Psicanálise e Saúde Mental

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    Psicanlise e Sade Mental

    :: ndice

    Editorial:

    O Instituto e a Orientao Lacaniana - Antnio Beneti

    Ensaio:

    A psicanlise aplicada ao campo da Sade Mental- Francisco Paes Barreto

    Contribuies:

    Um matema para a superviso Lzaro Elias Rosa

    Seo Clnica:

    Consideraes iniciais sobre Psicose e debilidade- Henri Kaufmanner

    Duas referncias de Lacan- Cristina Drummond

    A toxicomania no designa uma estrutura- Lilany Vieira Pacheco

    O que a sade para o sexo? Celso Renn Lima

    Aula Inaugural :

    "A disponibilidade do analista Srgio Mattos

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    Ficha Catalogrfica:

    Ilustraes:

    (Figura 1) Gravura copiada de um baixo relevomostrando um mtodo de guardar rolos na Roma antiga.Observem-se as etiquetas penduradas nas pontas dos rolos.

    (Figura 2) O vendedor de livretos, uma livraria ambulante do sculo XVI

    O Instituto e a Orientao Lacaniana

    O Instituto de Psicanlise e Sade Mental de Minas Gerais um dos Institutos brasileirosvinculados ao Institut du Champ Freudien (Paris-FR) com funo de transmisso dapsicanlise, na orientao lacaniana, sob a forma de Cursos de Formao, Ncleos deInvestigao e Pesquisa em Psicanlise (nos campos da psicose, toxicomanias, medicina etrabalhos com crianas), Jornadas, Publicaes e, agora, atravs de sua Home Page.

    O Instituto parceiro-aguilho da Escola Brasileira de Psicanlise Campo Freudiano que,em vrios momentos, embora instituies independentes estatutariamente, trabalhamconjuntamente em publicaes e outras promoes de transmisso da psicanlise, desdeque atravessadas e sustentadas pela mesma orientao: a Orientao Lacanianasustentada e transmitida por Jacques Alain Miller.

    Em um percurso de trabalho que j conta com 6 anos, com uma transmisso rigorosa doprimeiro ensino de Lacan, o Instituto inicia agora uma nova etapa com a transmisso do seultimo ensino atravs do Curso de Formao (principalmente) com sua nova programao e,dos Ncleos de Investigao. Proposta ousada, mas, como do feitio do Instituto,certamente ser sustentada, com o entusiasmo e rigor de sempre, pelo seu corpo docente eprofessores convidados, em sua maioria composto de Membros da Escola.

    A Home Page inaugurada neste agosto de 2003, mais alm de um veculo de comunicaodos trabalhos realizados no mbito do Instituto, poderia produzir tambm efeitos detransmisso da psicanlise e, se constituir enquanto um espao de interlocuo com acidade atravs daqueles que militam nos vrios outros campos da cultura e que desejem

    uma aproximao com o saber psicanaltico.

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    Pouco adiante, no mesmo tom, acrescenta: E, com efeito, parece-me que no h critriomais evidente da perda da sade mental que aquele manifestado na perturbao dessa

    ordem. Comenta, ainda, que os pacientes da sade mental so selecionados a partir deuma perturbao assim caracterizada, que pode incluir a ordem supostamente privada dafamlia. Logo depois, no mesmo texto, Miller corrige a sua definio: h perturbaes dasquais se incumbe a sade mental e outras que concernem polcia ou justia. O critriooperativo a responsabilidade: se o perturbador responsvel, deve ser castigado; se irresponsvel, deve ser curado. A melhor definio de um homem em boa sade mental que se pode castig-lo por seus atos.(1)

    Em poucas palavras: Miller correlaciona sade mental com ordem pblica e perda da sademental com a sua perturbao irresponsvel. Nesse contexto, o trabalhador da sade mental um agente da ordem pblica e o tratamento uma medida que visa ao seurestabelecimento.

