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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SIDNEY GONÇALVES DE FREITAS EMPRÉSTIMO DISCURSIVO NA CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA: ANÁLISE DA PRESENÇA DO DISCURSO CIENTÍFICO NA CAMPANHA DO DANONE ACTIVIA SÃO PAULO 2008

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Essa é a absolvição dos pecados de todos os publicitários.Também é o fim da crença que a publicidade convence alguém.A leitura é densa, mas vale a pena.Cuidado. Nas mão de clientes pode ser o fim da publicidade, Ou, finalmente ela pode encontrar seu papel na sociedade sem que artistas, cineastas, filósofos e pseudos intelectuais olhem torto para os publicitários.A PUC deu 10 no trabalho, portanto, a crítica já foi feita.E foi publicado em 2008 antes do MEME de Activia. Trendsetter ou não, a dúvida está lançada.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SIDNEY GONÇALVES DE FREITAS

EMPRÉSTIMO DISCURSIVO NA CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA: ANÁLISE DA PRESENÇA DO DISCURSO CIENTÍFICO NA

CAMPANHA DO DANONE ACTIVIA

SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SEMIÓTICA PSICANALÍTICA – CLÍNICA DA CULTURA

SIDNEY GONÇALVES DE FREITAS

EMPRÉSTIMO DISCURSIVO NA CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA: ANÁLISE DA PRESENÇA DO DISCURSO CIENTÍFICO NA

CAMPANHA DO DANONE ACTIVIA

Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Semiótica Psicanalítica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Coordenador: Prof. Dr. Oscar Cesarotto.

Orientador Temático: Prof. Dr. Oscar Cesarotto.

SÃO PAULO 2008

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Joel G. de Freitas (1935-2007) e Nair Sellari de Freitas, que investiram em minha educação básica, formando meu caráter e estimulando minha vontade de saber mais. E a Igor Lima, meu eterno amigo e irmão, que, pelo espírito competitivo, tem me instigado constantemente a ser uma pessoa melhor.

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AGRADECIMENTOS

A todos que participaram direta ou indiretamente desse estudo, contribuindo

com informações, respondendo a perguntas ou simplesmente ouvindo atentamente

às discussões sobre o tema.

Às pessoas da agência Ogilvy que se prontificaram a fazer parte da

pesquisa. Especialmente a Leonardo Yabu, que enriqueceu o estudo com

referências pessoais, e a André Pontual, estimado colega, que cooperou ativamente

para o resultado final.

Também a Luciane Miyazaki, minha cunhada, e a Fábio Freitas, meu irmão,

ambos dispostos a responder aos testes aplicados.

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RESUMO

Estudo de observação do processo criativo do discurso publicitário, propondo a

existência da intertextualidade com discursos já convencionados socialmente. O

iogurte ACTIVIA foi escolhido como exemplo do discurso científico presente na

publicidade. A partir disso, propõe-se traçar um paralelo entre as formações criativas

na mente humana que cria o discurso publicitário para o produto e a compreensão

da mente e do comportamento de quem recebe essa criação.

Palavras-chave: Criação publicitária intertextualizada. Discurso publicitário. Empréstimo discursivo. Discurso científico e pseudocientífico. Formação da linguagem e da comunicação. Análise de logotipo e de roteiros de comerciais. Persuasão publicitária. Influência comportamental e social.

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ABSTRACT

Observing research of creative process in advertising speech proposing the

existence of borrowing of speeches already agreed socially. The yogurt ACTIVIA was

chosen as an example of scientific discourse in this advertising. After then, proposing

to trace a line between training in the creative human mind that creates the speech

advertising for the product to the understanding of the mind and behavior of those

who receive such creation.

Key-words: Creating advertising borrowing. Speech advertising. Loan Discursive. Scientific discourse and pseudo-scientific. Training of language and communication. Analysis of logo and commercial screenplays. Persuasive advertising. Behavioral and social influence.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 8 1 O DISCURSO PUBLICITÁRIO .............................................................................. 10

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO........................................................................................ 10 1.1.1 Definições ................................................................................................ 10

1.2 PRINCÍPIO DOS DISCURSOS................................................................................. 11 1.2.1 Discurso Coletivo .................................................................................... 13 1.2.2 Empréstimo Discursivo........................................................................... 15 1.2.2.1 Reconhecimento do Discurso .......................................................... 17

1.3 SIMBÓLICO NO DISCURSO PUBLICITÁRIO (SOCIAL) ............................................... 18 1.3.1 Imaginário no Discurso Publicitário (Individual) .................................. 21 1.3.2 Ideal no Discurso Publicitário ................................................................ 23

2 O DISCURSO CIENTÍFICO ................................................................................... 26 2.1 DISCURSO DO REAL ........................................................................................... 26

2.2 SIMBÓLICO DO DISCURSO CIENTÍFICO .................................................................. 27 2.3 IDEAL DO DISCURSO CIENTÍFICO.......................................................................... 29

3 ANÁLISE APLICADA AO CASO DO DANONE ACTIVIA .................................... 34 3.1 VALIDAÇÃO DO EMPRÉSTIMO DISCURSIVO ........................................................... 34

3.2 O PRODUTO PELO DISCURSO PUBLICITÁRIO PSEUDOCIENTÍFICO ........................... 34 3.2.1 Diferenças entre Pseudocientífico e Científico ..................................... 36

3.3 ANÁLISE DE TERMOS E IMAGENS PSEUDOCIENTÍFICOS .......................................... 39 3.4 RECONHECIMENTO DO EMPRÉSTIMO DISCURSIVO CIENTÍFICO NA PUBLICIDADE ...... 42

3.5 PESQUISA DE LEVANTAMENTO ............................................................................ 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 47 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 49

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INTRODUÇÃO

A criatividade na comunicação é o fundamento de toda agência de

publicidade. E, conhecendo a área de criação da Ogilvy Brasil1, uma das maiores

agências de publicidade do mundo, percebemos como a concepção do discurso

publicitário nasce da necessidade de diferenciar a estrutura clássica da

comunicação (emissor mensagem receptor) pela criatividade.

Foi nessa agência que observamos o método usado pelos “criativos” para

conceber o discurso publicitário, chamado de Brainstorm. Discutindo insights sobre

produtos e serviços, os “criativos” costumam aguardar que idéias originais de

comunicação “pipoquem” nas mentes ali reunidas.

Enxergamos nessa “técnica criativa” alguma relação com um possível

processo cognitivo da mente humana. E, logo, pensamos na possibilidade de que a

publicidade, apesar de todo dia parecer criar novos tipos de discursos para cada

produto, talvez não tenha um discurso original, sequer um discurso próprio.

Portanto, não havendo um discurso original e próprio, qual haveria, tendo

em vista essa função de comunicar?

Abelardo Barbosa (1917-1988), o Chacrinha, um dos maiores

comunicadores brasileiros, já dizia que “na televisão nada se cria, tudo se copia”.

Com essa máxima, ironicamente, ele mesmo copiava a teoria de conservação da

matéria de Lavoisier (1789), a qual diz que “na natureza nada se cria, nada se

perde, tudo se transforma”. Podemos repeti-la, mencionando que talvez isso caiba

perfeitamente para a publicidade.

1 Pesquisa de observação da área de criação efetuada de janeiro a março de 2008. OGILVY Brasil,

São Paulo. Av. das Nações Unidas, 5777.

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Então, surgiu a hipótese de que o discurso publicitário possa

deliberadamente tomar emprestados discursos sociais consagrados, como os da

arte, da política, da própria vida, etc. Em nosso estudo, vamos mostrar que a

comunicação criada para o iogurte Activia da Danone serve de exemplo de discurso

científico intertextualizado pelo discurso publicitário.

Pretendemos reconhecer o quanto esse empréstimo discursivo influenciaria

ou não o público. Também queremos saber por que a publicidade não poderia usar

um discurso próprio e, por isso, tem a necessidade desse empréstimo, e se o

consumidor aceita os símbolos sociais que a publicidade pensa criar – como

observado na agência OGILVY Brasil – como invenção da publicidade ou se os

identifica como subprodutos de empréstimos discursivos. E, ainda, quais os

símbolos e referentes sociais que a publicidade poderia inventar dentro da

comunicação, sendo suas criações produtos da mente humana.

