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abr./jun.2013

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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRODIRETORIA – (2012-2013)Presidente: Arno Wehling1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco3º Vice-Presidente: José Arthur Rios1º Secretário: Cybelle Moreira de Ipanema2º Secretário: Maria de Lourdes Viana LyraTesoureiro: Fernando Tasso Fragoso PiresOrador: Alberto da Costa e Silva

ADMISSÃO DE SÓCIOS:Alberto da Costa e SilvaAlberto Venancio FilhoCarlos WehrsFernando Tasso Fragoso PiresJosé Arthur Rios

CIÊNCIAS SOCIAIS: Antônio Celso Alves PereiraCândido Mendes de AlmeidaHelio Jaguaribe de MatosLêda Boechat RodriguesMaria da Conceição de M. Cou-tinho Beltrão.

ESTATUTO:Affonso Arinos de Mello FrancoAlberto Venancio FilhoCélio BorjaJoão Maurício A. PinhoVictorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA:Armando Senna BittencourtJonas de Morais Correia NetoMiridan Britto FalciRonaldo Rogério de Freitas MourãoVera Lúcia Cabana de Andrade

HISTÓRIA: Eduardo SilvaGuilherme de Andrea FrotaLucia Maria Paschoal GuimarãesMarcos Guimarães SanchesMaria de Lourdes Vianna Lyra.

PATRIMÔNIO: Afonso Celso Villela de CarvalhoAntonio Izaías da Costa AbreuClaudio Moreira BentoFernando Tasso Fragoso PiresRoberto Cavalcanti de Albur-querque.

COMISSÕES PERMANENTES

CONSELHO CONSULTIVOMembros nomeados: Carlos Wehrs, Evaristo de Moraes Filho, Helio Leoncio

Martins, João Hermes Pereira de Araújo, José Pedro Pin-to Esposel, Lêda Boechat Rodrigues, Luiz de Castro Sou-za, Miridan Britto Falci, Vasco Mariz

CONSELHO FISCALMembros Efetivos: Antonio Gomes da Costa, Jonas de Morais Cor-

reia Neto, Marilda Correia Ciribelli.Membros Suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,

Roberto Cavalcanti de Albuquerque.

DIRETORIAS ADJUNTASArquivo: Jaime Antunes da SilvaBiblioteca: Claudio AguiarCursos: Antonio Celso Alves PereiraIconografia: D. João de Orleans e Bragança e Pedro K. Vasquez (sub-diretor)Informática e Dissem. da Informação: Esther Caldas BertolettiMuseu: Vera Lúcia Bottrel TostesPatrimônio: Guilherme de Andrea FrotaProjetos Especiais: Mary del PrioreRelações Externas: Maria da Conceição BeltrãoRelações Institucionais: João Mauricio de A. PinhoCoordenador da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal

Guimarães (sub-coord.)Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda

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REVISTADO

INSTITUTO HISTÓRICOE

GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174, n. 459, pp. 11-279, abr./jun. 2013.

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 174, n. 459, 2013

Indexada por/Indexed byUlrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) – Sumários Correntes Brasileiros

Correspondência:Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilFone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338e-mail: [email protected] home page: www.ihgb.org.br© Copright by IHGBTiragem: 700 exemplaresImpresso no Brasil – Printed in BrazilRevisora: Sandra Pássaro Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o Instituto, 1839-

v. : il. ; 23 cm

TrimestralISSN 0101-4366Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450

(2011) N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-

rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley – N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006. – N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa

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CONSELHO EDITORIAL

Arno Wehling – UFRJ, UGF e UNIRIO – Rio de Janeiro – RJ – BrasilAntonio Manuel Dias Farinha – U L – Lisboa – PortugalCarlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – BrasilEduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – BrasilHumberto Carlos Baquero Moreno – UP, UPT, Porto, PortugalJoão Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – BrasilJosé Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – BrasilVasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES

Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – BrasilEsther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – BrasilLucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – BrasilMary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ– Brasil

CONSELHO CONSULTIVO

Amado Cervo – UnB – Brasília – DF – Brasil Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – ItáliaAntonio Manuel Botelho Hespanha – UNL – Lisboa – PortugalEdivaldo Machado Boaventura – UFBA e UNIFACS – Salvador – BAFernando Camargo – UFPEL – Pelotas – RS – BrasilGeraldo Mártires Coelho – UFPA – Belém – PAJosé Octavio Arruda Mello – UFPB – João Pessoa – PBJosé Marques – UP – Porto – PortugalJunia Ferreira Furtado – UFMG – Belo Horizonte – MG – BrasilLeslie Bethell – Universidade Oxford – Oxford – InglaterraMárcia Elisa de Campos Graf – UFPR– Curitiba – PRMarcus Joaquim Maciel de Carvalho – UFPE – Recife – PEMaria Beatriz Nizza da Silva – USP – São Paulo – SPMaria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SPNestor Goulart Reis Filho – USP – São Paulo – SP – BrasilRenato Pinto Venâncio – UFOP – Ouro Preto – MG – BrasilStuart Schwartz – Universidade de Yale – InglaterraVictor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina

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SUMÁRIO SUMMARY

Carta ao Leitor 11Lucia Maria PaschoaL GuiMarães

I – ARTIGOS E ENSAIOS ARTICLES AND ESSAYS

Propostas radicais no Parlamento regencial: 13 república, religião e escravidãoRadical proposals in the House of Representatives during the regency period: republic, religion and slaveryMarceLLo otávio Neri de caMPos BasiLe

A formação do acervo do Gabinete Português de Leitura 43 no século XICreating the collection of the Gabinete Português de Leitura in the nineteenth centuryFaBiaNo cataLdo de azevedo e Luís FeLiPe dias trotta

A Primeira República e a Política de Emigração 77The First Republic and the Emigration PoliciesMíriaM haLPerN Pereira

A República Portuguesa e o regresso dos jesuítas à Bahia 91The Portuguese Republic and the return of the jesuits to BahiaedivaLdo M. BoaveNtura

O Homem culto do século XIX: seu perfil e sua atualidade 105The cultured man in the nineteenth century: his profile then and at presentPedro sPiNoLa Pereira caLdas

D. Pedro II e o campo científico: Novas perspectivas 125 sobre a trajetória do imperadorD. Pedro II and the scientific area: new perspectives on the emperor’s trajectoryaLessaNdra BetteNcourt FiGueiredo FraGuas

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Ferrovias, de um problema do passado a uma solução 153 presente: a São Paulo Railway e a Ferrovia Vitória–MinasRailways, from a problem in the past to a solution at present: the São Paulo railway and the Vitória–Minas railwayheLeNa MeNdoNça Faria e MiLtoN José zaMBoNi

II – COMUNICAÇÕES NOTIFICATIONS

Centenário de uma ruptura institucional na República: 173 o caso do Conselho Municipal do Distrito FederalThe centennial of an institutional rupture in the Brazilian Republic: the case of the Federal District’s Municipal CouncilJosé heNrique do carMo

Os naturalistas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: 209 V – Maximilian Alexander Phillip von Wied-Neuwied (1782-1867)The Naturalists in the Brazilian Institute of History and Geography: V – Maximilian Alexander Philip von Wied-Neuwied (1782-1867)MeLquíades PiNto Paiva

O Curso Capistrano de Abreu (1953), no IHGB: 217 a construção de um legado intelectualThe Capistrano de Abreu course at the Brazilian Institute of History and Geography (IHGB) in 1953: building an intellectual legacyreBeca GoNtiJo

Elysio Custódio Gonçalves de Oliveira Belchior 243Elysio Custódio Gonçalves de Oliveira BelchiorcarLos Wehrs

III – DOCUMENTOS DOCUMENTS

Isabel Odonais no Rio Amazonas em 1769 247Isabel Odonais on the Amazon River in 1769JeaN MarceL carvaLho FraNça

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IV – RESENHAS REVIEW ESSAYS

Passagens para o Índico: Encontros brasileiros 259 com a literatura moçambicanaadeLto GoNçaLves

Geografia histórica do Brasil: 265 capitalismo, território e periferiaLucieNe Pereira carris cardoso

• Normas de publicação 273 Guide for the authors 275

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Carta ao Leitor

Dama de fino trato, a peruana Isabel Odomais vivenciou experiên-cias incríveis, em 1769, ao longo de uma viagem pelo rio Amazonas. Sobreviveu a um naufrágio, viu-se abandonada pela escolta que a acom-panhava, perambulou perdida na mata fechada e quase morreu de fome e sede. Mas o acidentado périplo, tal como nos romances de ficção, chegou a um final feliz, podemos desde já antecipar. A narrativa das aventuras de d. Isabel encontra-se transcrita neste número da R. IHGB, na Seção Documentos, acrescida de estudo introdutório do professor Jean Marcel Carvalho França.

O segmento Artigos e Ensaios apresenta sete inéditos. Marcelo Oc-távio Basile aborda três temas polêmicos, objeto de proposições e de aca-loradas discussões, na Câmara dos Deputados durante o período regencial (1831-1840): a implantação do regime republicano, a separação entre a Igreja e o Estado, a extinção do tráfico e a abolição gradual da escravi-dão. O mesmo recorte temporal é contemplado pelo artigo de Fabiano Cataldo e Luís Felipe Dias Trotta, que trata da criação do Gabinete Portu-guês de Leitura do Rio de Janeiro, em 1837. Eles examinam a política de formação dos seus acervos bibliográfico e hemerográfico.

Alessandra Fraguas analisa o papel desempenhado pelo imperador d. Pedro II no debate científico oitocentista em relação à antropogia, na época, um novo campo de conhecimento em construção. Já a contribui-ção de Pedro Spinola Caldas traça um instigante pertfil do homem culto do século XIX, além de refletir sobre a sua atualidade. Também voltado para uma perspectiva comparada entre passado e presente, o texto assi-nado pelos professores Helena Mendonça Faria e Milton José Zamboni discute o problema das estradas de ferro no Brasil, a partir das histórias da São Paulo Railway e da Ferrovia Vitória-Minas.

Avançando no tempo, Miriam Halpern Pereira estuda as linhas mes-tras da política de emigração desenvolvida em Portugal pelos governos da Primeira República. De quebra, tangencia a problemática da emigra-ção lusa para o Brasil, Aliás, o advento da República em Portugal ainda

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serve de mote para o ensaio “A Reppublica Portuguesa e o regresso dos jesuítas à Bahia”, de Edivaldo Boaventura. O autor destaca que o anticle-ricalismo do regime, instaurado em 1910, foi responsável pela expulsão dos inacianos do país, pela terceira vez. Os religiosos que se transferiram para a cidade de Salvador, fundariam o Colégio Antonio Vieira, em 1911, restaurando, assim, a Companhia de Jesus na Bahia e depois em Pernam-buco, com a criação do Colégio Nóbrega (1917).

Na seção “Comunicações”, acham-se publicados quatro trabalhos, que foram expostos em sessões da Comissão de Estudos e Pesquisas His-tóricas (CEPHAS). José Henrique do Carmo revê o caso das eleições do Conselho Municipal do Distrito Federal (Câmara dos Vereadores), reali-zadas em 1909, cujos resultados foram garantidos pelo Supremo Tribu-nal Federal, embora não tenham sido reconhecidos pelo poder executivo federal e pelo prefeito. Por sua vez, Rebeca Gontijo se debruça sobre o “Curso Capistrano de Abreu”, promovido pelo IHGB, em 1953, para celebrar o centenário de nascimento do consagrado historiador cearense examinando as imagens e representações então construídas em torno de Capistrano. O sócio Carlos Wehrs presta tributo à memória do confrade e amigo Elysio Belchior (1923-2011), na passagem do primeiro aniversá-rio do seu falecimento. Melquíades Pinto Paiva dá sequência à série “Os naturalistas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, com a bio-grafia do ornitologista alemão Maximilan Alexander Phillip von Wied--Neuwied.

Completam o número duas resenhas. Adelto Gonçalves analisa a co-letânea Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana, organizada por Rita Chaves e Tania Macêdo (Maputo: Marimbique – Conteúdos e Publicações, 2012), enquanto Luciene Carris Cardoso tece comentário crítico sobre o livro de Antonio Carlos Robert de Moares, intitulado Geografia histórica do Brasil: capistalimo, ter-ritório e periferia (São Paulo: Annablume, 2011).

Lucia Maria Paschoal Guimarães

Diretora da Revista

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I – ARTIGOS E ENSAIOS ARTICLES AND ESSAYS

PROPOSTAS RADICAIS NO PARLAMENTO REGENCIAL: REPÚBLICA, RELIGIÃO E ESCRAVIDÃO

RADICAL PROPOSALS IN THE HOUSE OF REPRESENTATIVES DURING THE REGENCY PERIOD: REPUBLIC, RELIGION AND

SLAVERY

MarceLLo otávio Neri de caMPos BasiLe1

O período regencial (1831-1840) representou momento crucial no processo de construção da nação brasileira. Por sua pluralidade e ensaís-mo, pela multiplicidade de perspectivas em jogo, constituiu um grande laboratório político e social, no qual as mais diversas e originais fórmulas

1 – Doutor em História Social pela UFRJ – Professor adjunto de História do Brasil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar. Pesquisador do CEO / PRONEX (Faperj, CNPq) Dimensões e Fronteiras do Estado Brasileiro no Século XIX. E-mail: [email protected]

Resumo:Este trabalho analisa três temas bastante polê-micos que foram objeto de proposições e dis-cussões, ainda que isoladas e malogradas, na Câmara dos Deputados durante o período regen-cial brasileiro (1831-1840): a implantação ime-diata ou futura do governo republicano; a plena liberdade de culto e a separação entre Igreja e Estado (ou entre as Igrejas brasileira e roma-na); e a extinção efetiva do tráfico negreiro e o fim gradual da escravidão. Tais projetos foram considerados quase tabus na época, seja porque mexiam em valores cristalizados na sociedade, seja porque violavam preceitos constitucionais. Em sua maioria, foram propostos por deputados vinculados ao grupo radical conhecido como li-berais exaltados, que também abordavam essas temáticas na imprensa.

Abstract:This paper analyzes three very controversial themes that were the object of isolated and un-successful proposals and debates in the House of Representatives during the Brazilian regency period (1831-1840). They were: the immediate or future installation of a Republican govern-ment; total religious freedom and separation between Church and State (or between Brazil-ian and Roman churches); and the effective extinction of the slave trade and gradual end of slavery. Those projects were, at the time, considered as almost taboo, either because they dealt with values that were deeply rooted in society or because they violated constitutional precepts. They had been mostly proposed by representatives linked to a radical group known as liberais exaltados (passionate liberals), who also discussed those issues in the press.

Palavras-chave: Regência; Câmara dos Depu-tados; liberais exaltados; radicalismo.

Keywords: Regency; House of Representatives; liberais exaltados; radicalism.

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políticas foram elaboradas e diferentes experiências testadas, abarcando amplo leque de camadas sociais.2 A aguda crise política, produzida, ainda em fins do Primeiro Reinado, pela oposição a D. Pedro I e, depois da Ab-dicação, em meio à disputa pelo governo regencial, aliado à vacância do Trono e à falta de unidade até então observada da elite política imperial,3 ensejaram a formação de facções distintas – os chamados liberais mode-rados, liberais exaltados e caramurus –, portadoras de diferentes proje-tos. Possibilitaram também a entrada em cena de novos atores políticos e de segmentos sociais até então praticamente excluídos de participação ativa.

A edificação da nação passava substancialmente, nesse momento, pela via da esfera pública4, sendo marcada por autênticas “guerras de opi-niões”, por “guerras de doutrinas”.5 Se era na imprensa que o debate po-lítico encontrava maior amplitude e consistência, em consonância com a atividade associativa, com as manifestações cívicas e com os movimentos de protesto e revolta, as arenas oficiais de representação política tampou-co ficaram alheias a essa intensa mobilização. Câmara dos Deputados e

2 – Cf. BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila, e SALLES, Ricardo (org.). O Brasil imperial, v. II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; e MOREL, Marco. O período das regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 9.3 – Utilizo aqui o conceito de elite política imperial definido por José Murilo de Carva-lho, segundo o qual era compreendida pelo conjunto de indivíduos que ocupavam os altos cargos do Executivo e do Legislativo e eram responsáveis pela tomada de decisões da po-lítica nacional (nomeadamente, deputados-gerais, senadores, ministros e conselheiros de Estado). CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, capítulos 2, 6, 7.4 – Para o conceito de esfera pública, ver HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 42. Para a aplicação crítica do conceito à Corte, cf. MOREL. Marco. As transformaçõs dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independên-cia (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan / Faperj, 2003, capítulo 3; e BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Anarquistas, rusguentos e demagogos: os liberais exaltados e a formação da esfera pública na Corte imperial (1829-1834). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGHIS – U.F.R.J., 2000, capítulo VIII.5 – As expressões são do jornal liberal moderado Astréa, nos 795 – 7/2/1832 e 796 – 9/2/1832.

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ProPostas radicais no Parlamento regencial: rePública, religião e escravidão

Senado não escaparam das pressões emanadas do clamor público. Embora constituísse um espaço político onde o escopo dos debates era geralmente mais circunscrito e austero, preservado tanto quanto possível das ideias e ações mais radicais presentes nos canais mais informais de participação, o Parlamento regencial não ficou imune a alguns temas candentes e ex-plosivos. Considerados quase tabus ou subversivos – seja porque mexiam em práticas e valores cristalizados na sociedade brasileira oitocentista, seja porque violavam preceitos constitucionais existentes, seja, simples-mente, porque esbarravam nas convicções monarquistas da grande maio-ria dos parlamentares –, três assuntos bastante polêmicos foram então objeto de proposições e discussões, ainda que isoladas e malogradas, na Câmara dos Deputados até a ascensão do Regresso (1837): a implantação imediata ou futura do governo republicano; a plena liberdade de culto e a separação entre Igreja e Estado (ou entre as Igrejas brasileira e romana); e a extinção efetiva do tráfico negreiro e o fim gradual da escravidão. Como será visto mais adiante, tais projetos foram propostos, em sua maioria, por deputados vinculados aos liberais exaltados, grupo radical que já uti-lizava a imprensa para abordar essas temáticas, e que tinha no deputado baiano Antônio Ferreira França sua principal liderança na Câmara.

1. Composições políticas na Câmara dos Deputados

Havia 100 cadeiras na Câmara dos Deputados na segunda legislatura (1830-1833),6 número que, na terceira (1834-1837), passou para 104.7 Somando-se, contudo, os deputados eleitos aos suplentes que em algum momento assumiram vaga, chega-se ao total de 123 representantes naque-le primeiro período e 130 no segundo, em um conjunto de 198 diferentes pessoas (descontadas as que fizeram parte de ambas as legislaturas).

6 – A representação provincial era a seguinte: Minas Gerais, 20 deputados; Bahia, 13; Pernambuco, 13; São Paulo, 9; Rio de Janeiro, 8; Ceará, 8; Paraíba do Norte, 5; Alagoas, 5; Maranhão, 4; Pará, 3; São Pedro do Rio Grande do Sul, 3; Sergipe, 2; Goiás, 2; Piauí, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Mato Grosso e Santa Catarina, um 1 cada.7 – O Rio de Janeiro ganhou mais 2 deputados, passando para 10, ao passo que Bahia e Piauí foram contemplados cada qual com 1, aumentando suas bancadas para 14 e 2 depu-tados, respectivamente.

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Os dados prosopográficos referentes a esses indivíduos revelam, no cômputo geral, um predomínio dos deputados nascidos nas províncias da Bahia, de Minas Gerais e de Pernambuco (46,15%), com considerá-vel experiência política prévia em cargos do Legislativo ou do Executivo (60,10%), dotados de curso superior (91,72%), com formação em Direito (53,57%), obtida na Universidade de Coimbra (72,28%), ocupando car-reiras de magistrados, clérigos e militares (71,69%) e que tinham, em média, cerca de 40 anos quando se iniciaram aquelas legislaturas.8 No que tange às tendências políticas dos deputados, verifica-se que, durante a segunda legislatura, a maioria da Câmara era integrada pela facção dos liberais moderados (52,81%), senhores também do governo regencial; os áulicos ou caramurus vinham em seguida (39,33%), restando poucas cadeiras para os liberais exaltados (7,86%).9

Situados ao centro do campo político imperial, os moderados apre-sentavam-se como seguidores dos postulados clássicos liberais, tendo em Locke, Montesquieu, Guizot e Benjamin Constant suas principais refe-rências doutrinárias; almejavam (e conseguiram) promover reformas po-lítico-institucionais para reduzir os poderes do imperador, conferir maio-res prerrogativas à Câmara dos Deputados e autonomia ao Judiciário, e garantir a observância dos direitos (civis, sobretudo) de cidadania previs-tos na Constituição, instaurando uma liberdade moderna que não amea-çasse a ordem imperial. À esquerda do campo, adeptos de um liberalismo radical de feições jacobinistas, matizadas pelo modelo de governo norte--americano, estavam os exaltados, que, inspirados sobretudo em Rous-seau, Montesquieu e Paine, buscavam conjugar princípios liberais clás-sicos com ideais democráticos; pleiteavam profundas reformas políticas e sociais, como a instauração de uma república federativa, a extensão da cidadania política e civil a todos os segmentos livres da sociedade, o fim

8 – Ver a respeito BASILE, Marcello. Deputados da Regência: perfil socioprofissional, trajetórias e tendências políticas. In: CARVALHO, José Murilo de, e CAMPOS, Adriana Pereira (org.). Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, seção 2. Tais dados condizem, portanto, com o perfil mais amplo da elite política imperial traçado por José Murilo de Carvalho (A construção da ordem..., op. cit., sobretudo capítulos 2, 6, 7).9 – Cf. BASILE, Marcello. Deputados da Regência..., op. cit., seção 3.

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ProPostas radicais no Parlamento regencial: rePública, religião e escravidão

gradual da escravidão, uma relativa igualdade social e até uma espécie de reforma agrária. Um terceiro grupo concorrente, organizado logo no iní-cio da Regência – os chamados caramurus (herdeiros diretos dos áulicos do Primeiro Reinado) –, posicionava-se à direita do campo, alinhando-se à vertente conservadora do liberalismo, tributária de Burke; opunha-se a qualquer reforma na Constituição de 1824 e defendia uma monarquia constitucional fortemente centralizada (como a dos tempos de Pedro I), chegando a nutrir, em casos excepcionais, anseios restauradores.10 Tais projetos revelam concepções e propostas distintas acerca da nação que es-ses grupos, cada qual ao seu modo, pretendiam construir, e se inserem em uma cultura política multifacetada ou híbrida, que combinava ideias mais avançadas do liberalismo com resíduos absolutistas do Antigo Regime.11

Durante a segunda legislatura na Câmara, os moderados eram lide-rados por homens como Evaristo da Veiga, Diogo Feijó, Bernardo Pereira de Vasconcellos, José Custódio Dias, José Bento Ferreira de Mello, Odo-rico Mendes, Carneiro Leão, Francisco de Paula Araújo, Miranda Ribeiro e Araujo Vianna. Entre os caramurus sobressaíam Hollanda Cavalcanti, Martim Francisco de Andrada, Miguel Calmon, Araujo Lima, José Cle-mente Pereira, Francisco Montezuma, Antônio Rebouças e Lopes Gama. Na bancada exaltada estavam então Antônio Ferreira França, seu filho Ernesto Ferreira França, Venâncio Henriques de Rezende, José Lino Cou-tinho, Antônio de Castro Álvares, José Mendes Vianna e Luiz Augusto May.

10 – Sobre as facções e os projetos políticos regenciais, ver BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. O Império em construção: projetos de Brasil e ação política na Corte regencial. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGHIS – UFRJ, 2004, sobretudo capítulos II, VI, VII e XI. Convém observar que essa é uma caracterização geral dos respectivos projetos políticos, elaborada a partir dos discursos formulados pelos partidários das três facções nas arenas políticas diversas em que atuavam na Corte. Assim, nem sempre todos os pontos elencados (mas, sem dúvida, ao menos os principais) encontram-se contempla-dos na agenda parlamentar, espaço onde tradicionalmente o debate é menos rico e plural do que, por exemplo, na imprensa.11 – Sobre as ambiguidades e convergências entre modernidade ilustrada e Antigo Regi-me, ver GUERRA, François-Xavier. Modernidad y independencias – ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

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Quanto à terceira legislatura, salvo poucas exceções, não havia, em geral, identidades políticas bem definidas, pois foi um período de transi-ção entre as antigas três facções e as que começaram a se esboçar a partir de 1835: o Regresso e o Progresso, embriões dos partidos Conservador e Liberal do Segundo Reinado. As disposições políticas eram, naquele mo-mento, bastante indefinidas, fragmentadas e oscilantes, convivendo, con-fusamente, moderados, exaltados e caramurus remanescentes, desprovi-dos de referenciais objetivos; oposicionistas e governistas sem identidade partidária; e regressistas e progressistas já constituídos. Além disso, pou-cos se assumiam como tais e muitos variavam de posição, tornando pra-ticamente inviável ou demasiadamente forçado agrupar esses deputados sob os rótulos dessas facções, antecipando posturas que só mais tarde, na quarta legislatura (1838-1841), seriam definidas.

Seja como for, a partir de meados de 1835 o Regresso começou a ser articulado por ex-moderados, como Bernardo de Vasconcellos, Carneiro Leão e Rodrigues Torres, aos quais aderiram antigos caramurus, como Araújo Lima e Miguel Calmon, acompanhados por uma nova geração de políticos estreantes na Câmara, como Paulino Soares de Souza e Euzébio de Queiroz. Em resposta, surgiu pouco depois o Progresso, carreado por grande parte dos moderados (como Limpo de Abreu e Nicolau Verguei-ro), por antigos exaltados (como Henriques de Rezende e o estreante na Câmara Teophilo Ottoni) e, curiosamente, por alguns caramurus (como Hollanda Cavalcanti e Antonio Carlos de Andrada), aos quais vinham a se somar homens como Manoel do Nascimento Castro e Silva, Francis-co de Souza Martins e José Thomaz Nabuco de Araujo. Os regressistas defendiam uma monarquia constitucional centralizada, com concentra-ção de poderes no Parlamento para uns (os egressos da moderação) e no Executivo para outros (ex-caramurus e os líderes da nova geração). Em tese, não eram contra as reformas liberais realizadas durante as regências trinas, mas entendiam que o país ainda não estava preparado para elas, as quais teriam, assim, levado à anarquia, ameaçando a integridade nacio-nal; era preciso, portanto, corrigi-las, de modo a dotar de novo o governo dos instrumentos de controle capazes de assegurar o progresso dentro

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da ordem. Defendiam também a importância do Conselho de Estado, do Poder Moderador, da vitaliciedade dos senadores, dos títulos de nobreza e da aristocracia, enquanto pontos de equilíbrio e contrapesos necessários aos elementos democráticos (as eleições, as câmaras dos Deputados e Municipais, as assembleias legislativas, o juizado de paz, o júri). Já os progressistas, defendiam a fidelidade aos ideais (moderados) do movi-mento do 7 de Abril, a autonomia provincial, a prevalência do Legislati-vo sobre o Executivo e a ausência ou restrição do Poder Moderador. Se ordem era o lema principal dos regressistas, que receavam a anarquia, liberdade era o dos progressistas, que temiam o despotismo.12

Era este, portanto, o ambiente conturbado e dinâmico em que se rea-lizavam os debates e as deliberações parlamentares em fins do Primeiro Reinado e durante a Regência. Ao longo desse período, a agenda política foi fundamentalmente marcada, durante a segunda legislatura, por temas como a lei de Regência, as reformas constitucionais, o combate à Res-tauração e a remoção de José Bonifácio da tutoria imperial (bem como o malogrado golpe de Estado de 1832). No quadriênio seguinte, o processo das reformas culminou com o Ato Adicional à Constituição13, que, porém, logo suscitou propostas de revisão ou interpretação, ocupando também o centro dos debates questões como a reforma judiciária, a resposta à Fala do Trono de 1837, a repressão às revoltas provinciais e projetos de Maio-ridade (de Pedro II ou de sua irmã Januaria). Mas não faltaram também propostas mais radicais de mudanças.

12 – Todavia, como observou com argúcia Ilmar Mattos, era este o ponto fraco dos pro-gressistas; em meio à situação caótica que parecia assolar o Império desde o início do pe-ríodo regencial, cada vez mais imputada ao excesso de liberdade, não conseguiam evitar que esta sua bandeira fosse atrelada ao princípio da ordem pregado por seus adversários, ao qual acabariam se vendo forçados a aderir para escapar da pecha de anarquistas, de inimigos da integridade nacional e mesmo de antimonarquistas. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990, capítulo II, pp. 141-143.13 – Sobre esse assunto, ver BASILE, Marcello. O “negócio mais melindroso”: reforma constitucional e composições políticas no Parlamento regencial (1831-1834). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e impressos: retratos do setecentos e do oitocen-tos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009.

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2. As aspirações republicanas

Legalmente, os adeptos do regime republicano de governo não po-diam assumir abertamente sua profissão de fé, por qualquer meio que fosse, pois a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830 e a lei de imprensa de 20 de setembro deste último ano proibiam expressamente a defesa da mudança de regime e até críticas diretas ao imperador.14 Ainda assim, desde 1830, a imprensa exaltada da Corte esmerou-se, em sua maioria, na defesa dessa forma de governo. Para tanto, empregou vários artifícios retóricos e discursivos a fim de driblar as interdições legais, denotando maneiras diversas de apoiar a República; recursos esses que não excluíam a propaganda aberta e tampouco livraram alguns redatores de jornal de retaliações e processos judiciais. De todo modo, produziram uma linguagem republicana que articulava, em um sistema de ideias, um vasto conjunto de mudanças políticas, sociais e econômicas radicais des-tinadas a depurar os resíduos “absolutistas” do Estado e os traços “aristo-cráticos” da sociedade brasileira. Eram as chamadas reformas republica-

14 – Além de estabelecer que o regime de governo do Brasil é o “Monárquico, Here-ditário, Constitucional, e Representativo” (artigo 3º), a Constituição também definia a pessoa do imperador como “inviolável, e sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma” (artigo 99). Constituição Política do Império do Brasil. In: CAMPANHOLE, Adriano, e CAMPANHOLE, Hilton Lobo (org.). Constituições do Brasil: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1981, pp. 630 e 640. Já os artigos 85 e 87 do Código Criminal arrolavam entre os crimes públicos “Tentar diretamente e por fatos destruir a Constituição Política do Império ou a forma do governo estabelecida” e “Tentar diretamente e por fatos destronizar o Imperador, privá-lo em todo ou em parte da sua autoridade constitucional, ou alterar a ordem legítima da sucessão”; o artigo 90, por sua vez, penalizava com até quatro anos de prisão e multa aqueles que, por meio de escritos impressos, litografados, gravados ou manuscritos distribuídos para mais de 15 pessoas ou por discursos proferidos em reuniões públicas, incentivassem a destruição da forma de governo estabelecida ou a privação total ou parcial da autoridade constitucional do imperador. TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Codigo criminal do Imperio do Brazil annotado. Ed. fac-similar da original de 1886. Brasília: Senado Federal, 2003, pp. 157-164. Além disso, a lei de imprensa, em seu artigo 2º, determinava que “Abusam do direito de comunicar os seus pensamentos” aqueles que, por meio impresso, fizessem “Ataques dirigidos a destruir o Sistema Monárquico Representativo” ou “Provocações dirigidas a excitar rebelião contra a Pessoa do Imperador e seus direitos ao Trono”; a pena prevista era de três a nove anos de prisão e de um a três contos de réis. Collecção das leis do Im-perio do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1830.

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nas, que poderiam tanto acompanhar como preparar antecipadamente o advento do novo regime.15

Apesar da diminuta representação dos exaltados na Assembleia Geral, durante a Regência a questão da mudança da forma de governo chegou a entrar algumas vezes em pauta graças, principalmente, às ini-ciativas do deputado exaltado baiano Antônio Ferreira França. O tema veio à baila pela primeira vez, na Câmara dos Deputados, na sessão de 16 de junho de 1831, por ocasião da tramitação do chamado projeto Miran-da Ribeiro, que versava sobre a realização de reformas constitucionais. Antonio Ferreira França propôs então “que o governo do Brasil fosse vitalício na pessoa do imperador D. Pedro II, e depois temporário na pes-soa de um presidente das províncias confederadas do Brasil”; ou seja, a república federalista (o deputado baiano, contudo, teve o cuidado de não usar o termo) só seria estabelecida após o término do Segundo Reinado. Justificou a medida, em primeiro lugar, com um argumento clássico da tradição republicana: a de que não se tinha o direito de legislar para as gerações futuras, apenas para a presente, sendo, portanto, um abuso fixar a forma de governo em caráter permanente. Em segundo lugar, ponderou que, sendo a monarquia muito dispendiosa, devia-se adotar um regime menos oneroso. Por fim, sustentava (em possível alusão velada aos Es-tados Unidos) que nenhuma outra forma de governo era mais apropriada para “tamanho império”, lembrando que o mundo já conhecia sua prós-pera experiência. A Câmara, todavia, decidiu, sem qualquer debate, que a proposta não seria objeto de deliberação.16

Ficava claro, assim, que, mesmo no auge da empolgação com a re-cém-operada Revolução de 7 de Abril e com as reformas constitucionais em curso, os parlamentares do Império continuavam achando temerário

15 – Sobre as manifestações republicanas dos exaltados da Corte, ver BASILE, Marcello. O bom exemplo de Washington: o republicanismo no Rio de Janeiro (c.1830 a 1835). In: Varia Historia, vol. 27, nº 45. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, janeiro-junho de 2011, sobretudo pp. 22-34.16 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados. Sessão de 1831. Coligidos por Antonio Pereira Pinto. Rio de Janeiro: Typographia de H. J. Pinto, 1879, t. 1º, p. 159.

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sequer discutir qualquer mudança no regime de governo; o federalismo era o máximo que ousavam propor neste sentido, e assim mesmo acabou não sendo efetivamente adotado.17 Nas poucas vezes em que se tratou do assunto foi para rejeitar veementemente a instauração da República no Brasil, como fez o deputado caramuru Martim Francisco Ribeiro de Andrada, na sessão de 12 de maio de 1832, classificando tal proposição de “heresia política”.18

Na legislatura seguinte, logo após a promulgação do Ato Adicional à Constituição, um projeto deveras inusitado foi apresentado na Câmara, no dia 18 de agosto de 1834, por um grupo de deputados encabeçado por Antônio Ferreira França e seus filhos Cornélio e Ernesto, do qual também faziam parte Antônio Fernandes da Silveira, João Barboza Cordeiro, João Ribeiro de Vasconcellos Pessoa, José Maria Ildefonso Jacome da Veiga Pessoa e Joaquim Teixeira Peixoto de Albuquerque. Propunha que “Bra-sil e Estados Unidos Norte-Americanos serão federados para mutuamente se defenderem contra pretensões externas, e se auxiliarem no desenvol-vimento da propriedade interna de ambas as nações”; cada país teria re-presentantes na Assembleia nacional do outro; os cidadãos de uma nação gozariam na outra dos mesmos direitos que os naturais desta; entre ambas haveria livre circulação de mercadorias, isentas de qualquer imposto; as forças militares nacionais estariam à disposição para defesa recíproca;

17 – Quando estavam em tramitação as reformas constitucionais que deram origem ao Ato Adicional, o mesmo Antônio Ferreira França apresentou, na sessão de 8 de junho de 1833, um projeto propondo que todas as autoridades de nomeação, tanto do governo geral como dos governos provinciais, passassem a ser “nomeadas sobre lista de muitos, eleitos popularmente”. Novamente, não logrou sucesso. Ibidem, 1833, t. 1º, p. 235.18 – O Andrada, entretanto, dizia reputar o regime republicano “o mais perfeito, e por isso demandando a maior soma de virtudes da parte do maior número dos membros de qual-quer associação”. Mas logo questionava: “estamos porém nós neste caso? Ou antes não temos diante dos olhos diariamente testemunhos não interrompidos da nossa imoralidade, e do desregramento habitual de nossos costumes? Que importa que eu conheça no seio desta câmara alguns republicanos honrados e virtuosos que eu amo, e que eu respeito? Por ventura o grande todo nacional se cifra neles?” O que Martim Francisco pretendia – fazendo associação muito comum na época – era patentear a antinomia entre termos que acreditava existir na noção de monarquia federal, dado que esta referir-se-ia, contraditória e impraticavelmente, a estados ao mesmo tempo compactos e autônomos. Ibidem, 1832, t. 1º, p. 160.

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as causas judiciais entre súditos dos dois países seriam resolvidas por árbitros ou jurados nomeados pelas partes; haveria auxílio mútuo para compartilhamento de instituições, ofícios e produções; e as duas nações iriam colaborar para a “conservação, e perfeição da forma nacional de governo, em todas as calamidades que se oponham a seu melhoramento físico ou moral”. Tratava-se, portanto, de uma curiosa confederação entre Brasil e Estados Unidos, nos moldes de uma espécie de reino unido, mal-grado os regimes políticos distintos dos dois países. Era este ponto o que, provavelmente, mais susto deve ter causado, pois suscitava o temor de que o projeto tivesse, no fundo, conotações republicanas. Não por acaso, a proposta sequer entrou em discussão.19

No ano seguinte, em 16 de maio, pouco antes do início da regência una moderada de Diogo Feijó, Antônio Ferreira França apresentou outro projeto, mais ousado do que os dois primeiros, propondo que “O governo do Brasil cessará de ser patrimônio de uma família” e que, assim, “A na-ção será governada por um chefe eleito de dois em dois anos no dia sete de Setembro à maioria dos votos dos cidadãos eleitores do Brasil”. Desta vez, era a instauração imediata do governo republicano o que se pretendia. O presidente da Câmara, o caramuru Araújo Lima, recusou-se, porém, a colocar a proposta em votação, alegando que a Constituição não autoriza-va tal reforma. Foi contestado pelo exaltado Henriques de Rezende, que afirmou que a Constituição não fazia exceção de nenhum de seus artigos quanto a reformas e que, portanto, o projeto não era anticonstitucional. Seu companheiro exaltado, Cornélio França, o apoiou, chegando a dizer que tanto isso era verdade que se poderia até transformar o Brasil em uma perfeita república ou mesmo em um governo absoluto. Seu irmão, Ernes-to França, também exaltado, tinha a mesma opinião, ao passo que o pai de ambos, Antônio Ferreira França, reiterou sua proposta, declarando que, se esta fosse admitida à discussão, iria apresentar uma ainda melhor. Mas logo ergueram a voz os opositores. Francisco Ramiro Coelho protestou que o projeto implicava a “subversão da ordem pública” e que o artigo constitucional que determinava a hereditariedade do chefe de Estado não

19 – Ibidem, 1834, t. 2º, p. 241.

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podia ser alterado. O moderado Carneiro Leão sensibilizou os colegas ao defender que, além de tudo, era “pouco generoso apresentar-se este projeto na época da menoridade do menino”. Outro moderado, Rodrigues Torres, emendou dizendo, entre vários apoiados, que o presidente sequer deveria ter consentido que se travasse semelhante discussão, cumprindo agora dá-la por encerrada; que se poderia alterar somente um ou outro artigo da Carta constitucional, mas não destruí-la nos seus fundamentos; e que “todos estão na firme resolução de manter ileso o governo monár-quico representativo, tal e qual se acha na constituição”. Araújo Lima pediu então que se levantassem aqueles que concordavam com sua recusa em pôr o projeto em discussão; ergueram-se 44 deputados, ao passo que 33 permaneceram sentados (número este até bastante considerável para o tema em questão, mas que não indicava, necessariamente, os que eram favoráveis à proposta, e sim apenas ao debate, ou, quando muito, os que, a princípio, não viam inconstitucionalidade na matéria).20

Assim, pararam por aí as pretensões no Parlamento de se instaurar o governo republicano. A rearticulação das forças políticas, a partir de 1835, ensejada pela emergência do Regresso, suscitou um comprometi-mento com o revigoramento do elemento monárquico,21 nutrido pela ideia de que a experiência regencial representara um ensaio de republicanismo, que deixou como grande lição, às avessas, o fortalecimento da monar-quia. Conforme observou, às vésperas do Golpe da Maioridade, o antigo caramuru e então regressista e presidente do Senado, marquês de Parana-guá, na sessão de 13 de maio de 1840,

O governo das regências apenas tem feito à nação um único benefício, todavia o mais relevante; que é o de firmar nos corações brasileiros o amor da monarquia; desenganando por meio de uma dolorosa expe-riência aos crédulos dessa decantada bondade dos governos de pouco custo, ou baratos; dos governos eletivos e temporários; dos governos democráticos; dos quais por certo mui pouco difere, se não é a mesma

20 – Ibidem, 1835, t. 1º, pp. 78 (primeira e segunda citações) e 79. Embora a votação te-nha sido nominal, conforme sugerido pelo deputado exaltado Barboza Cordeiro, os Anais não discriminam os nomes dos votantes.21 – Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Op. cit., capítulo II, seção 2.

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coisa, o governo regencial pela forma acanhada e quase republicana que lhe demos.22

3. Igreja e religião

Tal como a forma de governo, religião representava outro dogma po-lítico, uma vez que a Igreja Católica Apostólica Romana era considerada pela Constituição e pelo Código Criminal como religião oficial do Brasil, atrelada ao Estado imperial.23 Mais uma vez, no entanto, alguns periódi-cos exaltados da Corte, imbuídos de forte anticlericalismo e de rejeição ao ultramontanismo, chegaram a propor, não apenas a plena liberdade de culto, como também a separação entre Igreja e Estado e mesmo de cria-ção de uma igreja (católica) brasileira separada da romana, não submetida aos ditames da Santa Sé e do papa.24

Como demonstra Françoise Souza, das 100 cadeiras disponíveis na segunda legislatura da Câmara, 22 (22%) foram ocupadas por clérigos, sendo que 24 chegaram a tomar posse; das 104 cadeiras existentes na terceira legislatura, 25 (24,04%, o maior montante percentual e numérico de todo o Império) ficaram com sacerdotes, sendo que 26 tomaram pos-se; e, das mesmas 104 cadeiras que compunham a quarta legislatura, 17

22 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Senadores. Sessão de 1840. Rio de Janeiro: Typographia Mercantil, 1874, t. 2º, p. 285.23 – Já em seu artigo 5, a Constituição determinava que “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permiti-das com seu culto doméstico”; e completava, no § V do artigo 179, que “Ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública”. Constituição Política do Império do Brasil, op. cit., pp. 630 e 649. Por sua vez, o Código Criminal tratava, nos artigos 276, 277 e 278, das ofensas à religião, classi-ficadas como crimes policiais, proibindo “Celebrar em casa ou edifício que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião que não seja a do Estado”; e criminalizando aqueles que, por meio de escritos impressos, litografados ou gravados distribuídos para mais de 15 pessoas ou por discursos proferidos em reuniões públicas, abusassem ou zombassem de qualquer culto estabelecido no Impé-rio (pena de até seis meses de prisão e pecuniária); ou que, pelos mesmos meios e circuns-tâncias, propagassem “doutrinas que diretamente destruam as verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma” (até um ano de prisão e multa). TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Codigo criminal..., op. cit., pp. 499 e 500.24 – Cf. BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. O Império em construção..., op. cit., pp. 216-218.

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(16,35%) foram também ocupadas por membros do clero (com igual nú-mero dos que tomaram posse); já no Senado, 13 clérigos tiveram assento ao longo de toda a Regência, sendo que seis foram nomeados neste perío-do.25 A mesma autora identifica 29 padres ligados ao grupo dos modera-dos, 11 à facção caramuru e cinco aos exaltados,26 o que se coaduna com a divisão geral de forças políticas observadas na Câmara dos Deputados durante as regências trinas.

A grande presença do clero no Parlamento regencial muito contri-buiu para obstar as raras tentativas de reforma religiosa verificadas du-rante o período. Como a proposta de desvinculação entre a Igreja Católica e o Estado imperial, feita, mais uma vez, por Antônio Ferreira França, a 3 de junho de 1831, sugerindo que, doravante, “a religião seja negócio de consciência, e não estatuto de lei do estado”, que não foi aceita pela comissão da Câmara encarregada de propor as reformas constitucionais apresentadas no projeto Miranda Ribeiro;27 ou a que o mesmo deputado sustentou em 8 de junho de 1833, conferindo plenos direitos políticos aos adeptos de qualquer religião, que não passou da segunda leitura.28

Dois anos depois, em 6 de junho de 1835, o deputado moderado Estêvão Raphael de Carvalho, aliado do já então regente Diogo Feijó (que vivia às turras com a Santa Sé29), foi mais além e, resgatando ideia lançada anos antes pela imprensa exaltada da Corte, e que ia ao encontro da aversão do padre regente ao ultramontanismo, propôs a criação de

25 – SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do Estado nacional brasileiro (1823-1841). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGH – UERJ, 2010, pp. 16-18 e 261-262. Além da Regência e afora o Primeiro Reinado (quando 23 cadeiras da primeira legislatura – 22,55% do total de 102 – foram ocupadas por padres), em todos os outros momentos da história do Império o número de cadeiras parlamentares ocupadas pelo clero ficou sempre abaixo dos 10%.26 – Idem. Ibidem, pp. 262-271.27 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1831, t. 1º, p. 123.28 – Ibidem, 1833, t. 1º, p. 238; t. 2º, p. 94.29 – A Regência Feijó (1835-1837) foi marcada por diversos atritos com a Igreja, como sua recusa em ser nomeado bispo de Mariana, a contratação de pastores luteranos para ca-tequese indígena, acusações de desrespeito ao celibato clerical e de pretender federalizar a Igreja, e o veto ao aumento da côngrua.

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uma igreja brasileira separada da romana, cabendo ao governo imperial o supremo sacerdócio da nova entidade. Ao contrário das demais propostas do gênero, esta chegou a suscitar algum debate. O presidente da Câmara, Araújo Lima, imediatamente manifestou sua “oposição e indignação ao ver que se está tratando dos objetos os mais sagrados, quais a religião e a constituição, por semelhante modo”; protestou que um tal projeto “nunca devia aparecer” e que se devia ter mais respeito à religião, “se não quer que recaia sobre esta câmara o labéu de ateísmo”. De nada adiantou então a alegação do proponente afirmando que “mais sagrados são os direitos da nação, que os direitos do pontífice”. Embora se dissesse a favor do apoiamento ao projeto para discussão, o deputado progressista Francisco Álvares Machado, representante de São Paulo, declarou que assim o fazia somente para que toda a nação soubesse que a Câmara “está resolvida a manter a religião católica apostólica romana”. A mesma opinião tinha o baiano Paula Araújo, que defendia o direito de se propor qualquer refor-ma na Constituição, mas não abria mão de que “o governo continue a ser monárquico constitucional, e que a religião do estado seja a católica ro-mana”. Já o mineiro Carneiro Leão (outrora moderado e agora arauto do Regresso) entendia que o que se propunha era uma reforma da Constitui-ção, e não da religião, e que “não há portanto direito algum para se alterar a religião”. Por outro lado, os progressistas Francisco de Souza Martins e Francisco Gonçalves Martins (representantes, respectivamente, do Piauí e da Bahia) eram de opinião que não se tratava de reforma constitucional, e sim de uma proposta de lei ordinária, afirmando o primeiro que os bra-sileiros tinham direito de, quando quiserem, se separar da Igreja romana. O líder moderado Evaristo da Veiga concordava que era caso de lei ordi-nária, mas não aceitava que se pudesse propor qualquer reforma na Cons-tituição e esperava que “semelhantes proposições, que tendem a produzir uma péssima sensação nos espíritos, nunca apareçam nesta casa”. Por sua vez, os pernambucanos Antônio Joaquim de Mello e Henriques de Rezende nem discussão queriam, julgando este último – padre, posto que exaltado – ser conveniente que “não se fale mais nesta matéria”. Tendo

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então a Câmara decidido que o projeto envolvia reforma constitucional, somente seu autor e um outro deputado (não identificado) o apoiaram.30

Mas Raphael de Carvalho não desistiu e, 13 meses depois, na sessão de 9 de julho de 1836, apresentou outro projeto. Este continha as mesmas duas propostas do anterior, acrescidas agora da liberdade de cultos, e es-clarecendo ainda que se tratava de reforma do já mencionado quinto arti-go da Constituição. Como da vez passada, no entanto, não passou da pri-meira leitura e, pior ainda, sequer chegou a suscitar qualquer polêmica.31

4. O problema da escravidão

Um outro assunto, mais temerário e candente, por força das circuns-tâncias encontrou maior espaço de discussão no Parlamento regencial, embora nem por isso se possa dizer que tenha tido melhor encaminha-mento ou acolhida. O que se debateu de fato sobre o tema da escravidão ficou então fundamentalmente restrito à questão do tráfico negreiro, cuja extinção, prevista para 1830, já era estipulada pelo tratado anglo-brasi-leiro de 1826, ratificado no ano seguinte, do que resultou a sua proibição legal pela lei de 7 de novembro de 1831.

Jaime Rodrigues afirma que o tratado foi alvo de acirrado debate entre os deputados da primeira legislatura, que, como Cunha Mattos e Hollanda Cavalcanti, criticavam a ingerência inglesa sobre a soberania nacional. O que estava em questão, portanto, não era propriamente o combate à escravidão, vista por muitos como mal necessário para o pro-gresso do país. Ainda em 1826, Clemente Pereira elaborou projeto que estipulava a extinção do tráfico em 1840, o que, mais do que iniciativa emancipacionista, era uma tentativa de prolongar aquele comércio. A Co-missão de Legislatura da Câmara, porém, reduziu o prazo para seis anos e Araújo Lima, no ano seguinte, apresentou emenda propondo o fim do tráfico em dezembro de 1829.32

30 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1835, t. 1º, pp. 154-155.31 – Ibidem, 1836, t. 2º, p. 55.32 – RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do trá-

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O tratado, todavia, foi ratificado, restando então, diante do aumento das perseguições aos navios negreiros pelos cruzeiros britânicos, e com a ascenção, após a Abdicação, de um Gabinete moderado integrado por an-tigos opositores ao tráfico, criar uma lei que referendasse, por um ato de soberania nacional, o que fora acordado por imposição externa no tratado de 1826. A lei de 7 de novembro de 1831, de autoria do senador marquês de Barbacena, foi, não por acaso, antecedida por diversas denúncias, na Câmara, acerca da persistência do contrabando negreiro. A crítica partiu de deputados ligados às diferentes facções políticas, como os moderados Odorico Mendes e Carneiro Leão; Francisco Xavier Pereira de Brito (de tendência não identificada); o caramuru Raimundo da Cunha Mattos; e os exaltados Antonio de Castro Alvares e José Lino Coutinho. Na sessão de 13 de maio de 1831, o primeiro, com apoio dos demais, apresentou re-querimento, recomendando vigilância ao governo para evitar tais práticas clandestinas, qualificadas de abusos e de ataques às leis da humanidade e à decência nacional. Em 16 de junho, foi a vez do moderado Antônio João de Lessa manifestar igual posição, requerendo que se priorizasse a discussão do projeto, enviado pelo Senado, que resultou na lei de 7 de novembro. O mesmo solicitaram os caramurus Francisco Montezuma e Antonio Rebouças, em 5 de agosto. Nas sessões de 22 e 23 deste mês e de 14 e 18 outubro, o projeto passou na Câmara (sem que os Anais regis-trassem as discussões), com emendas de Montezuma e dos moderados Custódio Dias e Vieira Souto.33

fico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, capítulo 3, pp. 101-107. Ver também a res-peito BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal, 2002, capítulos II e III; e PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 64-79.33 – Alegando que muitos contrabandistas traziam escravos africanos para o Brasil decla-rando-os como libertos para burlar a proibição ao tráfico, e que dos Estados Unidos, da África e de várias outras partes eram trazidos os “refugos dos libertos, que nos vêm servir de maior peso”, Montezuma propôs, e conseguiu aprovar, três emendas que impediam qualquer homem liberto não brasileiro de desembarcar no Brasil; estabeleciam multa de 100$000 réis por cabeça para mestres, pilotos e contramestre (considerados como impor-tadores negreiros) que trouxessem tais indivíduos; e destinavam metade daquela quantia para o denunciante do crime e a outra metade para as casas de expostos. Já Custódio Dias era autor da emenda que autorizava o governo a contratar com as autoridades africanas para oferecer asilo aos escravizados reexportados. Vieira Souto, por sua vez, concebeu

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Após a aprovação da lei antitráfico, surgiram dois tipos de contro-vérsias: as relativas à atuação inglesa na Comissão Mista anglo-brasileira quanto ao julgamento dos súditos do Império implicados no contrabando negreiro e às pressões para que a lei fosse cumprida de fato; e o artigo que previa um acordo diplomático entre o governo imperial e as nações que possuíam colônias na África, visando reexportar para ali os africa-nos introduzidos ilegalmente no Brasil. Em 1834, uma proposta do go-verno, convertida em projeto de lei pelos deputados moderados Diogo Duarte Silva, Manoel do Nascimento Castro e Silva e Bernardo Pereira de Vasconcellos, o autorizava a realizar tal acordo e a fazer as despesas necessárias para sustento dos africanos apreendidos. Quando o projeto foi levado à discussão na Câmara, em 24 de setembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano Coutinho, apresentou nota do governo inglês, que exigia, diante da persistência do tráfico, a ampliação do trata-do de 1826. O caramuru Luiz Cavalcanti protestou contra os julgamentos feitos pela Comissão Mista, como se a nação brasileira fosse incapaz de se governar, e indagou se as despesas com os africanos não deveriam ser custeadas pelos traficantes. O ministro esclareceu que tais gastos vinham sendo feitos pela fazenda pública devido à alegação dos contrabandistas capturados de que não podiam pagá-los, e culpou a Justiça e até a pró-pria população pela impunidade, que, a despeito dos esforços do governo, fazia-se “escandalosamente, não sabendo se atribuiria esta bonomia dos juízes ao prejuízo de que a mor parte da nossa população estava imbuída de que a extinção da escravatura no Brasil era um mal”; como remédio, defendia que se acatasse a proposta britânica. Esta, todavia, voltou a ser combatida por Luiz Cavalcanti e também por seu irmão Hollanda Ca-valcanti, por Maciel Monteiro, Vasconcellos, Carneiro Leão e Rodrigues Torres (os dois últimos, porém, manifestaram-se a favor do projeto), sen-

artigo substitutivo, igualmente aprovado, que recompensava com 30$000 réis por cabeça toda pessoa que apreendesse africanos desembarcados por contrabando ou que desse in-formações ou fornecesse meios às autoridades que ocasionassem capturas dessa natureza. Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1831, t. 1º, pp. 29-30 e 159; t. 2º, pp. 30 (citação), 54, 55, 234-235 e 237-238.

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do apoiada apenas pelo moderado Saturnino de Souza e Oliveira, irmão do ministro.34

O meio a princípio encontrado para contornar as pressões inglesas e salvaguardar a honra nacional foi, mais uma vez, a elaboração de uma lei, tendente a arrochar a repressão ao tráfico. Vinda do Senado, onde fora aprovada em 21 de agosto de 1834, entrou em discussão na Câmara em 6 de maio do ano seguinte. O projeto previa a apreensão de embarcações de qualquer nação encontradas na costa brasileira transportando, desem-barcando ou tentando desembarcar africanos, ou, ainda quando estes não fossem descobertos, que apresentassem evidências de que conduziam es-cravos; seriam os importadores julgados no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco ou no Maranhão por um juiz de Direito e os navios arremata-dos em hasta pública, sendo o produto da venda aplicado na reexportação dos africanos e o restante recolhido à fazenda nacional.35

O moderado Rodrigues Torres apresentou logo emenda excetuando as embarcações britânicas, cujos tripulantes, em razão do tratado de 1826, deveriam ser julgados em tribunais especiais. Outra emenda foi proposta por Honorato de Barros Paim, acrescentando que as apreensões poderiam ser feitas por qualquer autoridade ou pessoa do povo, sendo os acusados julgados pelo juiz de Direito da comarca, com recurso ao Tribunal da Relação local. Já Jerônimo Figueira de Mello preferia que a formação de culpa e a pronúncia fossem feitas por um juiz municipal e o julgamento coubesse ao júri, ao passo que Saturnino de Oliveira propôs que os pos-suidores de africanos novos (importados depois da proibição do tráfico) também fossem processados. O projeto foi ainda apoiado por Gonçalves Martins, mas combatido por Carneiro Leão, sob a alegação vaga de que, embora fosse a favor do fim de tal comércio, desejava que fossem aplica-dos “remédios adequados e não ilusórios”. Contudo, a crítica mais con-tundente partiu do exaltado Cornélio França, que apresentou, como única forma de acabar com o contrabando negreiro, uma polêmica emenda, que estipulava prazo de 20 anos para extinguir, não o tráfico, mas a própria

34 – Ibidem, 1834, t. 2º, pp. 287-290 (citação, p. 288).35 – Ibidem, 1835, t. 1º, p. 20.

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escravidão. Adiante veremos que várias outras iniciativas como essa fo-ram cogitadas. De todo modo, apenas a proposta de Rodrigues Torres foi aprovada, juntamente com os dois primeiros artigos. Antes, porém, que a discussão fosse concluída, o projeto e as emendas foram enviados à Co-missão de Justiça Criminal da Câmara, por sugestão de Antônio Joaquim de Mello. Só retornou ao plenário em 20 de julho, quando entraram em pauta as emendas da comissão – integrada por Gonçalves Martins, Fran-cisco de Paula Cerqueira Leite e José Antônio Ibiapina –, acrescentando, entre outras coisas, que os pronunciados seriam julgados por uma junta composta pelos juízes de Direito e pelo juiz municipal da cidade, e que metade do produto do leilão seria destinada ao denunciante ou apreensor e a outra às despesas de reexportação dos africanos ou aos cofres públi-cos. Quatro dias depois, já empunhando uma das bandeiras que marcaria o Regresso – representando os intereses escravistas –, Vasconcellos apre-sentou pela primeira vez proposta que simplesmente abolia a lei de 7 de novembro. Contudo, todas as emendas foram rejeitadas.36

Rapidamente, no entanto, na esteira do crescimento do movimento conservador, a ideia de revogar a lei antitráfico ganhou força no Parla-mento. Em 25 de junho do ano seguinte, o mesmo Vasconcellos apresen-tou igual projeto, requerendo que fosse à Comissão de Constituição da Câmara; alegou então que os artigos daquela lei “só servem para opressão dos cidadãos, e interesse de alguns especuladores sem consciência”, por-quanto franqueavam a qualquer indivíduo apreender africanos sem man-dato especial de autoridade, o que “tem resultado graves inconvenientes, e muitos vexames a imensas pessoas”. Ernesto França, Henriques de Re-zende e José Alcibíades Carneiro tentaram obstruir o projeto, alegando que primeiro deveria ser julgado objeto de deliberação. Mas, seguindo a orientação do presidente da Casa, Araújo Lima, com base no Regimento, e atendendo à recomendação de outro regressista, Araújo Vianna, a pro-posta foi remetida à Comissão de Justiça Civil. Do outro lado do campo político também havia apoio à revogação, como o dado por Francisco Álvares Machado, que, em 22 de agosto (antes de ser dado o parecer),

36 – Ibidem, 1835, t. 1º, pp. 21-26; t. 2º, pp. 91-92, 105 e 108-109 (citação, p. 21).

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enviou requerimento dizendo que a “lei de 7 de novembro de 1831 já não existe de fato, e atualmente sua execução importaria uma perturbação geral na política interna do país; o desbaratamento de muitas fortunas; a decadência da nossa lavoura; e o atraso da renda pública”; pedia então que a comissão desse logo seu parecer, não deixando, porém, de criticar parte da proposta de Vasconcellos, por não indicar providências a respeito do grande número de africanos novos contrabandeados. Em se tratando de medida tão polêmica, que não contava com a simpatia do governo, não é de estranhar que a resposta tenha custado a sair. Quase um ano depois, em 17 de junho de 1837, Vasconcellos cobrou uma posição da comissão sobre o projeto, declarando que o tinha como “o seu mimoso”. A reclama-ção surtiu efeito, pois, 13 dias depois, Saturnino Oliveira, Gabriel Men-des dos Santos e Antonio Pinto Chichorro da Gama anunciaram o parecer, recomendando que o projeto seguisse os termos do Regimento como lei ordinária.37 Contudo, o assunto não mais voltou à pauta nessa legislatura; posteriormente, até que a lei Eusébio de Queiroz encerrasse a questão, em 1850, outras propostas semelhantes tiveram igual destino, arrastando-se sem solução pelos trâmites parlamentares.38

Não faltaram manifestações de apoio a tal medida. Ao longo de 1836 e 1837, foram enviadas à Câmara diversas representações pedindo a re-vogação da lei de 7 de novembro, como as das câmaras municipais de Valença, Barbacena, Barra Mansa, Vassouras e Paraíba do Sul (a primeira e a última chegaram a enviar duas petições cada).39 Ao mesmo tempo, após retração inicial na primeira metade da década, o tráfico voltou a se intensificar, em escala crescente, justamente a partir da emergência do Regresso, mantendo tal tendência até 1850.40

37 – Ibidem, 1836, t. 1º, pp. 224-225, e t. 2º, p. 200 (citações, t. 1º, p. 224; e t. 2º, p. 200); 1837, t. 1º, pp. 272 (citação) e 362.38 – Cf. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., pp. 110-114.39 – Cf. Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1836, t. 2º, pp. 61, 149, 177 e 387; 1837, t. 1º, p. 25, e t. 2º, p. 89.40 – Cf. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 215, que reproduz as estimativas de David Eltis e Leslie Bethell.

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Por que, então, não foram adiante essas propostas, mesmo após a ascensão regressista no governo regencial e no Parlamento? A resposta é bem conhecida: esbarraram todas na pressão inglesa, cada vez mais acir-rada, em favor da eliminação do tráfico. O descontentamento britânico com o descaso do governo brasileiro a respeito da permanência do tráfico ilícito patenteava-se em notas diplomáticas que cobravam da Regência medidas coercitivas mais enérgicas e efetivas. Na sessão de 17 de setem-bro de 1835, foi lida na Câmara uma representação dirigida pela Câmara dos Comuns inglesa ao seu monarca, pedindo uma revisão dos tratados firmados com as nações envolvidas no comércio negreiro, de modo a in-cluir cláusulas como o direito de busca por toda a costa ocidental e orien-tal africana, a prerrogativa de apreensão das embarcações equipadas para o tráfico mesmo quando não contenham escravos a bordo e a declaração desse “iníquo e detestável comércio” como pirataria. A petição foi re-passada ao governo brasileiro pelo ministro plenipotenciário inglês H. S. Fox, juntamente com a resposta dada pelo rei, o qual afirmava também ressentir-se desse “nefando tráfico” e assegurava já estar em negociações com tais nações a fim de atender àquelas reivindicações. Em seu ofício, Fox reiterava que o governo inglês “teria a maior satisfação em receber uma nova prova, dada na assinatura dos artigos acima mencionados, de que a regência do Brasil, em nome de S. M. o Imperador, coopera com o governo e povo britânico”.41 Contudo, um ano depois, o novo ministro plenipotenciário inglês Hamilton J. C. Hamilton, em nota lida na Câmara em 2 de setembro, voltava a protestar contra a “negligência das auto-ridades” brasileiras na repressão ao contrabando negreiro. Denunciava o despacho dado pela Alfândega do Rio de Janeiro a uma embarcação portuguesa notoriamente empregada no tráfico, assinalando que ocorrên-cias semelhantes eram comumente observadas, o que servia de “incenti-vo para animar tão criminosas especulações” e tornava “letra morta” os tratados e convenções internacionais firmados com o intuito de cercear

41 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1835, t. 2º, pp. 297-299 (citações, p. 298).

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e abolir tal comércio.42 Todavia, assim como a primeira mensagem, esta também foi sequer debatida na Câmara.

A despeito das pressões britânicas, tudo o que dizia respeito à es-cravidão continuava a ser assunto delicado e incômodo. Não faltaram, entretanto, tentativas emancipacionistas e de melhorar a condição de es-cravos e libertos.43 Quase todas, porém, foram iniciativas isoladas, que partiram, particularmente, de um mesmo deputado: o exaltado Antônio Ferreira França.

