AZZAN, Celso. Antropologia Estrutural e Antropologia Interpretativa
Quando há vida na antessala da morte. Um olhar sobre a ... · 3 Sobre o nascimento do hospital no...
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Quando há vida na antessala da morte. Um olhar sobre a atuação da Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre no tratamento de variolosos e outros doentes no
século XIX
Jaqueline Hasan Brizola1
Vinte e cinco de abril de 1863, o ferreiro Francisco Marques, homem branco,
com apenas 18 anos de idade, ingressava no Hospital Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre portando bexigas, natural da Província, Francisco era solteiro e pobre,
buscou a Caridade, talvez pelo medo de morrer em casa, coberto de pústulas purulentas
e sentindo fortes dores pelo corpo. Curiosamente, no dia vinte e seis de maio do mesmo
ano, Francisco recebera alta da Misericórdia, saíra curado. Assim como ele, muitos
outros homens e mulheres buscaram o mesmo auxílio, à época, carregando consigo
alguma intenção.
O lugar do hospital no imaginário daqueles que procuravam curar-se de males
diversos no século XIX, ainda é um ponto pouco debatido no campo da história e da
medicina. Em que pese, ao longo dos últimos 30 anos, muitos estudiosos tenham
aprofundado questões relativas ao nascimento da clínica,2 e ao papel de representantes
da medicina dita acadêmica na formação do Estado, no século XIX, pouco se avançou
na obtenção de respostas acerca do desempenho do hospital, no tratamento e na cura das
pessoas3
1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2Ver: FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder.. op.cit. p. 99 e também: FOUCAULT, Michael. O
Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 3 Sobre o nascimento do hospital no Brasil, seguindo a mesma linha interpretativa de Foucault ver:
MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro, Graal. 1979 e também: BERTOLLI FILHO, Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil.
11. ed. São Paulo: Ática, 2008.
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Partindo de um projeto maior, onde se insere nosso trabalho de mestrado
acadêmico, a presente comunicação tem como proposta demonstrar que, tal qual
Francisco, o homem de 18 anos que ingressara na Santa Casa de Porto Alegre em 1863,
outros tantos indivíduos em situação semelhante a sua estiveram buscando a Caridade e
seus auxílios em um momento de fragilidade e adoecimento.4 Entre os anos de 1846 e
1874, quatrocentos e cinquenta e três pessoas estiveram nas enfermarias da Instituição
portando varíola. Acompanhamos, por meio do livro de matrícula geral de enfermos,
caso a caso destes indivíduos – conhecendo seus nomes, idades, origens, condição civil,
se livres ou escravos, os nomes de seus pais ou seus senhores, profissões e cor em
alguns casos, sua situação ao deixar a Misericórdia, e seu tempo de permanência no
hospital.
A partir da análise do perfil social dos variolosos ingressantes na Misericórdia,
durante os vinte e oito anos que marcam nossa pesquisa, foi possível entender um pouco
mais sobre o funcionamento do hospital, estabelecendo, também, uma ideia mais
precisa acerca do destino que tiveram os enfermos que lá ingressaram em sua busca por
tratamentos. Nossa opção pelo uso do termo; “enfermos”, parte da ideia de que o doente
no século XIX, portador de uma enfermidade, era alguém passível de cuidados e
atenção, merecedor de um tratamento diferenciado, mas não era, entretanto, um
“paciente”, aos moldes previstos pela medicina moderna. 5 As concepções de cura
vivenciada dentro da Misericórdia de Porto Alegre, certamente, partiam de elaborações
diversas e terapêuticas diferenciadas, não sendo tarefa de um agente somente, o médico,
conhecedor da solução para todos os males.