A bem da verdade, pretendemos que os fundamentos desse estudo

proponham à publicidade maior consciência do uso de referentes discursivos

presentes em suas criações. Sobretudo, prevalece o desejo de esse estudo servir

como ensaio para uma futura “cartilha” de metodologia para a criação publicitária

baseada no plágio assumido dos símbolos sociais. E, com isso, quem sabe,

determinar um novo rumo para o discurso criativo publicitário.

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1 O DISCURSO PUBLICITÁRIO

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO

Roger Mucchielli, na obra Psicologia da Publicidade e Propaganda, cita um

possível nascimento da propaganda em 1597, ao ser concebida, pelo papa

Clemente VII, a Congregatio Propaganda Fide (Congregação para a Propagação da

Fé). Panfletos feitos durante as guerras religiosas alimentavam o sentimento popular

contra espanhóis, italianos, alemães e judeus (1978, p.4).

Mucchielli, além de considerá-los instrumentos político-religiosos repletos de

psicologia, usa-os como exemplo de pressão sobre os indivíduos para compartilhar

da ideologia católica, amostra do tipo de poder da publicidade na visão de alguns

autores.

Nesta estrutura pressionador-pressionado, Mucchielli vê nascer uma relação

falsa, sem originalidade discursiva. O que, para nós, serve como prévia do

empréstimo discursivo presente já na origem da publicidade.

No exemplo do autor, vemos a igreja propagando a fé por meio do discurso

político. Dessa forma, a publicidade nasceu siamesa da política, mas quem

despertou aquela xenofobia, a publicidade da igreja ou sua política?

1.1.1 Definições

David Victoroff (1972, p. 3) define a publicidade como uma técnica de

persuasão com o objetivo de despertar, aumentar, satisfazer o desejo por um objeto

ou serviço.

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Mucchielli (1978, p. 3) afirma que ela é a arte de persuadir que transforma

as opiniões e as atitudes por meio da comunicação. Ele diz que a publicidade existe

desde os primórdios da humanidade, quando começou a haver relações de troca

entre os homens, bem como persuasores e persuadidos.

Já Alexandra Guedes Pinto (1997, p. 1) resume a publicidade como um

discurso sedutor.

Essas são algumas definições do que pode ser considerada a publicidade,

sendo que persuasão e seus sinônimos estão presentes em todas. Esse será o

ponto de partida para entendermos o que a publicidade parecer ser e o que a

consideramos na realidade.

Entender se a publicidade persuade ou não os indivíduos é a questão-chave

em nossa hipótese de empréstimo discursivo. Para tal, precisamos conhecer a

criação do discurso no indivíduo calcada no desejo, na comunicação, nos símbolos,

na imagem, nas ideologias.

1.2 PRINCÍPIO DOS DISCURSOS

Baseamo-nos em Foucault para identificar o ser discursivo que há em nós

(2002, p. 2). Ele brinca dizendo como seria bom, toda vez ao falar, ter uma voz

interna tão antiga quanto ele. Essa voz diria tudo, mas sem que ninguém

percebesse que ele era apenas o canal por onde ela passa.

Realmente ouvir uma voz que interfira entre pensamento e fala não parece

muito lógico. Porém, acreditamos haver uma intervenção preexistente ao

pensamento e a fala. Só podemos pensar assim se concordarmos com Lacan (1953,

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p. 24) quando diz que o inconsciente é estruturado como a linguagem. E a chave

para entender as funções do eu se encontra nessa estrutura, a da linguagem.

Lacan determina que a formação da linguagem do indivíduo e sua interação

com o meio externo acontece por causa dos orifícios do corpo (1953, p. 25),

contrariando o princípio do prazer através desses orifícios, como afirmava Freud

(1911). Para Lacan, é romantismo achar que o sujeito só se conecta à realidade e à

latência da vida através da boca, do ânus e dos genitais.

Entretanto, sem a teoria do recalque original de Freud (1914), que diz que,

quando o sujeito nasce, diferentemente dos outros animais, sua sobrevivência

depende absolutamente do seu semelhante. E essa escolha de vida ou morte

determina o princípio da relação entre o nascido e o semelhante que optou por

ampará-lo.

Concordamos que esse pode ser o determinante para o nascido aceitar

receber toda a herança simbólica que Lacan diz ser transmitida ao seu inconsciente

pela relação nascido-semelhante amparador, como a vamos chamar.

O autor afirma que o semelhante amparador vai estruturando o inconsciente

do nascido a partir do acerto de cada resposta aos sinais de estímulo de vida

enviados pelo pequenino. Uma comunicação começa a se estabelecer a partir daí.

Quando o nascido chora, o semelhante amparador entende ser fome. Quando o

nascido grunhe, o outro interpreta ser a hora de defecar. E, assim, o pequenino

identifica no único interpretante de seus signos a chance de viver. A essa relação de

dependência, o nascido nutrirá uma espécie de gratidão eterna incondicional, o amor

(LACAN, 1953, p. 24).

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1.2.1 Discurso Coletivo

Antônio Godino Cabas, em Curso e Discurso na Obra de Jacques Lacan,

ilustra muita bem a função simbólica que ganha o alimento, usando o leite materno

como exemplo. Lacan (LACAN apud CABAS, 2005, p. 132) diz que o leite dado ao

filho pela mãe é denominado suporte. Além da função de alimentar, esse suporte

prestado tem função de simbolizar tal relação. Suporte não se trata apenas de

matéria. Ele aponta marcas orais, anais e genitais. São os elementos que

possibilitam o intercâmbio de alimentos, beijos, carícias, promessas, ordens,

negociações, etc. E tudo isso estrutura o inconsciente do bebê.

Baseados na teoria lacaniana, podemos considerar esses elementos como

os primeiros passos da comunicação na vida do indivíduo. Todo o legado de

símbolos que o sujeito recebe já vem determinado por outro sujeito e, antes desse,

por outro, e assim regressivamente. Exatamente como resume Cabas, concluindo

que o simbólico lacaniano se refere ao registro da cultura, de ordem coletiva, ao

passe e repasse das palavras (2005, p. 59-61).

A razão de precisarmos voltar tantos passos na mente do sujeito é para

encontrar o que consideramos a origem da linguagem. Por isso, podemos dizer que

ela aparece calcada no indivíduo como símbolo proveniente do senso comum muito

antes dele mesmo. E, para exemplificar, como análise de discurso, temos

especialmente as palavras, que já vêm predeterminadas de associações.

Não reconhecer os objetos aos quais as palavras estão associadas tem

conseqüências tão graves que, por uma desordem de linguagem assim, o sujeito

pode até ser banido de seu círculo social, tal como afirma Foucault: “Era por

intermédio das suas palavras que se reconhecia a loucura do louco” (2002, p. 6).

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O que Lacan mostra é que a palavra é a ponte entre o inconsciente do

indivíduo e o de seu semelhante. Exatamente como Foucault resume em seu

exemplo. Ou seja, um sujeito, por meio do outro, aprende o sentido de cada palavra

com a função de comunicar estímulos interiores (desejo, necessidade, etc.) ao seu

semelhante. E este, investido da crença de ser o realizador dos estímulos, não pode

falhar. Afinal, a palavra é o contrato que garante que um fará exatamente o que o

outro quer. Do contrário, se a leitura desse contrato fracassar, o culpado é anulado

imediatamente.

Cabas, analisando o discurso lacaniano (2005, p. 51-65), afirma que a

palavra é revestida de um duplo valor, em que, primeiro, ela é um símbolo, porque

rigorosamente sempre vai substituir uma coisa ou um objeto, e, depois, é algo

indefectivelmente estruturado pelos outros. O autor prossegue dizendo que a

palavra serve para separar a imagem do símbolo. Tem um papel de intermediação

entre a imagem e o que ela significa particularmente para nós, diferentemente da

relação que tem com a própria língua.