Começando pelo problema dos libertos, tinham estes direitos cons-titucionais limitados, como o impedimento de eleger e de serem eleitos deputados e senadores (podiam apenas ser votantes, isto é, aqueles que participavam do primeiro nível do pleito, escolhendo os eleitores) e de ascenderem ao oficialato da Guarda Nacional. Na Corte, a imprensa exal-tada e caramuru reiteradamente combatia tais discriminações e reivindi-cava a plenitude de direitos para os forros.44 No Parlamento regencial, po-rém, o assunto foi raras vezes debatido. No que se refere à cidadania po-lítica dos libertos, em 12 de julho de 1831, Ferreira França, Alves Branco e Muniz Barreto – três baianos representantes de sua província, sendo os dois últimos moderados – apresentaram na Câmara proposta para que “a qualidade de liberto não excluísse o cidadão de exercer nenhum direito ou obrigação civil ou política”; sequer foi admitida à discussão.45 Dois anos depois, em 8 de junho de 1833, o deputado exaltado reapresentou a

42 – Ibidem, 1836, t. 2º, p. 244.43 – De acordo com Tâmis Parron, desde a lei de 7 de novembro de 1831 até 1836 foram apresentados 12 projetos parlamentares contrários ao tráfico negreiro e à própria escravi-dão. Destes, 11 foram propostos entre 1834 e 1836, sendo nove posteriores ao levante es-cravo dos malês, na Bahia, em janeiro de 1835 (o que atesta o quanto as lutas dos cativos nesse período, da mesmo forma como se beneficiaram das disputas entre as facções políti-cas, também interferiram na política imperial, abrindo brechas para ações antiescravistas no Parlamento e na imprensa). Ainda segundo Parron, até a ascensão do Regresso, “estava em jogo uma politização de questões escravistas, mas não uma política da escravidão”. PARRON, Tâmis. Op. cit., pp. 83 (citação) e 97.44 – Ver a respeito, BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. O Império em constru-ção..., op. cit., pp. 171-175 e 361-362.45 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1831, t. 1º, pp. 226 (citação) e 286.

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proposta, agora assim formulada: “A qualidade de liberto não inabilita o cidadão para o gozo de algum direito político”; teve igual destino.46

Já a questão da eleição de libertos para oficial da Guarda Nacional entrou em pauta nas sessões de 23 e 25 de agosto de 1832, quando se discutiram emendas à lei que, um ano antes, criou a milícia cívica. Uma delas, do moderado mineiro Baptista Caetano, propunha que somente ci-dadãos qualificados como eleitores poderiam ser votados para oficiais su-periores e inferiores da Guarda Nacional. Embora apoiada, a emenda foi retirada por seu autor. Mas outro moderado mineiro, Carneiro Leão, logo a substituiu por uma ainda mais excludente, que, se não aludia direta-mente aos libertos, previa, para aqueles postos, a exigência de uma renda mínima de 400$000 réis (ou seja, o dobro da requerida para os eleitores e equivalente à dos deputados). Também representante de Minas Gerais, posto que fluminense, Evaristo da Veiga propôs que a renda dos oficiais da Guarda deveria corresponder ao dobro da exigida para os soldados, isto é, 400$000 réis nas grandes cidades do Império e 200$000 réis nas demais. Ainda tendo como base o critério censitário como qualificador da cidadania, o baiano Antonio Rebouças apresentou emenda que reduzia o primeiro valor para 300$000 réis e mantinha o segundo. No último dia de debates, outro caramuru baiano, Miguel Calmon, retomou a emenda que limitava o oficialato da Guarda aos eleitores. A proposta provocou reação imediata de Rebouças, que a qualificou de “injusta, incendiária e impolítica, além de inconstitucional”, ao estabelecer, no tocante aos li-bertos, uma “exceção odiosa, contraditória e impraticável”. Argumentou então que a Constituição obrigava todos os cidadãos a pegar em armas em defesa da pátria e só vedava aos libertos as prerrogativas de serem eleitores, deputados, senadores e conselheiros de Estado e de províncias, franqueando todos os demais cargos públicos a quem quer que tivesse talentos e virtudes; logo, seria absurdo impedir os libertos de serem ofi-ciais da Guarda Nacional quando aqueles imbuídos de “melhor índole e comportamento cívico” poderiam ser escolhidos até mesmo para regente do Império ou ainda para ministros de Estado e do Supremo Tribunal de

46 – Ibidem, 1833, t. 1º, p. 238 (citação), e t. 2º, p. 94.

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Justiça, para general do Exército ou para arcebispo. Rebouças recordou a colaboração decisiva desses “homens chamados de baixa extração” em favor da “independência e liberdade”, como na Insurreição Pernambuca-na de 1645-1654 contra os holandeses, na Confederação do Equador, na guerra de emancipação na Bahia, nos movimentos de libertação colonial na América hispânica, sem esquecer do “célebre Toussaint Louverture” na revolução escrava de São Domingos. Afirmou a este respeito que, se de fato tivessem concedido aos libertos das colônias francesas plenos di-reitos de cidadania, inclusive para ocupação irrestrita dos cargos públi-cos, não teriam tido lugar aquelas “cenas de horror e de atrocidade que fa-zem arrepiar as carnes”. Manipulando, assim, os temores do haitianismo, Rebouças alertava para os riscos de se negarem direitos de cidadania aos libertos, sugerindo que a participação destes na milícia cívica atenuaria os perigos de desordem, ao comprometê-los com a segurança da pátria. Como afirma Keila Grinberg, o discurso de Rebouças em defesa dos di-reitos civis dos libertos era um “libelo pela ordem, pela segurança pública e pela propriedade”, mas também um recurso retórico de convencimento, que jogava ao mesmo tempo com o constitucionalismo e com o haitianis-mo.47 Contudo, de nada valeram seus argumentos: a emenda de Calmon foi aprovada, juntamente com a proposta de Evaristo.48

Quanto aos escravos, ao longo da Regência diversas propostas eman-cipatórias foram apresentadas na Câmara por Antônio Ferreira França. A maioria propunha uma espécie de lei do ventre livre, a exemplo do

47 – GRINBERG, Keila. O Fiador dos Brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, ca-pítulo III, em especial pp. 104 (citação) e 114. A mesma visão encontra-se em MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, pp. 39-48. Ver também a respeito CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Nacional / Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 142.48 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1832, t. 2º, pp. 198, 200 e 201 (as citações estão nas pp. 200 e, as três últimas, 201) . Afora as emen-das propostas, os Anais só registram o discurso de Rebouças. Este, todavia, critica em sua fala Henriques de Rezende, acusando-o de apoiar a emenda de Calmon, contrariamente à posição que tivera na Constituinte de 1823.

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que pleiteavam algumas publicações exaltadas.49 Assim, em 8 de junho de 1833 entrou em pauta um projeto daquele deputado, datado de 24 de maio, que, com base no § 20 do artigo 179 da Constituição (que vetava a transmissão, para os parentes do condenado, de pena, infâmia e confis-cação de bens a ele aplicadas), argumentava que “O ventre não transmite a escravidão, assim como não transmite a infâmia, a quaisquer penas”; por conseguinte, “todos os nascidos no Brasil de qualquer ventre serão livres”.50 Projetos semelhantes foram apresentados pelo mesmo deputado em 16 de maio de 1835 (juntamente com outro, já citado, que estabelecia o governo republicano), em 6 de junho do mesmo ano (este restrito aos pardos, que ficariam sob a tutela de quem se dispusesse a criá-los até que fossem emancipados), em 7 de maio de 1836 (relativo a todos os escravos, mas com a mesma cláusula de tutela até os 25 anos de idade) e em 15 de julho de 1837 (também de cunho geral, só que sem tutela, e acompanhando proposta de proibição do comércio entre Brasil e África). A despeito da insistência, todos sequer entraram em discussão, não sendo julgados objeto de deliberação.51 Igual destino teve o projeto similar de outro deputado exaltado, o do pernambucano João Barboza Cordeiro, le-vado à tribuna em 27 de junho de 1835, prevendo que os assim libertados serviriam como criados de seus senhores até os 30 anos para os homens, e 25 para as mulheres.52 O mesmo aconteceu com outra proposta de Antô-nio França, apresentada em 9 de maio de 1835, que não se restringia mais aos futuros escravos, mas pretendia libertar todos os pardos nascidos e residentes no Brasil.53

Não faltaram também projetos destinados a acabar com a escravidão em um tempo próximo. Em 7 de maio de 1835, quando se discutiam na Câmara medidas mais duras de repressão ao tráfico negreiro, o exaltado Cornélio França apresentou proposta de extinção da escravidão dentro de

49 – Cf. BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. O Império em construção..., op. cit., pp. 175-180.50 – Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, op. cit., 1833, t. 1º, p. 234.51 – Ibidem, 1835, t. 1º, pp. 78 e 154; 1836, t. 1º, p. 24; e 1837, t. 2º, p. 112.52 – Ibidem, 1835, t. 1º, p. 216.53 – Ibidem, 1835, t. 1º, p. 58.

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um prazo de 20 anos; alegava então que “não queria que isto se fizesse de repente, porque era a coisa mais impolítica possível, mas que se marcasse um prazo para ela se acabar”.54 Um mês depois, em 6 de junho, seu pai Antônio volta à questão, sugerindo que “se fixe um prazo dentro do qual deve a escravidão cessar no Brasil”.55 Em 7 de maio do ano seguinte, o mesmo deputado propôs o prazo de 25 anos para o término da escravidão, assim como a imediata criação de um imposto de 3$000 réis por cativo, que substituiria as taxações existentes sobre a produção e a exportação dos produtos nacionais.56 Todos esses projetos foram, é claro, sumaria-mente rejeitados, sem qualquer discussão, patenteando a disposição dos parlamentares da Regência de não abrir espaço a propostas emancipacio-nistas.

Considerações finais

Marcada pelo despontar da esfera pública, a década de 1830 assina-lou o momento de maior amplitude e diversificação do debate e da ação políticos ao longo do Império. Desenvolveu-se, então, uma linguagem política radical, que articulava a proposição de vasto conjunto de trans-formações políticas, sociais e econômicas, destinadas a expurgar resíduos “absolutistas” do Estado e traços “aristocráticos” da formação social brasileira, que teriam sido herdados da colonização lusitana e reforça-dos após a Independência.57 Tais mudanças tenderiam a fortalecer os ele-mentos democráticos próprios do sistema americano, em detrimento dos elementos monárquicos típicos do sistema europeu. Embora a imprensa – em estreita consonância com as ruas e com as associações – tenha sido o lugar privilegiado de desenvolvimento dessas ideias, o Parlamento re-gencial (em especial, a Câmara dos Deputados) também foi palco de pro-postas radicais. Temas impolíticos (segundo expressão da época) como república, religião e escravidão tocavam em assuntos considerados quase

54 – Ibidem, 1835, t. 1º, pp. 22-23.55 – Ibidem, 1835, t. 1º, pp. 155 e (citação) 156.56 – Ibidem, 1836, t. 1º, p. 24.57 – Ver a respeito BASILE, Marcello. O radicalismo exaltado: definições e controvér-sias. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das, e FERREIRA, Tânia Bessone da C. (org.). Dimensões políticas do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.

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tabus e, como tais, foram sistematicamente vetados, muitas vezes sequer sendo aceitos à discussão, com base em imputações jurídicas, dogmáticas ou mesmo pragmáticas. Contudo, ainda assim fizeram parte da agenda política regencial e deixaram marcas para gerações vindouras.

Após serem eclipsados pelo Regresso, sendo assim mantidos no de-correr da hegemonia saquarema, parte da memória e dos princípios radi-cais foram retomados, com novas e velhas roupagens, a partir da década de 1860, em meio ao Renascer liberal e à crise que se seguiu, na esteira da chamada geração de 1870, incorrendo em novo racha na elite política, que se estendeu até o final do Império.58 Foi, entretanto, uma operação antropofágica, que se apropriou seletivamente daquelas ideias, obscure-cendo, a partir daí, o próprio legado.

FontesAnnaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados. Sessões de 1831 a 1837. Coligidos por Antonio Pereira Pinto e por Jorge João Dodsworth. 14 ts. Rio de Janeiro: Typographia de H. J. Pinto / Typographia de Viuva Pinto & Filho, 1878 / 1879 / 1887.Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Senadores. Sessão de 1840. Rio de Janeiro: Typographia Mercantil, 1874.Astréa. Rio de Janeiro: Typographia Patriotica da Astréa, 21 de abril de 1831 a 18 de agosto de 1832. Redatores: Antonio José do Amaral e José Joaquim Vieira Souto.Collecção das leis do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1830.Constituição Política do Império do Brasil. In: CAMPANHOLE, Adriano, e CAMPANHOLE, Hilton Lobo (org.). Constituições do Brasil: 1824, 1891, 1934,

58 – José Murilo de Carvalho assinala, no entanto, que, assim como a passagem do novo radicalismo para o republicanismo da década de 1870 representou um retrocesso no que tange à variedade e à profundidade das reformas propostas, esvaziando a agenda política, este mesmo radicalismo também constituiu um retrocesso quando comparado ao dos exal-tados dos anos de 1830. CARVALHO, José Murilo de. Radicalismo e republicanismo. In: CARVALHO, José Murilo de, e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (org.). Repen-sando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 42. Sobre as críticas da geração de 1870 às instituições imperiais, ver ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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ProPostas radicais no Parlamento regencial: rePública, religião e escravidão

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Texto apresentado em setembro/2012. Aprovado para publicação em novembro/2012.

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A FORMAÇÃO DO ACERVO DO GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA NO SÉCULO XIX

CREATING THE COLLECTION OF THE GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA IN THE NINETEENTH CENTURY

FaBiaNo cataLdo de azevedo 1 e Luís FeLiPe dias trotta 2

Introdução Nosso objeto é o Gabinete Português de Leitura (GPL), que aqui

olvidaremos do título de Real por coerência histórica, uma vez que só recebe este título em 1906. Como objetivo e recorte cronológico a circu-

1 – Mestre em Memória Social pela UNIRIO – Professor Assistente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Membro do Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras, Real Gabinete Português de Leitura. Agradecemos imenso ao amigo e mestre prof. dr. Richard Romancini por ter mostrado a relevância do tema e pelos constantes incentivos; bem como as generosas leituras e contribuições das professoras doutoras Simone da Rocha Weitzel (UNIRIO), Tânia Bessone (UERJ) e da parceira em outras pesquisas Stefanie Freire Cavalcanti. E-mail: e-mail: [email protected] – Graduado em história formado pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected].

Resumo:Este artigo tem como objetivo principal delinear o panorama da formação do acervo do Gabine-te Português de Leitura do Rio de Janeiro, ten-do como recorte cronológico os primeiros dez anos, pois serão fundamentais para a estrutura que será seguida. Para isto, partiu-se de um minucioso cotejamento das fontes que fazem parte do arquivo histórico da Instituição. Apesar de privilegiar os livros, aborda o interesse por periódicos e a maneira como esses impressos entravam e circulavam nesta instituição portu-guesa. Utiliza uma narrativa expositiva com fi-nalidade de mostrar os detalhes de um dos mais importantes núcleos de sociabilidade da capital do Império.

Abstract:The main objective of this article is to under-stand how the collection of the Rio de Janeiro Gabinete Português de Leitura was created by following a chronological order during its ini-tial decade. This timeline will be vital for the structure that the institution will assume. With that purpose in mind, we undertook a detailed comparison of the sources that are part of the historical archive of the institution. Inasmuch as the books are the privileged focus, this paper will also approach the interest for periodicals and the ways in which those printed matters en-tered and circulated in this Portuguese-Brazil-ian institution. An expository narrative will be used with the purpose of showing the details of one of the most important social centers of the Empire’s capital city.

Palavras-chave: Gabinete Português de Lei-tura; Circulação de impressos; História da Im-prensa.

Keywords: Real Gabinete Português de Lei-tura; circulation of printed matters; History of the Press.

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lação de impressos nesta Instituição nos anos de 1830 a 1860, pois, pelas análises que já realizamos e publicamos em outros trabalhos observamos ter sido este período o de maior aquisição. Optamos metodologicamente por um texto expositivo, por isso evitaremos excessos de considerações e alinhamentos teóricos, o que, decerto, esperamos, dará mais espaço a um conteúdo inédito que poderá de alguma maneira colaborar com outras pesquisas nessa temática. O texto seguirá uma narrativa linear e, quando possível, por motivos didáticos, faremos algum tipo de subdivisão.

Este artigo pretende, inicialmente, historiar, com base em fontes primárias, a construção e o perfil do GPL dando ênfase na formação do acervo e na maneira que isso foi feito. Apesar de utilizarem as livrarias da cidade do Rio de Janeiro, a compra era essencialmente feita na Europa, sobretudo em França, Bélgica e Portugal. Tangenciando a questão dos livros, pretendemos abordar outro aspecto pouco tratado no âmbito de Gabinetes de Leituras, ou seja, o consumo de periódicos. Não era só de romances que se alimentavam os leitores desse tipo de biblioteca.

Para pensar o GPL e compreendê-lo como espaço de sociabilidade a filiação teórica que seguimos tem como base principal Ferreira3, que em “Palácios de Destinos Cruzados” teve o mérito – dentre outros – de ser o primeiro estudo feito sobre o GPL com alicerce na história cultural. O conceito de história cultural advém de Chartier, que a definiu como “aquela que tem por principal objetivo identificar o modo como em dife-rentes lugares e momentos uma determinada realidade social é constituí-da, pensada e dada a ler”4.

Com Ferreira5, compreendemos e categorizamos o GPL como um dos mais importantes espaços de leitura da corte do Rio de Janeiro, prin-cipalmente a partir da década de 1870. Além disso, foi possível com-

3 – FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. Palácios de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. 1994. 313f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. Palácio de destinos cruzados: homens e livros no Rio de Janei-ro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 240p.4 – CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Di-fel, 1990, pp. 16-17.5 – FERREIRA,1999, op. cit.

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preendê-lo também como um elemento que passa a fazer parte de uma rede de sociabilidade de intelectuais brasileiros e portugueses. Esta ideia é importante para a linha que estamos seguindo, visto que deslocaremos o foco do livro para a Instituição que o guarda sem, decerto, deixar de tangenciar em vários momentos a formação do acervo e as possíveis es-tratégias que o levaram a primar pela língua portuguesa – pois esse crité-rio está longe de ser óbvio6. Nesse sentido, salientamos que o GPL tinha por objetivo ressaltar a cultura portuguesa e os feitos da antiga metrópole, uma vez que, no Brasil, Portugal ficara com uma imagem de país atrasado principalmente no pós-independência. Para melhorar essa percepção dos brasileiros, nada melhor do que a criação de uma instituição de valoriza-ção e promoção da língua portuguesa, uma vez que o idioma e os livros nele escritos ressaltam a cultura e a intelectualidade de um povo.

Apontamentos históricos da formação do acervo e construção do prédio

Na tarde de 14 de maio de 1837, “pessoas das diversas classes da emigração portugueza”7 dirigiram-se para o sobrado n. 20, da Rua Direi-ta (hoje Primeiro de Março), casa do advogado português António José Coelho Lousada.

A convite do GPL, a primeira sessão foi presidida pelo conselheiro João Baptista Moreira, na época “encarregado-geral da Nação Portugue-za” – ou seja, cônsul-geral de Portugal. Estavam presentes 43 acionistas, porém, de acordo com o secretário, Francisco Eduardo Alves Viana infor-mou que já haviam 189 acionistas. O mesmo comentou a necessidade de se estabelecer um estatuto e a eleição de um conselho administrativo. Os

6 – Apresentamos um estado da arte da produção sobre o GPL no artigo: AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Contributo para traçar o perfil do público leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837-1847. Rev. Ci. Inf., Brasília, vol. 37, n. 2, pp. 20-31, maio/ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ci/v37n2/a02v37n2.pdf. Acesso em: 21 ago. 2010.7 – MONTORO, Reinaldo Carlos. Notícia histórica do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro fundado em 1837. In: CAMÕES, Luiz. Os Lusíadas. Lisboa: Na Officina de Castro Irmão, 1880. p. 402. (Edição consagrada a commemorar o Terceiro Centenario do Poeta da Nacionalidade Portugueza pelo Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro.)

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acionistas propõem a eleição de uma mesa administrava para Instituição, para a qual foram eleitos José Marcelino Rocha Cabral, como presidente; Francisco Eduardo Alves Viana, como primeiro-secretário e José Maria do Amaral Vergueiro, segundo-secretário.

Após a eleição a sessão continua e o acionista Francisco Xavier Ál-vares propôs que se agradecesse Antonio José Coelho Louzada “a urba-nidade com que se tinha dignado tractar a todos os Accionistas presentes franqueando-lhe a sua casa”. A este pedido, a moção de José Marcelino da Rocha Cabral, já na presidência da sessão, é relatada da seguinte maneira: “o Presidente como interprete dos sentimentos da Assemblea, significou áquelle senhor que os Portuguezes ali reunidos se achavão penhorados pela civil e hospitaleira recepeção que lhe havia feito [...]”.

Notamos que antes de 14 de maio de 1837 já havia discussões a res-peito de um plano para a formação do acervo, tanto assim que os critérios foram rapidamente delimitados e dois meses após a fundação já mencio-navam os planos para seleção. O Relatório de 10 de setembro de 1837 sintetiza muito bem essa ideia:

A factura das obras portuguezas foi há muito enviada para Lisboa: a das obras estrangeiras ainda não foi remettida, por não termos á nossa disposição os meios necessários, que devem resultar do pagamento da ultima prestação das apólices verificadas.

Srs., communico-vos tambem com satisfação, que importantes e nu-merosas offertas de livros e outros objectos interessantes, tem sido feitas ao Gabinete, como podereis ver da sua relação, no livro res-pectivo. Essas obras, com algumas que se tem comprado n’esta Ca-pital, formão o numero de volumes que tendes presentes nas estantes do Gabinete, os quaes tambem constão do livro de entradas. Huma boa colecção de mappas geographicos, foi igualmente comprada, e se achão patentes8.

8 – GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO. Relatório apre-sentado à Assemblea da Sociedade do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro, em sessão extraordinaria de 10 de setembro de 1837, a primeira celebrada no local do estabelecimento [...]. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa, 1837, p. 6, grifos nossos.

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Por essa citação podemos observar compras feitas na própria capi-tal do Império e a menção de doações, além de compra de outros mate-riais como mapas. A leitura das obras do acervo do Gabinete – como era lugar-comum em seus congêneres – estava franqueada ao pagamento de quantia que variava. As distinções que nos importam são as categorias de acionistas e de subscritores9.

É fato que o acervo do Gabinete – num esforço hercúleo – foi com-posto primordialmente nos primeiros dez anos por compra feita no Brasil e na Europa. Utilizaram os serviços de agentes, comissários e de próprios acionistas para tramitar esse processo. Desse modo, notamos o empenho da diretoria para que as portas do Gabinete só fossem abertas com um acervo que pudesse comprazer seus acionistas e futuros subscritores10.

Destacamos a participação dos acionistas no processo de compra do acervo, pois isso sugere que o Gabinete Português de Leitura era uma ins-tituição não somente de leitura, mas um espaço onde os membros podiam se envolver em atividades paralelas.

O ritmo do processo de compra foi intenso entre os anos de 1837 e 1840. Para isto, dentre os procedimentos seguidos pelo GPL, o que mais chamou a nossa atenção foi o que envolvia a formação de uma comissão de seleção para escolha do acervo a ser adquirido.

Quadro 1: Comissão de Seleção

Nome Cargo no Gabinete ProfissãoJosé Marcelino da Rocha Cabral Presidente Advogado

João Joaquim Pestana Vice-presidente Comerciante

José de Almeida e Silva Bibliotecário Médico

Fonte: GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847.

9 – Tratamos amiúde deste tema em: AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Contributo para traçar o perfil do público leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837-1847. Revis-ta Ciência da Informação. Brasília, vol. 37, n. 2, pp. 20-31, maio/ago. 2008. 10 – GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO [GPL]. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847 passim. Chamamos a atenção que estas Actas e as demais que serão citadas aqui estão organizadas por décadas.

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A composição da Comissão é muito representativa, pois conta com as figuras máximas do GPL que por sua formação detinham conheci-mentos bibliográficos e do mercado livreiro, que tanto médicos quanto advogados detinham. Tânia Bessone na análise que fez a respeito das bi-bliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, no período de 1870 a 1920, concluiu que “advogados e médicos tornaram-se, cada vez mais, clientes potenciais para livreiros e bibliófilos, tendência compulsada em catálogos e anúncios que privilegiam os temas de interesse profissional”11. Barros Martins afirma que esse grupo não detinha apenas o domínio administra-tivo “mas tambem [sabiam das] tendencias litterarias e bibliographicas”12.

A diretoria do Gabinete não descurou da necessidade do público que afluiria ao acervo. Fato revelado pelas palavras impressas no Relatório de 1837: “tractamos de reunir, quanto possivel, elementos de instrucção geral, tendo, comtudo, particularmente em vista as classes de leitores13, que provavelmente há de concorrer ao Gabinete”14.

Compunham ainda as estantes do Gabinete livros comprados já usa-dos a partir dos anúncios de jornais15. Por exemplo, em 6 de junho de 1837 foi deliberado que o bibliotecário, o acionista José de Almeida e Silva “anunciasse pela impressa que a Diretoria compra livros em segun-da mão quando lhes convenha [...]”16. Afora denotar uma prática da Insti-tuição, essa deliberação indica que esse “quando lhes convenha” poderia

11 – FERREIRA, op. cit., 1999, p. 68.12 – BARROS MARTINS, A. A. de. Esboço histórico do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Typ. do “Jornal do Commercio” de Rodrigues & C., 1901, p. 23.13 – Analisamos essas classes de leitores em: Contributo para traçar o perfil do públi-co leitor do Real Gabinete Português de Leitura: 1837-1847. Rev. Ci. Inf., Brasília, vol. 37, n. 2, pp. 20-31, maio/ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ci/v37n2/a02v37n2.pdf. Acesso em: 21 ago. 2010.14 – GPL 1, op. cit., p. 615 – Tratamos o uso dos períodos como instrumento de avaliação em AZEVEDO, Fabia-no Cataldo de. A importância dos instrumentos auxiliares de seleção: considerações da literatura do século XIX e usos no Real Gabinete Português de Leitura. DataGramaZero, vol. 9, n. 4, ago. 2008. Disponível em: http://www.dgz.org.br/ago08/Art_05.htm. Acesso em: 12 ago. 2011.16 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 6 jun. 1837.

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estar relacionado tanto ao preço de venda quanto ao assunto e idioma da obra. Em outra ocasião, Almeida e Silva, foi “authorizado a comprar livros em bom uso até a somma de 60$000 e que o Sñr Thesoureiro ac-ceitasse as ordens”17.

A Acta de 4 de julho de 1837 sugere que paralelo ao trabalho de seleção, estavam sendo realizadas considerações de ordem orçamentária referentes à aquisição dos livros e periódicos que seriam indicados pela Comissão. Com base nos dados do orçamento para o “1º Semestre de Ju-nho a Dezembro de 1837”, propomos o seguinte quadro ilustrativo:

Quadro 2: Orçamento para junho a dezembro de 183718.

Emprego Valor %Compra de livros no Rio de Janeiro 600$000 7,5

[Compra de livros] em Portugal e Europa 3,000$000 37,5

[Compra de livros] no Rio de Janeiro p. livros estrangeiros 300$000 3,75

[Compra de livros] na Europa [para livros estrangeiros] 1,700$000 21,25

Estantes 600$000 7,5

Mobília 400$000 5,0

Estatutos e impressão 240$000 3,0

Timbre, Apolise e Sello 220$000 2,75

Extraordinarios 100$000 1,25

Saldo que servira pª occorrer ás despezas ordinarias 840$000 10,5

Soma 8,000$000 100

Fonte: GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 4 jul. 1837.

Por esse orçamento é possível constatar que 70% verba, ou seja, 5,600$000, foi destinada à compra de livros. Entendemos que “livros es-trangeiros” significavam livros em outros idiomas e não simplesmente editados em outros países, para esses foram destinados 25% do total da verba. Para os livros em português ou traduzidos houve uma verba maior, isto é, 45%, o que pode denotar a aplicação dos critérios de seleção que no mês de seguinte formalizariam.

Quase um mês após a formalização da Comissão de Seleção, apre-sentou-se o resultado do trabalho, através de um rol de livros em “idiomas

17 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 17 jun. 1837.18 – Na composição do quadro foram respeitadas as terminologias da época.

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nacional e estrangeiros” e em vários ramos do conhecimento humano. A Diretoria aprovou na “sua totalidade” os livros em português e o tesourei-ro, Narciso Jose de Souza Lameira, ficou com a função de procurar “cazas de commercio [que quisessem] encarregar-se de “fazer vir as facturas de livros da Europa”19. Coube ao vice-presidente – igualmente membro da Comissão –, Joaquim José Pestana “appresentar na prª Sessão a factura de livros portuguezes classificada pela ordem das materias nesta mesma sessão deliberada”20. Quanto “parte do cathalogo que consta [va] de livros escriptos em idiomas estranhos” ficou estabelecido que uma comissão deveria organizar a faturas dos livros que seriam importados da Europa. Para esse trabalho – diferentemente do procedimento para os livros portu-gueses – os diretores pediram atenção para que a quantia não ultrapasse os limites do orçamento para aquele semestre. Fizeram desse comissão os senhores Tibúrcio António Craveiro, Agostinho Correia d’Azevedo e Francisco Edolo Alves Viana21.

A mesma Comissão fez a seleção de livros franceses dos quais “ficou o Sñr. Thesoureiro encarregado de tractar com algum negocian-te desta Praça sobre [...] compra de livros de França até a quantia de Rs 2.000$000”22. Em seguida, o encarregado prestou conta informando aos diretores que “esperava concluir as bases da encomenda dos Perio-dicos Franceses e q na seg.te sessão daria conta de seus trabalhos e das condicções com se poderá realizar a remessa do Catalogo dos Livros de França”23.

As “obras e manuscritos de merito na lingua portugueza” estavam representados, obviamente e, sobretudo nas áreas da Literatura e História, o que faz com que a menção ao assunto fique subentendida aos membros do GPL. Kátia Carvalho considera que esta configuração na corte do Rio de Janeiro poderia significar uma forma de “manter viva a chama da cul-

19 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 27 jul. 183720 – Ibidem.21 – Ibidem.22 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 11 out. 1837.23 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847, loc. cit., grifos nossos.

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tura e da literatura portuguesas em uma das cidades mais significativas política e culturalmente”24.

Assim, vemos que depois que a seleção foi apresentada, o acionista Narciso José de Souza Lameira foi designado para fazer a cotação entre as livrarias que fariam a compra e importação. A Diretoria tece as seguin-tes considerações a respeito da forma que fariam a aquisição das obras

[...] o estado do cambio, e do credito geral, fez que a Directoria re-geitasse o meio da remessa immediata de fundo d’aqui para Lisboa; [...] teve a Directoria de procurar pelos Agentes commisarios, cazas commerciaes pelas quaes fossem feitas as encomendas, a pagar na entrega dos livros, n’esta Corte; porêm as propostas, que se recolhê-rão, parecêrão muito onerosas, [...] e todas ellas continhão condições inadmissíveis [...]. N’estas circunstancias a Directoría, determina não comprometter d’esde já os capitaes da Sociedade, lembrou-se do expediente de abrir correspondencia directa com algumas das mais acreditadas casas de livros de Lisboa; arbítrio que, alêm da indicada vantagem, de não comprometter desde já os fundos da Sociedade, evi-tava o sacrifício de commissões, e abria entre o Gabinete e essa casa, communicações que podem ser muito proveitosas para o futuro [...]25.

Quanto às “cazas commerciais” citadas, atendo-nos ao período ana-lisado, a única que fica claro é a Livraria Martin e Irmãos26, em Lisboa. A primeira encomenda de livros foi feita a essa livraria através de seu agente no Rio de Janeiro, João Pedro da Veiga, trâmite lavrado no Rela-tório de 1837.

As Actas revelaram que os leitores do GPL – que num primeiro mo-mento foi composto apenas por acionistas – estavam muito interessados

24 – CARVALHO, Kátia de. Travessia das letras. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999.Estamos finalizando uma pesquisa, com orientação da profa. dra. Carmen Irene Oliveira, que visa – dentre outros objetivos – identificar elementos da formação identitária do GPL, tendo como método a Análise de Discurso de vertente francesa. 25 – GPL. Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade [...]. Op. cit., pp. 6-7.26 – A respeito deste livreiro, como fonte, este e outros artigos da mesma autora: BAS-TOS, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão histo-riográfica. In: Encontro Regional de História, ANPUH-RJ. História e Biografias. Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

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na leitura de periódicos, sobretudo comerciais, de várias praças do Impé-rio e da Europa. Os exemplos são inúmeros, todavia, pode-se citar alguns que consideramos representativos, no que se refere à formação e aos in-teresses dos usuários do GPL. Em 22 de janeiro de 1838 o tesoureiro foi autorizado a assinar “hum jornal Commercial em cada huã das principais Provincias do Imperio”27. Em maio do mesmo ano, tendo em vista proble-mas com a importação de algumas folhas de Lisboa, o acionista António Ferreira Brandão ofereceu para uso do Gabinete “o Periódico Nacional de que [era] assignante”28 até que a situação se normalizasse. Contudo, não eram só títulos comerciais e políticos. Em 18 de novembro de 1839 a diretoria encaminhou um carta ao agente em Lisboa, Thomas José Pereira Lima, e nela, dentre outros assuntos, foi enfatizado o desejo de assinar o Archivo Theatral, e cobrava os seis primeiros números do Universo Pit-toresco, pois só haviam recebido o número 729.

Por uma breve análise nos catálogos do Gabinete observamos assi-naturas de periódicos portugueses e ingleses cujo assunto era o comércio e a indústria. Esses dados podem nos fazer supor a atenção dos seleciona-dores da Instituição ao público que utilizava o acervo tanto em suas ne-cessidades profissionais, no caso dos periódicos e outras obras técnicas, quanto nas necessidades de lazer, referindo-nos aos romances.

Desde o início houve a preocupação em manter o acervo atualizado, comprando as publicações mais modernas. Isso se reflete na deliberação da diretoria quando mandou “vir da Belgica os romances dos melhores authores que ali de fucturo se publicarem na mesma conformidade que vindo de Paris”30.

Após a criação na Rua Direita, nº 20, o Gabinete teve a sua primeira sede numa casa alugada, à Rua São Pedro, nº. 83. Na época o Gabinete abria as portas às 10 horas da manhã e fechava às 12 horas, retornava às 16 horas e seguia até às 20 horas. Aos domingos e dias santos funcionava

27 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 4 jan. 1838.28 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 21 maio 1838.29 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 18 nov. 1839.30 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 3 ago. 1847.

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das 16 horas às 20 horas31. Esse foi um período de grande movimento para a composição do acervo. O espaço desse prédio não deveria ser tão pequeno, pois que em 18 de outubro de 1840, uma das salas foi cedida para a Sociedade Portuguesa de Beneficência realizar suas sessões, mas, decerto, não grande o bastante para abrigar o acervo que crescia. Anos antes, em 1838, possivelmente em razão disso, houve movimentos para alugar outro imóvel. Primeiramente a diretoria negociou o aluguel de uma casa à Rua da Alfândega, nº 29; contudo, o negócio malogrou. Um ano depois, novas negociações, desta vez para um imóvel localizado à Rua do Ouvidor – pela ausência de comentários nas Actas o resultado foi idêntico ao anterior32. Em 25 de novembro de 1839, a diretoria autoriza as negociações para alugar uma casa na Rua da Quitanda, com semelhante insucesso. Em 1841, começa a negociação para a compra – e não mais aluguel – de um imóvel na Rua da Alfândega. O fato é que, provavelmen-te, em meados do primeiro semestre de 1842, o GPL muda-se para o nº 55 da Quintanda. Nesse endereço havia funcionado a tipografia do jornal O Despertador, de propriedade de José Marcelino da Rocha Cabral.

Barros Martins conta que, a partir de 1842, quando o GPL já es-tava na Rua da Quitanda nº 55 “a mocidade começou a dar-se ao estu-do das lettras [...]”33. A mudança deve ter contribuído para o aumento dos frequentadores. A década de 1840 foi bastante frutífera para o GPL, aumentou o número do acervo e de usuários/sócios e, com isso, alguns problemas inerentes ao funcionamento de uma biblioteca começaram a aparecer. Na sessão de 18 de outubro de 1840 o bibliotecário informou o extravio de 103 volumes de obras diversas. No ano seguinte, o mesmo propõe em sessão que doravante fosse feito um mapa, listando leitores e livros emprestados, como forma de controle e para evitar posteriores extravios34. Com um acervo de 18.000 volumes35 e impelidos pela neces-

31 – ALMANAK administrativo mercantil e industrial do Rio de Janeiro [...]. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 188. 32 – De fato, não localizamos nas fontes consultadas nenhuma informação concreta acer-ca das razões dos insucessos para o aluguel de imóveis para abrigar o GPL. 33 – BARROS MARTIN, op. cit., 1901, p. 26.34 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 5 maio 1841.35 – ALMANAK administrativo mercantil e industrial do Rio de Janeiro [...]. Rio de

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sidade de expansão para os livros e para admissão de novos sócios, o Ga-binete muda-se, em abril de 1850, para o nº 12, da Rua dos Beneditinos. Notamos que foi neste endereço que o acervo mais cresceu se comparado com o da época da fundação. Havia uma preocupação de manter o acervo atualizado com o que estava sendo publicado fora do Brasil. Para isso, contou com representantes em alguns países na Europa, como o senhor António Maria Pereira, em Lisboa, que negociava, sobretudo, com a Casa Martins e Irmãos.

No relatório de 1861 os diretores concordam que a biblioteca está em boa ordem, contudo, não organizada por assunto em razão da falta de espaço. No decênio de 1860, passaram a manifestar cada vez mais, um desejo já expresso no Relatório de 1837, qual seja, o da construção de um prédio próprio. Assim, em reunião de 20 de novembro de 1860 foi discu-tida proposta para a compra de um terreno e a construção de um prédio próprio36. Ao longo de todo o ano de 1872 estabelecem as negociações para a compra dos terrenos, na então Rua da Lampadosa37, números 28, 30, 32 e 34, cuja compra é efetivada em dezembro do mesmo ano, fato noticiado pelo Almanak Laemmert de 1873. Nesse ínterim, intensificou--se a organização do fundo para construção do prédio, havendo grande movimentação das doações, compras de livros e assinatura de periódicos, não obstante a constante menção à falta de espaço.

Na década de 1870, atendendo, possivelmente, a uma demanda dos usuários da Biblioteca, o Gabinete passou (a partir de 1º de outubro de 1873) a funcionar ininterruptamente das 9h da manhã às 21h. Fecharia ao público às 14h, nos dias santificados, nos dias 31 de outubro, em função do natalício de D. Luiz I, rei de Portugal; no dia 2 de dezembro, natalício de D. Pedro II; no dia 1 de dezembro e 7 de setembro, data das indepen-dências portuguesa e brasileira, respectivamente. Ficaria fechada nos dias de Ano-Novo, Corpus-Christi, Pentecostes, Natal e Domingo de Páscoa38.Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1851, p. 261. 36 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1847-1860. 20 jun. 1860.37 – A rua passaria a ser chamar Luís de Camões a partir de 1880. 38 – ALMANAK administrativo mercantil e industrial do Rio de Janeiro [...]. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1877, p. 509.

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Para a construção do prédio precisaram de capital para levar a em-preitada a cabo, por isso, traçaram estratégias rígidas para a obtenção dos recursos. Afora a criação de um fundo, organizaram alguns espetáculos em benefício do Gabinete.

O fundo para a construção do prédio foi estabelecido em 1871 e, no mesmo ano, promoveram o primeiro espetáculo em prol deste fundo – procedimento que se tornaria anual. Com a organização do acionista e membro da diretoria, José Joaquim Ferreira Margarido, o evento ocorreu no dia 16 de novembro, organizado pela Companhia Lyrica do Theatro de D. Pedro Segundo, que levou ao palco as “Vesperas Sicilianas”, de Verdi39. Dois anos depois há informação da realização de outro espetácu-lo, levado ao mesmo palco pela Companhia Lyrica Franceza, no dia 5 de novembro40.

Sobretudo sob a presidência de Eduardo de Lemos, o projeto do pré-dio começou a tomar forma. E ao que indicam os relatos, muitos enge-nheiros queriam ter a honra de assinar o projeto, com base na documen-tação. O primeiro foi encaminhado gratuitamente ao presidente do GPL41 por Umbelino Alberto de Campo Limpo.

Em 13 de março de 1879, o próprio presidente declara em sessão que escreveria ao José Carlos Rodrigues Carlos Rodrigues, em Nova Iorque, pedindo-lhe planos de bibliotecas dos Estados Unidos42. Este, ao receber a carta, informou que havia conseguido pessoa competente para fazer um esboço do plano interno para o Gabinete, ao custo de $100,00 (referência da época), mas o dinheiro só segue depois de setembro do mesmo ano43.

Paripassu a busca por um projeto para a fachada e para a parte in-terna do novo edifício seguiam com a preparação do terreno para o lan-çamento da pedra fundamental, data já assinalada como sendo o dia 10

39 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1869-1880, passim. 40 – Op. cit. 41 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1869-1880. 3 out. 1878. 42 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1869-1880. 13 mar. 1879. 43 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria, 1879, passim.

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de junho de 1880. Esta escolha não foi aleatória. Desde 1875 o GPL já fazia uma movimentação no sentido de tornar-se o principal organizador, no Brasil, dos festejos para o centenário da morte de Luís de Camões, que em Portugal previa-se também para aquela data. Acreditamos, inclusive, não obstante o fato de não haver menção nas Actas, que tenha sido a par-tir de 1880, a mudança do nome da Rua da Lampadosa para rua Luís de Camões.

Não se sabe o quanto do projeto do interior, enviado de Nova Iorque, foi aproveitado. Mas em 1881, o projeto final foi aceito (tanto do interior quanto da fachada), tendo sido idealizado pelo arquiteto lisboeta, Rafael José da Silva e Castro. Toda a cantaria e portas foram compradas em Portugal, por intermédio do Visconde do Rio Vez, que se achava na Eu-ropa no período, e que, em 1882, também contratou a cantaria da fachada com Germano José de Salles, ao custo de 11:000$000. A outro português coube também o trabalho de esculpir as estátuas de Vasco da Gama e Camões, que figurariam na fachada, o artífice José Simões de Almeida Júnior foi contratado por 4:500$000. Já o vigamento de ferro veio da Bélgica e o próprio Eduardo de Lemos custeou um guincho a vapor para as obras44. Junto ao Senado brasileiro conseguiram total isenção das taxas alfandegárias para estas importações – fato que demonstra o prestígio do GPL.

Em janeiro de 1881 delibera-se, de fato, o início das obras, com a absoluta assistência dos membros da diretoria, com revezamento de uma semana para cada um, cabendo apenas ao presidente o intermédio com o arquiteto45. Na mesma época, ainda no prédio da Rua dos Benediti-nos, deliberam franquear a sala de leitura e uso de livros para consulta na Biblioteca, franqueada a todos os jornalistas, escritores, professores e funcionários públicos, desde que apresentassem um simples cartão de vi-sita ao empregado de serviço46. Essa postura, além de denotar claramente uma possível demanda, mostra o quanto a Instituição já passava a contar

44 –GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1869-1880, 1 jul. 1881. 45 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897, 30 mar. 1881. 46 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 30 maio 1881.

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com prestígio e respeito na Corte do Rio de Janeiro. Ainda nesta seara, instituições portuguesas (ou não) – de toda a parte do Brasil – escreviam ao GPL solicitando doações de livros e periódicos, cópias de estatutos47, tanto com o objetivo de guarnecer seus acervos como na intenção de se-guir um modelo.

Como exemplo, podemos citar a primeira referência de doação, com data de 18 de agosto de 1837, quando a diretoria deliberou em sessão que “mandassem encadernar ligeiramente aqueles livros offerecidos à livraria do Gabinete que merecessem a despeza do concerto”. O rico Relatório do mesmo ano nos dá a seguinte notícia:

Srs., communico-vos tambem com satisfação, que importantes e nu-merosas offertas de livros e outros objectos interessantes, tem sido feitas ao Gabinete, como podereis ver da sua relação, no livro respec-tivo. Essas obras, com algumas que se tem comprado n’esta Capital, formão o numero de volumes que tendes presentes nas estantes do Gabinete, os quaes tambem constão do livro de entradas (grifo meu)48.

Assim, fica claro que as doações eram frequentes, sobretudo por par-te dos acionistas, mas não há informações dos critérios a que elas estavam condicionadas.

Consta na Ata de 21 de maio de 1838:

[o] Accª Thomas José d’Aquino offerecera huma obra em Portuguez “Collecção de Historias e Novellas” em 10 volumes com a condição de não publicar plos jornaes o q se lhe concedeo, que Patricio Monis offerecera o seu opúsculo de Meditaçoens Nocturnas, e José Rodri-gues Novaes Falcão offereceo as Poesias de Metastasio em Italiano em 10 vols.

O pedido do acionista Aquino é compreensível, porque era hábito do Gabinete publicar nos periódicos de grande circulação, sobretudo no Jor-nal do Commercio, o seu movimento mensal ou semestral, assim como,

47 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1897, passim.48 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847, 18 ago. 1838.

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no Almanak Laemmert. Outro exemplo data de 6 de junho do mesmo ano: o “Guarda do Gabinete participou que hum anonimo lhe entregara para ser colocado nas Estantes do Gabinete a Historia da Grecia antiga em 2 vols”49.

Não vamos fazer um mapeamento das doações, por fim, podemos ci-tar a doação da valorosa obra Verdadera informaçam das terras do Preste Joam das Indias, edição de 1540, pelo Comendador Manuel Salgado Ze-nha, em 26 de julho de 187850.

Na construção do prédio, o eterno medo alexandrino da perda de acervos pelo fogo e a questão da durabilidade fizeram com que a diretoria optasse pelo ferro, em substituição à madeira, sempre que possível. A empresa Manoel Joaquim Moreria & Cia. foi contratada para o projeto de cobertura do edifício, cúpula e claraboias por 35:000$000. A mesma empresa também ficou responsável pelas estantes, galerias e demais com-ponentes em ferro, pelo custo de 37:000$00051.

Ao longo do processo o GPL contava com ofertas das mais variadas camadas da sociedade carioca, tanto de lusos quanto de brasileiros, que talvez vissem no apoio à construção daquele prédio um meio de pereni-zar seus nomes, assim como pelo status que o pertencimento ao GPL já dava aos sócios. Muitos escreviam oferendo serviços, até mesmo gratui-tamente, como Bartolomeu Alves Meira, que em carta dirigida à diretoria declarou o seu desejo de “collaborar na medida de suas forças”, especifi-camente, com trabalho de decoração do teto do salão de honra (atual sala dos brasões)52, ou como Manoel José Amoroso Lima Junior, que ofere-ceu um milheiro de telhas para a cobertura53. A essas ofertas seguiram-se muitas outras, talvez tantas que Eduardo de Lemos propôs a criação de um registro chamado “Sócios Fundadores do Edifício Manuelino”54. Não

49 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847, 6 jun. 1838.50 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1869-1880. 26 jul. 1878. 51 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 20 jun. 1882.52 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 10 dez. 1881.53 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 24 abr. 1882.54 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 31 dez. 1881.

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obstante as ofertas, houve a necessidade da diretoria do GPL contrair em-préstimos55.

Com uma intempérie ou outra, como as chuvas de início de 1882 e o naufrágio do vapor Copérnico, em março de 188356, que trazia de Portugal noventa e uma pedras lapidadas para a fachada do edifício, as obras seguiram em ritmo extremamente rápido. Os membros do GPL fa-ziam questão de divulgar os avanços da construção em Lisboa e também em outras regiões do Brasil57, uma vez que no Rio de Janeiro, informou o secretário à diretoria, a fachada [já] chamava e prendia a atenção e a curiosidade dos transeuntes58.

Para a inauguração se previa que todos os livros já tivessem sido transferidos do endereço da Rua dos Beneditinos e à disposição dos leito-res, pois não queriam que houvesse interrupção nos serviços.

A data marcada para a inauguração refletia outro momento importan-te, ou seja, o ano do cinquentenário do Gabinete. No dia 10 de setembro de 1887 os laços foram cortados pela princesa Isabel, na qualidade de soberana da nação, visto que D. Pedro II achava-se fora Brasil em tra-tamento médico. Para remediar a ausência sentida do imperador, o GPL prontificou-se a realizar uma segunda inauguração, chamada em ata, de “oficial”, em 22 de dezembro de 1888, que contou com os mais ilustres membros da corte e do próprio soberano. Nesta mesma data, D. Pedro II recebeu da diretoria do Gabinete o diploma de Presidente Honorário do Gabinete Português de Leitura59.

Se antes da construção do imponente prédio, o GPL, marcadamente a partir da década de 1850, já estava inserido na vida cultural do Rio de Janeiro; no final do século XIX era muito mais visível a sua inserção nes-

55 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 16 jan. 1886.56 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 06 mar. 1883.57 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897, passim. 58 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 03 dez. 1883.59 – TAVARES, António Rodrigues. Fundamentos e actualidades do Real Gabinete Por-tuguês de Leitura. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1977. Edição comemorativa do 140º aniversário de fundação.

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se âmbito de instrumentos culturais que proviam à população letrada60. Notamos pelo número avultado de exemplos que a Instituição já havia se tornado reconhecível pela excelência e especificidade do acervo.

Seus livros foram solicitados para comporem exposições, como a “Exposição de História do Brazil”, organizada pela Biblioteca Nacional, em 1881, e para “Exposição Internacional de Hygiene e Educação”, em Londres, em 188461.

Entre suas paredes o GPL sediou e colaborou com a criação de Ins-tituições lusas no Rio de Janeiro, como o Liceu e Retiro Literários, des-tacando-se que, igualmente, já no século XX, cedeu seu espaço para a realização das primeiras sessões da Academia Brasileira de Letras e para algumas sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro62.

Nas primeiras décadas de 1900 o GPL também esteve inserido na chamada “manias de conferências”, como afirmou Brito Broca63. Em 1904, por exemplo, os organizadores do “Congresso Scientifico Latino Amiricano” solicitaram a cedência do Salão dos Brasões para algumas sessões do evento64. Como pontua Ferreira, a partir desse período havia sempre uma programação ou participação em centenários de escritos e comemorações luso-brasileiras65.

O prédio manuelino, seguindo os relatos nas Actas e relatórios, des-ses primeiros anos, era mencionado tanto por sua monumentalidade como pela representatividade no âmbito de uma possível memória de Portugal. Passou a ser comum uma espécie de visita técnica realizada anualmente pelos alunos de construção, da então Escola Politécnica66.

60 – FERREIRA, op. cit. p. 27.61 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 17 mar. 1884.62 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1897-1906. 29 mar. 1906.63 – BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: Ministério da Edu-cação, 1956. 64 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1897-1906. 17 mar. 1904.65 – FERREIRA, op. cit., 1999.66 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1897-1906, passim.

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De fato, a partir da sua inauguração, percebemos um deslocamento da representação da cultura portuguesa do acervo para o prédio, muito embora seus diretores mantivessem um constante zelo por ambos. Inúme-ras são as Actas onde isto é passível de ser percebido. Destacaremos dois desses documentos a partir do seguinte critério, o primeiro por tangenciar um momento histórico e o segundo por ilustrar de maneira pouco usual o gerenciamento de acervo.

Chama muito a atenção o fato de um completo silêncio nas Actas, acerca de alguns eventos políticos que aconteceram no Brasil, no século XIX, por exemplo, não há notícias da Abolição da Escravatura e muito menos da Proclamação da República. Todavia, um evento em especial foi muito comentado, talvez em função dos desdobramentos causados por ele na Instituição.

Em setembro de 1893, efeitos da Revolta da Armada se fizeram sen-tir no GPL, pondo em ameaça seus dois bens mais preciosos: o acervo e o prédio. A diretoria exprimiu da seguinte maneira o ocorrido:

Consigna-se com profundo sentimento a grave perturbação notada em todos os serviços do Gabinete pela deploravel revolta de um parte da armada nacional fazendo votos para que em breve se restabeleça in-teiro o dominio da lei e da ordem, tão indispensavel à tranquilidade da população e ao desenvolvimento do paiz. Os bombardeiros de 13 e 25 do corrente causaram alguns estragos no edificio, felizmente sem con-sequencias de maior importancia. Forçada pela anormalidade do mo-mento, a directoria, acompanhando os estabelecimentos congeneres, publicos e particulares, deliberou também, até resolução em contrario, não abrir a noite a Bibliotheca [...]67.

As portas do GPL manter-se-iam fechadas por mais alguns dias, quando mais uma vez a diretoria informa que os serviços foram reesta-belecidos.

O Sñr. Presidente abre a sessão, congratulando-se com os seus col-legas pelo restabelecimento da ordem nesta capital [...]. Terminada felizmente a revolta, não há duvida que o desenvolvimento prodigioso

67 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897, 30 set. 1893.

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deste [...] Paiz, paralysado de surpresa pelo deploravel acontecimento, retornará com novas forças e maiores seguranças a sua marcha ascen-dente68.

Desde a tarde de 14 de maio de 1837 até a consecução do atual pré-dio em estilo manuelino da rua Luís de Camões a história do Gabinete é composta por fatos que enaltecem ainda mais a capacidade administrativa dos nobres varões que o criaram, pois foi do intenso e intensivo trabalho levado a termo nos dez primeiros anos que resultou toda uma linha de ação que pôde ser observada nas décadas que se seguiram.

As sucessivas diretorias quiseram realmente transformar o GPL “em um centro de instrucção, de transmissão de ideias, de gosto litteraria e artístico, das mais elevadas aspirações de predomínio intelectual”69. Para isto a formação do acervo foi parte fundamental, como veremos em mais detalhes a seguir. Tomaremos para análise o catálogo de 1844, com algu-mas incursões a outros dados.

A circulação de impressos no GPL: um reflexo a partir do catálogo de 1844

O catálogo de 1844 pode ser um norteador para termos uma ideia de como a coleção se desenvolveu seguindo os critérios de 1837 ao longo de sete anos. Seus dados evidenciam, conforme já dissemos, que a cultura portuguesa é o escopo principal do GPL.

Isso nos leva a pensar que houve um esforço por parte de alguns por-tugueses de integrar a cultura de seu país à vida da nação brasileira. Do ponto de vista histórico é possível entender que o GPL é expressão dos laços culturais, linguísticos e civilizatórios que inexoravelmente ainda uniam Portugal e Brasil no século XIX e também nos séculos vindouros, por mais que naquele momento ainda houvesse resquícios de um sen-timento antilusitano em parte da população carioca70. Antônio Cândido

68 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897, 29 mar. 1894.69 – MONTORO, op. cit., 1880. p. 419. 70 – No momento, estamos a finalizar uma investigação cujo objetivo é perquirir os dis-

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afirma que “a fase culminante da nossa afirmação – A Independência po-lítica e o nacionalismo literário do Romantismo – se processou por meio de verdadeira negação dos valores portugueses [...]71.

Assim, o GPL, de certa forma, materializa a ambiguidade do papel de Portugal no Brasil pós-independência. Se a negação da herança por-tuguesa era o mote de alguns, é inegável que essa mesma herança trouxe contribuições valiosas para a vida cultural do Rio de Janeiro.

Passemos ao catálogo. No primeiro quadro arrolamos os assuntos das obras que compunham as estantes do GPL naquela década de 1840:

Quadro 3: Relação entre Assuntos e Número de Títulos

ASSUNTO NÚMERO DE TÍTULOSAgricultura e Economia Rural 11

Antiguidades 6

Apólogos 3

Architectura 6

Artes & Manufacturas 10

Astronomia 2

Bellas Artes 1

Bibliographia 8

Biographia 56

Botanica 12

Brazão 1

Caligrafia 1

Campanhas & Conquistas 29

Cavallaria 1

Commercio 41

Coudelaria 1

Críticos 5

Diccionarios 25

Diplomacia 12

Direito Civil, Criminal e Ecclesiastico 41

Direito Natural, Constitucional, Publico e das Gentes 20

Economia Política 23

Educação 28

Estatística 11

cursos produzidos por e sobre o GPL que denotam esta relação.71 – CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 9ª ed. rev. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006, p. 118.

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Genealogia 4

Geographia, Corographia e Topographia 19

Grammaticas 11

Historia 296

Historia Natural 21

Hygiene 8

Ideologia 2

Legislação 34

Litteratura 312

Logica 1

Maçoneria 1

Mathematicas 24

Medicina 68

Metrologia 2

Mineralogia 2

Moral 34

Musica 2

Mythologia 5

Náutica 4

Nobiliarchia 1

Novellas 421

Numismatica 1

Ordem Militar 1

Orthographia 4

Pauperimos 2

Pharmacia 8

Philologia 8

Philosofia 20

Physica e Chimica 18

Physinomia 2

Poesia 181

Politica 109

Rhetorica e eloquencia 9

Stenographia 1

Tactica terrestre e naval 11

Theatro 61

Theologia e culto 98

Variedades 21

Viagens 67

Fonte: GPL. Catalogo dos livros do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro seguido de um supplemento das obras entradas no Gabinete depois de começada a impressão.

Rio de Janeiro: Typ. Americana de I. P. da Costa, 1844.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

A análise deste catálogo demonstrou que há uma quantidade repre-sentativa de obras publicadas entre os anos de 1842 e 1843, o que pode denotar a atualidade com a qual o acervo era mantido. Em inúmeras Actas da Diretoria observamos esta preocupação. Como exemplo, podemos ci-tar uma carta transcrita no “Livro do Copiador”72, datada de 27 de janeiro de 1840 e endereçada a Thomas José Pereira Lima, agente do Gabinete em Lisboa, responsável dentre outras funções de negociar com os livrei-ros europeus a compra de livros para a Instituição. Nessa correspondên-cia, cujo remetente não identificamos, é mencionado que o bibliotecário, na época o Thibúrcio António Craveiro, solicita que:

[...] constando que ao mesmo Snrº [Thomas José Pereira Lima] que al-gumas obras novas ahi [Lisboa] tem sido publicadas quer em Historia, Litteratura ou Theatro, elle [o bibliotecário] roga a Vsª se sirva com-prar um exemplar logo que se annuaciar a venda ou pª assignatura73.

Nota-se por essas palavras a prioridade do momento para alguns as-suntos. A necessidade de adquirir as publicações mais recentes é mais uma vez localizada em outra correspondência dirigida ao mesmo agente, em 24 de julho de 1840. O texto começa informando do pagamento de fatura e o envio de mais quantias para aquisições, cuja listagem era en-viada em anexo, em seguida há uma queixa pelo fato do agente não estar atento ao envio de obras recentemente publicadas. E a esse respeito frisa que “entre os socios [há a ideia] de que a Diretoria põe pouco desvelo em obter publicações novas”74. Antes de concluir, o remetente reforça que “avista de tão imperiosas exigencias recommendamos a Vsª faça todos os esforços para q por este lado [atraso nas remessas] o Gabinete não soffra”75. Observa-se, ainda e, por conseguinte, que os acionistas estavam muito informados quanto ao mercado editorial europeu.

72 – Esse livro é um manancial inesgotável de informações acerca do Gabinete. Nele estão copiadas todas as cartas emitidas pela Instituição. Há três volumes que cobrem diferentes períodos.73 – GPL. Livro do copiador. 27 jan. 1840.74 – GPL. Livro do copiador. 24 jul. 1840.75 – GPL, loc. cit.

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Com a mesma acuidade que procederam com o acervo bibliográfi-co a Comissão de Seleção observou os periódicos. Contudo, pela docu-mentação examinada, não fica muito claro os critérios que aplicam para seleção. Notamos que embora nas Actas haja menções de assinaturas de periódico na França76 e em Buenos Aires77, seus títulos não foram arrola-dos no Catálogo de 1844. Dessa maneira resta a dúvida se não foram assi-nados ou se a assinatura durou até a composição do Catálogo, pois havia o hábito no Gabinete de assinarem por um ano apenas para que pudessem apreciar os periódicos78.

Na citação a seguir vemos o esboço de possíveis critérios quanto ao assunto dos periódicos:

[...] Deliberou a Directoria que se mandasse subscrever em Portugal os seguintes Periodicos : em Lisboa: Diario do Governo 1 Exp. Na-cional 1 Exp. Examinador 1 Exp, no Porto: Vedeta 1Exp. Artilheiro 1Exp: e alem destes todos os periodicos mensaes ou de mais extenso prazo, scientificos, litterarios, industriaes que se publiquem na Capi-tal, e nas províncias de Portugal79.

É possível depreender desse relato que a primeira opção é assinar folhas portuguesas e brasileiras, consequentemente em língua vernácula.

A respeito da assinatura de periódicos, no Relatório de 1837 foram ponderadas questões extremamente claras e pragmáticas, como o caráter transitório desse meio de leitura.

[...] seria absurdo empregar todos os annos huma avultada soma do ca-pital da Sociedade na leitura accidental e momentânea de periódicos, distrahindo assim dos objectos de leitura permanente e aniquilando, em poucos anos a totalidade do mesmo capital80.

76 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 14 jun. 1837.77 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 26 jul. 1837.78 – GPL. Livro do copiador. 24 jul. 1840. Conjunto de cartas emitidas pelo GPL de 1837 a 1868. Esse documento foi de grande valia para a confirmação de alguns aspectos referente às negociações com o mercado livreiro em Portugal, e ainda, revelou detalhes do perfil dos acionistas da Instituição em seu papel de leitores.79 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 6 jun. 1837.80 – GPL. Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade [...]. Op. cit., p. 9.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

Num momento em que estavam preocupados com o estabelecimen-to de rendas da Instituição é compreensível essa ponderação. Todavia, decidiram que “instava que se mandasse subscrever, ao menos, alguns periódicos da Europa, a tempo de poderem estar aqui quando se abris-se o Estabelecimento”81. Não vemos que nessas considerações houvesse desinteresse ou somenos para os periódicos, antes, parecia representar uma questão de prioridade alicerçada em critérios de seleção que haviam estabelecido. Ao estabelecer que deveriam fazer “subscripções, mas em menor escalla” tinham em mente a adequação à “proporção com as ren-das presumíveis do Estabelecimento, nos primeiros tempos”82. Assim não se furtariam por muito tempo – em suas próprias palavras – “d’aquelle objecto interessantíssimo de leitura”83.

Desta maneira ficou estabelecido que

[...] por ora [fizessem subscrever], somente três periódicos de Lis-boa, dois do Porto, e dois de Londres; e determinou-se mais, que se subscrevesse dois em França, e hum em Buenos Ayres; todos dos que costumão trazer mais amplas e verídicas noticias commerciaes e polí-ticas, como podereis ver da relação de seus títulos e deliberações nas actas respectivas. Os periódicos brazileiros, devem ser assignados, logo que se determine a abertura do Gabinete84.

Em alguns casos, a análise das Actas revelou deliberações para assi-natura de periódicos baseados em critérios de relevância e interesse. Em algumas nesgas de informação é possível entendê-los, como por exem-plo, a seleção de títulos franceses

[...] o Sr. Thesoureiro informou a Directoria que nesta semana espe-rava concluir as bases da encomenda dos Periodicos Franceses e q na seg.te Sessão daria conta de seus trabalhos e das condicções com se poderá realizar a remessa do Catalogo dos Livros de França85

81 – GPL. Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade [...]. Op. cit., p. 9.82 – GPL. Loc. cit.83 – GPL. Loc. cit. 84 – GPL. Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade [...], pp. 7-8.85 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 24 out. 1837.

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Com base na demanda e nas necessidades dos leitores, um exemplo digno de ser destacado consta na Acta de 23 de fevereiro de 1838, quando a:

[...] Directoria tomando em considerção a rogativa de hum de seus Socios em Assemblea Geral, e appoiada por todos os mais Accionistas presentes naquella reunião deliberou que o Sr. Thesoureiro mandasse comprar pª uso do Gabinete “hum mappa geral de Portugal em gran-de” e fisesse assignar em Lisboa e Porto os Periodicos Commerciaes daquellas Praças [...]

Esse exemplo de seleção por demanda teve característica delibera-tiva, pois assim que a “rogativa” chegou aos diretores – e note-se, surgi-da na Assembléia Geral –, esses prontamente determinaram a assinatura. Uma silhueta do tipo de usuário daquela coleção é igualmente identifi-cável ao solicitarem “Periodicos Commerciaes” de Lisboa e do Porto. Esses acionistas estavam certamente desejosos de estar informados sobre o que ocorria em âmbito comercial daquelas Praças, nas quais mantinham negócios.

