Ramiro Saraiva Guerreiro modificado manuscritos_liberaçao

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. Permitida a cópia xerox. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. GUERREIRO, Ramiro Saraiva. Ramiro Saraiva Guerreiro (depoimento, 1985). Rio de Janeiro, CPDOC, 2010. RAMIRO SARAIVA GUERREIRO (depoimento, 1985) Rio de Janeiro 2010

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  • FUNDAO GETULIO VARGAS

    CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL (CPDOC)

    Proibida a publicao no todo ou em parte; permitida a citao. Permitida a cpia xerox. A citao deve ser textual, com indicao de fonte conforme abaixo.

    GUERREIRO, Ramiro Saraiva. Ramiro Saraiva Guerreiro (depoimento, 1985). Rio de Janeiro, CPDOC, 2010.

    RAMIRO SARAIVA GUERREIRO (depoimento, 1985)

    Rio de Janeiro 2010

  • Ramiro Saraiva Guerreiro

    Ficha Tcnica tipo de entrevista: temtica entrevistador(es): Aspsia Alcntara de Camargo; Letcia Pinheiro; Mnica Elen Seabra Hirst levantamento de dados: Equipe pesquisa e elaborao do roteiro: Equipe tcnico de gravao: Clodomir Oliveira Gomes digitadoras: Vera Lucia Assuno e Raquel Correia Anna local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil data: 19/03/1985 a 11/04/1985 durao: 38h 30min fitas cassete: 40 pginas: 527 Entrevista realizada no contexto da pesquisa Trajetria e Desempenho das Elites Polticas Brasileiras, parte integrante do projeto institucional do Programa de Histria Oral do CPDOC, em vigncia desde sua criao, em 1975. A escolha do entrevistado se justificou por sua significativa trajetria diplomtica, destacando-se o perodo em que foi embaixador do Brasil na Frana, 1978-1979; ministro das Relaes Exteriores, 1979-1985; embaixador do Brasil na Itlia, 1985-1987. A verso da entrevista disponibilizada foi modificada pelo prprio entrevistado. De acordo com a carta de cesso, o texto na ntegra s poder ser consultado a partir de 2013. Temas: lvaro Alberto da Motta e Silva, Amrica Latina, Argentina, Associao Latino Americana de Integrao (ALADI), Associao Latino Americana de Livre Comrcio (ALALC), Bolvia, Brasil, Carreira diplomtica, Comisso Econmica para Amrica Latina (CEPAL), Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento, Conflitos internacionais, Conselho de Segurana da ONU, Cuba, Diplomacia, Energia nuclear, Escola Superior de Guerra, Estados Unidos, Governo Joo Goulart, Guerra Fria, Instituto Rio Branco, Joo Batista Figueiredo, Joo Goulart, Leonel Brizola Organizao das Naes Unidas, Organizaes dos Estados Americanos (OEA), Oswaldo Aranha, Palcio do Itamaraty, Unio Sovitica.

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    1a Entrevista: 19.03.1985 A.C. Primeira entrevista com o Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro Rio de Janeiro, 19 de maro de 1985. Ministro, eu queria perguntar ao senhor, sobre as circunstncias nas quais o senhor deixou o governo, quer dizer, um momento histrico muito importante de passagem do ciclo militar para Nova Repblica mas, em meio a uma, no diria uma crise, mas um momento de grande apreenso nacional com a doena do presidente. Esses dias dramticos o senhor os viveu agora em Braslia antes de deixar o governo. Eu gostaria de saber do senhor, quais as suas impresses sobre esses ltimos acontecimentos. S.G. Impresses muito boas. Tenho conscincia de minha tendncia a tomar calmamente os conhecimentos. Apesar das implicaes da crise de sade de Tancredo Neves, sempre achei que ele se recuperaria e, se no, que tudo se passaria normalmente, porque havia de todos os lados, disposio de evitar acidentes de percurso. A.C. Mas, e o senhor,... eu fiquei pensando se o... o presidente Tancredo Neves no tivesse sido to hbil na conduo da sua campanha, se essa posse teria realmente se realizado porque, afinal de contas, ele est sendo acusado de continusmo mas talvez seja esse continusmo que permite a ele, com tanta tranqilidade, assumir o poder agora, enfim, permitir ao presidente Sarney, ao vice-presidente Sarney de assumir o posto. S.G. Toda sucesso no Brasil gerava inquietao e traumas terrveis. Agora, no tanto, o que se deve habilidade de Tancredo e a preocupao do governo prudente de que a sucesso fosse bem ordenada, sem descarrilar. No houve uma revoluo. No h tampouco continuum. A escolha, por exemplo, de Dornelles para a Fazenda, simplesmente significa que o novo Presidente no excluiu a priori quem houvesse servido ao pas no passado, desde que lhe merecesse a confiana. No vejo na chamada Nova Repblica uma quebra do passado, uma revoluo que de tudo fizesse tbula rasa, mas a busca dos ideais democrticos do passado, que inspiraram at mesmo a Revoluo de 64, e que jamais havamos conseguido efetivar com solidez. A.C. Exatamente. S.G. - ... quer dizer, no haveria vantagem para o pas tambm em no aproveitar... A.C. Certo. S.G. - ... pessoas que gozavam da confiana do presidente, como o caso do Dornelles, que tem uma vida limpa, conhece a fundo os assuntos do seu ministrio, s porque ele serviu a governos anteriores... se ns fossemos atuar, agir desta maneira, ns estaramos caracterizando justamente uma espcie de mudana preconceituosa, emocional, com uma espcie de recusa de tudo que foi feito anteriormente e das pessoas que participaram nessas administraes como, em si mesmas, intrinsecamente incompatveis com a nova situao. E no foi esse o esprito evidentemente do novo governo. Felizmente, porque natural que cada novo governo tenha um enfoque diferente, tenha um estilo, tenha s vezes, programas diferentes em muitos pontos. Mas, no nosso caso

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    no havia porque marcar uma espcie de revoluo; quer dizer, eu no vejo a Nova Repblica como uma revoluo a partir de uma Fbula rasa... A.C. Certo. S.G. - ...mas como uma busca de fazer funcionar, e de uma forma mais estvel, as instituies democrticas. Eu digo, mais completa, mais slida... A.C. Sim. S.G. - ... em comparao com o que elas foram no pas... A.C. Certo. S.G. - ... na tentativa, por exemplo, da constituio de 46. E no se pode negar que ns tivemos muitos acidentes de percurso, em todo aquele perodo. Fomos levados a situaes que acabaram concluindo em 64. Uma mudana, a de 64 que na verdade e nos anos seguintes, por diversos motivos, evoluiu de formas, eu diria, tpicas transitrias em sentidos muito autoritrios, embora a filosofia inicial fosse justamente a de ver se conseguia levar o pas a uma forma democrtica mais estvel ou melhor aceita por um consenso nacional. De modo que, eu no vejo na Nova Repblica, como chamada, uma quebra propriamente com o passado, mas sim uma busca de refazer tudo de acordo com o que eram ideais do passado que nunca conseguimos efetivar. A.C. Uma nova tentativa do mesmo sentido. S.G. E, . M.H. Ministro, parece tambm que esse quadro que todos tem, inclusive, mencionado como um quadro maduro, que ns vivemos... atualmente no processo de redemocratizao do Brasil, vem criando uma srie de expectativa do ponto de vista externo ao pas por esse processo, pela consolidao desse processo, inclusive parece que a presena das delegaes brasileiras... estrangeiras, perdo, na... para posse do presidente Tancredo Neves uma demonstrao nesse sentido. S.G. Dada a significao relativa do pas em termos regionais e mesmo mundiais normal o interesse. Mesmo Figueiredo se havia j beneficiado externamente do processo de abertura e restaurao das liberdades. Agora, a eleio de um civil, e oposicionista, marcou mais dramaticamente o momento. Pases democrticos da Europa e Amrica Latina, alguns dos quais, l e c, que haviam estado sob ditaduras at mais violentos que a nossa, desejavam demonstrar apoio a democratizao, at mesmo para darem satisfao s respectivas opinies pblicas. preciso no exagerar ingenuamente esse tipo de solidariedade. Quando estava para vir aqui, por exemplo, o presidente do governo espanhol, Adolfo Suarez, muita gente interpretou mal a resposta que dei a jornalistas no aeroporto de Braslia, vindo de longa viagem. No durmo em avio e estava cansado e irritado. Perguntaram-me: O senhor acha que a vinda do Adolfo Suarez vai contribuir pelo exemplo da Espanha para o processo de democratizao do Brasil? A pergunta me soava absurda. Um pas tem poucos meios de influenciar a evoluo poltica de outro, sobretudo quando este outro um pas das dimenses e complexidade do Brasil. Respondi: Isto uma bobagem porque um processo de

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    democratizao ou qualquer outro processo institucional num pas tem de ser um processo endgeno. Se no for, no dura. Como a pergunta fora feita por moos comuniclogos, at, como se diz hoje, de bom visual, acrescentei: Olhem! Vocs vo gostar da visita porque o Adolfo Suarez um sujeito bonito; as mulheres adoram v-lo (risos). A notcia saiu nos jornais um tanto na base da gozao, no sentido de que eu havia ignorado a significao do processo espanhol, etc... Devo esclarecer que a visita foi corretssima e nada tinha a ver com as intenes que os perguntadores lhe atribuam. A.C. Mas de qualquer forma, nessa presena das delegaes aqui, quer dizer, essa tentativa do presidente Tancredo Neves adiar... S.G. . A.C. - ... a operao, como se ele tivesse algum temor, no fundo, talvez, de que pudesse acontecer alguma coisa imprevista, com o Sarney talvez, mais do que com o problema dele, e a presena das delegaes tambm fortaleceu muito essa idia da transio institucional. S.G. Embora as posses presidenciais no ofeream boas oportunidades para conversas, a participao estrangeira d lustre e contribui para fortalecer a transio. Internamente, certamente havia um problema. Uns adoravam que o vice s podia tomar posse junto com o presidente, o que, no ocorrendo, levaria posse provisria do Presidente da Cmara. Felizmente, prevaleceu o bom senso que tinha a seu favor a Constituio e at o precedente de Delfim Moreira. Obviamente, havia resistncia a Sarney, da parte de alguns de seus ex-companheiros e da parte da esquerda do MDB. Mas o clima poltico, no Congresso e fora dele, o favorecia. Ningum tinha interesse em balanar o coreto. Voc se referiu a maturidade. Oxal assim seja! A.C. Bem, eu gostaria de perguntar ao senhor, como que o senhor v nesta passagem, especificamente o problema do seu ministrio? Quer dizer, o que o senhor considere que seja o legado da sua gesto para a Nova Repblica e, enfim, quais as suas expectativas com relao ao novo Chanceler. S.G. Minha expectativa boa. O Dr. Olavo Setbal pessoa de bom senso, com experincia de administrador pblico e privado. homem de formao e interesses amplos. Pode levar adiante o relacionamento externo no Brasil. Encontrar um ambiente muito positivo externamente. Nesse campo, o legado do Governo Figueiredo, o que criou ou consolidou, slido. No dramtico, mas extenso e efetivo, longo para pormenorizar. Sintetizando, diria que deixo uma casa funcionando bem e com alto moral; a ausncia de qualquer controvrsia externa de significao poltica sensvel; dilogo fcil e fludo em todas as regies; respeito e confiana. Esta a situao em matrias de competncia do Ministrio das Relaes Exteriores. A.C. Evidentemente ns vamos tratar disso e mais detalhes, no ? Eu queria apenas perguntar ao senhor se essa poltica dos resultados que o novo ministro est... S.G. Sim. A.C. - ... anunciando...