4 A pesquisa que desenvolvemos enfocou a presença da varíola e os meios constituídos visando seu
combate em Porto Alegre entre os anos de 1846 e 1874. Ver: BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A Terrível
Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e sujeitos. A história da varíola em Porto Alegre no século XIX
(1846 – 1874). Dissertação, Mestrado. UFRGS, 2014. 5 A figura do paciente enquanto um ente isolado inexistia no período em questão. Roy Porter nos lembra
que a doença, no século XVIII e XIX, não possuía um saber universal e totalizante, podendo ser atacada
sob diferentes pontos de vista. Neste cenário, o doente e sua doença eram objetos de diferentes meios de
tratamentos experenciado pelo próprio sofredor, mas também pela comunidade em que este estava
inserido. PORTER, Roy. Pain and suffering. In. BINUN, W.F. and PORTER, R (Ed.s), Companion
Enciclopedy of the History of Medicine. Vol. 1. London and New York. Routledg, 2002
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Longe de interpretar o passado enquanto uma rede intransponível de estruturas,
onde os atores se movimentam apenas enquanto peças de um jogo, cujo final já está
previsto, pensamos, tal qual Edward P. Thompson, que o historiador(a) examina vidas e
escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos, (processos). 6 Daí a
necessidade de dar voz aos indivíduos, considerando suas experiências e possibilidades
de ação.
Compreendendo a doença enquanto fato social, cuja existência, como afirma
Nascimento & Carvalho, depende tanto do espaço e do tempo, como das características
dos indivíduos e dos grupos atingidos,7 buscar-se-á estabelecer nexos causais, entre as
condições de combate e tratamento da doença e a ordem social existente à época,
relacionando tais questões com aspectos sociais e culturais da porto-alegrense
oitocentista.
A instituição Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, nasce no bojo de uma
sociedade que não concebia os hospitais como centros da cura por excelência.8 Como se
sabe, o tratamento de enfermos pobres era apenas uma das atividades desempenhadas
pela Caridade e, embora muitas das pessoas que recebiam cuidados dentro desse espaço
tivessem seus problemas de saúde efetivamente resolvidos, esse não era o objetivo
elementar de sua existência.9
Em verdade, a recusa por parte da elite em receber tratamentos na Misericórdia
esteve relacionada com o estigma que a Instituição carregava por ser um espaço
6THOMPSON, E. P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de
Althusser. ZAHAR, Ed. 1981; p. 61 7 NASCIMENTO, Dilene R. e CARVALHO, Diana Maul (orgs). Uma história brasileira das doenças.
Brasília, Paralelo 15, 2004, pp.13-30. 8 WITTER, Nikelen A. Males e epidemias. Sofredores, governantes e curadores no Sul do Brasil (Rio
Grande do Sul – Século XIX). 267 f.; il. (Tese Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2007 9 Para mais detalhes sobre as funções da Santa Casa, no século XIX, ver: TOMASCHEWSKI, Cláudia.
Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva. A distribuição da assistência a partir das irmandades da Santa
Casa de Misericórdia nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c- 1847 c-1891. – Tese (doutorado)
PUCRS – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História. Porto
Alegre, RS – BR. 2014,
4
destinado aos pobres. No imaginário dos homens e mulheres mais ricos, aquele era um
lugar para assistência e/ou caridade, e o tratamento dos pobres, antes de ser um
problema de Estado, tal qual concebemos hoje, era visto como um ato de generosidade.
Contudo, em meados da década de 1850, do século XIX, a Santa Casa continuava sendo
o único espaço “público” onde existiam condições mínimas de acolhimento para
enfermos desprovidos de recursos, fator que deve ter contribuído para o aprimoramento
de práticas que levassem ao restabelecimento da saúde das pessoas.
Evidentemente, nem todos os homens e mulheres pobres e doentes buscavam a
Santa Casa em um momento de necessidade. Nikelen Witter afirma que a maioria das
pessoas preferia curar-se em casa, imersos em redes de solidariedade, construídas dentro
da família ou entre amigos.10 Mas, partindo da análise do livro de matrículas geral de
enfermos da instituição, nos vinte e oito anos que marcam nossa pesquisa, pudemos
observar uma quantidade expressiva de pessoas dando baixas nas enfermarias da
Misericórdia. Este dado nos levou, inicialmente, a pensar que todos aqueles que se viam
ameaçados pela proximidade da morte buscavam o auxílio da Caridade com o intuito de
receber, talvez, os últimos sacramentos.