A procura pelas notícias era muito grande entre os leitores do Gabi-nete. O Tesoureiro Luís Miguel Afonso declarou na Sessão da Diretoria que os acionistas que ficaram sabendo da chegada de periódicos de Lis-boa e da Inglaterra “mostravão grande desejo de ler essas folhas”86.

Outro exemplo é a cópia de uma carta transcrita no Livro do Copiado destinada ao Thomas José Pereira Lima, agente do Gabinete em Lisboa, revela aspectos desse público:

[...] enquanto a falta de periodicos pelos navios estrangeiros que os não trouxerão bem se vio que alguma coiza sobrenatural teria dado occasião a esta falta, porem a Directoria espera que Vsª alem de Cor-retor dos despachos em quem confiou se previna pelo meio que mais bem se lhe prorcionar afim de lhe não escapar occasião alguma taes remessas, e ainda quando hajão de sahir este porto, duas ou mais em-barcações no mesmo dia, repetir em todas as remessas de periodicos, para evitar a esta administração o desgosto de dar satisfações a tantos

86 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 20 nov. 1837.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

concorrentes que no acto da chegada de navios procurão as noticias recebendo grande descontentamto quando as não alcanção, e toda a despeza extraordinaria q neste objecto fizer a Directoria lhe leva a em conta87.

É factível supor que dentre esses que esperavam ansiosos, estavam os leitores das folhas comerciais e literárias. Enquanto os primeiros bus-cavam as notícias atualizadas no âmbito comercial para seus negócios aqui e fora, os últimos queriam informações sobre os últimos impressos vindos à luz nas tipografias europeias.

Ultrapassando o limite cronológico deste artigo, não podemos dei-xar de ressaltar os métodos aplicados pela Diretoria. Estavam atentos à demanda e a possíveis desinteresses dos leitores por algumas folhas. No primeiro exemplo, certamente que após uma avaliação88, decidiram ven-der alguns periódicos:

Directoria tomou as seguintes resolucções afim de se lhe dar anda-mento: Pedir por meio de circulares á imprensa Portugueza, para en-viar ao Gabinete o seus jornaes. Vender a peso os jornaes á excepção do Jornal do Commercio – Diario Oficial – Diario do Governo – Jor-nal do Commercio de Lisboa e Commercio do Porto, que se devem continuar a colleccionar – e encadernar89.

Já o segundo exemplo, a avaliação resultou no cancelamento da as-sinatura de periódicos para o ano seguinte:

Deliberou a directoria que em vista da pouca leitura que tem algumas das revistas scientificas se supprimam algumas nas assignaturas para o anno de 1891. Do pedidio que á imprensa portugueza se fez em circular de 14 de setembro ultimo já tem sido enviados 37 differen-tes jornaes sendo: Gazeta das Alfândegas – Liberal – Estremonense – Commercio de Portalegre – Verdade – Luta – Autonomia – Bombeiro Portugues – [...] – Correio do Porto – Provincia – Revista de Direito

87 – GPL. Livro do copiador. 18 nov. 1839.88 – Até o momento não conseguimos localizar os critérios que aplicavam para este des-carte.89 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 28 maio 1890, grifo nosso.

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Commercial – Os Gatos – Povo d’Aveiro – Jornal do Povo – Cruz e Espada – Folha da Manhã – Jornal de Bastos – Cartagiense – [ilegí-vel] – Primeiro de Maio – Jornal de Santo Thyrseo – Aurora do Lima – Melgarense – Alto Minho – Districto de Villa Real – O Povo de Chaves – Commercio de Chaves – Regoense – Liberdade – Progresso – O Novo Tempo – Jornal de Bastos”90.

Retomando o rumo na redação após essa digressão, o quadro a seguir ilustra os periódicos arrolados no Catálogo de 1844. Note-se a ausên-cia de títulos em outros idiomas além do português, a preponderância de Lisboa e Rio de Janeiro em número, e a variedade quanto aos assuntos das folhas. E ainda, a seleção foi feita tomando por base os jornais mais importantes. Enfim, não vamos nos perder em comentários alongados a respeito da representatividade de alguns títulos, para as intenções desse trabalho a simples ilustração será suficiente para cumprir nosso objetivo.

Quadro 4: Procedência e título de periódicos91

LISBOA PORTO PERNAMBUCO RIO DE JANEIRO

O Diario do Governo Periódico dos Pobres Diario de Pernambuco Jornal do Commercio

A Revolução de Setembro Coalisão Diario do Rio de Janeiro

O Patriota Noticiador Commercial Portuense Sentinella da Monarchia

Folha Commercial Revista Litteraria Portuense O Brasil

O Panorama O Echo do Rio

O Ramalhete O Pharol Constitucional

O Archivo Popular A Gazeta dos Tribunaes

O Universo Pittoresco Minerva Braziliense

90 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1880-1897. 11 dez. 1890. 91 – O Despertador foi o único título arrolado no Supplemento. A respeito desse jornal, fundado em 1836, escreve Martins (1913, pp. 12-16) “nesta cidade [Rio de Janeiro], uma pleiade de jornalistas brazileiros, educados nas idéias democraticas da França, á cuja frente estava Francisco de Salles Torres Homem, uniu-se aos vultos mais illustrados da emigração, representados pelo Dr. [Marcelino da] Rocha Cabral, e fundaram o Desperta-dor, folha diaria de esplendida redacção, que por um momento abalou a gigantesca força do Jornal do Commercio, a folha mais notável da época [...]. As lutas da maioridade em que o Despertador se envolveu, a precoce actividade de alguns empregados do Jornal que mais tardese distiguiram na administração, e a falta de tino dirigente, deram em terra, no fim de 1841, com aquella brilhante e esperançosa folha. Cabral perdeu na empreza toda a sua fortuna particular e os auxilios de seus amigos, e teve de se ausentr para a cidade de Diamantina, em Minas, onde advogou até 1849 [...]”.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

O Archivo Theatral Jornal do Instituto Historico Geographico Brazileiro

Bibliotheca Familiar Revista Medica Flumi-nense

Quadros de Historia Por-tugueza

O Novo Tempo

Factos memoraveis do Márquez de Pombal

Gazeta Universal

Revista Universal Lisbo-nense

O Despertador

Biographia das Persona-gens Illustres de Portugal

O Recopilador, publicação encyclopedica: por uma Sociedade

Galeria das Ordens Religio-sas e Militares

Fonte: GPL. Catalogo dos livros do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro seguido de um supplemento das obras entradas no Gabinete depois de começada a impressão.

Rio de Janeiro: Typ. Americana de I. P. da Costa, 1844

Em sua tese, Nelson Schapochnik comenta o resultado da seleção de livros feita pelos fundadores: “Seria de estranhar que os membros deste espaço de leituras e sociabilidades fundadas na sagração da cultura portu-guesa optassem pela formação de uma biblioteca que não contemplasse o caráter identitário da instituição”.92

Além do evidente interesse de exortar às glórias portuguesas, tão exaltadas nas Actas da Diretoria e nas Sessões do Conselho Deliberativo, havia também a necessidade – como já nos referimos – de um espaço de leitura para o que se produzia em Portugal. O que pode justificar o afã de possuírem no acervo obras atualizadas.

Cabe aqui um adendo sobre as obras raras. Embora focada na se-leção de obras modernas, a Comissão não deixou de lado esse tipo de acervo. Naquele período a aquisição de “códices importantes e raros” era

92 – SCHAPOCHNIK, Nelson. Os jardins das delícias: gabinetes literários, bibliotecas e figurações da leitura na corte imperial. 1999. Tese (Doutorado em História) – Univer-sidade de São Paulo, São Paulo, 1999, f. 105.

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relativamente fácil, assim foi adquirido um grande volume de obras clás-sicas “primando nas acquisições dos seculos XVI até o XVIII” 93

Praticamente um ano após a apresentação dos critérios de formação do acervo explicitados no Relatório de 1837 na sessão de 20 de agosto de 1838 houve a seguinte proposta:

[...] o Snr. Thesoureiro Martins, propóz verbalmente que havendo no Gabinete alguns livros, que ficarão inúteis, pelo pouco ou nenhum uso que delles se fazia, se tornava conveniente reduzillos a dinheiro, para com o seu producto, e com o dinheiro que há em caixa, fazer emprego de boas obras, se sendo esta idêa reforçada pelo Senhor Director, sô-bre livros inuteis, que não está nos Cathalogos, concordara todos, na sua doutrina, e que para levar a effeito do modo mais licito, e convi-niente, deixará ao Sr. Bibliothecario a ação de indicar, quaes as obras inuteis, para proceder de conformidade no que estiver em armonia com os Estatutos94.

Essa classificação de “inúteis” não implica livros “estragados”, pois não os colocariam à venda. Cremos que poderiam ter recebido essa deno-minação com base nos critérios de seleção, uma vez que, como vimos em outra parte deste artigo, recebiam grande quantidade de livros em doação.

Essa atenção por parte dos membros do Gabinete pode ser justificada também pela falta de espaço que dispunham para um acervo que crescia progressivamente. Por essa época estava sediado na Rua São Pedro, nº 83. A citação ainda denota a hierarquização de competência, no momento que o Diretor propõe que o bibliotecário, José de Almeida e Silva, pro-ceda à visão da seleção.

Outro exemplo data de 6 de fevereiro de 1845. Na ocasião começa-vam as negociações para a compra do terreno para construção do edifício próprio do Gabinete. Por medida de contenção de despesas a diretoria deliberou que fossem suspensos a compra de livros, aplicando um crité-

93 – BARROS MARTINS, op. cit., 1901, pp. 25-26. 94 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 20 ago. 1838.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

rio ao especificar “com excessao a livros portugueses antigos e outros a ponderar”95.

Em 1848 um cronista do periódico da corte, Íris relata a situação do acervo do gabinete de leitura criado pelos portugueses. Na descrição podemos perceber o reflexo do desenvolvimento das coleções da Insti-tuição. Quem escreve o texto nos fornece uma informação preciosa ao mencionar que é grande a presença de “litteratura classica portugueza”, o que ilustra concretização dos critérios elaborados pela comissão de sele-ção composta em 1837:

[...] vulgarizou se o gosto da leitura, que tem ido n’um espantoso aug-mento progressivo; e os recursos bibliographicos vão também cres-cendo, em proporção com as necessidades intellectuais. Ornam aque-llas estantes centenas de livros raros, preciosos ou úteis, mormente da litteratura classica portugueza, que virá, com o tempo, e se continuar com igual fevor, a ter alli um de seus mais opulentos repositórios. A litteratura (especialmente franceza e latina) esta alli dignamente repre-sentada, com os auxílios que aquella livraria offerece96.

Desta feita, a atenção da diretoria do Gabinete Português de Leitura e da Comissão para a criação da sua “Política de Seleção” foi gratulada ao correr dos decênios quando a pequena biblioteca nascida na Rua Direita, nº 20 se transformou por antonomásia na Biblioteca Portuguesa do Brasil – como proclamou um dia Eduardo de Lemos97 – e em metáfora de um verdadeiro “Palácio de Livro”98.

95 – GPL. Actas da Sessão da Diretoria. 1837-1847. 6 fev. 1845.96 – ÍRIS apud SCHAPOCHNIK, op. cit., p. 114, grifo nosso.97 – Em discurso proferido na sessão da diretoria, em 18 de junho de 1879, o então presi-dente do GPL, Eduardo de Lemos, referiu-se à Instituição nestes termos. O conteúdo está transcrito em: MONTORO, Reinaldo Carlos. Noticia histórica do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro fundado em 1837. In: CAMÕES, Luiz. Os Lusíadas. Lisboa: Na Officina de Castro Irmão, 1880. pp. 419-420. (Edição consagrada a commemorar o Terceiro Centenario do Poeta da Nacionalidade Portugueza pelo Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro). 98 – SCHAPOCHNIK, op. cit., p. 114.

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Considerações finais

Como lugar de memória, como vetor de transmissão de saberes e herança cultural, o GPL se perpetuou e, apesar de fugir do modelo dos gabinetes franceses e até mesmo dos congêneres portugueses, foi um dos poucos que restaram fieis à proposta inicial dos fundadores, sem que hou-vesse um engessamento de ideias. Ficam as questões: será que isso teria acontecido se fosse apenas criada uma associação de cunho político? Será que o livro e a marca da biblioteca não contribuíram para o sucesso dessa Instituição? Será que graças a esses dois elementos o GPL adquiriu um poder muito maior que qualquer outra associação lusa (referimo-nos ao período estudado)?

Christian Jacob considera que

Lugar de memória nacional, espaço de conservação do patrimônio intelectual, literário e artístico, uma biblioteca é também o teatro de uma alquimia complexa em que, sob o efeito da leitura, da escrita e de sua interação, se liberam as forças, os movimentos do pensamen-to. É um lugar de diálogo com o passado, de criação e inovação, e a conservação só tem sentido como fermento dos saberes e motor dos conhecimentos, a serviço da coletividade inteira99

Neste artigo, além de apresentar aspectos históricos do GPL, nosso objetivo foi o de (alicerçados nas fontes) compreender alguns meandros desse “Palácio de Destinos Cruzados”. No livro de Ferreira, os “Palácios” referem-se às bibliotecas públicas e particulares que compunham circui-tos de sociabilidades no Rio de Janeiro, de 1870 a 1920; apropriamo-nos no singular do título do livro para indicar os destinos de alguns portu-gueses imigrantes que passaram pelo GPL em diferentes épocas, assim como dos brasileiros e descendentes que contribuíram para a consecução dos planos de José Marcelino da Rocha Cabral; João Joaquim Pestana; Francisco Eduardo Alves Vianna; Luiz Miguel Afonso; José de Almeida e Silva; Joaquim José Pinto de Lima; Agostinho Correia d’Azevedo, todos

99 – JACOB, Christian. Prefácio. In: O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000, p. 9.

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A formAção do Acervo do GAbinete PortuGuês de LeiturA no sécuLo XiX

empenhados em transformar a instituição que fundaram em Palácio, onde a cultura portuguesa estaria representada.

Texto apresentado em setembro/2012. Aprovado para publicação em dezembro/2012.

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A PRIMEIRA REPÚBLICA E A POLÍTICA DE EMIGRAÇÃO

THE FIRST REPUBLIC AND THE EMIGRATION POLICIES

MíriaM haLPerN Pereira 1

Centenas de camponeses do Alentejo invadiram as ruas da Baixa Bombalina de Lisboa, na última semana de fevereiro de 1911. Prepa-ravam-se para embarcar no vapor inglês Orteric, onde já se encontra-vam camponeses de Trás-os-Montes, embarcados no Porto. Em Cádis, juntar-se-lhes-iam cerca de mil galegos. Navegariam em direcção às ilhas Sandwich (actual Havai).2 Os principais jornais da capital, O Século e 1 – Professora Catedrática (aposentada) do Instituto Universitário de Lisboa. (ISCTE--IUL). Centro de Estudos de História do ISCTE-IUL. Portugal.2 – A emigração para Havaí iniciada na Madeira em 1878 foi objeto de um tratado provi-sório em 1882 (D.G. 15 de Novembro), na sequência da visita do Rei Kalakua à Corte em Lisboa. Este tratado esteve em vigor até 4 de março de 1892 e envolvia também Portugal continental. Esta corrente emigratória continua a ser mal conhecida, não está discriminada nas estatísticas nacionais, provavelmente por estar integrada no destino dos EUA, aos

Resumo:Delimitar a fronteira entre emigrante e simples viajante é hoje um procedimento corrente, mas não foi assim no passado. Na Europa ocidental entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial, a li-vre circulação de pessoas acompanhou o livre--câmbio de mercadorias. Nem o passaporte nem o visto eram necessários para viajar entre os países europeus. Contudo, nos países do sul da Europa, onde a emigração atlântica ameaçava estancar o crescimento demográfico, a questão colocou-se sob um prisma diferente, muito es-pecialmente naqueles em que se gizavam novos projetos coloniais. No início do século XX, a delimitação entre emigrante e viajante tempo-rário adquire forma jurídica em Itália, Espanha e Portugal. É nesse contexto que a análise da política da Primeira República é equacionada neste artigo, nomeadamente as leis de 1919, que abordam as principias vertentes da emigração. e introduz de forma definida a responsabilida-de do Estado neste domínio, atitude nova que ficou ancorada na sociedade portuguesa com a Primeira República.

Abstract:To establish the boundaries between an emi-grant and a regular traveler is, nowadays, a normal procedure. However, that was not the case in the past. In Western Europe, during the period from 1870 through the First World War, free circulation of people followed free trade. There was no need for passports or visas to travel among European countries. However, in Southern Europe countries where Atlantic emi-gration began to threaten demographic growth, the issue was seen under a different light, espe-cially in those countries where colonial projects were being developed. In Italy, in Spain and in Portugal, at the beginning of the Twentieth Century, the distinction between emigrant and temporary traveler was subjected to juridical interpretation. It is in that context that this pa-per will attempt to analyze the emigration poli-cies of the First Republic, namely, the 1919 laws which deal with the main aspects of emigration and definitely assume the clear responsibility of the State regarding this matter. This new attitude linked Portuguese society to the First Republic.

Palavras-chave: Política de emigração; Primei-ra República; Liberdade de circulação de pesso-as; Passaportes.

Keywords: Emigration Policy; First Republic; Free Circulation of People; Passports.

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MíriaM haLPerN Pereira

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O Mundo, publicaram na primeira página com grande destaque, em três dias sucessivos, artigos ilustrados de fotografias de Joshua Benoliel, re-tratando famílias andrajosas com crianças de colo, retomadas também na revista quinzenal Brasil-Portugal. Incentivados por engajadores, ha-viam vendido as suas leiras e casas em busca do Eldorado, nalguns casos enganados acerca do destino final. Uma pequena parcela de emigrantes, ainda em Lisboa, desiludidos em face do incumprimento dos contratos prometidos, regressou às suas terras.3 A imprensa cumprira a sua missão de alertar para esta situação deplorável. Nos dias seguintes, noticiava já os festejos do Carnaval. A miséria dos emigrantes, nomeadamente dos que partiam para as ilhas Sandwich, impressionou vivamente os con-temporâneos: Afonso Costa refere-se-lhe na sua obra sobre a emigração publicada em 1911, evocando as fotografias publicadas na imprensa, já mencionadas. Também Fernando Emídio da Silva referir-se-ia a esta cor-rente emigratória, que consideraria sem qualquer benefício para Portugal.

Logo a seguir ao advento da República, nos anos 1911, 1912 e 1913, a emigração, em que continuava a predominar o destino brasileiro, atin-giu números assustadores, chegando a duplicar em dois anos, entre 1910 e 1912.4 Tão repentino crescimento está relacionado em larga medida com a concomitante diminuição da emigração de Itália para o Brasil, após a proibição da emigração subsidiada naquele país. Este fenômeno de substituição de italianos por portugueses traduziu-se por um salto brutal, mesmo relativamente aos montantes já elevados e em crescimento con-tínuo durante os vinte anos anteriores. Só na década de 1960 se repetiria

quais a República do Havaí foi anexada em 1898. Estudando fontes regionais, Sacunta-la de Miranda não contempla essa hipótese, considerando que a emigração micaelense termina no final do século XIX (MIRANDA: 1999, capítulo IV). O surto continental de 1911-12 parece ser novidade e marca em qualquer caso um pico, sendo daí em diante este destino cada vez ainda menos escolhido, até desaparecer nos anos 1920. Aliás, entre 1890-1914, metade dos chegados reemigravam para a Califórnia, devido à queda dos salários sob o efeito da vinda crescente de trabalhadores orientais. Sobre tudo isto ver: DIAS: 1981; SILVA: 1996.3 – O Século e O Mundo, dias 22, 23 e 24 de fevereiro de 1911; revista Brasil-Portugal, 1º de março de 1911.4 – 1912: 88.929 emigração legal, 95.154 com emigração clandestina, segundo BAGA-NHA: 1991, 723-739.

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aumento comparável na emigração legal, então até ultrapassado quando adicionado à emigração clandestina, que nessa época adquiriu proporções muito elevadas, por vezes superior à saída legal. No início do século XX, este crescimento brutal foi acompanhado do aumento também da emigra-ção familiar, que se viera avolumando desde a década de 1890, tornando a partida massiva de portugueses uma forte ameaça demográfica e finan-ceira. O risco de despovoamento ameaçava o futuro de algumas regiões.

Que fizeram os diferentes governos da Primeira República em face desta esta situação de calamidade? A principal contribuição da Primeira República residiu no enquadramento jurídico e administrativo da emigra-ção. A orientação escolhida, como já vinha sucedendo, visava conciliar a articulação entre o princípio genérico de liberdade de circulação de pes-soas, orientação dominante entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial na Europa ocidental, e a necessidade nacional de contenção e fiscalização da emigração, para evitar a catástrofe demográfica e tentar canalizar a emigração para as colônias. No projeto da Constituição de 1911, no artigo 54º sobre direitos de liberdade e segurança do indivíduo e da propriedade, definia-se a liberdade de entrada e saída do país em tempo de paz na alí-nea 16, invocando-se a necessidade de futura legislação específica neste domínio.5 Contudo, o debate conduziu a uma alteração significativa. Na Constituição de 1911 considerou-se desnecessário evocar especificamen-te a liberdade de emigrar, consagrada constitucionalmente desde 1826 (exceptuados o curto período de vigência da Constituição de 1838, de 1838-1842). Entendeu-se ser suficiente, caso fosse necessário, a sua ulte-rior explicitação eventual à luz do artigo 4º do texto constitucional, onde se afirmava que a especificação de garantias e direitos não significava a exclusão de outros direitos, resultantes da forma de governo ou de outras leis.

A dispersa herança jurídica da monarquia neste domínio da emigra-ção carecia de reorganização e revisão. Várias leis, portarias e circulares avulsas e acordos bilaterais haviam sido publicadas desde meados do sé-

5 – Diário da Assembleia Constituinte, Projecto lei n.º 3, 6 de Julho, p. 13.

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culo XIX e em maior número desde 1870, acompanhando o próprio cres-cimento da emigração. As suas lacunas foram sucessivamente criticadas em sede parlamentar por Luciano Cordeiro, entre outros, apontando-se as insuficiências da regulamentação do processo emigratório. A emigração foi alvo de análise e crítica em numerosa bibliografia.

Desde 1871, prevalecia a dispensa de passaportes na entrada e saí-da do país de estrangeiros, reafirmada em 1896.6 Foi neste contexto que se situou a lei de 1907, a última intervenção jurídica nesta matéria, no quadro político da monarquia constitucional. Esta lei não correspondeu às necessidades existentes. Embora se baseasse parcialmente no trabalho de uma comissão parlamentar, rejeitou-se a proposta de isenção total de passaporte nela enunciada. Inspirando-se na legislação italiana, optou--se por introduzir a definição de emigrante, obrigado a deter passaporte, distinguindo este grupo do viajante isento. De início, este filtro social na circulação internacional valeu a esta lei o epíteto de “escandalosa”. Afon-so Costa apelidou-a de “desprezível”. Esta diferenciação entre viajantes e emigrantes estava, contudo, destinada a perdurar até hoje. Por sua vez, as carências da lei de 1907, que não abarcava os múltiplos aspectos da emigração, como o transporte ou o negócio do engajamento, foram alvo de persistentes críticas por parte de ensaístas e políticos, como Emídio da Silva e Afonso Costa, e membros do corpo diplomático, como Bernardino Machado.7

A primeira medida republicana foi muito restrita. A publicação das instruções de 1912, durante o governo de Duarte Leite, que acumulava a responsabilidade da Presidência e do Ministério do Interior, apenas al-mejaram esclarecer as dúvidas suscitadas pela aplicação da lei de 1907, quanto à definição de emigrante e viajante e a situação daí decorrente em face da obrigatoriedade de passaporte.8 Outros diplomas sobre o re-

6 – Dispensa de passaportes na entrada e saída do país de estrangeiros, decreto de 17 de Julho de 1871, reafirmada na carta de lei de 23.04.1896, artigo 1º, alínea única.7 – COSTA: 1911; SILVA: 1917; Bernardino Machado, Correspondência da Legação no Rio de Janeiro, 1913, in PEREIRA: 2002, 336-39.8 – Instruções de 25 de Novembro de 1912, sobre a interpretação deste artigo e suas alíneas, e ofício do ministro do Interior de 22 de Novembro de 1907, para efeito de fisca-

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crutamento militar, em consonância com o ambiente de guerra dos anos subsequentes, vieram alterar o limite etário de concessão de passaporte e de bilhete de identidade.

Só no pós-guerra, durante o governo de José Relvas e sendo minis-tro do Interior Domingos Leite Pereira, a lei de 10 de maio de 1919 e o respectivo regulamento, publicado logo de seguida a 19 de junho, quando Domingos Leite Pereira já era primeiro-ministro, vieram fornecer um ins-trumento orientador muito completo e pormenorizado. Retomando e sin-tetizando as diversas disposições, tomadas nas décadas precedentes em leis e portarias avulsas, introduzindo além disso algumas significativas inovações institucionais, este diploma constitui a mais completa lei sobre a emigração publicada em Portugal: é um autêntico código da emigração. Embora tenha feito parte do surpreendente pacote jurídico de 340 leis, publicado a 10 de maio de 1919, em 30 sucessivos suplementos do Diário do Governo, pacote jurídico apelidado na época de instrumento de propa-ganda política, esta lei traduz um evidente trabalho prévio de preparação e teve uma duração razoável.

O conceito de emigrante e a diferenciação social a ele associada, tão criticados precedentemente, vai continuar a ser o eixo definidor essencial. No cerne da distinção entre viajantes, isentos de passaportes independen-temente da sua proveniência nacional, como era usual na Europa antes da Primeira Guerra Mundial, e a categoria de passageiros obrigados à posse de passaporte, encontra-se a definição de emigrante. Conceito circunscri-to socialmente na legislação, recobre essencialmente o universo de indi-víduos de ambos os sexos, detentores de passagens marítimas de terceira classe, mas não exclusivamente. Aqui cabia, é certo, a parcela maior do contingente emigratório. Contudo, nas franjas situavam-se os emigrantes com mais posses, inserindo-se na categoria de emigrante também deter-minados tipos de passageiros nacionais de primeira e segunda classe ou classes intermediárias (designação dada à terceira classe melhorada), que é interessante especificar. Aqui se situavam os nacionais cujo objectivo

lização policial a bordo dos navios.

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era a instalação permanente noutro país. Constitui um interessante indício da frequente promoção social que acompanhava o reagrupamento fami-liar, o fato de também se incluírem no grupo de passageiros de primeira e segunda classe ou terceira melhorada as mulheres casadas desacompa-nhadas dos maridos – que representavam 36% das mulheres migrantes em 1910-1919 –, excetuando-se apenas os casos de divórcio e separação. Também estavam incluídos os menores de 14 anos, desacompanhados dos pais ou de tutores – que representaram 26% nesses anos – e ainda as mulheres viúvas.9 Igualmente se inseriam nesta categoria os homens sujeitos ao serviço militar, com idade inferior a 45 anos.

Havia duas categorias de emigrantes que permaneciam isentos de passaportes. Em consonância com a continuidade da política colonial mo-nárquica, os nacionais que se destinassem aos portos de África, subme-tidos ao domínio colonial português, continuavam isentos de passaporte, como vinha acontecendo desde 1907. Considerava-se esta deslocação equivalente à circulação de pessoas realizada em território nacional.

Na emigração sazonal da agricultura e da pesca entre Portugal e Es-panha e também na circulação entre ambos países de operários contra-tados, dispensava-se igualmente o passaporte, sendo apenas necessária a emissão de guias emitidas gratuitamente pelas autoridades locais. A importância da corrente emigratória entre os dois países vizinhos, ainda pouco estudada, traduziu-se por disposições legislativas sucessivas, evo-cadas na lei de 19 de junho de 1919.10

Este tipo de emigração encobria com frequência a fileira de emigra-ção clandestina pelos portos marítimos de cada um dos países, porventura com maior incidência nos portos espanhóis. Por isso, a dispensa genérica

9 – PEREIRA: 2002, 117.10 – Em particular : Regulamento aprovado pelo Convénio de 5 de Julho de 1894, art.º 25º e acordo bilateral de 19 de Janeiro de 1897, evocados no decreto 5886 de 19 de Junho de 1919, art.º 1º, alíneas 5,6 e 7 &1º. Em 1923, a falta de mão de obra veio a determinar a suspensão da concessão de salvo-condutos a ceifeiros (Portaria 3570 de 23 de Maio de 1923). Uma das raras análises desta corrente migratória in Borges, Marcelo Chains of Gold, Portuguese Migration to Argentina in Transatlantic perspective, Leiden-Boston, 2009, pp. 84-96.

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de passaportes concedida aos estrangeiros foi objeto de limitação bilate-ral mediante acordo com Espanha em 1897 (19 de janeiro), estipulando--se a obrigatoriedade de passaporte e atestado consular para os cidadãos de ambos os países para embarque nos portos do respectivo país vizinho, acordo reafirmado em 1919.11 Com idêntica finalidade, limita-se a con-cessão de passaportes pelos agentes consulares apenas aos portugueses residentes há mais de seis meses na Espanha.12

A eclosão do conflito mundial em 1914 havia perturbado os circuitos de circulação de pessoas, conduzindo à generalizada obrigatoriedade dos passaportes nos diferentes países europeus, prática que continuou porém a considerar-se como indesejável e anormal. No decreto nº 5.624 de 10 de maio de 1919, a sua dispensa foi evocada como princípio dominante e só quase no final se recorda que essa norma permanecia suspensa até à assi-natura do tratado de paz, como estipulado desde o envolvimento direto de Portugal na guerra em 1916 (decreto de 4 de abril).

A guerra também abrira novos mercados de trabalho, devido à fal-ta de mão de obra ocasionada pelo recrutamento militar em alguns dos países europeus aliados. O acordo com a França deu uma base estável ao surto de emigração de operários contratados para a indústria de arma-mento, de curta duração, que originou a primeira comunidade portuguesa na França. Mais dispersa e descontínua foi a partida de operários para Inglaterra, desacompanhada de acordo governamental.13

As condições de transporte dos emigrantes era, desde longa data, objeto de preocupação por motivos sanitários e humanos. Entre as reco-mendações enunciadas em 1919, destacam-se a proibição de maus-tratos corporais, a garantia de condições higiênicas e da separação de sexos no alojamento, de alimentação de qualidade e em quantidade suficien-te e também a obrigatoriedade de assistência médica a bordo, na linha higienista da época. O incumprimento destas medidas autorizava agora

11 – Decreto regulamentar nº 5.886 de 19 de Junho de 1919 nos art.os já referidos.12 – Lei de 10 de Maio de 1919, art.º 4º, alínea 1.13 – ALVES: 1988; ALVES et al.: 1992.

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explicitamente reclamação por parte dos interessados: representava a afir-mação do direito de cidadania dos emigrantes neste âmbito, o que cons-tituía novidade significativa. Outra preocupação expressa era garantir o repatriamento gratuito dos indigentes.

O contexto empresarial da emigração desde longa data preocupou os círculos governamentais, por lesar com frequência os interesses dos emigrantes. Da repressão à tolerância, chegara-se à atitude mais adequa-da de criar um enquadramento jurídico apropriado desde final do sécu-lo XIX. O reconhecimento da relevância administrativa do conjunto do processo emigratório conduz, pela primeira vez, à criação de um órgão centralizador dos diferentes aspectos da emigração em 1919, atribuída ao então instituído Comissariado Geral dos Serviços da Emigração, de-pendente da Direcção da Segurança Pública do Ministério do Interior, sendo as sedes das duas zonas de inspeções em Lisboa e no Porto. A sua função consistia em controlar e fiscalizar todo o processo da emigração, atribuindo-se-lhe o poder de repressão e substituindo a anterior polícia de repressão da emigração clandestina, como em certa medida já o sugeri-ra, em 1913, o Embaixador Bernardino Machado14. Deste Comissariado vai depender, de agora em diante, também o reconhecimento oficial dos agentes de passaportes e de passagens, cuja lista oficial passava a ser pública, figurando obrigatoriamente no Boletim do Comissariado Geral dos Serviços da Emigração, com publicação regular entre 1919 e 1933. A responsabilidade do Estado e a necessidade de um órgão coordenador do processo emigratório no seu conjunto ficará ancorada na sociedade portu-guesa com a Primeira República. A Constituição de 1933 consagrará nas obrigações do Estado a proteção dos emigrantes e o dever de disciplinar a emigração.15 Mas só em 1947 foi criada a Junta da Emigração, que veio ocupar o lugar deixado vago pelo Comissariado Geral dos Serviços da Emigração.

Em vários países europeus a livre circulação internacional dos via-jantes, dominante desde as últimas décadas de oitocentos e apenas li-

14 – Cartas in PEREIRA: 2002, 335.15 – Constituição de 1933, art.º 31º, alínea 4.

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mitada a título temporário devido à guerra, aproximava-se agora do seu termo. Em Portugal, foi restringida em 1920 (9 de setembro) e suspensa em 1924 (decreto 6.912, 13 de maio), tornando-se obrigatório o passapor-te e generalizando-se o visto, excetuando os casos de dispensa definidos em convênios bilaterais. Ressalvava-se a migração para as colônias, que permanecia isenta, e a emigração temporária entre Portugal e Espanha, que se mantinha dependente de controle e documentação local (artigo 7º). A suspensão do livre-trânsito, então enunciada a título provisório, veio a perdurar longos anos.

A política de emigração da Primeira República seguiu as linhas mestras delineadas precedentemente neste domínio. Três preocupações fundamentais orientam a política de emigração desde 1870 a 1930. Arti-cular os interesses financeiros do Estado, mantendo a corrente de divisas provenientes do Brasil, e prosseguir a política de implantação portugue-sa em África, conseguindo deslocar para este continente uma parcela do contingente emigratório. Pretendia-se ainda conciliar estes dois objetivos com os interesses demográficos e econômicos dos empresários do meio agrário e industrial.

A emigração para África permaneceria minoritária, apesar das faci-lidades burocráticas concedidas: primeiro a gratuitidade de passaporte e desde 1907 a isenção dele. Como se pôs em evidência, de Oliveira Mar-tins a Afonso Costa, não existiam condições adequadas para a integração de portugueses em escala comparável ao destino brasileiro. Por sua vez, a clandestinidade de uma parcela significativa da emigração persistiu.

A dimensão dramática da emigração, em que a emigração familiar constituía componente de relevo, com consequências demográficas gra-ves nas décadas subsequentes, não se compadecia apenas com medidas administrativas. O debate político sobre a emigração, além da sua verten-te jurídica, teve uma dimensão econômica e social. Podemos alinhar as soluções propostas em dois grupos: aqueles que associavam o combate à emigração ao desenvolvimento econômico do país e ao reordenamento do espaço agrário (Oliveira Martins, Basílio Teles, Afonso Costa, Emídio

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da Silva, Ezequiel de Campos), e aqueles para quem a solução residia na conversão parcial da corrente emigratória para as colônias africanas. Emblemático desta dicotomia de atitudes foi o debate entre Ezequiel de Campos e José Pequito Rebelo. A emigração permitia limar os pontos de conflito e encobrir a questão agrária, como sublinhou Ezequiel de Cam-pos, economista ligado à esquerda democrática e a quem se deve um dos raros projetos de reforma agrária apresentado na Câmara dos Deputados em 12 de janeiro de 1925, durante o governo de José Domingues dos Santos. Nunca chegou a ser discutido, devido à queda do governo, oca-sionada pelo projeto de lei de reorganização bancária.

O grande latifundiário e partidário do integralismo lusitano, José Pe-quito Rebelo, responder-lhe-ia que “a emigração é um facto espontâneo da nossa condicionalidade demográfica e social”, propondo tão somente uma melhor preparação do emigrante e, em lugar da expropriação dos incultos alentejanos proposta por Ezequiel de Campos, sugerindo o en-corajamento da emigração para África. “Ali poder-se-iam expropriar os negros. […] quanto ao Alentejo não queiramos aplicar-lhe processos de colonização africana”. O projeto colonial é defendido como alternativa complementar da emigração para o Brasil, que se contrapõe ao reordena-mento do espaço agrário.16 A inexistência de resolução dos grandes pro-blemas estruturais do país, que permitisse integrar o excedente demográ-fico no mercado nacional, tornava as medidas de contenção da emigração inoperantes, quanto aos seus objetivos aparentes.

Contudo, determinava orientação e características específicas da emigração, indispensáveis à função econômica e financeira que se lhe queria preservar. A Primeira República não alterou a situação da mulher casada, que continuou a só poder sair com autorização prévia do marido até à década de 1970. A dispersão familiar constituía a garantia do envio de remessas de dinheiro dos emigrantes para as famílias residentes em Portugal, remessas que se haviam tornado num dos alicerces da política

16 – CAMPOS: 1943 [1925]; REBELO: 1931, 45; PEREIRA: 2002, 84-85; PEREIRA: 1994 [1976], 212-215.

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financeira portuguesa. O mito do retorno, de significado demográfico li-mitado, desempenhou uma função financeira decisiva.

Durante sessenta anos, de 1870 a 1930, a entrada de dinheiro brasi-leiro não só constituiu um instrumento de monetarização da vida rural, um estímulo ao investimento na propriedade agrícola e na construção, como exerceu papel determinante na balança de pagamentos portuguesa e na situação cambial. O câmbio brasileiro exercia uma ação permanente no câmbio português sobre Londres, banqueiro comum a ambos os paí-ses.17

As medidas protecionistas do Brasil na sequência da crise de 1929, integradas nas restrições à circulação de capital, proibiram a saída das re-messas, interrompida em 1931. Encerrou-se então um ciclo da economia e da própria política financeira portuguesa. A interrupção das remessas ocasionou a desvalorização acentuada da moeda portuguesa e foi um dos fatores da recessão econômica entre as duas guerras. Como previra Eze-quiel de Campos: “Pode haver um agravamento simultâneo da economia e da finança brasileira a ponto de, pelas más circunstâncias da vida por além-mar, reduzir-se a cifras diminutas a emigração por algum tempo. O país abarrotará de gente e de miséria.” Previsão que se confirmou a breve trecho.

Motivos externos reduziram drasticamente a emigração entre 1930 e 1945, devido à crise de 1929 e à Segunda Guerra Mundial, o que teve dramáticas consequências no nível de vida em Portugal, dada a ausência

17 – PEREIRA: 1983, 261-264. O afluxo de remessas foi tão importante do ponto de vista financeiro que o Estado português instituiu a Agencia Financial do Rio de Janeiro para canalizar as transferências para Portugal, cuja designação exacta passou a ser Agência Fi-nancial contra o Banco de Portugal como Caixa Geral do Tesouro Português, de 1895 até à sua extinção em 1925. A Agência veio juntar-se ao já importante circuito bancário privado que se constituíra essencialmente nos anos 1873-75 (ver PEREIRA: 1983, 257-260). Cál-culo e análise das remessas, anuais e mensais, canalizadas pela Agência Financial entre 1891 e 1924, com base na centena de livros de registros de saques individuais e diários da Agência, existentes no Arquivo Histórico do Banco de Portugal, em PEREIRA: 2002, 57-78.

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de mudanças estruturais que conduzissem à alteração da parte do trabalho no produto interno bruto.

Em meados da década de 1950, o Brasil fecharia as portas à entra-da de analfabetos, como previra quatro décadas antes Afonso Costa, em face das medidas já então tomadas por vários países, como a Austrália. Preconizara então a necessidade da instrução da população, importante também como forma de manter a corrente emigratória. Sem resultados que evitassem, em 1954, o fim do ciclo brasileiro, já afetado pela crise mundial e pela guerra desde a década de 1930.

O direito à liberdade de emigrar, vigente durante o liberalismo mo-nárquico e republicano, fora claramente limitado desde o final do ciclo liberal. Na Constituição de 1933 o direito individual fica explicitamente submetido aos interesses econômicos e sociais do país, em que avulta o objetivo de fixação da população branca nas colônias africanas. O pânico suscitado pelo volume elevado das partidas nas duas primeiras décadas do século XX e as suas consequências demográficas dramáticas, tanto a nível nacional como a nível regional, explicam as medidas fortemen-te cerceadoras do Estado Novo antes da Segunda Guerra Mundial, tanto mais que as transferências de remessas do Brasil haviam sido fortemente cerceadas na década de 1930. Proteger e disciplinar a emigração são pro-pósitos anunciados, tendo prevalecido inicialmente a segunda. A escolari-dade primária (3ª classe) é introduzida como um filtro na lei de 1929. Em 1944, a lei de 5 de setembro vai mais longe: proíbe totalmente a concessão de passaporte ordinário a operários e a trabalhadores rurais, numa expres-são de completo desprezo pelos direitos de cidadania, até neste domínio. A Junta de Emigração, constituída em 1947, vai ser incumbida de fixar quotas de emigração em função das necessidades regionais e sectoriais.

Na década de 60, a orientação iria mudar. Com o novo ciclo de emi-gração, agora europeu, vai-se liberalizar a emigração. A lei de 1962 (29 de junho) ainda mantém o filtro de escolaridade, e a emigração clandesti-na atinge proporções colossais. Após as negociações de acordos bilaterais com os principais países de destino, em que se definem as regalias sociais

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dos emigrantes e também o direito de transferir as poupanças dos emi-grantes para Portugal, em 1965 é despenalizada a emigração clandestina e o nível de escolaridade deixa de condicionar a atribuição de passaporte (Resolução de Conselho de Ministros de 14 de julho).18 António Salazar, que apresentara em prova acadêmica o estudo intitulado O Ágio do Ouro, conhecia bem a importância das remessas nas finanças públicas. O direito de emigrar pouco tinha de ideológico: era uma questão demográfica e financeira.

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18 – Dados in BAGANHA: 1999, excelente síntese sobre a política do Estado Novo nesta matéria. Mas a interpretação aqui apresentada é da minha responsabilidade, não coinci-dindo inteiramente com a apresentada pela autora.

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Texto apresentado em maio/2013. Aprovado para publicação em fe-vereiro/2013.

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A REPÚBLICA PORTUGUESA E O REGRESSO DOS JESUÍTAS À BAHIA

THE PORTUGUESE REPUBLIC AND THE RETURN OF THE JESUITS TO BAHIA

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Há um significado maior com a criação do Colégio Antônio Viei-ra, em Salvador da Bahia, em 1911. É a volta da Companhia de Jesus à Bahia. É a segunda jornada inaciana depois de longa ausência por mais um século e meio, de 1759 a 1911. A primeira permanência começou em 1549, com a vinda dos primeiros jesuítas acompanhando o governador Tomé de Souza, e terminou em 1759, quando o marquês de Pombal os expulsou do reino.

Da perspectiva baiana, há um liame entre as duas jornadas. É o nome do padre Antônio Vieira, o imperador da língua portuguesa, segundo Fernando Pessoa. O grande e brilhante orador viveu, na Bahia, mais da metade de sua vida. É a figura exponencial formada pelo Colégio da Ba-

1 – Mestre e Ph.D. em Educação, pela The Pennsylvania State University, EUA; doutor, docente livre e professor emérito da Universidade Federal da Bahia; titular da Cadeira de Pedro Calmon, na Academia Portuguesa da História, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e emérito do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). E-mail: [email protected].

Resumo:A Companhia de Jesus foi três vezes expulsa de Portugal. A terceira vez resultou do anticlerica-lismo da República Portuguesa, instalada em 1910. Banidos de sua terra, os jesuítas foram para Salvador da Bahia e fundaram o Colégio Antônio Vieira, em 15 de março de 1911. No ano de 2011, o Colégio comemorou o primeiro centenário. A trajetória dos cem anos consta do livro do centenário que narra vidas e histórias de uma missão jesuíta. O artigo ocupa-se ainda do Colégio, na metade do século XX.

Abstract:The Society of Jesus was expelled from Portu-gal three times. The third time was the result of the general anticlericalism of the Portuguese Republic which was installed in 1910. When the Jesuits were expelled from Portugal, they went to Salvador, in Bahia, where they founded the Antonio Vieira School on March 15, 1911. The School celebrated its first centennial in 2011. The lives and stories of the members of the Je-suit Mission are told in a book which was then published. This paper also discusses the role of the School during half of the Twentieth Century.

Palavras-chave: Jesuítas, República Portugue-sa em 1910, Colégio Antônio Vieira, educação particular confessional.

Keywords: Jesuits; Portuguese Republic in 1910; Antonio Vieira School; confessional pri-vate education.

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hia, no século XVII, que denominou o estabelecimento centenário. O nome do patrono liga as duas jornadas, a colonial de dois séculos, e a republicana de cem anos.

A celebração do centenário do Colégio Antônio Vieira, em 2011, atesta a aceitação da comunidade baiana e festeja uma instituição pres-tante de ensino, cultura e fé.2

O Colégio é visto, primeiramente, no contexto das expulsões dos jesuítas de Portugal com reflexos, no Brasil, especialmente, na Bahia, em seguida, percorrem-se as etapas da trajetória institucional do estabe-lecimento com destaque para algumas lideranças jesuítas com vistas à segunda metade do século XX.

As expulsões dos jesuítas de Portugal

Na história da Companhia de Jesus, em Portugal, há três expulsões com efeitos, particularmente, para a Bahia e para o Brasil: a primeira em 1759, a segunda em 1834 e a terceira em 1910.

Primeira expulsão pelo marquês de Pombal

Em 3 de setembro de 1759 o marquês de Pombal, ministro todo-po-deroso de Dom José I, em pleno absolutismo, determinou que os jesuítas fossem “havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efe-tivamente fossem expulsos de todo o país e de seus domínios ‘para neles mais não poderem entrar’” (ARAÚJO, 2010, p. 83).

Em 28 de agosto de 1767, reforçando esta diretriz, “determinou que os membros da chamada Companhia de Jesus, os jesuítas, fossem obri-

2 – O autor foi aluno do Colégio de 1946 a 1953 e, em seguida, morou no Pensionato Mariano Acadêmico, dirigido pelo padre Camille Torrend SJ. O primeiro sentimento que o move quando aceitou o convite do padre Domingos Mianulli, SJ, diretor do Colégio Antônio Vieira, para escrever o prefácio do livro do centenário foi o do reconhecimento. Sentimento que evoca o seu tempo de aluno no Colégio. Tempo que lhe dá credibilidade para acrescentar uma palavra introdutória ao excelente trabalho dos professores Waldir Freitas Oliveira e Edilece Souza Couto. O seu período discente situa-se no meio do século passado, que talvez esteja longe no tempo, mas se encontra bem perto da memória.

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gados a sair imediatamente para fora do país e de seus domínios”. Para Miguel Monteiro (2008, p. 34), relacionando Pombal e os jesuítas, a per-seguição à Companhia de Jesus com várias acusações parece ser a missão mais importante de sua vida.

Na apreciação de Fernando de Azevedo (1964, p. 539), a supressão teve consequências mais profundas para a educação colonial: “Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, o que sofreu o Brasil não foi uma reforma de ensino, mas a destruição pura e simples de todo o sistema colonial do ensino jesuítico.” Extinguiu-se uma organização escolar sem que hou-vesse medidas eficazes e prontas para reparar a descontinuidade e dar prosseguimento. Continua Azevedo: “Não foi um sistema ou tipo pedagó-gico que se transformou ou se substituiu por outro, mas uma organização escolar que se extinguiu sem que essa destruição fosse acompanhada de medidas imediatas, bastante eficazes para lhe atenuar os efeitos ou redu-zir a sua extensão”.

Saíram, porém deixaram marcas e sinais vivos do fecundo trabalho educacional. Por toda parte, encontramos símbolos e vestígios da obra dos inacianos. A cidade do Salvador enobrece-se com a igreja dos jesuí-tas, elevada a monumental Catedral Basílica, conjugada com o prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, outrora o famoso Colégio da Bahia. O noviciado, na Cidade Baixa, é hoje a Escola dos Órfãos de São Joaquim. Na Casa de Oração dos Jesuítas, funciona a Caixa Cultural de Salvador, na Rua Carlos Gomes, também em Salvador. A Quinta do Tanque, onde Vieira passou os últimos anos da vida revendo os seus sermões, alberga o Arquivo Público da Bahia. Permanecem, em Belém da Cachoeira, igreja e ruínas do seminário, fundado pelo padre Alexandre de Gusmão, em 1686, que perdurou até a expulsão dos jesuítas em 1759 (SOUZA, L. 2011) onde estudaram Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o padre voa-dor, frei Antônio Santana Galvão, o primeiro santo brasileiro. Capelas, igrejas, ruínas e mais românticas ruínas que são a todo tempo encontra-das e que comprovam a presença da Companhia de Jesus, na Bahia, em conformidade com Braz do Amaral (1940), na sua contribuição aos 400

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anos de sua fundação. Os sistemas educacionais como as moedas nunca desaparecem de todo.

A Companhia de Jesus só foi restabelecida pela Santa Sé de acordo com a bula do Papa Pio VII em maio de 1815, informa Miguel Monteiro (2010). A revista Brotéria: cristianismo e cultura (PINTO, 2009, pp. 11-112) assinalou os 250 anos da primeira expulsão dos jesuítas – 1759 a 2009.

Segunda expulsão por D. Pedro IV

Depois do banimento da Companhia de Jesus de Portugal e de seus domínios, os jesuítas puderam regressar no curto reinado de Dom Miguel (1826-1834). Em 1834, contudo, Dom Pedro IV, de Portugal, que é o mesmo Dom Pedro I, do Brasil, extinguiu todas as ordens e congregações religiosas existentes por ficarem ostensivamente ao lado do rei D. Miguel, seu irmão, em oposição às suas ideias liberais. Com a vitória das forças liberais, os jesuítas foram atingidos. O decreto de 28 de maio de 1834, promulgado em pleno regime monárquico representativo, extinguiu em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses “todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, institu-to ou regra” (ARAÚJO, 2010, p. 83).

Efetivou-se, assim, a segunda expulsão dos jesuítas de Portugal. No Brasil, entretanto, o governo imperial não fechou as ordens religiosas, mas proibiu o ingresso nos noviciados, causando por inanição a decadên-cia de seminários e conventos.

Todavia, em 1858, os jesuítas regressaram a Portugal. Informa Mar-cus de Noronha da Costa (2004, p. 1.039), constituindo-se a Missão Por-tuguesa, confiada ao padre Rademaker, e, em 1880, restauraram a Provín-cia Portuguesa da Companhia de Jesus, tendo como primeiro provincial o italiano padre Vicente Fiscarelli SJ. Seguem-se a fundação do Colégio de Compolide, em Lisboa, e de outros estabelecimentos. Não somente os inacianos regressaram, como também as demais ordens religiosas a

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exemplo dos beneditinos, que perderam a abadia de Tibães, em 1834, e reconstruíram pouco a pouco a ordem de São Bento, em Cucujães, e depois criaram o mosteiro de Singeverga (SOUSA, 1992).

A terceira expulsão pela República Portuguesa e a volta à Bahia

Pois bem, com a proclamação da República em 1910, que pôs fim ao reinado do jovem monarca Dom Manuel II, último rei de Portugal, os membros da Companhia de Jesus sofreram a terceira expulsão de Portu-gal. As demais congregações, conventos, colégios, associações, missões ou outras casas de religiosos foram extintas, em conformidade com o decreto de 8 de outubro de 1910, apenas três dias depois de proclamada a ordem republicana. O governo decretou que estavam em pleno vigor as leis pombalinas e liberais que expulsaram os jesuítas. Observa Antônio Araújo (2010, p. 84), ao estudar as ordens e congregações religiosas e o direito republicano, que foram expulsos do território da República “todos os membros da Companhia de Jesus, qualquer que seja a denominação sob que ela ou eles se disfarcem, e tantos estrangeiros ou naturalizados, como nascidos em território português, ou de pai e mãe portugueses”. Por sua vez, Miguel Monteiro (2010) acrescenta: “A política anticlerical da República caracterizou-se por um conjunto de leis que precederam a Lei da Separação de 1911. Assim foram banidos os juramentos e as invoca-ções de tipo religioso, incluindo as das escolas [...]”

As medidas foram bem mais severas com os jesuítas, mesmo os que possuíssem nacionalidade portuguesa deveriam deixar o país. Para as de-mais ordens parecem que tão somente os estrangeiros foram expulsos. Os religiosos nacionais deveriam ter uma vida secular e não formar comuni-dades confessionais.

É interessante assinalar que a terceira expulsão, marcadamente anti-clerical, provocou um efeito religioso aposto com a abertura do Colégio Antônio Vieira, em 15 de março de 1911, restaurando, dessa maneira, a Companhia de Jesus, na Bahia e, em Pernambuco, com o Colégio Nóbre-ga, no Nordeste do país.

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A trajetória centenária do colégio

Situadas as expulsões dos inacianos de Portugal com as repercussões no Brasil, particularmente na Bahia, passa-se à trajetória centenária do Colégio Antônio Vieira. As comemorações dos cem anos suscitaram a história da fundação e da evolução do Colégio. É a origem do oportuno livro de Waldir Freitas Oliveira e Edilece Souza Couto, intitulado Colégio Antônio Vieira 1911-2011: vidas e histórias de uma missão jesuíta (2011), uma contribuição à história da educação baiana (BOAVENTURA, 2011, pp. 151-157).

Por que o Colégio foi criado no alvorecer do século XX?

Os autores do livro do centenário souberam reconstruir o passado do Colégio e balizaram a história do estabelecimento por etapas em confor-midade com as determinações superiores da Companhia de Jesus.

Compreenda-se, a primeira etapa, isto é, a fase da chegada, de 1911 a 1932, quando o Colégio funcionou, por pouco tempo, aliás, na Rua do Sodré nº 43, mudando-se logo em seguida para a Rua Coqueiros da Pie-dade. Não foi pacífica a entrada dos inacianos na Bahia. Vencidas as resis-tências, puderam os padres jesuítas instalar o Colégio, em 15 de março de 1911, com 72 alunos. Logo se firmou como o principal estabelecimento particular da capital baiana com externato e internato, possibilitando a educação de jovens interioranos. Para o seu funcionamento, contou com o apoio da comunidade baiana, à frente o arcebispo primaz Dom Jerônimo Tomé da Silva.

Desde o início, o Colégio firmou um alto padrão de ensino que in-fluenciou a vida intelectual da cidade não somente do ponto de vista li-terário e filosófico como também científico. O Colégio passava a ser um polo de atração de ensino para os jovens baianos. Merecem destaques os alunos Thales de Azevedo, Hermes Lima, Anísio Teixeira, Jorge Amado, Herberto Sales, Hélio Simões, Pedro Calmon et alii.

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A presença do padre Luiz Gonzaga Cabral SJ

Dentre os criadores do Colégio, a liderança de maior projeção foi a do padre Luiz Gonzaga Cabral SJ. Thales de Azevedo (1986) o retratou e soube caracterizar o momento intelectual do seu tempo na Bahia, a sua produção literária, estabelecendo, enfim, a sua bibliografia. A presença e a influência do padre Cabral, de 1917 a 1938, foram marcantes como atestam seus muitos alunos, muitos dos quais vieram a exercer postos de alta relevância na comunidade baiana.

Homem de excepcional talento, orador sacro, conhecedor da obra do padre Antônio Vieira. Dentre os seus Inéditos e Dispersos, sobressai Vieira pregador (1936), estudo filosófico da eloquência sagrada segundo a vida e obra do grande orador português. Padre Cabral, em Jesuítas no Brasil (1925), estudou a influência dos jesuítas na colonização do Brasil, “examinando, à luz do pensamento dos mais autorizados historiadores brasileiros, a marca deixada pelos inacianos no século XVI”. (AZEVE-DO, T.1986, p. 8).

Por seu turno, Pedro Calmon (1995, p. 53) assim o descreveu: “O di-retor – furiosamente atacado pelos anticlericais – chamava-se Luís Gon-zaga Cabral, um dos homens mais ilustres, um dos caracteres mais nobres de que podia orgulhar-se a Igreja de Portugal. Não fui seu aluno, mas aderi aos antigos estudantes que iam ouvir-lhe a prédica, no seminário tomista, o mais falado deles – Anísio Teixeira [...]” Calmon o relaciona com a extinta monarquia portuguesa: “Lembro-me que uma vez visitei o padre Cabral na sua cela, convalescia de longa doença. Na parede, sob a cruz de Cristo, espalmava-se a bandeira azul e branca da monarquia libe-ral. Outros que a renegassem, não o duro paladino da tradição lusitana.”

A instalação do Colégio em sede própria

Segue-se a segunda etapa, de 1932 a 1952, com a construção do Colégio, no bairro do Garcia, com amplas salas de aula, laboratórios, qua-dras para esportes e educação física, dormitórios para os alunos internos e capelas. É o tempo da Missão Portuguesa da Companhia de Jesus, no

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Nordeste, e da Vice-Província do Brasil Setentrional. De 1911 até 1952, constituiu-se a província, abrangendo Bahia, Pernambuco com o Colégio Nóbrega e a Universidade Católica de Pernambuco, Ceará, onde funcio-nou o Seminário, na serra de Baturité, e em outros estados.

Além do curso regular pela manhã, funcionava à tardes uma escola primária estadual, que atendia à população de baixa renda do bairro do Garcia, em Salvador. Dos jesuítas vindos de Portugal, permaneceram, de 1946 a 1953 os padres Constantino Cardoso SJ, reitor do Colégio; Luiz Gonzaga Mariz SJ, professor de inglês, de religião e regente da Orquestra Sinfônica da Bahia; Mariano Pinho SJ,professor de português e escritor; Antônio Belo SJ, vice-diretor, encarregado dos alunos; Antônio Simas SJ, professor de inglês; Martins SJ, professor de física; Antônio Farias SJ, professor de espanhol; Manuel Borges SJ, tesoureiro, e os brasileiros, padre Antônio Borges SJ, professor de química e depois reitor; e o padre Manuel Rufino Negreiros SJ, professor de História e Geografia, irmãos coadjutores, além dos escolásticos, estudantes brasileiros de filosofia e teologia, que estagiavam de um a três anos. A partir do início da década de cinqüenta começou a transição dos velhos padres portugueses para padres italianos com o padre Cesar Dainese SJ à frente.

Na terceira etapa, como bem assinalam os autores, o Colégio Antônio Vieira passa a pertencer à Vice-Província da Bahia (1952-1983) e, final-mente, à Província da Bahia (1983-2005). Caracteriza-se pela presença dos jesuítas italianos do Vêneto e de Milão, dentre outros, os padres Pie-tro Della Nogare SJ, professor de filosofia; Ugo Meregalli SJ, professor de matemática; o espanhol José Manuel Sanchez SJ, dedicado construtor do Santuário de Fátima; Dionísio Sciuchetti SJ, diretor e presença na vida católica da cidade; Carlos Bresciani SJ, cultor da história. Criam-se o Centro de Investigação e Ação Social (CEAS), o Centro de Estudos e Ações Sociais (CIAS), o curso de alfabetização, educação popular e cur-so supletivo noturno (SUPECAV) para os economicamente carentes. É a aproximação com as classes de baixa renda. São novas lideranças e novas iniciativas que fixaram a presença dos padres italianos e brasileiros.

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O Colégio modernizou-se, sobretudo o curso primário, tornou-se misto e atualizou a mensagem inaciana.

Por fim, a quarta fase compreende a situação atual com a criação da Província do Brasil Nordeste (2005-2011). O Colégio conta, atualmente, com 4.900 alunos e mais 1.000, no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJACAV).

O Colégio na metade do século XX

Além da maioria dos alunos residentes, em Salvador, eram os alu-nos externos, para o Colégio afluíam muitos estudantes dos municípios para cursarem o secundário no regime de internato. Antecediam a entrada no ginásio e vinham para preparar o exame de admissão ao ginásio. O ensino secundário, conforme a reforma do ensino do ministro Gustavo Capanema, dos anos quarenta, compunha-se do ginásio, em quatro anos, e do curso colegial, clássico ou científico, em três, em um total de sete anos letivos.

Os adolescentes vindos do interior, então, com poucos estabeleci-mentos de ensino secundário, encontravam um colégio com professores de formação europeia, boas instalações com biblioteca.

Realizava-se o curso secundário completo com religiosos brasileiros e portugueses e alguns professores como Raul de Souza da Costa e Sá, exímio conhecedor da língua portuguesa, Gerson Simões Dias, Inocên-cio Peltier de Queiróz, Francisco Fonseca. O diretor, padre Constantino Cardoso SJ, português, que com sabedoria e paciência supervisionava todo o Colégio. Indagado como ia, respondia sempre com humildade e fé: “Vou melhor do que mereço a Deus.” Anos depois foi, finalmente, substituído pelo padre Antônio Borges, SJ, cearense que estudara na Es-panha, ensinava química e que passou o comando ao italiano padre Cesar Dainese SJ.

Ao lado da formação humanística e científica, que sempre fora o forte dos inacianos, os jesuítas desenvolviam uma série de atividades re-

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ligiosas, sociais e esportivas que acompanhavam a regularidade da vida escolar.

Lembre-se que a Companhia de Jesus, praticamente, nasceu na Uni-versidade de Paris sob a liderança de Inácio de Loiola e seus compa-nheiros (BELTRÃO, 2010). Havia a Academia Vieirense de Letras, que estimulava o falar em público. Outras atividades entretinham os alunos como coral, teatro, jogos por série e competições com outros colégios da capital, a exemplo do Colégio Maristas. Os alunos participavam da Congregação Mariana Acadêmica e da Juventude Estudantil Católica, braço especializado da Ação Católica. À frente destas atividades estava o padre Mariano Pinho SJ (FRANCO, 2003, pp. 158-159), sacerdote culto, escritor, conhecedor da língua e da literatura portuguesas. Como cultor do idioma, estimulava a leitura dos bons autores lusitanos, clássicos e modernos, dentre outros, Camões, Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Ferreira de Castro, Guerra Junqueiro. Padre Pinho estudara em países e tinha sido diretor da revista Brotéria, de 1934 a 1935, periódico jesuítico português permanentemente referenciado no Colégio.

Como professor de inglês e de religião, também músico e composi-tor, destacava-se o padre Luiz Gonzaga Mariz SJ, regente da Orquestra Sinfônica da Bahia, que deve ter sido a primeira no gênero que houve em Salvador. Realizava ensaios no Salão de Atos do Colégio e os concertos no Gabinete Português de Leitura com frequência dos alunos. A Orques-tra tocava nas grandes festas do Colégio. Para o público externo, além do padre Mariz, outro jesuíta de presença destacada na cidade era o francês padre Camille Torend SJ.

O padre Camille Torrend SJ, cientista e sacerdote

O Pensionato Mariano Acadêmico, então dirigido pelo padre Cami-lle Torrend SJ, prolongava a convivência com os jesuítas. Padre Torrend conjugava ciência com espírito missionário, transmitindo conhecimento e sabedoria. Aposentado pela Escola Agronômica da Bahia, continuou ensinando biologia até o primeiro semestre de 1953. Como botânico

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pesquisava as algas. Em sua homenagem há uma espécie que se chama torrennaceas. O padre Torrend foi um pioneiro da pesquisa científica na Bahia. Dotado de curiosidade científica, colecionava plantas e pedras. Es-tava em dia com o conhecimento pelas leituras das revistas científicas, escrevia no jornal A Tarde, pregava o ecumenismo, insistia nos exercícios físicos e nos esportes. Era um misto de cientista, missionário e educador. Em uma pequena brochura, intitulada Uma tentativa de autoeducação na Bahia (ROLIM, 1953), encontra-se a síntese dos seus sábios ensina-mentos: “A nova psicologia salvará o mundo; aprende a dormir; aprende a comer; combate a carência alimentar; aprende a estudar; tome notas e aprende a pensar; educa-te para vencer; lembra-te que a tua educação deve corresponder a era atômica; cultiva o teu futuro; teu destino está em tuas mãos; cultiva o otimismo; descansa proporcionalmente ao trabalho; o ideal é a bússola que guia o homem através do oceano tumultuoso da vida. Deus – é o ideal supremo.”