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    S.G. Sim. A.C. - ... se ela... se o senhor a v como uma continuao de sua prpria poltica... ou como uma crtica velada... S.G. (risos). A.C. - ... ao fato que, (risos) a poltica do Itamaraty talvez tenha sido mais, enfim, uma poltica... de posies... S.G. . A.C. - ... propriamente do que de... S.G. de resultados. A.C. - ... do dinheiro. S.G. Como j disse, cada governo novo se sente na obrigao de inovar, quando mais no seja na semntica. O Dr. Olavo no poderia assumir repetindo exatamente o que vnhamos dizendo. Ele citou, alis, vrios outros ministros, o Arajo Castro, o San Tiago Dantas, ambos anteriores revoluo e amigos meus; evitou mencionar os posteriores, a no ser eu prprio, como no poderia deixar de fazer e o fez gentilmente. Volto, agora, ao estilo dos meus seis anos de Ministro. Pode-se verificar que nunca usei a expresso poltica externa independente, embora muitos analistas digam que ela foi mais independente do que em qualquer outra poca; a prpria expresso que caracterizou a poltica externa no perodo de meu antecessor imediato, quando ele era Secretrio Geral, pragmatismo responsvel, creio que a empreguei uma nica vez. Jamais me referi ao Brasil como potncia emergente, como foi de moda em certo tempo. Nunca usei uma expresso que sintetizasse a poltica externa. A.C. No tem rtulo (risos). S.G. No adotei rtulos (risos)... Em parte, por uma questo de temperamento. Principalmente, porm, porque acho difcil, e geralmente impreciso e enganador, sintetizar em poucas palavras, assim em um rtulo, em um slogan, o que a ao diplomtica, o que a poltica externa. Acaba-se criando um empobrecimento e uma oportunidade para equvocos do pblico. Agora, no caso especfico do novo governo, compreendo que fosse tentado a comear um ttulo que acenasse com vantagens futuras. Isso pode ser politicamente til. Mas, evidentemente, tudo que se procura fazer para um resultado. A comeam os equvocos. Quais resultados? De que forma se manifestam? Na sua pergunta, voc mesmo qualificou resultados econmicos e financeiros, no ? Mas voc pode dizer, e eu certamente digo, que nossa poltica externa no s isso, no unidimensional. Sero resultados, ento, no sentido do que? Do prestgio do pas? De sua maior participao nos processos decisrios internacionais? Tratar-se- de criar zonas de influncia, ou mesmo de hegemonia? Qual o objetivo que se procura e em funo do qual se julgar dos xitos do que for feito? A frase diplomacia para resultados ou de resultados correta no sentido de que sempre se busca um resultado. Mas isso no quer dizer muito.

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    A.C. Todos queremos resultados (risos). S.G. Todos queremos resultados. A questo saber quais, como se definem, o que implicam, quais as gradaes e matizes considerados ou admitidos. Mas compreendo. Todos usarem slogans, menos eu. Deve haver, pois, alguma coisa errada com essa minha recusa. Mas no gravemente errada, pois em geral o pblico entendeu e aprovou minha atuao. M.H. Senhor Ministro, eu acho que alm de uma questo semntica existe tambm uma questo de nfase, o senhor se referiu a, o conjunto de discursos que fez durante todo o perodo de sua gesto aonde me parece que existia uma nfase a, quanto a questes polticas quanto a uma viso poltica da... do relacionamento externo do pas. E me parece tambm que, no que diz respeito ao primeiro discurso do novo chanceler, existe uma outra nfase. O senhor concordaria? S.G. H diferenas necessrias quanto freqncia no emprego de palavras-chaves, na extenso com que certos assuntos so tratados em comparao a outros; diferenas de estilo e talvez de substncia. Muitos notaram uma nfase na funo do poder, em termos hobbesianos, que fica muitssimo bem num estudo acadmico, mas perigosa na prtica diplomtica pelos equvocos que pode gerar, considerando-se que os ouvintes e leitores no tm um conceito preciso de poder, que abarque todos os fatores. O xito do pas depende do que ele intrinsecamente e da conjuntura externa, que muda freqentemente, o que parece bvio. preciso ter um fio condutor para enfrentar as conjunturas que vo variando, princpios, parmetros, objetivos prprios e uma extraordinria visibilidade para medir, para graduar, para matizar, as razes concretas. s vezes preciso saber o que fazer, em minutos, em cima do fato. Se no tiver um fio condutor e um sentido do que The traffic will bear, tudo mais falha. Por isso, podem qualificar a poltica que executei como principiata ou como pragmtica, e optando por uma ou outra qualificao estaremos certos e errados ao mesmo tempo. Poder-se-ia escrever um livro sobre o tema, de interesse intelectual, mas que no ensinaria a agir. Outro ponto objeto de confuses e criador de falsos problemas a nfase econmica em contraposio a poltica. O essencial, disse, ter o fio condutor e agir com sensibilidade e oportunidade, seno tudo mais falha. A essncia da poltica externa poltica. um trusmo dizer isso, mas necessrio porque as pessoas se esquecem. Agora, o grosso do trabalho de uma chancelaria pode ser e, em dados momentos, , sobre coisas concretas, acordos de comrcio, protecionismo, promoo comercial, etc... Se voc for ver a massa de papis que correm no ministrio, grande parte sobre assuntos econmicos. Em 1958, os secretrios que estavam lotados na Embaixada em Washington, praticavam, depois do expediente, um exerccio sobre a poltica externa brasileira, o que ele poderia ou deveria ser. Quase todos os participantes diziam que o objetivo era o desenvolvimento econmico, o comrcio, o financiamento etc., o que era a concluso fcil a vista do dramtico atraso e pobreza. Achei bom, entretanto, dizer que estava tudo muito bem, mas gostaria de fazer uma observao. Um pas como a Sua, por exemplo, pode ter 90% da sua atividade diplomtica dedicada a vender relgios, equipamentos, servios, etc. Mas qual era a prioridade da poltica externa da Sua? que respeitam estritamente sua neutralidade. Tal objetivo, nesse caso especfico depende de uma linha de comportamento determinada que, s vezes, se reflete em decises prticas, mas que no implica um volume de trabalho muito grande e contnuo. O importante ter um conceito, uma convico firme e no se afastar. No

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    caso do Brasil, precisaramos de um conceito, de uma idia em torno da qual tudo mais giraria. Embora o grosso do trabalho pudesse at ser na rea econmica, essa idia deveria transcender essa rea. Por motivos geogrficos e estratgicos essa idia no era essencialmente de segurana imediata. Outro falso problema o da opo 1 Mundo, 3 Mundo. Est-se num, ou noutro como uma questo de fato, no de escolha poltica. A opo poltica pode nos aproximar de um ou de outro conforme o assunto, o momento, e outras variveis. A.C. Claro, o senhor est sugerindo que tem que haver um substrato na poltica de cada pas, um substrato cultural, digamos assim, que transcende o pragmatismo das polticas imediatas e econmicas etc... e que... S.G. O imediato no deve contradizer, mas qualificar, ou dar os modos aos princpios. Por exemplo, se voc procurar uma certa concepo do papel do Brasil, numa fase histrica que pode durar ainda algumas geraes, no podemos defender princpios de forma quixotesca. Mas, entre isso e o abandono dos princpios h um espao de atuao variadssimo. H que preservar os princpios, e no abandonar certos conceitos quando estamos convencidos de sua adequao situao especfica do pas. Quando se tem de conviver com sua violao, o tipo de reao ante cada violao depende de consideraes de ordem prtica, mas deve ser suficiente para preserv-lo; manter o reconhecimento de sua vigncia. Por outro lado, no campo das nfases prticas, no vejo, por exemplo, novidade no que o Dr. Olavo Setbal disse sobre transferncia de tecnologia, objetivo que temos defendido em diversos foros e importantssimo. O Brasil teve at em muitos casos uma posio de liderana. Por exemplo, quando se discutia o tratado institucional de OMPI (Organizao Mundial da Propriedade Industrial) a delegao brasileira (e isso no foi em minha administrao) teve a iniciativa de alguns artigos de interesse para os pases em desenvolvimento de efeito prtico, como a cooperao tcnica. Essa atuao sempre se repetiu em cada organizao internacional. No GATT, por exemplo, a que ele se referiu, nossa atuao desde a fundao tem sido destacada. A questo dos servios tem sido por ns tratada e muitssimo. Quando fui com Galveas, em novembro de 82, reunio ministerial do GATT, havia certa diferena de abordagem entre o Itamaraty e a Fazenda que resolvemos bem, no terreno. So todos, os assuntos desse tipo, importantssimos. Apenas, eu acho que no se justificaria que ocupassem enormes extenses em muitas manifestaes pblicas, conferncias etc. Eram assuntos que se desdobravam em episdios tpicos, a que dava ponderao. Mas a essncia, o campo unificador da poltica externa, no estava a.

    [FINAL DA FITA 1-A] S.G. - ... a esses assuntos tpicos, embora eles estivessem todos, pudessem perfeitamente ser dependurados em alguma coisa dita, conceitualmente nestas ocasies. M.H. Ao mesmo tempo, juntando as duas ltimas respostas do sr., parece que tambm, na questo da nfase e da questo das relaes concretas existiu durante o

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    perodo de gesto do sr., uma preocupao e um esforo muito grande em reforar determinados interlocutores econmicos e relaes econmicas que durante muito tempo foram muito marginalizados nas nossas relaes econmicas externas. E obviamente isso ainda tambm uma questo poltica e econmica, falo precisamente das relaes nossas com o 3 mundo, que foram muito desenvolvidas nesse perodo recente. S.G. Nossa ateno ao 3 Mundo foi objeto de certa crtica. O prprio Roberto Campos uma vez disse, na Comisso de Relaes Exteriores, que o Itamaraty, com o seu terceiro-mundismo, tinha perdido canais de comunicao com os pases industrializados. Uma crtica que eu rebati l mesmo na Comisso de Relaes Exteriores, quando fui convidado a l fazer uma exposio. No podia, entretanto, levar a srio e ter em conta um aspecto da crtica ao suposto terceiro mundismo assinalado pelos que diziam que esse pecado encobria uma disfarada simpatia pelo 2 mundo, a que se sentiam inclinados os meus assessores barbudos. A crtica disparatada sob qualquer ponto de vista. A crtica parte de dois erros fundamentais. Em primeiro lugar, no h terceiro mundismo, como doutrina ou poltica. H uma situao de fato e os pases, que nela se encontram, tem por ideal super-la, sair dela. Em segundo lugar, essa crtica confunde essa situao de fato com uma opo poltica, que o no-alinhamento. Na verdade, todo pas tem uma poltica em relao do chamado Terceiro Mundo. Voc, fazendo uma anlise do Mundo, nas ltimas 2 ou 3 dcadas, v que o fim dos imprios coloniais e a criao de tantos Estados Novos, requeria uma reavaliao; voc tinha novos atores na cena, que voc no podia ignorar. Eles votam nas Naes Unidas e nas suas agncias. Ns no temos muitos pontos especificamente brasileiros que exijam apoio nessas organizaes ligadas s Naes Unidas. Temos pontos mais de natureza temtica, de nosso interesse. Nunca precisamos, ou fomos atrados, por exemplo, pelo Movimento No Alinhado como outros pases o foram, por interesses muito especficos. Em parte, a Argentina, tanto pela questo das Malvinas como, ainda antes, por causa do uso das guas do Rio Paran, at quando tentava mobilizar, como em 1973, o movimento no alinhado em apoio seu, em votaes na ONU. Ns no tivemos nunca um interesse como a Venezuela teve de entrar no Movimento No Alinhado, em parte para neutralizar o apoio do movimento s posies da Guiana no seu [diferendo] territorial. O Brasil no tinha interesse desse tipo que o levasse a entrar no Movimento No Alinhado, embora instantemente solicitado, em muitas ocasies. Inclusive, quando da posse do Presidente Figueiredo. Ao dia seguinte, dia 16, eu recebi cerca de vinte ministros do exterior e alguns vice-presidentes e um deles, o da Iugoslvia, me falou eu dava 20 minutos a cada um por 40 min. tentando convercer-me de que ns devamos entrar no Movimento No Alinhado porque a prxima conferncia era na Havana e eles iugoslavos estavam fazendo um esforo muito grande para modificar o documento de base que tinha sido preparado pelo pas hospedeiro, como a regra do Movimento, o qual era alinhado com as posies da Unio Sovitica. Ento, a Iugoslvia estava preocupadssima com isso, como Egito, Tanznia e outro; e a prpria ndia. Os fundadores originais do Movimento achavam que se o Brasil entrasse reforaria o grupo que queria fazer retornar o movimento sua filosofia original e evitar a sua instrumentalizao em favor de uma das superpotncias. Disse-lhe que no nos cabia alterar a posio e que eles tinham responsabilidade de lutar dentro do movimento, cuja filosofia original ns respeitvamos. No era necessrio tornar-se no alinhado para ter uma poltica positiva em relao a tantos novos Estados. Era preciso ter uma poltica com relao a estes novos Estados. Ora, que espcie de poltica? Temos que ver preliminarmente o que o 3 Mundo. Tudo comea basicamente por uma

