Psicodrama e a Psicanálise

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Falar sobre Psicodrama obriga-nos a falar de Jacob Moreno, seu criador. Para Moreno, o Psicodrama baseava-se num conjunto de técnicas, em que através do jogo teatral improvisado se visava exprimir e desen- volver as disposições mentais latentes dissimu- ladas ou repudiadas da vida mental, e principal- mente da vida psíquica. O Psicodrama permitiria, através deste jogo, fa- zer ressurgir comportamentos, fantasias e afectos, que ajudariam a descobrir, modificar e desenvol- ver a personalidade. Esta concepção inspira-se nu- ma tradição grega antiga, na qual o teatro, além do valor de interesse estético, tem uma influência no enriquecimento e domínio do próprio. Assim, o valor do teatro terapêutico seria fundamental- mente catártico e, quando representado com total espontaneidade, tornar-se-ia criativo e libertador. Mas como é que Moreno chegou ao Psicodra- ma ou, melhor dito, aos aspectos e vantagens te- rapêuticas do pôr em cena, do pôr em acção (dra- ma significa acção) a vida psíquica? Revisitando a sua personalidade e trajectória, encontramo-lo com grande gosto pelo risco e pe- la aventura, com enorme vitalidade, com uma gran- de capacidade de jogar/brincar e uma imensa cria- tividade. É por ele próprio relatado que, numa das pri- meiras vezes que experiencia o gosto pelo impro- viso (aos 4 anos e meio), vive o seu papel com tal intensidade (papel de Deus), que cai da cadei- ra e fractura um braço. Médico psiquiatra, licencia-se em Medicina em 1917. Ainda estudante de Medicina, encontra um dia Freud: «Eu conheci o Dr. Freud numa só ocasião. Ocorreu em 1912, quando trabalhava na Clínica Psiquiátrica da Universidade de Viena e assisti a uma das suas palestras. O Dr. Freud ti- nha acabado a sua análise sobre um sonho tele- pático; enquanto os alunos iam saindo, aproxi- mou-se de mim e perguntou-me o que é que eu estava a fazer? Respondi-lhe: “Bom Dr. Freud, eu começo onde você acaba. O senhor conhece as pessoas no ambiente artificial do seu consul- tório, eu conheço-as no seu próprio ambiente; vo- cê analisa-lhes os sonhos, eu tento dar-lhes cora- gem para sonhar outra vez, ensino-as a jogar a Deus”.» Ainda que ideologicamente estas posições nos mereçam simpatia, cientificamente estão impre- gnadas da realidade externa, adversa, segundo a nossa concepção ao emergir dos objectos inter- nos da realidade que nos interessa (sob o ponto de vista terapêutico), a realidade psíquica. 79 Análise Psicológica (2005), 2 (XXIII): 79-83 Psicodrama: Transferência e contra-trans- ferência LUÍSA BRANCO VICENTE (*) (*) Psiquiatra e Pedopsiquiatra; Membro Didacta da Sociedade Portuguesa de Psicanálise; Membro Didacta da Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo; Professora Auxiliar da Faculdade de Medi- cina de Lisboa. E-mail: [email protected]

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Falar sobre Psicodrama obriga-nos a falar deJacob Moreno, seu criador.

Para Moreno, o Psicodrama baseava-se numconjunto de técnicas, em que através do jogoteatral improvisado se visava exprimir e desen-volver as disposições mentais latentes dissimu-ladas ou repudiadas da vida mental, e principal-mente da vida psíquica.

O Psicodrama permitiria, através deste jogo, fa-zer ressurgir comportamentos, fantasias e afectos,que ajudariam a descobrir, modificar e desenvol-ver a personalidade. Esta concepção inspira-se nu-ma tradição grega antiga, na qual o teatro, alémdo valor de interesse estético, tem uma influênciano enriquecimento e domínio do próprio. Assim, ovalor do teatro terapêutico seria fundamental-mente catártico e, quando representado com totalespontaneidade, tornar-se-ia criativo e libertador.

Mas como é que Moreno chegou ao Psicodra-ma ou, melhor dito, aos aspectos e vantagens te-rapêuticas do pôr em cena, do pôr em acção (dra-ma significa acção) a vida psíquica?

Revisitando a sua personalidade e trajectória,

encontramo-lo com grande gosto pelo risco e pe-la aventura, com enorme vitalidade, com uma gran-de capacidade de jogar/brincar e uma imensa cria-tividade.