A volta ao Colégio e atualização com mudanças

Enfim, a avaliação do desempenho do Colégio, na comunidade baia-na, pode ser vista pela formação de expoentes e de líderes, a exemplo do governador da Bahia de 1975 a 1979, o ex-aluno, professor Roberto Figueira Santos (2011, pp.189-192). Além dos ex-alunos ilustres, o Colé-gio contribuiu para formação que liberta centenas de cidadãos e cidadãs prestantes, úteis e ajustados à comunidade (BOAVENTURA, 2010, pp. 151-157).

Na condição de pai de aluno, o autor percebeu os progressos e as mudanças pós-conciliares com a abertura para o social. Como secretário de Educação da Bahia (1983-1987), em convênio, equipou a escola que o Colégio mantinha no bairro periférico de Coutos, quando o diretor era o padre Guy Ruffier SJ. A abertura para o social tornou-se programática, por exemplo, o serviço que presta o Centro de Estudos e Assessoria Peda-gógica (CEAP), liderado pelo padre Domingos Mianulli SJ.

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Razão tem Newton Sucupira (2005, pp. 977-978) ao ponderar “quem estudou durante seis ou sete anos em colégio da Companhia de Jesus – e falo por experiência própria – sabe que ninguém passa incólume por uma educação jesuítica”. Reconhece o educador pernambucano que os ele-mentos da disciplina mental do Ratio Studiorum marcam o teor humanís-tico e literário na preparação para vida ativa com a educação da vontade, tenacidade na busca dos fins, domínio das paixões com o guante da razão. Enfim, “apaixonar-se sem prejuízo da vigilância do pensamento racional, eis o paradoxo eficaz da educação jesuítica em seus grandes dias”.

Ao completar cem anos, o Colégio Antônio Vieira continua bem atuante na formação de gerações. A volta dos jesuítas em 1911, fundando o Colégio, retomou a longa tradição de cultura por mais de quatro sécu-los, na Bahia, objetivando sempre os pressupostos da educação inaciana.

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A RepúblicA poRtuguesA e o RegResso dos jesuítAs à bAhiA

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edivaLdo M. BoaveNtura

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Texto apresentado em janeiro/2013. Aprovado para publicação em fevereiro/2013.

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O HOMEM CULTO DO SÉCULO XIX: SEU PERFIL E SUA ATUALIDADE

THE CULTURED MAN IN THE NINETEENTH CENTURY: HIS PROFILE THEN AND AT PRESENT

Pedro sPiNoLa Pereira caLdas 1

Sendo o meu objetivo falar sobre uma possível definição do homem culto, não poderia propor uma resposta definitiva, posto que a insolúvel polissemia do termo me impediria de sequer dar início ao texto2.

Um primeiro passo, portanto, consistiria em, modestamente, apre-sentar como o conceito de homem culto me ocupa há algum tempo, mas sempre dentro de meu campo de estudos. Apresentarei, portanto, uma de-finição que, se por um lado pretende ser abrangente e sintética, por outro se limitará ao ambiente cultural e intelectual alemão do final do século XVIII e início do século XIX, e isto por uma razão simples: em minha 1 – Doutor em História pela PUC/RJ. Professor Adjunto no Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)/ Pesquisador do CNPq.2 – Segundo Adam Kuper, os antropólogos Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn iden-tificaram nada mais, nada menos do que 164 definições de cultura. Apud. TEIXEIRA, Felipe Charbel. História da Cultura: Discussão preliminar. In: ______ & CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Historiografia contemporânea – Volume 1 – Manual Universitário. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2011, pp. 164-165.

Resumo:Este artigo tem dois objetivos: o primeiro con-siste em apresentar um esboço de um tipo ideal do homem culto (Der gebildete Mensch) do sé-culo XIX, mais precisamente no contexto cultu-ral alemão. Para tal, defino o homem culto como aquele capaz de pensar universalmente, agir de maneira autônoma e ser capaz de construir uma imagem da continuidade. O artigo tem como se-gundo objetivo refletir sobre a atualidade deste modelo, considerando que, apesar de todas as características acima já terem sofrido críticas duras e até mesmo justas, os desafios que leva-ram à sua criação ainda permanecem.

Abstract:This article has two goals: the first one is to present an outline of an ideal type of the cul-tured man (Der gebildete Mensch) in the Nine-teenth Century, more precisely in the German cultural context. In that sense, I define the cul-tured man as one who is able to think universal-ly, to act autonomously and is capable of build-ing an image of continuity. The second goal of this article is to reflect on that model at present, taking into consideration that, in spite of the fact that all of the above-mentioned characteristics have already suffered harsh, and even fair, criti-cisms, the challenges that led to their creation, still persist.

Palavras-chave: Homem culto – Universalida-de – Autonomia – Continuidade.

Keywords: Cultured man; universality; Auton-omy; Continuity.

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dissertação de mestrado sobre a filosofia da história de Johann Gottfried Herder, o conceito de Bildung (cultura, formação) ocupou parte do tercei-ro capítulo; já em minha tese de doutorado, na qual trabalhei a teoria da história de Johann Gustav Droysen, achei conveniente dedicar-lhe todo o último capítulo; e em minha mais recente pesquisa, decidi me debruçar sobre a dimensão formativa da historiografia, mais precisamente sobre a presença latente do ideal da Bildung na monumental História da cultura grega, de Jacob Burckhardt. No momento, investigo uma obra literária do início do século XX (A montanha mágica, de Thomas Mann) que põe em questão a própria definição de romance de formação.

O que mais me interessa, porém, não é somente definir objetiva-mente, mediante tipos ideais, o conceito de Bildung, mas, sobretudo, ver que dificuldades e limites ele apresenta, e, sobretudo, verificar sua pos-sível atualidade. Neste sentido, não se trata apenas de delimitar, mas sim de compreender que, se não temos condições de definir precisamente o que é um homem culto, ao menos ainda nos sentimos tentados a esboçar um projeto de homem culto, ou, ainda, de reconhecer como as grandes adversidades sentidas pelos pensadores do século XVIII e século XIX ainda estão presentes (disfarçadamente ou não), razão pela qual, antes de proclamarmos a derrota de um projeto, talvez ainda seja possível pensar em sua capacidade de resistência. Repito: a impossibilidade de apresentar uma boa definição não implica que nos sintamos constrangidos a refletir um pouco sobre o assunto.

E mesmo me limitando a um estudo histórico e tipológico, circuns-crito no tempo e no espaço, as dificuldades são várias e começam com a sua tradução: O termo Bildung nem sempre é facilmente vertido para outra língua3. Mas, para contornar estes obstáculos, poderíamos usar o bom senso: ora se poderá usar cultura (como é o caso do homem culto, por exemplo, ou da burguesia culta), ora formação (como é o caso dos próprios romances – não há notícia de tradução para o português de Bil-

3 – Cf. KOSELLECK, Reinhart. Einleitung – Zur anthropologischen und semantischen Struktur der Bildung. In: ______. (org.) Bildungsbürgertum im 19. Jahrhundert. Teil II: Bildungsgüter und Bildungswissen. Stuttgart: Klett-Cotta, 1990, p.13.

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dungsroman como “romance de cultura”). Não falarei, portanto, tanto de romances, de formas, e, ao menos hoje, darei prioridade aos conceitos.

Outra dificuldade reside na inexistência de um tratado sistemático sobre o conceito que tenha sido produzido por um autor do século XIX ou mesmo do final do século XVIII, o que não deixa de ser curioso e rele-vante, se lembrarmos da proverbial predileção alemã pelos sistemas e de sua habitual organização de pensamento. Mas a palavra Bildung está lá, presente em textos de escritores setecentistas com Herder e Schiller, e de oitocentistas como Hegel, Burckhardt, Johann Gustav Droysen e, claro, Wilhelm von Humboldt. E, como disse acima, talvez seja significativo que vários deles tenham preferido ser mais claros sobre alguns conceitos do que sobre o conceito de Bildung, o que evidentemente dá ao intérprete uma maior responsabilidade, exigindo-lhe mais paciência para lidar com o termo. E não serão raras as vezes em que o termo aparecerá em contex-tos semânticos distintos.

Aproveitando-me, portanto, desta variedade de significados, che-guei à definição que se segue através das próprias fontes da época, ainda que, ao privilegiar o aspecto qualitativo em detrimento do quantitativo, tenha valorizado mais a precisão da frase do que a frequência com que a palavra Bildung aparecia. Proponho, então, três grandes definições para o “homem culto” no âmbito oitocentista alemão4: (1) seu pensamento é universal; (2) sua ação é autônoma; (3) sua imaginação deve ser capaz de construir uma narrativa contínua.

I

“O homem culto é aquele que, em todas as suas ações, sabe imprimir em tudo o selo da universalidade, é aquele que abdicou de sua particu-laridade, e que age segundo fundamentos gerais. A cultura [Bildung] é forma de pensamento.5”

4 – Para uma história do conceito, ver: VIERHAUS, Rudolf. Bildung. In: BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK, Reinhart (orgs.) Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Band 1: A – D. Stutt-gart: Ernst Klatt, 1974, pp.508-551.5 – HEGEL, Georg W.H. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Band 1:

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Estas palavras se encontram A Razão na História, de Hegel, um livro que deveria ser levado mais a sério pelos historiadores, tanto que, mesmo involuntariamente, um grande crítico seu, o historiador Jacob Burckhardt, provavelmente assinaria embaixo destas palavras ao criticar ferozmente a especialização excessiva como objetivo final dos estudos históricos6.

A universalidade, portanto, é uma forma de pensamento. É neces-sário entender isto ao pé da letra. A abrangência do conhecimento do homem culto não pode, portanto, ser determinada empiricamente, logo, ser um “homem culto” não significa dispor de um conhecimento variado sobre incontáveis assuntos, e, menos ainda, ter uma opinião sobre tudo. Para isso temos os jornais.

Mas o que, então, seria esta “forma de pensar”? Talvez um aluno de Hegel nos ajude a pensar um pouco melhor sobre o tema. Falo de um autor que, por ter sido meu tema de doutorado, me é naturalmente caro: Johann Gustav Droysen (1808-1884). Seu método compreensivo, apre-sentado no semestre de verão de 1857 aos seus alunos da Universidade de Iena em um curso denominado Historik, é capaz de demonstrar esta uni-versalidade ao entender o método histórico como sendo a integração de concepções do conhecimento científico desenvolvidos em outros campos do conhecimento, que, na avaliação de Droysen, por mais que predomi-nassem nas universidades, tendiam a ser excludentes, e, assim, produziam apenas uma concepção parcial do ser humano: – estas concepções de co-nhecimento científico eram a filosófico-teológica, e a físico-matemática. O que uma e outra conseguiam com o conhecimento a partir do espírito Die Vernunft in der Geschichte. Hamburg: Meiner, 1994, p. 65.6 – Jacob Burckhardt assumia como tarefa formativa dar aulas sobre a História da Cultu-ra Grega, mesmo não sendo um helenista. Conscientemente, questionava a função forma-tiva de estudos altamente especializados cuja competência não era o suficiente para mos-trar a importância da Grécia antiga para os fundamentos da cultura ocidental. Já na sua época, sua visão sobre a cultura grega gerou críticas por parte dos especialistas. Para a crí-tica de Burckhardt à especialização, ver: BURCKHARDT, Jacob. Kritische Gesamtaus-gabe – Band 19: Grieschiche Kulturgeschichte – Band 1: Die Griechen und ihr Mythus/ Die Polis. München: Beck; Basel: Schwabe & Co., 2002, p.368. Para a crítica sofrida por Burckhardt, conferir: WEILER, Ingomar. Jacob Burckhardt und die Altertumswis-senschaft seiner Zeit. In: BURCKHARDT, Leonhard & GEHRKE, Hans-Joachim (orgs.). Jacob Burckhardt und die Griechen. Basel: Schwabe; München: Beck, 2006, pp. 49-52.

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especulativo e do conhecimento da matéria e das leis da natureza poderia ser reunido na história. Trata-se, a princípio, de um projeto fáustico, já dramatizado tragicamente por Goethe, mas que, segundo Droysen, era possível mediante o método hermenêutico. Este conseguiria, portanto, reunir as seguintes formas de conhecimento metódico: a empírico-induti-va, a lógico-dedutiva, a intersubjetiva e a idealista7. Afinal, se, para Goe-the, o homem errava porque “Do céu exige o âmbito irrestrito/ Como da terra o gozo mais perfeito/ E o que lhe é perto, bem como o infinito/ Não lhe contenta o tumultuoso peito”8, para Droysen, pelo método científico ainda seria possível unir “o céu e a terra”, a ideia e a experiência prática, o conceito e a empiria, o todo e as partes.

Embora o conceito de Bildung, em Droysen, também tenha outras conotações9, prefiro me limitar ao que dele pode ser dito a partir somente das formas metódicas de conhecimento. Cada uma destas formas corres-ponderia a uma etapa da interpretação do fato histórico (pragmática, das condições, psicológica e ideal), isto é, ao reconhecimento de um padrão estabelecido mediante a repetição, pela qual se chega ao universal atra-vés gradual movimento do particular (empirismo indutivo); ao estabele-

7 – Cf. DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann-Holz-boog, 1977, pp.166-216.8 – GOETHE, J.W. Fausto I. Tradução de Jenny Klabin Segall. Apresentação, comentá-rios e notas de Marcus Vinícius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 50.9 – Cf. DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann-Holz-boog, 1977, pp.7, 14-15, 21, 69, 208, 231, 251-252, 259, 269, 370, 419-420. Nestas passa-gens, Bildung aparece referida como (a) o contexto em que cada ser humano se insere ao vir ao mundo; (b) o próprio processo histórico, em si mesmo formativo, quase evolutivo; (c) a forma de aperfeiçoamento que o ser humano pode adquirir ao se relacionar com o passado; (d) aperfeiçoamento intimamente ligado à consciência das profundas raízes da vida presente no passado; (e) a formação de uma consciência histórica a ser ministrada nas escolas, e não somente nas universidades. Para uma interpretação do conceito de Bil-dung em Droysen: ASSIS, Arthur. Droysens Historik und die Krise der exemplarischen Geschichtstheorie. In: BLANKE, Horst-Walter (org.) Historie und Historik: 200 Jahre Johann Gustav Droysen – Fetsschrift für Jörn Rüsen zum 70. Geburtstag. Böhlau: Köln; Weimar; Wien, 2009, p. 22. JAEGER, Friedrich. Bürgerliche Modernisierungskrise und historische Sinnbildung. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, pp.49-50, 67-69, 81-82; KOHLSTRUNK, Irene: Logik und Historie in Droysens Geschichtstheorie: Eine Analyse von Genese und Konstitutionsprinzipien seiner ‘Historik’. Wiesbaden: Franz Steiner, 1980, p.152.

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cimento de leis científicas obtidas através da criação de leis universais que tornariam inteligível a particularidade (lógica dedutiva); ao conseguir reconstruir ações intencionais e conscientes, sem as quais as transforma-ções históricas permaneceriam incompreensíveis e absurdas (capacidade de empatia e intersubjetividade); e pela construção de um sentido plau-sível mas não dado para a consciência dos agentes históricos viventes no processo analisado (ideias, de que servem de exemplo os conceitos de “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Hollanda e “banalidade do mal”, de Hannah Arendt). A universalidade, portanto, deveria ser viável me-diante uma integração dos métodos, capazes tanto de perceber o que há de mais terreno, empírico, como o de mais abstrato, infinito, ideal. A teoria da interpretação de Droysen cumpre justamente esta tarefa, na medida em que apresenta vários ângulos para compreender a experiência histórica.

E, ora, não seria este o pilar capaz de sustentar a própria ideia de universidade? Wilhelm von Humboldt, mentor de Droysen, afirmara o princípio da universalidade como maneira de se estabelecer o princípio de uma universidade autônoma, na qual o contato entre cientistas de di-ferentes áreas, mais do que um intercâmbio de resultados empíricos, se daria a partir de uma partilha de procedimentos metódicos comuns10. A universalidade também aparece em outros sentidos bastante relacionados ao conceito de Bildung: no caráter cosmopolita da tradução11 e na integra-lidade totalizante do organicismo – presente, sobretudo, em Herder12, já

10 – “A organização interna das instituições científicas superiores, portanto, deve produzir e preservar uma colaboração contínua entre cientistas de diferentes disciplinas. Trata-se de uma colaboração capaz de estimular a si mesma, uma colaboração livre e que não obedeça a uma finalidade prévia”. In: HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim. In: KRETSCHMER, Johannes; ROCHA, João Cezar de Castro (orgs.). Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro: EDUERJ, 1997, p. 80.11 – Cf. BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: Cultura e tradução na Alemanha romântica. Bauru: Edusc, 2002.12 – Cf. LICHTENSTEIN, Ernst. Bildung. Archiv für Begriffgeschichte, nº 12, 1968, p.11.

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no final do século XVIII. Em suas tipologias, estudiosos como Reinhart Koselleck13 e Aleida Assmann14 incorporam tal sentido.

Mas já no início do século XX, este ideal receberia uma avaliação tão crítica quanto lúcida quando Max Weber se dirige, em 1917, para uma plateia interessada em saber o que significa ter a ciência como vocação.

Nesta palestra, transformada em um texto clássico, Weber afirma que somente uma pesquisa altamente especializada, inteiramente despro-vida de sentido aos olhos da maioria, é algo digno de valor dentro da ciência, empresa totalmente moderna, sujeita ao processo de divisão do trabalho como qualquer outra atividade capitalista. É bem verdade que Weber também deixa escapar que, se a atividade científica é racional em sua divisão do trabalho, o critério que nos leva a escolher este assunto em detrimento de outros tantos é totalmente irracional – a paixão15. É nesta dialética entre o transtorno da paixão (que nos faz escolher um assunto dentre milhares) e a pretensão de controle proveniente da separação ra-cional de trabalho que se move o dilema do especialista.

O mais grave, porém, não seria diagnosticado por Weber (cuja vi-são ainda nos permite vislumbrar a possibilidade de uma lucidez heroica, capaz de resistir às demandas de instrumentalização do conhecimento),

13 – Koselleck afirma a totalidade como uma das características centrais da Bildung: “Nenhum conhecimento ou ciência específica, nenhuma posicionamento político ou pri-vilégio social, nenhuma confissão ou raiz religiosa, nenhum opção de visão de mundo ou preferência filosófica, assim como nenhuma tendência estética na arte e na literatura bastam para definir o que é a formação/cultura”. In: KOSELLECK, Reinhart: Einleitung – Zur anthropologischen und semantischen Struktur der Bildung. In: ______. (org.) Bil-dungsbürgertum im 19. Jahrhundert. Teil II: Bildungsgüter und Bildungswissen. Stutt-gart: Klett-Cotta, 1990, p. 24.14 – Aleida Assmann afirma que, de fato, a ideia de Bildung, fundamental para a cons-trução de uma memória nacional alemã, apostava nos princípios da universalidade e in-tegralidade. Porém, diz Assmann, tal ênfase implicava uma universalização atemporal, focada em um conjunto restrito, selecionado e necessariamente excludente de obras. Cf. ASSMANN, Aleida. Construction de la mémoire nationale: Une brève histoire de l´idée allemande de Bildung. Paris: Editions de la Maison des sciences de l´homme, 1994, pp. 5, 37, 56.15 – WEBER, Max. Ciência como vocação. In:_______Metodologia das ciências sociais, parte 2. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 2001, pp. 435-436.

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mas por José Ortega y Gasset16, um filósofo espanhol educado na tradição filosófica alemã. Em seu ensaio A rebelião das massas, publicado no iní-cio da década de 30 do século passado, Ortega descreve um tipo, segundo ele, bastante comum: o “bárbaro especializado”, aquele que ignora tudo que não diga respeito à área de pesquisa em que atua; ainda assim, por ser homem de ciência, se comportará com tal arrogância que se julgará capaz de emitir juízos sobre outras áreas para a qual não foi treinado, não admitindo, nelas, a presença de especialistas. Julga que seu conhecimento altamente especializado é universal.

Mas a especialização é inevitável: optamos pela precisão, em de-trimento, muitas vezes, da relevância e da capacidade de comunicação. Este equilíbrio entre precisão e relevância é bastante precário, demasiado sutil, e é rara a feliz oportunidade quando, ao falarmos sobre algo bastante específico, conseguimos falar do universal.

Não gostaria de menosprezar os diagnósticos de Weber e Ortega. Por outro lado, gostaria de pensar em possibilidades de, dentro do possível, almejarmos a universalidade. Dentro da historiografia, o método com-parativo, por exemplo, pode ser uma forma de elaborar o que temos em comum para, inclusive, conhecermos o que nos é específico e singular. É bem verdade que estudiosos17 – mesmo entre os que defendem a perspec-tiva da história comparada18 – já lhe apontaram os riscos, dentre os quais universalizar a própria experiência é, sem dúvida nenhuma, o maior de-les. Pensando para além da história da historiografia (se nela me restrin-gisse, estaria sucumbindo eu mesmo à especialização, visto ser a Teoria da História e da Historiografia minha área de titulação), creio que valha a pena considerar seriamente o que diz Luiz Costa Lima, quando, tanto em

16 – ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987, pp. 121-12617 – Para uma visão bastante cética em relação ao cosmopolitismo e à comparação, ver: NEEM, Johann N; American History in a Global Age. History and Theory, 2011, vol. 50, pp. 41-70.18 – Cf. BLOCH, Marc. Por uma história comparada das sociedades europeias. In: _______História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998; WERNER, Michael; ZIM-MERMANN; Bénédict. Beyond Comparison: Histoire croisée and the challenge of Re-flexivity. History and Theory, 2006, n. 45, pp. 30-50.

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livro mais antigo como em obra bastante recente, defende a criatividade no pensamento dito “científico” – ou, digamos, conceitual – na medida em que a sua poiesis se fará pela capacidade em estabelecermos asso-ciações imprevistas19, em articular o que geralmente se separa e não se comunica – isto não deixa de ser uma forma de universalidade – e, assim, lembrarmos que a especialização é necessária, sobretudo, nas áreas em que o rendimento e a eficácia técnica são critérios de avaliação20. Neste sentido, o homem culto será ainda um projeto defensável na medida em que conseguir fazer frente à dimensão mais nociva da especialização, isto é, a universalização imediata de sua própria experiência limitada.

II

Permitam-me recuar um pouco no período delimitado pelo título desta palestra. Indo ao final do século XVIII, mas ainda no espaço da cultura alemã, encontramos um ensaio clássico, publicado originalmente em 1795, chamado Educação estética da humanidade, do grande poeta e dramaturgo (mas também filósofo e historiador) Friedrich Schiller (1759-1805), no qual se pode ler que “o homem cultivado faz da natureza sua amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas ao seu arbítrio”21.

O que significa esta passagem? Mesmo não sendo filósofo, me arris-caria a dizer o seguinte: a natureza, no sentido empregado por Schiller, é o reino da necessidade, daquilo que nos determina, do que independe de nossa escolha. Mas suspeito que Schiller não separe a liberdade da neces-sidade, o prazer do dever. O maior problema não estaria nos constrangi-mentos naturais à liberdade (e já o fizera em seu discurso sobre a história universal22, poucos anos antes), mas antes outro valor, considerado por 19 – Cf. LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo: Estudos sobre a narrativa. Rio de Ja-neiro: Rocco, 1989, cap.1. 20 – Cf. ______. O controle do imaginário & A afirmação do romance: Dom Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.15.21 – SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 33.22 – Cf. SCHILLER, Friedrich. Was heisst und zu welchem Ende studiert man Univer-salgeschichte? In: ______. Werke in Drei Bänden: Zweiter Band. Org. Herbert Göpfert.

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Schiller o grande ídolo de seu tempo – e muito provavelmente também do nosso – a saber: a utilidade23.

De fato, este é um aspecto clássico da ideia de Bildung: a utilidade é apontada como grande obstáculo da própria ideia de universidade, con-forme classicamente escreveu Wilhelm von Humboldt. A pesquisa, antes de ser simplesmente uma produtora de bens e serviços, de transmissão de saberes, deve, sobretudo, ser o trabalho de reflexão, de constante revisão de pressupostos, conceitos e teorias mediante o trabalho empírico e espe-culativo – esta é a razão pela qual é sempre infinita, inacabada, crua para servir à realidade. Mais ainda: o homem culto, ao se recusar a ser avaliado pela sua utilidade, se desprende de critérios externos aos quais teria que servir e se adequar.

Mas o homem culto não é, porém, segundo Schiller, alguém que se isola da vida em comum. No que diz respeito à dimensão pública e política, por exemplo, o homem culto é aquele capaz de se reconhecer no dever. Mesmo reconhecendo o profundo ceticismo de Schiller com relação ao Estado24 – e aqui se apresenta uma ambiguidade do conceito de Bildung – um bom exemplo pode ser encontrado na filosofia política de Hegel. Dizíamos que a autonomia não é um arbítrio caprichoso, ou a simples ausência de constrangimento externo, mas a união de liberdade e necessidade, prazer e dever. Ou seja, nas palavras de Hegel, “(...) somos

München; Wien: Carl Hanser Verlag, 1966, pp. 9-22. O texto de Schiller foi apresentado originalmente como uma Antrittsvorlesung (aula magna) na Universidade de Jena, em 26 de maio de 1789.23 – Cf. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 26.24 – Basta ler a reação de Schiller aos excessos revolucionários na França, expressa em carta ao Príncipe de Augustenburg, de 13/7/1793: “A tentativa do povo francês de esta-belecer-se nos seus sagrados direitos humanos e conquistar uma liberdade política trouxe a lume apenas a incapacidade e a indignidade do mesmo, e lançou de volta à barbárie e à servidão não apenas este povo infeliz, mas, com ele, também uma considerável parte da Europa, e um século inteiro". In: SCHILLER, Friedrich. Cultura estética e liberdade. Org. Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2009, p. 74. Antecipando, em certa medida, o que Karl Marx dirá em sua Crítica à filosofia do direito de Hegel, Schiller afirma na mesma carta que também é necessário “(...) começar a criar cidadãos para a constituição antes de poder se dar uma constituição aos cidadãos”. In: idem, p.78.

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livres quando reconhecemos a lei como a substância de nossa própria essência”25, e, por isso, a liberdade existe quando necessidade e vonta-de se unem, e não quando se opõem. A forma mais perfeita desta união seria a constituição; isto é, quando o cidadão se reconhece na lei que ele ajudou a elaborar e que, portanto, não terá dificuldades em cumprir. A constituição é a forma mais perfeita de autonomia, e, neste sentido, difere do cumprimento servil à ordem superior (na qual mal se sabe que se está a obedecer), e também do conflito entre indivíduo e sociedade, onde a oposição consciente à norma leva a um desfecho trágico (sendo Antígona ainda o melhor exemplo). Aqui o homem, ao se recusar a cumprir uma ordem na qual não se reconhece, sucumbe tragicamente.

De toda maneira, conforme observa Koselleck, a autodeterminação é saber que a meta autodeterminada, a qual se sente comprometido, não necessariamente redime o indivíduo, servindo-lhe de uma regra atempo-ral. O direito à busca do caminho próprio é vacilante, errante e, por que não, angustiante: “O mundo se quebrou em perspectivas, e para a for-mação/cultivo (Bildung) da personalidade – seu ordenamento central – encontravam-se abertos inúmeros caminhos para que esta personalidade se encontrasse”.26 Esta ideia de homem culto, esta obrigação de se buscar a própria essência, após terem se estilhaçado todas as referências tradicio-nais, é o que marca boa parte dos grandes romances de formação do final do século XVIII e início do século XIX27. Neste caso, a tarefa é intrans-ferível. Em ambos (pública e pessoal, coletiva e individual) há o prazer de se cumprir um dever. Além de Koselleck, autores como Georg Bol-

25 – HEGEL, Georg W.H. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Band 1: Die Vernunft in der Geschichte. Hamburg: Meiner, 1994, p.115.26 – KOSELLECK, Reinhart. Einleitung – Zur anthropologischen und semantischen Struktur der Bildung. In: ______. (org.) Bildungsbürgertum im 19. Jahrhundert. Teil II: Bildungsgüter und Bildungswissen. Stuttgart: Klett-Cotta, 1990, p. 20.27 – O romance de formação mostra as tentativas nem sempre bem-sucedidas de harmo-nização e sintonia entre indivíduo e sociedade. Cf. MORETTI, Franco. The way of the world: The Bildungsroman in European culture. London: Verso, 1987; JACOBS, Jür-gen. Wilhelm Meister und seine Brüder: Untersuchungen zum deutschen Bildungsroman. München: Wilhelm Fink, 1972, cap. I; MAAS, Wilma Patrícia. O cânone mínimo: O Bil-dungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2000, cap.1.

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lenbeck e Fritz Ringer28 não deixam de destacar a importância do ideal da autonomia para uma definição do conceito de Bildung.

Dentre as características do perfil do homem culto aqui propostas, creio que seja a autonomia a mais frágil. O próprio Schiller já vislum-brava a dificuldade de sua realização29 ao notar a abissal diferença entre o homem antigo e o homem moderno justamente neste aspecto. Jacob Burckhardt, por sua vez, dirá que o homem clássico era capaz de conjugar ordem e liberdade, de se tornar pleno somente na pólis30.

Poderia, portanto, dizer que a autonomia ainda é mais um horizonte normativo do que algo concreto e palpável; mais do que criticada, ela foi transformada, corrigida, revista. Basta lembrarmos que a autonomia individual foi criticada em nome de outra forma de autonomia, mais exa-tamente a autonomia de classe; ou, de maneira provavelmente até mais feroz, a autonomia da racionalidade teria tido suas pretensões claramente delimitadas pela psicanálise, ainda que as mesmas teorias baseadas em Freud tenham reconhecido que o desejo, se não é autônomo e livremente escolhido, pelo menos pode, mediante tratamento psicanalítico, se reco-nhecer enquanto tal.

Se pudesse dizer algo de mais seguro sobre o ideal de autonomia, diria que ela tem clareza sobre o seu oposto: a utilidade. E é um rival poderoso. Quem negaria que nos sentimos pressionados, seja pela instru-

28 – Bollenbeck e Ringer mostram como o ideal de autonomia foi decisivo para uma defesa da autonomia da ciência perante as exigências práticas da vida, ainda que Ringer o tenha estudado de forma mais empírica, analisando o caso das instituições de ensino superior na Alemanha no final do século XIX e no início do XX. Cf. BOLLENBECK, Georg. Bildung und Kultur: Glanz und Elend eines deutschen Deutungsmusters. Frankfurt am Main: Surhkamp, 1996, p. 222; RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: A Comunidade acadêmica alemã 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000, p. 25.29 – “Que indivíduo moderno apresentar-se-ia para lutar, homem a homem, contra um ateniense pelo prêmio da humanidade?” SCHILLER, Friedrich. A Educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 40. 30 – “A ideia grega de Estado, ao subsumir totalmente o particular ao universal, propiciou simultaneamente (...) a capacidade do indivíduo se aprimorar ao máximo”. In: BURCK-HARDT, Jacob. Kritische Gesamtausgabe – Band 19: Grieschiche Kulturgeschichte – Band 1: Die Griechen und ihr Mythus/ Die Polis. Org. Jürgen Ungern-Sternberg. Mün-chen: Beck; Basel: Schwabe & Co., 2002, p. 61.

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mentalização política do conhecimento (um risco presente, por exemplo, na tendência nacionalista do historicismo), ou pelo próprio mercado, que avalia o conhecimento como uma mercadoria, sujeito às mesmas flutua-ções e caprichos de um produto como um detergente ou uma máquina de lavar? Para Jörn Rüsen, esta é ainda uma grande função da Bildung: armar-nos contra a instrumentalização31. Que não conseguimos totalmen-te escapar de forças incontroláveis que nos determinam (pesadelo muito bem descrito por Franz Kafka em O Processo) é algo já experimentado, mas coisa diversa é simplesmente sermos dóceis, e, pior, aceitos justa-mente por nos deixarmos instrumentalizar, de que servirá de eterno exem-plo Adolf Eichmann. A questão me parece, portanto, ser a seguinte: como escapar das demandas utilitárias, como filtrá-las e, ainda, assim, não con-fundirmos autonomia com um isolamento medroso e autocomplacente?

III

Como disse acima, quando tratei da importância da universalidade para a definição do homem culto, citei, além de Hegel, o historiador Jacob Burckhardt. O grande suíço manifestava suas reservas quanto à especia-lização crescente, razão pela qual sofreu consideráveis críticas em seu final de carreira. Após a publicação de obras célebres como A era de Con-stantino Magno, O cicerone e A cultura do Renascimento na Itália, Bur-ckhardt praticamente renunciou à atividade de publicar. Havia decidido se tornar um professor, alguém capaz de formar não somente futuros pes-quisadores, mas os habitantes de sua Basileia natal. O seu curso sobre a História da cultura grega, postumamente publicado, cumpria exatamente este objetivo. Em sua primeira aula, Burckhardt foi bastante feliz ao dizer que “(...) o dever especial do homem culto é completar em si, o máximo possível, a imagem da continuidade do desenvolvimento universal; isso o distingue, como espírito consciente, do bárbaro, que é inconsciente”32. 31 – Cf. RÜSEN, Jörn. Lebendige Geschichte: Grundzüge einer Historik III – Formen und Funktionen des Wissens. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989, p. 87.32 – BURCKHARDT, Jacob. História da cultura grega: Introdução (1872). In: MAR-TINS, Estevão de Rezende (org.) A História pensada: Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 172. Para o conceito de Bildung em Burckhardt, ver: GOSSMAN, Lionel. Basel in the Age of Burckhardt: Studies in Un-seasonable Ideas Chicago: The University of Chicago Press, 2000, p. 272. WEILER, In-

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Esta é a terceira definição lapidar da qual gostaria de me servir, que lhes apresento como mote para desenvolvimento da discussão sobre o homem culto, especialmente ressaltada por Thomas Nipperdey33.

Para Burckhardt, a tarefa não seria nada simples. Promover a conti-nuidade, no caso de seu curso sobre os gregos, implicava demonstrar para seus alunos e ouvintes o quão fundamental era a cultura clássica para o mundo moderno, e, mais ainda, o quanto a massificação tornava o homem contemporâneo crescentemente incapaz para compreender suas próprias origens. Afinal, se, por um lado, “(...) nós vemos com os olhos dos gre-gos e falamos com suas expressões”34, por outro, o homem moderno lei-tor de jornais e ansioso por novidades perdeu sua capacidade de ouvir a poesia35; na religião, a tendência é interpretar a religião grega, mantendo com ela uma relação mediada, e não imediata, tangível e sensível36; na política, segundo Burckhardt, dividimos indivíduo e Estado, e, assim, tendemos seja para a anarquia ou para o despotismo. Nada temos da altu-

gomar. Jacob Burckhardt und die Altertumswissenschaft seiner Zeit. In: BURCKHARDT, Leonhard & GEHRKE, Hans-Joachim (orgs.). Jacob Burckhardt und die Griechen. Basel: Schwabe; München: Beck, 2006, pp. 49-52. 33 – “(...) a formação é, diferentemente da escola, um processo vitalício e interminável, e, por esta razão, tem seu fim em si mesma (...) A Bildung se separa do mundo da práxis, do trabalho, da economia, do ganho de dinheiro”. In: NIPPERDEY, Thomas. Deutsche Ges-chichte 1800-1866: Bürgerwelt und staarker Staat. München: Beck, 1998, p. 58. Note-se aqui uma associação entre o ideal de autonomia e o de continuidade como expressão da infinitude. 34 – BURCKHARDT, Jacob. Kritische Gesamtausgabe – Band 19: Grieschiche Cultur-geschichte – Band 1: Die Griechen und ihr Mythus/ Die Polis. München: Beck; Basel: Schwabe & Co., 2002, p. 371.35 – “No Olimpo, o canto e a música estão em casa. Mas, além destes Deuses, os seus antecessores terrenos dos aedos se tornam figuras maravilhosas, se transformando em mitos trágicos. Mas caso queiramos ter a perspectiva certa sobre a relação destes aedos com seu público, precisamos, acima de tudo, abstrair de tudo que nos cerca. Nada nos é mais estranho do que um povo que não se interessa pela novidade do momento, mas que, de maneira urgente e ansiosa, busca mensagens destes Deuses e heróis (....) por ele criados (...) O povo ouvinte acreditava em tudo o que ouvia e ansiava por mais. Nesta grande imagem idealizada de seu ser duradouro, desfrutava os gregos, em certa medida, da eternidade, enquanto nós estamos meramente rodeados de jornais”. BURCKHARDT, Jacob. Kritische Gesamtausgabe – Band 20: Grieschiche Culturgeschichte Band II. Mün-chen; Beck; Basel: Schwab 2005, p. 37.36 – Cf. BURCKHARDT, Jacob. Kritische Gesamtausgabe – Band 20: Grieschiche Cul-turgeschichte Band II. München; Beck; Basel: Schwab 2005, pp.75-76.

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ra da sophrosyne grega37. Logo, a pergunta: como construir a imagem da continuidade, se perdemos os órgãos capazes de realizá-la?38

Um outro autor capaz de nos ajudar e de oferecer algo de mais posi-tivo e afirmativo para pensar como construir a imagem da continuidade é Wilhelm Dilthey. Em seu ensaio sobre Schiller, escrito em 1895, ele diz que a poesia “consiste na criação de um mundo novo na fantasia, no qual se descobre o sentido do mundo real ao transfigurá-lo por meio de um estilo”39. Ou seja: a poesia não é reprodução do mundo; tampouco se distancia do mesmo, como se tivesse a mera função contemplativa de compensar as frustrações da aridez cotidiana; ela recria o mundo real em sua forma. E será esta capacidade de rememoração que distinguirá, para Dilthey, a obra clássica. Esta será o momento em que uma cultura pensa a si mesma, ou seja, é na forma específica de uma obra – e só nela – que o historiador poderá perceber a conexão entre elementos que, sem o seu surgimento, permaneceriam dispersos. Para Dilthey, “Schiller possuía uma assombrosa capacidade para articular interiormente e atualizar coe-sões extraordinariamente complexas, dispersas no espaço e no tempo”40.

Poderíamos, sem medo, aplicar o mesmo para Burckhardt, para quem os gregos não nasceram universais e fundamentais. Isto é fruto do processo histórico, contingente e acidentado. É como se demonstrásse-mos, no caso da cultura brasileira, que, na bossa-nova de Tom Jobim e João Gilberto, se reúnem elementos objetivamente heterogêneos, como a música de Claude Debussy, Heitor Villa-Lobos, Chet Baker e Pixingui-nha.

37 – BURCKHARDT, Jacob. Kritische Gesamtausgabe – Band 19: Grieschiche Kultur-geschichte – Band 1: Die Griechen und ihr Mythus/ Die Polis. München: Beck; Basel: Schwabe & Co., 2002, p. 55.38 – Desenvolvi este problema com mais vagar no seguinte artigo: CALDAS, Pedro Spi-nola Pereira. El hombre culto: una aproximación a la Historia de la Cultura Griega, de Jacob Burckhardt. Historiografías, n.1, 2011, pp. 23-34. http://www.unizar.es/historio-grafias/numeros/1/cald_r.pdf39 – DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesía. México (D.F.): FCE, 1978, p.197.40 – Idem, p. 200.

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Desde da segunda metade do século passado a ideia de continuidade tem sido fortemente criticada. Autores como Hayden White, por exem-plo, demonstraram que a continuidade, muitas vezes, impõe à realidade histórica uma “máscara de sentido” que, portanto, ela mesma não possui, evitando, desta maneira, a angústia determinada pelo caráter aberto e con-tingencial da vida41. De maneira por vezes menos sofisticada, a continui-dade tem sido identificada com uma narrativa linear, na qual fica implícita uma concepção de história como progresso.

Ora, não que, por vezes, os historiadores – e não somente os histo-riadores – reduzam o sentido da vida e que toda teleologia pressupõe uma concepção de continuidade, mas nem por isso a “construção da imagem da continuidade” necessariamente nos deve levar a nos apressarmos a esconder a angústia gerada pela imprevisibilidade de nossas vidas e a sermos ingenuamente teleológicos.

Penso que ainda podemos pensar em continuidade como uma forma de exercício de paciência, ou seja: devemos enfatizar que a continuidade é uma imagem construída, e, assim, cabe-nos procurar explicações com-plexas, evitando reducionismos, determinismos, todos apressados, por exemplo, a atribuir a uma só causa a explicação de fenômenos históricos. E Nietzsche – aliás, também um admirador de Burckhardt – já afirmava, no crepúsculo do século XIX, ser necessário “(...) adiar o julgamento, aprender a rodear e a cingir o individual de todos os lados. Esta é a pri-meira preparação para a espiritualidade: não reagir de imediato a um es-tímulo (...) Toda vulgaridade (...) se baseia na incapacidade de resistir a um estímulo”.42 Dito de outra forma: a continuidade não está cifrada em um processo histórico objetivo, mas deve ser elaborada em nós, como exercício subjetivo.

41 – Cf. WHITE, Hayden. The Value of Narrativity in the Representation of Reality. In: ______. The Content of the Form: Narrative discourse and historical representation. Bal-timore; London: The Johns Hopkins University Press, 1987, p. 21.42 – NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 60.

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Como isto seria possível na prática de pesquisa e até na sala de aula? Neste ponto, sou até mais otimista, muito embora também admita que a pressa em explicar, o desejo social em acusar e encontrar bodes expia-tórios sejam forças poderosas, todas elas a serviço de grandes mecanis-mos de naturalização. Mas, enfim, creio que Max Weber, em seu clássico ensaio sobre a objetividade nas ciências sociais, deu um bom exemplo de como fornecer explicações complexas, demonstrando a possibilidade, no âmbito das humanidades, em se discernir, pela pesquisa, entre alguns tipos de causalidade. Se lermos atentamente este texto de Weber, identi-ficamos, pelo menos, três níveis de causalidade: a causa nominal, a causa relevante e a causa condicionada43. Por exemplo: ao analisar um filme, podemos atribuir como causa nominal aspectos estéticos essenciais para a compreensão da obra (roteiro, atores escolhidos, direção, fotografia, montagem etc.); posso também demonstrar aspectos relevantes, como, por exemplo, a ideologia do diretor, de forma que um filme, aparentemen-te um fenômeno artístico, ganha se visto pelo ângulo político. Mas não posso esquecer, por exemplo, causas condicionais, sem as quais o filme não teria sido possível, como condições econômicas de financiamento e produção, sua distribuição pelas salas de exibição, sua transposição para outros veículos de comunicação e sua recepção crítica. Demonstrar, por exemplo, que devemos – como disse Nietzsche – “rodear o individual de todos os lados”, de alguma maneira nos leva a perceber que somos deter-minados de maneiras múltiplas, que possuímos camadas e camadas sob nossos pés, e cabe-nos justamente reconstruir esta profundidade que não está simplesmente sob nossos pés, mas que está dentro de nós. A opção por sabê-las é uma aposta.

Neste sentido, a crise das grandes narrativas não é, de modo algum, uma crítica ao exercício da paciência. Diria até que para explicar fenô-menos como o Holocausto – para falar do evento que legitima, não sem alguma razão, a crítica às grandes narrativas – exige uma compreensão que, muito provavelmente, exigiria uma forma de imputação causal ainda 43 – Cf. WEBER, Max. A “Objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. . In: ______. Metodologia das ciências sociais, vol.1. São Paulo: Cortez; Campi-nas: Editora da Unicamp, 1993, p.118.

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mais complexa do que a sugerida por Weber. E me arriscaria a dizer que os textos considerados altamente problemáticos ou até mesmo imorais (como os dos negacionistas) recaem, cientificamente, nesta incapacidade de tecer uma rede causal.

Conclusão

Para concluir, farei duas ressalvas ao que acabo de dizer: em primei-ro lugar, minha intenção não era restaurar o ideal da Bildung tal como ele foi vivido e pensado na Alemanha desde fins do século XVIII até fins do XIX, começando em Goethe e Schiller e velado por Burckhardt e Nietzsche. Estudos – como o de Fritz Ringer44 – já lhe apontaram limites sociais e políticos a não serem menosprezados. Sei que, além de apontar as dificuldades objetivas em tratar do assunto, deveria ter assumido, logo no início, o risco subjetivo de idealizar, cristalizar, ou, para usar um termo nietzschiano, monumentalizar o conceito de Bildung e prantear como car-pideira sua inatualidade. Reconheço suas origens sociais e, neste sentido, históricas e datadas. Para ficar em um exemplo: a ideia de universidade de Schiller, demasiadamente inatual e até cruel para uma sociedade de massas como a nossa, é impraticável. Mas o meu propósito foi apenas o de identificar estas críticas e demonstrar que tais traços não envelheceram ou desbotaram de todo; restaurá-los me pareceria uma maquiagem mór-bida. Talvez fosse necessário desenhá-los novamente, e ver, sobretudo, que a barbárie da especialização (manifesta na universalização da própria experiência), o absolutismo da utilidade e a pressa em julgar ainda estão presentes, e que o pluralismo metodológico, a resistência à instrumentali-zação e a busca de explicações complexas ainda são, a meu ver, caminhos possíveis de serem trilhados. Não são fáceis.

Em segundo lugar, estou consciente – embora isto não isente minha tipologia de críticas – de que posso estar me contradizendo de maneira gritante ao definir o homem culto como um ser paciente, e, ao mesmo tempo, submetê-lo a uma tipologia, a uma grade fechada, abstrata e, por

44 – Cf. RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: A Comunidade acadêmica alemã 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.

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isso, sujeita a ser uma mera fórmula. Mas talvez seja necessário apon-tar alguns pontos de partida – que jamais prescindiram da documentação – para encontrar motivação para perceber que, sim, a aposta na cultura ainda é algo válido e digno de engajamento, bastando, para tal, perceber o quanto o utilitarismo, a pressa e a universalização de experiências par-ticulares são ameaças exteriores e, muitas vezes, interiores.

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Texto apresentado em junho/2012. Aprovado para publicação em agosto/2012.

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D. PEDRO II E O CAMPO CIENTÍFICO: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO IMPERADOR

D. PEDRO II AND THE SCIENTIFIC AREA: NEW PERSPECTIVES ON THE EMPEROR’S TRAJECTORY

aLessaNdra BetteNcourt FiGueiredo FraGuas 1

1 – Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciada em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Integra a equipe do Arquivo Histórico do Museu Imperial/Ibram/MinC. Sócia titular do Instituto Histórico de Petrópolis. E-mail: [email protected].

Resumo:Este artigo tem como objetivo discutir novas hi-póteses sobre a trajetória de D. Pedro II, a partir de sua relação com o campo científico. O traba-lho tem como fontes os documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil – a documentação privada do imperador – custodiados pelo Museu Imperial, com destaque para os 44 diários e a correspondência com intelectuais como Fran-cisco Adolpho de Varnhagen, Antonio Gonçal-ves Dias, Alexandre Herculano e Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau. Esses docu-mentos são fontes privilegiadas para a reflexão sobre questões mais amplas inerentes ao perío-do monárquico brasileiro, entre elas a constru-ção da identidade nacional, e para a busca nos relatos deixados pelo imperador de aspectos reveladores em relação à problemática teórica fundamental: a dialética entre agente social e estrutura social. A luta pela hegemonia do dis-curso no campo científico, a partir de uma nova ciência – a Antropologia –, mostra-se como um fio condutor interessante para se repensar a trajetória de D. Pedro II em sua passagem do ethos aristocrático ao ethos burguês. A pesqui-sa permite afirmar que D. Pedro II participou efetivamente destes debates, não apenas como diletante, mecenas ou rei ilustrado, mas de uma maneira incisiva que aproximaria o seu modo de pensar, sobretudo a partir da década de 1870, ao repertório de ideais da geração de intelectuais de 1870, o que se apresenta como uma nova perspectiva para a compreensão da paradoxal e complexa trajetória do imperador.

Abstract:The purpose of this article is to discuss new hy-potheses on the trajectory of Emperor D. Pedro II, based on his relations with the scientific area. The sources for this work were documents from the Archives of the Brazilian Imperial House – the Emperor’s private documents – under the custody of the Imperial Museum. We focused on the 44 diaries and his correspondence with intellectuals such as Francisco Adolpho de Varnhagen, Antonio Gonçalves Dias, Alexandre Herculano and Jean Louis Armand de Quatre-fages de Bréau. These documents are privileged sources for the reflection on larger issues inher-ent to the period of the Brazilian monarchy; among others, the building of a national iden-tity. They are also sources for the search in the reports left by the Emperor of revealing aspects relating to a vital theoretical problem: the dia-lectics between social agent and social struc-ture. The struggle for the supremacy of debates on the scientific area, including a new science – anthropology – appears to be an interesting lead to help rethink D. Pedro II’s trajectory dur-ing his transition from the aristocratic ethos to the bourgeois ethos. The research allows us to reaffirm that D.Pedro II actually participated in the debates, not just as a dilettante, a sponsor or a cultured king, but rather in a decisive manner that would bring his way of thinking, especially as from the 1870’s, closer to the catalogue of ideas from the generation of the 1870 intellec-tuals; this appears to be a new perspective to help understand the Emperor’s paradoxical and complex trajectory.

Palavras-chave: D. Pedro II; Trajetória; Antro-pologia.

Keywords: D. Pedro II; Trajectory; Anthropo-logy.

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1. IntroduçãoA História nacional deve ser a imagem da verdade histórica apresen-tada da forma que, segundo a consciência do historiador, interessa e convém à nação. Francisco Adolpho de Varnhagen

A assertiva do primeiro-secretário do Instituto Histórico e Geográ-fico Brasileiro, Francisco Adolpho de Varnhagen, em 1851, possibilita importantes reflexões sobre os usos políticos da historiografia e, em par-ticular, sobre os usos das fontes históricas. Portanto, é com esta questão a respeito da escrita da história, que desejamos começar nossa exposição.

Antes de delinearmos as hipóteses que norteiam este trabalho, gosta-ríamos de discutir a historicidade da leitura das fontes, o seu uso em outro momento histórico, e a releitura que ora se apresenta, e que justamente possibilita novas problematizações teórico-metodológicas.

O trabalho tem como fontes documentos relativos às viagens de D. Pedro II pelo Brasil e pelo mundo, que fazem parte do Arquivo da Casa Imperial do Brasil, custodiados pelo Arquivo Histórico do Museu Imperial, nominados com o Registro Nacional no Programa Memó-ria do Mundo da Unesco em 2010. Além destes, a correspondência de D. Pedro II com intelectuais brasileiros e estrangeiros, durante e após a década de 1850, entre os quais destacamos Francisco Adolpho de Varnha-gen, Antonio Gonçalves Dias, Alexandre Herculano e Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau.

Estes documentos são fontes exaustivamente consultadas, mas a nossa proposta é uma releitura das mesmas, a partir da pesquisa intensiva que a participação no projeto de elaboração do dossiê de candidatura dos Documentos relativos às viagens do imperador d. Pedro II pelo Brasil e pelo mundo ao Registro Internacional do Programa Memória do Mundo encaminhado à Unesco nos permitiu.

Durante a pesquisa, foram lidos cerca de 30 mil documentos – todos os documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil entre 1840 e 1932 mais os documentos sem data –, em dois anos, dos quais identificamos

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2.210 documentos relativos às viagens de D. Pedro II, com destaque para os 44 diários do imperador.

A análise integrada desta documentação de caráter privado nos per-mitiu perceber meandros e minúcias que não ficariam evidentes em uma análise segmentada, ou em documentos oficiais, por exemplo. O arquivo pessoal nos permitiu observar as opções e escolhas que foram feitas, ou, justamente os espaços de manobra e o espaço de atuação dos agentes sociais – o lugar dos indivíduos –, além da rede de relações sociais e as articulações políticas sempre presentes, ainda que nas entrelinhas.

Assim, o arquivo pessoal de D. Pedro II nos permitiu repensar o campo historiográfico no Brasil, enquanto este, dialeticamente, nos pos-sibilita rever e trazer novas questões sobre a trajetória do segundo impe-rador do Brasil, o que é a proposição deste trabalho.

2. O campo historiográfico e D. Pedro II

A cem anos de distância do dia em que nasceu dom Pedro II, reunamo--nos em volta do seu nome, (...) animados da alegria intelectual de procurar compreender uma grande vida, dramaticamente ligada à vida do Brasil. (...) A cem anos de distância, um morto não precisa de nossa condescendência. (...) Ora, dom Pedro II chega até nós. Uma grande saudade o faz viver. (FREYRE, 2011: 133-134)

Em 1930, o historiador Alberto Rangel, contratado para inventariar os documentos de caráter privado da família real e imperial do Brasil, concluiu o seu trabalho, que foi publicado, em dois tomos, com 14 mil verbetes e aproximadamente 40 mil documentos, pela Biblioteca Nacio-nal, em 1939. Portanto, estes documentos permaneceram inéditos até a década de 1930, quando começaram a ser franqueados a pesquisadores, pelo príncipe do Grão-Pará, neto de D. Pedro II, ainda no Castelo D’Eu, na França.

Neste contexto, há uma congruência de interesses políticos e histo-riográficos. De um lado a política implementada pelo governo do presi-dente Getúlio Vargas (1930-1945), relacionada ao debate sobre a iden-

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tidade nacional suscitada pelos intelectuais modernistas, como Rodrigo Melo Franco de Andrade, Gustavo Capanema, Mário de Andrade, Lúcio Costa e Carlos Drummond de Andrade. A criação de museus nacionais, neste sentido, estava ligada à intenção de repensar a história e a identi-dade nacionais e revitalizar a memória de períodos históricos relegados pelos embates políticos e ideológicos.

Por outro lado, a abertura do arquivo pessoal da Família Real e Im-perial do Brasil causou verdadeiro afã no meio intelectual e acadêmico. Em 1940, o IHGB aprovou uma moção apelando para que estes docu-mentos fossem trazidos para o Brasil. Paralelamente, os primeiros tra-balhos acadêmicos a partir destas fontes começaram a ser produzidos e publicados. Destacamos os de Pedro Calmon e Heitor Lyra2, que estão entre os primeiros estudos biográficos sobre D. Pedro II, publicados ainda na década de 1930.

Finalmente, em 1948, o Arquivo da Casa Imperial do Brasil foi doa-do ao recém-criado Museu Imperial3 e, desde então, inúmeros outros tra-balhos sobre D. Pedro II foram produzidos, inclusive no âmbito desta instituição.

Diante do exposto, ainda que tenhamos empreendido uma leitura ex-tensa, intensa e integrada do arquivo pessoal de D. Pedro II, trazer um novo feixe de luz sobre sua trajetória de vida não deixa de ser, por isso, menos desafiador.

E este desafio biográfico deve-se a dois pontos fundamentais: pri-meiro porque muitos pesquisadores reconhecidos pela academia já se dedicaram a esta tarefa e, portanto, problematizar em relação a algumas

2 – As obras são: O rei filósofo, de Pedro Calmon, publicada em 1938, e História de D. Pedro II (3 volumes), de Heitor Lyra, publicada entre 1938 e 1940.3 – As negociações para a doação tiveram início em 1947 e foram concluídas em 1949, conforme processos 675/1947 e anexos e 123/1949. Para maiores detalhes, ver O arquivo do Museu Imperial, de Alcindo Sodré, publicado no Anuário do Museu Imperial, vol. 11, 1950, pp. 157-175; e Reflexões sobre o arquivo da família imperial e o papel de D. Pedro II na sua formação, de Maria de Fátima Moraes Argon, publicado pelo Instituto Histórico de Petrópolis. Disponível em: www.ihp.org.br

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teses já consolidadas requer um certo esforço. Segundo, como nos alerta Sérgio Buarque de Holanda a respeito de D. Pedro II,

por maior que possa ser a tentação de querer reduzir o papel que um homem só possa exercer no curso da história, força é confessar que os poderes que enfeixava o imperador, e ninguém mais os teve no mesmo grau entre nós, não deixam silenciá-lo ou subestimá-lo. (HOLANDA, 2010:141)

Muito mais que um imperador “cinzento”, para usarmos a expressão empregada por Gilberto Freyre em uma conferência de 19254, percebe-mos D. Pedro II como um indivíduo paradoxal e complexo, do qual, nem as biografias laudatórias e hagiográficas nem as biografias que pretendem dar um sentido linear à sua vida conseguem dar conta. O próprio Holanda, aliás, afirma que a partir de 1848, D. Pedro II “se conservará o mesmo até o fim da vida. (...) trazendo a marca da perfeita coerência e imobili-dade mental” (2010:140). Assim, o primeiro objetivo do nosso trabalho é contrapor à tese do imobilismo uma outra que mostre a complexidade da trajetória de vida de D. Pedro II.

Quanto à relação de D. Pedro II com o campo científico – uma de nossas problemáticas –, notamos que as diversas teses sobre o tema se aproximam quanto ao pensamento a respeito do interesse de D. Pedro II pelo desenvolvimento científico: sempre apresentado como dis-tração diletante, curiosidade ou mecenato.

Ainda em 1943, é publicado no Anuário do Museu Imperial o artigo D. Pedro II e a língua tupi, no qual o autor afirma que D. Pedro II foi “o patrono dos que dedicavam sua atividade intelectual a investigações so-bre as línguas indígenas do Brasil” (GARCIA, 1943:10).

Sérgio Buarque de Holanda não se distancia desta proposição, e diz que além de D. Pedro II ter-se dedicado a objetos díspares de co-

4 – Gilberto Freyre. D. Pedro II, imperador cinzento de uma terra de sol tropical. Con-ferência lida na Biblioteca do Estado de Pernambuco, em 1925. Publicada em Perfil de Euclides e outros perfis.

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nhecimento, impedindo que se aprofundasse em um campo específico, não deixou nunca apaziguar sua “insaciável curiosidade” (HOLANDA, 2010:135, grifo nosso).

No final da década de 1990 são lançadas duas obras fundamentais sobre D. Pedro II: Citizen Emperor, de Roderick Barman, e As barbas do imperador, de Lilia Schwarcz5. Desde então, a problemática teórica abor-dada por Schwarcz – os fundamentos simbólicos da estrutura social – tem sido seguida pelos demais trabalhos sobre o segundo imperador do Brasil, em maior ou menor grau6.

Neste aspecto, pretendemos discutir a tese consagrada por Lilia Sch-warcz em As barbas do imperador, sobre a construção simbólica da ima-gem do imperador D. Pedro II, de órfão da Nação a cidadão cosmopolita e intelectual.

Somando-se a esta tese, é consenso entre os pesquisadores que havia por parte de D. Pedro II uma intenção racionalmente arquitetada para que seus relatos fossem deixados para a história (enquanto campo de conheci-mento e como campo de acontecimentos). Há documentos onde esta von-tade é claramente explicitada, como na carta enviada do exílio, em junho de 1891, ao seu procurador Silva Costa7. Em muitos documentos, corres-pondência, por exemplo, fica clara a preocupação do imperador com a sistematização e a organização de seus relatos, mesmo que a posteriori.

No entanto, ao contrário do que é proposto por Schwarcz, afirma-mos que há muitos momentos na documentação onde, para parafrasear-mos a metáfora empregada em As barbas do imperador (SCHWARCZ, 2010:25-33), o rei se deixa ver nu. Ou seja, há narrativas que deixam muito evidente que o projeto intencionado pelas elites nacionais para a construção da imagem do imperador e, por conseguinte, do próprio Es-5 – Além destas obras, destacamos a publicação, pelo Museu Imperial, dos Diários de D. Pedro II, sob a organização de Begonha Bediaga, em 1999.6 – Citamos, por exemplo, o recente trabalho de Marcelo de Araujo, Dom Pedro II e a moda masculina na época vitoriana, publicado em 2012.7 – Esta carta faz parte do acervo do Arquivo Histórico do Museu Imperial, sob a notação I-DAS-08/06/1891-PII.B.c

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tado Nacional, começou a destoar do ethos reelaborado por D. Pedro II, gerando uma contradição que, ao fim e ao cabo, levaria ao esgotamento da forma de governo.

Em outro texto, sobre o museu do imperador, Schwarcz (2008:134) retoma a tese da teatralização do poder, para a qual o interesse científico do monarca seria um importante capital simbólico, reiteradamente usado na sua representação de mecenas ilustrado e, portanto, civilizado: “Mas o importante é que aqui o Imperador reinava e fazia das ciências da época seu grande teatro” (SCHWARCZ, 2008:135).

Nosso pensamento se aproxima do apresentado por Regina Dantas em seu importantíssimo trabalho de recuperação da memória da casa do imperador, o Paço de São Cristovão (DANTAS, 2007). No entanto, ainda diverge do mesmo, porque, no nosso entender, a autora acaba por reafirmar a formação do museu de D. Pedro II, incluindo a sua coleção etnográfica, como importante elemento para a construção da imagem do imperador, especialmente no exterior, coadunando-se com a tese de Lilia Schwarcz. Segundo Dantas (2007:242), o imperador intencionava desta-car a sua imagem como “homem das ciências” através do colecionamento de objetos, ao que define como “a intenção do imperador em colecionar objetos ligados às diferentes áreas do conhecimento – visando ser reco-nhecido como erudito”.

Assim identificamos uma intenção do monarca em desenvolver uma política dos objetos que tinha como ordenação o discurso político. Portanto, principalmente após a guerra do Paraguai, as imagens ofi-ciais do monarca passaram a ter sua representação associada à ciência e ao conhecimento de sua época; o que fortaleceu o perfil de estadista mecenas. (DANTAS, 2007:207)

No nosso entendimento a noção de teatralização do poder é bastante controversa, porque implicitamente traz consigo a ideia de um sujeito racional, que calcula milimetricamente suas ações. Não subestimamos a importância dos fundamentos simbólicos da vida social, particularmente nos processos de legitimação da dominação, mas optamos pela linha de

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pensamento que se preocupa com a análise das lutas que perpassam a estrutura social – entre dominantes e dominados – e que acabam por se desdobrar, analogamente, em lutas intra e intercampos. Assim, percebe-mos a autonomia do agente social, porém reconhecemos que este sofre os condicionamentos e as limitações da estrutura social, além de ter que lidar com as lutas, inclusive pela hegemonia do discurso, que perpassam os campos que formam a estrutura social.

Neste sentido, nossa proposição é a de que o interesse de D. Pedro II pelo desenvolvimento científico, que o levaria a ter um museu particular cujas peças obedeciam à catalogação universal feita por ele mesmo, evi-dencia muito mais as lutas no campo científico, relacionadas à construção de um discurso pautado unicamente na racionalidade e ao surgimento de novas ciências, do que as lutas no campo político, para o qual a funda-mentação simbólica do poder era essencial. Os capitais valorizados no campo científico são evidentemente diferentes dos capitais valorizados no campo político, por exemplo, sobretudo em uma sociedade aristocrá-tica. Em outras palavras, percebemos que na trajetória de D. Pedro II o capital cultural se sobrepõe ao capital social.

Como dito, a nossa problematização baseia-se na aceitação de uma dialética entre objetividade e subjetividade. Portanto, partimos da hipó-tese de que a atuação de D. Pedro II no campo científico, dialeticamente, apresentaria ao imperador novos valores – pautados na racionalidade –, que o levariam ao distanciamento dos problemas estruturais do império, fundamentado na tríade aristocracia-monocultura-escravismo, ao que Freyre (2011) e Holanda (2010), por exemplo, denominam imobilismo. Esta perspectiva nos ajuda a compreender, por exemplo, a resistência do imperador a certos rituais da sociedade de corte: muitas vezes preferia atender a um cientista em vez de um representante de legação estrangeira, como atesta a exortação de Varnhagem.

Meu Senhor, que alguma vez tenho tido que combater a errada Idea de que Vossa Magestade Imperial agasalha pouco, aos estrangeiros, co-meçando pelos individuos do corpo diplomático acreditados em Sua Corte, com os quaes não usa das attenções a que estão acostumados em

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outras Cortes, começando pela maior generosidade de certas graças, quando se mostram polidos e agradáveis. (...) Como amo demasiado a V. Magestade Imperial para poder adula-lo, ousarei acrescentar que há gente em quem certas graças não se entendem como recompensa de serviços, e aquém ás vezes é até político penhorar com dádivas que obrigam pela gratidão a calar murmurações. (VARNHAGEN, Fran-cisco Adolpho de. Carta a D. Pedro II.. Madri, 2/5/1852.)

Nosso intento é apresentar, por um lado, D. Pedro II como um agen-te histórico que reelaborou e rompeu com o projeto pensado pela elite nacional (patriarcal), e, por outro lado, como um agente nos campos in-telectual e científico, e não apenas um patrono, ou no máximo, um rei ilustrado, o que o teria levado a romper com a forma de dominação patri-monialista em sua passagem à forma de dominação burocrático-racional, que ao fim e ao cabo geraria a contradição que levou ao esgotamento do seu de governo.