Até aqui analisamos o modo como acreditamos se formar a comunicação no

inconsciente do homem. Em síntese, todo conteúdo do cérebro humano, como

idéias, pensamentos, aprendizados, memórias, ensinamentos, criações, etc., segue

a estrutura da linguagem do contexto do indivíduo. Essa linguagem já é

retransmitida com sentidos próprios, significados convencionados, representações

estabelecidas, funções determinadas, papéis secionados, etc., tudo da ordem social.

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1.2.2 Empréstimo Discursivo

De acordo com o que vimos anteriormente, podemos dizer que o conteúdo

do cérebro humano é o legado de referências passado por nossos semelhantes. E a

criação publicitária, como produto da mente humana, estará fundamentada em

símbolos e referentes que o público possa identificar. Exatamente como afirma

Alexandra Guedes Pinto (1997, p. 27):

Se num primeiro momento tem lugar uma transação de sentido que faz com que certo signo ou conjunto de signos “emprestem” a sua significação a um determinado produto [...] na gramática visual do anúncio as duas entidades2 são representadas numa lógica de aposição que conduz a associação de que ambas possuem um sentido equivalente [...].

Ora, consideramos até aqui a palavra como um contrato de comunicação

entre os sujeitos. E vimos que sua função originária não era nada além de ser

simbólico-representativa. Mas o ser humano, com a capacidade de interpretar

segundo apelo e vontade própria, inseriu paralelamente uma função representativo-

intencional, a do discurso.

Assim, uma comunicação até pode parecer publicitária, mas pode também

seu discurso?

Cabas, analisando as teorias lacanianas, diz que, em primeiro lugar, um

sujeito se dirige para os códigos lingüísticos, toma dele determinados significantes e

é no uso desses significantes que pode produzir a mensagem: “Não pode haver

mensagem, se não houver código, assim como não há código se não em função da

mensagem. Isto não é teoria da língua, nem da fala, mas sim teoria do discurso”

(CABAS, 2005, p. 94).

2 A autora se refere a entidades como o signo emprestado e o signo “criado” do empréstimo.

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Para ele, só reconhecemos o sentido que o uso da língua pode ter porque a

língua preexiste ao homem como estrutura formalizada socialmente, enquanto a fala

é estruturada pela subjetividade do falante. O discurso está situado na interseção

entre a universalidade da língua e a subjetividade da fala.

A partir disso, cremos sempre haver em toda mensagem duas

interpretações subjacentes. A do sentido estrutural da língua, muitas vezes em

contraponto com o sentido subjetivo da fala, e a do sentido subjetivo da fala, sempre

em contrapartida ao sentido estrutural da língua. Foucault já dizia que, para termos o

atestado de falar a verdade, é necessário sempre obedecer às regras de uma

“polícia” discursiva que temos que reativar em todos os nossos discursos (2002, p.

21).

Com a publicidade, não pode ser diferente, pois sua função é a mesma que

da palavra: comunicar para informar a relação com o objeto. Um sujeito usa a

palavra embutindo significações simbólicas contrárias às determinadas pela língua,

e a publicidade atribui a seus objetos significações simbólicas contrárias ao que eles

são na verdade.

Acreditamos que no mecanismo dos discursos há uma lacuna que não pode

ser preenchida, como afirma Foucault, dizendo que o discurso tem um significado

para o seu emissor e outro para o seu receptor (2002, p. 30). Ele surge como

linguagem verbal, é recebido como leitura e termina como algo intermediário entre

ambos. Todo esse processo só ocorre no plano da língua, mas, quando tentam

colocar o discurso na ordem do significado, ele se anula.

Então, toda a simbologia que o discurso publicitário pensa criar depende

exclusivamente da significação dada ao produto. Porém, o sujeito atribui o símbolo

que ele bem entende, e não aquele que a publicidade quer.

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1.2.2.1 Reconhecimento do Discurso

O “leitor-virtual modelar” de Delbecque abre mais um precedente. O autor

acredita que o discurso publicitário tenha um público idealizado que coopera

totalmente com o enunciado da publicidade. Esse leitor é um “eu” construído,

manipulado, cooperante, um “eu” intradiscursivo que se pretende fundir com o “eu

real” ao qual a publicidade pensa se dirigir (DELBECQUE, 1990, p. 209).

Foucault argumenta que se o discurso chega a ter qualquer poder sobre seu

receptor é porque o próprio receptor atribuiu essa força a ele (2002, p. 3). É

justamente a razão pela qual o autor considera que o discurso esteja na ordem das

leis. E, ao surgir um discurso, já ficamos atentos se não desrespeitará as leis que o

regem. A partir disso, concedemos uma posição para ele. Um lugar que, ao mesmo

tempo em que o honra, também o fragiliza.

Já para Guedes, a publicidade se aproveita do fenômeno cognitivo da

formação da identidade, ou seja, a teoria lacaniana do estádio do espelho (1997, p.

33). Com essa afirmação, chegamos a imaginar que o sujeito seja ingenuamente

envolvido no discurso publicitário. Todavia, consideramos haver um leitor-real que

escolhe se enquadrar no papel do leitor-virtual modelar do discurso publicitário. É

uma escolha consciente, e não da identificação do ego estimulado pelos desejos

despertados pelo objeto da publicidade. Visto que, em seu discurso, a publicidade

usa os mesmos referentes discursivos que o sujeito já conhece e reconhece.

Foucault vai além, dizendo que o que está por trás dos discursos é sempre

o vínculo ao desejo e ao poder. Ele afirma que o discurso não é simplesmente aquilo

que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual se luta: o

poder do qual procuramos ser donos (2002, p. 5).

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Isso define, nessa pesquisa, a universalização do discurso. Enxergamos na

publicidade uma intenção de tornar seu discurso coletivo, razão pela qual

recorremos a Cabas (2005, p. 71, 77), em análise ao discurso lacaniano, que dá

uma definição mais abrangente do discurso como a realização individual de todo o

social que há na língua. Ele diz que todo discurso está organizado sobre um sistema

de duplo eixo: paradigma (associação) e sintagma (frase). E, devido a isso, não

pode haver símbolos universais porque estes são sempre relativos a esses dois

conceitos.

Para a publicidade conseguir efetivamente atingir um grande número de “eu”

dos indivíduos, seria necessário haver uma espécie de inconsciente social coletivo.

Ou seja, um grupo de indivíduos que dêem a determinados objetos a mesma

interpretação. Por exemplo, a palavra iogurte como um referente aos cuidados

maternos com a alimentação na infância de todos do grupo.

1.3 SIMBÓLICO NO DISCURSO PUBLICITÁRIO (SOCIAL)

Guedes Pinto (1997, p. 24, 25) diz que a publicidade consegue estabelecer

um significante para o outro por meio da identificação que o sujeito faz com o objeto

da publicidade. Esse significante começa a fazer parte da comunicação interpessoal

do sujeito, como lubrificação do processo cognitivo de categorização do outro. Ela

prossegue concluindo que a linguagem visual e verbal colocada na publicidade

pretende estabelecer uma via de comunicação direta com o subconsciente do

destinatário, o locus ideal, para atingir a preferência do sujeito pelo objeto.

Schoroder & Vestegaard (1988, p. 132-134) chegam a afirmar que, pela

análise da publicidade, é possível medir a ideologia popular. Para eles, a publicidade

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exerce tanto essa atração no sujeito que chega a criar um “universo paralelo” aos

signos existentes no inconsciente do indivíduo, um universo de referências e

experiências partilhadas.

Para os autores, isso se torna um tipo de “desejo coletivo” que pode ser

vivido socialmente, já que os desejos do inconsciente são podados pelo socius e

não podem ganhar uma experiência reconhecidamente universal. Esse poder da

publicidade não se origina de discursos isolados, mas, sim, do efeito cumulativo e do

próprio sistema de significação por trás de todo seu discurso. Uma estrutura

semântica alternativa que se engendra a ponto de se tornar verdadeiro motor da

influência na vida dos sujeitos.

Ou seja, para os três autores, a publicidade consegue, com sua linguagem e

símbolos, estruturar uma parte do inconsciente do sujeito. Entendemos assim que a

formação do desejo no indivíduo da publicidade é um estímulo externo.