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    definio; uma questo de semntica. Em uma entrevista Manchete, ainda em 79, expliquei claramente qual era a posio nossa; ningum tomou conhecimento, ningum l nada, no ? Nem mesmo os correspondentes, l no Ministrio, acho que no leram, porque muitos continuaram perguntando a mesma coisa. Expliquei sempre que o Brasil do 3 Mundo por sua situao de fato. Foi um escritor francs de cujo nome no lembro, que fez esta partio e usou os termos que depois se generalizaram. Primeiro Mundo, so os pases industrializados, desenvolvidos, de economia de mercado. O Brasil no ; um pas de economia de mercado, mas no um pas desenvolvido. Segundo mundo so os pases industrializados de economia centralmente planificada, so os socialistas da Europa Oriental. O Brasil, obviamente, no . O resto, segundo esta classificao, que tem o ar da simplificao cartesiana, o resto 3 Mundo. Primeira vez em que eu li algo mais detalhado sobre este conceito, eu era secretrio em Washington (1958). Li um livro de uma sociloga americana dedicado a uma anlise relativamente curta do que era o 3 Mundo, as suas expectativas e seus problemas. A nfase e o maior espao eram dados frica, sia, Sul da sia e Sudeste. Ela fazia as gradaes evidentemente e at dedicava pouco espao Amrica Latina, porque a Amrica Latina, naquela ocasio, no estava criando um problema de risco estratgico para os Estados Unidos (risos), tinha uma prioridade baixa na anlise que ela fez. Em qualquer meio de Europa Ocidental e Estados Unidos, o Brasil ou Amrica Latina em geral 3 Mundo. Ento uma questo que entrou no linguajar internacional e ridculo voc querer sair disso. Agora, eu tenho a impresso de que h, primeiro, uma confuso com o no alinhamento, que um processo. O Movimento No Alinhado pode ter amanh at a adeso de um pas altamente desenvolvido. A Iugoslvia anda beirando, em termos de renda per capita, quatro mil dlares o que se poderia chamar pas desenvolvido. Amanh os pases propriamente neutros da Europa, tipo Sucia, poderiam entrar; e h pases que esto dentro do Movimento No Alinhado, e que o so s de nome, sendo satlites de potncias industriais. Vrios, a maior parte dos pases Latino-americanos e muitos outros que esto l tm uma poltica externa menos caracterizadamente nacional do que o Brasil, e, no entanto, esto no movimento. Ora, ns no temos interesse em ser membro ativo, pois, inclusive, o processo decisrio do movimento no nos agrada. O pas sede faz o documento de base, difcil de modificar, e na conferncia, na hora de decidir, em 48 horas atabalhoadamente se adotam resolues, sem uma discusso sria dos textos, sem muita ordem. Da maior parte das resolues do movimento, 90% ns podamos subscrever o objetivo ou a filosofia. Mas a redao nos criaria grandes dificuldades, o tom vai vrias vezes alm daquilo que ns achamos aceitvel ou til, sobretudo til. Quer dizer, no o nosso gnero, no o nosso estilo. No tem sido. No sei se mudaremos. Tenho tambm a impresso de que alm dessa confuso de 3 Mundo, com no alinhamento, que uma confuso muito grosseira, h alguma coisa diferente. Acredito que h, honestamente, uma percepo, equivocada que seja, ridcula mesmo, mas que existe, de que 3 mundismo significa uma opo pela pobreza permanente (risos) e uma atitude de crtica aos pases desenvolvidos industrializados que enfraquece o conceito de ocidente do mundo livre, etc... Enfraquece, cria uma diviso interna ou algo parecido, que serve para ser explorada pela Unio Sovitica, pelo MCI Movimento Comunista Internacional, etc... ou, pelo menos, que inconveniente falar em Brasil como pas do 3 Mundo, porque isso pode sugerir ou levar o pas a raciocinar em termos de uma antipatia, de uma atitude de confrontao permanente com os Estados Unidos e com outros pases. Isso no se d na prtica, apesar de divergncias naturais. s vezes chegam a achar que nos reconhecermos 3 Mundo vai influenciar o nosso pensamento em termos de organizao interna brasileira, e ento dizem: So todos pases ditatoriais. Citam pases que tm economia

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    centralmente planificada, ou ento so os miserveis que no tm o que comer, vivem de esmolas, etc... uma concepo simplista, que ns no podemos aceitar. Ns nunca tivemos uma atitude, digamos, em matria de 3 Mundo, de simplificao; ele extremamente heterogneo, a nica coisa comum a todos, a rigor, que so pases em desenvolvimento, so pases carentes de capital, carentes de tecnologia, isso que os caracteriza, porque quanto ao mais, quanto organizao poltica, variam muito. H uma predominncia de regimes autoritrios, s vezes disfarados e h outros pases democrticos. Os democrticos, no sentido de democracia representativa tipo europeu, esto em sua maior parte, se bem no exclusivamente na Amrica Latina. Ns todos sabemos, e at por experincia prpria, que buscam a democracia e h muito tempo como um objetivo, que ns estamos lutando para chegar ao aperfeioamento, mas que temos tido recadas, todos ns. Quer dizer, ns temos condies reais que no so idealmente propcias para uma plena institucionalizao democrtica, embora sempre a procuremos. At os presidentes do perodo dito militar aqui, todos, fizeram profisso de f democrtica, todos eles sem exceo e acredito que sinceramente (risos)... A.C. Todos queremos, no ? S.G. Todos queremos, no ? A.C. O problema chegar l! S.G. Agora, alertar que o Brasil no a Tanznia no afeta em nada o conceito geral de uma poltica. o bvio indiscutido. O Brasil tem uma economia incomparavelmente mais complexa, um peso econmico muito maior. Mas no tampouco, do ponto de vista do essencial da sua infra-estrutura, em todos sentidos, infra-estrutura fsica, estrutura cultural etc. No comparvel s grandes democracias estveis. Quer dizer, ns temos tambm uma caracterstica muito individual brasileira, dentro da ampla e variada categoria dos pobres, dos subdesenvolvidos. A.C. A dificuldade do termo 3 Mundo talvez seja isso, o fato de que uma categoria residual porque o 1 e o 2 Mundo implicam algum tipo de homogeneidade poltico cultural... S.G. Exato... A.C. E o termo 3 Mundo inclui realmente das mais diversas... S.G. - .... extrema variedade... A.C. - ... composies, e o Brasil realmente tem um particular... S.G. Da esse equvoco. Agora, do ponto de vista do nosso relacionamento externo, em relao aos demais pases, esse fato de ns nos apresentarmos pelo que somos como um pas do 3 Mundo, sem dvida alguma facilitou o desenvolvimento das nossas relaes com os novos pases. Criou uma receptividade muito maior do que existiria de outra forma, no tenha a menor dvida. Sem prejuzo do nosso relacionamento com a Europa Ocidental, com os Estados Unidos, com o Japo, porque nestes pases mesmos, a percepo que a Amrica Latina de 3 Mundo. Ento eles no vo se indignar, nem

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    chocar, por ns dizermos que somos do 3 Mundo (risos). Em si mesmo, isso no tem significao poltica negativa. A.C. Ento, mais uma vez eu acho que o sr. afirma a, o princpio da prioridade da poltica, no ? Nesse sentido de que o Brasil certamente deve ter aumentado muito a sua legitimidade, no ? E a sua circulao... S.G. Sem, dvida, sem dvida. A.C. - ...no status internacional do que pertencendo, muito disciplinadamente, a um bloco conduzido pelos Estados Unidos da maneira com que os Estados Unidos o conduzem, no ? S.G. . De vrias formas tem sido assinalado e at repisado o aspecto econmico que mais simples de a opinio pblica compreender, porque mensurvel como mercado, o 3 Mundo chegou a representar, no caso do Japo, 41% das exportaes. No caso dos Estados Unidos, 36%. No nosso caso, em 1981, chegou a 41%, e ano passado estava em 31%, porque os pases em desenvolvimento entraram em crises de liquidez e ns no tnhamos meios de estar financiando e nem tnhamos por qu. Mas a vinham as crticas: Ah, mas eles no pagam. A proporo de no pagamento mnima, porque, na verdade, se voc for ver, por exemplo, com relao aos pases latino-americanos o aspecto negativo foi a queda do volume e no tanto a inadimplncia. Houve um momento em que o Mxico no pagava nem os atrasados comerciais. Isso tudo foi amenizado com o sistema de crditos recprocos, etc. Tende o comrcio voltar a uma normalidade em um nvel mais baixo do que aquele auge a que havia atingido em 80, 81. Mas importante notar que em 81 a Amrica Latina absorveu 18% das nossas exportaes, os Estados Unidos, 17%. Agora os Estados Unidos esto absorvendo, acho que 26, 27%, os termos da proporo exata, eu no sei, e a Amrica Latina, um pouco menos, talvez 15, 16, uma coisa assim. No caso dos pases africanos, h que distinguir: por exemplo, o grosso das exportaes vai para pases que pagam porque ns compramos petrleo l. Com a Nigria, ns tnhamos o comrcio equilibrado, nos dois sentidos, de um bilho e meio. Depois caiu a 1/3 disso. Ano passado bastou um contrato da Petrobrs, depois da revoluo que houve l, de refino de petrleo nigeriano, que antes era feito por uma firma alem, para voltar a novamente a um bilho e meio. S esse contrato. E o saldo dos servios da Petrobrs, que supere a importao de petrleo, creditado l, e serve para pagar as firmas brasileiras que l esto implantadas, pelos servios que prestam: telefone, esgoto, construes de casas populares, as diversas pequenas indstrias que a COTIA em associao com seus interesses locais montou, e assim por diante. Um pas como o Gabo paga, no tem problema nenhum, com petrleo. At o Congo Brazaville em certo anos, dependendo de a Petrobrs comprar ou no petrleo. Angola tem supervit no comrcio com o Brasil e se a explorao da quarta rea off shore pelo grupo liderado pela Petrobrs, vier a ter xito, ela ter um saldo grande porque interessar Petrobras comprar petrleo que produzido em grande parte por ela mesma, no isso? Pode vir a haver problemas com financiamentos. Agora, h outros pases que no podero to cedo manter um comrcio regular. Ns fizemos emprstimos a Moambique, logo depois da independncia, sabendo perfeitamente que recebamos isto talvez muito no futuro. Foram emprstimos polticos, num momento em que no havia nenhuma presena ocidental l. Eu mesmo em 80 quando eu fui...