A nossa pesquisa mostrou que D. Pedro II não só acompanhou de muito perto todas as discussões que envolveram as mudanças de discurso no campo científico, como efetivamente participou de muitas delas, como podemos comprovar pela correspondência que mantinha com os princi-pais intelectuais e cientistas de seu tempo.

Uma primeira nova evidência da nossa pesquisa foi o valor etnográ-fico dos diários de D. Pedro II. A princípio observamos que os relatos de D. Pedro II coadunavam-se com os de quaisquer outros viajantes, inclu-sive estrangeiros, que estiveram no Brasil durante o século XIX e fizeram os registros de suas viagens, importantes em um primeiro nível de infe-rência nos estudos antropológicos.

No entanto, o desenvolvimento do trabalho permitiu percebermos que estes relatos não tinham valor etnográfico por uma conformação a posteriori, mas que havia ligações reais, concretas, de D. Pedro II com a nova ciência – a Antropologia – e que já nos documentos de 1859/60 es-tavam implícitas discussões que seriam consideradas pelo imperador nas décadas seguintes, a partir da perspectiva de uma escala civilizacional,

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e que são fios condutores interessantes para se pensar a trajetória de D. Pedro II em sua passagem do ethos aristocrático ao ethos burguês, que é a proposta fundamental do nosso trabalho.

Para puxarmos o fio da meada, consideramos a década de 1850 como um marco, porque está relacionada, primeiro, à pesquisa e a cópias de documentos em arquivos portugueses para complementação dos arquivos do império, ou seja, à própria estruturação da história nacional; segundo, aos estudos corográficos e a importância de se estabelecer e de se conhe-cer o território, os limites, as fronteiras do império; terceiro, aos debates em torno da consolidação do Estado-Nação e sobre suas “origens”, que deveriam, ou não, incluir as diversas nações indígenas; quarto, à segunda grande viagem de D. Pedro II pelo Brasil, entre 1859 e 1860, quando vi-sitou as províncias do Norte.

3. D. Pedro II e o campo historiográfico Porque ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste País que Dom Pedro II. Nem menos indígena e mais europeu. (FREYRE, 2006: 713)

A partir da década de 1850, várias cartas entre D. Pedro II e Francis-co Adolfo de Varnhagen e Guilherme Capanema, por exemplo, apontam para a necessidade de o imperador conhecer outras províncias e até mes-mo viajar ao exterior – para a importância de D. Pedro II conhecer o e se fazer conhecer – e, finalmente, sobre a necessidade de mapeamento do território e conhecimento científico sobre as riquezas naturais país.

Paralelamente, a correspondência do imperador com Antonio Gon-çalves Dias, incumbido de copiar nos arquivos europeus, especialmente na Torre do Tombo, em Lisboa, documentos relacionados à história do Brasil, permite ao pesquisador mapear o processo de escrita da identidade nacional: do mito fundador indigenista à visão etnocêntrica civilizadora.

O debate suscitado pela publicação da obra Confederação dos Ta-moios, poema épico de 1856, escrito por Domingos José Gonçalves de Magalhães, nos parece interessante para defender nossa hipótese, porque

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delineia algumas posições que marcariam D. Pedro II durante toda a sua trajetória, entre elas, a defesa do cientificismo, ou de um novo paradigma científico. Especificamente neste ponto, é interessante notarmos as po-sições tomadas por Varnhagen, Gonçalves Dias e Alexandre Herculano, quando indagados pelo imperador sobre o poema. Em Como se deve en-tender a nacionalidade na História do Brasil8, Varnhagen escreve enfa-ticamente:

Por ventura aspiramos nós a ser selvagens? Ou a render culto e vassa-lagem aos asquerosos sacrifícios da antropofagia? Só em tal caso se desculparia ao historiador o reabilitar tal estado. Com um dos nossos mais simpáticos Amigos e dos primeiros poetas que tem dado a Amé-rica, diremos pois que parte da poesia brasileira “está nos índios”; – discordamos porém absolutamente em que neles esteja a nossa his-tória; – história da civilização do atual Império; (...) Ora quando assim sucedia entre os pagãos, com mais razão nós nação cristã, devemos fazer proceder a nacionalidade nossa da civilização e do cristianismo, inoculados nesta terra por uma das nações mais heróicas da Europa de há três séculos e meio, cuja língua falamos (...), os próprios que ado-ram a selvageria, que, por fim de contas, ninguém pode sinceramente desejar ver de novo triunfante por mais que se adore a novidade. (...) Não, a nacionalidade brasileira atual e futura não é neta da antropo-fagia que a raça tupi havia trazido à nossa terra.” – Disse. Francisco Adolpho Varnhagen.

Ao escrever sobre sua História geral do Brazil (1854-1857), Var-nhagen enfatiza sua extensa pesquisa em arquivos no Brasil e em vários países da Europa e o que denomina uma ampla coleção de livros e docu-mentos raros ou inéditos, que compilou durante catorze anos9.

Em carta ao imperador sobre a publicação de sua obra, Varnhagen escreve indignando-se com a indiferença com que o IHGB o tratou: “tal-vez só porque não adulo vilmente, como outros, certo perigoso brasilei-

8 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. II-POB – Maço 180 – Doc. 8222. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC. Texto publicado no Anuário do Museu Imperial, vol. 9, 1948, pp. 229-236.9 – Documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. II-POB – Maço 123 – Doc. 6158 e II-POB – M. 180 – Doc. 8222. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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rismo caboclo (...)” (VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Carta a D. Pedro II. Madri, 24/9/1856). Este desabafo, no nosso entendimento, evi-dencia a luta pela hegemonia do discurso no campo intelectual e científico no Brasil – na década de 1850, congregados no IHGB –, quanto à escrita da nacionalidade brasileira: uma disputa entre o discurso pautado na ori-gem mítica, edênica, corrente na primeira geração após a independência, e um novo “texto” pautado em argumentos segundo o novo paradigma científico e amplamente embasado em documentos.

Com o meu 2º volume será publicada uma folha de supplemento ao 1º, contudo não só algumas correcções e addições importantes, ori-ginadas todas pela visita que V.M.I. consentiu que eu fizesse, o ano passado a Lisboa, a cuja Torre do Tombo me parece pequeno todo o tributo de reconhecimento que deve o Brasil, pelas inúmeras fontes históricas e documentos acerca do nosso paiz, que ahi se conservaram, e sem as quaes mal se houvera hoje organisado a Historia Primitiva do Imperio! (VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Carta a D. Pedro II. Madri, 24/9/1856).

A defesa de bases científicas para a escrita da história nacional ajuda a entender os argumentos que Varnhagen utiliza para criticar o poema de Magalhães10:

Infelizmente está o poema mui longe de poder, no mais mínimo, as-pirar às honras da epopéa nacional do século de Pedro 2º - Nem o assunto de tal confederação bestial é verdadeiramente épico (...) A par desta ausencia de grandes dotes, ficam a perder de vista as incorrec-ções ou descuidos(...).(VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Carta a D. Pedro II. Madri, 24/9/1856).

Paralelamente, uma carta de Alexandre Herculano11 a D. Pedro II, de 1856, deixa transparecer detalhes das discussões que tomariam conta das preocupações intelectuais do imperador nas décadas posteriores. Ao comentar, a pedido deste, o poema de Gonçalves de Magalhães, o escritor

10 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. II-POB – Maço 123 – Doc. 6158. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC11 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 123 – Doc 6130. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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português propõe o rompimento com as construções míticas e com as epopeias, e defende uma análise cientificista do processo de formação dos povos, em cujo texto fica evidente o caráter evolucionista e etnocêntrico dos argumentos.

Podem os conquistadores, as raças que foram sobrepor-se ás raças primitivas anniquilando-as, herdar-lhes o cumulo dos seus poucos ou muitos haveres materiaes: o que não lhes herdam, não appropriam a si é o cumulo das suas tradições, das suas saudades, dos seus affectos collectivos; em summa a sua poesia épica. Entre o povo brasileiro e os aborígenes do Brasil falta a identidade de sangue, de língua, de religião, de costumes; falta tudo o que constitue a unidade nacional na successão dos tempos.

Na minha opinião as eras heróicas e as gerações épicas do Bra-zil ficariam sendo as do primitivo Portugal, se uma raça, outro-ra única, não constituísse hoje duas nacionalidades distinctas. (...) O Brasil é um império novo; mas os brasileiros são apenas eu-ropeus na América. (HERCULANO, Alexandre. Carta a D. Pedro II. Lisboa, 6/12/1856)

Já Gonçalves Dias, que havia substituído Varnhagen na incumbência de copiar documentos que tivessem interesse para a história do Brasil, visando à formação do Arquivo do Império, e de elaborar relatórios sobre a instrução pública nos países europeus, inicia o seu trabalho nos arquivos portugueses, em 1854, sobre o qual escreve a D. Pedro II12.

(...) prettendo remetter o que colleccionei em Evora, Tombo, Consº Ultramarino e B. da Academia real das Sciencias: deve isso andar por perto de 50 volumez; dos quaes 20 estão promptos para o embarque, e não vão agora por que quero ver se podem ir todos de uma vez; e para que o Sr. Lisboa os veja, no caso de que chegue neste intervallo. Antonio Gonçalves Dias a D. Pedro II. Lisboa, 13/9/1856.

Pela minha parte, eu penso que se deveria colleccionar absolutamente tudo quanto dissesse respeito ao Brasil, por que, trata-se do seo Archi-vo, e convem que elle possua o que póde interessar. Lembra-me que

12 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I POB – Maço 123 – Doc. 6136. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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voltando de minha commissão as Provincias do norte, tive a honra de dirigir-me a Vossa Magestade, ponderando o estado miserável dos nossos archivos provinciaes, e calculando que o trabalho de os refa-ser e completar em Portugal, poderia importar em oitenta contos da nossa moeda. (DIAS, Antonio Gonçalves. Carta a D. Pedro II. Paris, 7/1/1856).

A despeito deste trabalho, Gonçalves Dias não deixa de ser indagado pelo imperador sobre o poema de Magalhães. Observamos na resposta13, uma análise que cobra pelo conhecimento do povo e da cultura indígenas, a fim de evitar afirmações anacrônicas:

Uma índia alimenta dois filhos, e isto não causa novidade aos sel-vagens, outro conta os annos pelos cachos dos coqueiros, e não pela frutificação do caju, e como isto muita cousa, de muito pouca impor-tância, sem duvida, mas necessária para se fazer a quem quer que seja, sentir, pensar, viver e falar nas condições da sua existência própria. (DIAS, Antonio Gonçalves. Carta a D. Pedro II. Lisboa, 13/9/1856)

Segundo Kaori Kodama (2007:6), que analisa a relação de Gonçal-ves Dias com a etnografia do IHGB, “Sua crença na possibilidade de identificação com este sentimento nacional a partir do elemento indíge-na iria se traduzir no seu interesse pelos estudos etnográficos”. Esta tese pode ser corroborada pela carta de Gonçalves Dias ao imperador, quando se evidencia o rompimento com a perspectiva do índio idealizado e co-meça a sobressair a ótica científica, pautada nos estudos antropológicos, na etnografia e na acuidade das informações sobre os povos indígenas. O índio de sua poesia seria, então, criado a partir de bases científicas, e não de construções míticas.

O fim da década de 1850 é marcado pelas discussões em torno da Comissão Científica que deveria fazer o reconhecimento das províncias do Norte e, ao mesmo tempo em que o imperador se prepara para partir em sua segunda grande viagem pelo Brasil, não só o paradigma de ciên-cia, mas também as relações sociais e políticas baseadas na pessoalidade

13 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I POB – Maço 123 – Doc. 6136. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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e as dicotomias político-ideológicas entre liberais e conservadores (se é que realmente existiam), além da posição do governo imperial frente aos poderes locais, entram na pauta dos debates, evidentes na documentação privada do imperador.

O período é fechado com a segunda grande viagem de D. Pedro II pelo Brasil, entre 1859 e 1860, quando visitou as províncias do Norte. Um dos pontos mais significativos dos documentos sobre esta viagem é o caráter etnográfico dos relatos de D. Pedro II, registrados em seus diários de viagem pelas províncias brasileiras, do Rio de Janeiro até a Paraíba.

D. Pedro II também registrou suas impressões utilizando-se de de-senhos como parte integrante das anotações. A produção iconográfica, neste sentido, não só aprimora a experiência das viagens, como também possibilita o estudo das representações criadas a partir de um determinado ethos cultural e social e a reflexão sobre o encontro com culturas diferen-tes. Destacam-se os apontamentos e os desenhos feitos pelo imperador sobre seu encontro com os índios puris na província do Espírito Santo, incluindo um vocabulário da língua tupi.

Salientamos que, se de um lado há muito forte um imaginário cons-truído pela corrente indianista do Romantismo, que foi utilizado em larga escala pelo Estado na primeira década do Segundo Reinado – a época da consolidação – como mito fundador, a fim de afirmar as origens da nação, já em 1859-1860, a noção de processo civilizatório torna-se hegemônica, quando o que sobreviveu da cultura indígena não remete mais às origens edênicas, mas representa a selvageria que precisa ser superada pela civi-lização.

O relato escrito por D. Pedro II sobre seu encontro com os índios é uma fonte interessante para refletirmos sobre a noção civilizatória e etno-cêntrica, que a nascente antropologia trazia em seu discurso:

“(...) O chefe dos índios chamava-se Kenknám de 30 anos talvez; não quer dizer nada esse nome, como muitos dos deles. Tem ar muito sé-rio. Os índios que se apresentaram são mutuns menos 2 do Sul, um de-

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les rapazinho excelente atirador. Falam muito, riem e querem sempre comer. Os do Sul são em geral mais bonitos, havendo 2 índias de olhos azuis muito belas e claras e de cabelo ruivo; uma delas mulher do capitão Francisco. (...) Não quiseram vir com medo por causa do tiro dado num em Cueté. Os índios mostraram sentir muito o calor, mesmo dentro de casa, se não, era preguiça porque está muito suportável. Um velho deitou-se debaixo do canapé onde eu estava assentado. (...) Dan-çam em círculo passando os braços por cima dos pescoços dos vizi-nhos com diversas cantigas em toadas mais ou menos monótonas que um começa; não têm instrumento de música. Festejam assim diversos sucessos, sobretudo caçada, cujas peripécias referem nas cantigas; os Purus também dançam em círculo. Os meninos dançam à parte. Os índios assobiam muito. (...) Uma mulher dançava com o filho nas cos-tas o qual suspendem pelas nádegas por uma embira que prende na cabeça. Algumas das toadas não me desagradaram e soltam às vezes seu grito ou assobio. As mulheres quando nuas dão um jeito às coxas que cobrem inteiramente as partes genitais, segundo disse o Rl. Pa de Carvalho. (...) A rapariga tinha os mamilos demasiadamente grossos. Havia um velho chamado Nahén muito rabugento. (...) Hén é o bicho de caramujo. (...) Os homens têm apenas buço mais ou menos longo. Ficaram muito contentes com os chapéus, e fumo, sobretudo, com o qual, bebendo água passam 3 dias sem comer, que se lhes distribuíram de minha parte e em minha presença. (...) Juparanã não sabem o que quer dizer, e Jum é pular na água. Segundo St. Hilaire na língua geral Ju - espinho.” (PEDRO II, D., Diário. 1860)

O que nos chama a atenção neste ponto é o fato de que o olhar do via-jante sobre a população e a paisagem brasileiras não é mais o do viajante estrangeiro, mas a percepção de um brasileiro: o olhar do próprio impe-rador. No entanto, cabe a nós indagarmos o quanto este olhar também é europeizado, evolucionista e etnocêntrico.

Ao apresentarmos algumas discussões que elevaram os ânimos du-rante a década de 1850, nosso objetivo é mostrar que a aproximação de D. Pedro II com a Antropologia enquanto campo do conhecimento14, que 14 – Paul Broca estabeleceu uma diferenciação entre a Antropologia, a Etnografia e a Et-nologia. “Nós estudamos principalmente do ponto de vista da história natural do homem. A sociedade de etnografia estuda principalmente do ponto de vista da psicologia [o que caracteriza uma nação é menos o tipo físico do que a semelhança de atitudes intelectuais

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começa a ser academicamente estruturado a partir da segunda metade do século XIX, se esboça a partir da década de 1850, e é reveladora do mo-vimento de rompimento com a ortodoxia e da adesão a um novo discurso (heterodoxia), em última instância, uma nova visão de mundo, um novo ethos, pautado na racionalidade e no cientificismo.

4. D. Pedro II e a Antropologia

É importante salientar que no Brasil, no início da década de 1850, o campo historiográfico abarcava os debates etnográficos. No IHGB, a Ses-são de Arqueologia e Etnografia Indígena teve sua criação aprovada em 1847, mas somente foi oficializada em 1851. No Museu Nacional, o setor de arqueologia e etnografia só viria a ser oficializado a partir da reforma conduzida pelo então diretor Ladislau Netto, em 1876.

Em 15 de dezembro de 1849, D. Pedro II presidiu pela primeira vez uma Sessão do IHGB, e na sessão de fevereiro de 1850 lançou um desa-fio – o que se tornaria habitual – e propôs a seguinte tese sobre a língua indígena, conforme publicado na Revista Trimensal de Historia e Geo-graphia15:

Convindo reunir todas as notícias que existem a respeito da língua indígena, interessante por sua originalidade e poesia, e pelos precio-sos dados que poderá subministrar à Etnografia do Brasil, lembro ao Instituto que encarregue alguns de seus sócios da investigação do que houver sobre essa matéria em suas respectivas províncias. (PEDRO II, D. 1850)

A proposição de D. Pedro II vinha ao encontro das discussões sobre a nacionalidade brasileira exatamente no momento de consolidação do Estado Nacional. Os estudos etnográficos permitiam, assim, recuperar a

e morais e a língua, as crenças e a moral comum].” Histoire des progrès des études an-thropologiques depuis la fondation de la Société : compte rendu décennal (1859-1869), lu dans la séance solennelle du 8 juillet 1869. 1870. p. 23. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/15 – Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geo-graphico Brasileiro. Tomo XIII. 1850. Segunda Edição. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva. 1872. p. 128. Disponível em: http://www.ihgb.org.br/rihgb.

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especificidade de um povo e, portanto, a formação da nacionalidade, que era a preocupação norteadora do IHGB.

Assim, o lugar do índio na História do Brasil está diretamente re-lacionado à criação da sessão de etnografia no Instituto, e o estudo das línguas indígenas permitia uma sistematização que diferia o registro et-nográfico do “mero” registro de viagem. Ou seja, estes estudos fariam parte de um segundo estágio do conhecimento científico, passando-se da coleta e registro dos dados à inferência e ao trabalho de classificação dos mesmos.

Ao discursar no décimo aniversário de fundação da Societé d’Anthropologie, em Paris, Paul Broca (1870), enfatiza:

Devemos reconhecer também que o desenvolvimento de nossa ciência esteve subordinado ao progresso da linguística, da geologia, da pa-leontologia, da arqueologia pré-histórica. (...) e o estudo das línguas, até então enganoso, veio a ser um dos guias dos mais seguros para a pesquisa das origens.

Justamente a “pesquisa das origens” marca claramente uma luta en-tre o campo religioso e o campo científico. Neste sentido, romper com a ortodoxia – o discurso criacionista, por exemplo – implicava romper com algumas instituições, como a Igreja, e defender um novo discurso pautado unicamente nos critérios científicos.

Por outro lado, havia uma preocupação com o desaparecimento dos índios, que justifica os estudos antropológicos, como uma forma de pre-servar os vestígios de uma cultura em vias de desaparecimento16.

No caso brasileiro, na segunda metade do oitocentos, quando se pen-sou as origens da nacionalidade brasileira, a referência legitimada foi a europeia. O passado indígena não deveria ser incorporado à história na-cional. O discurso hegemônico foi o da catequisação e da aculturação. Ou seja, no confronto com a alteridade prevaleceu o etnocentrismo.

16 – Ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: Os Pensadores. Claude Lévi-Strauss. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 45-87

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Neste contexto, os estudos sobre os índios adequam-se muito mais à proposição da nascente Antropologia, qual seja, registrar os povos sem história e em vias de desaparecimento física e culturalmente. O estudo filológico era visto como possibilidade de comparação e distinção entre as tribos indígenas, já que as distinções linguísticas permitiam identificar a ascendência a partir de uma escala civilizacional.

Defendemos que nesta linha estão as descrições que D. Pedro II faz em sua segunda grande viagem pelo Brasil, que aqui denominamos re-gistros etnográficos: os relatos de seu encontro com os índios puris, o vocabulário da língua tupi e seus estudos filológicos, especialmente os da língua tupi17.

A relação de D. Pedro II com o campo antropológico se intensifi-ca, sobretudo, a partir de sua primeira viagem ao exterior, em 1871. Em 1875, D. Pedro II é eleito sócio correspondente do Institute de France e da Academie dês Sciences18. Em 1876, o imperador é nomeado sócio estrangeiro da Société d’Anthropologie de Paris19. No mesmo ano parti-cipa como membro honorário do III Congresso Internacional de Orien-talistas20, em São Petersburgo, quando poucos eram os não europeus a participarem das reuniões.

Nas décadas de 1870 e 1880 observamos o incremento da corres-pondência com os mais proeminentes cientistas e intelectuais. Especi-ficamente com Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau a corres-pondência é intensa, e nela verificamos debates sobre o desenvolvimento da Antropologia Física, estudos sobre as “raças humanas” e craniologia,

17 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 29 – Doc. 1035 – Cat. B. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC. Ver também Que-lques notes sur la langue tupi, de autoria de D. Pedro II. In: Quelques Notes sur la Langue Tupi. Anuário do Museu Imperial. Petrópolis: Ministério da Educação e Saúde, vol. 6, pp. 169-188, 1945.18 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 172 – Doc. 7842. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC19 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 175 – Doc. 7954. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC20 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. II-POB – Maço 189 – Doc. 8582. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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e até mesmo considerações sobre a “conquista da África” e projetos de colonização.

No Brasil, o Museu Nacional, a partir da gestão de Ladislau de Sou-za Mello e Netto (1870-1892), passou a rivalizar com o IHGB como polo de produção científica. O ponto alto para o Museu Nacional foi a reali-zação da Exposição Antropológica Brasileira, em 1882, para a qual D. Pedro II emprestou parte do acervo do seu museu particular. Nesta expo-sição, seguindo o paradigma vigente, os temas raça, evolução, progresso e civilização deram a tônica das mostras.

A experiência foi tão bem-sucedida que, logo em seguida, Ladislau Netto começa a planejar a realização de uma Exposição Antropológica In-ternacional Americana, “com o concurso de todos os países da America, e assistência dos sábios especialistas da Europa ou dos seus delegados”, estudada e discutida por um grande Congresso de Americanistas, sob a presidência de D. Pedro II21. De fato, o que aconteceu foi a participação do Brasil em diversas exposições internacionais – como a de Paris em 1889 – nas quais o acervo etnográfico exposto em 1882 era reiteradamen-te apresentado no exterior.

Em 1888, Ladislau Netto participou do VII Congresso Internacional de Americanistas, em Berlim, como “representante das sciencias ethnolo-gicas brasileiras” e, mais particularmente, do imperador no “seu caracter de membro do Congresso e de sábio cujo renome e amor á sciencia o mundo inteiro hoje proclama” (NETTO, Ladislau. Carta a D. Pedro II. Berlim, 10/10/1888)22.

Já no exílio, entre 1890 e 1891, o ex-imperador pôde efetivamente ser “ele mesmo”, longe dos “miasmas” políticos, conforme reiteradamen-te havia imaginado em suas declarações mais íntimas, como nas 76 cartas

21 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 187 – Doc. 8508. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC22 – Ver Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 198 – Doc. 9000. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC

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que escreveu a Joseph Arthur de Gobineau, conde de Gobineau, entre 1870 e 188223.

No entanto, não sou inimigo do meu século como você, e a doutrina da evolução está exatamente no seu fundamento. (...) Eu espero que os negócios políticos – tristes negócios em geral – não me estejam mais sobre os rins. (PEDRO II, D. Carta ao conde de Gobineau. Rio de Janeiro, 24/4/1880).

O ano de 1890 foi particularmente interessante para pensarmos a re-lação entre D. Pedro II e a Antropologia. A sua participação no VIII Con-gresso Internacional de Americanistas, presidido por Armand de Quatre-fages, e realizado em Paris, é descrita no volume 34 dos seus diários, e nos dá a ideia da importância e do reconhecimento que o ex-imperador do Brasil tinha no campo intelectual internacional e, especificamente, no campo dos estudos antropológicos.

10 de outubro de 1890 (6a fa.) Tratamos também do Congresso dos Americanistas nos dias 14 e 15 creio eu e de que sou presidente, fican-do de mandar-me o programa dos trabalhos do Congresso.

17 de outubro de 1890 (6a fa.) fui ao Congresso dos americanistas assistindo à sessão administrativa e depois à pública assentando junto à mesa ao lado do presidente Mr. de Quatrefages e ouvindo as leituras até depois de começado a de meu conhecido Rada de Madrid.

18 de outubro de 1890 (sábado) Depois do Congresso dos Ameri-canistas cujas leituras hão de ser mencionadas nos diários. Tomei a palavra contestando o que disse o haitiano sobre os supostos ossos de Colombo sobre que li um folheto escrito pelo Rocco-Cochia que foi Internúncio no Brasil. Manifestei-me contra a opinião do haitiano como de momento podia fazê-lo pelo que tenho estudado da questão.

20 de outubro de 1890 (2a fa.) 6 ¼ Volto. Assisti à sessão dos Ameri-canistas na qual ouvi Gafarel responder muito bem a um que se ocu-pou do descobrimento de terras da América antes de Colombo, disse

23 – Documento do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 185 – Doc. 8394. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC.

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alguma coisa sobre Gaspar Corte Real que viu a Groenlândia antes de Colombo ter descoberto a América. Trouxe publicações que lá me deram.

Após o Congresso, entre novembro de 1890 e abril de 1891, D. Pe-dro de Alcântara, como há muito tempo, mesmo antes do exílio já assina-va, registra em seus diários as leituras que faz dos livros de Quatrefages, e acaba por assinalar no volume 38:

10 de abril de 1891 (6a fa.) 9h 20’ Chega o livro do Quatrefages. 2h Escrevi a Quatrefages agradecendo-lhe a transcrição de minhas notas no livro dele dando-lhe explicação de algumas sobretudo para mostrar nosso acordo de opinião.

Tanto esses relatos, como a correspondência com Quatrefages en-tre os anos de 1872 e 189124, nos deixam antever que a relação de D. Pedro II com o campo científico é bem mais profícua do que a neces-sidade de construção de sua imagem enquanto chefe de Estado poderia sugerir. Por outro lado, demonstram o ápice do processo de europeização do pensamento de D. Pedro II, a partir de um novo paradigma científico, que havia começado a ser gestado na década de 1850.

5. Conclusão

Os pontos de partida das ciências da cultura continuarão a ser variá-veis no imenso futuro, enquanto uma espécie de imobilidade chinesa da vida espiritual não desacostumar a humanidade de fazer perguntas à sempre inesgotável vida. (WEBER, Max. 1991:100)

O arquivo pessoal de D. Pedro II nos possibilitou perceber a tensão entre os projetos coletivos e os projetos individuais e o enquadramento do agente social – um indivíduo incomum – sobre si mesmo, revelando con-

24 – Ver Documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil. I-POB – Maço 163 – Doc. 7558; II-POB – Maço 166 – Doc. 7630; II-POB – Maço 169 – Doc. 7756; II-POB – Maço 175 – Doc. 7953; II-POB – Maço 183 – Doc. 8340; I-POB – Maço 193 – Doc. 8801; I--POB – Maço 195 – Doc. 8865; I-POB – Maço 200 – Doc. 9127; II-POB – Maço 200 – Doc. 9127; I-POB – Maço 202 – Doc. 9175; I-POB – Maço 203 – Doc. 9252. Acervo Arquivo Histórico/Museu Imperial/Ibram/MinC.

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flitos desprezados pelos relatos coerentes e unívocos das biografias lau-datórias. Assim, pudemos observar algumas opções e escolhas do agente social, a rede de relações sociais e as articulações políticas, que revela-ram, em última instância, espaços de manobra e de atuação do indivíduo na história (enquanto campo dos acontecimentos).

Assim, nos deparamos com documentos onde as tensões entre o agente social, D. Pedro de Alcântara e a estrutura social brasileira, agrá-rio-aristocrática, são expostas e o conflito do agente, em sua passagem do ethos aristocrático ao ethos burguês, pôde ser percebido a partir da valorização de novos capitais (o cultural sobre o social, por exemplo), das lutas que perpassavam os campos e, particularmente, da tensão entre a ortodoxia – a dominação tradicional, baseada na pessoalidade e nas dis-tinções sociais – e a heterodoxia – a dominação burocrática, fundamen-tada na racionalidade, na laicização do pensamento, no cientificismo, na burocratização racional do Estado e na separação entre as esferas pública e privada.

Notamos que as viagens do imperador, que marcam sua trajetória de vida, são viagens de conhecimento e reconhecimento, claramente ligadas à construção de si mesmo, enquanto sujeito histórico que, em meio às tensões e aos conflitos que perpassam a estrutura social, entre projetos coletivos e projetos individuais, acaba por se redefinir, enquanto sujeito múltiplo, ao mesmo tempo em que a estrutura social em sua passagem à modernidade também é redefinida.

Desse ponto de vista, adotamos uma perspectiva específica para entendermos a problemática que havíamos levantado. De uma maneira bastante weberiana, temos consciência de que esta é uma proposta de entendimento entre tantas outras possíveis e de que existem múltiplas dimensões para uma mesma questão.

No entanto, a luta pela hegemonia do discurso no campo científico, a partir de uma nova ciência – a Antropologia – nos pareceu um elo interes-sante para defendermos nossas hipóteses: primeiro, mostrar que D. Pedro II

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não foi apenas um mecenas, curioso ou diletante amigo das ciências; se-gundo, que D. Pedro II não fez deliberadamente uso de imagens construí-das para associá-lo à civilização e ao progresso; terceiro, que a ligação de D. Pedro II com a Antropologia é reveladora de uma mudança na estrutu-ra social – a passagem à modernidade – e que este processo estrutural é, na verdade, o motor das ações do sujeito social.

Assim, percebemos que a análise simbólica em si mesma, desprendi-da da estrutura social, não capta um importante aspecto da trajetória de D. Pedro II, que é a relação que ele estabelece dialeticamente com os novos valores, modos de pensar, sentir e agir, no processo histórico marcado pela passagem à modernidade, na segunda metade do século XIX.

Entendemos que a autonomia do agente social é relativa, já que há sempre uma intenção objetiva que ultrapassa as intenções conscientes, e que a trajetória individual, apesar das estratégias que permitem na prática reelaborar as regras, contém em si a objetividade dada pelo social. No caso de D. Pedro II, o distanciamento da sociedade de corte vai se con-figurando ao longo das primeiras décadas de seu reinado, e acentua-se definitivamente a partir da década de 1870.

No campo científico, particularmente no campo da Antropologia, procuramos mostrar como questões que começaram a ser levantadas na década de 1850 configuraram na pauta dos debates das décadas posterio-res, como as discussões em torno da construção da identidade nacional. Se a Antropologia ainda estava muito vinculada às ciências naturais, por um lado, a Antropologia Física tornou-se um dos focos de estudo de D. Pedro II, o que ajudaria a explicar a sua visão europeizada e civilizacio-nal, onde sobressaíam os ideais positivistas e também evolucionistas. A correspondência de D. Pedro II com Quatrefages, por exemplo, é bastante significativa para analisarmos com mais profundidade as questões que neste trabalho estão apenas esboçadas.

Neste sentido, pensamos na ambiência conformada a partir do conta-to que D. Pedro II estabeleceu com diferentes intelectuais, como Varnha-

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gen, Gonçalves Dias, Alexandre Herculano e Quatrefages. A nossa pes-quisa permite afirmar que D. Pedro II participou efetivamente dos debates travados no campo científico, e não apenas como diletante, mecenas ou rei ilustrado, mas de uma maneira incisiva que aproximaria o seu modo de pensar, sobretudo a partir da década de 1870, ao repertório de ideias da geração de intelectuais de 1870 (ALONSO, 2002; 2009:98), o que se apresenta como uma nova perspectiva para a compreensão da sua parado-xal e complexa trajetória.

Por último, a construção de um novo paradigma científico traz em si embates nada fáceis. Entre Júpiter e Prometeu, concluímos que D. Pedro II se assemelha mais a este, a quem restou dizer:

“Vede, eis aqui, coberto de correntes, um deus desgraçado, incurso na cólera de Júpiter, odioso a todas as divindades que frequentavam seu palácio, tudo isso porque amei os mortais”.

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Texto apresentado em agosto/2012. Aprovado para publicação em novembro/2012.

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FERROVIAS, DE UM PROBLEMA DO PASSADO A UMA SOLUÇÃO PRESENTE: A SÃO PAULO RAILWAY E A

FERROVIA VITÓRIA–MINAS

RAILWAYS, FROM A PROBLEM IN THE PAST TO A SOLUTION AT PRESENT: THE SÃO PAULO RAILWAY AND

THE VITÓRIA–MINAS RAILWAY

heLeNa MeNdoNça Faria 1 e MiLtoN José zaMBoNi 2

1 – Doutora em Arquitetura pela USP – Professora Adjunta da Universidade Federal de Itajubá. (Unifei) – Campus Itabira. E-mail: [email protected] – Doutor em Comunicação pela PUC/SP – Professor Adjunto da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) – Campus Itabira. E-mail: [email protected].

Resumo:Esse trabalho visa descrever dois processos re-lacionados ao desenvolvimento, apogeu e declí-nio do transporte ferroviário no Brasil e, em um novo momento, um outro processo, o de retoma-da desse modal de transporte na atualidade. Os sistemas de transportes são determinantes para o desenvolvimento econômico e social das regi-ões adjacentes, isto é, na medida em que esses sistemas são implementados configura-se um direcionamento das atividades produtivas e, em concomitância, um progresso relativo. À medi-da que as ferrovias foram perdendo sua supre-macia, o processo se inverteu, causando a estag-nação dessas e um refreamento das atividades econômicas das localidades que as margeavam; ao menos no caso da São Paulo Railway isso foi notório. A Estrada de Ferro Vitória–Minas teve trajetória diferenciada. Por isso, a descrição de duas realidades próximas, mas com caracterís-ticas particulares, pode ser um caminho para a compreensão do atual momento do modal ferro-viário de transporte no Brasil. Além da pesquisa bibliográfica acadêmica, são utilizadas obras literárias, dados, relatos de técnicos e documen-tos resultantes de visitas efetuadas às sedes des-sas ferrovias.

Abstract:This paper aims at describing two processes re-lating to the development, climax and decline of railway transportation in Brazil and, at a sec-ond moment, another process which will discuss the current recuperation of that transportation system. Transportation systems are essential for the economic and social development of adja-cent regions, i.e., when those systems are imple-mented, they facilitate the transport of the re-sult of productive activities and, concomitantly, bring relative progress. As the railways began to lose their supremacy, the process inverted, caus-ing their stagnation and the decline of economic activities of the communities along the rails. This was notorious in at least one case: that of the São Paulo Railway. The Vitória-Minas Rail-way had a different trajectory. This is why the description of two similar realities with diverse characteristics may be a way to understand the present circumstances of railway transportation in Brazil. The research methodology will in-clude not only academic bibliography, but also literature, technical data, technical reports and documents originating from visits to the head-quarters of those railways.

Palavras-chave: História do transporte ferrovi-ário, desenvolvimento urbano e regional, inter-modalidade de transportes

Keywords: History of railway transportation; urban and regional development; intermodal transportation.

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Introdução

Existe toda uma concepção geopolítica que envolve os processos re-lativos à escolha, elaboração e manutenção de um modal de transportes. O caso ferroviário não foge a essa regra. No entanto muitas das decisões e das experiências de construção das ferrovias foram pautadas por inte-resses particulares, mesmo que a partir de uma visão geopolítica ampla. Histórica, econômica e politicamente essas questões resvalam diferentes interesses relativos a lobbies políticos, ao capital, estrangeiro e nacional, suas necessidades e, por fim, à capacidade dos diversos grupos em ver contempladas suas demandas. Na mesma controvérsia estão envolvidos o aproveitamento dos recursos naturais e questões relativas à tecnologia dos transportes. O que foi um exemplo da capacidade construtiva e de engenho humano, agora é paradigma da estagnação do transporte ferro-viário e seu entorno, exemplificado em localidades como Paranapiacaba, em São Paulo, sua involução econômica e quase aniquilamento enquanto assentamento urbano. Noutra ponta, a mineração e siderurgia nas Minas Gerais só fez aumentar e desenvolver a ferrovia que margeia os caminhos desenhados pelos rios Doce e Piracicaba desembocando no litoral do Es-pírito Santo. O desenvolvimento gerado apoiado exclusivamente no pro-duto minério trouxe crescimento Econômico para o polo gerador e para o porto, ainda que possa se questionar o tipo de desenvolvimento gerado.

Para Flogliatti et al. (2004) as Ferrovias no Brasil sofreram deterio-ração a partir do início da Segunda Guerra Mundial, devido a diferenças de bitolas, deficiências no traçado dos sistemas existentes, altos custos de construção e manutenção, política de incentivo à indústria automobilísti-ca com abandono dos investimentos em ferrovias. Esse contexto histórico remete à gênese de uma geografia da construção (desconstrução) do pátio ferroviário brasileiro. Essa comunicação se refere à comparação do apro-veitamento de uma parte significativa da malha ferroviária do sudeste brasileiro neste contexto.

Na atualidade no Brasil e no mundo se confirmam tendências relati-vas a adequações entre modais de transporte. Todavia, de forma nefasta,

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as ferrovias no Brasil tiveram uma peculiaridade única: a diminuição, a subutilização e o sucateamento de sua malha, justamente por conflitarem com interesses das montadoras de carros e caminhões, das empreiteiras e de políticos despreparados com o trato de questões de interesse público e até mesmo com as dificuldades de ordem técnica.

Vivencia-se um processo de revisão de prioridades, isto é, os siste-mas de transportes tendem a buscar a intermodalidade, deixando de lado uma hierarquização entre os tipos. As discussões técnicas têm apontado para a necessidade de rodovias, ferrovias, hidrovias e aeroportos entra-rem em comunhão, configurando um sistema híbrido. Essa necessidade é explicada pelas características da economia global em fricção com as particularidades locais. Cada vez mais o transporte, seja privado ou públi-co, interfere na vida de todos, propiciando possibilidades de desenvolvi-mento, às quais se vinculam às vidas das populações que margeiam essas vias de comunicação. Nesse sentido, o desenvolvimento de tecnologias, de especialistas, de mão de obra e de serviços terceirizados (ou não) que alimentem o modal ferroviário, ao seguir-se esta tendência, será cada vez mais necessário.

O direcionamento do Desenvolvimento em sentido amplo está liga-do a uma visão que transcende os interesses de grupos, tais como aqueles ligados à mineração, à indústria ou ao setor agroflorestal. O planejamento para o Desenvolvimento deve contemplar requisitos ambientais e sociais, aí sim tem-se desenvolvimento e não apenas crescimento econômico. As discussões desenvolvidas por autores como Sachs (2008) e Rodrigues (2005) apontam para a necessidade de se entender o termo Desenvolvi-mento Sustentável a partir do desenvolvimento social e humano e não como um rótulo que todos podem usar, desde grandes companhias polui-doras a políticos e indivíduos. Um projeto de um novo sistema de trans-portes passa pela dimensão do entendimento do que é Desenvolvimento, e o que é Desenvolvimento Sustentável. Sendo assim as decisões não podem ser tomadas unicamente de acordo com expectativas de retornos econômicos. No entanto, na maioria das vezes, tais decisões utilizam ape-nas esse critério. Nesse sentido, a construção de um sistema de transpor-

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tes deve ser uma decisão social, com participação de todos interessados, e não uma decisão tomada por um ou poucos setores da sociedade. Nesse sentido o papel do Estado é determinante, ou seja, a questão dos transpor-tes deve ser tratada como uma questão de política pública e não apenas como uma política de investimento financeiro.

1. Ferrovias no Brasil: aspectos históricos importantes

A história ferroviária brasileira inicia-se concomitantemente a três processos macroeconômicos: a Revolução Industrial em sua segunda fase, o neocolonialismo europeu e, no caso nacional, a passagem do ciclo minerador aurífero para o ciclo da cafeicultura. Nesse sentido fica clara a primazia do Sudeste na construção dos caminhos de ferro. O ouro negro viria transformar inexoravelmente a economia e a importância do Brasil diante dos mercados internacionais.

“O transporte ferroviário nasceu no mesmo período histórico que o Imperio do Brasil – o segundo quartel do século XIX – e desde o início despertou o interesse das lideranças do jovem estado em sua ta-refa de construir uma nação sobre vasto e diverso território.” (LIMA, 2009, p. 15).

As estradas de ferro brasileiras não chegaram a constituir uma rede nacional. Mesmo durante seu período de maior destaque e crescimento. Resumiam-se a uma coleção de linhas de exportação de minerais e produ-tos agrícolas, raramente formando uma rede regional, ainda que possam ser consideradas, parcialmente, a formação de redes regionais no Nordes-te e no estado de São Paulo (THÉRY e MELLO, 2008). Essa falta de inte-gração em uma rede nacional, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos e na Europa, se dá devido a interesses diversos, sejam das elites locais e das empreiteiras internacionais contratadas para a execução das obras que tinham diferentes características técnicas e de bitolas, sejam dos anseios de diversos poderes envolvidos nessa questão, que deveria ter sido considerado estratégica.

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Na verdade, a história ferroviária brasileira é muito controvertida desde sua gênese, haja vista a verdadeira epopeia vivida por Irineu Evan-gelista de Souza, o Barão de Mauá, que desceu dos céus ao inferno ao construir as primeiras ferrovias no Rio de Janeiro e em São Paulo3. Sendo assim, o trabalho hora proposto visa desenvolver leituras e análises sobre as ferrovias que se constituíram entre 1850 e 1910, que tiveram diferentes fases e apogeus, descrevendo dois casos particulares: a São Paulo Rail-way (SPR), rebatizada como Estrada de Ferro Santos–Jundiaí e a Estrada de Ferro Vitória Minas, ambas ainda em funcionamento.

2. A Ferrovia Santos - Jundiaí e a Ferrovia Vitória–Minas: duas sobreviventes

2.1 De São Paulo Railway a Santos-Jundiaí.

A São Paulo Railway Company nasceu da iniciativa de um grupo de pessoas encabeçado pelo Barão de Mauá. Desde 1859 a ideia foi tomando fôlego em um período que se estendeu de 1862 a 1867, sendo enfim ela-borada a primeira ferrovia paulista. O maior desafio para essa empreitada era vencer os cerca de 800 metros de desnível entre o Alto da Serra de Pa-ranapiacaba (do tupi, lugar de onde se avista o mar) até o Porto de Santos, principal escoadouro do café produzido na então Província de São Paulo.

Os oito quilômetros que separavam o planalto do litoral eram con-siderados inexpugnáveis por boa parte dos topógrafos da época, nesse sentido o próprio Mauá foi à Inglaterra e consultou o engenheiro ferro-viário britânico James Brunlees. Ao visitar o Brasil, Brunlees considerou o projeto viável e indicou Daniel Makinson Fox, engenheiro experiente, que entre outras obras havia construído ferrovias nos Pirineus e no País de Gales, regiões de relevo também acidentado e de difícil acesso (TELLES, 2011).

3 – Ver a obra de Caldeira (1995) que narra essa aventura empreendedora. O caso aqui em questão não é tratar de figuras isoladas, das biografias e dos personagens históricos que constituíram esse processo. O escopo se foca no desenvolvimento das ferrovias e dos caminhos de aço remanescentes desse processo.

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Para a execução de tal façanha, Fox propôs a construção de um sis-tema de funiculares que funcionaria de forma escalonada em quatro de-clives, assim, os vagões seriam puxados por cabos de aço por máquinas estacionárias situadas em patamares, cada um deles composto de uma linha de 75 metros entre os declives. Esse monumental trabalho foi exe-cutado em menos de oito anos e em 16 de ferevereiro de 1867 a ferrovia foi inaugurada, a despeito de diversas dificuldades, tais como os muros de arrimo de até 20 metros construídos para proteger o leito da ferrovia, entre outros reveses (TELLES, 2011).

Julio Ribeiro, escritor contemporâneo à construção da ferrovia, narra como o intrincado sistema funcionava, numa carta de Manuel Barbosa para Lenita, os protagonistas do romance A carne:

“A estrada de ferro inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento gran-dioso da indútria moderna. (...) De Santos a S. Paulo percorre ela uma distância de 76 quilômetros. (...) Todas as obras de arte dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas. (...) Até a raiz da serra a distância é de 21 quilômetros: há três pontes, umas das quais notabilíssima, sobre um braço de mar chamado Casqueiro. Mede ela 152 metros, tem dez vãos iguais, assenta sobre pegões robustíssimos. (...) Da Raiz da serra até o rechano do alto, contam-se oito quilome-tros. (...) A altura é de 793 metros que dá um declive quase exato de dez por cento. (...) Como se galgam esses desfiladeiros, essas agruras vertiginosas? (...) De modo simples. (...) Divide-se a subida da serra em quatro planos uniformes de dois quilometros cada um. Para a tra-ção, empregou-se um sistema dotado em algumas minas de carvão da Inglaterra. Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de fios de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um sobe, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o lugar do plano em que se acha o trem, indica o momento de encotro de ambos eles. Um brake de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantanea-mente, e um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas máquinas fixas. O cabo, resfriado ao sair por um filete de água, core sobre cilindros, sobre roldanas que se revolvem vertiginosas, com um ruído monótono, metálico, por vezes forte, por vezes muito suave. (...) O serviço é tão regular e tão bem feito, que

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em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir tanto para a subida como para a descida. Funciona alinha mais de vinte e um anos e ainda não se deu um so desastre. Pasmoso, não? (...) Em cada uma das estações de máquinas fixas há cinco geradores de vapor, três dos quais sempre em atividade. As grandes rodas estriadas que engolem e soltam o cabo, as bielas de ferro polido que as movem, os mancais de bronze, os excêntricos em que o ferro rola sobre o bronze com atrito doce, tudo está limpo, luzente, azeitado, funcionando como organis-mo são. Chaminés enormes, que se exergam de longe, feitas de canta-ria lavrada em rústico, atiram aos ares bulcões de fumo, enovelados, densos. (...) Os desbarramentos são remendados a alvenaria; todas as águas perenes, todas as torrentes pluviais estão dirigidas, encanadas, por calhas de pedra, de tijolos, de juntas tomadas, por bicames de madeira. Há encanamentos subterrâneos feitos granitos, gradeados de ferro, que fazem lembrar os calabouços dos solares feudais. (...) Na serra de Santos a obra do homem está em harmonia com a terra em que se assenta; a pujança previdente da arte mostra-se digna da magnitude ameaçadora da natureza. (...) O Viaduto da Grota Funda é simplesmente uma maravilha. Mede em todo o comprimento 705 pés ingleses, mais ou menos 215 metros. Tem 10 vãos de 66 pés e um de 45 e (...) Entre duas cabeceiras de cantaria;assenta sobre duas coluna-tas de ferro engradadas(treillages)e sobre pegão do lado de cima. A mais elevada colunata, contando a base tem 185 pés, 56 a 57 metros. A inclinação é a inclinação geral, dez por cento ou pouquíssimo menos. Começou-se essa obraassombrosa em 2 de julho de 1863; em março de 1865 assentaram-se as primeiras peças de ferro; em 2 de novembro do mesmo ano atravessou-a o primeiro trem, 2 de novembro, dia dos defuntos, os ingleses não são superticiosos. ” Julio Ribeiro – A carne, pp.83-84, bib. cit.)

Toda essa parnafernália descrita pelo romancista tinha um sentido: era resultado de uma expansão econômica. A demanda pela exportação de café era tão grande que em 1895 iniciou-se um novo trecho da SPR, paralelo ao primeiro, inaugurado em 1901, intitulado Serra Nova, que naturalmente batizou o sistema inicial de Serra Velha. Tal sistema novo usava um sistema de funiculares ainda mais robusto, dividido em cinco patamares “puxados” por máquinas estacionárias de cerca de mil cavalos cada, que desciam e subiam composições concomitantemente, o que re-

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sultava em baixo esforço para o maquinário, pois cada composição con-trabalanceava a outra. Esse sistema foi denominado sem fim ou endeless rope e perdurou mais de 75 anos. Na década de 70 do século XX, sob os auspícios da Rede Ferroviária Federal, os funiculares foram trocados por um sistema de cremalheira, forjadas em tungstênio, na qual três fileiras de dentes dispostas entre os trilhos são acopladas por rodas dentadas retrá-teis nas locomotivas. A cremalheira é de origem japonesa e é utilizada até os dias de hoje e para tanto houve a necessidade de se utilizar locomotivas construídas pela empresa japonesa (MINAMI, 1999).

Nesse longo processo é importante destacar outra característica re-levante da SPR: sua estrutura em relação à adminstração e aos recursos humanos, cujo modelo surgiu em empresas da Nova Inglaterra, EUA. Era uma companhia baseada na factory town, ou seja, “...aglomerado urbano projetado e produzido pelas indústrias com características modelares e por isso denoninado Model Company Town.”(MINAMI, 1999, pág114).4

Ainda sobre as Model Company Town, cita Minami (1999):

“ Este era gerenciado por um tipo de organização denominada de “sin-gle-enterprise”, empreendimento que se caraterizava pela exploração de uma única atividade, que, no caso da Nova Inglaterra , era umaati-vidade industrial de tecelagem, fiação, mineração, etc.

As “Model Company Town”se caracterizavam por promover desen-volvimento econômico aliado à melhoria da qualidade de vida de tra-balhadores alocados nesses epreeendimentos, mediante investimentos em planejamento e construção civil. ” (MINAMI, 1999, p 114).

4 – É imperioso informar que esse sistema foi também utilizado na EFVM entre Itabira e Vitória, e o sentido disso reforça o modelo afirmado por Minami. Cabe ressaltar que cada cidade e empresa manteve suas próprias características. Interessantemente a Ferrovia Vi-tória–Minas tem como característica básica a mesma estrutura da single-enterprise citada pelo professor da FAU-USP. A companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale, e as cidades de onde extrai seu principal artigo são assistidas por ferrovias ou delas são próximas, como caso de Carajás, Itabira, Mariana e São Gonçalo. A atividade mineradora norteia ou tem sido o carro-chefe das atividades das cidades, apesar destas não serem construídas pela impresa mineradora, tiveram inexoravelmente sua administração e desenvolvimento.

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Várias cidades no mundo tiveram suas ações cotidianas norteadas pelo modelo monopolista da single-enterprise. No Brasil casos seme-lhantes não faltaram.5

O processo que consolidou as práticas administrativas da SPR defi-niu a fundação de Paranapiacaba, que cumpria as funções de vila operária e pátio de manutenção da estrada de ferro. A estrutura da cidade era um desdobramento da organização fabril vinculado à observância pan-óptica sugerida por Jeremy Benthan e descrita a maestria por Michel Foucault em Vigiar e punir 6. Foucault desenvolve seu raciocínio construindo analogias entre instituições como fábricas, presídios, escolas, conventos e manicômios e como em suas relações hierárquicas se constituem em lugares comuns. Na SPR esse modelo se delineia em Paranapiacaba, o panopticismo fica evidente na organização espacial da vila. A Casa do Inglês (Castelinho), situada no ponto mais alto da vila, propiciava uma visão privilegiadade de todo pátio de manutenção e manobras, da comu-nidade. As casas dos engenheiros e demais chefias eram mais imponentes, melhor localizadas e davam visão de modo hierarquizado das atividades e distribuição de cargos ao longo da cidade. Já as moradias separadas entre casados e solteiros indicam todo um cuidado com vistas a reforçar uma mentalidade que previa corpos e mentes disciplinados em espaços esta-belecidos que enfatizavam a autoridade e a classificação dos indivíduos segundo cargos, condição social.

Enfim, todos esses dados hierárquicos apontam para uma microfísica do poder que lida com espaços e poderes, assim definido pelo filósofo francês:

Nós temos um exemplo de edificação das cidades operárias dos anos 1830-1870. A família operária será fixada; será prescrito para ela um

5 – Como outro exemplo diferente das cidades ou vilas ferroviárias, Fordlândia no Pará, cidade que Henri Ford erigiu no Norte do Brasil no início do século XX. Trataremos do exemplo da Vitória–Minas mais adiante.6 – Ver Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis,Vozes,1987. Ver também do mesmo autor Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 209-229.

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tipo de moralidade, através da determinação de seu espaço de vida, com uma peça que serve como cozinha e sala de jantar, o quarto dos pais (que é o lugar de procriação) e o quarto das crianças. Às vezes, nos casos favoráveis, há o quarto das meninas e o quarto dos meninos. Seria preciso fazer uma história dos espaços – que seria ao mesmo tempo uma história dos poderes – que estudasse desde as grandes es-tratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquite-tura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar, pas-sando pelas implantações econômico-políticas. (FOUCAULT, 1979, p. 212).

O desenvolvimento dos espaços de Paranapiacaba são reflexos des-ses arquétipos, isto é, sua estruturação de lugar de convivência e trabalho. Mas esse mundo foi gradativamente se desmantelando conforme a ferro-via vai tomando os rumos ditados pelas políticas de Estado que abandona esse modal pelo rodoviário.

Entre a década de 80 e 90 do século passado a vila, de importante entreposto, torna-se praticamente uma cidade fantasma. Os poucos fer-roviários da ativa subsistiam. A maioria dos que resistiam em suas casas eram aposentados, em querelas judiciais com as ferrovias que estavam em franca desestatização. A estrada de ferro continuou, mas a vila foi colocada de lado de maneira inescrupulosa, como define Minami (1999):

Atualmente, este patrimônio cultural imenso, constituído pelos equi-pamentos ferroviários, funiculares, vila operária e seu entorno pró-ximo, formando o Sistema Paranapiacaba, vem sofrendo sérias e contínuas ameaças de abandono, que, instituídas, descaracterizam irreversivelmente todo esse complexo. Fadada a ser apenas cidade--dormitório, as alternativas de desenvolvimento da Vila precisam ser restabelecidas. Senão vejamos. Local turístico? Reserva ecossistêmi-ca e biológica da serra do Mar? Área de proteção dos mananciais? Pólo para prestação de serviços e atividades ligadas a ecologia, ao turismo e ao meio ambiente? Qual é a vocação da população local? E, evidentemente, quais rumos tomar para resgatar, reavivar, reativar, revitalizar seus edifícios, equipamentos, infraestrutura, tecnologia e sistema construtivo?7(MINAMI, 1999,p. 128)

7 – Em nossos dias a Vila de Paranapicaba foi incorporada pelo município de Santo An-

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Diante disso, Paranapiacaba perdeu seu interesse estratégico para os negócios, entretanto, mesmo assim a ferrovia SPR persistiu sem sua base na Serra do Mar.

O histórico de estatização da ferrovia inicia-se a partir de 1946, ano do fim da concessão inglesa. A SPR passa ao Estado brasileiro e em 1948 passa ser chamada de Ferrovia Santos–Jundiai. Na década de 50 ela passa a fazer parte da Rede Ferroviária Federal, RFFSA. Essa situação perdu-rou até 1996, momento em que a empresa MRS Logística começou a ope-rar na antiga malha da Santos–Jundiaí, cujos fins empresariais têm sido o transporte de cargas. A empresa tem o domínio do trecho entre Santos e Rio Grande da Serra e lhe é permitido ainda operar entre Rio Grande da Serra e Jundiaí. Nesse trecho último a ênfase e prioridade da estrada é o transporte de passageiros, que é operado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). A CPTM opera suas linhas 7 (Jundiaí–Luz) e 10 (Luz–Rio Grande da Serra), num intrincado processo entre os governos federal e o do Estado de São Paulo. Esta mesma companhia modernizou carros transformando o trecho em questão na companhia de transporte ferroviário urbano mais desenvolvida do país. Cabe lembrar, que fora do período de fluxo dos carros de passageiros, a ferrovia fica sob o controle da operação cargueira da MRS.

2.2 A Estrada de Ferro Vitória–Minas ( EFVM)

No final do século XIX e inicio do XX o Brasil procurou realmente entrar nos trilhos. Isso ocorreu também no Estado Minas Gerais. Minas, entre outros atributos, fez da mineração insígnia de sua história, mormen-te a maciça indústria mineradora do ferro. Nesse sentido, a ferrovia Vitó-ria–Minas, nascida em 1903 como Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas (CEFVM), consolida seu destino em 1909, a partir da compra da maioria de suas ações pela Brazilian Hematite Syndicate (BHS), de capital britânico. Desde então dois processos se imbricaram, a minera-ção do ferro e a própria ferrovia, pois em 1911, surge a Itabira Iron Ore

dré e tem sido fonte de trabalhos e discussões entre o Estado e o terceiro setor no sentido de se aproveitar todas essas vocações e potenciais citados por Minami (1999).

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Company , controlada pelo empresário estadunidense Persival Farguhar, que encampou a BHS e, consequentemente, a ferrovia, que em 1942 teria como destino o controle da então estatal Companhia Vale do Rio Doce, estatizando também a ferrovia.

A Vale SA, atual nomenclatura da mineradora, privatizada em 1996, tornou-se detentora do uso da ferrovia desde 1997, alinhavando um con-trato de trinta anos, implicando toda a operação ferroviária sob o capital da empresa .

Essa ferrovia marcou a vida da cidade de Itabira, localidade na qual se encontram minas a céu aberto de grande expressividade no cenário mundial, assim como delineou fortemente todo o Vale do Aço8.

Itabira tornou-se a cidade da Vale do Rio Doce. Desde a fundação da empresa, toda a atividade econômica da cidade ao longo de sete déca-das esteve vinculada ao desenvolvimento da mineração, e a ferrovia em anexo também foi fruto do desenvolvimento desse monopólio (SILVA, 2004).9

A constatação dessa afirmação se explica nos 80% de operação diária da EFVM voltada ao transporte de minério de ferro, oriundos das minas de Itabira e adjacências.

“Como já dissemos, o total de transporte de cargas na Vitória a Mi-nas passou de 548.000 t, em 1949, para 50 milhões em 1975, o que constituiu um recorde mundial para ferrovias de bitola métrica . No

8 – O Vale do Aço, no qual estão localizadas as cidades de Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo, cidades cujo cenário econômico é mais relevante , é uma região cortada pela ferrovia Vitória–Minas, e, sem dúvida, esta ajudou a consolidar grandes empresas no seu trajeto, a exemplo da Cenibra, Aperam South America (antiga Acesita e ArcelorMittal Inox Brasil) e Usiminas, exportadoras de peso das riquezas oriundas da mineração.9 – Para compreender o desenvolvimento da empresa em Itabira ver A terceira Itabira:os espaços político, econômico, socioespacial e a questão ambiental, de Maria das Graças Souza e Silva, bib.cit. Ver também na Revista Aman-ti-kyr Estudos Interdisciplinares da Universidade Federal de Itajubá ( ISSN 2177-9074) a entrevista das professoras Maria das Graças de Souza e Silva e Maria do Rosário Guimarães de Souza, entrevista em três tomos ( vol. 1, n°3, set./dez. 2010, vol. 2. n °1, jan./abril. 2011 e vol. 2, n° 2, maio/ago. 2011).

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ano seguinte, já foram 61 milhos de toneladas, até o recorde histórico de 104 milhões em 1989, sendo 82 milhões de minério de ferro e 22 milhões de outras cargas” (TELLES,2011,p. 221).

Nos 905 km de trilhos, a EFVM manteve o maior trecho ferroviá-rio de transporte de passageiros do Brasil, a empresa mantenedora da ferrovia manteve o serviço por imposição de contrato. O trem de passa-geiros segue seu trajeto em dois horários. A viagem entre Vitória e Belo Horizonte é longa. Saindo às 7 da manhã da capital capixaba finaliza sua viagem em torno das 19 horas e 50 minutos, totalizando quase 13 horas de viagem. Segundo o site da empresa Vale:

“Todos os dias, dois trens de passageiros circulam pela EFVM. Um sai de Cariacica, na região metropolitana de Vitória, às 7h, chegando a Belo Horizonte por volta de 20h10. O outroparte da capital mineira às 7h30 e encerra a viagem às 20h30, na capital capixaba. Há também um trem que realiza o percurso entre as cidades de Itabira e Nova Era e faz conexão com os dois trens da linha principal.”10

Diferentemente de sua colega paulista, a Vitória–Minas só se moder-nizou e se desenvolveu, conforme descreve Telles (2011):

“Essa ferrovia tem em operação um dos mais modernos sistemas de controle operacional do mundo, capaz de visualizar toda a extensão da linha, fornecendo informações em tempo real dos trens em trafego e a situação das locomotivas, vagões, equipagens, pátios e terminais. O controle do tráfego é feito a partir do Centro de Operações,em Vi-tória, que se comunica diretamente com a Estação de Desembargador Drumond por circuitos de micro-ondas. O sistema detecta a posição dos trens e define as rotas. Há, em toda a linha, detectores de descarri-lamentos e de trilhos quebrados, revelando também superaquecimento de rodas e rolamentos, e, se for o caso, provocando a parada auto-mática do trem. Existem circuitos de via que se comunicam com os aparelhos ATC ( AutomaticTrainControl nas locomotivas, para indicar a posição dos trens. O sistema também controla todos os sinais e apa-relhos de mudança de via”. (TELLES, 2011, pp. 221-222)

10 – Conforme: http://www.vale.com/pt-BR/o-que-fazemos/logistica/trens-de-passagei-ros/estrada-de-ferro-vitoria-a-minas/Paginas/default.aspx

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3. A ferrovia privatizada, o transporte de massa das metrópoles e a recuperação do patrimônio histórico das ferrovias: desafios para o Brasil do século XXI

Tecnicamente o modal ferroviário é considerado o mais adequado para o transporte de cargas a granel. Diante desse fato há uma situação de perplexidade frente à realidade brasileira: grande produtor e exportador de comodities agrícolas e minerais, com dimensões continentais e com investimentos em ferrovias totalmente negligenciados (BARAT, 2007).

Comparado com o transporte rodoviário o modal ferroviário é menos ágil e mais lento, mas para médias e longas distâncias sua capacidade de transporte é muito mais vantajosa, além de apresentar menos riscos de acidentes e roubos de cargas (BARAT, 2007).

Segundo Théry e Mello (2008) a integração das ferrovias brasileiras, apesar de sua fase de grande crescimento, não ocorreu. Isso se deu, tec-nicamente, devido ao fato de as redes regionais apresentarem tamanhos de bitolas diferentes umas das outras. Um caso à parte foi a construção das linhas para exportação de minério, em Minas Gerais, no Amapá e em Carajás, inaugurada em 1985, que possuem bitolas largas como as vias normais europeias e norte-americanas. Tais vias têm cumprido o papel para o qual foram criadas e se mantêm ativas, no entanto, poderiam ser melhor aproveitadas se fizessem parte de uma verdadeira malha ferro-viária nacional, proporcionando aí sim, desenvolvimento e não apenas crescimento econômico.

Küll (1998) descreve a gênese das ferrovias paulistas afirmando que o desenvolvimento de suas linhas era ditado por necessidades imediatis-tas dos fazendeiros de café, fazendo com que, por exemplo, ocorressem as diferenças entre bitolas. Tudo isso dificultou a posterior integração en-tre estradas de ferro no estado, e também ocorreu em nível nacional.

As ferrovias brasileiras que chegaram a somar 38 mil quilômetros de extensão entraram em decadência a partir dos anos 1930. O desmonte das ferrovias significou também um desmonte da indústria ferroviária,

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um setor que nos anos 1970 chegou a produzir em média três mil vagões por ano, e que, nos anos 1990, passou a fabricar menos de 200 unidades (BARAT, 2007).

