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Sara & André conduziram a curadoria com o olhar apropriacionista característico do seu trabalho artístico, donde a curadoria, esse exercício de leitura sobre a obra de arte, volve ela mesma obra de arte. No curso deste ano de 2017, entre os meses de março e agosto, a dupla Sara & André co- missariou um ciclo de três exposições cole- tivas intitulado Curated Curators (I, II, III) , no espaço Zaratan – Arte Contemporânea, em Lisboa. Nada de novo a acrescentar ao facto de termos artistas a comissariarem uma ex- posição. A história do artista que assume a função de curador já vai longa e exemplos não nos faltam no nosso arquivo moderno e con- temporâneo. As motivações também têm va- riado, mas talvez possamos concordar com Elena Filipovic, quando nos diz que a “espe- cificidade” das exposições comissariadas por artistas se prende com um mesmo de- nominador: a vontade de alterar as estrutu- ras e os protolocos que definem os formatos expositivos consignados historicamente 1 . Tomarmos essa “especificidade” como ex- clusiva dos artistas-curadores, seria, no en- tanto, uma conclusão apressada, para não dizer mitificadora. Como sabemos, muitos curadores não-artistas têm-na trabalha- do e, por vezes, com sentido programático. Não obstante, ao virarmo-nos para o las- tro deixado pela curadoria praticada pelos artistas, não podemos deixar de notar que o desejo de transformar as convenções ex- positivas surge como uma constante (mais conseguida, menos conseguida) que este ci- clo de exposições da dupla Sara & André vol- ta a afirmar. Um retorno que, no seu caso, vale sobretudo como diferença, melhor pre- cisando, duas diferenças. Sara & André co- missariaram exposições com curadores e não com artistas. Sara & André conduzi- ram a curadoria com o olhar apropriacionis- ta característico do seu trabalho artístico, donde a curadoria, esse exercício de leitura sobre a obra de arte, volve ela mesma obra de arte. A conversa que se segue parte des- tas mesmas questões e dos lugares incertos que elas felizmente nos garantem. Sofia Nunes: Olhando para o conjunto do vosso trabalho, iniciado em 2004, pode- mos constatar que ele parte claramente de uma tradição artística ocidental com um Uma troca de cadeiras: ... / Sofia Nunes Uma troca de cadeiras: conversa com Sara & André. Sara & André, Curated Curators (I, II, III) Zaratan - Arte Contemporânea, Lisboa SOFIA NUNES RE • VIS • TA arte / reflexão / crítica 12. 2017 – n.º4 01/12 /

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Sara & André conduziram a curadoriacom o olhar apropriacionista característico do seu trabalho artístico, donde a curadoria, esse exercício de leitura sobre a obra de arte, volve ela mesma obra de arte.

No curso deste ano de 2017, entre os meses de março e agosto, a dupla Sara & André co-missariou um ciclo de três exposições cole-tivas intitulado Curated Curators (I, II, III), no espaço Zaratan – Arte Contemporânea, em Lisboa. Nada de novo a acrescentar ao facto de termos artistas a comissariarem uma ex-posição. A história do artista que assume a função de curador já vai longa e exemplos não nos faltam no nosso arquivo moderno e con-temporâneo. As motivações também têm va-riado, mas talvez possamos concordar com Elena Filipovic, quando nos diz que a “espe-cificidade” das exposições comissariadas por artistas se prende com um mesmo de-nominador: a vontade de alterar as estrutu-ras e os protolocos que definem os formatos expositivos consignados historicamente1. Tomarmos essa “especificidade” como ex-clusiva dos artistas-curadores, seria, no en-tanto, uma conclusão apressada, para não dizer mitificadora. Como sabemos, muitos curadores não-artistas têm-na trabalha-do e, por vezes, com sentido programático.