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    A.C. - O sr. quer caf, um copo d gua? S.G. gua, sim e caf. Pode trazer gua e caf... Quando eu passei antes na Alemanha, retribuindo uma visita do Ministro Exterior... e conversando com o Genscher, ele se mostrou entusiasmado com a poltica brasileira na frica: Por qu que vocs no fazem mais? Perguntou, ao que respondi: No fazemos porque no temos meios; se voc nos emprestarem, ns fazemos mais (risos). Eles estavam se esforando, naquela ocasio, para estabelecer um p em Moambique e Angola. Isto , na Europa, era bem vista essa poltica que internamente era criticada, vista por alguns como uma poltica de orientao ideolgica marxista ou de esquerda. Imagine! No Governo Figueiredo, um ministro do exterior como eu que, at mesmo reacionrio! Uma pessoa mais bem conversadora, at por temperamento. Era aqui criticado assim, enquanto governos europeus achavam que ns estvamos fazendo bem. Por exemplo, pouco depois da independncia de Moambique, o Brasil era o nico pas ocidental que tinha uma presena l, porque a prpria Itlia tinha, naquele momento, em Moambique, uma presena via Partido Comunista Italiano. No que tivssemos iluses de influncia, mas porque achvamos que era preciso manter bons contatos, sem interferncia, com esses pases. A.C. Que coisa engraada, interessante... ,[inaudvel] isso. S.G. No, so coisas, agora... A.C. Inesperadas, mesmo. S.G. Hoje no, passou, no tem problema nenhum. Ns jogamos uma carta que achvamos que no ia ser perigosa de maneira nenhuma, de um ponto de vista estratgico. O marxismo, das elites dominantes desses pases no nos inibiam a priori. Eles provavelmente recorreriam ao Ocidente para se desenvolver. Mesmo naquela poca, j havia gente que percebia. Algum local, de que eu no me lembro o nome, sem ser provocado me disse: Ah, pois , a Unio Sovitica foi muito boa para a guerra, mas pra paz no adiante nada. E o problema deles era comer, era voltar a por em funcionamento um pas que estava desmontado e que eles no sabiam como fazer, no ? E a o que comeou a haver mesmo era uma cooperao internacional no ideolgica. O Brasil um pouquinho, modestamente. Um pouquinho mais os escandinavos, que fazem doaes sem vinculao. A Itlia e aos poucos outros europeus. Na Tanznia, por exemplo, com financiamento canadense a firma brasileira ECISA, fez a obra da estrada de rodagem, com vrias dificuldades e problemas, mas que foi paga integralmente. Em um dado momento, ter sido a ECISA, salva da falncia por esta obra, porque ela havia trabalhado no Metr do Rio, e no recebera ainda do governo. Voc tem o Banco Mundial, voc tem o Banco Africano de Desenvolvimento, de modo que um pequeno pas africano, pode interessar a uma firma brasileira que se associa a outras, se h financiamento de um desses bancos. uma coisa menor, em termos de frica, mas faz volume. A Nigria, sobretudo, est l, tem potencialidade. Angola, que tem petrleo agora, que se um dia tiver paz e condies normais, pode ser um pas rico, tem boas terras, j foi um grande produtor de caf e se auto-alimenta normalmente. So poucos pases. Agora, a nossa relao tem sido muito explicada em termos comerciais, porque o que mais compreensvel embora no tenhamos vantagens significativas. No vai resolver nossos problemas econmicos. Mas h mais do que isso. Algumas vezes eu mencionei este fato de que afinal de contas, o nosso

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    interesse em termos de frica, que esses pases sejam eles mesmos, que eles no se tornem instrumentos da Unio Sovitica, e a rigor nem nos interessa que se tornem instrumento mecnico dos Estados Unidos ou da OTAN, tambm no temos interesse nisso. Temos interesse em que eles cuidem dos seus interesses nacionalisticamente, que progridam, etc. Quer dizer, ficarmos sossegados em termos do outro lado do Atlntico e termos ali oportunidades de comrcio e crescentemente de prestao de servios, venda de produtos manufaturados, de que eles so compradores naturais, no dos nossos produtos de base que eles mesmos produzem, mas dos nossos produtos manufaturados e prestao de servio, pelo menos em igualdade de condies; que no sejamos discriminados contra, que haja receptividade, que haja at quem sabe aqui e ali uma predisposio favorvel. No se trata de pretenso exagerada. A.C. Eu tenho a impresso que essa poltica uma poltica... S.G. Sem falar no aspecto cultural, no ? A.C. - ... de mdio prazo, no , Ministro? Seria uma poltica... S.G. De mdio e longo prazo. A.C. Talvez um dos poucos momentos em que o Brasil ousou este tipo de coisa, quer dizer, pensar em uma poltica de mdio prazo, no sentido de que esses pases emergentes sero os pases consumidores e os pases politicamente ativos de um futuro mais ou menos prximo, digamos... S.G. , em parte isso... A.C. - ... e que isso traria, um espao maior para o Brasil tambm, num mundo que est muito polarizado entre duas superpotncias. Seria isso? S.G. Em parte, isso. No nada feito propriamente contra os Estados Unidos... A.C. Lgico. S.G. Ns achamos que ao fazermos isto, ns estamos ajudando de alguma forma. No vale pensar que o problema Leste/Oeste se resolve mecanicamente. Ele tem vrios nveis. Ele tem o nvel do confronto e da dissuaso e ele tem o nvel da coordenao entre os dois; quando se trata de no-proliferao nuclear, quando se trata de por em ordem suas esferas de influncia; mas tem tambm essa rea imensa da competio no-militar que muito complexa e em que nos achamos. Alis cheguei a dizer isso, numa conferncia na Escola Superior de Guerra. Se se quiser, a grande fora do Ocidente aquilo que caracterstico dos princpios bsicos ocidentais (quer dizer, no das excrescncias); a variedade, a maior flexibilidade que h em termos mesmo da sociedade internacional porque os pases no so cpia uns dos outros. Cada qual atua de uma maneira diferente, e porque os pases novos, que so to ciosos da sua soberania, do nacionalismo, podero, provavelmente encontrar se os pases ocidentais agirem de acordo com as suas convices, com a sua ideologia podero encontrar muito mais respeito para esse seu nacionalismo, para suas peculiaridades, num tipo de sociedade internacional que no pretende ser mecanicamente homognea e que diferente da Europa Oriental em que h uma homogeneidade no natural.

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    A.C. O sr. quer dizer, no fundo, que o Ocidente se sustenta na base do liberalismo, quer dizer, participao individual, diversificada... S.G. Exato, . A.C. Num determinado frum. S.G. No um liberalismo abstrato e absoluto, nada disso. Mas uma atitude liberal no sentido de respeito pelas diferenciaes. De uma forma mais simples, eu tenho dito isso aqui. Que o Brasil um pas ocidental, ou pelo menos pretende ser ou deseja ser; um desejo coletivo espontneo que, passa a ser por isso uma realidade. A.C. um valor, pelo menos, no um valor [inaudivel]? S.G. - ...uma realidade subjetiva, mas que influi sobre a vida e o comportamento, no ? Pretende ser ocidental naquilo que permanente e pode ter um carter universal que so os valores da ao individual, do respeito pelo indivduo, os valores cristos; se voc quiser pode acrescentar tambm a repulsa a tudo aquilo que foi uma excrescncia incompatvel com esses valores da parte da prtica ocidental, como o racismo, o colonialismo, as formas de dominao. So incompatveis com os valores autnticos.

    [FINAL DA FITA 1-B] S.G. - ... que, no perodo da descolonizao, os governos das potncias coloniais foram de diversas maneiras pressionados por sua opinio pblica interna. Em pases como a Gr Bretanha, como a Frana, era muito difcil defender, no sc.XX, depois da Segunda Guerra Mundial, formas de colonialismo tradicional. Portugal entretanto estava, por circunstncias muito especficas, isolado da evoluo europia e mundial. Ouvi dizer vrias vezes, naquela poca, que o Salazar tinha convico de que cairia se adotasse um processo qualquer para levar as suas provncias ultramarinas, como dizia, a uma forma de independncia, progressivamente, preparando elites locais para isso. M.H. Eu teria uma ltima pergunta a fazer ainda nessa parte mais geral que enfim, um pouco ligando com tudo que o Sr. estava mencionando que a questo da diversificao, quer dizer, de como que a questo da aproximao com o 3 Mundo, a questo de realmente abrir o leque das nossas relaes tanto econmica, quanto politicamente, esto vinculados a toda uma... um projeto global de diversificao. Que como o Sr. mesmo estava mencionando no caso da frica, por exemplo, tem enormes benefcios pro lado de l tambm em termos de que eles tambm se diversificam. Agora, a minha pergunta um pouco... como que esse processo pode se dar tambm e talvez isso tenha alguma coisa a ver com a sorte, no momento aonde a ordem internacional tambm apresentava, pelo menos a quatro, cinco anos atrs, condies muito mais viveis para essa diversificao. Havia uma flexibilidade maior que, digamos de um perodo pra c, me parece inclusive que est um pouco colocada em risco. S.G. Sem dvida alguma, de um ponto vista concreto. Ns j mencionamos que, depois de 81, houve um processo de iliquidez nos pases em desenvolvimento. No h

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    dvida nenhuma de que a crise econmica mundial atingiu imediatamente de forma mais dramtica os pases mais pobres; so os mais vulnerveis. Eram pases que tinham, no caso da Amrica Latina, grandes dvidas, ou ento pases que no estavam ainda num processo de desenvolvimento acelerado como ns, tinham economias mais simples, mas que perderam esperanas porque produziam um produto ou dois e esses produtos perderam preo. Tambm politicamente a conjuntura se deteriorou, houve um acirramento, no Governo Reagan, da confrontao com a Unio Sovitica, a volta idia de negociar s de uma posio de fora, de pagar pra ver o blefe sovitico, digamos assim em termos muito simplistas, e tudo isso criou, como natural, uma reduo do espao de ao individual dos pases ditos perifricos. No caso do Brasil a dificuldade era econmica, reduzindo-se o que se podia fazer em termos de expanso comercial, de venda de servios, financiamentos, exportaes, obras conjuntas. Suspendemos quase tudo que estava programado. Depois, eu posso entrar em detalhes sobre o que ficou e o que se levou adiante. Mas, mesmo assim, nada se perde completamente. Esses pases continuam a existir, so importantes, at economicamente; um grupo que absorve 31% das exportaes, com predominncia de produtos manufaturados, e que so quase que exclusivamente os compradores de servio brasileiro, continua a ser importante. Houve um descenso sem termos relativos. A tendncia (pra usar as expresses simplificadoras, e necessrias, enfim, at para fins didticos), a tendncia ao policentrismo se reduziu, bastante a aparecer o bipolarismo. O risco da simplificao (que necessria como disse para transmitir as evolues da conjuntura) este: quando se fala de policentrismo, e se falava h muito tempo, os primeiros sinais j nos anos 60, havia muita gente que achava que a confrontao bipolar desaparecera. Ela nunca desapareceu, ela ia tomando formas diferentes. Da mesma forma hoje, quando se fala de uma tendncia bipolarizao, isso no que dizer em absoluto que ns estejamos caminhando para uma supresso de todos os centros de atuao internacional, regionais e sub-regionais. Eu no sei como dizer em duas palavras. A imagem que cabe, que uma vez empreguei, de uma pessoa que joga, conforme a posio do pas no cenrio internacional, cinco, quinze, vinte, partidas de xadrez simultneas, com regras diferentes nos diversos tabuleiros e preciso ter todos os jogos computerizados na cabea. No estou dizendo que isto coincida com uma situao prtica determinada. Mas, na base da caricatura, talvez sirva para dar uma indicao. Por exemplo, o fato a que o Campos se referiu de uma forma crtica na Comisso de Relaes Exteriores, de que o terceiro mundismo nos tinha tirado das negociaes econmicas, que tnhamos perdido os canais de comunicao com os pases desenvolvidos, falso nesse sentido de que o que houve em termos de ampliao de contatos com o chamado 3 Mundo, da nfase latino-americana, da nfase africana, no reduziu em nada a nossa atividade diplomtica e poltica, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, nem podia reduzir. E no Japo, pelo contrrio, foi um perodo de intensificao e de visitas, de contatos de uma franqueza maior, de criao de rgos de consulta freqente com eles. O que houve foi um acrscimo, no uma substituio, porque a vida externa do pas se tornava mais complexa mesmo. Tnhamos de dar ateno a vrios cenrios e no a um s. A.C. E isso tem a ver com a complexificao do quadro internacional... S.G. - ... quadro internacional. A.C. - ... nesse sentido, da ordem internacional.