Não desconsideramos essa afirmativa em nossa pesquisa. Mas, ainda

assim, não concordamos que a publicidade tenha a capacidade de penetrar no

verdadeiro inconsciente de um indivíduo. Por trás desse “despertar de desejo”

enxergamos o indivíduo reconhecendo os signos originários de seu próprio

inconsciente.

Portanto, voltamos a citar o que Cabas (2005, p. 45-46) define sobre o

desejo no discurso lacaniano. As formações do inconsciente têm uma ordem de

realidade indissociável da ordem social. O inconsciente é um efeito do discurso

social operando em relação a uma matéria-prima pura: nós mesmos enquanto

bebês. Os pais são considerados os representantes do discurso social. Eles moldam

essa matéria-prima pura por meio de propostas de identificação, exigências e

investimentos libidinais.

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Nessa teoria lacaniana, o desejo vem da presença de uma ausência, como

diz Cabas. Trata-se da presença da mãe no inconsciente do sujeito, quando este

sente sua ausência no campo dos objetos. E, para esse objeto ser o representante

simbólico dessa relação, é preciso a “morte” da mãe. Com isso, o desejo se torna o

suporte físico desse registro imaginário. Mas, na verdade, não é o desejo pela

matéria, e sim pela subjetividade das experiências que deixaram sinal marcante e

agora estão mortas. Exatamente como afirma Marcus do Rio Teixeira (1997, p. 78)

no artigo O Espectador Inocente:

O sujeito não acredita que o objeto de consumo venha realmente tapar a sua castração: ele deixa-se ludibriar, participando desse engodo de maneira análoga ao fetichista.

Tudo isso nos leva a crer que o inconsciente, de fato, venha a ser universal,

porque está moldado pela sociedade mediante os pais. Assim sendo, podemos

mesmo admitir a existência de inconsciente coletivo. O que, para nossa pesquisa,

somente reforça que as criações publicitárias, sendo produtos de mente pensante,

sempre buscarão referentes bem próximos para reativar tais símbolos.

Porém, como vimos anteriormente no duplo eixo da linguagem, em que

Cabas analisa o discurso lacaniano (eixo sintagmático e paradigmático), a regra na

estruturação do discurso é tão particular de indivíduo para indivíduo que um

determinado discurso nunca será suficientemente abrangente para universalizar-se.

Exatamente porque os símbolos já estão engessados pelo social, o sujeito abre uma

brecha para outros significados em seu imaginário particular. E, talvez aqui, a

publicidade tenha algum estímulo hipotético.

Para nós, fica evidente que a publicidade não consegue e jamais conseguirá

criar símbolos coletivos, incluindo um discurso na estruturação do pensamento do

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indivíduo como linguagem. Referimo-nos aos significados coletivos como função

materna, paterna, alimentação, amor, etc. Todavia, no imaginário do indivíduo,

talvez haja alguma possibilidade de transferência desses símbolos.

1.3.1 Imaginário no Discurso Publicitário (Individual)

Vik Muniz (2007, p. 1), um dos mais importantes artistas plásticos

contemporâneos e uma das maiores referências nas criações publicitárias,

menciona em sua autobiografia, uma frase de Foucault sobre a relação da palavra −

considerada nesta pesquisa o representante do simbólico social − com a imagem,

sugerindo que ambas desempenham papéis indissociáveis na mente humana:

Mas a relação da língua com a pintura é uma relação infinita, não que as palavras sejam imperfeitas, ou que, quando confrontadas com o visível, elas se mostrem insuficientes, tampouco podem ser reduzidas a outros termos: é inútil dizermos o que vemos; o que vemos nunca reside naquilo que dizemos; o espaço onde estes atingem seu esplendor não é aquele exposto por nossos olhos, mas aquele definido pelos elementos seqüenciais da sintaxe.

Citamos o artista porque, na atualidade, suas fotografias e obras são muito

copiadas nos anúncios publicitários do mundo todo, e sua principal característica é a

recriação de obras já consagradas usando materiais alternativos. Ele mesmo admite

a relação de suas criações com as referências mentais que adquiriu ao longo do

tempo:

As fotografias são criações do meu cérebro e não do olho. Sua linguagem esta mais em conformidade com as imagens mentais do que com puramente dados ópticos. O fotógrafo, quando tira o retrato de uma cena nova, está, enquanto move a câmera, em frente de sua cabeça, sublinearmente passando em revista um incrível arquivo de informações acerca das atitudes composicionais que acumulou durante uma vida inteira de exposições a dados visuais.

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O artista descreve o papel das referências em seu processo criativo. Nessa

pesquisa, consideramos a arte de Muniz uma leitura particular de seu imaginário

aplicada ao discurso da arte. Queremos sugerir, de certa forma, como o simbólico,

neste caso a arte, ganha nova significação no imaginário individual de cada sujeito.

Já dissemos que a palavra estrutura o cérebro pela linearidade da

linguagem, e isso concerne ao simbólico instaurado no sujeito. E quanto ao

imaginário?

Sobre isso, Cabas (2005, p. 33) diz que o fundamento de identificação da

presença do outro é o próprio olho. E a percepção da imagem instaura um registro

do imaginário. Portanto, quando se refere ao imaginário, logo diz respeito à imagem.

Entretanto, dizer respeito à imagem é falar diretamente de ilusão, haja vista que o

efeito de toda imagem é ilusório. É no cenário da imaginação que o sujeito figura a

pluralidade de suas fantasias multifacetadas.

Pelo discurso lacaniano do imaginário, Cabas (2005, p. 49) esclarece que os

fantasmas são uma representação da condição universal do homem. Mas, como o

sujeito se realiza em uma circunstância particular, eles se subjetivam. São ilusórios e

subjetivos; logo, estão no imaginário. E, como também são históricos e universais,

logo estão no simbólico.

Delbecque (1990, p. 204) faz uma comparação entre o processo cognitivo

da imaginação criativa e o processo de raciocínio lógico. Ele diz que o primeiro

diferencia-se do segundo agindo como uma espécie de “inteligência” intuitiva e

subconsciente, pela qual somos guiados e influenciados, como uma camada pré-

racional da mente − termo do autor − onde nossas tendências afetivas são ativadas.

Assim, ele estabelece que uma comunicação eficiente consegue ativar o mundo

imaginário do receptor.

Page 23: Publicidade nunca cria, só copia.

23

Porém, temos de concordar com Alexandra Guedes Pinto (1997, p. 30),

para quem o discurso publicitário, até ao menos receber a interação de seu receptor,

precisa ser dirigido aos indivíduos que compartilham da mesma ideologia. Na

explicação do termo “sujeitos ideológicos” da publicidade, criado pela autora,

encontrarmos o indivíduo, que, já inscrito na ideologia da publicidade, é o único

capaz de se tornar o receptor do discurso publicitário, decodificando, assim, as

referências ativadas nele, de modo a cumprir sua parte na construção de significado

para o mesmo. A ideologia subjacente ao uso de referências discursivas é

comumente explorada nesse processo de simbolização.

1.3.2 Ideal no Discurso Publicitário

Recorremos a Chauí (2007, p. 15-31), que nos ajudará a entender a

ideologia inserida no imaginário social moderno. Ela diz que o discurso ideológico

anula a diferença entre o pensar, o dizer e o ser, engendrando uma lógica de

identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para obter o

reconhecimento de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular

universalizada. Com esse propósito, surge um discurso que não pode ser

preenchido, ou seja, vazio.

Para a autora, os campos da ideologia e os do imaginário são um só, no

sentido de regras e sistema de imagens ou representações tidas como capazes de

explicar e justificar a realidade concreta. Para nós, isso se assemelha ao simbólico

ao qual Lacan diz estruturar-se a ordem social.

Ela menciona uma inversão na finalidade da idéia. Parece que a idealização

opõe-se à realização. Entretanto, o real sempre antecede as idéias. Estas deveriam

Page 24: Publicidade nunca cria, só copia.

24

estar nos sujeitos sociais e em suas relações, mas, na ideologia, os sujeitos sociais

e suas relações é que parecem estar nas idéias.

Entendemos que Chauí assume a idéia como parte integrante do imaginário

e que um discurso do imaginário pode realizar-se como um discurso ideológico.