Não obstante, ao virarmo-nos para o las-tro deixado pela curadoria praticada pelos artistas, não podemos deixar de notar que o desejo de transformar as convenções ex-positivas surge como uma constante (mais conseguida, menos conseguida) que este ci-clo de exposições da dupla Sara & André vol-ta a afirmar. Um retorno que, no seu caso, vale sobretudo como diferença, melhor pre-cisando, duas diferenças. Sara & André co-missariaram exposições com curadores e não com artistas. Sara & André conduzi-ram a curadoria com o olhar apropriacionis-ta característico do seu trabalho artístico, donde a curadoria, esse exercício de leitura sobre a obra de arte, volve ela mesma obra de arte. A conversa que se segue parte des-tas mesmas questões e dos lugares incertos que elas felizmente nos garantem.

Sofia Nunes: Olhando para o conjunto do vosso trabalho, iniciado em 2004, pode-mos constatar que ele parte claramente de uma tradição artística ocidental com um

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recuo de pelo menos 100 anos, a que apren-demos a chamar de apropriação. Duchamp utilizou-a para atacar o estatuto de objeto artístico, Broodthaers para criticar os en-quadramentos institucionais, Levine a auto-ria e respetivas ressonâncias patriarcais... Surgindo vocês dentro da mesma linhagem de problematizações, como perspetivam hoje a apropriação?

Sara & André: A Sturtevant diz que palavras como apropriação, autoria ou originalida-de não passam de chavões. Temos de con-cordar que hoje em dia não há limites no que toca ao gesto de apropriar, como disse o crí-tico Waldemar Januszczak em pleno revi-valismo dos ABBA há uns anos atrás: Were ABBA yesterday? Or are they today? Mamma mia, I just can't tell.2 Neste sentido existe uma dimensão bem política no gesto cons-ciente e intencional de apropriar, mas há um outro aspeto igualmente importante que é, nas palavras de Richard Prince, a incapaci-dade de um autor gostar do seu próprio tra-balho. Independentemente da tradição ou da linhagem, cada autor terá as suas motiva-ções e cada prática as suas especificidades. No nosso trabalho, a apropriação surge so-bretudo com a intenção de não assumir um estilo ou linha formal.

SN: Daí utilizarem linguagens tão díspares. O recurso à pop, ao neoexpressionismo, ao conceptualismo, à performance, ao graffiti de rua e por aí adiante, tem de facto vindo a conferir ao vosso trabalho uma dimensão formal pluralista cada vez mais galopante e de difícil estabilização. Mas gostava tam-bém de introduzir um outro dado ao tópico da apropriação. De acordo com o vosso glos-sário3, Picasso, que sabemos nada ter a ver

com aquela família de artistas, terá dito: “Os bons artistas copiam, os grandes rou-bam”. Querem comentar esta observação?

S & A: Contextualizando um pouco, essa cita-ção, que retirámos da Wikipedia, diz-nos que o Steve Jobs usava regularmente essa fra-se, dita por Picasso muitos anos antes, mas cuja origem remontava afinal a Stravinsky ou mesmo a T. S. Elliot, não se conseguindo sa-ber ao certo. Um exemplo perfeito de como tudo está já tão encadeado e misturado. Para os tempos modernos, e segundo o Banksy, é mais fácil obter um perdão do que uma autorização.

SN: E assim, tocamos num segundo aspeto que se relaciona com a questão discutida: a apropriação, mas agora vista enquanto poder. É curioso notar que nas vossas mãos, a apropriação ganha esse sentido duplo. Ela existe como estratégia crítica, mas tam-bém como forma de poder, sem que esse vai-e-vem se resolva. Aliás, o caminho ten-de para o oposto: assumir as ambiguidades latentes para poder intensificá-las e com isso baralhar as regras da Arte. Concordam?