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    S.G. Voc pode ver essa diversificao ao examin-la de um ponto de vista econmico, que mais compreensvel, porque mensurvel e afeta a vida das pessoas diretamente. Voc pode examin-la de um ponto de vista poltico tambm, voc a pode examinar at de um ponto de vista cultural. Apenas, essas separaes, essas abordagens diversas, na minha opinio, so exclusivamente de mtodo. preciso ter a viso do conjunto, tudo isso interligado, as mutaes podem nascer em qualquer ponto. A no ser que se parta do princpio de que o econmico determina tudo mais, em uma viso de popularizao, de que eu no participo; como eu disse, sou um conservador. Acho que qualquer processo, qualquer segmento do processo social tem influncia sobre os outros. Uma vez vi uma imagem, em um livro sobre histria do direito, um livro americano. Na introduo, o autor no me lembro nome, a memria no funcionava como antes, dizia que era como um desses aros de barril, que as crianas empurram com um arame duro e fazem correr. Em qualquer lugar do aro que se empurre o resto todo se mexe igualmente. Agora, eu no acho que o Brasil ou tenda a ser um pas em que tudo Estado. No caso do Brasil, a funo do Estado, em termos de Relaes Externas, no vender, criar condies para que os operadores econmicos vendam, procurar anular ou reduzir os bices s suas vendas criados por ao oficial de outros governos, criar um clima poltico propcio ao seu comrcio quando isso necessrio, por exemplo, em pases em que o Estado intervem em tudo, como o caso de certos pases em desenvolvimento, e criar um clima, de receptividade poltica para que o operador brasileiro seja bem visto, no seja objeto de desconfianas... A.C. - ... econmico, puro e simples... S.G. , econmico puro e simples. Jamais um agente de uma poltica de penetrao e de eventual dominao. Eu acho que tudo isso estava dentro dos objetivos de uma concepo geral, que tem necessariamente conseqncias prticas. A.C. Espero que o Ministro Olavo Setbal esteja perfeitamente a par dessa... S.G. Eu no tenho dvidas que sim, sem dvida que sim. A.C. - ... das suas preocupaes. S.G. Ele no me parece um homem simplista, de maneira alguma... A.C. ... porque seria de uma grande ironia que ns instalssemos esta Nova Repblica para estabelecer realmente o big stick brasileiro (risos), no ?, com os negcios a frente. S.G. , no assim. Apenas a atitude dele pode vir refletir a evoluo negativa da conjuntura mundial. O que perfeitamente natural; quer dizer, ns estamos com as mos muito mais atadas, o que no uma razo para uma rendio poltica, mas requer uma prudncia talvez maior. A.C. Se eu entendi, o Sr. est fazendo uma advertncia tambm no sentido de mostrar que o que o novo Ministro est propondo alguma coisa que responde conjuntura imediata, mas no ainda a definio de uma filosofia, digamos assim.

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    S.G. No, se voc ler o discurso dele em geral, ele no tem uma contradio com o que se vinha fazendo. A.C. Certo. S.G. No h uma contradio; h, como vocs disseram uma diferena de nfase. O espao ocupado muito maior com assuntos, econmicos tambm se explica pelo historial dele; so as coisas para as quais ele tem mais sensibilidade imediata. Todos aqueles pontos que ele mencionou, na minha carreira eu tive a oportunidade de tratar, pois fui chefe da delegao permanente em Genebra no tempo em que ela tratava de tudo, o que resultava numa correria desesperada, com o desarmamento, os fundos marinhos, o GATT, a UNCTAD, os telecomunicantes que vinham pra Unio Internacional de Telecomunicaes; o Conselho de Administrao da Organizao Internacional do Trabalho (naquele perodo o Dr. Barata fazia questo de que eu representasse o Brasil); era o OMPI, a Organizao Mundial da Propriedade Industrial, tudo. Eu depois como Ministro dividi um pouco, porque achei que era absurda aquela concentrao. Muitos pases j no tinham mais este sistema concentrado. No podamos mais, com o grau de engajamento que tnhamos em cada uma dessas organizaes, ter um nico responsvel. Lgico, quando chefiava a Delegao eu podia descentralizar, porque, tinha uma equipe muito boa, mas sempre tive um contato grande com todos esses assuntos, acho que so fundamentais e tenho uma noo bastante precisa do grau das possibilidades de ao dentro de cada organismo. Achei muito bom que o novo Ministro desse nfase ao GATT, por exemplo, apesar de suas insuficincias. No vejo no que ele disse nada incorreto. H um estilo diferente do meu. A.C. E nada que incompatibilize com... S.G. No... A.C. O princpio da poltica... S.G. Basicamente, no. A.C. Porque a rigor... S.G. E lgico que eu tinha uma experincia diferente. Sempre me preocupei muito no em conceber uma unificao do campo, mas ver se era possvel pelo menos chegar a ter uma smula do que que era essencial nessa extrema variedade do relacionamento internacional multilateral e bilateral. A.C. , e cada um tem que trazer, cada ministro tem que trazer o que que ele tem de melhor... S.G. Lgico, evidente... A.C. Quer dizer, o que ele conhece mais, no ? S.G. isso mesmo.

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    A.C. Mas, realmente eu acho que a gente podia, no ?, dar por encerrada esta fase e eu queria perguntar ento ao Sr. algumas coisas sobre as origens desse ministro conservador que... (risos) consolidou uma poltica de terceiro mundo para o Brasil, enfim, saber um pouco como foram os primeiros anos da vida, que o Sr. falasse um pouco do seu pai, da sua me, da sua infncia na Bahia. S.G. Ta, bom. Eu vou tentar resumir ao mximo. Nasci na Bahia e meu pai era mdico. Meu pai no conseguiu viver l por falta de emprego e clientela; foi um perodo de grande depresso na Bahia. O Lus Viana me disse que nos anos vinte a cidade chegou a diminuir de populao, por a vocs podem ver. Quando eu tinha trs anos de idade, meu pai foi para o Rio Grande do Sul, como era comum, pra o interior, fazer a sua vida, para um lugar chamado So Sep, uma cidade a uns 80 km de Bag e ao sul de Santa Maria da Boca do Monte. De So Sep so minhas recordaes mais antigas. Estive l dos trs aos sete anos. A.C. O Sr. nasceu em Salvador? S.G. Em Salvador, . A famlia toda baiana. Pelo lado materno, Dias Guerreiro; e Saraiva e Furtado de Simas pelo lado paterno. Com exceo do av paterno, Felinto Elysio que era paraense, mas, que foi estudar medicina na Bahia, l se casou com a filha de um professor e l se radicou. Os tios, porm, quase todos foram para o Sul. Dos trs aos sete anos, ento em So Sep, onde meu pai clinicou, fez suas economias, etc. A meu irmo tinha que ir para o ginsio, era cinco anos mais velho que eu. No havia ginsio na cidade. Viemos ao Rio para deix-lo com um tio materno, tio Mrio, que veio moo pra c, era diretor do Instituto de Qumica do Ministrio da Agricultura, ali no Jardim Botnico. Meu irmo o Walter, ficou um ano estudando no Andrews. Mas no perodo em que ele esteve aqui para deixar o Walter, meu pai procurou ver se arranjava alguma cidade que fosse mais prxima. Viu umas duas no interior de So Paulo, mas acabou indo para uma cidade que era prspera na poca, zona da mata em Minas, muito por sugesto de seu irmo, tio Ramiro, que conhecia Manhuau. Dos meus sete aos meus treze anos, meu pai morou l, de 27 a 33 e eu me lembro muito bem do lugar. Em vinte e sete, meu irmo estudou no Andrews; em vinte e oito foi estudar j em Manhuau, que tinha ginsio. Estudou dois anos e a veio a crise do caf, fechou o ginsio e ele e eu, que estava comeando o ginsio aos dez anos fomos estudar em Carangola, que relativamente perto de Manhuau. Perto uma maneira de dizer, o trem levava muitas horas, dando voltas, voltas, etc. Nas frias ns amos a Manhuau, entre as frias minha me ia a Carangola passava um tempo conosco e assim por diante. Com a crise, o municpio de Manhuau se desmontou e durante anos ns vivemos em parte de economias acumuladas antes, tirando do banco. Em 32, meu irmo mais velho tinha de fazer vestibular para a Faculdade de Medicina, da Praia Vermelha. Em conseqncia, tambm vim para o Rio. Estava no ginsio. Ficamos com um tio materno, tio Csar. Fiz a 3, 4, 5 sries no Liceu Francs, na Rua das Laranjeiras. Em 33, meu pai arranjou um emprego na Prefeitura, no de mdico; no quis a assistncia pblica, achou que estava muito velho pra sair em ambulncia, essas coisas. Arranjou um emprego na Secretaria de Finanas, para poder ficar com os filhos. A partir da, de 33, ns moramos no Rio. Foi um perodo difcil, eu entrei na Faculdade Nacional de Direito em 35. Tinha quinze anos e a idade mnima era dezesseis; ento meu pai me registrou de novo, como nascido no mesmo dia, na Bahia, na mesma casa, no Corredor da Victoria n. 39, tudo direitinho, mas, em vez de 1919, em 1918.