É por ele próprio relatado que, numa das pri-meiras vezes que experiencia o gosto pelo impro-viso (aos 4 anos e meio), vive o seu papel comtal intensidade (papel de Deus), que cai da cadei-ra e fractura um braço.

Médico psiquiatra, licencia-se em Medicinaem 1917. Ainda estudante de Medicina, encontraum dia Freud: «Eu conheci o Dr. Freud numa sóocasião. Ocorreu em 1912, quando trabalhava naClínica Psiquiátrica da Universidade de Viena eassisti a uma das suas palestras. O Dr. Freud ti-nha acabado a sua análise sobre um sonho tele-pático; enquanto os alunos iam saindo, aproxi-mou-se de mim e perguntou-me o que é que euestava a fazer? Respondi-lhe: “Bom Dr. Freud,eu começo onde você acaba. O senhor conheceas pessoas no ambiente artificial do seu consul-tório, eu conheço-as no seu próprio ambiente; vo-cê analisa-lhes os sonhos, eu tento dar-lhes cora-gem para sonhar outra vez, ensino-as a jogar aDeus”.»

Ainda que ideologicamente estas posições nosmereçam simpatia, cientificamente estão impre-gnadas da realidade externa, adversa, segundo anossa concepção ao emergir dos objectos inter-nos da realidade que nos interessa (sob o pontode vista terapêutico), a realidade psíquica.

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Análise Psicológica (2005), 2 (XXIII): 79-83

Psicodrama: Transferência e contra-trans-ferência

LUÍSA BRANCO VICENTE (*)

(*) Psiquiatra e Pedopsiquiatra; Membro Didacta daSociedade Portuguesa de Psicanálise; Membro Didactada Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalíticode Grupo; Professora Auxiliar da Faculdade de Medi-cina de Lisboa. E-mail: [email protected]

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Já em 1914, dominando as técnicas grupais eapercebendo-se da sua importância na integraçãosocial, Moreno utilizou-as num grupo de prosti-tutas vienenses, a quem pretendeu sugerir umaconsciencialização de classe. Este trabalho tor-nou-se embrionário de uma espécie de organiza-ção sindical, em Amspittelberg. Em 1916, foi tra-balhar num campo de refugiados tiroleses, paraobservar as interacções psicológicas entre os ele-mentos do grupo.

Em 1921, já especializado em Psiquiatria, ini-ciou a sua experiência com doentes psiquiátricosno chamado “Teatro Espontâneo”.

Foi também em 1921, que pela primeira vezMoreno se apresentou numa sessão pública dePsicodrama. Numa situação de pós-guerra, sobgrande instabilidade governamental, apresentou-se sozinho ao público de Viena, num palco va-zio, apenas com uma cadeira em forma de tronoe uma cortina aberta. «O tema era a busca de umanova ordem das coisas, o testar cada um dos quedo público aspirava à liderança e que actuaria co-mo rei»... «ao público caberia o papel de júri». Oque ocorreu foi descrito pelo próprio Moreno, co-mo «Ninguém foi considerado digno de ser rei eo mundo permaneceu sem líder».

Mas, o que levaria Moreno a aplicar a drama-tização com fins terapêuticos? Sabemos que des-de cedo se interessou por teatro, desenvolvendoinúmeras experiências neste campo. Uma das ex-periências motoras para a passagem do Teatro daEspontaneidade ao Teatro Terapêutico, deve-se à suareflexão a partir do caso de Bárbara.

Bárbara era uma actriz que no teatro da espon-taneidade representava com grande qualidade efrequência o papel de boa dona de casa, cumpri-dora e submissa, mulher doce e afectiva, com gran-des capacidades maternais. Nos espectáculos e en-tre os espectadores, passou a estar Jorge, que, se-duzido por esta imagem doce e terna, se apaixonapor Bárbara, vindo a casar com ela meses depois.

Um dia Moreno encontrou Jorge, amarguradoe desiludido, que lhe confidencia que a mulher comquem casara era «agressiva, rude, irritável e into-lerante quando a sós com ele, nada tendo a vercom a imagem doce que guardara dela das repre-sentações».

Bárbara ainda trabalhava em teatro com Mo-reno. Este, numa tentativa de ajudar o casal, pas-sou-lhe a dar papéis violentos e agressivos, talcomo tinham sido descritos por Jorge. Mais tar-

de e por haver alterações nos comportamentos deBárbara, Jorge foi também convidado a partici-par nas dramatizações. À medida que o casal iadramatizando situações de conflito e de zanga, Mo-reno foi sabendo que os conflitos e discussões vi-venciadas na vida real se estavam progressivamen-te a dissipar.