S & A: Plenamente, desde início fomos mar-cados pela ideia mencionada por Bourriaud num dos seus livros – a imitação subver-siva. Mas há outras coisas a acrescentar, nomeadamente a paixão e o envolvimen-to com o que fazemos, que é um enorme filtro a atuar sobre essa ideia. A dúvida – “o copo meio cheio/ meio vazio” – o "sis-tema" é "mais para o bom" ou é "mais para o mau"? E depois, as coisas nunca são como planeias: tens uma ideia, começas a pensá--la, a discuti-la, a trabalhá-la, a executá--la, e chegas sempre a algo completamente

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diferente daquilo que imaginaste no início. Para Duchamp, nesta discrepância – entre a ideia e o resultado – está o coeficiente ar-tístico. Por isso a imagem da ambiguidade é apenas uma luz que ilumina o nosso cami-nho, mas na prática somos, felizmente tal-vez, outra coisa mais orgânica e complexa.

SN: Donde as ferramentas da deslocação e do humor, tão caras à vossa prática apro-priacionista, se assumem imprescindíveis...

S & A: Claro, mas faz tudo parte do mesmo bolo, o humor, a deslocação, a ironia... O hu-mor é o inimigo da autoridade, lemos nós num livro de arte há pouco tempo.

SN: Certo, é muitas vezes, sem dúvida! Mas convenhamos que nenhuma estratégia, por mais crítica e desarmante que nos possa pa-recer, está livre de outras utilizações. O hu-mor é também uma ferramenta útil do ponto de vista de quem governa ou administra. E o vosso trabalho mostra-nos isso muito bem, porquanto está sempre atento aos enquadra-mentos, neste caso o artístico, evidenciando que é nos próprios contextos que qualquer posicionamento ocorre e se define...

S & A: Certo, como disse o Fernando Brito há alguns anos: o mundo moderno é dividi-do em especializações: ciência, moral, arte. Precisamente os melhores profissionais da arte pensaram: "Não sabemos como é que se destroem as outras partes desta aberração, mas sabemos destruir a nossa (...)"... Mas há pouco falávamos num determinado contex-to, porque o humor é também outras coisas, por exemplo uma linguagem, quiçá univer-sal. Voltando a Sturtevant, o humor é uma boa forma de chegar às pessoas.

SN: E com perícia, torna-se num apurado mecanismo de desarrumação da ordem das coisas. É o caso do vosso último projeto, in-titulado Curated Curators (I, II, III), onde to-das estas questões, sobre as quais temos estado a conversar, reaparecem de forma bastante singular, quer no que respeita à tradição do apropriacionismo, quer ao vosso próprio trabalho. Mas antes de nos debru-çarmos sobre as particularidades envolvi-das no projeto, podem contar-nos primeiro como ele surgiu e se foi concretizando?

S & A: Surgiu de uma forma muito circuns-tancial. O espaço Zaratan em Lisboa, con-vidou-nos para iniciar um ciclo de curadoria desenvolvido por artistas. Basicamente, os programadores (Gemma Norris e José Chaves) queriam fazer uma pausa na sua ati-vidade, mas apenas na condição de que esta se mantivesse nas mãos de artistas.

Concretamente, desafiaram-nos a pen-sar três exposições que ocorressem de se-guida no mesmo espaço (entre março e agosto de 2017). Nós ficámos contentes, mas surpreendidos com a proposta pois não tínhamos qualquer ambição particular em fazer curadoria. Assim, ficámos a pensar no que poderíamos fazer e que não fosse exis-tir de outra forma. Que exposição é que um curador nunca faria? O que é que podería-mos (modestamente) acrescentar à prática curatorial. E já agora, como desenvolver algo nesse campo que se pudesse relacionar com o nosso trabalho enquanto artistas plásti-cos. Finalmente, pegando na tal ideia que re-feriste de deslocação – até diríamos, inver-são – pensámos na hipótese de fazer essas três exposições com a participação de cura-dores e não de artistas.

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Que exposição é que um curador nunca faria?