    Psiquiatria: discurso da moralidade

    As palavras de Miller, referidas a aspectos contemporneos, fazem ressoar, fazemreverberar palavras de Foucault, quando ele descreve a excluso que se verificou, h vriossculos, nos hospitais gerais.Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para internao que no sosimplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma srie de indivduos bastantediferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critrios de percepo: encerram-seos indivduos pobres, os velhos na misria, os mendigos, os desempregados opiniticos, osportadores de doenas venreas, libertinos de toda espcie, pessoas a quem a famlia ou opoder real querem evitar um castigo pblico, pais de famlia dissipadores, eclesisticos eminfrao, em resumo todos aqueles que, em relao ordem da razo, da moral e da

    sociedade, do mostras de alterao(2).

    Dentre tais estabelecimentos para internao destacavam-se Bictre e a Salptrire,situadas em Paris; a eles se dirige, no final do sc. XVIII, Pinel, para humaniz-las e paraaplicar, nas cabeas alienadas, o recm criado mtodo clnico da medicina, fundando assima psiquiatria.

    Reconsideremos Pinel. Poltico (um dos lderes da Revoluo Francesa), filsofo (discpulo doenciclopedista Condillac), terico da medicina (o principal artfice do mtodo clnico), estepersonagem instigador fundou a psiquiatria construindo-lhe um arcabouo doutrinriocoerente. Lidando com sujeitos previamente selecionados pela moral social, procuroupriorizar, na etiologia das doenas mentais, as causas morais. E, se a natureza da doena

    determina a natureza do tratamento, como se postulava, coube-lhe assinalar com a devidanfase, para as alienaes mentais, o tratamento moral.(3)

    O ato fundador de Pinel deixou marcas verdadeiramente cruciais. Pretendo aqui destacarduas delas, reconhecidas por Foucault. Primeira: a loucura uma doena. Com efeito,depois de Pinel, adotou-se para a loucura o estatuto de doena mental. Segunda (menosconsiderada, porm, mais importante): a loucura um erro. Um erro, no sentido moral.Assim sendo, as concepes de Pinel no eram nem fsicas nem psicolgicas: eram ambasao mesmo tempo a distino cartesiana da extenso e do pensamento no prevaleceunesse caso. Tcnicas inspiradas na fisiologia da poca foram retomadas por ele e seusdiscpulos num contexto puramente repressivo e moral. A ducha gelada na cabea duranteum dilogo para confessar que a crena apenas um delrio; a mquina rotatria para queum pensamento demasiadamente fixo reencontrasse seus circuitos naturais. O essencial no

    a medicalizao: a confuso, num mesmo discurso, de controle moral e interveno

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    mdica.(4)

    A nfase sobre os fatores morais na etiologia e na teraputica ser reassegurada porEsquirol. E encontrar, na tristemente clebre teoria da degenerescncia, de Morel, quesupunha as doenas mentais com causas morais que se transmitiam por hereditariedadegentica, sua expresso mais extremada e menos fundamentada, mas que, mesmo assim,dominar a psiquiatria por quase um sculo. A importncia desse perodo pode ser expressa,pelo menos em parte, pela seguinte frmula: o tratamento moral tornou-se o ncleofundamental da teraputica psiquitrica.(5)

    O normal e o patolgico na medicina

    O que aconteceu desde os tempos de antanho at os dias de hoje?

    Situarei, inicialmente, a medicina. Embora seja prtica social multimilenar, somente a partirdo sculo XVIII a medicina introduziu-se no mtodo cientfico, com o nascimento da Clnica,estruturada como mtodo (a anlise, apropriada do filsofo Condillac), experincia (queprivilegia o olhar) e linguagem (que privilegia os signos). Pinel foi o principal artfice domtodo clnico, e Bichat enraizou a clnica na anatomia patolgica, estabelecendo o mtodoantomo-clnico.(6) E somente no sculo XX foi possvel falar de uma prtica mdica combases cientficas. O divisor de guas foram os trabalhos de Cannon sobre homeostasia e deClaude Bernard sobre as constantes do meio interno, que permitiram estabelecer em termosbiolgicos, ou, mais precisamente, fisiolgicos, aquilo que a clnica havia definido comonormal e patolgico. Cito Canguilhem.