Entretanto, a análise do perfil social dos variolosos ingressantes na Misericórdia,
pelo menos entre os anos que investigamos, nos apontam outros caminhos
interpretativos. Conhecendo caso a caso daqueles sujeitos portadores de varíola, vimos
que nem todos eram desvalidos ou se encontravam completamente a margem da
sociedade.11
O tempo de permanência dos doentes de varíola no hospital, por exemplo, era
muito variado, o sujeito tanto poderia sair em poucos dias, como permanecer por meses.
A maioria absoluta dos casos, entretanto, esteve sob os cuidados da Caridade por mais
de 10 dias, como podemos apreender do gráfico abaixo:
10 WITTER, Nikelen A. Males e epidemias... p 174 a 178. 11 Um dado que leva a esta interpretação é a profissão dos doentes, que só começa a aparecer nos livros de
matrícula geral a partir da década de 1860. Ferreiros, Booleiros, Carpinteiros e até um Orives aparece na
Santa Casa para tratar-se da varíola – o que indica que nem todos eram sujeitos absolutamente pobres e
desvalidos. Ver: CEDOP – ISMPA - Livro de Matrícula Geral de Enfermos (1 a 4)
5
Fonte: ISCMPA – CEDOP – Livro de matrícula geral de enfermos – (livros 1 a 4)
O período de incubação e manifestação do vírus poderia variar entre 12 e 14
dias. Já o tempo entre o contato com o vírus e o desaparecimento dos sintomas, caso a
pessoa sobrevivesse, não ultrapassaria a marca das três semanas.12 De qualquer maneira,
a varíola atacava duramente o sistema imunológico do indivíduo, o que poderia
acarretar uma maior vulnerabilidade as infecções secundarias. 13 Talvez este fato
explique a longa permanência de alguns doentes no hospital. Dos casos que analisamos
21%, pelo menos, permaneceu nos quadros da Caridade por mais de 30 dias. Estas
pessoas podem ter sido vítimas de novas doenças, uma vez que sua imunidade se via
ameaçada pela varíola.
Se esta perspectiva estiver correta, poderíamos supor que não era tão alto o risco
de contaminação por outras doenças no hospital, tendo em vista que a grande maioria
das pessoas permanecia de dez a trinta dias somente, um período coincidente com
aquele que necessitava o varioloso para voltar ao convívio social, isto é, se fosse capaz
de resistir à doença. Entretanto, tal afirmação seria demasiado precipitada, somente um
estudo detalhado do livro de matrícula geral de enfermos, considerando outras doenças
12 Brasil. Fundação nacional de saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação Nacional de Saúde.
5. Ed. Brasília: FUNASA, 202 p. 853 13 Ibden
23,45%
51,45%
21,17%
3,9%
Tempo de permanência/ variolosos SCMPA -
(1846-1874)
até 10 dias
entre 10 e 30 dias
entre 30 e 60 dias
Mais de 60 dias
6
contagiosas, poderia nos responder tal questão. Por hora, seguimos analisando os dados
que dispomos.
Para entender a presença daqueles que permaneciam pouco tempo nos quadros
da Caridade, algumas hipóteses poderiam ser levantadas. Mas, ao analisarmos caso a
caso especificamente, logo observamos algo que parecia lógico. Se o sujeito permanecia
menos de dez dias no hospital, teria boas chances de não resistir à varíola. Neste caso, o
quadro da doença poderia estar bastante avançado e a busca pela Santa Casa deveria ser
a última opção antes da morte.
Contudo, este comportamento não era regra para a maioria dos sujeitos que
estiveram na Instituição. Como vimos, um número alto de doentes de varíola
permaneceu, pelo menos, mais de dez dias sob os cuidados despendidos nas enfermarias
da Santa Casa. Resta-nos saber, quantos destes voltaram vivos para casa após a
passagem pelo hospital.