SN: E ao fazê-lo, introduziram um dado novo na vossa prática. Se até aqui se têm apropriado de obras de outros artistas, os objetos e agentes de que agora se apropriam são de uma natureza distinta. No lugar do artista temos o curador, no lugar da obra de arte temos o objeto trazido pelo curador, e na posição do curador, o artista, neste caso Sara & André, que assinam a curadoria do ci-clo de exposições. Por outro lado, acresce o facto de não conseguirmos dissociar esta curadoria do vosso trabalho artístico, pelo que somos levados, por sua vez, a inverter estas relações. Que motivações presidem a esta alteração e respetivas voltas?

S & A: Gostamos da pergunta: como disse um dos participantes na primeira das três expo-sições: um mirífico jogo de espelhos 4... Mais concretamente, há várias motivações, além de alguns dos tópicos já referidos e discu-tidos nesta conversa. Tal como escrevemos no pequeno texto que acompanhou o ciclo 5: a exposição como obra, ou como médium

artístico de pleno direito (nas palavras de Bruno Marchand); o curador como autor − curators are the new artists (Pablo Helguera); a prática curatorial ao serviço da colabora-ção, da discussão e da inovação constantes (como a descreve Jens Hoffmann). Depois, as questões mais óbvias, a inversão de pa-péis − Curador/ Artista − e todas as implica-ções que ela acarreta, no que toca ao status (de ambos), às relações (entre ambos), às práticas e modus operandi (de ambos), etc. E finalmente tudo aquilo que envolve o sim-ples gesto de investigar − visitar, sentar, dis-cutir, ver, ouvir, conhecer, aprender, pensar, relacionar, etc. Tivemos muitos e bons en-contros no caminho para estas exposições.

SN: De uma maneira geral, essas motiva-ções tendem a convergir para um mesmo foco: a curadoria. Se considerarmos que o agente representativo da arte contem-porânea não é o artista, nem o crítico ou o colecionador, mas o curador, e faço minhas as palavras de Clement Greenberg, que já

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o constatava em 1969 6, pergunto-vos: que tipo de relações procuram quando “rou-bam” para o vosso universo artístico o cura-dor e os seus objetos?

S & A: Sim, essa é possivelmente a cha-ve deste ciclo. O curador é a atual figura do mundo da arte e todos temos uma ideia mais ou menos precisa de como isso se reflete no campo das relações profissionais entre artista e curador. Tal como noutros proje-tos que realizámos antes, gostamos de tra-balhar sobre situações que consideramos sensíveis na área em que nos movemos e de investigá-las mais profundamente.

Quanto ao nosso objetivo, talvez quisés-semos poder dizer: "correu muito bem, es-tiveram mais de 20 curadores na inaugura-ção", como já ouvimos (repetidas vezes), em resposta à pergunta: como correu a inaugu-ração/ exposição? Mas não, a nossa ideia desde o início era simplesmente fazer três boas exposições, esse era o objetivo, e agora que terminámos, podemos dizer que temos a sensação de que o conseguimos atingir.

SN: Como falar de curadoria é também fa-lar de critérios, critérios de seleção e or-ganização, centremo-nos um pouco sobre o assunto. Embora resultem lacunas nas três exposições, que certamente gostarí-amos de ver preenchidas por nomes como João Fernandes, Raquel Henriques da Silva, Isabel Carlos ou Paulo Mendes... consegui-ram juntar um número significativo de cura-dores e traçar um panorama da curadoria de arte contemporânea em Portugal bastan-te alargado. Neste esforço evidenciam-se preocupações quase historiográficas e so-ciológicas que nos permitem, por exemplo, identificar genealogias e até mesmo certos

perfis. Até que ponto as ferramentas das ci-ências sociais vos interessam?