Sobretudo, o abismo entre imaginação e realidade faz com que o discurso ideológico

seja sempre reticente. Compete a cada indivíduo preenchê-lo à sua maneira

particular, o que não é permitido em discursos considerados completos, sem

respostas a preencher. A ciência é o exemplo de discurso pleno, espelho do real.

São de representantes simbólicos consagrados como este que a publicidade

procura remeter os sujeitos de sua ideologia discursiva. O discurso emprestado

preexistente no simbólico (social) torna-se uma barragem para realização do

discurso publicitário. Resta, então, realizar-se no ideológico (imaginário).

Segundo Williamson (1994, p. 51), a publicidade estrutura sua significação

em regras de “anterioridade”, as quais lhe garantem a legitimidade discursiva.

Desse modo, a todas as lacunas existentes na ideologia discursiva

publicitária a própria publicidade procura responder, com a inquestionabilidade dos

outros discursos.

Exatamente como fala Ciro Marcondes Filho (1988, p. 36-37): a publicidade

não cria necessidades artificiais, ela se apropria e desvirtua os desejos originais do

homem. Para ele, os objetos da publicidade são representantes da lembrança feliz

da primeira infância.

Guedes Pinto apud F. I. Fonseca (1992, p. 26) assume essa

intertextualidade como uma estratégia para dar credibilidade ao discurso publicitário.

A pessoa por trás do discurso, quando recorre a uma referência do registro cultural,

Page 25: Publicidade nunca cria, só copia.

25

evidencia sua inserção em determinada sociedade, partilhando uma espécie de

memória coletiva.

Judith Williamson (1994, p. 167), no termo “sistema de significação

publicitário”, define uma fórmula discursiva para a publicidade. Funciona como um

sistema resgatador de formas, padrões, estruturas e mitos sociais já implantados no

arquivo memorial dos indivíduos. A publicidade propõe a cooperação do sujeito na

interpretação dos signos desse sistema de significação.

Guedes Pinto (1997, p. 126) diz que a argumentação real em que o objeto

deveria basear seu discurso para convencer o público transformou-se em

argumentação imagética recorrendo a celebridades como agentes de validação das

propriedades do produto, apelando a autoridades da ciência e usando vocabulários

e siglas “pseudocientíficas” à procura de legitimar a natureza do objeto.

Page 26: Publicidade nunca cria, só copia.

26

2 O DISCURSO CIENTÍFICO

2.1 DISCURSO DO REAL

Para exemplificar o discurso publicitário emprestando o referencial de outros

discursos como proposta de criação de um novo discurso, escolhemos analisar a

campanha publicitária do iogurte ACTIVIA, da DANONE. Nesse exemplo,

percebemos que o discurso emprestado, para tentar criar um novo referente ao

público, é o discurso competente da ciência. Vamos identificar nessta análise as

siglas “pseudocientíficas”, os vocábulos para os diagnósticos prometidos na

campanha, entre outros termos e signos que competem à ciência.

Foucault, quando analisa a ordem dos discursos, descreve o modo pelo qual

um discurso pode se tornar reconhecidamente competente. É por meio da repetição

que a sociedade qualifica a competência de um discurso, quando este respeita a

estrutura do diálogo, da interrogação, da recitação e ocupa seu posto exato para

formular certo tipo de enunciado. O rito fixa as palavras e seu efeito sobre aqueles

aos quais são direcionados os limites de um valor “constrangedor”.

Essa repetição de que fala Foucault é a incessante busca pelo real como

vemos no artigo o Espectador Inocente, de Teixeira (1997, p. 77) em que se diz que

“o discurso científico não é regido por nenhuma outra ética senão a do domínio

progressivo sobre o real e o avanço ininterrupto do saber”.

A verdade nua, que está além do simbólico e do imaginário lacanianos, é o

que situa o próprio sujeito ao domínio do saber. Uma vez exposta sua incapacidade

de saber, o sujeito está vulnerável a aceitar todo símbolo que lhe seja apresentado,

como quando na origem da estruturação de seu inconsciente pela linguagem.

Page 27: Publicidade nunca cria, só copia.

27

Foucault prossegue definindo que, por trás do discurso científico, a respeito

de cada uma de suas descobertas, haja talvez uma intenção pelo surgimento de

novas formas de vontade pela verdade. O autor categoriza o discurso em três

sistemas de exclusão, sendo o primeiro a palavra, o segundo a partilha da loucura e

o terceiro, e mais importante para nossa pesquisa, a vontade pela verdade. Os dois

primeiros vão de encontro ao terceiro, porque durante muito tempo este pretende

tomar os outros para modificá-los, transformá-los. Quanto mais frágeis e vulneráveis

se tornam, mais fortalecido e incontestável ele fica.

2.2 SIMBÓLICO DO DISCURSO CIENTÍFICO

Analisando o discurso da verdade – o que para nós é o mesmo que a ciência

quer ser −, Foucault admite que desde os filósofos gregos esse tipo de discurso não

responde mais somente ao desejo do indivíduo ou à vontade dos que dominam. Para

o autor, o discurso verdadeiro põe em questão o que ele busca realmente: o poder só

para ele.

E é desse poder que Marilena Chauí (2007, p. 17) fala quando analisa a

historicidade do discurso competente e cita a teoria da física de Galileu, que colocava

em dúvida conceitos usados como discurso verdadeiro que contribuíam para a

dominação político-religiosa na Idade Média. Isso mostra que o interesse por trás da

partilha social do saber científico dependia das classes dominantes medievais.

Mais tarde, quando a burguesia sobe ao poder e acha, nessa teoria, resposta

plausível para continuar exercitando sua prática econômica, deixa de lado a crença

no antigo discurso científico sustentando pela Igreja.

Page 28: Publicidade nunca cria, só copia.

28

Foucault (2002, p. 16) reforça o que diz a autora sobre o discurso

reconhecidamente competente. Para ele, na Idade Média, o poder para o discurso

científico ter verdadeiro valor, necessariamente, tinha de estar nas mãos de um autor.

Mas, em meados do século XVIII, o discurso científico perde importância, tornando-

se não mais que o nome de um teorema, um efeito, um termo ou uma síndroma.

O termo “discurso competente”, sinônimo para a ciência que usamos nesta

pesquisa, tomamos emprestado de Chauí (2007, p. 19). A autora, ao dizer que o

discurso competente é emitido, transmitido e recebido como verdadeiro ou garantido

porque não se restringe mais a lugar e tempo específicos – uma espécie de

universalização, semelhante ao que diz Cabas –, determina o conceito que melhor

sustenta os critérios que consideramos “pseudocientíficos” na campanha publicitária

do iogurte ACTIVIA, da DANONE.

Livre de tempo e espaço, o discurso científico nunca será contraditório no

mundo que cultua patologicamente a cientificidade, como diz a autora. Ou seja, nada

do que a ciência disser poderá ser usada contra si mesma, justamente porque é a

única a buscar a verdade.

Mas Chauí salienta que o discurso competente confunde-se facilmente com o

discurso instituído, que ela define como a linguagem institucionalmente permitida ou

valorizada, um discurso em que o sujeito que fala foi reconhecidamente autorizado a

falar, garantindo o direito de discutir, em circunstâncias predefinidas, tudo que tiver

relação com esse discurso ao qual ficou incumbido de proteger. Assim, os padrões

desse discurso (conteúdo e forma) já foram autorizados segundo as convenções de

seu próprio círculo institucional.

Essa diferença de que fala Chauí serve para apontarmos que, também na

ciência, bem como na publicidade, a significação aplicada aos discursos talvez seja

Page 29: Publicidade nunca cria, só copia.

29

de sobreposição, razão pela qual o real pode ser confundido com a ciência, que pode

misturar-se com a publicidade e assim por diante, estabelecendo os empréstimos

discursivos e toda sua carga de simbolização. Mas, de acordo com o que abordamos

ao longo desta pesquisa, no caso da publicidade, não descartamos a possibilidade de

o sujeito por trás do discurso não ser o responsável pelo jogo de sentidos dado a ela.

Como diz Chauí (2007, p. 22): “Essa primeira modalidade da competência é

aquela submetida à norma restritiva do ‘não é qualquer um que pode dizer a qualquer

outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância’.”