Esta experiência tê-lo-á levado a reflectir so-bre as aplicações terapêuticas do até aí chamadoTeatro da Espontaneidade. No entanto, transfor-mando-o nesse mesmo ano em Teatro Terapêuti-co, manteve-lhe todo o pendor meramente catár-tico.

Conceptualmente, teoria e técnica psicanalíti-cas não faziam sentido para ele. Inconsciente, re-sistência e transferência não tinham lugar no Psi-codrama Moreniano.

O Psicodrama Psicanalítico vai surgir apro-priando-se de aspectos óbvios da Técnica More-niana, mas dando-lhe uma nova dinâmica.

Ainda que Moreno pretendesse modificar/tra-tar os comportamentos dos indivíduos através deuma actividade criativa desencadeada pela espon-taneidade da acção dos participantes, esta modi-ficação seria desencadeada através de reaprendi-zagens desenvolvidas na representação. Nós pen-samos haver riscos de com esta técnica os doen-tes ficarem no simples agido ou, quando muito,em pseudo-identificações. Para haver uma catar-se integrativa, é necessário conter, integrar, ela-borar e transformar.

Concebemos pois o Psicodrama como uma técni-ca psicoterápica em que, desde o primeiro mo-mento, como em qualquer psicoterapia, se desen-volvem resistências, transferência e contra-trans-ferência. Estas, para uma melhor eficácia tera-pêutica, deverão ser trabalhadas desde a primeiradramatização. Entendemos o Psicodrama como umgrupo de trabalho que se reúne com determinadofim e que, para nós (como em qualquer terapia),só pode ser o da expansão mental.

Dificilmente concebemos o crescimento psi-cológico se não atendermos durante o processoterapêutico à transferência, se não a formos in-terpretando e favorecendo ao indivíduo a criaçãode instrumentos internos facilitadores da sua com-preensão. Para nós, é a aquisição destes mecanis-mos que vão permitir ao indivíduo autonomizar-se progressivamente e ir abandonando mecanis-mos regressivos e dependências patológicas. Senão estivermos atentos à nossa contra-transferên-

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cia, corremos o risco de “embarcar” no nosso de-sejo omnipotente infantil de curar e de não ser-mos facilitadores, podendo até tornarmo-nos impe-ditivos das vivências da violência da dor mental.

Para nós, transferência é uma ordem implícitana vida; e se o é na vida, muito mais o é em Te-rapia. Começa logo nos primeiros tempos de vi-da, em que o bebé transfere para os pais ou paraos substitutos as suas vivências, que depois lhe sãodevolvidas por estes, já transformadas e simpli-ficadas, permitindo à criança uma melhor com-preensão e a consequente integração.

Assim, e também para nós, toda a psicoterapiaé criação de um objecto de transferência. Mesmonas terapias onde isso não é expresso, quando al-guém vem pedir ajuda está a transferir para outroa expectativa de algo, a esperança. Neste sentido,cria sempre um objecto de transferência, transfe-rência como «vínculo entre quaisquer dois sereshumanos» (Bion).

O conceito de transferência, criado por Freud,evoluiu e adquiriu ao longo da sua obra uma im-portância crescente, viabilizando mesmo a cura atra-vés da chamada “neurose de transferência”. Man-teve-se, no entanto, para Freud enquanto processoexterior à análise, um instrumento de observação.

Posteriormente com Klein, a transferência trans-forma-se num factor intrínseco à análise, dirigidaao objecto. Contrariamente a Freud, para quem atransferência negativa era prejudicial à análise,Klein considerava-a fundamental para se analisa-rem as partes mais primitivas da mente.

Quer Freud quer Klein foram grandes estudio-sos da transferência, no entanto pouco avança-ram na conceptualização da contra-transferência.O passo em frente foi dado por Paula Heimann eHeinrich Racker, que a transformam num instru-mento da Psicanálise.

Para Paula Heimann, a contra-transferência sur-ge como expressão de todos os afectos sentidospelo analista em relação ao seu paciente. Para Hein-rich Racker, a análise passa-se na dupla dimen-são da transferência/contra-transferência. Para ele,o analista ao analisar a transferência interfere nes-ta, sendo, por sua vez, a sua atitude influenciadapela contra-transferência. Tal como Freud falouna neurose de transferência (como um processotransitável para a cura) e conceptualizou a neu-rose de contra-transferência (da qual o analista te-ria de se prevenir).