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    A.C. Quer dizer que o Sr. no nasceu em 1918? O Sr. nasceu em 1919? S.G. 1919. A.C. E o Itamaraty est nos dando informaes falsas. (risos) S.G. E da por diante... passou a ser 1918. Para o vestibular eu tirei carteira de identidade, tudo isso j com a data falsa e nunca consertei porque a rigor, tecnicamente, foi um crime de falsidade de meu pai embora com a melhor inteno. Eu no ia consertar, no ? (risos) A.C. O Sr. s tem um nico consolo, que eu j ouvi muitas pessoas que esto nesta mesma situao, era uma praxe na poca, no ? S.G. Comum, era comum, para o rapaz no perder ano, uma bobagem no ? Mas nessa poca, os pais se preocupavam e creio que sempre se preocupam, em que os filhos no percam tempo. Havia um pr-jurdico, um pr-mdico etc., mas no era obrigatrio. Cada qual podia se preparar como quisesse para fazer vestibular. Eu me preparei nas frias. A.C. Antes do Sr. falar sobre a faculdade, eu queria saber sobre a sua me. S.G. Sim. A.C. Ela acompanhou essa viagem toda... S.G. Tudo. Tudo, ... A.C. - ... com esprito de sacrifcio fantstico, porque foi realmente uma... S.G. Ela tinha muito... A.C. - ... uma impresso curiosa que eu tenho, mas o Sr. foi de certa maneira, sua famlia, vtima de crises permanentes, no ? S.G. . A.C. - ... que atingiram a Bahia em 1919, 20, os anos vinte, depois a crise do caf em Minas... S.G. Minas, ... A.C. E o Sr. teve uma vivncia muito pessoal da crise econmica. S.G. Muito forte. Quando da crise dos anos trinta, eu era j muito consciente e via o meu pai ter que tirar dinheiro do Banco, que ia acabando durante anos. O que ele ganhava no dava para todas as despesas, mais estudos dos filhos. Naquele tempo, inclusive, universidade era paga, barata, mas paga. O ginsio ento, nem se fala. Era um esforo que as famlias de classe mdia faziam para se passar no gargalo do curso secundrio. No meu tempo, no Rio de Janeiro, havia apenas dois ginsios pblicos: o

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    Pedro II e o Colgio Militar, mais nada. Tudo mais era privado e pago. As pessoas no tm ideia do que era o pas e do que mudou. E minha me sempre foi uma pessoa muito disposta. Meu pai, reservado, mais fechado, uma pessoa de muita coragem, controlado, muito calmo, que nunca transmitiu nenhuma sensao, no digo de desespero, mas sequer de insegurana para a casa. Minha me era mais extrovertida, gostava mais de conhecer gente, dava mais suas opinies; era uma mulher de muita disposio e muita coragem. Sempre os dois viveram muito em funo, como eu disse, dos filhos, dos estudos e da sade dos filhos. A.C. Quer dizer, havia essa preocupao tanto de um quanto de outro com os estudos dos filhos. S.G. Com os estudos dos filhos. A.C. Como que isso se manifestava? S.G. De diversos modos. Em primeiro lugar a prpria organizao de vida deles. A gente v em retrospecto que eles determinaram o lugar onde moravam, a sua organizao de vida em funo dos estudos dos filhos, na medida em que era possvel. Isso se manifestou tambm, no caso de meu pai, de vrias maneiras. Por exemplo, quando eu estava no quinto ano do ginsio ele me perguntava coisas sobre histria natural, que ele sabia bem, e achou que eu estava muito fsforo, muito superficial e me deu um livro francs de Histria Natural, de Pinzon, que era muito melhor do que os nossos. Eu conseguia ler francs. Outras vezes, sugeria que eu lesse livros, coisas de literatura. Tinha uma memria incrvel, sabia Os Lusadas de cor, do princpio ao fim e com todos os problemas gramaticais envolvidos, e me chateava com aquilo. A.C. Era exigente em matria de lngua, enfim de... S.G. Assim em geral. Entretanto, nunca me bateu, nem em mim, nem em meu irmo, mas sempre teve um pouco uma atitude de dar nfase a responsabilidade individual. Quando comeamos a adolescncia, nos dizia: Vocs no vo herdar nada, cada um responsvel por si mesmo. Aquela velha ideia: s damos a vocs os instrumentos, o resto com vocs. A.C. Eu ouvi isso tambm, (risos) do meu pai... S.G. Isso muito corrente, eu mesmo disse isso ao meu filho, normal. A ideia de que cada um tem que se resolver por si mesmo. Um sinal de que o nosso molde cultural , em certo sentido, mais extensamente do que se imagina, pelo menos nas classes mdias, individualista e tradicional. A.C. Liberal, como ns tnhamos falado h pouco... S.G. O pai tem a obrigao de preparar, mas cada qual que se arranje, no ? No fundo no assim na prtica, porque todo mundo tem corao mole, tudo isso, no ? Mas a posio terica, doutrinria essa. A.C. Exato.

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    S.G. Mas a minha me morreu cedo, quando eu estava terminando a faculdade e tinha dezenove anos, o que me traumatizou muito, que ela morresse justamente na poca em que ns estvamos comeando a melhorar a vida material. Meu pai ganhava mais, os filhos terminando j os estudos, comeando... A.C. Aqui no Rio, instalados... S.G. Instalados, j um pouco mais folgados. Mas ela sempre teve uma coragem enorme, otimismo, no tinha... A.C. Ela morreu em que ano? S.G. 1939. Eu tinha dezenove anos. Mas a terminou a.... A.C. Eram dois irmos? S.G. . A.C. O Sr. e o Walter. S.G. O Walter que tinha cinco anos a mais, que era mdico e que era muito bom aluno no ginsio; no ginsio carangolense ele disputava com o Victor Nunes Leal o primeiro lugar, sempre... A.C. Ah, quer dizer, eram colegas de turma? S.G. , de turma. E eu, na minha turma, estava no bolo, passava sem problemas, mas nunca em primeiro lugar. Sempre me arrumando sem problemas maiores... A.C. A vinda para o Liceu Francs deve ter tido alguma importncia para o Sr., no ? S.G. Para mim sim... A.C. No sei se por isso que o Sr. lia livros em francs, mas enfim, deve ter tido uma importncia na sua formao. S.G. , o que me criou problema, no Liceu Francs, foi a mudana de ambiente. A turma em que eu entrei, eu estava no 3 ano, estava em muitas matrias mais adiantadas do que eu. Tive um problema de adaptao tambm a novos costumes, tudo isso. Francs eu lia mais ou menos, mas no Liceu era muito mais apurado. A aula de francs era s em francs, nem uma palavra de portugus, muita gramtica etc. De modo que tive um problema no primeiro ano, de adaptao; depois no, me ajustei bem. Era um bom colgio em termos daquela poca. Quase todos que terminaram comigo no tiveram problemas no vestibular, embora me preparasse apenas nas frias. A.C. O Sr. tinha filhos de diplomatas freqentando o colgio, porque costuma haver isso, no ? No Liceu...

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    S.G. No Liceu, naquela poca no havia, pelo menos na minha turma e em turma imediatamente posterior. Havia alguns que tinham estudado no exterior como o Meira Pena, que foi meu colega no Liceu Francs. Mais velho do que eu uns dois anos.

    [FINAL DA FITA 2- A] A.C. O Sr. lia mais o qu? Literatura? S.G. Um pouco literatura, meu pai me dava para ler os escritores portugueses do sc. XIX, Alexandre Herculano, Camilo, Ea de Queirs. Tambm os escritores franceses. Comecei a ler muito cedo, mas nada ainda de filosofia ou sociologia. A.C. Anatole France, no? S.G. No. Um pouco de Balzac. Eu via Balzac mais pela trama. S anos mais tarde que pude ler com outros interesses. Mesmo Sthendal, a primeira vez que eu li, eu tinha treze, quatorze anos, e achei chatssimo. Depois que eu reli com intensa ateno e grande prazer. A.C. Sim, eu queria lhe perguntar ainda sobre o Liceu Francs, quer dizer, de qualquer maneira j era um ambiente mais ou menos cosmopolita, no ? S.G. Ah, sim havia alguns rapazes franceses mesmo... A.C. No era exatamente como o Colgio Militar, nem como o Pedro II, digamos. S.G. Havia alguns de origem francesa ou franceses mesmo, como d Escoffier, Yersin, Bonniard. Mas a grande maioria era de brasileiros. M.H. Com o tempo, o Sr. foi se desconectando da Bahia ou houve... S.G. No, sempre a Bahia esteve muito presente por dois motivos: em primeiro lugar porque, ao contrrio de minha me que se interessava pelas coisas muito atuais, no fazia referncias elogiativas Bahia, e dizia que lugar bom o lugar onde a gente pode viver bem, meu pai, pelo contrrio, era muito saudosista, vivia se referindo a fatos da mocidade e, quando se encontrava no Rio com tio Ramiro ou tio Mrio, era um desfiar de memrias do tempo da faculdade, histrias do pai, dos avs, histrias de Camamu, onde ele passava as frias quando menino e adolescente, etc. A.C. Era o que? Era fazenda? No? S.G. No. Camamu um municpio; eu no conheo... uma cidade muito velha. Parece que ficou parada no tempo e tem uma baa de guas profundas, ao sul de Salvador; mais prxima j de Ilhus. Da vinha o lado da me de meu pai, da minha av paterna; era da o pai dela, o Conselheiro Ramiro Afonso Monteiro. Por causa dele que na minha famlia em cada gerao h um Ramiro, porque ele s teve um filho homem, tio Romualdo, que no teve descendentes. A filha botou no filho mais velho,

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    tio Ramiro, esse nome. Meu pai me deu esse nome. Eu tenho um primo Ramiro, e um sobrinho-neto Ramiro. Essa gente, Afonso Monteiro, era uma gente tradicional de l. A.C. Era famlia tradicional do municpio? S.G. De l, . A mulher dele, que eu no conheci, alis nenhum dos dois, morreram muito antes, era tambm de uma famlia de l. A.C. E eram famlias que tinham terra tradicionalmente ou era mais... S.G. Eu no conheo os detalhes, tinham casa pelo menos na cidade. Eu me lembro que o meu pai tinha fotografia da tal casa na cidade onde ficava quando ia l para as frias. A.C. E ele lembrava desses tempos com muita nostalgia? S.G. Muita nostalgia, ele nunca deixou de falar, no fim da vida ento, aos oitenta anos, setenta e tantos, s falava. Ele e tio Hermilo, o irmo mais moo que ficou na Bahia at os setenta anos, quando se aposentou e veio para o Rio, s conversavam sobre a Bahia. Mas a eu j era diplomata e os via raramente, embora nos meus estgios de 61-63 e 67-69 ainda tenho estado muito com eles. Mas isso era um dos lados da presena baiana. Outro lado era a minha av materna, que morou conosco muito tempo, que era muito baiana, filha de portugueses. Ela era Furtado de Simas de nascimento e Saraiva pelo casamento. Ela tinha dois irmos engenheiros, Amrico e Artur, que deixaram descendncia na Bahia, um que foi Ministro das Comunicaes, entre outros. Uma vez, em 81 talvez, eu fui a Cachoeira com o conservador do Museu de Arte Sacra, um espanhol que se naturalizou, ficou l, j morreu, Caldern de La Vara. Cachoeira muito interessante. Do outro lado do Rio Paraguau, em So Flix, um bisav materno, o aoriano Furtado de Simas, tinha tido fbrica de charutos em meados do sculo XIX. Meu pai tinha morado em So Flix, em frente, antes de eu nascer. Pois ao sair restaurante, alis timo, em Cachoeira, o Calderon me apresentou o encarregado de supervisionar a restaurao da cidade, que era um rapaz, Simas, que vinha a ser um primo distante. Os Simas ficaram l, no ? A minha av era uma presena da Bahia, e a outra presena, esta sempre permanente, eram os doces e as comidas (risos). Quando havia aniversrio, etc, era vatap, caruru, todas aquelas coisas. Eu cresci comendo, no diariamente, lgico mas em dia de comemorao, essas comidas baianas, todas. Minha me fazia muito bem, tia Graziela, que era irm de meu pai, no Rio, fazia um vatap extraordinrio tambm. No era todo dia, mas, mesmo quando ns estvamos em Minas, mandavam do Rio, azeite de dend, camaro seco... essas coisas. A.C. Os ingredientes... S.G. Os ingredientes. No Rio se encontravam, mesmo naquela poca havia. Houve muito esse tipo de presena baiana. A.C. Agora, o Sr. era mais parecido com o meu pai, de temperamento seu... S.G. Em certo sentido sim, muito reservado, muito srio e muito fechado. Eu s fiquei meio irresponsvel depois, j na carreira, assim jovial. Antes eu era muito chato, era muito fechado.