As ferrovias brasileiras, que tinham sido estatizadas nos anos 1950, passaram para a iniciativa privada, em 1996. Esse fato fez com que a operação ferroviária intramodal, já dificultada pela configuração e defi-ciências históricas das malhas, fosse agravada em função da segmentação geográfica estabelecida no leilão de concessão, que dividiu as ferrovias brasileiras em diversas malhas e submalhas regionais. Barat (2007) afir-ma que no período pós-privatização os retornos de investimentos têm sido impeditivos para os ativos ferroviários brasileiros. Tal afirmativa é comprovada pelo autor através de comparações entre os retornos finan-ceiros brasileiros e norte-americanos para os investimentos e também para a taxa de juros mais elevada por parte dos financiamentos no Brasil, especialmente do BNDES.

Barat (2007) cita algumas ações que se fazem necessárias para o desenvolvimento do setor ferroviário brasileiro, quais sejam: o contorno dos grandes centros urbanos e a erradicação da ocupação habitacional nas faixas de domínio e nas passagens de nível.

Do ponto de vista exclusivamente econômico assim tem se configu-rado o setor ferroviário brasileiro, desmontado, posteriormente privatiza-do e atualmente atuante apenas no setor de cargas. No entanto as ferro-vias não são somente ativos financeiros, há outras perspectivas para essa modalidade de transporte: a recuperação de um patrimônio que faz parte do desenvolvimento industrial e urbano no Brasil e seu potencial para a resolução da crise de mobilidade que se faz presente nas metrópoles bra-sileiras da atualidade.

O desmonte e a paralisação dos investimentos durante praticamente toda a segunda metade do século XX transformou as ferrovias em um patrimônio cultural brasileiro, símbolo de um período de intensa indus-trialização e urbanização – a primeira metade do século XX – como argu-

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mentam Demczuk e Monastirsky (2010). A recuperação desse patrimônio pode representar um aproveitamento no setor de turismo, que também tem sido subaproveitado no Brasil.

Para Kühl (1998) o patrimônio que envolve as ferrovias faz parte de todo o desenvolvimento do uso do ferro na arquitetura. A riqueza dessa arquitetura do ferro vai além dos trilhos, incluindo as estações que eram edifícios públicos de extrema importância até meados do século XX. Essa mesma autora afirma que o objetivo de sua obra é orientar quanto às se-guintes questões: por que e como preservar, o que preservar e para quem preservar.

Nesse trabalho entende-se que a recuperação e a readequação des-se patrimônio ferroviário deve redirecionar e requalificar os usos dessa imensa riqueza abandonada. Nesse sentido devem fazer parte de projetos urbanos e regionais que integrem a preservação do patrimônio às neces-sidades de transporte, seja para uso turístico ou urbano, tanto quanto pos-sível.

Outro ponto a ser considerado é a vocação do transporte sobre trilhos para os deslocamentos urbanos com sua capacidade para transporte de um número elevado de pessoas. Um trabalho apresentado por Quadros (2010) faz uma comparação entre um ciclo vicioso e um ciclo virtuoso para o transporte urbano. Um ciclo vicioso é composto por:

a) Transporte coletivo de baixa qualidade;

b) Ruas projetadas para carros e por estes dominadas;

c) Espaço público hostil (trânsito, poluição);

d) Espaço propício à criminalidade (baixo grau de vigilância cidadã);

e) Busca da segurança do carro.

Um ciclo virtuoso apresenta as seguintes características:

a) Transporte coletivo de qualidade;

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b) Ruas projetadas com calçadas largas, arborizadas e com ciclovias;

c) Espaço público agradável durante o dia e a noite;

d) Espaço seguro (alto grau de vigilância cidadã).

Analisando estes ciclos, Quadros (2010) ainda destaca experiências positivas de planejamento para mobilidade urbana que conseguiram unir os aspectos de uso do solo, transporte coletivo e sistema viário, tripé es-sencial para o planejamento da mesma. O exemplos são Curitiba, que adaptou aspectos normalmente utilizados em trens e metrôs metropoli-tandos ao sistema de ônibus, cidades francesas como Estrasburgo, que fez uma releitura do uso dos antigos bondes, agora Veículos Leves sobre tri-lhos (VLT), e Bogotá que implantou um sistema inspirado na experiência de Curitiba com algumas melhorias. Todos esses sistemas têm elementos que são típicos dos sistemas ferroviários, e as cidades que os implantaram tinham problemas mas conseguiram superá-los.

Monastirsky (2010), em trabalho que discute amplamente o que sig-nifica o aproveitamento de um referencial simbólico para cultura brasi-leira que é a ferrovia, faz considerações muito pertinentes a respeito da importância de projetos que sejam suficientemente discutidos e fomenta-dos a partir de um estudo que possa unir os aspectos técnicos aos cultu-rais quando da “retirada dos trilhos”. Apresentando estudo de caso para cidades do estado do Paraná, argumenta que ideias criativas na revitaliza-ção do transporte ferroviário surgiram, mas outros aspectos, tais como os interesses políticos e econômicos, impediram sua efetivação. Ao final de seu trabalho argumenta que a despeito dos conflitos existentes, os trans-portes, mais especificamente as ferrovias, devem ser considerados como um suporte de ações que não deve ser descontextualizado das condições sociais, políticas, econômicas.

Além de bons projetos, o planejamento de transportes que incluem o modal ferroviário no meio urbano deve ser entendido como uma política pública prioritária, evitando-se o conflito de interesses que se descortina no incentivo à compra de automóveis novos, com a redução de impostos,

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somente para citar um. Para tanto é imperioso a participação social de maneira deliberativa nos projetos urbanos.

Diante das possibilidades para a recuperação da infraestrutura ferro-viária no Brasil, que requerem investimentos público e privado, coloca-se a necessidade de um arranjo das áreas de planejamento do país no sentido de recuperar o potencial do modal ferroviário de transporte, tornando-o capaz de fomentar o desenvolvimento econômico e social. Além disso ainda se faz necessário um planejamento ainda maior, o planejamento dos transportes no Brasil, que seja capaz de integrar os diversos modais, tor-nando possível o desenvolvimento em sentido amplo. Tal arranjo deve-se dar de maneira que conflitos possam ser equacionados. Isso só é possível através de processos que permitam a participação dos diversos atores in-teressados no setor. Em última análise, através da visão do planejamento dos transportes e do setor ferroviário como um política pública.

Conclusões

A história da SPR e de Paranapiacaba remete aos riscos e perdas de uma desestruturação ferroviária. Na SPR a salvação do seu sucateamen-to se deu pela utilização de parte da malha pelos trens metropolitanos e da privatização do restante pela MRS, que escoa cargas por antigos caminhos. Trechos da Vitória–Minas, mormente que ligam Itabira à ca-pital do Espírito Santo, ou seja, exatamente aqueles que garantem econo-micamente a existência desse caminho de ferro podem sofrer o mesmo processo de degradação com a diminuição e a competição com outros locais que oferecem um minério de melhor qualidade e/ou melhor custo--benefício no futuro próximo. Como as vias são privatizadas, a decisão a seu respeito também será, sendo assim, se não for viável economica-mente tal via será desativada. Sem a carga ou a produção não se justifica o aparato logístico. O que então aqui se delineia é que é necessário en-tender os sistemas de transportes como meios que podem ser geradores de desenvolvimento, seu aproveitamento então poderá ser feito através de redirecionamentos dos usos. Para tanto é necessário, primeiramente, participação social deliberativa e posteriormente a construção de um pla-

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nejamento que caracterize cenários executáveis de recuperação, seja para a utilização em atividades turísticas, reconquistando o valor patrimonial desses imensos engenhos brasileiros, seja na concepção de um novo ar-ranjo produtivo que possa atuar como transporte de todos os bens que já passam pelas Estradas BR 381 e BR 262, através de conteiners ou a in-dução de atividades agropastoris. Da mesma forma para a SPR podem ser elencados e fomentados novos usos para o patrimônio instalado na serra de Paranapiacaba, no entorno do maior centro urbano do País. Torna-se necessário conceber as políticas para o setor ferroviário como políticas públicas e não apenas como políticas de investimento. Os negócios são necessários, no entanto, a responsabilidade social, o reconhecimento de outras formas de aproveitamento do pátio ferroviário, seja turisticamente, seja no escoamento de outras cargas podem ser um caminho para se obter sustentabilidade.

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Texto apresentado em dezembro/2012. Aprovado para publicação em fevereiro/2013.

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II – COMUNICAÇÕES NOTIFICATIONS

CENTENÁRIO DE UMA RUPTURA INSTITUCIONAL NA REPÚBLICA: O CASO DO CONSELHO MUNICIPAL DO

DISTRITO FEDERAL 1

THE CENTENNIAL OF AN INSTITUTIONAL RUPTURE IN THE BRAZILIAN REPUBLIC: THE CASE OF THE FEDERAL

DISTRICT’S MUNICIPAL COUNCIL

José heNrique do carMo 2

O presente texto foi elaborado a partir de estudo com intuito de pes-quisar a biografia de Julio Henrique do Carmo, abolicionista, republicano histórico3 e de presença política na antiga Capital Federal. Na análise da 1 – Agradecimentos aos profs. drs. Antônio José de Araújo e Jó Klanovicz pelas impor-tantes observações, isentando-os, no entanto, por eventuais imperfeições.2 – Mestre em Desenvolvimento Econômico – Professor da Universidade Federal do Paraná (1970-1998), pró-reitor de Planejamento. Endereço eletrônico: [email protected] – Participou ao lado de Lopes Trovão, Quintino Bocayuva, Silva Jardim, Barata Ribei-

Resumo:Eleito ao final de 1909 o Conselho Municipal (Câmara Municipal) do Distrito Federal, à épo-ca sediado na cidade do Rio do Janeiro, não teve a sua legitimidade reconhecida pelo poder executivo federal e também pelo prefeito. Os in-tendentes recorreram ao Supremo Tribunal Fe-deral, que lhes garantiu cobertura jurídica para a execução do mandato. Esta proteção legal foi negada pelos poderes Executivo Municipal e Federal e pelo Poder Legislativo, caracterizan-do uma ruptura institucional e constitucional na história da Primeira República. São apresenta-dos fatos, registrados em documentos oficiais e publicações da época.

Abstract:Elected at the end of 1909, the Municipal Coun-cil (City Hall) of Rio de Janeiro, then based in the city of Rio de Janeiro, did not have its legiti-macy acknowledged by the Federal Government nor by the Mayor. Administrative officers then resorted to the Supreme Court, who gave them full legal coverage to implement the mandate. This legal protection was denied by the Federal and Municipal Executive Powers as well as by the Legislative Power, thus establishing both an institutional and constitutional rupture in the history of the First Republic. Official docu-ments and printed materials of that period reg-istered facts that will be discussed in this article.

Palavras-chave: Ruptura institucional; estado democrático de direito; constituição; conflito entre poderes da Republica.

Keywords: Institutional rupture; Constitutional democracy; Constitution; Conflict amidst Re-publican powers.

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documentação foram constatadas interessantes informações referentes ao Conselho Municipal (Câmara de Vereadores) do Distrito Federal, situado à época na cidade do Rio de Janeiro, relativas ao mandato que deveria cobrir o triênio de 1909 a 1912. Estas informações revelaram importante ruptura institucional, nos primórdios da história republicana, que se acre-dita merecem divulgação em seu centésimo aniversário.

O interesse inicial no tema surgiu quando se verificou, em documen-tação do Senado Federal de 1911, que Julio Henrique do Carmo exercera a função de primeiro-secretário do Conselho Municipal do Distrito Fede-ral, em 1910. A princípio a informação causou dúvida, uma vez que, no Inventário Analítico do Conselho Municipal, localizado no Departamento de Arquivos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, não se encontram informações referentes à sua participação no Conselho de 1909/1912, havendo registro apenas no mandato 1895/97. O aprofunda-mento da pesquisa revelou alguns detalhes de conhecidos acontecimentos no Conselho Municipal que deveria cumprir mandato de 1909 a 19124, que se iniciam em plena campanha para a Presidência da República, cuja eleição se realizaria em 1º de março de 1910.

Não é pretensão aprofundar o contexto histórico-político em que se desenrolam os acontecimentos – embora os relatos, em parte o possam sugerir –, menos ainda a hermenêutica jurídica. O objetivo é tão somente detalhar os acontecimentos e buscar uma interpretação que explique o fato histórico, que se insere no estudo da evolução do Estado Democráti-co de Direito na República brasileira, e que mostra de forma indelével o rompimento do preconizado equilíbrio entre os três poderes da República.

O Conselho Municipal de 1910

Para efeito deste estudo, considera-se como Conselho Municipal de 1910, o Conselho Municipal do Distrito Federal que deveria cumprir o

ro, Sampaio Ferraz, e muitos outros, no movimento da propaganda republicana.4 – Parte dos eventos são descritos em RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supre-mo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, vol. III, pp. 55-68.

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mandato do final de 1909 a 1912, por razão de se ter concentrado em 1910 as suas atividades legislativas.

Nos Anais do Senado Federal de 1911 constam vetos do prefeito In-nocencio Serzedello Corrêa5, aprovados pelo Senado6, a três resoluções do Conselho Municipal7, assinadas por Manoel Corrêa de Mello, presidente, Julio Henrique do Carmo, primeiro-secretário e Guilherme Pereira dos San-tos, segundo-secretário. A justificativa para os vetos, datada de 5 de janeiro de 1910, alegava as razões para a edição do Decreto nº 757, de 31 de dezem-bro de 1909, do mesmo prefeito, que prorrogou o orçamento municipal de 1909 para o exercício de 1910, por não reconhecer a proposta orçamentária do Conselho Municipal, por considerá-lo ilegítimo8.

Uma análise mais acurada do motivo dos vetos do prefeito do Dis-trito Federal, à época nomeado pelo presidente da República, aclara a questão. Nessa análise foi examinada documentação, envolvendo o Poder Executivo Federal e Municipal, o Senado da República, a Câmara Fede-ral, o Supremo Tribunal Federal, além de publicações da época, material original disponível nas indicações dos links em pé de página.

5 – Coronel, depois general, anteriormente muito ligado ao tenente-coronel Benjamin Constant, foi deputado constituinte pelo Estado do Pará, em 1891.6 – As resoluções do Legislativo carioca que fossem vetadas pelo prefeito, à época, eram julgadas pelo Senado, instância superior federal. Por outro lado, no início da República, a Constituição Federal garantia autonomia aos municípios brasileiros, nos assuntos de seu interesse, mas abria exceção, em seu trigésimo artigo, ao Distrito Federal. Desta forma, competia ao Congresso Nacional legislar sobre a organização municipal, a polícia e o ensino superior, bem como para os demais serviços reservados à União. No mais havia liberdade de atuação.7 – As três resoluções do Conselho Municipal se referem à: Resolução de 15 de setem-bro de 1910, relativa aos vencimentos do quadro dos funcionários da Diretoria Geral de Fazenda Municipal; Resolução de 5 de julho de 1910, referente à contagem de tempo de serviço do dr. Antonio dos Santos Malheiro; e Resolução de 9 de abril de 1910, que auto-riza o prefeito a organizar e regulamentar o ensino primário noturno, delineando as bases para tal. SENADO FEDERAL, Annaes, 1911, vol.II, sessão de 1º de junho, pp. 3-10. Disponível em:http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=2&Tipo=9&PagMin=1&PagMax=486&Pagina=38 – Ibidem.

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As fontes periódicas, em parte utilizadas, as revistas Careta e Fon--Fon, que em princípio, poder-se-ia considerar como imprensa de oposi-ção política aos detentores do poder – devido às imagens caricaturais e textos de severa crítica a eles dedicados –, poderiam conduzir às inter-pretações de “verdades históricas” as críticas ali contidas. Haveria de se evitar esta armadilha, de acreditar na versão nelas apresentadas, sem o cuidado de se ter claro este risco9.

No entanto, a utilização das chamadas fontes oficiais, Anais da Câ-mara Federal e Senados e os Diários Oficiais da União relativizam estas preocupações. Os primeiros por explicitar os embates políticos e os se-gundos, por publicar informações dos atos que envolveram as duas fac-ções rivais, principalmente àqueles de natureza jurídica, o que reveste de certa neutralidade e objetividade os dados obtidos.

Mas o mais importante, o conjunto das informações, tornou possível sugerir a verdadeira razão da crise entre as facções rivais – razão, esta, que tem sido objeto de interpretações genéricas na bibliografia a respeito dos fatos – e que conduziu a uma ruptura ao princípio constitucional do equilíbrio entre os poderes da República.

A proposta teórica-metodológica percorre, portanto, os caminhos propostos pela “nova história política” defendida por René Remond, onde as análises históricas da política evitam as superficialidades em busca das razões efetivas das tomadas de decisões, ou como diz em relação ao estudo do Estado, aludindo às modernas críticas:

Ater-se ao estudo do Estado como se ele encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser é, portanto, deter-se na aparência das coisas. Em vez de contemplar o reflexo, retomemos à fonte luminosa: ou seja, vamos de uma vez à raiz das decisões, às estratégias dos gru-pos de pressão. 10

9 – LUCCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In Fontes histó-ricas. PINSKY, Carla Bassanezi (organizadora). 3. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.10 – REMOND, René. Uma história presente, pp. 21 e 22. In Por uma história política. REMOND, René (direção de). Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

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A eleição do Conselho

Em 31 de outubro de 1909 foram realizadas eleições para 16 inten-dentes (vereadores) do Distrito Federal, para o triênio 1909/1912, então dividido em dois distritos.

A Junta de Pretores do Distrito Federal, sob a presidência de um de-les, diplomou pelo segundo distrito, os candidatos: Ernesto Garcez Cal-das Barreto, Alberto de Assumpção, Julio Henrique do Carmo, Manoel Corrêa de Mello, Guilherme Manoel Pereira dos Santos, Ezequiel Faria de Souza, Manoel Joaquim Marinho e Julio Francisco Sant’Anna; e pelo primeiro distrito os candidatos: Enéas Mario de Sá Freire, José Clarimun-do Nobre de Mello, Honório dos Santos Pimentel, Antonio Rodrigues Campos Sobrinho, José Mendes Tavares, Francisco Pinto da Fonseca Tel-les, Pedro Pereira de Carvalho e Thomaz Delfino dos Santos11.

Os fatos se iniciam com a interrupção do processo para a verificação de poderes do Conselho Municipal12, com a edição do Decreto nº 7.689 de 26 de novembro de 1909, do Poder Executivo Federal, declarando não existente o Conselho por motivo de força maior e autorizando o prefeito a gerir o Distrito Federal sem a participação do Legislativo Municipal.

O regimento do Conselho preconizava a organização de Mesa sob a presidência do mais velho e secretariada pelos mais moços, perante a qual deveria iniciar-se o processo para a verificação de poderes. Para dar início ao referido processo reuniram-se os candidatos diplomados na sala das sessões do Conselho, em 20 de novembro, dividindo-se em dois grupos.

O grupo de oito candidatos eleitos e diplomados pelo Partido De-mocrata, no primeiro distrito, iniciou o processo para a verificação de

11 – CÂMARA DOS DEPUTADOS, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, p.25. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191112 – Na ausência de Justiça Eleitoral, a constituição de 1891, em seu artigo 18, parágrafo único, preconizava: “A cada uma das câmaras compete certificar e reconhecer os poderes de seus membros.” Era um outro escrutínio, conduzido, no caso, no Conselho Municipal pelos candidatos eleitos e diplomados. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm

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poderes em mesa presidida por Manoel Corrêa de Mello, o mais velho, e secretariada pelo segundo e terceiro mais moços, considerando a recusa do republicano Fonseca Telles, o mais moço de todos os eleitos, em acei-tar a incumbência.13

A razão da crise se deveu ao fato de José Clarimundo Nobre de Mello, juntamente com os outros sete intendentes eleitos pelo Partido Republicano no segundo distrito e diplomados, constituírem outra Mesa, sob a presidência do primeiro, que não era o mais velho, e não tendo como primeiro-secretário o mais moço, procedendo, também, ao proces-so para a verificação de poderes.14

A impossibilidade regimental de assumir o controle da Mesa inicial do Conselho Municipal, bem como de obter a maioria parlamentar, deve ter precipitado a decisão dos republicanos de constituir outra Mesa. A partir daí toda a discussão jurídico-política em torno da legitimidade do Conselho Municipal se dá, fundamentalmente, em relação ao número le-gal de intendentes para a viabilização do Conselho, conforme justificou o presidente Nilo Peçanha, na edição do decreto:

[...] as leis sobre impostos e despezas só poderão ser votadas pela maioria absoluta dos membros que compõe o Conselho, ou sejam nove intendentes; considerando que as duas parcialidades em que se divide a política do Districto Federal, conseguiram cada uma, apenas oito diplomas de intendentes, os quaes trabalhando na verificação de poderes em dous grupos separados, não puderam constituir legalmen-te o Conselho; considerando, afinal, que os factos indicados repre-sentam um caso de força maior que priva o Conselho de se compor e reunir: resolvi submeter o assumpto ao conhecimento do Congresso Nacional, e, até sua decisão a tal respeito, determinei, pelo decreto n. 7.689, da presente data, que, nos termos do art.2 do decreto de n. 5.160, de 8 de março de 1904, o prefeito administre e governe o Dis-tricto de accôrdo com as leis e posturas em vigor, independentemente

13 – CÂMARA, Annaes, 1911, 1 de junho, p. 25. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191114 – Ibidem.

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da collaboração do Conselho Muncipal, que ora não existe, por não ter se constituído na forma de direito15.

As parcialidades a que se refere Nilo Peçanha serão apresentadas ao longo do texto e coincidem com pesquisa sobre a influência do senador gaúcho Pinheiro Machado na política carioca, que identifica um grupo favorável ao Senador e outro radicalmente contrário. O primeiro era co-mandado pelo senador do Distrito Federal, o médico Augusto de Vascon-cellos, o Rapadura, muito ligado a Pinheiro Machado, e também chefe do Partido Republicano do Distrito Federal, transformado, em 1910, no Partido Republicano Conservador do Distrito Federal. O outro, menor, mas não menos atuante, contava, entre outros, com Irineu Machado16, Octacílio Camará, Barbosa Lima e Vicente Piragibe, que se opunha à orientação de Pinheiro Machado17. Pinheiro Machado tinha enorme in-fluência na política carioca do período e apoiava Hermes na campanha presidencial.

Impedidos de acessar as instalações do Conselho, em razão do de-creto, o grupo de José Clarimundo de Mello, do Partido Republicano, governista, acrescido de três indicados, se dizendo intendentes munici-pais, reconhecidos e empossados, requer habeas corpus, ao juiz Federal da 1ª Vara, que foi negado.18 Esta sentença foi confirmada pelo acórdão nº 2.793 de 8 dezembro de 1909, do Supremo Tribunal Federal – STF .19

15 – DOU, (Diário Oficial da União), 1909, 1º de dezembro, p. 8229. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1754829/dou-secao-1-01-12-1909-pg-13/pdfView16 – A rivalidade, neste momento, de Vasconcelos e Irineu Machado é noticiada na revista Fon-Fon de 13 de novembro de 1909, p. 14, após as eleições, na coluna Trepações: “Se no dia das eleições municipaes o Sr. Irineu Machado se encontrasse com o Senador Augusto de Vasconcellos, a estas horas teríamos de registrar a infelicidade de mais um....bate--boca político.” Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_046.pdf17 – PINTO, Surema Conde Sá. O Morro da Graça e a Política Carioca. Comunicação. Projeto de Pesquisa. XII Encontro da Anpuh. Rio de Janeiro, 2008, p. 4. Disponível em:http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212980274_ARQUI-VO_OMorrodaGracaeapoliticacarioca.pdf 18 – DOU, 1911, 11 de dezembro, pp. 9285 e 9286. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1763108/dou-secao-1-11-12-1909-pg-24/pdfView 19 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso de habeas corpus nº 2.793. Dispo-nível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/

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A solicitação de habeas corpus deste grupo governista poderia ser da conveniência do governo federal. Caso obtida a cobertura jurídica, garantiria o espaço governamental no legislativo municipal. Se não ob-tida, serviria como manobra diversionista para mostrar neutralidade do executivo federal perante a questão.

Na mesma data da negativa do STF aos republicanos, 8 de dezem-bro, o grupo de Manoel Corrêa de Mello, do Partido Democrata, solici-tou ao STF habeas corpus, em petição do advogado dr. Irineu Machado, anteriormente citado, deputado federal pelo Distrito Federal. O habeas corpus foi concedido sob nº 2.794, de 11 de dezembro de 190920.

A sustentação oral da petição, em defesa dos candidatos eleitos pelo Partido Democrata, foi realizada por Rui Barbosa, então senador pela Bahia e candidato à Presidência da República. Ocupando a tribuna da esquerda, com Irineu Machado na da direita, falou durante uma hora, ape-sar da limitação regimental de 15 minutos, baseando a defesa em quatro pontos: 1º) o cabimento do habeas corpus; 2º) a legitimidade dos títulos conferidos aos seus constituintes; 3º) a inconstitucionalidade do ato do Governo; 4º) a falsidade do fundamento do ato do governo.

Dentro do conjunto de argumentações, Rui leu a Lei Orgânica do Distrito, demonstrando que só no caso de anulação da eleição, ou força maior, poderia o presidente da República entregar ao prefeito a direção da cidade. Argumentando a ausência de força maior, no caso, disse não existir força maior no sentido técnico-jurídico. Citando Carvalho de Men-donça e outros juristas, afirmou: “Força maior é o que não se pode prever ou que, previsto não se pode evitar. Sua condição essencial é: um ato alheio à vontade humana.”21

anexo/RHC2793.pdf 20 – CAMARA, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, p. 95. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191121 – BARBOSA, Ruy. Trabalhos Jurídicos. Obras Completas de Ruy Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1993, vol. XXXVI, tomo III, p. 130. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm

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Iniciado o julgamento, foi dada a palavra ao relator, ministro Godo-fredo Cunha, que, antes de manifestar o seu voto, desejou ter esclarecida a questão da competência do STF para julgar o pedido. Realizada a vo-tação caiu a preliminar, com o único voto contrário do relator. Em segui-da, o relator disse não estar informado o suficiente para pronunciar-se, necessitando mais esclarecimentos do Governo, propondo transformar o julgamento em diligência. Posto em votação, o Tribunal acolheu o julga-mento da questão.

Procedido o julgamento foi concedido habeas corpus aos inten-dentes diplomados, por nove votos contra um, do ministro Cardoso de Castro que não tomou conhecimento do pedido, pois só o acataria se a mesma decisão fosse extensiva aos outros intendentes diplomados pela outra facção. O julgamento se iniciou aos 10 minutos para uma da tarde e encerrou-se aos 15 minutos para as seis.22

Assim se expressa em parte o acórdão:

[...]

Considerando que, em face da doutrina e da lei que regula a espécie dos autos, não se verificou qualquer circunstância de força maior de direito ou de fato, que privasse o Conselho Municipal de se compor, ou se reunir [...] só no caso de anulação da eleição, ou e qualquer outro de força maior que prive o Conselho de compor, ou de se reunir, o Pre-feito administrará, governará o Distrito – (Consolidação que baixou com o dec. nº 5.160, de 8 de março de 1904, art.23);

Considerando que a formação de uma mesa ilegal, a par de outra legal, não constitui circunstância de força maior para impedir os trabalhos de verificação de poderes da mesa organizada legalmente;

[...]

Considerando, finalmente, que o referido dec. nº 7.689 é inteiramente inaplicável à espécie dos autos, por não se verificar o pretendido caso de força maior do art.23 da citada Consolidação:

22 – Ibidem, pp. 123-134.

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Acordam conceder a ordem impetrada para que aos pacientes seja per-mitido o ingresso no edifício do Conselho Municipal para exercerem sem detença, estorvo ou dano, os direitos decorrentes dos seus diplo-mas, continuando no processo de verificação de poderes, expedindo--se para esse fim os respectivos salvo-condutos.

Supremo Tribunal Federal, 11 de dezembro de 1909.23

Prosseguindo o feito é impetrado pedido de habeas corpus por Nica-nor do Nascimento em favor de Alberto de Assumpção e outros 15 can-didatos diplomados. O STF julgou o pedido improcedente com referên-cia aos oito diplomados, do Partido Democrata, já cobertos pelo acórdão 2.794, anteriormente mencionado, porém, concedeu aos oito republica-nos diplomados pelo segundo distrito, pelo acórdão 2.797 de 15 de de-zembro, para:

[...] que tenham livre ingresso na casa do Conselho, a fim de exerce-rem os direitos decorrentes dos diplomas de que são portadores, mas perante a mesa presidida pelo Sr. Manoel Corrêa de Mello, que é o mais velho dos intendentes diplomados, cuja mesa já foi declarada legal por ter sido organizada de acordo com as formalidades dos arts. 1 e 3 do regimento interno do Conselho e disposições dos arts. 10 e paragrapho único da Consolidação das Leis sobre organização muni-cipal do Districto Federal.24 [...]25

Neste ínterim o STF toma conhecimento, ex-ofício, da decisão do Juiz da 1ª Vara Federal, de concessão de outro habeas corpus, em 13 de dezem-

23 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas corpus nº 2.794. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC2794.pdf 24 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas corpus nº 2.797. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC2797.pdf 25 – Curiosamente, o relatório do ministro da Justiça e Negócios Interiores de 7 de ju-nho de 1910, ao presidente Nilo Peçanha, omite informação ao descrever as dificulda-des enfrentadas por seu Ministério durante os agitados dias da campanha presidencial, entre os quais o caso do Conselho Municipal. Ao citar este habeas corpus, omite a fra-se:” [...] que é o mais velho dos intendentes diplomados [...]”, substituíndo-a por reti-cências. DOU 1910, 7 de junho, p. 4.211. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1689606/dou-secao-1-07-06-1910-pg-2/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1689606/

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bro de 191026, aos oito republicanos diplomados do segundo distrito, acres-cidos de três democratas27, que fora solicitado pelos onze interessados como candidatos diplomados. O STF considera essa decisão prejudicada28, em virtude da garantia legal já estabelecida no acórdão 2.797, acima referido 29.

Mais tarde, a negativa do Acórdão 2.793 serviria como mais um argumento do presidente Hermes da Fonseca para justificar o decreto, marcando data para nova eleição dos intendentes, conforme será adiante apresentado. O argumento de Hermes foi equivocado, porque considerou a decisão do Supremo Tribunal de dar o remédio do habeas corpus a um grupo e ter negado ao outro, ignorando a garantia legal concedida aos dois grupos pelos acórdãos números 2.794 e 2.797.

Apoiados pela decisão do Supremo Tribunal foram reconhecidos como intendentes, na sessão do Conselho Municipal de 21 de dezembro de 1909, os candidatos diplomados Manoel Corrêa de Melo, Julio Henrique do Car-mo, Guilherme Manoel Pereira dos Santos, Julio Francisco de Sant’Anna, Ernesto Garcez Caldas Barreto, Alberto Assumpção, Ezequiel Faria de Sou-za, Manoel Joaquim Marinho, Enéas Mario Sá Freire, Honório dos Santos Pimentel, Antonio Rodrigues de Campos Sobrinho, José Clarimundo No-bre de Mello e Francisco Pinto da Fonseca Telles, ao todo treze dos candi-datos diplomados. Foram ainda reconhecidos como intendentes Octacílio de Carvalho Camará, Ataliba de Lara e Luiz Augusto de Almeida Ramos, por terem sido os mais votados, em substituição aos candidatos diplomados considerados incompatíveis, que foram Thomaz Delfino dos Santos, Pedro Pereira de Carvalho e José Mendes Tavares. 30

26 – DOU, 1909, 17 de dezembro, p. 9492. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1767682/dou-secao-1-17-12-1909-pg-4/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1767682/27 – Ibidem. Julio Francisco de Sant’Anna, Manoel Joaquim Marinho e Dr. Ernesto Cal-das Barreto.28 – Ibidem. 21 de dezembro, p. 9610. Disponivel em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1770366/dou-secao-1-21-12-1909-pg-2/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1770366/ 29 – CAMARA, Annaes, 1911, vol. II, 1 de junho, p. 26. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911 30 – Ibidem, p. 99. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911

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A posse do Conselho

Em 25 de dezembro de 1909, em sessão solene do Conselho Municipal, foram empossados, pelo Conselho anterior, os intendentes reconhecidos. Dos intendentes eleitos pelo segundo distrito tomou posse apenas Enéas de Sá Freire, deixando de fazê-lo José Clarimundo Nobre de Mello, Honório dos Santos Pimentel, Antonio Rodrigues de Campos Sobrinho e Francisco Pinto da Fonseca Telles. 31

Empossado o Conselho, a ele se opõe o prefeito, conforme inicial-mente descrito. A edição do Decreto Municipal nº 757, de 31 de dezem-bro de 1909, ignorando a existência do Conselho e prorrogando o or-çamento municipal, foi uma manobra que afastou o governo federal da questão. Por esse Decreto o prefeito avocou a si o não reconhecimento do Conselho. Para justificar essa decisão, contrária às garantias legais ante-riormente estabelecidas, argumentou o prefeito:

[...] nas circunstancias expostas não envolve nenhum desrespeito ao accordão do Supremo Tribunal Federal de 11 deste mez, porquanto o que este accórdão garantiu aos oito cidadãos diplomados do 1º dis-tricto foi apenas o direito de penetrarem no edificio do Conselho para ahi proseguirem na verificação de poderes perante a mesa legal, e são estes proprios cidadãos que declaram ter concluido essa verificação e reconhecem assim haver o citado accordão produzido todos os seus effeitos e esgotado a sua força efficiente. 32

Como se observa, o chefe do Poder Executivo Municipal não se refe-re ao habeas corpus de 15 de dezembro que deu garantias aos candidatos republicanos diplomados, eleitos pelo segundo distrito, esquecendo que as garantias legais dos acórdãos de 11 e 15 de dezembro são claras, em garantir os “direitos decorrentes de seus diplomas” a todos os candidatos eleitos. Obviamente que estes direitos iam muito além do processo de verificação de poderes.

31 – Ibidem, p. 27. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911 32 – Ibidem, p. 28. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911

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Alegava o prefeito, na justificativa de 5 de janeiro de 1910, enviada ao Senado para apreciação do veto ao orçamento, que tinha sido procura-do por vários cidadãos que se diziam do Conselho Municipal. Tais cida-dãos tentavam lhe entregar papéis ditos serem a proposta de orçamento municipal, que se negava em receber devido à inexistência do Conselho, e que, finalmente, recebeu a proposta encaminhada por Manoel Corrêa de Mello e outros, por injunção judiciária do juiz dos Feitos da Fazenda Municipal, em 31 de dezembro de 1909.

Ao final da justificativa assim se expressava o prefeito:[...]; o Conselho Municipal não se pode dizer constituído ou “reconhe-cido”, na expressão da lei, sinão depois de proclamados intendentes, pelo menos, dous terços, isto é, onze dos canditados diplomados (arts. 5º, 7º e 8º, do Regimento Interno do Conselho Municipal); actual-mente, installou-se, é certo, com 11 candidatos, mas três destes não eram diplomados e haviam sido reconhecidos pela própria commissão verificadora de poderes, que se arrogou qualidade para annullar os diplomas dos cidadãos coronel Pedro P. de Carvalho, Drs. Thomaz Delphino dos Santos e José Mendes Tavares e reconheceu os Drs. Octacílio de Carvalho Camará, Luiz Ramos e Ataliba de Lara, não diplomados, violando assim as regras dos arts. 5, Par. 1º do regimento interno, e 65, par. 1º, da lei orgânica n. 939, de 29 de dezembro de 1902, e incidindo em nullidade substancial e constitucional. Demais, ainda quando se queira admitir que não é necessária a presença de 11 intendentes diplomados e reconhecidos para a sessão de installação e posse do Conselho, indispensável é que estejam presentes nove diplo-mados reconhecidos, pois o art. 10 do decreto n. 5.160, de 8 de março de 1904, dispõe que “as sessões do Conselho Municipal serão públi-cas e só poderão effectuar-se quando se achar presente mais de metade de seus membros”, isto é, pelo menos NOVE; de onde se conclue, di-rectamente, que jamais houve, para esse pretenso Conselho, sessão de posse, pois que o grupo que como tal se pretendeu constituir, só teve oito intendentes diplomados desde o início de seus trabalhos até o dia em que me remeteu, por intermédio do juiz dos Feitos da Fazenda, o autographo junto. 33

33 – SENADO, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, pp. 8-9. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=2&Tipo=9&PagMin=1&PagMax=486&Pagina=8

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O veto do orçamento é aprovado por resolução do Senado em 30 de abril de 1910, após a eleição de Hermes da Fonseca, com dispensa de im-pressão. 34 No entanto, a resolução nº 33 de 1911 35 e seguintes do Senado Federal, referentes à aprovação dos vetos do prefeito, fazem referência à citada aprovação não publicada.

O fato conduz a uma reação do Conselho Municipal que aprovou moção, assinada pelo primeiro-secretário, em 2 de maio de 1910, contra a iniciativa do Senado. A moção foi encaminhada ao STF, sendo lida pelo presidente daquela Corte que declarou que o tribunal nada tinha que de-liberar a respeito.36

Em resumo, o executivo federal decretou a inexistência do Conselho Municipal em 26 de novembro de 1909, enquanto que em 11 e 15 de dezembro do mesmo ano foi concedido habeas corpus37 aos candidatos eleitos e diplomados, reconhecendo, portanto, o seu direito de legitimar o referido Conselho. Em 31 de dezembro o executivo municipal decretou a prorrogação do orçamento de 1909 para 1910, pelo Decreto Municipal nº 757, por considerar o Conselho ilegítimo, seguindo, portanto, o interesse que motivou o decreto do governo federal.

A estratégia assumida pelo prefeito, após a edição do Decreto nº 757, em relação ao Conselho, foi receber as suas resoluções, vetá-las e encaminhá-las ao Senado.

34 – CÂMARA, Annaes, 1911,vol. II, sessão de 1º de junho, p. 28. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191135 - SENADO, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, p. 3. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=2&Tipo=9&PagMin=1&PagMax=486&Pagina=336 – DOU, 1910, 15 de maio, p. 3340. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1676716/dou-secao-1-15-05-1910-pg-14/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1676716/ 37 – Os julgamentos destes habeas corpus são considerados históricos nos Anais do Su-premo Tribunal Federal, pelo fato do plenário desta corte ter aceitado a interpretação ampla, liberal, da aplicação do instrumento do habeas corpus, posição, que na ausência dos modernos instrumentos jurídicos, como os mandatos de segurança e de injunção, era defendida por Ruy Barbosa.

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Rui e os acontecimentos e a anulação da eleição presidencial no Distrito Federal

Com relação a esses fatos, pronunciou-se Rui Barbosa, em 15 de ja-neiro de 1910, no Teatro Politeama, em Salvador, quando do lançamento de sua Plataforma de governo, na campanha civilista, ao discorrer sobre a Justiça:

Uma política de ódio à justiça, como a que se está praticando em be-neficio da candidatura militar, uma política dessa violência ostensiva que convida o Senado, as suas comissões desautorarem as sentenças do Supremo Tribunal Federal, num regimén onde esse Tribunal é o árbitro irrecorrível da validade dos atos do Congresso; que propala, contra os juízes, ameaças de processo no Senado, se aquela magistra-tura persistir nas suas decisões acerca do Conselho Municipal, man-tendo a lei contra as diligências oficiais, envidadas para frustrar, no escrutínio de março, a expressão do horror da capital da República ao militarismo; 38 [...]

Em outro ponto da Plataforma, em título, A volta do Terror Militar:

[...] São cambalachos, em que o militarismo, já sem cerimônias, go-vernando o presidente atual, dele recebe a presidência futura, a troco de sustentar o seu desmoralizado instrumento em atentados monstruo-sos como a invasão militar do estado vizinho, durante as eleições esta-duais, a exautoração do Conselho Municipal na metrópole brasileira, sob o mais falso, o mais absurdo, o mais ridículo dos pretextos, [...].39

Com referência à organização do Distrito Federal, Rui, na Plata-forma, reconhece ter sido partidário da autonomia restrita, mas perante os acontecimentos que envolveram o Conselho Municipal, a experiência aconselharia a autonomia plena. Como alternativa, o robustecimento da-quela instituição, aumentando-se a base eleitoral, com a permissão do voto aos estrangeiros residentes.38 – BARBOSA, Rui. Pensamento e ação de Ruy Barbosa. Plataforma [Eleitoral] lida no Teatro Politeama em 15 de janeiro de 1910. Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obras-Completas.htm 39 – Ibidem, p. 303.

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Após a eleição de Hermes da Fonseca, cuja posse se daria em 15 de novembro de 1910, o Congresso Nacional aprovou, em 29 de julho de 1910, parecer da Comissão de Constituição e Diplomacia do Senado, propondo a anulação das eleições no Distrito Federal, para presidente e vice-presidente da Republica40, porque a junta de qualificação, que proce-deu ao alistamento dos eleitores, que serviu para aquelas eleições, tinha três cidadãos41 eleitos pelo “pseudo” Conselho Municipal, entre eles, o deputado Irineu Machado, juntamente com os drs. Raimundo Pennafort e Francisco Joaquim de Bethencourt da Silva Filho. Essa comissão de alis-tamento incluiu 2.190 eleitores, deixando de incluir 272, foi transformada legalmente em junta eleitoral e organizou as mesas eleitorais no Distrito Federal. Esta decisão do Poder Legislativo afastou, do colégio eleitoral do Distrito Federal, os eleitores indicados pela referida junta. Nessa elei-ção presidencial votaram 8.687 eleitores ou 34% dos eleitores do Distrito Federal.42

Desta forma, se pelo aspecto jurídico os intendentes contavam com apoio, sob o aspecto político não se podia dizer o mesmo.

O apoio do Judiciário não se resumiu apenas às decisões do STF. A demanda judicial do dr. Octacílio Carvalho Camará para receber o seu subsídio e representação, em virtude de ordem contrária do prefeito, ilus-tra esse apoio. Ela foi julgada procedente pelo juiz dos Feitos da Fazenda, que entre outros considerandos, assim se pronunciou:

Considerando que não tendo o Prefeito, em absoluto, attribuição que o autorize a conhecer e julgar da legitimidade do Conselho Municipal, assim como não pode o Executivo Federal intervir na verificação dos membros do Congresso Nacional, violou de frente, com o decreto n.

40 – SENADO, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, p. 3. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=2&Tipo=9&PagMin=1&PagMax=486&Pagina=341 – D O U 1910, 13 de fevereiro, p. 1182. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1636303/dou-secao-1-13-02-1910-pg-14/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1636303/ 42 – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Eleição Presidencial de 1910. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtm

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757, de 31 de dezembro de 1909, disposições expressas das leis orgâ-nicas municipaes, arrogando-se attribuições exclusivas do Legislativo Municipal, sendo assim aquelle acto dictatorial e anarchico.43

A municipalidade foi condenada ao pagamento, o que foi confirmado por decisão da Primeira Câmara da Corte de Apelação.

Neste momento histórico não bastava o apoio do Poder Judiciário, o Conselho Municipal estava inviabilizado, não contando com os apoios do prefeito e do Senado Federal. Apenas a vitória eleitoral de Rui Barbosa garantiria o Conselho.

Anteriormente, em 18 de dezembro de 1909, a coluna “Trepações”, da revista Fon-Fon, apresentou em nota, as dificuldades do envolvimen-to do Conselho Municipal na definição dos eleitores, ao afirmar: “[...] a trapalhada politica que deu em resultado o fechamento do Conselho Mu-nicipal, impede que haja alistamento em Janeiro, porque, sem Conselho Municipal, não se podem formar as mesas de alistamento. [...]” 44. Este alistamento eleitoral, como visto, foi realizado, serviria para a eleição presidencial de 1º de março de 1910.

A participação do Conselho Municipal na organização do colégio eleitoral do Distrito Federal foi definida pela Lei Rosa e Silva, de 1904, que estabeleceu as regras eleitorais para a República. Segundo esta lei, as comissões municipais de alistamento eleitoral, que se reuniam todo dia 10 de janeiro, eram compostas pelos quatro maiores contribuintes de impostos – dois do imposto predial e dois do imposto de propriedade ru-ral ou de indústrias e profissões – em sorteio, e por três cidadãos eleitos pelos intendentes – Conselho Municipal – e seus imediatos em votos, em igual número, presidida, no caso do Distrito Federal, pelo presidente do Tribunal Civil ou Criminal. Essas comissões se transformavam em juntas eleitorais responsáveis pela organização das mesas eleitorais. No

43 – CAMARA, Annaes, 1911, vol. II, sessão de 1º de junho, p. 28. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191144 – FON-FON, p. 14. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_051.pdf

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Distrito Federal a substituição da presidência da comissão municipal de alistamento, pelo primeiro-procurador seccional, sem direito a voto, for-mava a junta eleitoral 45. Desta forma, o poder dos Conselhos Municipais transcendia as demandas legislativas locais. Obter maioria dos intenden-tes e seus imediatos em votos poderia garantir a aprovação de eleitores e mesas eleitorais direcionadas a determinados interesses. Como existia a alternativa do voto a descoberto era possível identificar a lealdade política de eleitores.

O Distrito Federal tinha assento no Congresso Nacional com três se-nadores e dez deputados. As eleições de deputados federais e a renovação do terço do Senado se dariam em 30 de janeiro de 1912. A anulação das eleições para presidente e vice-presidente da República, no Distrito Fe-deral, ao mesmo tempo, em que afastou os eleitores que foram acrescidos pela comissão eleitoral na qual participavam os eleitos pelo Conselho de 1910, que participariam da eleição acima indicada, os impediu, também, de participar de uma nova eleição do Conselho Municipal, como se ve-rificará.

As interpretações, para os fatos aqui narrados, esclarecem a afirmativa de Rui, na Plataforma, um mês e meio antes da eleição presidencial, quando discorreu sobre a Justiça, os fatos do Conselho Municipal e a elei-ção presidencial, acima apresentada, ao indicar: “[..]; ... as diligencias ofi-ciais, envidadas para frustrar, no escrutínio de março, a expressão do horror da capital da República ao militarismo;”. As diligências oficiais, pelo que se depreende, visavam afastar os adversários políticos da possi-bilidade de indicar, no Distrito Federal, eleitores para apoiar Rui Barbosa e derrotar o militarismo.

Os acontecimentos mostraram o total isolamento político do Conse-lho Municipal, situação que seria superada com a sua substituição.

45 – Lei nº 1.269, de 15 de novembro de 1904. Lei Rosa e Silva. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-1269-15-novembro-1904-584304-nor-ma-pl.html

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A Substituição do Conselho

Nos Anais do Senado de 1911 registram-se vetos do prefeito Bento Ribeiro46 às resoluções do Conselho Municipal, assinadas em 30 de no-vembro e 9 de dezembro de 1911, por Gabriel Ozório de Almeida, pre-sidente, José Clarimundo Nobre de Mello47, primeiro-secretário e Alme-rindo Thomas Malcher de Bacellar, segundo-secretrário. Isto constata o afastamento do Conselho Municipal secretariado por Júlio do Carmo, que teria mandato expirando em 15 de novembro de 1912.48

Após quase cinquenta anos, uma discussão jurídica, em 1956, entre a Prefeitura do Distrito Federal e a Cia. Ferro Carril do Jardim Botânico a respeito da reversibilidade dos bens da companhia para a prefeitura, envolveu o período em que o Conselho Municipal não era reconhecido pelo prefeito, e quando decisões foram tomadas sem anuência do referido Conselho. Nesse embate jurídico é fixada a data de 27 de abril de 1911 como o limite de atuação do Conselho Municipal de 1910, conforme re-gistrado:

Argúi-se, agora, que o Prefeito, na oportunidade da lavratura do Ter-mo de 1911, estava investido de faculdades legislativas. Mas não é exata a alegação. De fato, a partir de 26 de novembro de 1909 e até 27 de abril de 1911, não se reconheceu a legitimidade do Conselho Mu-nicipal em exercício. Mas isso não importava em atribuir ao Prefeito as funções legislativas do Conselho Municipal.49 [...]

A data de 26 de novembro de 1909 se refere ao decreto nº 7.689, citado anteriormente, que determinava que o prefeito administrasse e governasse o Distrito Federal, independentemente da colaboração do Conselho Muni-cipal.

46 – General nomeado por Hermes e muito ligado a Pinheiro Machado.47 – O mesmo republicano que constituiu Mesa provisória sob a sua presidência em 1909 e que gerou a crise no Conselho Municipal.48 – SENADO, Annaes, 1911, vol. VI, sessão de 18 de dezembro, pp. 234-239. Disponí-vel em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=6&Tipo=9&Pagina=23449 – CÂMARA, Anais, 1956, sessão extraordinária de 25 de janeiro, p. 495. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=25/1/1956

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Com referência à data de 27 de abril de 1911, encontra-se nos anais da Câmara mensagem presidencial assinada por Hermes da Fonseca, em 22 de fevereiro de 1911, justificando ao Congresso Nacional, o decreto nº 5.800 de 4 de janeiro de 1911, que designou o último domingo do mês de março de 1911 para a realização das eleições do Conselho Municipal, para um mandato de 1911 a 191350. Esse ato representou a dissolução, de facto, do Conselho Municipal em exercício.

Essa decisão é satirizada na revista carioca Careta51, de 25 de fe-vereiro de 1911, sob o título Carnaval Político, apresentando Pinheiro Machado empurrando o Marechal Presidente, que espeta o Conselho Mu-nicipal, tendo abaixo os dizeres: “Quem manda aqui sou ‘nós’.” (Figura 1, Fundação Biblioteca Nacional).

Figura 1

J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-1960)

50 – CÂMARA, Annaes, 1911, sessão de 4 de maio, 77-91. Disponível em: http://ima-gem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=4/5/1911 51– CARETA, p. 27. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_1911/careta_1911_143.pdf

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Em razão do decreto, solicitaram os intendentes, Manoel Corrêa de Mello, Júlio Henrique do Carmo, Guilherme Manoel Pereira dos Santos, Ezequiel Faria de Souza, Alberto de Assumpção, Manoel Joaquim Ma-rinho, Ernesto Garcez Caldas Barreto, Enéas Mario de Sá Freire, Salus-tiano Baptista Quintanilha, Hemetério José Pereira Guimarães, Manoel Luiz Machado, Pedro de Couto, Luiz Augusto de Almeida Ramos, Luiz Augusto de Castro Miranda, Ataliba de Lara e Octacílio Camará, medidas judiciais através de petição de Octacílio Camará, sendo-lhes concedida a proteção do habeas corpus nº 2.990 de 25 de janeiro de 1911. Seguem trechos do Acórdão, que reitera decisões anteriores:

Depois de impetradas e obtidas várias ordens de habeas corpus, e ten-do este Tribunal mandado que se respeitasse a reunião dos intendentes que, sob a presidência do mais velho, exercessem os direitos decor-rentes de seus diplomas, entre os quais o de verificar os poderes dos intendentes eleitos, o grupo dos intendentes presidido pelo mais velho constituiu o Conselho Municipal, dando-se em seguida a posse dos 16 intendentes. As ordens de habeas corpus haviam sido pedidas, por ter o Poder Executivo, por meio de decreto, declarado que o Conselho não se constituíra por força maior, um dos casos em que o prefeito deve governar e administrar o município, de acordo com as leis em vigor. Votado pelo Conselho o orçamento Municipal, opôs-lhe o Pre-feito o veto, que o Senado confirmou. Continuaram os intendentes a exercer suas funções, sem que com os mesmos entrassem em relações o prefeito e o Poder Executivo da União, quando, pelo decreto de 4 de janeiro corrente, depois de vários considerandos, o Presidente da República designou novo dia para a eleição de intendentes deste mu-nicípio, o que significava estar dissolvido o Conselho Municipal. [...]

Ao final:

Considerando, em suma, que os pacientes, são membros do Conselho Municipal do Distrito Federal, legalmente investidos de suas funções, e com razão receiam que lhes seja tolhido o ingresso no edifício do Con-selho em conseqüência do decreto de 4 de janeiro do corrente, o qual, do mesmo modo por que o de 26 de novembro de 1909, é manifestada-mente infringente da Constituição Federal (na parte em que garante esta a autonomia municipal e especialmente a deste Distrito Federal) e das

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leis ordinárias aplicáveis à hipótese: O Supremo Tribunal Federal con-cede a ordem de habeas corpus, impetrado, a fim de que os pacientes, assegurada a sua liberdade individual, possam exercer suas funções até à expiração do mandato, proibido qualquer constrangimento que possa resultar do decreto do Poder Executivo Federal, contra o qual foi pedida esta ordem de habeas corpus. 52

A mensagem de Hermes da Fonseca ao Congresso Nacional, datada de 22 de fevereiro de 1911, anteriormente referida, justifica o não cumpri-mento da decisão judicial do STF de proteção aos intendentes, e manteve, portanto, a eleição. Tece extensa argumentação jurídica para justificar a inexistência de direito do Conselho Municipal e centra-se na inadequa-ção da concessão do habeas corpus, como instrumento jurídico válido, para dirimir questão de tal natureza. Em outras palavras, o presidente da República ignorou a cobertura jurídica do STF aos intendentes, conforme transcrito, da longa mensagem encaminhada à Câmara dos Deputados:

Ao assumir o Governo, em 15 de novembro de 1910, encontrei o mesmo estado de cousas creado no anno anterior e, como o assumpto estivesse affecto ao vosso criterio e sabedoria, esperei que no mez e meio que ainda tinheis de sessões acudísseis com a providencia que vos tinha sido solici-tada. Mas encerrando-se os trabalhos legislativos, em 31 de dezembro, sem a esperada solução, e não devendo absolutamente continuar uma anormalidade de evidente inconveniência para os interesses do Dis-tricto, que se via, por tão longo tempo, privado da collaboração de seu Poder Legislativo, órgão unico de intervenção do povo na direção dos seus negocios, resolvi em obediência ao proprio espírito da lei de 1902, designar novo dia para se realizarem as eleições do Conselho Municipal do Districto e, para isso, expedi o decreto n. 5.800, de 4 de janeiro ultimo. [...]

Ao seu final:

Deixando, assim, de dar cumprimento a um aresto illegal do Poder Judiciário, cumpro o meu dever, pois não me posso convencer de que

52 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, habeas corpus, nº 2.990, de 25 de janeiro de 1910. Brasília. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJul-gamentoHistorico/anexo/HC2990.pdf

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uma simples ordem de Habeas Corpus tenha o alcance de nullificar solemnes decretos do Poder Executivo, e, muito menos, actos políti-cos que reflectem o pensamento e a vontade dos outros dous poderes.53

A mensagem do Marechal Presidente é encaminhada pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores, Rivadávia da Cunha Corrêa, ao STF, em 22 de fevereiro de 1911. O ministro Pedro Lessa a devolve e ao final da argumentação, afirma:

[...]Como havemos de tolerar que, sob a Republica Federativa, e no re-gimen presidencial, em que tão nítida e accentuada é a separação dos poderes, se restabeleça a inconstitucional intrusão do Poder Executi-vo nas funcções do Judiciario? Ao Presidente da República nenhuma autoridade legal reconheço para fazer prelecções aos juízes acerca da interpretação das leis e do modo como deveria administrar a justiça. Pela Constituição e pela dignidade do meu cargo, sou obrigado a re-pellir a lição. Poderia acceital-a em virtude da autoridade scientifica, de que dimana. Mas, quando que bônus dormitat Homerus, desta vez a lição veio inçada de erros, erros funestissimos á mais necessária de todas as liberdades constitucionaes. Ainda, por essa razão, sou obriga-do a devolver-lhe.54

No mesmo Diário Oficial da União de 2 de abril foi publicada a mensagem de Manoel Corrêa de Mello, presidente do Conselho:

Ex. Sr. Dr. presidente do Supremo Tribunal Federal. Cumpre-me con-vocar a terceira sessão ordinaria do Conselho Municipal, a installar-se a 2 de abril próximo, na qualidade de seu presidente. Deixo, porém de faze-lo, visto que ainda subsistem as medidas violentas que teem obstado o funccionamento do legislativo municipal. Deante, portanto, da impossibilidade de exercer as attribuições de meu cargo, o que farei desde que cesse o emprego da força, sou me obrigado dar-vos conhe-cimento da minha conducta, e obediência ao povo que me elegeu, e ao Supremo Tribunal Federal que me assegurou o exercício das funcções

53 – CÂMARA, Annaes, 1911, sessão de 4 de maio de 1911, pp. 77-91. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=4/5/191154 – DOU, 1911, 2 de abril, p. 3.814. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1754800/dou-secao-1-02-04-1911-pg-54/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1754800/

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de intendente. Assim deixo de cumprir o que estatue taxativamente a lei orgânica do Districto Federal. Saude e fraternidade.

A mensagem de Hermes da Fonseca ao Congresso Nacional dá ori-gem ao Parecer n°.12-1911 da Câmara, posteriormente aprovado, que aceitava os argumentos do presidente e mandava arquivar a mensagem presidencial. A leitura do parecer do relator, deputado Felisbello Freire, teve a discordância do deputado Pedro Moacir, em longo relatório55, con-duzindo à réplica o relator. 56

A voz destoante à ruptura constitucional, do atuante deputado civilis-ta, Pedro Moacir57, ao propor emenda à Resolução 12-1911, acima citada, em seu voto em separado, assim se manifesta:

Com estas doutrinas e actos subversivos da ordem constitucional não me posso conformar. Este voto em separado não terá, bem o sei, a honra dos suffragios da maioria, mas valerá, ao menos, como um pro-testo, em termos respeitosos, contra o mais grave dos golpes de Esta-do, que o regimen legal soffreu desde 15 de novembro. A dissolução de um Congresso, por entre os fragores de uma luta política nacional, é muito menos funesta, em conseqüências para a liberdade, para a ordem e para a justiça, do que o desacato ao Poder Judiciário inerme, indefeso, trabalhando na serenidade do pretório.58

Em vista do não cumprimento ao habeas corpus nº 2.990, foi pro-posta por Alberto de Assumpção e outros, ação sumária especial no Juiza-

55 – [...] voto vencido de Pedro Moacyr se daria o qualificativo de memorável. Em setenta páginas de texto cerrado o deputado gaucho arrasa a mensagem e parecer, não deixando pedra sobre pedra naquele amontoado de sofismas absurdos e falsidades. MELO FRAN-CO, Afonso Arinos. Um estadista da República (Afrânio de Mello Franco). Rio de Janei-ro: José Olympio, 1955, p. 690.56 – CÂMARA, Annaes, sessão de 1º de junho, vol. II, pp. 3-130. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/191157 – A revista Fon-Fon de 4 de setembro de 1909, p. 11, em nota: ” (...) Dizem os jornais que Ruy Barbosa, Pedro Moacyr e Irineu Machado, vão partir para os Estados em propa-ganda das candidaturas civilistas”. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_036.pdf58 – CÂMARA, Annaes, 1911,sessão de 1º de junho, vol. II, p.93. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911

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do Federal da 2ª Vara, com vistas à anulação do Decreto nº. 5.800, supra-citado. Em 22 de abril de 1911, o primeiro-procurador da República dr. Andrade e Silva, contestou a ação.59 Em 5 de julho, do mesmo ano, o juiz federal da 2ª vara, a União Federal e a Fazenda Municipal recorreram ao Supremo Tribunal Federal 60, que em 11 de novembro de 1911 reconheceu a sentença do juiz da 2ª Vara, favorável ao pleito, conforme o Acórdão nº 2.062 de 11 de novembro de 1911:

[...] Que no dispositivo da sentença apellada - “ Para efeito de assegu-rar aos Autores os referidos direitos e vantagens, incluindo o de rece-berem da Fazenda Municipal subsidio arbitrado por lei”- se incluem naqueles direitos e vantagens enumeradas nos consideranda que pre-cederam e serviram de base ao alludido dispositivo a saber: a) de se-rem os apellados reconhecidos intendentes municipaes desse districto para o triennio de 1910 a 1912 e, como tais empossados das respecti-vas funções; b) de poderem exercer as ditas funções com os direitos e vantagens dellas decorrentes, e dos quais foram privados pelo decreto n. 5.800 de 4 de janeiro do corrente anno, decreto, que dita sentença e pelo presente accordam, é declarado ilegal e inconstitucional; c) de serem considerados os autores ora apellados considerados como ma-nutenidos no exercício de seus cargos durante o triennio referido por força da sentença apellada ora confirmada pelo Tribunal; [...]61

A União recorreu da decisão com embargos de declaração.

O resultado das eleições convocadas por Hermes, realizadas em 26 de março, com mesas eleitorais organizadas pela junta eleitoral de 190962 – na ausência da anulada junta eleitoral de 1910 – é noticiado na revista

59 – DOU, 1911, 23 de abril, p. 4832. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1777648/dou-secao-1-23-04-1911-pg-28/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1777648/ 60 – DOU, 1911, 9 de julho, p. 8431. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1855094/dou-secao-1-09-07-1911-pg31/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1855094/61 – DOU, 1912, 2 de junho (Suplemento), p. 16. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1819147/dou-secao-1-02-06-1912-pg-54/pdfView#xml=http://www.jus-brasil.com.br/highlight/1819147/62 – DOU, 1911, 28 de fevereiro, p. 2238. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1725056/dou-secao-1-28-02-1911-pg-10/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1725056/

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Careta63 de 22 de abril de 1911, em título, PRO-INTENDENTES: “O Se-nador Rapadura Vasconcellos conseguiu diplomar todos os seus candi-datos ao Conselho Municipal.” A nota também faz menção aos inúmeros respeitáveis candidatos que contestam os diplomas dos rapaduristas.

A mesma revista, em 8 de abril de 191164, apresenta, em capa, charge em que Rapadura, montando um jumento, transita em tapete, ladeado por seguidores com ramos nas mãos, como se Cristo fosse, com o título “Do-mingos de Ramos ou a Entrada de Rapadura no Conselho Municipal” (Figura 2, Fundação Biblioteca Nacional).

Figura 2

J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-1960)

O poder de Vasconcellos de ressuscitar os mortos, transformando-os em eleitores, era cantado em prosa65 e verso, como o da revista Fon-Fon

63 – CARETA, p. 11. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_1911/careta_1911_151.pdf 64 – CARETA, p. 1. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_1911/careta_1911_149.pdf65 – FON-FON, 1909, 13 de novembro, p. 14, Coluna “Trepações”. Fundação Bibliote-ca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_046.pdf

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de 27 de janeiro de 190766, que apresenta o senador em soneto, assinado por Araçary, na coluna “Araras, Periquitos e Papagaios”:

AUGUSTO DE VASCONCELLOS

Este grande orador tatibitatiRepresenta o Districto no Senado;Nos lábios traz, da cor de chocolate,Perenne um riso de...leitão assado.

De chefe tem o posto incontestadoQuando Sodré quis dar-lhe cheque mate,Mandou nos cemitérios dar rebateChamando o fallecido eleitorado;

Quanto deffunto encontra elle arrebanha,Da Ponta do Cajú a Cascadura,Em tres tempos vence uma campanha.

Na voz tem tão angélica doçuraQue quando fala, sensação estranha!Traz á bocca um sabor de rapadura.

Em 27 de maio de 1911, a mesma revista, em coluna assinada por Ferrolho, apresenta nota crítica das decisões governamentais:

O Consellho (?) Muncipal do eminente politicoide Sr. Senador Vas-concellos Rapadura, com uma gentileza bem rara nestes dias de estú-pida grosseria, mandou convidar o intendente Octacilio Camará para substituir interinamente naquelle Conselho(?) o intendente (?) Hono-rio Pimentel, que está ou vae ser de novo processado.67

66 – FON-FON, 1907, p. 32. Acervo Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1907/fonfon_1907_003.pdf.67 – FERROLHO. Careta nº 156. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1911, p. 14. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodi-cos/careta/careta_1911/careta_1911_156.pdf

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A posse da facção do senador Augusto de Vasconcellos no Conselho Municipal deu-se em 27 de abril de 1911. Os partidários de Hermes co-memoraram, enviando-lhe telegrama na mesma data:

Hoje que volta este Districto á normalidade de sua vida constitucional, graças ao acysolado civismo, á salvadora energia e á sabia orientação de vosso patriotico e honestíssimo governo, os republicanos abaixo assignados, tendo assistido á sessão de posse do novo Conselho, sen-tem-se ufanos em saudarem V.Ex. o factor intemerato da autonomia do Districto Federal. Sacrificado aos ódios de uma política de despei-tos, que já invadira a serenidade do mais alto tribunal de Justiça, esta-ria ainda hoje privado este Districto de sua camara local, si; zelando vigilantemente pela verdade do regimen e pela real independência dos poderes constituídos, não tivesse V.Ex. opposto sabia e patrióticamen-te á mais perigosa das dictaduras que poderiam ameaçar a vida e os destinos da Republica. Como republicanos devotados, congratulamo--nos com V.Exa. pela posse do novo Conselho Municipal, aconteci-mento que, por sua significação doutrinária e por seus effeitos politi-cos , ficará para todo o sempre gravado nos grandes fastos da nossa terra. Saudações.68[...]

