadual e o colegiado (que inclui representantes do Governo Federal) e até a

participação, aparecem como artifícios da máquina estatal, feitos para justificar suas decisões.

A pouca representatividade da sociedade civil nos colegiados e a relutância das prefeituras em

colaborar com eles é sinal de discordância entre Governo Federal e os atores locais e da

discrepância entre política pública nacional e necessidades locais (TBA, 2012).

Existe, no entanto, uma organização local, independente do Programa: o Consórcio

Intermunicipal do Recôncavo Baiano (CIRB). Foi instituído em 2005 para “promover, de forma

integrada, a geração de emprego e renda através do desenvolvimento de ações voltadas para o

turismo e a cultura da região” (FERRAZ, 2012). Apoiou-se na Lei Federal n. 11.107, de 06 de abril

de 2005, que regularizou os Consórcios Públicos em todo o país. Esta permite à iniciativa local

criar uma organização de direito, com estatuto jurídico, mas a integrada em outra estrutura de

governo, já que o objetivo da lei é a “criação de mecanismos e instrumentos de coordenação,

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cooperação e pactuação entre a União, os estados e os municípios”. Não se sabe quem possui o

poder de decisão ou qual a margem de ação do Consórcio.

Apesar de ser oriundo da iniciativa local, o Consórcio não tem uma percepção do Recôncavo,

como região ou território, melhor que a do Governo Federal (MDA). O território do CIRB inclui 28

municípios, os do Território do Recôncavo, mais três da Região Metropolitana de Salvador e cinco

dos Territórios Baixo Sul, Vale do Jiquiriçá e Piemonte do Paraguaçu (CIRB, 2012). Como poderia

ter ação eficaz numa área tão diversificada em interesses econômicos e sociais, e aspectos

culturais?

O Programa dos Territórios de Cidadania visa aplicar a política pública em todo o território

nacional. As ações são do tipo Bolsa Família, Luz para Todos, Alfabetização, Acesso à terra,

saúde, água etc. A pouca ousadia caracteriza os projetos do CIRB que, com algumas exceções,

poderiam ser realizados pelos municípios, sem interferência do Consórcio.

Conforme os seus objetivos, as organizações partilham como bem quiserem a região natural

em vez de modelar uma região coerente, facilmente identificável. Da multiplicação dos espaços

de gestão, bem como das ações propostas, o desconhecimento da realidade e o descaso dos

reais interesses locais resultariam a negação do Recôncavo.

CONCLUSÃO PROVISÓRIA

A Ideologia do Desenvolvimento gerou mais problemas que benefícios aos países do Terceiro

Mundo e o Desenvolvimento Local apareceu como solução para integrar fatores outros que a

dominação política e o crescimento econômico, materialista: meio ambiente, cultura e

participação popular no poder. No entanto, o rápido estudo do Recôncavo da Bahia atesta que

haveria algumas semelhanças entre os dois paradigmas.

O pressuposto da pobreza se assemelharia à noção de subdesenvolvimento. Os programas

federais seriam parecidos com a “ajuda financeira” aos países subdesenvolvidos. As decisões

são tomadas fora do território, ao nível estadual ou federal, em função de interesses

“superiores”. A margem de ação dos atores locais é quase

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inexistente, limitada aos municípios e qualquer tentativa de organização local dos atores para

a formação de uma instituição de governança, seria provavelmente vista como uma ameaça ao

poder central, assim como o socialismo era perigo para o capitalismo. Os interesses seriam,

portanto políticos e as estratégias de desenvolvimento o pretexto para, pela maquina estatal,

fortalecer o poder central. O sistema de referência e valores seria o de um grupo, uma classe ou

determinada sociedade e serviria para orientar e legitimar suas ações.

Não foram os problemas locais e as necessárias ações para resolvê-los que determinaram a

criação do Território de Identidade do Recôncavo, mas sim a política federal para a resolução de

problemas nacionais. A decisão foi exógena, autoritária e o território é artificial. Ignoraram-se a

realidade local, os componentes geográficos, históricos, econômicos e sociais da região; partiu-

se do pressuposto que o território é rural, pobre e lugar de uma identidade só enquanto o

Recôncavo é tudo menos isso. Além disso, o Programa dos Territórios apenas se destinaria a uma

parte da população – os excluídos e as minorias – e não à população territorial num todo como se

as pessoas não definidas por ele não precisassem igualmente de melhoria de vida; o programa é

inclusive, então, mas também exclusivo e contrário ao espírito democrático e solidário que,

supostamente, o inspirou.

Tomamos aqui apenas alguns exemplos no território do Recôncavo Baiano para chegar a tal

conclusão, necessariamente parcial e provisória. Mas, pode ser o indicador de que o

desenvolvimento local seja o elemento de uma ideologia na continuidade da do Desenvolvimento

– a Ideologia da Globalização – e que, finalmente, como nesta, o bem estar do homem não esteja

o principal alvo como anunciado.

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