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    A.C. O seu lado baiano um pouco enrustido, no ? Realmente a ideia que ns temos do baiano falador, extrovertido... S.G. Falador! A.C. - ... no corresponde em nada ao Sr. S.G. Certamente no. Minha me era um pouco assim, era mais tipicamente baiana, embora a rigor fizesse restries Bahia. Meu pai, que no era o baiano tpico... M.H.. Era baianfilo... S.G. Era baianfilo. No Rio Grande, eu me lembro de ele comentar que alguns clientes ficavam espantados porque ele era baiano, mas era branco e montava bem a cavalo. A.C. Baiano tinha que ser preto e montar como um jaguno, no ? S.G. Deram-me uma razo para isso: a lembrana, que perdurava ainda nos anos vinte, da infantaria que foi para a Guerra do Paraguai e que era metade baiana e de pretos. Alforriavam o preto para que ele fosse voluntrio no Paraguai (risos). Lutaram bem e agentaram condies horrveis, no s da guerra mas de epidemias, disenterias, malria, peste etc. Como eles passaram pelo Rio Grande, ficou uma lembrana transmitida de gerao em gerao. Ento a ideia de baiano era de um preto da infantaria. A.C. Eu queria perguntar ao Sr. sobre essa deciso do seu pai de ir para o Rio Grande do Sul, porque no Brasil de hoje tudo isso muito fcil, no ? Realmente, no Brasil daquela poca, sair da Bahia e ir pra Bag, nem Bag era... S.G. , no, um lugarzinho... A.C. Como que se deu esse processo? S.G. Isso foi o seguinte, alis... A.C. Essa deciso de ir para l? S.G. - ... a primeira vez que ele foi, eu no tinha nascido. Ele se formou. Teve um primeiro emprego numa empresa hidroeltrica, que construiu a primeira barragem de Bananeiras no rio Paraguau. O engenheiro que construiu a barragem e a administrava era irmo de minha av materna, tio Amrico, a que j me referi. Foi um grande engenheiro, foi quem fez o primeiro plano dessas vias que h em Salvador pelos vales, tanto que o tnel que liga uma dessas vias pra cidade baixa tem o nome dele, e tambm uma ponte na Rio-Bahia. Ele contratou meu pai, que era recm-formado como mdico, para atender l o pessoal, os operrios, etc. Em mil novecentos... Acho que quinze, quinze ou desesseis, os Guinle venderam essa empresa deles American Power. Ento meu pai perdeu o emprego e no conseguiu na Bahia nem emprego, nem clientela. Um cunhado dele, o tio Franklin, irmo de minha me, que era farmacutico do exrcito,

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    tinha estado no Rio Grande, e a deixou o exrcito, casou-se com uma fazendeira do Rio Pardo, aconselhou meu pai: Por que que voc no vai para So Sep, onde eu j tive farmcia? um lugarzinho pequeno., isso eu ouvi contar depois, mas um municpio rico e l no h mdico, s tem um Dr. Pascoal, que um enfermeiro italiano que botou placa de mdico, etc.. Porque no Rio Grande do Sul, nesse tempo, vigia a constituio castilhista, positivista, e qualquer pessoa podia se arvorar, se declarar mdico, engenheiro, o que fosse, sem ter curso nenhum. A.C. Exatamente. A prtica livre da profisso. S.G. Era uma peculiaridade da constituio do Rio Grande. Meu pai foi e l ganhou dinheiro. Em 1918, ele foi vtima da febre amarela, ficou muito fraco, escapou por um triz e, convalescente voltou, Bahia, ficou na casa de minha av materna, que era viva j h muitos anos. Nessa casa, 39 do Corredor da Vitria, eu nasci em 2 de dezembro de 1919. Tentou uma olaria que no deu certo. Se a cidade estava parada, era o pior negcio. Ento, quando eu tinha cerca de trs anos, tendo gasto quase todas as suas economias, feitas em So Sep, ele voltou a So Sep, e de l s saiu em princpios de 27, por causa dos estudos do meu irmo. A.C. Enfim j tinha uma indicao segura. S.G. Era uma cidade pequena, chamavam de vila, embora fosse sede municipal, mas municpio rico, fazendeiros ricos. Por isso que ele montava a cavalo, porque tinha que ir s fazendas atender, etc. A.C. Perfeito. Ns amos ento falar sobre a sua entrada na Faculdade Nacional de Direito. S.G. . Quando terminei o ginsio, a minha tendncia era no estudar mais nada. Eu sempre tive uma tendncia vagabundagem que nunca pude satisfazer completamente. (risos). Ora, o vestibular tido por mais fcil, naquele tempo, era o de Direito, o que me levou a prefer-lo. Havia um professor de Histria no Liceu, lvaro Kilkerry, inteligente, simptico... A.C. Como era o nome dele? S.G. lvaro Kilkerry, baiano tambm e mestio. Era um sujeito baixo assim, muito inteligente, uma pessoa culta, e preparava, para a Faculdade de Direito, Psicologia e Lgica. Fiz parte uma pequena reviso de latim, as oraes de Ccero, o sexto livro da Eneida. Meu latim era rudimentar, mas cheguei a saber de cor boa parte do sexto livro da Eneida. Agora s sei os primeiros versos. A parte de Psicologia e Lgica era completamente diferente do programa do ginsio. No ginsio davam, em Filosofia, no quinto ano, uma parte de Psicologia na base de um livro francs. E o exame para a faculdade era Psicanlise, de que havia uns doze pontos, behaviourismo, gestahlt, etc... A.C. Psicanlise? S.G. . Porque quem tinha organizado o programa... A.C. Que coisa impressionante!

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    S.G. - ...era um professor chamado Porto Carrero. No sei se voc j ouviu falar; o Porto Carreiro era, na poca, uma espcie de Corifeu da psicanlise, aqui no Brasil, etc. Embora parecesse uma relativa novidade, a psicanlise j tinha mais de trinta anos, no ? Em termos de Brasil, como tudo chega atrasado, ainda no era assunto para curso secundrio. A parte de lgica era mais clssica, formal. Chegaram da Frana dois rapazes que foram tomar aulas com o Kilkerry tambm, um era o Pio Corra, que tinha sido no s primeiro aluno no Liceu dele em Paris, mas primeiro aluno de Frana, porque faziam uma competio entre os primeiros dos diversos Liceus... A.C. Qual era o Liceu dele? S.G. Era um desses famosos de Paris, eu no sei qual. O pai dele, que era um cientista, tinha morado l muitos anos, foi um botnico de nome. E Jos Maria Pimentel Brando, que era filho do embaixador Pimentel Brando. Todos dois bem preparados, mas essa parte de psicologia eles tambm no conheciam, porque nenhum Liceu na Frana dava... A.C. Psicanlise... S.G. - ...psicologia com essa abordagem das novas teorias. Ento o Kilkerry dava as explicaes, no havia livro. Eu tinha uma memria enorme; saa dali, escrevia a aula, depois mostrava a ele e conversvamos. Havia tambm uma matria de noes de literatura universal e de literatura brasileira. Estudavam-se dois livros de Afrnio Peixoto. Havia um captulo sobre cada movimento literrio, sinttico, muito bem escrito e interessante. E a seguir uma espcie de nomenclatura, nomes ttulos de obras, etc. muito cacete. E o Pio falou vrias vezes para ns sobre a parte de literatura francesa em geral muito bem, sem cobrar nada, no ? Acabvamos a aula do Kilkerry e ele fazia uma conferncia impromptu sobre qualquer assunto literrio. Ele era, nessa poca, monarquista. Diziam que era um dos trs patrianovistas na faculdade. A.C. Coisa estranha para uma pessoa que passou tanto tempo na Frana, num Liceu Francs... S.G. Fizemos o vestibular e entramos... A.C. O Sr. ensinou alguma coisa a ele? S.G. No, no. Fiz o vestibular sem maior problema. No havia tantos candidatos como hoje. ramos 550 e havia duzentas vagas. Fiquei em vigsimo oitavo lugar. O Pio ficou em quadragsimo, embora tivesse uma cultura geral melhor; mas estava menos dentro do programa que pediam. Agora, um episdio. A Faculdade Nacional era ainda na Rua do Catete. L puseram num quadro os resultados e sofri muito, porque comecei a ler de baixo para cima (risos), a partir de 211 at o vigsimo oitavo. A.C. Eu acho que isso nos permite fazer um diagnstico muito claro da sua personalidade, o Sr. decididamente um pessimista. S.G. Ou pelo menos no gosto de ficar... M.H. De criar falsas expectativas.

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    S.G. De dar as coisas de barato, no ? Entrei na faculdade, no ano de 1935. Foi um ano muito poltico. Davam-se duas matrias. Tinham tirado Direito Romano e passado para o quinto ano, quando eu cheguei ao quinto ano haviam passado de volta para o primeiro, de modo que eu no dei Direito Romano na Faculdade. Eu li um livrinho, um prvis Dolloz sobre a matria por iniciativa prpria. Introduo ao Direito, dada pelo Hermes Lima, que era um professor moo, um tanto cacete, mas muito cumpridor, dava as aulas direitinho e reprovava; e o Lenidas Rezende, que era uma pessoa um tanto florida, sua maneira pessoal. Ambos marxistas, no ? Lenidas ainda mais acentuado. Lenidas dava Economia. O que se estudava de economia era na verdade Histria das Doutrinas Econmicas. E o curso era basicamente isso. Mostrava como as diversas doutrinas continham erros, como algumas delas como a de Ricardo pressentiam o papel do trabalho como valor; depois se entrava um pouco em Hegel, em Feuerbach, etc... para finalmente encontrar esclarecimento de tudo em Marx, no ? E a acabava. No se chegava a estudar nada posterior, nem Pareto, nem Marshall, nada. (risos) E foi um ano muito politizado. Na faculdade muitssimo e um pouco o reflexo do que se estava passando na Europa, Front Populaire na Frana, o fascismo, o nazismo; o fascismo cada vez mais virulento, Guerra da Etipia; rearmamento alemo etc. Isso tudo de alguma forma se refletia aqui, naquele ambiente muito politizado. Ento voc tinha o grupo dos comunistas, que era liderado pelo sargento Tirso, Tirso Lira. O grupo dos integralistas que iam a maior parte de camisa verde para a aula e cujo lder era o Correa do Lago, nosso atual embaixador em Paris. Voc tinha pessoas tipo Meira Pena que talvez no fossem integralistas, porque estavam um pouco mais direita. A.C. A direita do Integralismo? S.G. Talvez, . E havia tipo Pio Correa, que era patrianovista. Tinha l sua vida a parte, foi chamado pelo Salgado Filho para trabalhar em seu gabinete; foi ele dizem, quem desenhou o primeiro uniforme da Fora Area. Ele tinha gosto por coisas militares... A.C. Quem? S.G. O Pio Correa. A.C. Ah, o Pio Correa foi... S.G. Ah, fez cavalaria no CPOR, ia para l de manh, ia cuidar dos cavalos, depois fez dois estgios, ele hoje capito da reserva. A.C. Isso quer dizer que o patrianovismo colaborou estreitamente com os integralistas? S.G. No sei. Era algo prprio, especfico. Naturalmente a maioria era do meio, intermediria, incaracterstica. Frazo, por exemplo, Srgio Armando Frazo, que foi, alis, quem tirou o primeiro lugar no vestibular, (ningum estava concorrendo com ele, no ?) fez o sexto ano de Pedro II, sempre foi um sujeito que queria primeiro lugar e foi eleito para o Diretrio. E havia um grande grupo, digamos, centrista, um pouco da direita at a esquerda, que nunca aderiu a posies extremas. Nas eleies para o diretrio, havia na prtica um candidato dos integralistas, e um outro pelos comunistas.