Ao final do texto acima, publicado no Diário Oficial, consta ainda, a respeito da solenidade de posse: “Foi profusamente distribuído um folhe-to contendo a mensagem presidencial de 22 de fevereiro de 1911 sobre o Habeas Corpus concedido ao Conselho Municipal do Districto Federal.”

Conforme os nomes listados como presenças na solenidade de pos-se, apenas um republicano histórico estava presente, Quintino Bocaiuva, vice-presidente do Senado, que apoiara a campanha de Hermes e presidia o Partido Republicano Conservador, fundado por Pinheiro Machado em fins de 1910.

68 – DOU, 1911, 28 de abril, p. 5.076. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1783144/dou-secao-1-28-04-1911-pg-44/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1783144/ www.jusbrasil.com.br/diários

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A decisão final do STF

Interessados em obter o julgamento final dos embargos de declara-ção pelo Supremo Tribunal Federal, antes do término do mandato para o qual foram eleitos, que expiraria em 15 de novembro de 1912, Alberto de Assumpção e outros, solicitaram, em 2 de outubro de 1912, preferência para o julgamento dos referidos embargos opostos pela União. O pedido é aceito, com voto contrário do ministro Godofredo Cunha, marcando-se o julgamento para o dia 5 de outubro de 191269. O julgamento não foi realizado.

Anteriormente, a revista Fon-Fon de 24 de agosto de 1912 insinuava em charge as pressões do Governo Federal ao STF, sob o título: “O BRA-ÇO...”, e com a legenda,”...da balança”. A charge apresenta um braço, tatuado com a palavra “SUPREMO TRIBUNAL”, erguendo a balança da Justiça, tendo num dos pratos da balança um enorme peso intitulado “CONSELHO MUNICIPAL” e no outro prato, uma mão com punho de dólmã estrelado, que desequilibra a balança em seu favor.

Em 8 de janeiro de 1913 o STF, por unanimidade, negou provimento aos embargos de declaração opostos pela União à decisão do acórdão referente à ação de Alberto de Assumpção e outros 70.

Em 10 de janeiro de 1913, o juiz dr. João Buarque de Lima, presi-dente da comissão eleitoral do Distrito Federal, dissolve a comissão de revisão eleitoral do Distrito, por ser considerado nulo o Conselho Muni-cipal eleito em 1911, que indicou três cidadãos para compor a referida comissão71.

69 – DOU, 1912, 3 de outubro, p. 13.043. Disponivel em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1853257/dou-secao-1-03-10-1912-pg-19/pdfView70 – DOU, 1913, 9 de janeiro, p. 426. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1702025/dou-secao-1-09-01-1913-pg-12/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1702025/71 – DOU, 1913, 9 de janeiro, p. 426. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/dia-rios/1702025/dou-secao-1-09-01-1913-pg-12/pdfView#xml=http://www.jusbrasil.com.br/highlight/1702025/

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À semelhança do fato antes reportado, envolvendo o Conselho de 1910 e as eleições para presidente e vice-presidente, o evento se repetiu, agora com o Conselho da facção do senador Vasconcellos sendo consi-derado ilegal.

Desta forma, o Conselho Municipal eleito para o triênio 1911/1913, por decisão do marechal Hermes da Fonseca, existiu de facto, não exis-tindo de direito. A despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal, esse Conselho cumpriu seu mandato até 15 de novembro de 191372. Portanto, mais uma vez foi ignorada decisão do Supremo Tribunal Federal.

Assim, selou-se a sorte do Conselho Municipal de 1910 e a derrota do Poder Judiciário. A política de ódio à justiça, expressa por Rui na Plata-forma, era uma realidade. O senador Augusto de Vasconcellos, o Rapa-dura, vencera.

As várias decisões do Supremo Tribunal Federal neste caso do Con-selho de 1910 não podem ser atribuídas à politização da Suprema Corte, tomando partido de uma facção por razões de patronagem e lealdade pes-soal73, porque o STF deu garantia às duas facções, assegurando a instala-ção e o funcionamento do Conselho.

Os fatos mostraram que a divisão nacional entre as duas candidaturas presidenciais se reproduziu no nível municipal, estabelecendo confronto entre os correligionários do candidato da situação, marechal Hermes, os hermistas conservadores, sob a liderança de Vasconcellos, e de outro lado os civilistas, apoiadores de Rui Barbosa, que eram os liberais reformistas, liderados por Irineu Machado74, que propunham o aperfeiçoamento da

72 – O decreto nº.10.443 de 18 de setembro de 1913, de Hermes da Fonseca, estabele-ceu as regras para a eleição do Conselho Municipal para cumprir o triênio 1914/1916, a realizar-se em 26 de outubro de 1913. DOU, 1913, 20 de setembro, p. 1. 73 – COSTA, Emilia Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2006, 2ª ed., p. 50.74 – A revista Fon-Fon de 4 de dezembro de 1909, p. 25, em referência à polêmica esta-belecida no Conselho Municipal, apresenta mensagens na coluna “Caixa de Gasolina” às lideranças das duas facções: “Senador Augusto de Vasconcellos (Rio) – Ficamos scientes, como nos informa, de que todos os intendentes eleitos pertencem á sua facção política.” “Dr. Irineu Machado (Camara) – Ficamos scientes, como nos informa, de que pertencem

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base democrática do regime republicano, cujos princípios foram expres-sos por Ruy na Plataforma, sua proposta política de governo.

Os correligionários de Ruy Barbosa são revelados em foto na revista Careta de 29 de janeiro de 191075, que reportou a chegada de Rui ao Rio de Janeiro, no cais Pharoux, após a excursão à Bahia, quando foi recep-cionado por alguns deputados, entre esses, Barbosa Lima, e por todo o Conselho Municipal.

Os políticos anteriormente citados, que eram opositores dos senado-res Vasconcellos e Pinheiro Machado, como os deputados Irineu Macha-do e Barbosa Lima e o intendente Octacílio Camará estavam politicamen-te ligados a Rui Barbosa.

A interferência do presidente da República Nilo Peçanha no Conse-lho de 1910, com a edição do decreto de 26 de novembro de 1909, ato inicial de toda a crise, permite inferir que razões de controle eleitoral seriam o principal pomo de discórdia das facções rivais. A participação do Conselho Municipal no alistamento de eleitores do importante colégio eleitoral do Distrito Federal, que muitas vezes era objeto de manipula-ções76, não poderia ficar em mãos de adversários políticos.

á sua facção política todos os intendentes eleitos.” Fundação Biblioteca Nacional. Dis-ponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_049.pdf75 – CARETA, p. 24. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_1910/careta_1910_087.pdf76 – A coluna “Enquanto a Politica Esfrega um Olho”, da revista Fon-Fon de 20 de no-vembro de 1909, p. 22, em referência à apuração dos votos da eleição para o Conselho Municipal registra: ”[...] Ora vejam vocês, dizia Arthur Marques de lápis e block em punho, fazendo a reportagem da Junta para a Gazeta, estão aqui os Pretores apurando votos e lá fora a policia a apurar os votantes.[...]”. Fundação Biblioteca Nacional. Dis-ponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_047.pdf

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O Conselho afastado

A documentação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janei-ro, que apresenta o Inventário Analítico dos membros do Conselho Munici-pal do antigo Distrito Federal77, indica o mandato que deveria ser de 1907 a 1909, como sendo um mandato de 1907 a 1910. Deste modo, ao prorrogar ficticiamente o mandato de intendentes que cumpriram o seu período legis-lativo somente até 1909, comete um erro.

O Conselho Municipal de 1910, apesar dos percalços, cumpriu com parte do seu mandato legislativo, conforme comprovam os Anais do Se-nado Federal de 1911. Neles constam, além das resoluções vetadas, an-teriormente citadas, 13 vetos do prefeito a resoluções do Conselho, apro-vados pelo Senado, através de resoluções da Comissão de Constituição e Diplomacia, CCD.78 As resoluções tratavam de vários temas:

a) Doação de domínio útil de um terreno ao Instituto de Proteção e Assistência à Infância (Parecer CCD nº 9, de 19 de maio de 1911).

b) Abertura de crédito para socorro às vítimas das inundações de Pariz (Parecer CCD nº 10, de 20 de maio de 1911).

c) Alteração dos decretos nos 832, de 31 de outubro de 1901, e 1.139, de 31 de julho de 1907 (Parecer CCD nº 11, de 20 de maio de 1911).

d) Autorização para a compra de um edifício para instalação de um instituto de meninas surdas-mudas (Parecer CCD nº 12, de 20 de maio de 1911).

e) Autorização para a construção de uma ponte na praia do Galeão, na Ilha do Governador (Parecer CCD nº 13, de 20 de maio de 1911).

77 – ASSEMBLEIA LEGISLATIVA, Estado do Rio de Janeiro. Conselho Municipal: In-ventário Analítico. Membros do Conselho Municipal (1892-1930). Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/arquivo.htm78 – SENADO, Annaes, 1911, vol. I, Indice, p. XI e XII. Disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Edita.asp?Periodo=1&Ano=1911&Livro=1&Tipo=6&PagMin=3&PagMax=12&Pagina=11

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f) Criação de um Hospital de Assistência (Parecer CCD nº14, de 20 de maio de 1911).

g) Autorização para contagem de tempo de serviço ao engenhei-ro Goulart de Andrade (Parecer CCD nº 19, de 20 de maio de 1911).

h) Autorização de prorrogação da licença de Aleixo Gary (Parecer CCD nº 20, de 20 de maio de 1911).

i) Autorização para a despesa de 10:000$ para a construção dos mausoléus dos estudantes assassinados em setembro de 1909 (Parecer CCD nº 21, de 20 de maio de 1911).

j) Autorizando a abertura de concorrência para construção e ex-ploração de fornos de incineração (Parecer CCD nº 22, de 20 de maio de 1911).

k) Autorização para a contagem de tempo de serviço ao guarda municipal Alfredo Saldanha (Parecer CCD nº 23, de 20 de maio de 1911).

l) Desapropriação e cessão do terreno para a escola municipal Quintino Bocaiuva; (Parecer CCD nº 29, de 30 de maio de 1911).

m) Estabelecimento de regras para a cobrança do imposto predial (Parecer CCD nº 30, de 30 maio de 1911).

Os intendentes, proclamados, reconhecidos e empossados, eleitos para o triênio 1909/1912 que se mantiveram no Conselho Municipal do Distrito Federal, até abril de 1911, foram:

Manoel Corrêa de MelloJúlio Henrique do CarmoGuilherme Manoel Pereira dos SantosAlberto de AssumpçãoManoel Joaquim MarinhoEzequiel Faria de SouzaEnéas Mario de Sá Freire

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Ernesto Garcez Caldas BarretoOctacílio de Carvalho CamaráLuiz Augusto de Almeida RamosAtaliba de LaraSalustiano Baptista QuintanilhaHemetério José Pereira GuimarãesLuiz Augusto de Castro MirandaManoel Luiz MachadoPedro Couto Julio Francisco de Sant’Anna (falecido antes da interrupção do man-

dato do Conselho Municipal para o triênio 1909/1912).

Os intendentes diplomados e reconhecidos, eleitos pelo segundo dis-trito, que não tomaram posse, incorreram em perda de mandato79, sendo efetuada nova eleição para preenchimento das quatro vagas, em 13 de março de 1910. Foram eleitos Salustiano Baptista Quintanilla, Hemetério José Pereira Guimarães, Manuel Luiz Machado e Pedro Couto, reconhe-cidos e empossados. Por falecimento do intendente Julio Francisco de Sant’Anna foi efetuada eleição para substituí-lo, sendo eleito Luiz Au-gusto de Castro Miranda, reconhecido e empossado.80

Com a realização destas eleições, verifica-se o pleno relacionamento do Conselho Municipal com o Poder Judiciário, que, através de juizado federal, expedia os editais de convocação dos eleitores.

Sete anos após, em 8 de novembro de 1917, o prefeito do Distrito Federal Amaro Cavalcanti reconhece a validade jurídica de ato do Con-selho de 1910 ao decretar o pagamento de serviço autorizado por Júlio do Carmo:

79 – Os quatro eleitos, reconhecidos intendentes do segundo distrito que não tomaram posse em 1910 foram eleitos para o mandato de 1911/1913, juntamente com dois dos candidatos diplomados considerados impedidos, José Mendes Tavares e Pedro Pereira de Carvalho.80 – CÂMARA, Annaes, 1911, v.II, 1 de junho, p. 101. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=1/6/1911

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Artigo único. Fica aberto o crédito extraordinário de 5:326$000 (cinco contos trezentos e vinte e seis mil réis), para pagamento a Orlando Corrêa Lopes de publicações pelo mesmo effectuadas no “Correio da Noite”, em 1910, autorizadas pelo Sr. Julio do Carmo, como 1º Secre-tário do Conselho, no mesmo anno.

Districto Federal, 8 de novembro de 1917, 29º da Republica.81

ConclusãoA omissão do Conselho Municipal de 1910 nas informações oficiais

e a forma sucinta com que reportam a sua história, muitas vezes assumin-do a sua discutível ilegalidade, reforçam a história oficial ou dos vence-dores.

A síntese destes acontecimentos, que envolveram decisões judiciais, já conduziu a interpretações do comportamento dos juízes do Supremo Tribunal Federal, no período, tratando as decisões como de natureza polí-tica ou pessoal não analisando, entretanto, a possível natureza hermenêu-tica das sentenças.

O Poder Judiciário todas as vezes que foi instado a manifestar-se de-clarou-se pela legalidade do Conselho, quer diretamente, quer em apoio individual a seus intendentes.

O controle do alistamento de eleitores e das mesas eleitorais que participariam da eleição presidencial de 1º de março de 1910, no Distrito Federal, envolvendo o senador Rui Barbosa e o marechal Hermes da Fon-seca, bem como da eleição para o Congresso Nacional, em 30 de janeiro de 1912, seriam o principal motivador da crise.

Decorridos cem anos dos acontecimentos no Conselho Municipal do Distrito Federal de 1910, a neutralidade gerada pelo tempo possibilita outros ângulos de visualização deste fato histórico. Sua melhor compre-

81 – BOLETIM DA PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Districto Federal (Rio de Janeiro): Prefeitura Municipal, 1919, p. 181. Disponível em: http://books.google.com.br/books?ei=jFSzTZ7ULObg0QHr96T9Cw&ct=result&id=t98kAQAAIAAJ&dq=Artigo+%C3%BAnico.+Fica+aberto+o+cr%C3%A9dito+extraordin%C3%A1rio+de+5%3A326%24000&q=Julio+do+Carmo

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ensão poderá contribuir para o estudo da evolução do regime democrático na sociedade brasileira.

Texto apresentado em agosto/2012. Aprovado para publicação em dezembro/2012.

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OS NATURALISTAS NO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: V – MAXIMILIAN ALEXANDER

PHILLIP VON WIED-NEUWIED (1782-1867)

THE NATURALISTS IN THE BRAZILIAN INSTITUTE OF HISTORY AND GEOGRAPHY: V – MAXIMILIAN ALEXANDER

PHILIP VON WIED-NEUWIED (1782-1867)

MeLquíades PiNto Paiva 1

Maximiliam Alexander Phillip von Wied – Neuwied (Figura 1) é personagem curioso. Nasceu em 23 de setembro de 1782 no castelo de Neuwied (Alemanha), ali morrendo em 3 de fevereiro de 1867.

Pertencente à nobreza alemã com o título de príncipe, foi distinguido militar combatente e bem qualificado naturalista, aparecendo como zoó-logo e etnólogo.

Esteve como aluno na Universidade Gottingen (Alemanha), onde pouco se demorou. Por causa de incontida vocação pelos estudos da Na-tureza, tornou-se amigo de Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), famoso antropólogo, seu professor de Biologia, e depois discípulo do ba-rão Alexander Friedrich Heinrich von Humboldt (1769-1859), eminente naturalista explorador.

1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

Resumo:O autor estuda os naturalistas sócios do Insti-tuto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838. Este trabalho trata de Maxi-miliam Alexander Phillip von Wied-Neuwied (1782-1867), importante ornitologista alemão durante o século XIX.

Abstract:The author of this article studies the naturalists members of the Brazilian Institute of History and Geography Instituto Histórico e Geograf-ico Brasileiro – IHGB), founded in 1838. The article discusses Maximilian Alexander Philip von Wied – Neuwied (1782-1867), important German ornithologist during the Nineteenth Century.

Palavras-chave: IHGB, sócios, naturalistas, Maximiliam Alexander Phillip von Wied – Neu-wied (1782 – 1867).

Keywords: IHGB; Membersxhip; Naturalists: Maximilian Alexander Philip von Wied-Neu-wied (1782-1867)

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Ingressou no exército da Prússia em 1800, durante as guerras napo-leônicas, atingindo o posto de major-general; entrou em Paris com Fre-derico Guilherme III. Recebeu a Cruz de Ferro por seu desempenho em campo de batalha. Deixou o exército em 1815. Então, tratou de viabilizar o velho sonho de viajar para a América.

Chegou ao Brasil em 15 de julho de 1815, desembarcando na cidade do Rio de Janeiro. Aqui ficou até 10 de maio de 1817, deixando Salvador (BA), para retorno à Europa.

Aqui chegando, o príncipe conheceu e ficou amigo de dois com-patriotas-viajantes, Friedrich Sellow (1789-1831) e Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825). Logo acertaram viagem conjunta ao sudeste do Brasil, passando a cuidar dos necessários preparativos e conseguir reco-mendações das autoridades. Deixaram a cidade do Rio de Janeiro em 4 de agosto de 1815.

Depois da viagem ao Brasil, ainda esteve nos Estados Unidos da América (1832-1834), indo ao rio Missouri, de cuja viagem resultou o livro Reise in das Innere Nord – Amerikas (1840).

O naturalista não se casou. Viveu solitário no seu castelo, cuidando de coleções de plantas e animais, além dos objetos etnográficos.

“O príncipe de Wied-Neuwied não fez outra coisa no Mundo senão viajar e estudar. Nem se quis casar. Morreu com oitenta e cinco anos e tão enamorado de borboletas, cobras, índios, répteis, árvores e fósseis, plumas e crânios, como nas primeiras décadas de sua existência. É um trabalhador legítimo, dedicado, austero, incansável e sereno.” (CASCU-DO, 1977:14).

Ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, como sócio honorário, em 27 de julho de 1839 (BELCHOR, 2001).

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FIGURA 1 – Maximiliam Alexander Phillip von Wied-Neuwied (1782-1867). [PEREIRA, 1944 : 241].

Viagem ao Brasil

Juntamente com aqueles dois naturalistas-viajantes, o príncipe dei-xou a cidade do Rio de Janeiro em 4 de agosto de 1815, explorando a mata costeira do norte do Rio de Janeiro, Espírito Santo e sul da Bahia. Nesta altura, já estava sem a companhia de Sellow e Freyreiss, que fica-ram em Vitória (ES).

Chegando a Belmonte (BA), subiu o rio Jequitinhonha, em conside-rável trecho do seu curso, para depois voltar à costa. Estava interessado no estudo dos índios botocudos.

Ao atingir Ilhéus (BA), tratou de explorar o interior, rumando em 21 de dezembro para os campos gerais, nos limites com Minas Gerais, vol-tando-se em seguida para o sertão baiano. Passou por Porções e Vitória da Conquista, mas ao chegar em Lage, na margem direita do rio Jequiriça, foi detido pela força policial ali estacionada.

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Suspeitou-se que estivesse relacionado com a revolução pernambu-cana (1817), prestando-lhe alguma ajuda. Impossibilitado de explicar os motivos da viagem, teve roubada parte de suas coleções e os documentos que trazia lhe foram apreendidos. Burrice e analfabetismo dos homens da lei!

Levado preso para Salvador, explicou suas razões, recebeu docu-mentos e desculpas, logo tratando de deixar o país, pouco se demorando. Regressou à Europa em 10 de maio de 1817, quando saiu da velha capital colonial.

Num precioso livro intitulado Reise nach Brasilien, originalmente publicado em Frankfurt – ver WIED-NEUWIED, (1821/1822) 1940 – re-latou a viagem ao Brasil, “ainda hoje indispensável a todos os estudiosos da nossa história natural.” (PINTO, 1979:75).

“O livro em que narra a sua viagem é do mais alto interesse bio-geográfico, não esquecendo nunca o príncipe naturalista de referir onde começara a observar êste animal ou aquela planta, de confrontar as obser-vações de Marcgrave, de Humboldt e de Azara, corrigindo-as ou confir-mando-as.” (LEITÃO, 1941:263).

O material zoológico coletado no Brasil pelo príncipe Wied-Neu-wied está agora no American Museum of Natural History (New York – USA), que o adquiriu em 1870.

Resultados da viagem

Os resultados da viagem de Wied-Neuwied ao Brasil se comportam em três agrupamentos: botânica, zoologia e etnografia. O segundo é o de maior importância, por ser ele um conhecido ornitologista.

Dos agrupamentos acima referidos, o de menor importância é o da botânica. O príncipe doou a Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) coleção de plantas coletadas no Brasil, totalizando 650 excicatas,

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Os naturalistas nO institutO HistóricO e GeOGráficO BrasileirO: V – MaxiMilian alexander PHilliP VOn Wied-neuWied (1782-1867)

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depois incorporadas à famosa Flora Brasiliensis, comprovando invejável despreendimento.

Os principais resultados zoológicos, além dos contidos em seu livro de viagem, estão em duas séries:

– Abbildungen zur Naturgeschichte Brasilien’s (Ilustrações à His-tória Natural do Brasil), com 15 fascículos editados em Weimar (1823-1831), onde se encontram estampas coloridas de animais brasileiros;

– Beiträge zur Naturgeschichte von Brasiliens (Contribuição à His-tória Natural do Brasil), em 4 volumes editados em Weimar (1825-1832), tais como volume I – anfíbios e répteis (1825), volume II – mamíferos (1826), volume III (1ª parte) – aves (1830), volume III (2ª parte) – aves (1831), volume IV (1ª parte) – aves (1832) e volume IV (2ª parte) – aves (1832).

No agrupamento etnográfico estão as observações pioneiras e bem detalhadas sobre os índios botocudos do Espírito Santo, contidas no seu livro de viagem, recentemente analisadas por COSTA (2008).

Agradecimentos

– Sinceros e profundos agradecimentos são devidos a Hitoshi No-mura e Maria Delcina Feitosa, pelas ajudas recebidas na busca de biblio-grafia.

Bibliografia consultada AMARAL, Afranio do. 1931 – Maximiliano, príncipe de Wied. Ensaio biobibliográfico. Bol. Mus. Nac., Rio de Janeiro, VII (3) : 187-210, [2] ests.AUGEL, Moema Parente. 1980 – Visitantes estrangeiros na Bahia oitocentista. Editora Cultrix, 269 pp., 16 ests., São Paulo.PIRES, Fernando Dias de Ávila. 1965 – The Type Specimens of Brazilian Mammals Collected by Prince Maximilian zu Wied. American Museum Novitates, New York, (2209) : 1-21.BALDUS, Hebert. 941 – Maximiliano Príncipe de Wied-Neuwied. Rev. Arq. Mun., São Paulo, 74 : 283-291.

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Texto apresentado em outubro/2012. Aprovado para publicação em dezembro/2012.

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O CURSO CAPISTRANO DE ABREU (1953), NO IHGB: A CONSTRUÇÃO DE UM LEGADO INTELECTUAL

THE CAPISTRANO DE ABREU COURSE AT THE BRAZILIAN INSTITUTE OF HISTORY AND GEOGRAPHY (IHGB) IN 1953:

BUILDING AN INTELLECTUAL LEGACY

reBeca GoNtiJo 1

Em 2003, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, foram comemorados os 150 anos de nascimento de Capistrano de Abreu. A Empresa de Correios e Telégrafos lançou um selo em sua homenagem; dois livros foram publicados pelo Museu do Ceará, sua terra natal;2 o Departamento de História da Universidade Federal do Ceará organizou um evento sobre o historiador, reunindo especialistas de todo o Brasil;3 a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Faculdade de Educação da Uni-versidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, organizaram mesas-re-dondas, em que alguns aspectos da obra e da trajetória do homenageado foram recuperados.4 Unindo essas diferentes comemorações está o fato de 1 – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense / UFF; professora ad-junta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro / UFRRJ. E-mail: [email protected] – Ver BUARQUE, 2003; AMARAL, 2003.3 – Esse evento resultou na publicação de um dossiê sobre Capistrano na revista da ins-tituição. Ver Revista Trajetos – Dossiê Capistrano de Abreu, 2004.4 – A Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, organizou uma mesa-redonda intitulada A atualidade de Capistrano de Abreu (4/11/2003), que contou com a presença

Resumo:O artigo analisa os discursos proferidos duran-te o Curso Capistrano de Abreu, realizado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1953, em homenagem ao I Centenário de Nasci-mento do Historiador João Capistrano de Abreu (1853-1927). O objetivo é compreender as ima-gens e representações do homenageado então produzidas, que o consagraram como intelectual símbolo da cultura brasileira ao estabelecer seu legado.

Abstract:This article analyzes the lectures given during the Course on Capistrano de Abreu held at the Brazilian Institute of History and Geography in 1953, in celebration of the first birth cen-tennial of historian João Capistrano de Abreu (1853-1927). The objective of this article is to understand the images and representations of the celebrated historian which appeared at the time consecrating his legacy as the intellectual symbol of Brazilian culture.

Palavras-chave: Capistrano de Abreu; IHGB; comemoração; legado intelectual; cultura bra-sileira.

Keywords: Capistrano de Abreu; IHGB; Ccom-memoration: Intellectual Legacy; Brazilian Culture.

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pertencerem, na maior parte, ao mundo acadêmico. E, dentro do ambiente universitário, trata-se de eventos de alcance restrito à esfera de especialis-tas dedicados ao estudo de Capistrano, da história intelectual, das ideias ou da história da historiografia.

Capistrano aparece, nessas homenagens, como um indivíduo cuja memória é familiarmente compartilhada. Ou seja, cuja memória se en-contra “enquadrada”, para usar o termo difundido por Michael Pollak.5 Em função disso, analisar a comemoração do primeiro centenário de nas-cimento de Capistrano, em 1953, pode ajudar a compreender o papel atri-buído ao homenageado, ou, mais exatamente, a destrinchar uma parte da trama da memória que, à primeira vista, o tornou tão próximo de nós, um intelectual que, em certa medida, ainda merece ser lembrado.

Os anos de nascimento e morte costumam ser bons momentos para homenagens. Por vezes, o aniversário da publicação de um texto ou de um momento da trajetória intelectual, como, por exemplo, a conversão a um novo ideário ou a entrada em uma instituição, também podem receber uma especial atenção. Assim aconteceu com Capistrano, cujo centenário de nascimento foi comemorado em 1953. Diversas instituições partici-param do empreendimento, como a Sociedade Capistrano de Abreu, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o Ministério da Educação e Cultura, a Biblioteca Nacional, a Câmara dos Deputados, o Senado, a Sociedade de Estudos Históricos, a Universidade de São Paulo, o Insti-tuto Histórico do Ceará e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.6

de Arno Wehling (UNIRIO e UGF), Marco Antônio Mesquita (Museu Nacional), Manoel Luis Salgado Guimarães (UFRJ e UERJ) e Ricardo Benzaquen de Araújo (PUC-RJ e IUPERJ). A Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense sediou o I Se-minário Professores/Autores do Brasil (15/12/2003), organizado pelo Grupo de Pesquisa História e Educação: Saberes e Práticas, coordenado por Arlette Gasparello e dedicado ao tema Uma vida entre livros, o ensino e a pesquisa: Capistrano de Abreu (1853-1927). Esse evento contou com minha presença, ao lado de Vera Cabana (Colégio Pedro II) e Virgínia Albuquerque Buarque (Colégio Pedro II). As comemorações se estenderam pelos anos seguintes. Em 9/3/2005, o IHGB sediou a conferência de Francisco Bedê, intitulada Capistrano de Abreu: o homem na Província, na Corte e no Mundo, também proferida no Colégio Pedro II, em 10/3/2005.5 – POLLAK, 1989.6 – A Sociedade Capistrano de Abreu fez planos para comemorar o centenário de nasci-

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Instituição nascida no Império (1838), o IHGB é um importante referencial na história das comemorações em torno de escritores, assim como a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1896, cujos membros são chamados de imortais. São exemplos de locais onde é possível loca-lizar exaltações às atividades de escrita e pensamento, por meio do culto – nem sempre crítico, nem sempre apologético – a determinados autores e obras.

Por ocasião do centenário, o Instituto confeccionou uma moeda co-memorativa, na qual se vê, no anverso, o busto em perfil de Capistrano; e, no verso, uma representação de Clio, a musa da história, situada ao lado de um mapa da América do Sul, onde se destaca o Brasil e, dentro desse, os estados do Ceará e do Rio de Janeiro. O primeiro, terra natal de Capistrano e, o segundo, sede do Instituto e importante centro cultural do país, onde o homenageado desenvolveu sua carreira intelectual. Em vida, Capistrano frequentara a biblioteca e os arquivos do IHGB, tendo sido recebido – até certo ponto, à revelia – como sócio correspondente em outubro de 1887 e sucessivamente eleito sócio efetivo, honorário (1913) e benemérito (1917).

Além da moeda comemorativa, o IHGB organizou, entre os meses de setembro e outubro, o Curso Capistrano de Abreu. Até então, apenas outros dois intelectuais haviam merecido esse tipo de homenagem: Joa-quim Nabuco e Rui Barbosa, ambos homenageados em 1949.7 O evento foi divulgado pelos jornais da época através de pequenas notas, que anun-

mento de seu patrono, o que acabou não se concretizando inteiramente. Restou um discur-so de Jayme Coelho, pronunciado na SCA em 23/10/1953 e incluído na Revista do IHGB. Ver COELHO, 1953. Há breve menção dos planos da Sociedade em MONTEIRO, 1953. A Biblioteca Nacional organizou uma exposição sobre o historiador, inaugurada no dia 22 de outubro de 1953 e a Sociedade de Estudos Históricos patrocinou uma conferência na Universidade de São Paulo, em 24 de novembro de 1953. Ver ZEMELLA 1954. Outros textos produzidos em função do I Centenário são: MENEZES, 1953; TAUNAY, 1953; REBELLO, 1953. GOMES, 1953. LOBO, 1953; BARRETO, 1953.7 – Ver “Curso Joaquim Nabuco”. Revista do IHGB, vol. 260, jul.-set., 1949, pp. 107-334; “Curso Rui Barbosa”. Revista do IHGB, vol. 205, out.-dez., 1949, pp. 3-159.

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ciavam as conferências na véspera, além de informar sobre as homena-gens prestadas por outras instituições.8

Na aula inaugural do Curso, Rodrigo Otávio Filho lembra o papel do IHGB na construção da memória sobre os historiadores do Brasil:

Bem haja este Instituto no cumprimento do dever que se impôs. Aqui, vive-se à hora presente, registram-se os acontecimentos do dia, glori-ficam-se os homens que pela ação, e pela inteligência, escrevem a his-tória que vamos vivendo. Eis porque lhe é possível revolver as cinzas do passado e ouvir o eco dos suspiros de esperanças daqueles que, em tempos idos, viveram e escreveram a nossa história.9

Assumindo a missão de glorificar aqueles que viveram e escreveram a história do Brasil, o IHGB – por meio de um de seus sócios – apresenta--se como uma instância de consagração, capaz de conferir autoridade à produção de seus membros e, ao mesmo tempo, atuar na composição de sua própria memória.

O Curso, organizado pelo embaixador José Carlos de Macedo Soa-res, presidente do Instituto, contou com a participação dos seguintes conferencistas: Rodrigo Otávio Filho, Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, Múcio Leão, Arthur Cezar Ferreira Reis, José Honório Rodri-gues, Mozart Monteiro e Honorina de Abreu Monteiro. Além disso, foi assistido por alguns nomes importantes do mundo intelectual e político, tais como o general Cândido Mariano Rondon, Aníbal Freire, Maurício de Castro, Carlos de Aguiar Moreira, entre outros.

Alguns dos participantes foram amigos e discípulos de Capistrano, que ao longo da vida se dedicou a criticar a instituição, indo do simples desdém pelas reuniões regidas pela formalidade às afrontas mais morda-zes a determinados sócios. Em 1880, chegou a publicar um artigo onde

8 – Ver seção “Arte, Ciência & Cultura” do jornal O Globo, dos dias 2, 8 e 19 de setem-bro e 6, 12, 19, 21, 22 e 23 de outubro de 1953.9 – OTÁVIO FILHO, 1953, p. 46. Entre frequentadores do Curso Capistrano de Abreu estavam o general Cândido Rondon, Tasso Fragoso, Tobias Monteiro e Assis Chateau-briand.

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apontava as qualidades e, principalmente, as deficiências dos sócios do Instituto enquanto pesquisadores.10 E, em 1917, recusou um prêmio con-cedido pelo IHGB a seu livro sobre a língua dos índios caxinauás, Rã-txa--Hu-ni-ku-i (1914).11

Reconhecido por sua aversão a elogios públicos e agremiações, Ca-pistrano era um crítico das instituições de sua época, como o IHGB e a Academia Brasileira de Letras, ainda que tenha feito parte da primeira. Quando convidado a participar da segunda – onde se reuniam vários de seus amigos mais diletos –, recusou dizendo em carta a um amigo, escrita na terceira pessoa, que:

Não quis fazer parte da Academia Brasileira e é avesso a qualquer sociedade, por já achar demais a humana. Por exceção única pertence ao Instituto, do qual pretende demitir-se em tempo, se não morrer re-pentinamente.12

Capistrano não morreu repentinamente, nem deixou o IHGB. Essa relação ambígua com a principal instância de consagração dos estudos históricos de sua época adquiriu contornos mais definitivos e apazigua-dores após sua morte, quando deu lugar ao culto a seu nome, reforça-do por nove conferências, cujos textos foram publicados na revista do Instituto, que também incluiu alguns trabalhos apresentados em outras instituições.13

Na abertura do Curso, José Carlos de Macedo Soares apresenta Ca-pistrano como “um dos mais ilustres historiadores brasileiros”, lembran-

10 – ABREU, Capistrano. “Uma grande ideia”. In: _____. Ensaios e estudos. 4a série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p. 90. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 17/4/1880.11 – Ver carta de Capistrano de Abreu ao conde Afonso Celso, 8/10/1917. Revista do IHGB, t. 8, vol. 132, 1917, pp. 790-791.12 – Nota biobibliográfica anexada à carta de Capistrano de Abreu a Guilherme Studart, de 18/8/1901, vol. 1, p. 152. É interessante notar que, ao longo de quarenta anos, Capis-trano publicou apenas dois artigos na Revista do IHGB.13 – Ver conferências publicadas na Revista do IHGB, vol. 221, outubro-dezembro, 1953. Todos os textos citados a seguir foram publicados neste mesmo volume. Por conta disso, a referência incluirá apenas o nome do autor, o título do artigo e a página.

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do sua aversão à vida social e sua recusa em participar de associações, reafirmando o vínculo de exceção que o uniu por quarenta anos à casa que agora o homenageava. Apesar de um incidente em que perdera manuscri-tos pertencentes ao arquivo do Instituto, das já citadas críticas públicas feitas ao mesmo e a alguns de seus membros e da mencionada recusa de um prêmio (esses dois últimos fatos não sendo mencionados), a passa-gem de Capistrano pelo IHGB é lembrada pela assiduidade com que o historiador frequentava sua biblioteca e seu arquivo, assim como, pela amizade que manteve com dois bibliotecários, Vieira Fazenda e Rodolfo Garcia. Naquele espaço, ele teria encontrado um ambiente propício para trabalhar, onde tinha acesso à “farta documentação para os notáveis estu-dos que publicou”.14

Analisando as conferências pronunciadas durante o Curso, é possí-vel distinguir dois movimentos básicos. Em primeiro lugar, observa-se a elaboração de um discurso biográfico, que inclui: a apresentação de um retrato físico e psicológico de Capistrano; um arranjo de sua trajetória, por meio de recortes temporais e da escolha de determinados aconteci-mentos considerados como os mais ilustrativos de sua vida; e a elabora-ção de interpretações a respeito de sua vocação intelectual. Em segundo, nota-se a construção de relações entre a obra do homenageado e certos aspectos da produção cultural brasileira, de modo a valorizar distintas contribuições, definindo um legado. A percepção desses aspectos orien-tou a divisão do texto que segue.

Vida: um perfil físico-psicológico, uma trajetória, uma vocação

Ao longo do Curso diversas interpretações sobre o homenageado fo-ram apresentadas. No entanto, é possível perceber certa convergência de opiniões entre os intérpretes, que realizam exercícios semelhantes ao fo-calizar a vida e a obra de Capistrano. Predomina um perfil composto por elementos físicos, psicológicos e morais, que adquirem certo movimento mediante o arranjo da trajetória na qual o retratado é inserido. Dando

14 – SOARES, 1953, pp. 44-45.

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sentido a essa trajetória, estão as interpretações sobre a vocação do his-toriador.

Abrindo o evento, Rodrigo Otávio Filho propõe uma visão da perso-nalidade e da trajetória de Capistrano, que podem ser resumidas em uma frase: “um homem que estudou”. O autor desenha o perfil de um “homem simples, modestíssimo, alheio e hostil a quaisquer manifestações de vai-dade”, o que é afirmado e reafirmado por várias vozes e em diferentes momentos. Ao lado da modéstia, a paciência, a erudição, as esquisitices e as contradições ajudam a compor um tipo original e excêntrico. Trata-se de um “homem que tudo sabia, tudo esclarecia e que irradiava daquele invólucro quase de maltrapilho, um mundo de sabedoria, de ternura e de afetividade”. Esse perfil psicológico e moral é associado a um “retrato” físico, que recupera imagens de um homem:

Mais gordo do que magro, nem alto, nem baixo, mal vestido, dando a impressão de que o paletó e as calças lhe despencavam pelo corpo; uma gravata preta de laço feito, esfiapada a ultrapassar o colarinho; barba crescida, esgrouviada, e a cabeça com evidente saudade de um pente e da tesoura de um fígaro amigo: sério e sorridente ao mesmo tempo, falava baixo e sonora era a sua voz; dois olhos pequenos, semi-cerrados, também olhavam com enternecimento e candura.15

Um retrato físico de Capistrano também está presente na conferência de Gustavo Barroso, que o apresenta com:

Roupa escura e usada, roupa branca serzida, mas ambas muito limpas. Gravata preta ao deus dará. As mangas do casaco meio curtas. Bol-sos enchumaçados de papéis. Andar ligeiro e um tanto pendido para diante. Estatura regular. Tronco robusto. Cabeça chata de cearense. Rosto largo, de maças salientes e olhos miúdos, quase fechados à luz. Os cabelos grisalhos e esgrouviados. Bigode e barba sem trato. Boca larga e franca. Gestos rápidos, ligeiramente trêmulos.16

Buscando as razões do temperamento original do homenageado, que, supostamente, interferiram na elaboração de sua obra e pensamen-

15 – OTÁVIO FILHO, 1953, p. 48.16 – BARROSO, 1953, p. 95.

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to, Barroso destaca o aspecto da ascendência. Capistrano é apresentado como um descendente da “gente do Reino com alguma remota mistura indígena”. Sua “alma” é vista como “um reflexo dos choques e contra-choques que através do tempo e do espaço formaram a do próprio Brasil”. Para o intérprete,

Dentro de sua alma, pois, se defrontavam forças européias e forças telúricas, as que vieram de além mar e as que subiam do próprio meio, travava-se mais uma vez o choque inicial entre o luso e o índio, com ausência absoluta do elemento africano posterior. E é isso o que vemos refletir-se em toda a sua exteriorização como cultor da história e da antropologia pátria: a paixão pelo documento que elucida a ação por-tuguesa na descoberta, conquista, catequese e manutenção da terra, e a inclinação para a etnologia indígena, o estudo de suas manifestações na língua e nas lendas, quer dizer no pensamento de seus indivíduos.17

Outro intérprete, Múcio Leão, observa que a estranheza que a apa-rência de Capistrano transmitia contribuiu para multiplicar os comentá-rios e anedotas em torno de sua personalidade, de modo a construir um “ser fabuloso e quase mítico, um misto de sábio e enfeitiçador, um Dió-genes em seu tonel, um Fausto em seu laboratório”. Para Leão, a primeira imagem de Capistrano que surge é a de um:

(...) homem estranhíssimo que não se preocupava com a posição da gravata no pescoço nem com a perfeição do vinco da calça, aquela criatura inverossímil que perambulava neste mundo como se estivesse em algum satélite de Algol. Tal era a aparência física daquele original velho, cujo reino não seria, de forma nenhuma, um reino terreno.18

Um retrato fisionômico semelhante já circulava durante a vida de Capistrano, tendo sido recuperado após sua morte. Ignorando as mudan-ças físicas vividas pelo indivíduo ao longo de sua existência, um “retrato” atemporal foi consolidado, sendo que o corpo e a vestimenta se conjugam de modo a compor a figura de um homem pouco afeito às vaidades mun-danas e às convenções sociais. Um ser único em suas excentricidades.

17 – Idem ibidem, pp. 95-96 e 100.18 – LEÃO, 1953, p.102.

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Alguém cuja recusa das convenções sociais estaria de acordo com o papel de um intelectual renovador dos estudos sobre o Brasil.19

Além da aparência e da personalidade de Capistrano, outro aspecto que chama a atenção nas conferências é a ordenação cronológica de sua vida. As cronologias consolidam verdades sobre as trajetórias biográficas. Uma vez estabelecidas, elas passam a servir como referência, fornecendo a base para outros tipos de discursos, dedicados a analisar um período da vida de um indivíduo ou a atividade por ele exercida. Assim, recupera-se o ano e o local de nascimento, as viagens consideradas mais importantes, os encontros tidos como os mais significativos (amorosos ou não), os filhos, os lançamentos das principais obras, os momentos de mudança no âmbito profissional, de ruptura ou conversão no campo das ideias e das crenças.

No caso de Capistrano, os marcos da trajetória recuperados são: a data (1853) e o local de nascimento (Columinjuba, Maranguape, Ceará), seguidos pela filiação e, sobretudo, pelos acontecimentos que pontuam sua vida profissional: as primeiras letras; os primeiros escritos; a vinda para o Rio, em 1875; o primeiro emprego na Livraria Garnier; o concurso para a Biblioteca Nacional, em 1879; a participação na organização da Exposição de História e Geografia do Brasil, em 1881; os textos publica-dos na década de 1880; e o concurso para o Colégio Pedro II, em 1883. Alguns acontecimentos da vida privada também merecem destaque, como é o caso do casamento, em 1891, com Maria José de Castro Fonse-ca, falecida dez anos depois; a entrada da filha Honorina para o convento, em 1911 e a morte do filho Abril, em 1918.

A morte de Capistrano também costuma ser lembrada. Trata-se de um momento-chave na construção biográfica, quando é possível comple-tar a narrativa sobre sua trajetória de modo pleno. Citando a opinião de alguns contemporâneos do homenageado, Rodrigo Otávio Filho conclui

19 – Regina Abreu observa como o material iconográfico pode ser utilizado na construção da memória sobre um dado indivíduo, de modo a cristalizar uma imagem visual a ser aceita coletivamente. Ver ABREU, 1994, pp. 5-6 (versão digital).

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que sua glória foi construída ainda em vida e não após a morte. Como pode ser lido na epígrafe que abre esse capítulo, “não precisou Capistrano que os anos passassem para que fosse louvado e glorificado. Grande em vida continuou grande depois de morto”.20

Cabe ressaltar a importância dos relatos de personalidades que conviveram com Capistrano, recuperados pelos participantes do Curso. Como demonstra o estudo de Regina Abreu, tais relatos têm um duplo papel na construção póstuma: servem para demonstrar a perenidade do morto e de sua obra, assim como para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos.21 No caso dos relatos daqueles que conviveram com o morto, um argumento de autoridade parece ser acionado, pois os contemporâ-neos – sobretudo aqueles que fizeram parte do grupo de convívio direto e, entre esses, os mais conhecidos publicamente – são vistos como os mais capazes de identificar as qualidades e os defeitos do morto, de modo a atribuir-lhe a devida importância.

Por vezes, a construção da trajetória por meio da recordação dos acontecimentos vistos como os mais importantes dá lugar a uma narrativa capaz de conferir sentido à existência do indivíduo. Isso pode ser obser-vado no discurso de Mozart Monteiro, que resume a vida de Capistrano em tom heroico, como pode ser visto no trecho a seguir:

De uma pobre casa rural do Ceará, a um porão pobríssimo do Rio, transcorreu a vida de um dos homens mais modestos e, ao mesmo tempo, mais ilustres que ainda floresceram no Brasil – Capistrano de Abreu. Diante das riquezas e vaidades do mundo, viveu como filósofo da Grécia antiga, e morreu como um frade mendicante da Idade Mé-dia.22

Já Múcio Leão apresenta uma versão da adolescência de Capistrano, quando, supostamente, já era possível observar “suas maravilhosas apti-dões de espírito”. De aluno medíocre, amigo da natureza e apaixonado por livros a jovem letrado, que viveu em meio à atmosfera cultural da 20 – OTÁVIO FILHO, 1953, p. 66.21 – ABREU, 1994, p. 6.22 – MONTEIRO, 1953, p. 154.

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cidade do Recife, na década de 1870, foi membro da Academia Francesa do Ceará, no mesmo período. Os primeiros escritos e a vinda para o Rio também são destacados, assim como a passagem pela Biblioteca Nacio-nal e pelo Colégio Pedro II.

Honorina de Abreu Monteiro, neta de Capistrano, expõe o ponto de vista da família sobre o homeangeado, o que contribui, até certo ponto, para humanizá-lo e, ao mesmo tempo, para corroborar as opiniões cir-culantes sobre sua vida pública, elaboradas por estudiosos de diferentes gerações e por amigos, que com ele conviveram. A intérprete desenha a imagem ambígua de “um homem rude, esquisitão, de psicologia difícil de ser equacionada”, que, ao mesmo tempo, era:

(...) fonte inesgotável de ternura a serviço dos seus íntimos: unir os desafetos constituía uma glória para ele (...) A franqueza rude é, a meu ver, deselegância de espírito e, se meu avô usava este tipo de franque-za, sabia temperá-la com essas armas que fizeram dele aquele príncipe de boas maneiras, atenuando-lhe as arestas.23

A morte da esposa (1891), o caso da entrada da tia Honorina para o convento de Santa Teresa (1911), a morte do tio Fernando (1918) e a do próprio Capistrano são lembrados como fatos marcantes na memória fa-miliar. Parece haver certo empenho no sentido de reconstruir a trajetória de Capistrano a partir dos marcos familiares, afastando os referenciais de sua vida pública, para, de certa forma, “devolvê-lo” ao mundo privado.24

23 – MONTEIRO, 1953, pp. 182-193.24 – Honorina conta que seu pai, Adriano de Abreu – filho de Capistrano falecido pouco antes do centenário –, chegara a planejar a elaboração da biografia de Capistrano, empe-nhando-se na preservação de documentos, na recolha de depoimentos e na construção de uma cronologia, cujos marcos seriam guiados por acontecimentos familiares: 1853-1875, destacando-se o período da infância e da juventude de Capistrano; 1875-1894, fase em que seria lembrada a morte da esposa de Capistrano, em 31/12/1891; 1894-1911, etapa marcada pela entrada da filha Honorina para o convento, em 10/1/1911; 1911-1918, fixan-do o momento da morte do filho Fernando (Abril), em 24/10/1918; 1918-1927, os anos finais da vida. A documentação reunida por Adriano de Abreu foi deixada aos cuidados de Mathilde de Abreu Monteiro, filha de Capistrano, que faleceu recentemente, deixando o referido material sob a guarda do Convento das Carmelitas Descalças, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde viveu sua irmã, Honorina (Madre Maria José de Jesus).

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Além do estabelecimento de uma cronologia da vida de Capistrano, também se observa a proposição de questões consideradas capazes de orientar a biografia do homenageado. Na opinião de Mozart Monteiro, por exemplo, a biografia deveria investigar a saída de Capistrano do Co-légio Pedro II – onde atuou entre os anos de 1883 e 1899 – e enfrentar a questão que desde então perturba a maioria dos seus analistas: por que ele, considerado em vida como o maior historiador do país, efetivamente não escreveu uma história do Brasil? Após apresentar um retrato da “de-sambição” e da “modéstia” que teriam marcado a vida do homenageado, o autor argumenta que, entre os motivos arrolados para essa espécie de dívida do historiador para com seu país estão: a ausência de estudos mo-nográficos capazes de servir como base para uma grande síntese; e seu pouco interesse pela história contemporânea (“uma lacuna em sua vasta e profunda erudição”), item considerado relevante para uma história com-pleta da nação.25

Para Mozart Monteiro, a investigação da saída de Capistrano do Co-légio Pedro II remete às exigências do ofício de historiador, uma vez que a disponibilidade remunerada que obteve teria sido útil para garantir as condições que precisava para pesquisar. Segundo o autor:

(...) para fazer, como historiador ou como erudito, investigações histó-ricas, é mister (...) ter paciência e dispor de tempo; ser diplomata, como Varnhagen e como Oliveira Lima; ou ser rico, como Tobias Monteiro e como Paulo Prado; ter emprego em bibliotecas ou arquivos, ou estar em inatividade remunerada, de cargo público (...) Fora das hipóteses acima aventadas, é difícil consagrar-se alguém, durante muitos anos consecutivos, a pesquisas históricas, feitas por conta própria.26

Acreditando que “um dos pontos capitais da História dos homens ilustres é conhecer o momento exato em que a sua vocação se revela”, Monteiro se detém no tema da “revelação” de Capistrano como historia-dor. Essa aptidão para o estudo da história teria se manifestado em mo-mento e local específicos: os anos de 1879 a 1883, na Biblioteca Nacional

25 – MONTEIRO, 1953, p. 153.26 – Idem, p. 163.

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do Rio de Janeiro. Essa é a época da publicação dos primeiros estudos históricos de Capistrano, período em que ele também realizou descober-tas relevantes para o campo da crítica documental.

Desde sua fundação no início do século XIX, a Biblioteca Nacional era vista como um monumento ao saber e ao mundo civilizado.27 Além de sua importância como local de guarda de livros, periódicos, manuscritos etc., era nítido o valor simbólico de uma instituição capaz de materializar a ideia de nação culta. A possibilidade de relacionar a trajetória de um indivíduo à Biblioteca dava margem a construções simbólicas capazes de sustentar a memória de uma vida dedicada à cultura. O caso de Rui Barbosa é exemplar nesse sentido. Valorizado por sua vasta erudição, Rui foi homenageado na Biblioteca por ocasião de seu jubileu cívico-literário, em 1918. Além disso, seu velório foi realizado na Biblioteca em 1923.

Como já foi dito, no dia 22 de outubro de 1953, a Biblioteca inau-gurou uma exposição sobre Capistrano de Abreu, em homenagem ao seu centenário de nascimento. O evento, organizado por José Honório Rodrigues, diretor da Divisão de Obras Raras e Publicações e membro da Sociedade Capistrano de Abreu, exibiu livros considerados represen-tativos da vida do historiador e não apenas aqueles escritos por ele. A inauguração contou com a presença do ministro da Educação e Saúde, Antônio Balbino, e do chefe da Casa Civil, Lourival Fontes, entre outras personalidades.28

Além de recuperar acontecimentos como a passagem de Capistrano por instituições culturais, a reflexão sobre a vocação do historiador tam-bém é composta por observações acerca de sua capacidade de leitura. Trata-se de alguém que:

27 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2002.28 – Restaram poucos registros sobre essa exposição. Ver anúncio da inauguração em O Globo, 23/10/1953, capa e p. 9. Entre as personalidades que compareceram ao evento, estavam: José Linhares, Jaguaribe Matos e Gilson Amado.

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Lia em toda a parte: em casa, no bonde, nas bibliotecas e arquivos públicos, onde quer que se demorasse tendo à mão um jornal, uma revista ou um livro. E não lia só História: lia tudo. Tudo, não: tudo o que merecesse a leitura de um homem culto.29

A trajetória adquire maior sentido nessas reflexões acerca da vocação intelectual de Capistrano, vista como obra do destino, algo nato ou, ainda, como fruto da vontade individual. Rodrigo Otávio Filho, por exemplo, empenha-se em desvendar as influências que atuaram no destino do bio-grafado. Destino que se manifesta na infância vivida por uma “criança estranha” quando, acredita-se, já se observavam duas das características continuamente recuperadas por seus biógrafos e intérpretes: a falta de asseio e o gosto pela leitura. Segundo o autor, a mola propulsora desse destino individual foi a vontade. Capistrano é apresentado como tendo sido “o maior exemplo do autodidata”. Um homem que:

(...) por seu esforço pessoal tornou-se, no Brasil, mestre etnógrafo, antropólogo e conhecedor da lingüística brasileira; geógrafo e natu-ralista, filólogo e humanista; e, mais do que tudo isso, como laurel de uma vida sem brilhos estéreis, um grande homem de bem (...) este homem (sábio, que parecia bruxo e santo), que foi o maior dos histo-riadores brasileiros.30

Barbosa Lima Sobrinho analisa o surgimento da vocação de histo-riador em Capistrano identificando elementos que considera importantes para sua formação intelectual. Não se surpreende tanto com seu autodi-datismo (algo que admite ser comum no Brasil de sua época), mas com a extensão de sua cultura. Sua “curiosidade de leitor maníaco” teria sido um fator relevante na construção de si como intelectual.31

A vida de Capistrano em Fortaleza, entre os anos de 1871 e 1875, também teria tido sua importância. Segundo o autor, foi então que ele ini-ciou sua atividade intelectual, escrevendo para jornais locais e participan-do da “Academia Francesa” do Ceará. Tais fatores – a leitura constante e

29 – MONTEIRO, 1953, p. 164.30 – OTÁVIO FILHO, 1953, p. 63.31 – LIMA SOBRINHO, 1953, p. 68.

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a participação em um grupo de jovens intelectuais da província – teriam contribuído de modo decisivo, ainda que indireto, para sua vocação de historiador, ao estimular o contato com as ideias científicas de sua época.

Um dos modos de explicar a vocação e o destino de Capistrano é pro-posto na construção de relações entre o homenageado e uma determinada geração de “homens de letras” dotados de espírito científico e interesse pelo país. Concordando com as observações de Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso também situa Capistrano entre os membros da geração cearense que frequentara a Academia Francesa do Ceará na década de 1870. Para o autor, sem a compreensão dessa “geração da análise e da dú-vida, mesmo algumas vezes da negação”, é difícil medir a alma e a obra de Capistrano, que foi um de seus representantes. As características dessa geração seriam: o racionalismo, o culto da honra e o desdém pelas honra-rias. Daí o descaso observado quanto ao trajar e ao convívio social. Um conjunto de pensadores cujo talento teria sido inutilizado pela boemia – ou, em outras palavras, pela “preguiça contemplativa e romântica” –, de modo que as análises que desenvolveram produziram dúvidas e estas os incapacitaram para a síntese.32

Além da relação com a “geração de 1870”, a identificação dos auto-res lidos por Capistrano em fins do século XIX – Buckle, Taine, Agassiz, Wappoeus, Peschel e Ratzel –, a vinda para o Rio e a entrada, por con-curso, para a Biblioteca Nacional são considerados marcos na vida de alguém que, segundo Lima Sobrinho, já possuía a vocação para o estudo árduo. Concordando com Mozart Monteiro, afirma que os anos de pes-quisa na Biblioteca teriam influído poderosamente sobre sua orientação vocacional, desenvolvida através de estudos sobre a historiografia do sé-culo XIX, do aperfeiçoamento dos métodos de investigação e da revisão crítica da obra de Varnhagen. Se não chegou a elaborar uma história geral (sintética) do Brasil, dedicou-se à revisão das fontes, em um momento visto como de transição da historiografia. Sua contribuição como histo-riador estaria relacionada, principalmente, à crítica de restituição e de

32 – BARROSO, 1953, pp. 93-94.

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procedência, à heurística e à hermenêutica, assim como, à publicação de manuscritos (tarefa iniciada por Varnhagen).33

Por fim, completa-se o “retrato” de Capistrano como historiador com a afirmação de sua plena identificação com a História, exemplificada no trato dos personagens do passado, com os quais parecia conviver como se fossem “velhos conhecidos”, contemporâneos seus. Para Lima Sobrinho,

(...) a História foi tudo para ele, trabalho e divertimento, cadeia e eva-são, tormento e consolo, preocupação e alegria. Ela é que lhe encheu os dias de isolamento e viuvez; que lhe escolheu os amigos, que lhe ditou as cartas mais íntimas. Ela ainda, a benfeitora tranqüila, que guardou o seu nome para a posteridade e nos foi buscar, a todos nós, em nossas casas, para esta homenagem à sua memória.34

Tratando-se de um evento celebrativo, as conferências proferidas durante o Curso Capistrano de Abreu cumprem o objetivo principal que é homenagear um intelectual morto, por meio de uma operação que, de certo modo, o traz de volta à vida: a comemoração de seu centenário de nascimento. Entre elogios, lembranças e demonstrações de saudade, al-guns parâmetros para a leitura de Capistrano são definidos. Os marcos de sua trajetória são estabelecidos, assim como, é delineado o perfil de um homem modesto e íntegro, sem vaidades e de aparência excêntrica, extre-mamente dedicado ao estudo da história do Brasil. Alguém cuja trajetória intelectual remete à constituição do próprio campo de estudos históricos no país, atuando como uma espécie de farol a guiar as novas gerações de pesquisadores. Tais parâmetros se completam com as análises da obra de Capistrano, como veremos a seguir.

A obra capistraniana: contribuições para a cultura brasileira

Ao lado das conferências que tratam, principalmente, da vida, da personalidade e da vocação de Capistrano, foram expostas algumas in-terpretações sobre sua obra e pensamento, com o objetivo de situar sua produção em relação à cultura nacional, à historiografia e à geografia bra-33 – Idem ibidem, pp. 80-81.34 – Idem ibidem, p. 90.

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sileiras. São análises que estabelecem parâmetros para a leitura da pro-dução publicada ou apenas planejada por aquele que era considerado por muitos e há muito tempo como o maior historiador do país. Em função disso, busca-se identificar as contribuições do homenageado de modo que seja possível compreender aquilo que foi, então, definido como o legado de Capistrano.

É Múcio Leão quem analisa a contribuição de Capistrano para a cul-tura nacional, vinculada a vários “terrenos”:

Esse homem espantoso agitou e revolveu toda a cultura nacional. Sua contribuição é magnífica no terreno da geografia, da etnografia, da antropologia, da lingüística, do folclore; é sem igual no terreno da história.35

São as palavras de um dos mais importantes articulistas do Estado Novo, que desempenhou papel relevante na direção do suplemento literá-rio Autores & Livros, do jornal A Manhã, veículo oficial do ideário esta-donovista. Nessa função, ele organizou uma homenagem a Capistrano em 1944, dedicando-lhe um número especial do suplemento. A atuação desse jornalista, tanto em Autores & Livros como no Curso do IHGB, permite afirmar sua importância como um dos principais agentes que contribuí-ram para a perpetuação do nome de Capistrano de Abreu, ao lado dos fun-dadores da sociedade erigida em seu nome e de José Honório Rodrigues, cujo empenho na construção da memória sobre o historiador é notável a partir do centenário de 1953.

Indo além, Múcio Leão afirma que a contribuição de Capistrano ul-trapassa os campos específicos do conhecimento. Seu maior mérito teria sido colocar fatos e indivíduos pouco valorizados sob o foco. Além disso, seus julgamentos sobre a política, a literatura, a historiografia e, também, sobre seus contemporâneos, são considerados úteis para a compreensão do Brasil. Trata-se de um “retratista moral” do país, “o maior erudito que

35 – LEÃO, 1953, p. 110.

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o Brasil teve em todos os tempos” e “o maior historiador”.36 Capistrano é alçado ao patamar de símbolo nacional. Ele é:

(...) um dos motivos de orgulho de nossa nacionalidade. E o seu exem-plo – que é o da honestidade, o da pureza, o da autenticidade, o da dedicação ao estudo, o do devotamento ao trabalho obscuro e cons-tante – é um daqueles que mais nos enobrecem, um daqueles que em nossos momentos de desalento mais nos servem de consolo, fazendo--nos acreditar de novo nas redenções da alma brasileira.37

Considerando que se trata de um discurso comemorativo, é possível supor que as qualidades destacadas no indivíduo homenageado corres-pondem a valores que podem e devem ser compartilhados. Ao mesmo tempo, esse discurso permite perceber o tipo de produção cultural e o modelo de intelectual valorizados. No caso, destaca-se a “honestidade, a pureza e a autenticidade”, assim como a “dedicação ao estudo” e o “de-votamento ao trabalho” de Capistrano, que servem como exemplo, con-solo e motivo de redenção coletiva. Diante de “momentos de desalento” é possível encontrar ânimo ao lembrar o nome e a trajetória daqueles que são tidos como capazes de suscitar o orgulho de ser brasileiro. Tratando--se de um intelectual, cabe destacar os aspectos de sua obra e pensamento, supostamente úteis no processo de redenção nacional.

Da contribuição de Capistrano para a cultura brasileira à contribui-ção para os estudos históricos. Gustavo Barroso afirma que a historiogra-fia brasileira se dividia em antes e depois de Capistrano, que construíra análises vivas e documentadas sobre o descobrimento e a colonização do país. Antes dele a escrita da história era “seca, árida, sem humanidade”, restringindo-se a crônicas, anais e relatórios. Uma matéria “flutuante e amorfa”, carente de periodização. No entanto, o autor indaga por que Capistrano, “estudioso consciente”, “analista crítico” e “narrador arguto”, não escreveu a monumental História do Brasil que dele era esperada. A resposta é localizada no âmbito da personalidade, marcada pela “absolu-ta incapacidade de seu espírito, não intelectual, mas funcional”. Capis-36 – Idem ibidem, pp. 110-118.37 – Idem ibidem, p. 119.

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trano não teria investido no estudo da história para obter ensinamentos, promover a vulgarização ou conquistar a glória através da elaboração de uma obra completa, mas “pela avidez de saber, de fartar sua curiosidade peculiar, própria, de se sentir senhor, para gláudio seu, dos segredos do passado”. Individualista, não se preocupava com o grande público. Do-tado de “alma boêmia, analista e paradoxal, rebelde a qualquer disciplina corporal ou mental”, Capistrano construiu sua obra dispersa, com forma-ção filosófica superficial e sem método. Uma obra que, apesar disso, era “genuinamente brasileira”, verdadeira expressão da cultura nacional.38

Já Arthur Cezar Ferreira Reis recupera a contribuição de Capistrano para o desenvolvimento da Geografia no Brasil. A referência a essa dupla inserção do trabalho de Capistrano, na geografia e na história, está de acordo com a identidade do Instituto que o homenageia, que é histórico e também geográfico. Trata-se do reconhecimento de que o homenageado contribui para a consolidação de dois tipos de conhecimento pouco dis-tintos no início do século, mas que nos anos 1950 já constituíam campos diferenciados.

Apresentado como modesto e sábio, Capistrano também é identifica-do como um “professor de civismo”, empenhado no estudo e no ensino da formação da nacionalidade. Após fazer um pequeno histórico dos estudos geográficos no Brasil, Reis chama a atenção para o fato de que Capistrano começou suas atividades intelectuais em uma fase de renovação dos estu-dos sobre a geografia nacional, quando expedições científicas percorriam o território brasileiro coletando informações sobre a vida econômica e social e, também, sobre o meio físico.39

Uma tênue disputa entre a memória que associa Capistrano ao do-mínio da História e a que o relaciona à Geografia pode ser localizada na interpretação sobre a tese O Descobrimento do Brasil no século XVI, defendida pelo homenageado no concurso para o Colégio Pedro II, em 1883. Segundo Reis, essa tese teria sido revolucionária, não tanto pela

38 – BARROSO, 1953, pp. 97 e 100.39 – REIS, 1953, p. 139-140.