Portanto, não é o ACTIVIA que deve oferecer cura a uma disfunção

patológica, proposta em seu discurso. Mas, sim, única e exclusivamente, o

especialista, que está autorizado para tal. E ele também tem a oferecer objetos

próprios para o desejo do sujeito.

2.3 IDEAL DO DISCURSO CIENTÍFICO

Chauí, em toda a sua filosofia, dá o fio condutor para nossa pesquisa; por

isso, diz que o discurso do especialista, emitido de uma determinada escala da

hierarquia organizacional, é dirigido aos níveis abaixo daquele que fala e, como

conhecimento instituído – termo da autora −, tem a função de dissimular a existência

real da dominação usando a capa da cientificidade. E isso somente dá certo pela

incompetência dos indivíduos com relação a esse conhecimento.

Desse modo, na disputa do conhecimento, quem sabe mais domina. E quem

não sabe vê-se constrangido pela falta de argumentação, aceitando naturalmente a

sujeição.

Page 30: Publicidade nunca cria, só copia.

30

Em nossa pesquisa, vemos a campanha publicitária do ACTIVIA como

produto de comunicação criado pela mente humana. Assim, quem a criou

reconheceu e relembrou o “constrangimento do não-saber científico” e viu a

necessidade de aplicar a hierarquia discursiva da ciência.

Segundo Guedes Pinto apud Louis Althusser (1997, p. 30), a construção

ideológica do indivíduo é um fato inevitável, que só pode ser conhecido e

desmontado na sua inteireza pelo conhecimento científico, único discurso capaz de

romper com as estruturas da ideologia.

Para Foucault (2002, p. 22), a autonomia de um discurso é inapropriável;

ninguém ingressa em determinada cadeia discursiva sem a qualificação de saber

dominar esse discurso e sem obedecer às leis específicas que regem sua

organização. O discurso não é vulnerável, podendo ser penetrado quando bem se

entende. Para vir a ser o que é, foi necessário vedar todas as possíveis brechas.

Chauí (2007, p. 24), concordando com Claude Lefort, faz referência à

cientificidade das relações na sociedade atual, em que o homem lida com seu

trabalho por intermédio do discurso tecnológico, com seu desejo mediado pelo

discurso da sexologia, com a alimentação pelo discurso dietético, a relacionar-se com

criança pela pedagogia e pediatria, com a natureza, pela ecologia. Para interagir com

sua vida, seu corpo, o meio ambiente, seus semelhantes, etc., existem incontáveis

modelos científicos que substituem a condição natural humana, a verdade de sua

própria existência.

Esses milhares de modelos do conhecimento sempre revelam a realidade

antes que todo mundo, fator que causa constrangimento ao resto, forçando-os a se

submeter à linguagem do especialista detentor da realidade descoberta.

Page 31: Publicidade nunca cria, só copia.

31

Ocorre que não é a dominação instintiva do mais forte resultando na

subsistência do mais fraco. É uma ameaça subjetiva que põe em risco o convívio

com seus semelhantes. Não é apenas uma questão de obedecer ao discurso, a

agravante é não decorar suas leis e interiorizá-las, atentando contra a

autocompetência da própria sobrevivência. Em outras palavras, a ausência do

conhecimento pode levar à “morte” do sujeito em sua sociedade.

Chauí (2007, p. 25) conclui que a “cultura desenfreada do saber” serve

somente para mostrar que por trás desse fantasma coletivo do conhecimento está o

poder daqueles autorizados pela organização discursiva competente a deter, a

controlar e a escolher dividir o saber.

Para a autora, a ciência é o trabalho da dominação, justamente porque o

propósito da ciência nunca foi falar sobre o real, mas, sim, sobre construções

supostamente reais. Mas o artificialismo da ciência, presente nas comunicações de

massas, na informação, etc., vai revelar a realidade da ideologia contemporânea.

Cada vez que a ciência “bate o martelo”, a ideologia do mundo

contemporâneo a consagra como única detentora do saber sobre o real. Cremos e

agradecemos a ela por acreditar que o real é racional e transparente. E, para

alcançá-lo em toda a sua plenitude, basta aprimorar os procedimentos científicos,

melhorar as metodologias, melhorar o aparelhamento tecnológico.

No início desta pesquisa, citamos a congregação de propaganda fide de

Mucchielle, que sugestiona uma possível “prova” da tradição histórica da publicidade.

Isso data do período em que a dominação era exercida pela Igreja. Entretanto, se

analisarmos o que Chauí (2007, p. 43-45) fala sobre a crença investida na ciência

pela ideologia contemporânea, quase um fanatismo religioso, podemos pensar que

não houve nada além do deslocamento da igreja para a ciência.

Page 32: Publicidade nunca cria, só copia.

32

Por isso, a autora não acredita que enxergar o real como racional sirva de

ideologia. A racionalidade é determinação da própria ciência. E esta quer confundir-

se com seu próprio discurso ideológico, o do saber, pois tudo que foi dito como

ideologia foi construído por si mesma enquanto ciência.

Rousseau (2008, p. 27) diz que a cultura das ciências já era prejudicial aos

atributos de um guerreiro, mas, com relação às qualidades morais, era ainda pior.

Chauí (2007, p. 60) argumenta que o status do conhecimento é usado para

disfarçar o poder, por meio da crença na competência. É o que divide cultura

dominante − do saber − de cultura dominada − não saber. Os que dominam estão

amparados pelo saber universal, isso oculta seu papel de dominador. Já os

dominados, calcados na ignorância, são conduzidos a pensar que sua condição de

não-conhecimento é razão suficiente para se sujeitarem. A dominação como

instrumento do dominador é irracional – falsa, ocultada. Mas, como consentimento do

dominado, é racional – verdadeira, transparente.

Para nós, foi fundamental saber reconhecer quem está por trás dos discursos

abordados nessa pesquisa. Na publicidade, é muito evidente, até mesmo para o

consumidor, reconhecer as empresas, corporações, instituições, fabricantes, etc.

como autores do discurso. Por mais ocultas que pareçam as intenções, o consumidor

não passa por constrangimentos e dominações semelhantes aos do discurso

científico.

Mas, pela ideologia contemporânea da cientificidade de Chauí, podemos

entender o tamanho da credibilidade que a ciência tem para a sociedade

contemporânea. Apoiar-se nisso − como pretendemos mostrar no discurso

publicitário do iogurte ACTIVIA − não é apenas uma questão de tomar emprestado os

significantes que entrelaçam essa teia discursiva, é uma tentativa de inversão dos

Page 33: Publicidade nunca cria, só copia.

33

papéis do imaginário, onde a publicidade pode atuar, com os da realidade, onde se

supõem estar à ciência.

Page 34: Publicidade nunca cria, só copia.

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3 ANÁLISE APLICADA AO CASO DO DANONE ACTIVIA

3.1 VALIDAÇÃO DO EMPRÉSTIMO DISCURSIVO

Schoroder e Vestegaard (1989, p. 62) dizem que percebemos a publicidade

buscando a credibilidade do discurso do outro quando citam o exemplo de um

anúncio fingindo não ser anúncio, mas parasitando outros tipos de texto. Essa é uma

das diversas estratégias de credibilização que o texto publicitário procura para

legitimar a natureza ou ideais sociais de um período que aprendemos a reconhecer.

Portanto, dar a palavra à ciência, a um cientista, a um paciente que

testemunha a experiência de cura por meio do produto é da própria natureza da

comunicação. Guedes Pinto (1997, p. 42) apud F. I. Fonseca (1992) e Wenrich (1984,

127-141) dizem que, quando evocamos uma narrativa, estamos ativando uma das

mais primitivas necessidades das atividades lingüístico-cognitivas do homem.

3.2 O PRODUTO PELO DISCURSO PUBLICITÁRIO PSEUDOCIENTÍFICO

Não tivemos acesso às qualidades reais do produto para as confrontarmos

com as qualidades imagéticas criadas pela publicidade. Dessa maneira, vamos

trabalhar com as informações obtidas pelos canais de comunicação nos quais o

produto foi divulgado durante o período em que pesquisamos.