Fonte: SCMPA – CEDOP - Livro de Matrícula Geral de Enfermos, (livros 1 a 4)
0%
20%
40%
60%
80%
100%
até dez diasentre 10 e
30 diasentre 30 e
60 dias mais de 60
dias
49%
80%89%
83,30%
51%
20%
11% 16,70%
Tempo de permanência x altas e óbitos
(1846 - 1874)
altas
óbitos
7
Como se pode observar, a grande maioria dos variolosos que ingressaram na
Santa Casa saíram vivos algum tempo depois. Os números eram tão expressivos que
chegamos a questionar quão alta era a letalidade da varíola.14 Que fatores devemos
considerar para compreendermos os porquês de tantas altas? Teriam os doentes, saído
do hospital para morrer em casa em um estágio avançado da doença? Provavelmente
não. Se havia algum lugar adequado para aguardar a morte por varíola, certamente não
era o lar, onde outras pessoas poderiam ser infectadas. Além disso, no século XIX, o
sujeito somente buscaria os auxílios do hospital, mediante uma situação de pobreza e
vulnerabilidade – quando não possuísse recursos financeiros para custear um médico
particular, nem tampouco contasse com a ajuda da família para os cuidados em casa.15
Desta maneira, se recebesse alta do hospital, provavelmente estaria apto a
retomar a vida normal, muito embora fosse obrigado a carregar as marcas e o estigma da
varíola por toda a vida.16 Se observarmos o tempo de permanência em conjunto com o
número de altas, veremos que eram boas às perspectivas de vida daqueles que
permaneciam por mais de dez dias sob os cuidados da Caridade, e as chances de
sobreviver aumentavam, se o sujeito permanecesse entre trinta e sessenta dias, por
exemplo. Destes, apenas onze por cento foram a óbito. E, por fim, se a estadia do
varioloso ultrapassasse os sessenta dias, as chances de sair vivo eram ainda maiores.
Dos casos que analisamos, 83% sobreviveram, sendo, a grande maioria destes, homens
livres, encontramos apenas um escravo.
14 Segundo o guia de vigilância epidemiologia, a varíola matava em média um terço das pessoas
infectadas e não imunizadas até sua erradicação na década de 1970. Ver: Brasil. Fundação nacional de
saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação Nacional de Saúde. 5. Ed. Brasília: FUNASA, 202
p. 853. Ver também o interessante trabalho de GAZETA, Arlene. Uma contribuição a história da
varíola no Brasil. do controle à erradicação. Tese doutorado. Agência FIOCRUZ, 2006 15 WITTER, Nikelen... Males e epidemias... 2007 16 Martins analisou os estigmas criados pela varíola para aqueles que sobreviviam a ela na cidade de
Fortaleza, em meados do século XIX, e observou que aqueles sujeitos eram vítimas de inúmeros
preconceitos, tendo dificuldades de inserir-se socialmente, principalmente no mundo do trabalho, uma vez
que a varíola deixava cicatrizes na pele, especialmente na face. Outras seqüelas, menos comuns, como a
cegueira e a deformidades nos membros, também ocasionavam preconceitos. Ver: MARTINS, Letícia
Lustosa. Praticas sanitárias e o surgimento do estigma social sobre os variolosos em Fortaleza de
1877 até 1879. Graduação em História. Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2008.
8
Um dos dados mais completos encontrados nos dois livros de matrícula geral,
depois dos nomes do paciente, é sua condição ao deixar as enfermarias do hospital.
Infelizmente não há informações detalhadas, apenas a designação “óbito ou alta”, o que
nos priva de conhecer as condições de saúde do enfermo ao deixar a Caridade. Não é
possível afirmarmos que todos os doentes que deram alta da instituição saíram
realmente curados. Há possibilidades concretas de terem falecido após a saída do
hospital, embora tenhamos boas razões para crer que este não era um cenário
corriqueiro.