Com Bion surge-nos uma nova concepção: a

mente é um universo em expansão, e o objectivode uma psicanálise seria dar ao indivíduo a possi-bilidade de se conhecer cada vez mais (tornando-se cada vez mais “igual” a si próprio), levando-oa uma contínua autodescoberta e consequente cres-cimento psíquico através do desenvolvimento da“função psicanalítica da personalidade”.

Perspectivada a psicanálise desta forma, osconceitos de transferência e contra-transferênciaaparecem-nos como redutores de analisando eanalista. Perdem sentido se os olharmos na pers-pectiva bioniana, em que uma análise é um pro-cesso investigacional, no qual estão implicadasduas pessoas com um único objectivo: investigaro objecto de um deles (paciente). Debruçando-sesobre este objecto (independentemente da dor edo sofrimento que isso possa provocar), tentam des-cobrir a verdade deste.

Para Bion, a transferência e a contra-transfe-rência, ao serem contidos e transformados, pas-sam a K→O; quando não são transformados e sãodevolvidos com a mesma intensidade, serão ape-nas fenómenos de resistência. Neste sentido, trans-ferência e contra-transferência seriam apenas vín-culos de aprisionamento, desde que não apoiadosem continente-conteúdo; é este, que lhes vai per-mitir irem-se transformando. O vínculo em con-tinente é um vínculo de transformação.

Enquanto Klein trabalharia o vínculo L em L,Bion introduz-lhe o vínculo K, tal como Freud ofaria. É por isso que podemos falar de dupla fi-liação em Bion. O autor, ainda que reconhecendoos contributos de Freud e de Klein, opera em ci-ma destes uma transformação qualitativa. A suaconcepção é original e faz uma ruptura epistemo-lógica com estes autores. Ao reconhecer a sua fi-liação em Freud e Klein, fá-lo de uma forma di-nâmica e não mecânica, isto é, afirma-se na suaoriginalidade, não ficando conceptualmente divi-dido entre os pais.

Bion, ao introduzir o conceito de transforma-ção, vai também reformular o conceito de cura.Enquanto cura, para Freud, se baseia no levanta-mento do reprimido e na tomada do facto pelo cons-ciente, para Klein, a cura baseia-se num conceitovitalista. Para Klein, a cura estava intimamenteligada a conceitos de reparação e de gratidão quepara nós são conceitos de vida, mais do que con-ceitos psicanalíticos. Os vínculos L–H passavampelo triunfo do amor sobre o ódio; o vínculo Lexistia para a tomada de consciência do querer ata-

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car e danificar um objecto de amor, o qual seriaposteriormente reparado.

Com Bion, a cura passa pela busca e pelo amorà verdade, pelo “sê quem és”, pela tolerância àdor mental e, consequentemente, a tolerância àdúvida e ao sentido de infinito. É neste sentidoque, se bem que mantenhamos ao longo deste tex-to os conceitos de transferência e de contra-trans-ferência, tomamos como limite epistemológico omodelo de continente-conteúdo.

Queríamos ainda ressaltar que no Psicodramahá sempre um aspecto relacional do aqui e agora,que se sobrepõe ao “como se” e que dá genuini-dade ao que é expresso. Enquanto na relação duala transferência é unívoca, na relação grupal ela évivida no director, no co-terapeuta e nos diferen-tes elementos do grupo.

Ilustraremos agora, através de extractos de ses-sões de dois grupos e face à mesma proposta dedramatização, diferentes tipos de relações trans-ferenciais. Fácil será perceber que, se não tivés-semos entendido as respostas transferenciais ex-pressantes de afectos como elementos transfor-máveis em continente-conteúdo, estas tenderiama cair na banalização do social, em vez de contri-buírem terapeuticamente para a análise e o cres-cimento do indivíduo.

João tem 40 anos, é sociólogo, casado e o maisnovo de uma fratria de três irmãos. Procura-noshá cerca de 4 meses para uma terapia psicodra-mática, com vista a posterior profissionalizaçãodesta técnica.

Com bom sucesso profissional, descreve a suavida afectivo-familiar como harmoniosa. Relata--nos que o seu “único” problema familiar foi des-de sempre com o seu irmão, que considera quesempre o invejou e a quem João se sente na obri-gação de proteger. Descreve-se como o preferidoda mãe e da irmã, sendo para nós claro o deslo-camento de conflito edípico sobre o irmão.

Nesta sessão, da qual transcrevemos um peque-no extracto, pudemos esclarecer a natureza da re-lação transferencial deste paciente.