S & A: Bem, primeiro que tudo convém escla-recer algo, nós não convidámos curadores que mantivessem uma prática artística pú-blica e continuada, daí a ausência do Paulo Mendes. Talvez um dia façamos um quarto e derradeiro capítulo, pois teríamos muitos nomes a acrescentar se fôssemos por aí. Os três nomes restantes foram contactados, mas por diferentes razões não conseguimos que participassem no ciclo.

Mas nós não somos curadores, somos artistas, a fazer aqui um projeto sobre cura-doria. Como tal, não nos interessava tanto fazer uma seleção, mas antes (tentar) mape-ar a atividade. Porque uma seleção poderia facilmente tornar-se numa espécie de vin-gança. Além de que tiraria certamente algu-ma da legitimidade ou credibilidade, patente na ambição de conseguir ter todos os cura-dores ao nosso serviço. Assim, não iríamos tanto pelas ciências sociais, mas antes pelo que pode haver de sensível no ato de incluir e/ou excluir alguém, que é aliás, uma das particularidades que tanto poder confere à figura do curador.

Finalmente, importa referir que hou-ve também algo de orgânico neste processo de seleção. Quando começámos a preparar a primeira exposição, tínhamos identifica-do cerca de sete ou oito nomes de curado-res que tinham estudado Belas-Artes, mas à medida que nos fomos encontrando com estas pessoas, elas falaram-nos de outras e a lista foi crescendo, quase exponencial-mente, com os contributos dos primeiros convidados. No final, participaram nessa primeira exposição vinte e quatro curadores.

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SN: Essa ideia orgânica vem de facto com-plexificar e vivificar todo o projeto. Não podemos perdê-la de vista. No entanto, o processo de seleção nele envolvido ma-nifesta também marcas de objetividade. O facto de terem usado tipologias acadé-micas para organizar os curadores selecio-nados em três subgrupos, denota algum método que ajuda a delimitar o campo e a relacionar os seus dados. Na primeira expo-sição, agruparam os curadores com forma-ção artística; na segunda, os curadores com formação diversificada (filosofia, letras, ar-quitetura, sociologia, comunicação, direi-to…); e finalmente, na terceira, os curadores formados em história da arte. Parece-me ha-ver aqui uma relação com a ordem disciplinar dos saberes enquanto modelo de organiza-ção da informação, que me recorda algumas propostas da crítica institucional dos anos 70, ainda que no vosso caso a ideia de rigor metodológico seja levada por caminhos iró-nicos e assuma dimensões contingenciais...

S & A: Correto, uma vez mais essa organi-zação surge circunstancialmente. Nós re-cebemos o convite e ficámos a digeri-lo e a discuti-lo durante alguns dias. Tivemos a ideia da primeira exposição, que nos entu-siasmou bastante, e em seguida, da tercei-ra. Nesse momento, sentimos que a ideia de fazer as exposições com curadores tinha pernas para andar e ficámos a refletir de que forma poderíamos criar um ciclo com três exposições, que fosse constituído por pro-postas simultaneamente diferentes e com-plementares. E que pudesse acrescentar um pouco ao que já conhecemos relativamente à figura do curador. Depois, começámos a pôr os nomes no papel, inicialmente achávamos que seriam cerca de trinta ou quarenta, mais

tarde, percebemos que mesmo tendo convi-dado mais de oitenta pessoas, permanece-ram alguns de fora. Se o tivéssemos percebido logo, possivelmente teríamos desistido. Mas voltando à questão, quando esta lista se co-meçou a definir, percebemos que havia dois grupos maiores – os artistas e os historia-dores, e depois vários outros grupos mais pequenos – os filósofos, os arquitetos, os de comunicação –, a que juntámos ainda outros em menor quantidade, que vinham das le-tras, de direito e sociologia. Basicamente, todas estas (últimas) áreas juntas, perfaziam aproximadamente o mesmo total que tínha-mos identificado relativamente aos artistas e aos historiadores e, como tínhamos três exposições para fazer, limitámo-nos a seguir essa orientação que naturalmente se dese-nhou, com o desenrolar da nossa pesquisa.