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exegese documental proposta – aspecto caro para os estudiosos da histó-ria –, mas pela valorização dos aspectos geográficos, até então despreza-dos pelos pesquisadores do período colonial.40 Sem possuir as qualidades de um autor “organizado, disciplinado ou constante”, Capistrano é visto por Reis como um erudito que se dedicou a estudos variados, sendo pos-sível admitir que seu trabalho mais sistemático versava sobre a história. No entanto, ele teria sido um estudioso:

(...) íntimo dos grandes mestres da ciência geográfica de seu tempo, a par das concepções revolucionárias que modificavam o processo do trabalho geográfico e da importância da geografia e suas divisões, admirador de Humboldt, de Ritter, de Preschel, de Albert Penckt, de Alexandre Supan, de toda, portanto, a geografia alemã que comandava a renovação dos estudos e das concepções geográficas (...).41

Trata-se de alguém que não foi um “geógrafo profissional”, realiza-dor de operações de campo, nem um “geógrafo de gabinete”, dedicado a teorizações. Fez traduções e adaptações de trabalhos estrangeiros dedica-dos ao estudo do Brasil, pelo viés de uma geografia econômica, social e cultural. Assim como no âmbito dos estudos históricos, Capistrano teria dado uma contribuição importante à renovação da atividade geográfica brasileira, com seus trabalhos dispersos em prefácios e periódicos.42

40 – Ferreira Reis afirma que: “O sentido revolucionário da tese não o devemos buscar nas inovações por que dispôs o assunto, manejando a documentação disponível e fazendo uma exegese exaustiva da matéria. Esse sentido revolucionário consiste justamente na proposição dos aspectos geográficos, desprezados até então pelos que tentavam esclarecer e compreender nossos cem anos de vida inicial. A caracterização da costa, explicando a ocupação, a marcha da expansão, as condições do hinterland, o papel dos rios motivando melhor a penetração e conhecimento do interior, são, naquelas páginas de excepcional va-lia, em nosso entender, o revolucionário, sem esquecer que há, ali igualmente páginas de geografia social, de geografia econômica verdadeiramente modelares servindo à exegese do Brasil que despontava e se propunha ao mundo com todas aquelas particularidades”. Idem ibidem, pp. 144-4541 – Idem ibidem, p. 146.42 – São citados como contribuições de Capistrano para a geografia: os prefácios a Gan-davo, Cardim, Gabriel Soares de Souza e Notas sobre a Paraíba, de Irineu Joffily; Desco-brimento do Brasil e sua evolução no século XVI; Capítulos de história colonial (1907); Caminhos antigos e povoamento do Brasil, obra que “revelou o melhor sentido do geo-gráfico que possuía”; e as traduções das obras Geografia do Brasil, de Wappeus; O homem e a terra, de Alfred Kirchoff; e Geografia do Brasil, de Selin, além de vários artigos de Herbert Smith, reunidos sob o título Do Rio de Janeiro a Cuiabá, e do trabalho de Emí-

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O Curso também inclui as palavras de José Honório Rodrigues, que tem por objetivo avaliar as contribuições de Capistrano para a historio-grafia brasileira. Segundo Rodrigues,

A verdadeira compreensão das tarefas da historiografia brasileira cumpridas ou a cumprir, de seus feitos e achados, do estado atual das questões, ninguém revelou tão cedo, num descortínio claro, lógico e exato, como este jovem em seus ensaios de 1878 a 1882, os melhores que até hoje se escreveram.43

O autor destaca as mudanças do pensamento de Capistrano, estimu-ladas por leituras diversas. Ainda que considere difícil marcar com preci-são um ponto de inflexão nas suas ideias, afirma o distanciamento do his-toriador em relação ao positivismo – que o teria influenciado, sobretudo, no início da carreira – e a afinidade com o pensamento alemão. Além de mencionar influências teóricas e destacar o interesse de Capistrano pela antropogeografia, pela economia política e pela psicologia, argumenta que sua atividade de pesquisa na Biblioteca Nacional contribuiu para aproximá-lo da perspectiva do realismo histórico. A reviravolta de seu pensamento teria sido possível tanto pelo conhecimento teórico quanto pela pesquisa empírica.44 Supostamente, esse empenho na distinção das fases do pensamento de Capistrano – que transita do positivismo para o realismo histórico – permite a Rodrigues supor a ruptura entre uma tradi-ção de estudos históricos vigente ao longo do século XIX e uma “nova” tradição historiográfica.

Capistrano surge, ao mesmo tempo, como “o homem da síntese” e um pesquisador incansável, um “nadador num mar sem limites”: o mar da documentação. Ele é visto como um historiador que atuou no sentido de suprir as deficiências da historiografia de sua época, realizando bem a ta-refa de criticar a história já escrita, ao mesmo tempo em que propunha no-

lio Goeldi, Clima do Pará. Também contribuiu com artigos próprios, como A Geografia do Brasil, onde fez um sumário dos estudos geográficos produzidos por “pré-geógrafos, “geógrafos de gabinete” e “geógrafos de campo”.43 – RODRIGUES, 1953, p. 121. 44 – Idem ibidem, pp. 124, 126-127.

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vas perspectivas, temas e conceitos.45 Nesse sentido, Rodrigues reforça a imagem de um Capistrano pesquisador, cuja atividade teria sido marcada pelo conhecimento de um grande volume de documentos, em contraponto ao Capistrano autor, cujos escritos, embora poucos, seriam caracterizados pela qualidade, pelas possibilidades de interpretação da história que inau-gurou. Suas principais contribuições seriam: a pesquisa documental, com base na crítica externa e interna; a edição crítica de documentos e a ree-dição de obras, com anotações; as traduções; a periodização; a aquisição de fatos; a construção de novos conceitos; a inclusão do povo como per-sonagem da história; a exploração de novos temas, tais como os festejos, a família e o sertão; o enfoque da relação entre a história interna e externa do Brasil; a renovação metodológica; o incentivo a pesquisas.

Após avaliar o legado de Capistrano, chamando a atenção para o seu caráter inovador, José Honório o insere em uma tradição de estudos históricos ao afirmar que:

A formação teórica, a pesquisa incansável, a imaginação criadora, as qualidades especiais, as faculdades novas e o estilo deram a este ho-mem um destaque incomparável na sua época e entre os de sua gera-ção. Seu papel na historiografia brasileira entre 1878 e 1927 não se ex-prime só com os Capítulos. Seguindo a linha de Varnhagen, Cândido Mendes de Almeida, João Francisco Lisboa e Joaquim Caetano da Sil-va, Capistrano de Abreu foi um erudito e um incansável pesquisador dos fatos novos ou por esclarecer. Fez pesquisa documental, aquisição de fatos, edição crítica de textos históricos. Era a primeira orientação a seguir para quem quisesse trazer uma contribuição nova.46

José Honório quer responder à pergunta que já prevalecia: o quanto modesto seria o espólio literário de Capistrano? Qual seria o seu legado, a sua “herança científica”? Conclui afirmando que o legado do historiador 45 – Idem ibidem, pp. 130 e 132.46 – Idem ibidem, p. 132. Um movimento semelhante é feito quando Rodrigues aproxima Capistrano da geração de 1930, mais especificamente, situa-o como antecipador da obra de Gilberto Freyre, embora essa não seja citada de modo explícito. Rodrigues afirma que, “(...) em Capistrano, o conceito de cultura substitui o de raça; seus estudos indígenas renovaram nossa etnografia; a importância da história social e dos costumes aparece pela primeira vez nos Capítulos; e o próprio sistema da casa e da senzala e sua importância no Norte viu-o pela primeira vez em 1910”. Idem ibidem, p. 134.

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cearense era definitivo e original devido à seriedade de seu método e às novas perspectivas que ele abrira. Como qualidades de Capistrano, apon-ta: “claridade e crítica, sobriedade e competência, probidade e erudição”. Assim,

Não importam os grossos volumes; devemos fixar-nos não só no que Capistrano realizou como historiador, mas no que aspirava realizar, no que queria, no que postulava. É na novidade desse princípio e na estranha energia com que soube mantê-lo que reside seu mérito essen-cial e incomparável.47

A análise de Rodrigues constrói a imagem de Capistrano de Abreu como um jovem dotado de “formação teórica atual, um conhecimento incomum dos fatos, um novo ideal de história do Brasil e uma gana in-curável de saber”. Alguém que, desde muito cedo, marcou posição no mundo intelectual com sua capacidade crítica e que, embora não tenha produzido muito – considerando o que dele era esperado –, foi capaz de construir, com brilhantismo, uma obra síntese. Fortalece a perspectiva de que, mesmo sendo jovem, sem a autoridade conferida pelos anos, Capis-trano conseguiu conquistar espaço como conhecedor da historiografia. Fato que Rodrigues considera decisivo para a “radical transformação” que ele operou no saber histórico. Porém, mais que valorizar aquilo que foi feito, destaca aquilo que Capistrano deixou por fazer, no sentido de caminhos historiográficos não percorridos, mas abertos. Consolida-se, as-sim, a imagem de um Capistrano precursor, alguém capaz de preparar o terreno para novas explorações, autor de um verdadeiro programa histo-riográfico a ser seguido pelas gerações futuras.48

Na maior parte dos discursos produzidos em função do Curso Ca-pistrano de Abreu, observa-se o investimento no sentido de demarcar uma singularidade, definida a partir de um conjunto de qualidades, que fazem dele alguém sem precedentes e sem-par. De modo geral, o Curso definiu as linhas mestras para a leitura do homem Capistrano, através da construção de um perfil físico-psicológico. Esse perfil corresponde a um

47 – Idem ibidem, p. 137.48 – Idem ibidem, pp. 120 e 124.

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reBeca GoNtiJo

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conjunto que engloba tanto o corpo e a personalidade, situados fora do tempo – uma vez que prevalece uma única imagem corpórea e psíqui-ca do indivíduo nos vários discursos, ignorando as mudanças vividas ao longo da vida –, como os projetos, as ideias, as realizações e os aconte-cimentos, geralmente atrelados à linha cronológica. Ao fim e ao cabo, o evento definiu o legado de Capistrano, que pode ser relacionado a duas dimensões: a da construção da história enquanto campo de conhecimento e a da construção da própria nacionalidade, com seus elementos repre-sentativos, entre os quais alguns intelectuais podem estar situados, em função de sua suposta e desejada capacidade de interpretar a nação. As-sim, o Curso Capistrano de Abreu pode ser visto como um acontecimento comemorativo que almejou transformar o homenageado em uma espécie de patrimônio da cultura brasileira.

BibliografiaABREU, Capistrano. “Uma grande ideia”. In: _____. Ensaios e estudos. 4a série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p. 90. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 17/4/1880._____. Carta ao conde Afonso Celso, 8/10/1917, R. IHGB, Rio de Janeiro, t. 8, vol. 132, 1917, pp. 790-791.ABREU, Regina. “Entre a nação e a alma”, Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, pp. 205-230.AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial. Fortaleza: Museu do Ceará, 2003.BARRETO, Adahil. Discurso na Câmara dos Deputados. R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out.-dez., 1953, pp. 239-245.BARROSO, Gustavo. “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”, R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out./dez., 1953, pp. 92-101.BUARQUE, Virgínia Albuquerque. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José de Jesus. Fortaleza: Museu do Ceará, 2003.COELHO, Jayme. “Capistrano de Abreu”, R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out.-dez., 1953, pp. 214-216. GOMES, Onofre. Discurso pronunciado no Senado Federal, R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out.-dez., 1953, pp. 217-233. LEÃO, Múcio. “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”, R. IHGB, Rio de Janeiro, vol. 221, out./dez., 1953, pp. 102-119.

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O Curso Capistrano de abreu (1953), nO IHGB: a cOnstruçãO de um leGadO Intelectual

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Texto apresentado em dezembro/2012. Aprovado para publicação em fevereiro/2013.

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ELYSIO CUSTÓDIO GONÇALVES DE OLIVEIRA BELCHIOR

ELYSIO CUSTÓDIO GONÇALVES DE OLIVEIRA BELCHIOR

carLos Wehrs 1

Faz um ano, amanhã, dia 14 de junho, que faleceu nosso confrade Elysio Custódio de Oliveira Belchior.

As palavras que hoje, aqui nesta sala, pronuncio deveriam ter sido ouvidas noutra ocasião: durante o velório, porém, estávamos por demais conturbados e constrangidos. Estava ali estirado um amigo nosso de lon-ga data. Ou então deveria ter falado no momento de seu sepultamento, mas outro fator de grande importância sobreveio e impediu-me de ex-ternar ordenadamente meus sentimentos. É que pairava no ar a suspeita, bastante fundada, de que teria havido uma troca de identidade entre dois corpos que haviam saído do hospital em que ocorreram os óbitos. Eu e muitos outros, que o conheciam bem, partilhavam esta opinião. Mas o que fazer? Por esse motivo, nos instantes em que era descido à sepultura nosso confrade, estava eu já com algumas palavras alinhavadas numa tira de papel, a fim de cumprir o piedoso dever de prestar-lhe uma última ho-menagem, mas na ocasião ninguém se manifestou e também permaneci calado. Não demonstrei em público a admiração e a estima que sempre dedicava ao amigo que partia.

Conheci Elysio Belchior em 1981, por um feliz acaso. Estava, como fazia muitas vezes de manhã, aos sábados, a examinar os livros na extinta Livraria Brasileira, o sebo de Osmar Muller, que existia na sobreloja do Edifício Avenida Central, quando o vendedor acercou-se de mim para

1 – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB.

Resumo:A comunicação texto presta tributo à memoria do socio Elysio Custódio Gonçalves de Oliveira Belchior, falecido em 14 de junho de 2011. O autor lembra aspectos da sua trajetória intelec-tual e do convívio com o dileto amigo.

Abstract:The contribution pays tribute to the memory of Elysio Belchior Gonçalves de Oliveira Belchior, who died on June 14, 2011. The author reminds aspects of Elysio’s intellectual career, as well as the living with his dear friend.

Palavras-chave: Memória – história – amizade. Keywords: Memory – history – friendship.

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carLos Wehrs

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prevenir-me de que restava apenas um exemplar de meu livro “O Rio antigo, pitoresco e musical”, exibindo-o. Do outro lado do balcão central encontrava-se um senhor moreno, baixinho, risonho, que logo perguntou ao vendedor: “É ele o autor?” Então nos apresentamos mutuamente, o que foi fácil, pois já nos conhecíamos, não pessoalmente, mas de tanto nosso amigo comum, Paulo Berger, ter-se referido aos nossos nomes. Estava iniciada uma amizade que, ao longo dos anos, se firmaria.

Naquela altura da vida já há muito deixara Belchior de lecionar Eco-nomia na Cândido Mendes e trabalhava como economista na Confedera-ção Nacional do Comércio, lugar conquistado em concurso público, sob o pseudônimo “adelo”; obtivera o primeiro lugar com sua monografia “Vis-conde de Cairu”, mas era sobejamente conhecido em outro setor como autor da obra sobre colonização da região guanabarina, “Conquistadores e povoadores”. No estudo do Rio de Janeiro incluiu a cartofilia, em que se tornou expoente.

Visitávamo-nos reciprocamente e frequentávamos a feira de anti-guidades, que se realizava nos fins de semana no local do desaparecido Mercado Municipal. Íamos às sessões do Instituto Histórico do Rio de Ja-neiro, já ao tempo do gen. Pondé, e, finalmente, comparecíamos às ativi-dades de Casa da Memória Nacional, onde ele ingressou já como Titular.

Sua morte, golpe rude para todos os que o conheciam, embora já pre-visível há algum tempo, contristou os companheiros. Na semana seguinte às exéquias, como de praxe, observou-se o minuto de silêncio, nesta sala. E nada mais. Achei pouco, como amigo que fora durante três décadas. Hoje, quando já não importa se houve ou não troca na identificação dos mortos e estes retornaram ao pó, fica aqui nossa fraterna homenagem àquele homem erudito e modesto, possuidor de um espírito puro, e que há de ficar no silêncio amargurado da nossa saudade, na lembrança imarces-cível de seus dias em harmonia de atos e sentimentos.

“O louvor dos mortos é um modo de orar por eles”D. Casmurro

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Elysio Custódio GonçalvEs dE olivEira BElChior

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Texto apresentado em julho/2012. Aprovado para publicação em se-tembro/2012.

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III – DOCUMENTOS DOCUMENTS

ISABEL ODONAIS NO RIO AMAZONAS EM 1769

ISABEL ODONAIS ON THE AMAZON RIVER IN 1769

JeaN MarceL carvaLho FraNça 1

Em 1735, a Academia de Ciência da França, depois de inúmeros contatos com a corte de Madri, obteve permissão para enviar à América Espanhola, nomeadamente ao Equador, uma expedição científica encar-regada de executar uma série de observações que permitissem comprovar a tese newtoniana de que a Terra era um “elipsoide de revolução acha-tado”. À frente dessa expedição, estava o renomado matemático Louis Godin, e contavam entre seus membros o matemático e astrônomo Pierre Bourger, o naturalista Joseph Jussieu, o explorador Charles-Marie de la Condamine – que acabou por se tornar o líder do grupo e, posteriormente, o seu mais conhecido membro – e o técnico Jean Godin des Odonais, um agrimensor, aparentado do matemático Godin.

1 – Doutor em Estudos Literários pela UFMG – Professor livre-docente de História do Brasil do Departamento de História da Unesp. E-mail: [email protected]

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Resumo:O documento que o leitor encontrará a seguir é a tradução de uma carta do agrimensor francês Jean Godin des Odonais, endereçada ao reno-mado Charles-Marie de la Condamine, contan-do as aventuras de sua esposa, a peruana Isabel Odonais, que, em dezembro de 1769, depois de uma série de contratempos e de um naufrágio, sobreviveu surpreendentes duas semanas sozi-nha, esfomeada e perdida na floresta amazônica, até ser encontrada por dois índios catequizados.

Abstract:The document that follows is the translation of a letter from the French land surveyor, Jean Godin des Odonais, addressed to the renowned Charles-Marie de la Condamine, describing the adventures of his wife, the Peruvian Isabel Odonais who, after a series of mishaps followed by a shipwreck in December 1769, managed to survive two weeks all by herself, starving and lost in the Amazon forest, until she was found by two Church-indoctrinated native Indians.

Palavras-chave: floresta amazônica; viagens; naufrágios; Charles-Marie de la Condamine.

Keywords: Amazon forest; Travels: Shipwrecks; Charles-Marie de La Condamine

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JeaN MarceL carvaLho FraNça

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Em 1741, dois anos antes de Condamine retornar à França e dois anos depois de os membros da missão terem se desentendido e se sepa-rado, o técnico Godin des Odonais casou-se com uma rica peruana de origem europeia: Isabel de Grandmaison y Bruno, filha do corregedor de Otavalo, Pedro Emanuel de Grandmaison. Passados cinco anos de matri-mônio, Odonais, frustrado profissionalmente e, segundo boatos, cansado do constante estado de gravidez de sua esposa, resolveu rumar para Caie-na e lá obter os passaportes necessários para mudar-se com a família para a França.

O agrimensor, sozinho, partiu de Riobamba em 1749, com planos de refazer o trajeto de La Condamine pelo Amazonas, ganhar o Atlântico e, em pouco tempo, conseguir na colônia francesa as autorizações neces-sárias para mandar buscar sua mulher. De fato, Godin alcançou o porto de Caiena em setembro de 1750, no entanto, ao contrário do previsto, inúmeros contratempos detiveram-no na colônia francesa por nada menos do que 19 anos. Em 1769, o francês finalmente conseguiu que o governo português enviasse um barco do Pará a La Laguna, para de lá conduzir sua esposa Isabel, então com 40 anos, a Oiapoque, onde ele a aguardava.

Madame Odonais viu-se novamente nos braços do marido no início do ano de 1770. Antes, porém, de ser recebida a bordo do barco portu-guês que a conduziu ao forte de Oiapoque, um desencontro, provocado por um mensageiro de nome Tristan d’Oreasaval, quase custou a vida da desafortunada Isabel, que permaneceu, sozinha e esfomeada, por mais de dez dias perdida na floresta Amazônica. É a descrição dessas espantosas duas semanas de aventura pela selva tropical – descrição feita pelo seu marido, numa carta dirigida a Charles-Marie de la Condamine (outubro de 1773) – que o leitor encontrará a seguir.

(...) Madame Godin, acompanhada por uma escolta, partiu de Rio-bamba, onde residia, em primeiro de outubro de 1769. A primeira pa-rada deu-se em Canelos, porto do rio de Bobonaza, que deságua no Pastaza, um afluente do Amazonas. O senhor de Grandmaison, que um mês antes passara pelo local, encontrou a cidade de Canelos bas-tante povoada e tratou logo de seguir adiante, com o intuito de deixar

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preparada a equipagem em todos os lugares por onde sua filha deve-ria passar. Ciente de que Madame Odonais estava bem acompanhada, pois seguiam consigo seus irmãos, um médico, seu negro, três escra-vos domésticos e vários mestiços ou índios, o senhor de Grandmaison resolveu avançar até às missões portuguesas. Entrementes, uma epi-demia de varíola – doença que os europeus levaram para a América e que é mais mortal para os índios que a própria peste, a qual, de resto, desconhecem – levou os habitantes de Canelos a abandonar a cidade logo que o mal fez as suas primeiras vítimas e a ganhar os bosques, buscando abrigo nas cabanas que lá mantinham (as suas casas de cam-po).

Minha esposa partira com uma escolta de 31 índios, encarregada de conduzi-la e de carregar a sua bagagem. O senhor sabe que o caminho – o mesmo que tomou Pedro de Maldonado no seu trajeto de Rio-bamba a La Laguna, onde o senhor foi encontrá-lo – não é transitável nem por mulas. Os homens que podem caminhar seguem a pé, e os que não podem são carregados. Ora, os índios que Madame Godin contratara, e que tinham sido pagos antecipadamente, seguindo um mau hábito do país – hábito que justifica a desconfiança em relação a esses desgraçados –, logo que puseram os pés em Canelos, não sei se em razão da crença de que o ar era ruim ou se em virtude do medo de serem obrigados a embarcar numa canoa, transporte que só conheciam de vista, resolveram retornar. A bem da verdade, nem é preciso se per-guntar sobre os reais motivos de tal atitude, pois, como o senhor deve se recordar, durante as nossas excursões pelas montanhas, os nativos, sob os pretextos mais insignificantes, abandonaram-nos por diversas vezes. O que poderia fazer a minha mulher diante de tal situação? Ainda lhe era possível retroceder, mas o desejo de ir ao encontro do barco preparado para recebê-la por ordem de dois soberanos e a von-tade de rever seu esposo, depois de 20 anos, fizeram-na superar todos os obstáculos e seguir adiante.

Madame Godin encontrou na cidade dois índios que tinham escapa-do ao contágio da doença. Estes não dispunham de nenhuma canoa, mas se comprometeram a construir uma e a conduzir minha mulher à missão de Andoas, localizada a cerca de 12 dias de viagem, descendo o rio Bobonaza de 140 a 150 léguas. Ela pagou-lhes adiantado e, uma vez terminada a canoa, todos partiram de Canelos. O grupo navegou

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2 dias e deteve-se para pernoitar. Na manhã do dia seguinte, os dois índios tinham desaparecido. Sem nenhum guia, o desafortunado grupo tornou a embarcar na canoa e navegou o primeiro dia sem contra-tempos. Na metade do dia seguinte, deram com uma canoa parada num pequeno porto, próximo a uma cabana. Aí encontraram um índio convalescente, que concordou em guiá-los. No terceiro dia, o índio, ao ver o chapéu do senhor R. cair dentro do rio, atirou-se na água e, não tendo forças para chegar à margem, morreu afogado. A canoa, uma vez mais, viu-se sem um guia e nas mãos de quem ignorava com-pletamente como manobrá-la. Rapidamente, a embarcação inundou, obrigando todos a desembarcar e a construir uma cabana.

O grupo encontrava-se, então, a cerca de 5 ou 6 dias de Andoas. O senhor R. dispôs-se a seguir até a cidade, levando consigo um francês que o acompanhava e o negro de Madame Godin, cedido por esta para auxiliá-los. Ele teve o cuidado de levar todos os seus pertences. Mais tarde, censurei minha esposa por não ter enviado um de seus irmãos com o senhor R. Ela, porém, disse-me que ninguém queria voltar a embarcar na canoa depois do acidente. Para mais, o senhor R. havia prometido a Madame Godin e a seus irmãos que, em 15 dias, ele retornaria com uma canoa e com índios. Ao invés de 15, o grupo esperou 25 dias. Esvaídas todas as esperanças de um retorno do senhor R., os desafortunados construíram uma jangada e embarcaram com alguns víveres e pertences. A jangada, tão mal conduzida quanto a canoa, bateu contra um banco de areia submerso e virou. Os pertences perderam-se todos e os tripulantes foram lançados na água. Felizmen-te ninguém morreu, pois o rio, naquele local, era bastante estreito. Madame Godin, depois de submergir duas vezes, foi salva por um de seus irmãos.

Reduzidos a uma situação ainda mais difícil que a anterior, o grupo resolveu seguir adiante pela margem do rio. Que empreitada! O se-nhor bem sabe que as margens dos rios daquela região são cobertas por um mato cerrado, com trepadeiras e arbustos, por onde só se pode passar com a foice em punho e à custa de muitíssimo tempo. Madame Godin e seus acompanhantes voltaram à cabana, recolheram os víve-res de que ainda dispunham e puseram-se em marcha. Os viajantes rapidamente perceberam que as sinuosidades do rio alongavam muito o caminho e resolveram adentrar pela floresta, evitando os desvios.

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Após alguns poucos dias de caminhada, eles se perderam. Fatigados pela dura jornada por uma floresta sobremodo hostil – hostil até mes-mo para os naturais da terra –, feridos pelas sarças e espinhos, que não poupavam os seus pés, carentes de víveres e consumidos pela sede, os viajantes tiveram de se contentar em comer alguns grãos, frutas selva-gens e palmitos. Por fim, extenuados pela fome, pela sede extrema e pelo cansaço, sucumbiram, prostrando-se no chão sem mais poderem levantar. Aí esperaram pela morte. Em 3 ou 4 dias, um após o outro, todos expiraram. Madame Godin, estendida ao lado dos cadáveres de seus irmãos e dos outros acompanhantes, permaneceu 48 horas atur-dida, desorientada e desesperada de sede. A Providência, porém, que queria conservá-la, deu-lhe coragem e força para se levantar e sair em busca do que era necessário para sua sobrevivência. Ela estava sem sapatos – as solas dos sapatos de seus irmãos, depois de cortadas e amarradas aos seus pés, serviram-lhe de calçado – e seminua, tendo o corpo coberto somente por duas mantilhas e uma camisa rasgada.

Tudo isso teve lugar entre os dias 25 e 30 de dezembro de 1769, quan-do 7 pessoas da desafortunada tropa perderam a vida. A julgar pelas datas posteriores, todas corretamente anotadas, penso ser esta a data correta, pois minha esposa garantiu-me que alcançou as margens do Bobonaza 9 dias depois de ter abandonado os cadáveres de seus ir-mãos e de seus serviçais. É verdade que o tempo pode ter-lhe pare-cido mais longo do que de fato foi. É difícil crer que uma mulher de maneiras delicadas, esgotada e reduzida a tamanha miséria, tenha conseguido sobreviver mais do que 4 dias na selva. Ela me garantiu, no entanto, que lá permaneceu por 10 dias: dois ao lado dos corpos de seus irmãos, esperando pela morte, e oito perambulando de lá para cá pelo mato. A lembrança do longo e terrível espetáculo que presenciou, o pavor gerado pela solidão num lugar deserto, a presença constante da morte, presença renovada a cada instante, causaram na minha po-bre mulher tamanha impressão que seus cabelos embranqueceram. No décimo dia de sua caminhada, Madame Godin encontrou água e, nos dias seguintes, algumas frutas selvagens e uns ovos verdes que desco-nhecia – pela descrição que me fez, eram ovos de perdiz. Ela teve uma enorme dificuldade para engolir, pois a privação prolongada de comi-da estreitara o seu esôfago. Os poucos alimentos que pôde encontrar e ingerir, no entanto, foram suficientes para mantê-la viva. Não faltava muito para a sua predestinada salvação.

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Suponhamos que o senhor lesse num romance que uma mulher delicada, acostumada a todas as comodidades da vida, caiu num rio e quase se afogou, enfronhou-se num bosque com mais 7 pessoas e caminhou semanas. A seguir, perdeu-se, passou fome, sede e fatigou--se ao extremo. Além disso, viu morrer seus dois robustos irmãos, um sobrinho mal saído da infância, três jovens mulheres, seus criados do-mésticos e um pajem (pertencente ao médico). Imagine ainda que essa mulher sobreviveu a todas as catástrofes mencionadas e que permane-ceu dois dias e duas noites entre cadáveres, num local onde abunda-vam tigres e serpentes perigosíssimas, que por sorte ela não chegou a encontrar. Imagine, por fim, que a mulher em questão se levantou e, coberta de trapos, caminhou errante pela floresta durante 8 dias até dar com o rio Bobonaza. Ao ler tal romance, o senhor certamente acusaria o autor de não ter respeitado a verossimilhança. O historiador, toda-via, deve contar somente a verdade aos seus leitores. A que narro aqui pode ser atestada pelas cartas que tenho em mãos – cartas de vários missionários do Amazonas que tomaram parte nesses tristes aconte-cimentos – e por uma série de outras provas que o senhor verá no decorrer da narrativa. Noto que tais desgraças não teriam acontecido se Tristan tivesse se comportado como um bom comissário. Se ao in-vés de deter-se em Loreto, ele tivesse entregado as minhas cartas ao superior de La Laguna, minha esposa teria encontrado, como seu pai, a vila de Canelos povoada de índios e uma canoa pronta para levá-la ao seu destino.

Mas voltemos à história. Pelas contas de Madame Godin, no oitavo ou nono dia depois de ter deixado o local dos funestos acontecimentos narrados, ela encontrou, ao nascer do sol, o rio Bobonaza e ouviu, a cerca de duzentos passos de distância, um barulho. Num primeiro mo-mento, o pânico fez com que ela se embrenhasse para dentro do mato. Depois, porém, de refletir um pouco e concluir que nada de pior po-deria lhe acontecer, que o temor era infundado, caminhou novamente para a margem do rio e viu dois índios que perseguiam uma canoa. É costume na região, durante os pernoites, alagar as canoas, totalmente ou em parte, para evitar imprevistos, pois, uma canoa flutuando du-rante a noite pode soltar suas amarras, ir à deriva e interromper o sono dos que descansam em terra.

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Os índios logo avistaram Madame Godin e vieram ao seu encontro. Minha esposa suplicou-lhes que a conduzissem a Andoas. Esses ín-dios, em virtude do surto de varíola, tinham, há bastante tempo, se mudado de Canelos para uma cabana que possuíam ao longe e esta-vam exatamente descendo para Andoas. Eles acolheram minha esposa com mostras de afeição, cuidaram dela e conduziram-na à referida vila. Madame Godin poderia ter repousado em Andoas alguns dias, repouso que, como se pode imaginar, ela bem precisava. Todavia, in-dignada com o procedimento de um missionário à mercê do qual se encontrava e com quem tinha de agir com cautela, ela não quis pro-longar a sua permanência na vila. Na verdade, ela nem mesmo teria pernoitado ali se tivesse outra alternativa.

Acabara de ocorrer uma grande revolução nas missões da América Espanhola sob a jurisdição de Lima, Quito, Charcas e do Paraguai, missões fundadas e mantidas pelos jesuítas há muitos séculos. Uma ordem inusitada de Madri expulsou os jesuítas de todos os seus colé-gios e missões. Os religiosos tinham sido todos detidos, embarcados e enviados para o estado do papa. Tal acontecimento, é preciso dizer, não causou mais transtorno do que a troca de um vigário de vila. Os je-suítas foram simplesmente substituídos pelos padres seculares. O reli-gioso que fazia as vezes de missionário em Andoas, cujo nome eu não me lembro, pertencia a essa categoria. Madame Godin, embora quase nada trouxesse consigo, desejando expressar o seu agradecimento aos dois índios que tinham salvado a sua vida, lembrou-se de que portava junto ao colo, como é de costume no seu país, duas correntes de ouro com cerca de 4 onças e resolveu dar uma a cada índio – que não se contiveram de contentamento. O missionário, porém, na presença de Madame Godin, apossou-se das correntes e deu aos índios, em troca, 3 ou 4 anás de um tecido de algodão grosseiro, muito branco, que, como o senhor sabe, é fabricado no país e tem o nome de tucuyo. Minha mulher indignou-se de tal modo com essa desumanidade que pediu, na mesma hora, uma canoa e uma tripulação para, no dia seguinte, dirigir-se para La Laguna. Uma índia de Andoas teceu para ela uma saia de algodão – paga logo que minha esposa chegou a La Laguna –, a qual conservamos até hoje, juntamente com as solas dos sapatos de seus irmãos, monumentos que se tornaram tão preciosos para mim quanto o são para minha esposa.

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Enquanto minha mulher errava pela floresta, o seu fiel negro, em com-panhia de uns índios que ele recrutara em Andoas para auxiliá-lo, tor-nou a subir o rio. O senhor R., mais preocupado com os seus negócios do que em apressar o envio de uma canoa para salvar a vida dos seus benfeitores, mal chegou a Andoas, partiu com seus camaradas e com sua bagagem para Omagnas. O negro chegou com os índios à cabana onde ele havia deixado sua ama e seus irmãos, seguiu seus rastros pela floresta e encontrou os cadáveres, já infectos e irreconhecíveis. Persuadido de que ninguém tinha escapado da morte, o negro e os ín-dios retornaram à cabana, recolheram tudo o que tinha sido lá deixado e seguiram para Andoas, onde chegaram antes de minha mulher. O negro, que não tinha dúvidas acerca da morte de Madame Godin, foi ao encontro do senhor R., em Omagnas, e entregou-lhe todos os bens que carregava. Este sabia que o senhor de Grandmaison aguardava an-siosamente em Loreto a chegada de seus filhos. Uma carta de Tristan, que tenho em mãos, comprova que meu sogro, informado da chegada do negro Joaquim, pediu ao próprio Tristan que o fosse buscar e o conduzisse à sua presença. Contudo, nem Tristan nem o senhor R. se dispuseram a atender meu sogro. Ao contrário, o senhor R., por sua própria conta, tratou de enviar o negro para Quito, guardando consigo as bagagens que este lhe tinha entregado.

O senhor sabe que La Laguna não está localizada na margem do rio Amazonas, mas sim a algumas léguas subindo o Huallaga, um dos seus afluentes. Joaquim, dispensado pelo senhor R., não vislumbrou a possibilidade de ir procurar sua ama em La Laguna – ama que acredi-tava morta – e retornou direto para Quito. Este negro era muito devo-tado tanto a mim quanto à minha mulher. O senhor não pode imaginar a razão que alegou o senhor R. para justificar o envio para Quito desse meu fiel escravo doméstico, tão necessário naquela ocasião. Eu temia ser assassinado por ele, disse-me o senhor R. Como pode o senhor, repliquei, pensar tais coisas de um homem conhecido pelo seu zelo e fidelidade, e que navegou com o senhor durante prolongado tempo? Se o senhor suspeitava que ele o olhava com ódio e que o acusava de ter matado a sua ama, porque não o enviou ao senhor de Grandmaison, que o solicitara e que não se encontrava longe? Por que, ao menos, não o pôs a ferros? O senhor estava hospedado na casa do governador de Omagnas, que certamente não lhe negaria ajuda. Toda essa con-versa foi testemunhada pelo senhor D’Albanet, comandante do forte

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de Oiapoque, a quem pedi que assinasse um atestado, que foi aceito legalmente pelo juiz de Caiena.

Enquanto tudo isso se passava, Madame Godin e os dois índios de An-doas alcançaram La Laguna, onde foram amavelmente recebidos pelo doutor Romero, o novo superior das missões. Durante as seis semanas que minha mulher permaneceu em La Laguna, o doutor não poupou esforços tanto para restabelecer a sua debilitada saúde quanto para amenizar as dolorosas lembranças de sua desgraça. A primeira atitude de Romero foi despachar um mensageiro para Omagnas, com a in-cumbência de avisar o governador da chegada de Madame Godin e do estado de debilidade em que ela se encontrava. Ao saber da nova, o se-nhor R., que tinha se comprometido a ajudá-lo no que fosse possível, não teve como deixar de visitar minha esposa. Na ocasião, levou-lhe quatro pratos de prata, um pote para água, uma saia de veludo e outra de tafetá, além de algumas roupas diversas, pertencentes a ela e a seus irmãos. Ao entregá-las, o senhor R. asseverou que tudo mais tinha se perdido. Ele certamente esqueceu-se de que os braceletes de ouro, as caixas de rapé, os relicários de ouro, os brincos de esmeraldas e outros artigos do mesmo gênero não se deterioram. Madame Godin disse-lhe que, caso ele não tivesse sumido com o negro Joaquim, ela poderia saber qual o paradeiro das coisas que estavam dentro da cabana. A quem o senhor quer que eu peça contas? questionou ela. É melhor que o senhor se retire, pois não posso deixar de vê-lo como o culpado pelas minhas desgraças e perdas. Saia, não posso mais suportar a sua presença, desabafou. Minha esposa estava coberta de razão, todavia, os pedidos insistentes do gentil senhor Romero, alegando que não sa-beria como proceder caso ela dispensasse o senhor R., levaram-na a superar a repugnância e a aceitar que ele a acompanhasse.

Logo que Madame Godin restabeleceu-se um pouco, o senhor Rome-ro escreveu ao senhor de Grandmaison comunicando-lhe que sua filha estava fora de perigo e que aguardava o envio de Tristan para conduzi--la a bordo do barco português. Ele escreveu também ao governador, apresentando Madame Godin: louvou-lhe a coragem e a piedade, e avisou-lhe que ela viajara 400 léguas ou mais e que ainda lhe restavam quatro ou cinco vezes esta distância até Caiena. O senhor Romero contou-lhe, ainda, que minha esposa acabara de escapar da morte e que não gostaria de expô-la a novos riscos. Razão pela qual ele tinha

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se disposto a conduzi-la até Riobamba, local de sua residência. Ela, todavia, espantada com a proposta, respondera que Deus a preservara de todos os perigos que tinham causado a morte dos seus e que seu único desejo era reencontrar seu marido; disse, ainda, que tinha inicia-do a viagem com esse propósito e que temia contrariar os desígnios da providência e tornar inúteis os auxílios que recebera dos dois índios e de suas esposas, bem como o dele próprio. Por fim, afirmou, segundo conta a missiva, que somente Deus poderia recompensá-los. Minha mulher sempre me foi cara, mas depois de conhecer tais sentimentos, o respeito veio se juntar à ternura.

O senhor Romero, cansado de esperar inutilmente por Tristan, armou uma canoa e ordenou que conduzissem Madame Godin até o navio do rei de Portugal, sem proceder nenhuma parada. O governador de Omagnas, sabendo que minha esposa descia o rio e que não arribaria em nenhum lugar, enviou uma canoa com alguns mantimentos ao en-contro da embarcação. O comandante português, senhor Rabelo, tam-bém informado da passagem de Madame Godin, mandou armar uma piroca e enviou até ela dois de seus soldados, com algumas provisões. Os soldados encontraram-na perto da vila de Pevas. O comandante, com o intuito de cumprir exatamente as ordens de seu rei, subiu com dificuldade o rio até Loreto, utilizando dois remadores, e a recebeu pessoalmente a bordo do navio português. Madame Godin assegurou--me de que, daí até o Oiapoque, cerca de mil léguas, passou a desfru-tar de instalações muito confortáveis e de uma excelente alimentação. Havia a bordo, segundo ela, coisas pouco usuais para uma embarcação daquela natureza: vinhos, licores – bebidas embarcadas especialmente para ela, mas que nem chegou a experimentar –, carne de caça em grande quantidade e peixes. Ao menos duas canoas escoltavam a gale-ota. O senhor governador do Pará mandou avisar a maioria dos postos, ao longo do rio, da passagem da embarcação e renovou constantemen-te as suas provisões.

Edição utilizadaA trágica história de Madame Godin des Odonais foi publicada pela primeira vez em finais de 1773, provavelmente pelo próprio Charles-Marie de la Condamine, num panfleto de 30 páginas, intitulado Lettres de M. D. L. C. à M * * *. A missiva foi republicada em 1778, na segunda edição da famosa Rélation abregée d’um Voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale, de Condamine. A

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primeira tradução para o inglês é de 1813 — um apêndice da tradução inglesa da Rélation. Há uma edição do relato em língua portuguesa, publicada em 1944, pela Companhia Editora Nacional, e reeditada em 2000, pela editora do Senado, também como um apêndice do livro de Charles-Marie de la Condamine. Utilizamos a edição de 1773.LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Lettre de M. D. L. C. à M. * * *. Sur le sort des Astronomes qui ont eu part aux dernières mesure de la terre, depuis 1735. Lettre de M. Godin des Odonais à M. de Condamine, et la aventure tragique de Madame Godin dans son Voyage de Quito a Cayenne, par le fleuve des Amazones. S. l., s.d., pp. 17-30.

BibliografiaAYALA, Carlos Capriles. Sola, a través de la selva amazónica. Caracas: Consorcio de Ediciones Capriles; Ediciones Bexeller, 1988.BLANCPAIN, Marc. Le plus long amour. Paris: B. Grasset, 1971.FROIDEVAUX, Henri. “Documents Inédits sur Godin des Odonais et sur son séjour à la Guyane”. In: Revue de la Société des Américanistes de Paris. Paris: Hôtel des sociétés des savantes, Tomo 3, 1898, pp. 91-148.LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Viagem na América meridional descendo o rio Amazonas (1735-1745). Brasília: Senado Federal, 2000.LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Viagem pelo Amazonas (1735-1745). Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992.MULLER, Richard. Isabel Godin. Guayaquil: Editorial Jouvin, 1936.MALOUET, Pierre Victor. Voyage dans les forêts de la Guyane Française. Paris, G. Sandré, 1853.

Texto apresentado em novembro/2012. Aprovado para publicação em janeiro/2013.

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IV – RESENHAS REVIEW ESSAYS

PASSAGENS PARA O ÍNDICO: ENCONTROS BRASILEIROS COM A LITERATURA MOÇAMBICANA, organização de Rita Chaves e Tania Macêdo. 1ª ed. Maputo: Marimbique – Conteúdos e Publicações. 327 págs., 2012.

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I

Escritores moçambicanos na fase inicial da literatura de seu país sempre se declararam inspirados por autores brasileiros. Foi o caso de José Craveirinha (1922-2003), filho de pai português e mãe africana, que se dizia leitor atento de Manuel Bandeira (1886-1968), Mário de Andrade (1893-1945), Graciliano Ramos (1892-1953), Carlos Drummond de An-drade (1902-1987), Jorge Amado (1912-2001), Raquel de Queiroz (1910-2003), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e outros. Sem contar que tivera em Leônidas da Silva (1913-2004), o Diamante Negro, centroavan-te da seleção brasileira de 1938 e inventor do lance chamado de “gol de bicicleta”, um ídolo de sua juventude, admiração que compartilhava com muitos de sua geração.

Tantos anos depois, faz-se agora o percurso inverso com estudio-sos brasileiros, alguns em atividade em universidades fora do Brasil, es-crevendo sobre a produção de escritores moçambicanos mais recentes. É o que se vê em Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana (Maputo: Marimbique Conteúdos e Publica-ções, 2012), organizado pelas professoras Rita Chaves e Tania Macêdo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), com prefácio do professor Lourenço do Rosário, o

1 – Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

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scholar moçambicano com maior trânsito nas universidades de Portugal e do Brasil.

Para realizar essa obra, as organizadoras convidaram 20 especialis-tas em Literatura Africana de Expressão Portuguesa, inclusive este arti-culista, para que escrevessem ensaios sobre a produção de autores mo-çambicanos contemporâneos. O livro inclui ainda o ensaio “A literatura moçambicana e os leitores brasileiros”, das organizadoras, responsáveis também pela introdução. Para as professoras, a exemplo de A kinda e a misanga: encontros brasileiros com a literatura angolana, lançado em 2007, este volume “corresponde a mais uma ação para tornar cada vez mais vivos os laços que nos prendem”.

II

Como não podia deixar de ser, Mia Couto, o escritor moçambicano com maior visibilidade da mídia do mundo lusófono, alcança espaço des-tacado na análise dos especialistas. De sua obra ocupam-se Anita Martins Rodrigues de Moraes, doutora em Teoria e História Literária pela Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universida-de Federal Fluminense (UFF), Maria Nazareth Soares Fonseca, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), e Patrícia Schor, que faz doutoramento em Humanidades na Utrecht Uni-versity, da Holanda.

Já a narrativa feminina, especialmente a de Paulina Chiziane, é ob-jeto de atenção de Laura Padilha, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora emérita da UFF, Débora Leite David, que faz pós-doutorado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa na USP, e deste articulista.

Em “Literatura e política: José Craveirinha e as inclinações pros-pectivas de uma poética popular”, o professor Benjamin Abdala Junior, doutor em Letras pela USP e professor titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da mesma instituição, aproxima a poesia do poeta

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moçambicano do fazer poético do angolano António Jacinto (1924-1991) e do brasileiro Solano Trindade (1908-1974), observando que o horizonte de expectativa de Craveirinha “enlaça os poetas da geração de 50 em Angola e os poetas brasileiros articulados politicamente e que viriam a promover os Centros Populares de Cultura”.

No contexto socialmente reivindicativo, e ainda anticolonial e an-tifascista das literaturas africanas de Língua Portuguesa dos anos 1950-1960-1970, diz Abdala, esse horizonte estético-ideológico promovia um olhar para outros poetas, de outros sistemas linguísticos, como o cubano Nicolás Guillén (1902-1989), que seria colocado como poeta-símbolo na antologia do angolano Mario de Andrade (1928-1990) e do são-tomense Francisco José Tenreiro (1921-1963), “onde a condição negra se associa-va à proletária – um humanismo em que as diferenças étnicas se abriam à solidariedade social”.

Em “A voz, o canto, o sonho e o corpo: reflexões sobre a poesia fe-minina em Moçambique”, Carmen Lucia Tindó Secco, doutora em Letras pela UFRJ e docente que criou a disciplina de Literaturas Africanas na mesma instituição, diz que, ao contrário do que ocorreu em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, em Moçambique o silêncio em torno de textos de autoria feminina se manteve por mais de uma déca-da depois da independência não só na poesia como nos demais gêneros.

Com exceção de Glória de Sant´Anna, que teve condições próprias de editar vários livros antes da independência, poucas mulheres tiveram seus textos publicados no período colonial. Mesmo a conhecida Noémia de Sousa, acrescenta, só teve a sua obra reunida em livro, em 2001, por empreendimento do poeta Nelson Saúte, atual editor da Marimbique, que publicou o livro que se resenha aqui. Hoje, já não são poucas as poeti-sas moçambicanas: Ana Mafalda Leite, Tânia Tomé, Sónia Sultuane são alguns nomes que têm sua produção analisada por Carmen Lucia neste ensaio.

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III

Em “José Francisco Albasini e a saúde do corpus moçambicano”, César Braga-Pinto, doutor em Literatura Comparada pela University of California, Berkeley, e professor da Northwestern University, em Illinois, recupera a trajetória literária e jornalística de José Francisco Albasini, o Bandana (1877-1935), irmão de João Albasini. Ambos fundaram o pri-meiro jornal escrito e dirigido por uma elite de intelectuais negros e mu-latos em Moçambique, O Africano (1908-1918), que seria sucedido por O Brado Africano (1918-1974).

Lidos numa perspectiva pós-independência e, portanto, anacrônica, os Albasini são vistos hoje com certo distanciamento. Descendente de um italiano e neto de português e de uma neta do régulo do clã Mpfumo, de Maxaquene, Bandana, ao seu tempo, defendeu a “causa indígena”, lançando uma campanha pela educação em português que tinha por base a luta pelo direito à cidadania plena, no caso a cidadania portuguesa, à época do salazarismo. Como diz Braga-Pinto, essa é ainda uma questão que permanece em debate e longe de um consenso, ou seja, “a situação do sujeito assimilado em relação não somente ao sujeito “indígena”, mas também ao passado pré-colonial e à tradição africana”.

Um dos textos mais interessantes desta coletânea é “Os lugares do indiano na literatura moçambicana”, de Nazir Ahmed Can, doutor em Le-tras pela Universidade Autônoma de Barcelona e professor-colaborador do Instituto Camões de Barcelona, que registra um “silêncio” a respei-to da participação indiana nos estudos literários sobre Moçambique dos dias atuais. É de lembrar que a comunidade indiana se fixou no país em meados do século XVII ou ainda em época anterior à chegada dos portu-gueses e, hoje, “representa uma parte significativa da população moçam-bicana (inclusive da elite política e intelectual)”.

Can cita Francisco Noa para quem “a figura do indiano aparece-nos marcada pelo ressentimento, pelo preconceito e por um indisfarçável sentimento de intolerância”. Para Can, “a prosa do período pós-indepen-dência sente-se ainda numa posição desconfortável para representar estas

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comunidades de forma pormenorizada para lhes fornecer protagonismo ou voz”.

Conhecidos de maneira depreciativa por monhés, baneanes e cana-rins, os indianos sempre foram vistos de maneira preconceituosa – de início, porque representariam um obstáculo à hegemonia portuguesa na região e, depois, porque desenvolviam, na maioria, atividades ligadas ao ilícito, como contrabando e a sonegação fiscal, e eram adeptos do islami-nismo e, portanto, adversários das práticas cristãs.

Depois de apontar a presença de protagonistas indianos (monhés), referidos de forma negativa por personagens em autores como Nelson Saúte, Lília Momplé e Suleiman Cassamo e positiva ou neutra em Mia Couto, João Paulo Borges Coelho e Paulina Chiziane, o ensaísta assinala a ausência de uma autorrepresentação da travessia indiana na prosa mo-çambicana, questionando quais seriam os motivos pelos quais isso não foi possível até agora.

IV

O livro traz ainda ensaios dos professores José Nicolau Gregorin Fi-lho, doutor em Letras pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) e professor da USP, Érica Antunes Pereira, pós-doutoranda na USP, Ma-ria Anória de Jesus Oliveira, professora assistente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Marinei Almeida, doutora em Letras pela USP e pro-fessora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Maurício Sales Vasconcelos, doutor em Letras e pós-doutorando na USP, Prisca Agustoni de Almeida Pereira, doutora em Literaturas Africanas de Lín-gua Portuguesa pela PUC-MG, Rosania da Silva, doutora em Letras pela Universidade Nova de Lisboa, Simone Caputo Gomes, doutora em Letras pela PUC-RJ, Sueli Saraiva, doutoranda em Letras pela USP, e Teresinha Taborda Moreira, doutora em Letras pela UFMG e professora da PUC--MG.

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Texto apresentado em outubro/2012. Aprovado para publicação em dezembro/2012.

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MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011. (Coleção Geografia e Adjacências). 156 p. ISBN 978-85-391-0215-0

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Lançado em 2011, o livro Geografia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia foi elaborado pelo geógrafo e cientista social Anto-nio Carlos Robert Moraes, professor titular do Departamento de Geogra-fia e coordenador do Laboratório de Geografia Política da Universidade de São Paulo. As ideias expostas discutem e aprofundam teorizações pro-postas em dois livros anteriores: Ideologias geográficas. Espaço, cultura e política no Brasil (1988) e Território e história no Brasil (2004). O fio condutor da sua investigação incide na formação do território brasileiro através da relação basilar entre a geografia e a história respectivamente. Nesta lógica, o território é compreendido como um resultado das ações culturais, políticas e econômicas empreendidas pelas sociedades ao longo dos tempos. Reunindo nove ensaios originalmente escritos para circuns-tâncias e ocasiões acadêmicas diversas, o autor discute nesta coletânea a relação entre o marxismo e a geografia, a constituição dos Estados ibero--americanos, o processo de instalação da colonização lusitana, bem como a formação territorial brasileira recente e o panorama da geografia na-cional. Completam este rol temático, um exame crítico sobre a polêmica e a controvérsia que envolvem a globalização, o pós-modernismo e o neoliberalismo.

Inaugura a coletânea um capítulo dedicado ao exame da espaciali-dade do modo de produção capitalista. Norteado pela categoria de modo de produção como recurso interpretativo da teoria da história, Moraes demonstra como a abordagem geográfica possibilita a compreensão de determinados aspectos do capitalismo em conjunturas espaciais diferen-

1 – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Pós--doutoranda do Laboratório de Geografia Política da Universidade de São Paulo.E-mail: [email protected]

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ciadas, o que ele define por “geografia histórica do capitalismo”. Neste sentido, revela como as relações do capitalismo e do capital com a su-perfície terrestre são paradoxalmente opostas e complementares. Desta forma, distingue duas possibilidades de análise, a forma capitalista de valorização do espaço e a valorização capitalista do espaço. Se por um lado, o sistema capitalista submete todos os espaços possíveis no globo terrestre, por outro, o capital elege lugares específicos para sua aplicação e sua fixação. A sua investigação privilegia, ainda, as características das relações capitalistas, em especial, o conceito de via de desenvolvimento e os seus desdobramentos.

Em seguida, tomando como referência os estudos pós-coloniais de estudiosos do porte de Edward Said, de Benedict Anderson e de Wal-ter Mignolo, o autor aborda o surgimento dos Estados ibero-americanos. Constata que os processos de independência no Novo Mundo inserem--se na história-mundo. Observa que a emancipação das ex-colônias foi realizada sem o rompimento com a ideia de civilização que sustentava a dominação colonial. Não por acaso, a sistematização da geografia mo-derna desponta dessa relação, articulando a narrativa colonial e a tese da superioridade ocidental. Portanto, a afirmação das nacionalidades ame-ricanas submete-se à atuação dos Estados, diferentemente dos proces-sos de independência na Ásia e na África que dispunham de um arsenal ideológico do nacionalismo e de soberania popular para impulsionar suas ações. Um outro ponto interessante abordado refere-se ao estudo da histó-ria da geografia nacional. A singularidade da realidade brasileira permite uma reflexão sobre a geografia e o seu desenvolvimento como ciência nacional, um vez que a implantação e o desenvolvimento deste campo do conhecimento está diretamente atrelada à evolução política do país, do que propriamente com o desenvolvimento da história desta disciplina em escala mundial.

O terceiro texto examina a instalação da colonização lusitana e a geopolítica adotada pela metrópole, uma combinação da ocupação e da fundação de núcleos de assentamentos no território, a exemplo das fei-torias e das capitanias. Entende que o Brasil, enquanto uma construção

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portuguesa do desconhecido território no Novo Mundo, abarcava o po-voamento e a exploração. O domínio da faixa litorânea constituía, no seu entendimento, a diretriz da lógica geopolítica portuguesa, uma vez que lá se estabelecia tais centros de assentamentos, de onde partiam movimen-tos de exploração e de povoamento. Contudo, o autor adverte que não deve se caracterizar o período colonial como conjunto homogêneo, tal como é apresentado comumente em estudos variados. Salienta, ainda, a necessidade de se observar as singularidades do processo colonial em sua fase inicial. Para ele, esta etapa corresponde a um momento diferenciado e singular diverso do período da União Ibérica (1580-1640) e da consoli-dação da soberania portuguesa da segunda metade do século XVIII. Em síntese, o autor destaca que o movimento de instalação do colonizador envolveu a conquista efetiva e a ocupação do solo, no qual o estabeleci-mento de núcleos de assentamento consistia a marca do período.

Já no texto seguinte, Moraes coteja o território, a região e a for-mação colonial na América Latina. Demonstra como a geografia é um elemento essencial para análise da particularidade histórica dos países latino-americanos. Constata que a colonização, como um processo de expansão colonial, é uma relação sociedade-espaço, marcada pela con-quista, domínio e exploração econômica dos recursos existentes. Neste sentido, a geografia histórica pode ser apreendida como um caminho de reconstituição do processo de formação dos territórios, visto que a ex-pansão espacial corresponde ao primeiro objeto deste campo disciplinar, enquanto que a consolidação do domínio territorial representa o seu coro-lário. Compreende-se, portanto, o território como uma área de exercício de poder, um espaço qualificado pela dominação política comportando várias regiões, esta últimas definidas como espaços econômicos de ocu-pação efetiva. O território brasileiro constitui um legado do passado co-lonial e que pode ser caracterizado através das noções de território usado e de fundos territoriais. Para uma melhor definição de tais conceitos, o autor propõe: “(...) o território colonial como área de soberania formal (de administração) de uma metrópole; o território usado como as áreas efetivamente propriamente apropriadas para colonização (os encraves e

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regiões); e os fundos territoriais, o que restam como reservas para a ex-pansão futura da ação colonizadora” (p.76).

No quinto capítulo, as ideologias geográficas na história brasilei-ra constituem o objeto de sua análise. O autor sublinha como a ênfase expansionista norteia a história territorial do país desde suas origens. A visão territorialista concebe o Brasil como um espaço e não como uma sociedade. A argumentação geográfica fornece a justificativa da identi-dade e da unidade política, à medida que o processo de colonização en-volve uma relação sociedade-espaço. No caso brasileiro, a instalação do colonizador engendrou o território colonial como elemento de unidade do Brasil. Com a emancipação política em 1822, o projeto estatal nacional adotado pela então nação recém-independente era em sua essência terri-torial, o que proporcionava um elemento de ligação entre as elites regio-nais, justificando a concentração do poder do Estado imperial. A visão territorialista consagrava a ideia de “país a construir”, na qual reduzia o papel da população a um instrumento de edificação do país. Incorporava--se nesse processo as ideias de sertão, em seguida, a de moderno e de modernização. Seja como for, o Estado assumia o papel de construtor da nação, a partir da associação entre as ideologias geográficas e as políticas territoriais. Para comprovar tal premissa, Moraes coteja as sucessivas po-líticas governamentais brasileiras ao longo do século XX.

No capítulo seguinte desta coletânea, Antonio Carlos Robert Moraes discorre sobre a ideia de sertão. Demonstra como tal conceito difere das noções usuais de “habitat”, “ambiente”, “região” e “território” dissemi-nados no campo geográfico. O sertão apresenta-se como uma condição atribuída a variados e diferentes lugares. Corresponde a uma materialida-de simbólica, uma ideologia geográfica. Definir um determinado espaço como “sertão” implica projetar sua valorização para uma futura forma de ocupação e de exploração. Concebe-se, assim, um espaço para uma possí-vel expansão futura da economia e de domínio político. De acordo com a perspectiva da globalização, o sertão pode ainda ser identificado como os lugares não integrados aos fluxos internacionais, bem como depositários do patrimônio natural e da biodiversidade do planeta.

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GeoGrafia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia

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O sétimo capítulo apresenta um quadro do processo de formação do território, investiga as especificidades da expansão territorial desde perío-do colonial, relacionando com as políticas territoriais estatais. Constata que atualmente o movimento da conquista territorial no Brasil permanece ainda inconcluso, já que ainda persistem espaços poucos explorados no Centro-Oeste e na Amazônia, os chamados “fundos territoriais”. Logo em seguida, esquadrinha a transformação do Brasil de uma denominação car-tográfica genérica na imaginação geográfica europeia desde tempos re-motos para uma entidade geopolítica autônoma no século XIX. Neste pe-ríodo, conhecer, conquistar, explorar e integrar o território preponderava no discurso ideológico dominante. Nos países de herança colonial, a geo-grafia e a história se aglutinaram na construção ideológica das identidades nacionais. No caso brasileiro, esta herança foi assumida com seu estoque de espaços e de recursos, legitimando a ordem político-institucional no segundo reinado e na República. Adverte que nas últimas duas décadas, a globalização e o localismo articularam-se no discurso hegemônico do imaginário geopolítico brasileiro, promovendo a desregulamentação de determinadas atividades e a privatização de empresas estatais, reformu-lando o modelo tradicional de nacional-desenvolvimentismo. O território e os seus recursos naturais foram redimensionados, disseminando a ideia de inúmeras vantagens comparativas, a exemplo da disponibilidade ter-ritorial com estoques minerais variáveis, fontes renováveis de recursos e solo agriculturável. Levando-se em consideração a conjuntura de crise mundial, depois de examinar criticamente o processo, o autor recomenda a necessidade da formulação de um projeto nacional imbuído de uma visão estratégica do território e das tendências de conformação territorial.

O panorama teórico da geografia nacional foi objeto de estudo no capítulo subsequente. Moraes reflete sobre a diversidade e o ecletismo de orientações metodológicas e teóricas, além disso, questiona a importação de teorias e a sua propagação em território nacional de maneira acrítica. Revela-se como um texto crítico de combate político, no qual o autor assinala determinadas contradições inerentes às teorias geográficas pós--modernistas. Observa como a dinâmica da economia-mundo capitalis-

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LucieNe Pereira carris cardoso

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ta manifesta-se diferentemente no centro e no mundo periférico. Na sua concepção, a condição periférica confere aos países pós-coloniais, por exemplo, uma dupla ligação, uma vivência simultânea com a modernida-de e com as relações societárias pré-modernas. Desta maneira, se para os teóricos pós-modernos determinadas obras publicadas anteriormente não elucidam a realidade contemporânea, tampouco as teorias emanadas pelo centro explicam o mundo o periférico. No seu entendimento, emerge uma geografia pós-moderna despolitizada, mas ao mesmo tempo cosmopolita e localista, que sustenta a ilusão da superação do passado e o surgimento de mundo inteiramente novo. Mais adiante, ressalta a emergência de um conjunto de tendências que defendem formas pré-modernas de sociabili-dades nos países periféricos. Tal pré-modernismo preconiza uma percep-ção agrarista da realidade brasileira calcada no culto da tradição e da vida tradicional, por outro lado, também desprovida de avaliação historiográ-fica de seu papel na história no último século. Ademais, Moraes rejeita a concepção do “capitalismo como uma realidade congelada, a-histórica, sem movimento interno e sem renovação”. De igual modo, demonstra como a renúncia ao papel do Estado e o aspecto localista estabelecem um diálogo paradoxal entre o elogio da pré-modernidade e os pós-modernos.

Encerra a coletânea uma apreciação sobre o papel do Estado e a di-luição do conceito de escala nacional nos estudos de geografia contempo-rânea. Neste caso, são elencadas três teorias que se tornaram hegemôni-cas nos últimos trinta anos: a globalização, o neoliberalismo e a perspec-tiva pós-moderna. Antonio Carlos Robert Moraes ressalta a fragilidade do discurso disseminado sobre um mundo sem diferenciações ou barreiras, entendido ainda como um processo irreversível, uma fatalidade histórica, atrelada a uma doutrina econômica que defende a autorregulamentação do mercado e a intervenção mínima do Estado. As primeiras duas cor-rentes ideológicas, a globalização e o neoliberalismo, preconizam a ideia de uma aldeia global, anunciando o fim das fronteiras, ao lado da des-montagem do aparato estatal. Apesar de elaborada pelo pensamento he-terodoxo da esquerda, a perspectiva pós-moderna constitui, ao seu ver, a mais difícil de aventar e de debater, uma vez que seus objetos e interesses

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não se apresentariam tão claramente. Tal entendimento baseia-se na su-peração do projeto moderno e o fim de determinadas categorias até então existentes, a exemplo das ideologias, das nações e dos territórios. Deste modo, as chamadas geografias pós-modernas proclamam a existência de apenas duas escalas, a global e a local. Em consequência, caberia pensar em projetos que abrangessem o planeta unido ou em cada local com suas especificidades, ignorando as particularidades e as contradições existen-tes. Todavia, a recente crise financeira na União Europeia e a intervenção estatal nessa conjuntura reafirmou a persistência dos interesses nacionais e das territorialidades estatais, ao lado da retomada de temas tradicionais como nacionalidade, jurisdição e soberania.

Texto apresentado em novembro/2012. Aprovado para publicação em dezembro/2012.

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7.1. Articles: it includes analytical texts or essays which are resultant of studies and researches concerning the themes that are interesting to the R.IHGB. (up to ten thousand words).

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approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned. • If the contribution is approved, the author will have fifteen days to give the authorization term back,

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