No gráfico abaixo, analisamos dez anos de entradas e saídas de pacientes,
incluindo todos que estiveram no hospital, independente de sua doença, e concluímos,
que o número de altas era bastante superior ao de óbitos. Vejamos:
Fonte: CEDOP. SCMPA - Livro de matrícula geral de enfermos. 1 e 217
17 Selecionamos dez anos, entre os vinte e oito que marcam nossa pesquisa, para demonstrar o índice de
“enfermos” que receberam alta do hospital. Cabe salientar que, a leitura das doenças e da condição do
sujeito ao deixar a Caridade, nestes anos, foi facilitada pelo estado do documento, por isso a escolha deste
período.
512563
911 887
752 789
643
1012
1178
714
59 61106 104 80 93 98 126 136
93
1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1866 1867 1868
Entradas x Óbitos - Público geral
(1849 a 1855 e 1866 a 1868)
Entradas
Óbitos
Linear (Óbitos)
9
Não apenas os variolosos tiveram êxito em suas passagens pela Santa Casa.
Doentes, sofredores de outras enfermidades, também encontraram à cura na Caridade.
Os números absolutos indicam que as altas ultrapassam os óbitos significativamente nos
dez anos referidos. Enquanto o número de entradas poderia aumentar ou diminuir, os de
óbitos apresentaram certa estabilidade, variando entre 10% e 14%. Mediante uma razão
tão pequena de falecimentos, não podemos supor que o hospital Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre fosse visto, em meados do século XIX, enquanto um
espaço destinado apenas àqueles que aguardavam a morte certa.
A guerra do Paraguai, iniciada em 1864, deve ter contribuído para a elevação do
número de óbitos nos anos finais que marcam esta pesquisa, tendo em vista as
condições especiais verificadas em épocas de conflitos.18 Observamos um aumento de
entradas e também de óbitos neste período. Dos cento e três variolosos que estiveram na
Misericórdia entre 1864 e 1868, por exemplo, trinta e quatro não sobreviveram – o que
em termos percentuais – representa 33% dos casos. Mesmo assim, o número de altas
continua sendo bastante expressivo, 69 indivíduos ou 66% dos casos.
Em 1855, o presidente da Província, senhor Barão de Muritiba, exaltando os
feitos da Misericórdia de Porto Alegre, informava em seu relatório:
Achavam-se no hospital em 1 de Julho do anno passado, 99 enfermos,
sendo 69 homens e 30 mulheres. Até o fim de julho do corrente anno entrarão
para ser tratados 707, sendo 592 homens e 115 mulheres, elevando-se asín a
806 o número de doentes tratados no hospital, dos quaes sahirão
restabelecidos 627, fallecerão 96 e ficarão no hospital 83, incluindo os
alienados19
18 Doenças contagiosa como a varíola encontram um meio de propagação favorável em época de guerra,
devido as péssimas condições de higiene em que os sujeitos estavam imersos, sem falar nos efeitos
maléficos provocados pelas aglomerações – ambiente favorável para a propagação das moléstias. Ver:
SOUZA, Jorge Prata de. A presença da cólera, da diarréia e as condições sanitárias durante a guerra
contra o Paraguai. In: NASCIMENTO, Dilene; CARVALHO, Diana Maul de; MARQUES, Rita de
Cássia (orgs). Uma História Brasileira das Doenças. V.2, Rio de Janeiro, Mauad X, 2006. 19 AHRS – Relatório do Presidente da Província- Correspondência dos governantes A7.02 – Barão de
Muritiba (1855)
10
O relato otimista de Muritiba em relação à expectativa de vida que “a
humanidade enferma” encontrava na Santa Casa, à época, poderia ser interpretado
enquanto propaganda de governo tão somente. Muito embora, a administração da Santa
Casa não estivesse, como vimos, sob os auspícios do Estado, os homens que ocupavam
cargos importantes nos altos postos da política tinham uma espécie de obrigação moral
com a Caridade, e, portanto, com os resultados “sociais” do Pio estabelecimento.20
Contudo, se confrontarmos as informações de Muritiba, com os dados que investigamos
de entradas de pacientes veremos que seu relatório não era apenas político. Salvo os
números contidos na matrícula geral de enfermos terem sido completamente distorcidos,
não há dúvidas de que existiu expectativa de vida para os enfermos que buscaram
tratamentos naquele lugar.