SN: Na folha de sala que escreveram pode-mos ler: “Uma NOTA apenas para afirmar a nossa pesquisa e seleção como algo pesso-al e abrangente”. Se o critério da abrangên-cia se pode ligar aos aspetos conversados, o critério pessoal não é explicitado, nem nos enunciados expositivos, nem na re-ferida folha de sala. Como o definiriam? Qual o lugar que ocupa no vosso exercício de mapeamento?

S & A: Fazes muito bem em referi-la, com essa nota queríamos desajeitadamente di-zer que, mesmo tendo a tal ambição de ma-pear uma atividade, tínhamos noção da dificuldade, senão mesmo da impossibilida-de de identificar todos os nomes, pelo que de certa forma a exposição nunca deixaria de refletir o nosso percurso. O que vimos, com quem nos cruzámos ou o que lemos, nestes cerca de dez anos que passaram desde que

2. Vista da exposição, Curated Curators (I). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.

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começámos o nosso trabalho enquanto ar-tistas plásticos. Não tem a ver com gosto, mas antes com as circunstâncias, podemos dar o exemplo da Maria Joana Vilela, que participou na primeira exposição e que tinha feito apenas duas curadorias (entre várias outras coisas na área das artes plásticas). Por acaso convidou-nos para uma delas, e assim ficámos a conhecer o seu trabalho, de outra forma talvez não a tivéssemos des-coberto... Importa também referir que o ci-clo foi desenvolvido em muito pouco tempo e sem dinheiro nenhum, dificultando muito um mapeamento verdadeiramente exausti-vo. Se por ventura avançarmos para um ca-tálogo, tentaremos colmatar as lacunas que identificámos no decorrer do processo.

SN: A ideia de um catálogo colocará muitas dúvidas e desafios aos numerosos estudos curatoriais que têm sido publicados... Por exemplo, o facto de terem optado por expor objetos pensados/ feitos/ articulados/ trazi-dos pelos curadores, acaba por implicá-los num quadro projetivo bastante interessan-te, mas nada inocente, diria. Há um conjun-to de provocações envolvidas e até algumas ratoeiras que assediam o curador à condi-ção de artista. Querem falar-nos delas?

S & A: É interessante porque, já dissemos isto várias vezes, até mesmo nesta entre-vista, partimos sempre da ironia para ir dar a outro lado. Porque nos envolvemos e, como tal, acabamos sempre por ultrapassar ou por nos desviar daquilo que era a ideia ini-cial. As ratoeiras e provocações, se exis-tem, estão latentes nas nossas perguntas, mas não à vista dos espetadores das expo-sições, ou pelo menos assim acreditamos. Resumidamente, as propostas feitas para

cada uma das exposições foram: “mostra--nos um objeto artístico da tua autoria; mos-tra-nos uma obra de um artista que tenha sido potenciada por ti; mostra-nos um ob-jeto ou documento que tenha influenciado a escolha da tua carreira”.

SN: Ao determo-nos nessas propostas, ve-mos que a ideia do curador que abandonou uma carreira inicial de artista, por falha, cansaço ou timidez – e estou a citar-vos – dita, por exemplo, o enquadramento da pri-meira exposição. Nela reuniram um conjunto de trabalhos antigos, realizados por curado-res de diferentes gerações. Procuravam al-gum tipo de correspondências ou ruturas, entre esse passado praticamente desco-nhecido e as orientações curatoriais assu-midas por cada interveniente ao longo da sua profissão de curador?

S & A: Não, ainda que em alguns casos se possam estabelecer ligações dessa nature-za. Como dissemos atrás, queríamos apenas fazer uma boa exposição, quer em termos formais, quer conceptuais, e tínhamos uma grande curiosidade relativamente ao que irí-amos encontrar da parte de cada curador, pois na grande maioria dos casos era (pelo menos para nós) um território absolutamen-te desconhecido. Acreditávamos, também, que esta curiosidade pessoal seria facil-mente partilhável com o público, e quando começámos a ver e a escolher as obras, foi quase afrodisíaco, ou se preferires, muito estimulante.