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    Agora, os comunistas no apoiaram, nesse ano nem nos seguintes, candidatos que fossem comunistas, eles apoiavam um sujeito qualquer do grande centro mais ou menos, mas caracterizadamente no integralista. Mas o ambiente, apesar de extremado, no comportava atitudes pessoais desagradveis. Pessoalmente se respeitavam, e aos prprios professores. Eu me lembro de que o Lago, ao fim das aulas do Lenidas s vezes pedia para fazer perguntas, fazia perguntinhas embaraosas e o Lenidas respondia com toda gentileza (risos).

    [FINAL DA FITA 2-B] Entrevista: 19/03/1985 A.C. Havia o chamado dilogo. S.G. . Uma vez, depois da aula, no corredor, perguntei ao Hermes Lima: professor, eu gostaria de ver, sobre sua matria, se h outras abordagens. E ele me indicou duas ou trs obras, inclusive o primeiro livro em italiano que eu li, que encontrei num sebo, me foi indicado por ele. Era um livro chamado Enciclopedia Giuridica, de um professor italiano, Filomusi Guelfi, em que era dada toda a matria que ns chamvamos introduo, a partir de uma abordagem de Direito Natural, portanto oposta abordagem marxista, materialista. Tambm no me satisfez, mas era um livro interessante na parte especfica, muito bem exposto. Depois, no fim do ano, os dois professores foram presos, por causa da Intentona. Em 45, 46, voltaram. Eles no eram do Partido, nenhum dos dois. M.H. E nesse clima, perdo, havia muita discusso, muito debate, quer dizer, num clima onde se respeitavam as idias, mas havia muita troca de opinio? S.G. No muita, no. No muita. Mas no havia um relacionamento pessoal grosseiro, isso nunca houve, mesmo naquele perodo, que foi um perodo de extremismos. verdade que a grande maioria no era nem de um lado, nem de outro. Eu mesmo tinha muita pena daquilo. Nunca cheguei a achar muito racional ou inteligente essa certeza das posies extremadas. Talvez dessem maior conforto intelectual aos que participavam, porque tinham resposta para tudo, no ? A.C. Certo. S.G. E os que no estavam dentro deste esquema tinham dvidas, um pouco sobre tudo. A.C. Quer dizer, o Sr. nunca gostou muito da diviso dos blocos? S.G. No, nem nessa poca. Eu me dava muito bem com os comunistas, cooperava com o trabalho deles de fazer os pontos, porque eu tinha uma boa memria, e dava anotaes, ou corrigia, s vezes sugeria... A.C. O Sr. explicou isso fora do gravador, que eles preparavam estas apostilas. Era uma funo, digamos, poltica que eles tinham.

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    S.G. verdade. Achava-os bons sujeitos e at as minhas condies objetivas deveriam inclinar-me para o lado comunista, pois foi o perodo mais difcil para ns em casa em termos de transio econmica. Eu tinha dois ternos, nada mais, tinha uma vida muito, muito controlada. Mas no conseguia intelectualmente ficar satisfeito com todo aquele esquema extremamente simplificado. E o lado integralista, to pouco eu entendia. Quer dizer, com esse realmente apenas eu tinha boas relaes pessoais com alguns deles, como o Lago, que sempre foi um sujeito educadssimo, uma flor da humanidade, at hoje; nunca mudou em termos de maneira de ser. Mas, alm das dificuldades de substncia, creio que o brasileiro tem muito senso de ridculo, talvez seja um defeito, um exagerado senso de ridculo, que tornava muito estranha aquela histria de camisa, anau; aquela mecanicidade da mobilizao deles... A.C. Meio grotesco tudo aquilo, no ? S.G. , era meio grotesco, eu no entendia, me irritava um pouco. Ento eu fiquei no meio incaracterstico. Em 36, no segundo ano, as coisas sossegaram, porque os integralistas continuaram, e foram at 37, como voc lembra, no ? E mesmo 38, no princpio. Mas havia a impresso, acredito, de que tendo sido suprimido o seu oposto, eles perdiam tambm a sua razo de ser, como acabou acontecendo no Estado Novo. Ficaram sem funo, digamos, no jogo... A.C. Bipolar. S.G. Bipolar, , esse o termo. Em 36, eu mudei muito de vida. Tinha dezesseis anos, e arranjei um lugar na reviso do Correio da Manh, onde havia vrios estudantes. O sistema era esse: voc chegava e, se houvesse falta de algum revisor, ou conferente, voc trabalhava, seno, no. Passei a ir sempre, fui muito assduo, sem importar-me de sobrar. Ento, quando houve uma vaga mesmo, me efetivaram. Eu comeava s nove da noite e acabava s duas da manh. Nessa poca tambm, eu comecei a praticar no escritrio de um advogado amigo nosso, Pestana de Aguiar, de tarde, depois ia s aulas e depois ia para a reviso do Correio da Manh. Tambm nesse ano, comecei a fazer CPOR, infantaria, trs vezes por semana, perodo de cinco meses por ano, por trs anos. Ento havia dias em que eu saa do Correio s duas da manh, ia de bonde para casa, chegava a pelas trs, acordava s quatro e meia, as cinco saa correndo para estar s seis horas na Avenida Pedro Ivo; depois saa de l, vinha para casa, dormia duas horas, saa de novo. Mas agentava isso muito bem. Foi at um perodo muito estimulante. A.C. Para quem era preguioso, eu acho que o Sr. estava bastante ativo. S.G. , pois . Toda a mocidade, eu estive assim sempre muito ocupado e muito preocupado em saber como que ia ser materialmente a minha vida, o que que eu ia fazer, etc. Na faculdade, passei a tomar interesse, a estudar muito mais do que na poca de ginsio, e assim foi nesses anos, 36, 37, 38, 39. J fiz o ltimo ano da Faculdade um pouco mais folgado, no tinha mais o CPOR; mas continuava na reviso porque aquilo me dava um dinheirinho todo ms. M.H. E quais eram os principais interesses que o Sr. tinha nessa poca, na Universidade? Em termos assim de matria, de estudo?

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    S.G. Olha, eu acompanhei muito o Direito Civil, li muito naquela poca; Penal mais ou menos; Comercial, o suficiente. Eu acho que a matria que eu mais li mesmo foi Direito Civil, e, ao lado disso, lia muito Histria porque me divertia. Comprava na Livraria Freitas Bastos, e s vezes encomendava um livro que um ms depois chegava da Frana, por quarenta mil ris. Li vrios livros de uma coleo L Evolution de l Humanit. H um deles muito interessante, Des Clans aux Empires, sobre a formao do Imprio Egpcio, mas que esclarecedor das outras civilizaes iniciais. Outros sobre o Egito mesmo, sobre civilizao sumria e Babilnia, sobre os hititas, todo o perodo pr-clssico. E depois sobre civilizao grega e romana. Naturalmente, li tambm Fustel de Coulanges. Li, sobre Creta, um livro muito interessante daquela jornalista francesa, Genevive Tabouis, que nos anos trinta previu a guerra e ficou conhecida como uma espcie de Cassandra na Frana, mas que era uma historiadora e tem esse livro fascinante sobre a civilizao cretense a sua influncia na civilizao miceniana e, portanto, em Grcia. Isso, eu lia como meu divertimento, at mais do que romance, propriamente. De romance, lia um pouco os brasileiros que estavam em moda na poca, o Ciclo do Nordeste. Li como todos os rapazes daquela poca, A Bagaceira, O Quinze, os livros de Jos Lins do Rego que iam aparecendo. A.C. Menino de Engenho, essas coisas. S.G. , Menino de Engenho, at Bangu, depois eu parei de ler. E a Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, que foi um livro indispensvel, por esse tempo. A.C. , 34. S.G. 34, no ? Coisas que eram, digamos, a moda em termos de Brasil, naquele tempo. E fora disso, eram esses livros de histria, livros que eu lia para me divertir e para encontrar indicaes sobre origem de prticas e ideias. Um pouco tambm, em retrospecto, por escapismo... A.C. A histria imediata, que estava se travando l na Europa, o Sr. estava menos interessado, talvez? S.G. No, acompanhava, mas acompanhava pelos jornais e era trabalho para mim. Como revisor, lia jornal, lia uma massa enorme de noticirio de agncia; guerra, aquela guerra espanhola, as operaes todas, aquilo eu j no podia nem ouvir falar depois. A.C. E a Espanha o perseguiu ao longo dos anos, no ? S.G. , alguns tpicos tambm, s vezes at os artigos do Costa Rego, em certa ocasio... A.C. Revisor, que dizer, o Sr. fazia reviso como copydesk? S.G. Era o seguinte, vinha da tipografia o texto, ento o conferente acompanhava pelo original, que era geralmente manuscrito e o revisor ia lendo o texto, e fazendo as correes na impresso, para no escaparem gatos, erros, linhas puladas, essas coisas, compreende? A.C. Ah, certo. Era mais a reviso grfica, no ?

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    S.G. Grfica. Eu podia mexer um pouco na pontuao, ou se notasse algo meio esquisito, que s vezes o original tinha algo que se prestava a dvida, e a levantava o problema. s vezes era uma simples omisso. Mas aquilo me obrigava a ler uma quantidade enorme de textos de jornal. A.C. A histria imediata, o Sr. estava tendo como fluxo permanente atravs do jornal. S.G. E os comentrios eram muito pobres, assim me pareciam de um modo geral, mesmo nessa poca. Foi um perodo muito politizado, apesar de que, em 37, veio o Estado Novo. Mas at isso era parte, em certo sentido, da presena muito grande das possveis repercusses do quadro internacional. Os prdromos de guerra, o que isso poderia significar para o pas que naquele tempo dependia muitssimo de importaes fundamentais etc... M.H. Ento, exatamente neste contexto que o Sr. est descrevendo, tendo uma posio digamos, mais independente em relao s opes poltico-ideolgicas da poca, o Sr. percebia algumas possibilidades, em termos, digamos, do prprio posicionamento futuro, mais ou menos, imediato do Brasil em relao a todo esse conflito, a possibilidade de que realmente ns entrssemos num alinhamento maior com a Alemanha, enfim... S.G. No. Como se sabe, houve um momento em que o Presidente Getlio Vargas ter-se-ia inclinado um pouco pelo eixo. Fez aquele discurso no Couraado So Paulo e assim por diante. Eu sempre tive, apesar de no ser um ideolgico, como alis a grande maioria, uma percepo muito anti-nazista, embora no soubesse da missa nem a metade, naquele tempo. Muita coisa s veio luz depois. Mas, de qualquer maneira, era incompatvel com a maneira de ser nossa. Havia assim uma espcie de reao quase visceral contra a concepo nazista do mundo. Mas eu sempre tive, ao contrrio de muita gente, uma viso negativa da capacidade de reagir ocidental. A queda da Frana e a ocupao da Europa, no me surpreenderam muito; foi uma grande surpresa em toda parte, mas eu sempre tive um pouco a impresso de que o fato de um pas estar dominado por uma concepo de vida, uma concepo at filosfica, que no nos agrade, no quer dizer que ele v ser incompetente. E claramente, eu tinha a compreenso de que a explorao do sentimento nacionalista revanchista alemo era uma realidade, que podia mobilizar aquele povo com toda a capacidade que ele tem de organizao, de disciplina. Depois, em 41, quando eles invadiram a Unio Sovitica, eu estava fazendo estgio de aspirante da reserva no Regimento Sampaio, ali na Vila Militar, em junho, julho, agosto de 41. Pipocavam suposies e as opinies eram muito definidas de um modo geral: Isso muito bom porque arrebenta com a Rssia, e ao mesmo tempo desgasta Hitler, um raciocnio que tinha seu fundo de verdade, no ? Mas eu achava tudo dbio, eu achava que no tnhamos base, no tnhamos informao para supor que a Rssia resistisse indefinidamente, embora as condies de espao a favorecessem. A tecnol