A definição encontrada é a de que ACTIVIA é uma linha de produtos lácteos

desenvolvida pela DANONE desde 1987. Contém uma cultura probiótica exclusiva

para ajudar a regular o trânsito intestinal. Chegou ao Brasil em 2004.

Page 35: Publicidade nunca cria, só copia.

35

Não vamos verificar o real funcionamento do produto, muito menos a causa

patológica da qual surgiu o produto. Nem mesmo procurar soluções biológicas para o

problema.

Pretendemos analisar a comunicação criada para falar do produto. Isso

engloba embalagem, logotipo, expressões, todo tipo de suporte visual, lingüístico,

simbólico e social presente no discurso publicitário da DANONE.

No site do ACTIVIA (DANONE, 2008), encontramos um conteúdo extenso,

que apresenta nuances muito perceptíveis do discurso científico. A começar pela

descrição do processo digestivo no organismo humano.

O processo de digestão inicia-se ainda na boca, com a mastigação, quando o alimento mistura-se à saliva. Após ser engolido, segue em direção ao estômago e nele é atacado pelo suco gástrico, que transforma tudo aquilo que comemos em um tipo de bolo. Após passar pelo estômago, o alimento segue em direção ao intestino delgado, juntando-se à bílis, que contribui com a digestão das gorduras. Sob a ação do suco pancreático, os amidos e o açúcar são dissolvidos. Este processo ainda continua no intestino delgado, enquanto a massa formada percorre por ele. Nesta fase, substâncias importantes e vitais para nosso organismo são absorvidas pela corrente sanguínea. As sobras seguem para o intestino grosso e são evacuadas do corpo na forma de fezes.

A princípio, pudemos analisar, por trás dos textos e conteúdos do site, um

pouco da cultura da cientificidade de que fala Chauí. A realidade apresentada sobre o

processo digestivo, nesse caso, apresenta-se como o descritivo do real que acontece

dentro do nosso organismo. Esse é um fato apresentado pela ciência, retransmitido

para os indivíduos em seu período de alfabetização e perpetuado pela sociedade

como a verdade da natureza humana até que a própria ciência, detentora de todo o

conhecimento, apresente novos dados sobre isso.

Page 36: Publicidade nunca cria, só copia.

36

3.2.1 Diferenças entre Pseudocientífico e Científico

No discurso publicitário da DANONE, como vamos perceber adiante, o

produto ACTIVIA quer ser o “remédio para a cura de uma doença”, e não sabemos

ao certo a gravidade real do problema. A ciência diz que devemos defecar

diariamente, entretanto não nos aprofundaremos nas razões biológicas, tampouco,

fisiológicas para constatar a verdade desse fato. Esse é um conhecimento de

domínio público alimentado por este mesmo. É disso que se apropria o discurso

publicitário de ACTIVIA no primeiro exemplo do site (Idem, 2008).

Os sintomas do intestino preguiçoso são aumento ou inchaço da barriga, fezes duras e a sensação contínua de vontade de evacuar, mesmo após tê-lo feito. A diferença entre trânsito intestinal lento e constipação é que o trânsito intestinal lento não é patológico: refere-se a um tempo de trânsito mais lento que o normal, levando entre 48 e 72 horas.

Vejamos: Então, não se trata de constipação, mas, sim, de trânsito intestinal

lento. Segundo o artigo de Lenita Wannmacher (PORTAL DA SAÚDE, 2008), o

discurso científico do século XIX dizia haver a “auto-intoxicação intestinal” que

atribuía o “envenenamento” à retenção dos próprios resíduos. Entretanto, atualmente,

segundo os critérios ROME II, são considerados casos de constipação intestinal, em

adultos, somente aqueles que ocorreram duas ou mais vezes por, no mínimo, 12

semanas nos últimos 12 meses, com dificuldade de evacuação em, no mínimo, 25%

das vezes, com fezes ressequidas ou muito duras em, no mínimo, 25% das vezes,

sensação de evacuação incompleta em, no mínimo, 25% das vezes, sensação de

obstrução ano-retal ou bloqueio em, no mínimo, 25% das vezes, manobras manuais

para facilitar em, no mínimo, 25% das vezes e menos de três evacuações por

semana.

Page 37: Publicidade nunca cria, só copia.

37

Pela ciência, através de Wannmacher, o termo exato para “Trânsito Intestinal

de ACTIVIA” seria Trânsito Colônito. E é o tempo desse trânsito que, correspondendo

aos critérios do ROME II, caracteriza um caso de constipação. Lentidão, para

ACTIVIA, é o mesmo que para o ROME II?

Assim, para combater uma patologia, é necessário saber as causas, e, para

Wannmacher (Idem, 2008), a constipação pode ter várias origens.

Em adultos, a constipação associa-se a outras co-morbidades (doenças neurológicas, psiquiátricas, proctológicas, endócrinas e metabólicas) e ao uso de muitos medicamentos com propriedades anticolinérgicas (opióides, antidepressivos, diuréticos, anti-histamínicos, antiparkinsonianos, benzodiazepínicos, corticosteróides, fenotiazinas, propranolol, sais de ferro e laxativos em uso crônico que produzem o cólon catártico, isto é, aquele que funciona só à base de laxativos). Histórias de abuso sexual, inatividade física, educação limitada, baixo nível econômico e sintomas de depressão são consideradas fatores de risco para constipação.

Apenas para concordar que as causas de uma patologia são inúmeras,

voltemos a Cabas, que cita o funcionamento da organização anal das pulsões,

citando o caso Schreber (FREUD, 1903):

No caso Schreber, podemos notar como as pulsões que o regem são eminentemente anais, mas articulando-se em uma identificação feminina mediante o fantasma de transformação do próprio corpo em relação a um objeto: Deus, em conivência com o Dr. Flechsig. Uma das dificuldades mais sérias que encontra o magistrado Schreber é a de defecar... mediante ao seguinte diálogo com Deus:

Deus: Dr. Schreber, por que você não defeca?

Schreber: Porque sou demasiado tolo. Porque, cada vez que vou defecar, expulso a matéria fecal, mas acontece que imediatamente empurro de novo, sujando-me as nádegas. É por isso que sou tão tolo que não posso defecar.

Como dissemos anteriormente, não queremos apontar causas nem a cura do

problema, queremos somente mostrar as falácias do especialista com relação à

Page 38: Publicidade nunca cria, só copia.

38

conjunção de saberes sobre um “estudo”, bem como o discurso publicitário do

ACTIVIA encontrando lacunas nessas falácias. Assim, até que a ciência reveja fatos

em seu discurso, os “conceitos pseudocientíficos da publicidade” incluem-se

automaticamente na realidade de saberes determinados pela própria ciência.

É por essa razão que encontramos na comunicação do site de ACTIVIA

salvaguardas carregadas da mesma significação da credibilidade dada aos esforços

constantes da ciência em busca do conhecimento. Esforços estes que se tornaram

conhecidos e compartilhados no imaginário coletivo e, por isso, garantem a

indubitabilidade de termos como “comprovada cientificamente”, “pesquisadores”,

“testada clinicamente”, “aprovado”, etc.

Figura 1: Presença do empréstimo discursivo científico

O discurso publicitário de ACTIVIA assume a autoria da criação de uma

bactéria que ajuda no funcionamento e regularização do intestino. A sociedade

científica e toda a sua inquestionabilidade são cúmplices dessa invenção, por isso,

consumir o produto é garantia de cura. Do contrário, a DANONE devolve o dinheiro,

dupla garantia do funcionamento.

O ACTIVIA se considera um alimento probiótico ou funcional, como vimos

antes, no site, porque possui essa bactéria “do bem” em sua composição química,

Page 39: Publicidade nunca cria, só copia.

39

pertencente aos principais probióticos usados nos alimentos, das famílias de

bactérias Lactobacillus, Bifidobacterium e Streptococcus.

Todavia, atentemos para a estruturação do nome publicitário do bacilo de

ACTIVIA, cientificamente chamado de Bífidobacterium Animalis DN173010.