Assim, ao analisarmos a situação dos enfermos que compuseram o quadro de
doentes da Santa Casa, temos boas razões para acreditar que esta Instituição esteve entre
as opções de muitos homens e mulheres doentes no século XIX. Se não podemos
negligenciar as outras formas de cura existentes à época e as visões divergentes de
terapêutica que aquela sociedade experimentou, tampouco se pode-se afirmar que o
hospital Santa Casa, no século XIX, era apenas a antessala da morte.
Por meio da análise do perfil social dos variolosos que ingressaram na
Misericórdia de Porto Alegre, entre os anos de 1846 e 1874, observamos não apenas o
caráter endêmico da doença na cidade, mas, sobretudo, pudemos refletir o papel
desempenhado pela Instituição onde muitos deles eram tratados, por serem pobres e não
terem ninguém por si, em alguns casos, ou por acreditarem realmente em sua cura,
mediante a observação de outros, que, uma vez internados, obtiveram sucesso em seus
tratamentos.
20 WEBER, Beatriz. As Artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-
Grandense – 1889-1928. Bauru: EDUSC, 1992.
11
Longe de esgotar as possibilidades interpretativas para a complexidade de
funções desempenhadas pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, no século
XIX, no trato com variolosos e outros doentes, nosso estudo buscou apenas observar o
hospital sob outro ponto de vista, entendendo seus significados para a cura daqueles que
não possuíam recursos nem posses, mas que representavam a ampla maioria da
população.
FONTES
IRMANDADE SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE – Centro
de documentação e pesquisa: Matrícula geral de enfermos. Livro 1,2,3,4 ( 1846 – 1874)
12
ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL: Relatório do Presidente da
Província – Correspondência dos governantes - A7.02 – Barão de Muritiba (1855)
BIBLIOGRAFIA
BERTOLLI FILHO, Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil. 11. ed. São Paulo:
Ática, 2008.
BRASIL. Fundação nacional de saúde. Guia de vigilância epidemiológica/ Fundação
Nacional de Saúde. 5. Ed. Brasília: FUNASA, 2002
BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A Terrível Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e
sujeitos. A história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846 – 1874).
Dissertação, Mestrado. UFRGS, 2014.
FOUCAULT, Michael. O Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
GAZÊTA , Arlene Brasil.Uma contribuição à história do combate à varíola no
Brasil: do controle à erradicação. Tese doutorado. Agência FIOCRUZ, 2006
MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal. 1979 e também: BERTOLLI FILHO,
Claúdio. História da Saúde Pública no Brasil. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008.
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sobre os variolosos em Fortaleza de 1877 até 1879. Graduação em História.
Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2008
NASCIMENTO, Dilene R. e CARVALHO, Diana Maul (orgs). Uma história
brasileira das doenças. Brasília, Paralelo 15, 2004
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SOUZA, Jorge Prata de. A presença da cólera, da diarréia e as condições sanitárias
durante a guerra contra o Paraguai. In: NASCIMENTO, Dilene; CARVALHO, Diana
Maul de; MARQUES, Rita de Cássia (orgs). Uma História Brasileira das Doenças.
V.2, Rio de Janeiro, Mauad X, 2006.
TOMASCHEWSKI, Cláudia. Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva. A distribuição
da assistência a partir das irmandades da Santa Casa de Misericórdia nas cidades de
Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c- 1847 c-1891. – Tese (doutorado) PUCRS – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História. Porto
Alegre, RS – BR. 2014,
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Uma crítica ao
pensamento de Althusser. ZAHAR, Ed. 1981
WEBER, Beatriz. As Artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na
República Rio-Grandense – 1889-1928. Bauru: EDUSC, 1992.
WITTER, Nikelen A. Males e epidemias. Sofredores, governantes e curadores no Sul
do Brasil (Rio Grande do Sul – Século XIX). 267 f.; il. (Tese Doutorado) –
Universidade Federal Fluminense, 2007.