SN: Que vias artísticas conseguiram “des-cobrir” e “legitimar”?

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S & A: Nem nós nem a Zaratan temos, feliz ou infelizmente, o poder de legitimar. Acre-ditamos que simplesmente trouxemos al-gumas coisas para a esfera pública, objetos que estavam guardados e puderam ser vis-tos, comentados, discutidos, fotografados, etc. Esta primeira exposição era diversifi-cadíssima, com obras produzidas entre os anos 60 e a atualidade: pintura, escultura, desenho, colagem, fotografia, vídeo, filme, texto, instalação e publicações.

SN: Quando, por sua vez, auscultaram os curadores com formações académicas não ligadas à arte, pediram-lhes que apresen-tassem qualquer tipo de material que ti-vesse resultado de um eventual diálogo, interferência ou cumplicidade registados entre si e um artista. Muitos foram os cura-dores que incidiram numa lógica de acaso, partilha de interesses mútuos, amizade, co-laboração, conhecimento. Como entendem estes planos perante a crescente industria-lização do setor curatorial?

S & A: Entendemo-los como absolutamen-te fulcrais e, nessa medida, esta exposi-ção foi uma grande surpresa para nós, pois a diversidade e a riqueza de cada uma das propostas que recebemos de volta ultra-passava largamente as nossas expectati-vas iniciais. Mas essas ideias que referes – partilha, amizade, colaboração – que tan-ta importância têm, na sequência do que dissemos atrás, deitavam por terra qual-quer pingo de ironia que pudesse haver na nossa proposta, e eram complementa-das por outras ideias igualmente importan-tes para a compreensão dos aspetos que pode assumir a curadoria. Muito resumida-mente: questões éticas, no caso da obra de

Ângelo de Sousa, editada postumamente por Sérgio Mah; institucionais, no caso do fragmento da obra da Belén Uriel propos-to por Miguel Wandschneider; materiais, na obra da Fernanda Fragateiro escolhida por Paulo Pires do Vale; contratuais, na obra de Arlindo Silva sugerida por Ivo Martins; co-municacionais, na obra de Wilfredo Prieto apresentada pela dupla João Mourão e Luís Silva; ou transgressivos, na obra de Mário Pires Cordeiro e João Lima Duque escolhida por Leonor Nazaré. Podíamos continuar...

SN: Nestas tensões inesperadas e bem--humoradas que conseguiram criar, pode-ríamos até implicar as contrariedades das relações de trabalho na área da curadoria, tantas vezes omitidas do debate público?

S & A: Pegando uma última vez no texto que acompanha o ciclo, João Fernandes diz que os curadores já não podem ser cúmplices dos artistas, pelo papel que foram obrigados a assumir dentro das respetivas instituições. Esta exposição parece ter-nos mostrado que afinal podem, inclusivamente através de for-mas diversas e originais.

SN: Decidiram fechar o ciclo de exposições perguntando aos curadores especializados em história da arte que “epifania” estaria na origem do seu percurso profissional. Porque razão reservaram esta ideia de revelação mágica para esta tipologia de curadores e não para a dos curadores formados em arte?