Joga-se “A mãezinha dá licença?”. Com pas-sos de avanço e de recuo, pedidos de “A mãe-zinha dá licença?”, os pacientes vão “competin-do” entre si (numa tentativa de alcançar a mãe“desejada”), que premiará o vencedor com o queele solicitar.

João participa no jogo entusiasticamente, al-cançando com relativa facilidade a vitória e fi-

cando assim com o direito de formular um dese-jo face à mãe (co-terapeuta). É com ar jocoso eirónico que faz o seu pedido: «Quero que a mãeme cofie a barba...». Ao retomar o seu lugar, olhao director de soslaio e com ar provocatório.

No final da sessão, é-lhe interpretado o seu de-sejo de tomar o lugar do pai e de se apropriar daco-terapeuta (como desejo de apropriação da fi-gura materna), ficando assim esclarecida a natu-reza edípica da relação transferencial.

No mesmo grupo terapêutico e perante o mes-mo jogo, há três pacientes que conseguem “al-cançar” a mãe em simultâneo, sendo-lhes suge-rido para decidirem entre eles quem ganhará ofavor da “mãe”.

António, de 33 anos, economista, sofrendo depsicose, afirma: «A mãe tem de ser minha, por-que sou eu que mais preciso assim de uma mu-lher inteligente, sensível e bonita.»

Ana, de 60 anos, psicóloga, depressiva, diz avi-damente: «Não, a mãe tem que ser minha. Eu ti-ve quinze irmãos, nunca tive mãe suficiente, ago-ra preciso desta só para mim.»

Pedro, de 40 anos, engenheiro, sofrendo de gran-de bloqueio afectivo, diz com azedume: «A mãeé minha, eu sou o mais novo de sete irmãos, já nãoapanhei nada. Esta mãe é minha!»

Durante o jogo, três pacientes desistem – Ma-ria, 38 anos, médica: «Eu não estou para isto!»;Rita, 33 anos, psicóloga: «Já não preciso de mãe!»;André, 32 anos, sem profissão e sofrendo de gra-ve neurose obsessiva: «Mãe ou pelo menos da ou-tra, já eu tenho de mais.»

Entendemos estes movimentos transferenciaiscomo:

António, através da idealização da terapeuta,vê nela a mulher ideal, para “não ver” a mãe. Adependência é-lhe insuportável, pois receia ficardependente de um objecto primário omnipotente.

Ana, captativa e invejosamente, reivindica amãe, anulando todos os outros “irmãos”.

Pedro, azedamente, tenta através da regressãoapossar-se da terapeuta.

Maria recusa a competição, por insuportabili-dade à dor da frustração de não poder controlar oobjecto.

Rita, diz que “não precisa”, por, segundo nós,“precisar de mais”. Faz uma negação, rejeitandoomnipotentemente o objecto. Maniacamente triun-fa sobre este, impedindo-se assim de viver o de-samparo.

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André, retido na teia que teceu à volta de umobjecto materno possessivo e manipulador, afir-ma: «Pelo menos da outra, já eu tenho de mais.»Despreza assim o objecto, para não sentir a suadestruição.

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RESUMO

A autora começa por definir Psicodrama, como umatécnica psicoterapêutica inspirada simultaneamenteno teatro, na psicologia e na sociologia.

Revisita em seguida um pouco a trajectória do seucriador – Jacob Moreno (1889-1974), no sentido deuma melhor compreensão do uso da dramatização numcontexto e com fins terapêuticos.

Após a caracterização do Psicodrama Moreniano,estabelece as principais diferenças entre este e o Psico-drama Psicanalítico, do qual não pode dissociar as con-ceptualizações de transferência e de contra-transferên-cia.

Ilustra em seguida, através de extractos de sessões,diferentes tipos de relações transferenciais, clarificadasatravés do jogo “A mãezinha dá licença?”.

Palavras-chave: Transferência, contra-transferência,continente-conteúdo, psicodrama.

ABSTRACT

In this article the author starts to define Psychodra-ma, as a psychotherapeutic technique, simultaneouslyinspired in theatre, psychology and sociology.

Followed by some ideas on the path of is creator –Jacob Moreno (1921) to allow a better understandingof the drama use in a context, and as a therapeutic tool.

After characterizing the Morenian Psychodrama, itestablishes the main differences between this one andthe Psychoanalytical Psychodrama, from which one cannot dissociate the transference and counter-transferen-ce conceptualization.

It finish’s showing through parts of sessions,different kinds of transferring relations and clarifyingit thought the role play “Mommy, may I?”.

Key words: Transference, Counter-Transference, Con-tinent-Content, Psychodrama.

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