3.3 ANÁLISE DE TERMOS E IMAGENS PSEUDOCIENTÍFICOS

Bacilo DanRegularis, prefixo DAN, de DANONE, mais o radical REGULAR do

próprio verbo e o sufixo IS. Apesar de a DANONE não ser especialista no assunto,

assinar a invenção de uma bactéria benéfica à saúde e dar o nome pseudocientífico

disso insere-a no círculo reconhecidamente competente nesse discurso.

Portanto, no logotipo do ACTIVIA, primeiro elemento da comunicação que

aplicamos nosso estudo, reconhecemos a intencionalidade do posicionamento do

termo DanRegularis entre o logo da DANONE e do próprio ACTIVIA. O que significa

não se tratar de um iogurte qualquer, mas sim do alimento funcional que contém o

agente curador acreditado pela ciência.

Além disso, no logotipo, pudemos identificar figuras, o que, em nossa

pesquisa,consideramos elementos que representam o conteúdo cerebral estruturado

pela linguagem. Exemplos como a letra “i” com uma circunferência aplicada

proporcionalmente às medidas de uma cabeça no corpo, formando um humanóide.

Page 40: Publicidade nunca cria, só copia.

40

Já nos filmes de ACTIVIA, notamos a presença declarada do discurso

científico, remissão direta a laboratórios médicos por meio da imagem em raios-X,

que diagnostica tanto a patologia quanto o processo de tratamento e cura.

Figura 2: Análise da logotipia

Minipontos, que simbolizam os bacilos, simetricamente organizados

(regulados) formam a seta que indica o sentido da evacuação. E mais, conforme

ilustração:

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41

Figura 3: Raio-X

Page 42: Publicidade nunca cria, só copia.

42

3.4 RECONHECIMENTO DO EMPRÉSTIMO DISCURSIVO CIENTÍFICO NA PUBLICIDADE

A campanha publicitária do DANONE ACTIVIA foi, em sua maioria, no

primeiro semestre de 2008. Por isso, analisaremos roteiros que mostrarão a

influência do discurso científico.

No exemplo a seguir, notamos a presença do “constrangimento ocasionado

pela ciência”, de Chauí. No comercial, a apresentadora apóia seu discurso em um

dado científico. Em seguida, diz que milhões de pessoas já sabem daquilo,

intimidando, com a própria ignorância, aqueles que não o sabem.

Figura 4: Comercial 1

Page 43: Publicidade nunca cria, só copia.

43

No próximo roteiro, conseguimos perceber o discurso científico um pouco

mais ocultado que no exemplo anterior. Entretanto, por meio de um “pseudopaciente”

relatando o sucesso no tratamento com o “remédio”, fica evidente o quanto ser

ignorante pode autoprejudicar os desinformados. Neste caso, o “constrangimento” é

ainda maior, porque, com sua ignorância, o paciente colocou em risco à própria

saúde.

F

igura 5: Comercial 2
Page 44: Publicidade nunca cria, só copia.

44

O terceiro comercial é um apanhado dos demais e reúne todos os

públicos ao qual o produto parece ser destinado. Além dos elementos científicos e

testemunhais já encontrados, podemos evidenciar o que dissemos sobre a análise do

logotipo de ACTIVIA, em que identificamos, na figura, as promessas sobre o que o

produto pode trazer, como liberdade, leveza, bom humor, etc.

Figura 6: Comercial 3

Page 45: Publicidade nunca cria, só copia.

45

3.5 PESQUISA DE LEVANTAMENTO

Sendo as análises dos comerciais insuficientes para embasar definitivamente

nosso estudo − apesar de o apoio teórico mostrar um fio condutor bastante seguro,

porém não-determinante −, sentimos a necessidade de aplicar uma pesquisa que

pudesse apontar nuances do reconhecimento do discurso científico no discurso

publicitário do produto, por parte do público.

Todavia, apesar dos esforços para conseguir informações, junto à própria

DANONE, que ajudassem a delimitar o perfil real do público de ACTIVIA, não

obtivemos um resultado favorável. Até a tabulação dos dados, não houve retorno da

empresa.

Logo, procuramos elaborar, mesmo assim, uma pesquisa pré-teste

quantitativa que servirá, ao menos, de base para formular questionários mais

concisos em futuros estudos.

Elaboramos um questionário objetivo com 20 perguntas alternativas e uma

questão aberta. Não fizemos entrevistas in loco.

Encaminhamos o questionário a um banco de dados composto por 100

pessoas. Ambos com idades entre 20 e 50 anos. Cem por cento possuía nível

superior.

O primeiro filtro era que respondessem ao questionário somente as pessoas

que experimentaram o produto. Obtivemos 65% das respostas de mulheres e 35% de

homens.

Admitiram demorar mais de dois dias para evacuar 75% das pessoas.

Entretanto, somente 55% tinham alterações de comportamento devido a isso. Metade

(50%) não procurou alternativa para o problema, apesar de 65% terem o hábito de

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consultar mais de uma opinião médica. O uso de laxativos foi negado por 90% dos

participantes, ainda que 65% admitam automedicar-se.

Sabiam definir a palavra bacilo 65% das pessoas. Porém, quando

questionadas sobre alimentos probióticos, mais de 85% desse montante não

souberam definir.

Chegaram ao ACTIVIA por comercial de televisão 90% das pessoas. Pela

indicação de amigos foram 5%, e anúncio de revista, 5%.

No momento em que o produto foi apresentado, 50% das pessoas duvidaram

de sua eficácia. Entretanto 45% sentiram vontade de experimentar no ato.

Ao consumir o produto pela primeira vez, 80% não conferiram a fórmula nem

os ingredientes. Fizeram o desafio ACTIVIA 30% das pessoas. Todavia, 0% admitiu

pedir o dinheiro de volta.

O termo bacilo DanRegularis, em 25% das respostas, foi associado aos

lactobacilos vivos do produto Yakult, da Kazei Shirota. Ao próprio ACTIVIA e à

DANONE, foram 25%. Sinônimos ligados à palavra regular, 10%. Microrganismos

funcionais, 15%. Diarréia e efeitos laxativos, 5%. E o restante, a respostas diversas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não ocultamos o fato de que o caso do iogurte ACTIVIA, da DANONE, objeto

deste estudo, foi um exemplo bastante óbvio de empréstimo discursivo da

publicidade. A intertextualidade da ciência está evidente tanto na natureza do produto

quanto no discurso criado para vendê-lo.

Contudo, estamos confiantes de que, ao analisarmos quaisquer outras

campanhas publicitárias, encontraremos, implícita ou explicitamente, vestígios do

empréstimo copiado, disfarçado, plagiado ou assumido de outros discursos.

Não encontramos literaturas científicas suficientes sobre o discurso

publicitário para contrapor nossa afirmativa, apesar de acreditarmos que a

publicidade tenha um papel participativo no imaginário coletivo contemporâneo.

Isso posto, não nos compete concluir qual seria o discurso próprio da

publicidade atuante no real do sujeito. Todavia, podemos, sim, admitir onde ela não

atua.

Ela não cria novos tipos de discursos; não determina símbolos individuais

nem coletivos; não seciona grupos sociais; não opera no desejo do sujeito. E, se há

alguma dessas intervenções no indivíduo-alvo da publicidade, é devido ao

reconhecimento do discurso emprestado.

Como observamos no questionário pré-teste, 65% das pessoas sabiam o que

era bacilo – discurso científico do ensino fundamental –, mas 85% desses não

compreendiam de que se trata um alimento probiótico – discurso publicitário, mesmo

os dois termos sendo parte integrante um do outro.

Portanto, como vimos aqui, compete à publicidade a função de comunicar, e,

por mais criativas que sejam as formas de se fazer isso, não se pode inventar, criar,

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recriar ou reinventar determinado tipo de discurso, pois, na ordem lógica da estrutura

da comunicação, o receptor necessariamente tem de conhecer o referente enviado

na mensagem. E a publicidade, criando um novo referente, desconhecido do

receptor, jamais conseguirá estabelecer comunicação.

Quando isso acontecer, o discurso publicitário deixará de existir e se tornará

o discurso emprestado. Como, por exemplo, um comercial elaborado tão

artisticamente que, ao colocar o produto em segundo plano, passa a ser reconhecido

como um filme de cinema em vez de comercial publicitário, que é a sua essência.

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