S & A: Poderia perfeitamente ter sido para aqueles formados em arte. Tem provavel-mente a ver com a origem da ideia: uma vez, num lançamento de um livro, David Santos contou que tinha decidido estudar história

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da arte quando estava em frente ao qua-dro As Banhistas, do Cézanne, na National Gallery em Londres. Isto (a conversa/ lan-çamento) aconteceu há alguns anos, mas essa ideia de como um quadro, num deter-minado momento, pode definir uma carreira, se não mesmo uma vida, ficou-nos presen-te. Assim, quando começámos a pensar no ciclo, perguntámo-nos se este tipo de mo-mento epifânico poderia ter ocorrido com outros curadores. E esta foi a questão que colocámos aos participantes formados em história da arte. Parte deles não tinham tido nenhuma epifania, mas todos nos pro-puseram objetos que refletiam essa chega-da, passagem, curiosidade ou interesse pela arte e pela história da arte. De qualquer for-ma, talvez por sermos artistas, achamos que há uma ótima adequação desta proposta ao universo da história da arte.

SN: Interesses muito díspares, ainda assim relacionáveis em alguns casos. Como pode-ríamos lê-los, no vosso entender?

S & A: É curioso que, como notou a Eva Oddo no artigo que escreveu sobre o ciclo para a revista Contemporânea 7, há três situações que se repetem várias vezes ao longo da ex-posição, são elas: a viagem; a educação e a relação com a família; e o ensino ou siste-ma educativo. Neste último caso, sobretudo num sentido negativo. Outros aspetos pa-tentes: a amizade, o acaso, uma certa for-ma de abertura ao mundo e, para terminar, o trabalho. Enquanto artistas, partilhamos experiências semelhantes em todos estes planos, pelo que os vemos como absoluta-mente naturais.

SN: Com Curated Curators (I, II, III) a autoria de Sara & André ficou ainda mais dilatada, ou “gorda”, se preferirmos. Qual será o pró-ximo passo?

S & A: É um bom colesterol. Ao lado deste projeto, que foi algo megalómano, o próximo passo é muito simples, mas não menos en-tusiasmante (para nós). Trata-se de um pro-jeto de desenho que tem, provisoriamente, o título de "Tempos Livres" e será apresen-tado no próximo ano, muito possivelmente em livro e em exposição. No entretanto, te-remos tempo para muitas outras aventuras e apresentações.·NOTAS:

1. cf. “When Exhibitions Become Form”, conferência proferida por Elena Filipovic no Migros Museum für Gegenwartskunst, a 8 de janeiro de 2016, em Zurique. www.curating.org/elena-filipovic/ [consultado a 10/11/2017].

2. Citação completa: Borrowing images from other images has become the default mode of huge swathes of our urban culture. I cannot remember the last time I saw a television advert or a poster on the underground that did not remind me of a parallel example. As for pop music, sampling has grown so fierce and creative that I have begun to lose track of entire pop eras. It’s as if everything from then has been turned into a multivalent now. Were ABBA yesterday? Or are they today? Mamma mia, I just can’t tell. Waldemar JANUSZCZAK, Dispersion at the ICA, 2008 in Culture - The Sunday Times, Londres.

3. cf. Sara & André. Exercício de Estilo, Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Lisboa, 2014, p. 162.

4. Mário CAEIRO, Sara & André, 2017 in Urban Aphorisms, http://urbanaphorisms.com/2017/04/22/516/ [consultado a 10/11/2017].

5. cf. Folha de sala.

6. cf. Entrevista concedida a Lily Leino para a United States Information Service, abril, 1969 in Clement Greenberg. The Collected Essays and Criticism. Modernism with a Vengeance, 1957-1969, vol. 4 (ed. John O’Brian). Chicago, The University of Chicago Press, 1995 (1993), p. 311.

7. Eva ODDO, Curated Curators I, II, III, 2017 in Contemporânea http://contemporanea.pt/Agosto2017/curated-curators/ [consultado a 10/11/2017].

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1. Vista da exposição, Curated Curators (I). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.Uma troca de cadeiras: ... / Sofia Nunes10/12 /

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3. Vista da exposição, Curated Curators (I). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.

4. Vista da exposição, Curated Curators (II). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.

5. Vista da exposição, Curated Curators (III). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.

6. Vista da exposição, Curated Curators (II). © Sara & André. Cortesia Zaratan e Bruno Lopes.

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