    Se existem normas biolgicas, porque a vida, sendo no apenas submisso ao meio mastambm instituio de seu meio prprio, estabelece, por isso mesmo, valores, no apenas

    no meio, mas tambm no prprio organismo. o que chamamos normatividadebiolgica.(7)

    Para o autor, no absurdo considerar o estado patolgico como normal, mas esse normalno idntico ao normal fisiolgico, pois trata-se de normas diferentes: o estado mrbido sempre uma certa maneira de viver. E a cura a reconquista de um estado de estabilidadedas normas fisiolgicas; curar criar para si novas normas de vida, s vezes superiores santigas. A norma no pode ser reduzida a um conceito objetivamente determinvel pormtodos cientficos.(8i)

    O que dizer, agora da medicina contempornea? O avano cientfico e tecnolgico tal queos mtodos diagnsticos realizam uma dissecao virtual in vivo, ou apresentam os valores

    da normalidade orgnica por meios rpidos e precisos. Estabelece-se uma relao diretaentre, de um lado, o examinador e, de outro, o substrato anatmico ou antomo-patolgicoe os ndices fisiolgicos ou fisiopatolgicos, situao que, aparentemente, dispensa amediao da clnica. Fala-se, inclusive, no fim da clnica. Evidentemente, no se trata disso.O que h que, mais do que nunca, presentifica-se o que Lacan denominou falhaepistemossomtica, que o efeito do progresso da cincia sobre a relao da medicina como corpo. Dizendo, em poucas palavras, em que consiste esta falha: a que se verifica entreo corpo considerado como um sistema homeosttico, em sua pura presena animal corpo-mquina estabelecido pela cincia mdica e o organismo desejante e gozoso.(9)

    O normal e o patolgico na psiquiatria

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    Se a medicina conseguiu ancorar a clnica na anatomia patolgica e estabelecer o normal e opatolgico em bases fisiolgicas, com a psiquiatria no se deu nem uma coisa nem a outra.

    A introduo da psiquiatria no mtodo antomo-clnico, iniciada por Bayle com a paralisiageral (1822)(10) , ficou restrita aos casos de demncia, de deficincia mental e s psicosesorgnicas e sintomticas. Na grande maioria dos casos, prevaleceu o mtodo clnico. Quantos bases fisiolgicas para o normal e o patolgico, mesmo com o avano das neurocinciastal possibilidade no desponta sequer no horizonte. Nem a mais grave das doenas mentais,a esquizofrenia, pode ser caracterizada em termos biolgicos.

    Se no na anatomia, se no na fisiologia, onde que a psiquiatria vai se fundar paradefinir o normal e o patolgico? No h outra resposta: a norma de que se trata a normasocial ou cultural. Um tratado de psiquiatria muito utilizado em nosso meio apresenta aquesto de modo muito claro. Trarei algumas de suas passagens.

    No conceito de norma devemos distinguir um contedo e uma forma-funo. O contedo danorma, equiparvel ao termo mdio, tem uma base estatstica e, como assinala a doutrinado relativismo cultural, no constitui um estado absoluto, nem tem um fundamentoontolgico, mas est subordinado ao tempo histrico, ao lugar e s peculiaridades de umacultura. Uma norma estvel de validade geral no existe. Mas o contedo da norma estcondicionado fenomenologicamente pela existncia da norma como funo. A funo danorma existe em todo tempo e lugar. Transcende, pois, ao relativismo.

    Mais adiante, o autor estabelece a correlao: Em virtude do exerccio da faculdade detipificao, todos ns co-participamos do mesmo mundo. O mundo normal um mundotipificado. O mundo do doente psquico se distingue fundamentalmente do normal no porseu contedo, mas por sua forma. Podemos descrever a patologia da tipificao como omrbido.

    Para, pouco depois, concluir: Eis aqui minha definio predileta de psiquiatria: A psiquiatria o ramo humanista por excelncia da medicina que trata do estudo, da preveno e dotratamento dos modos psquicos de adoecer. A idia do modo psquico de adoecer, segundoacabo de expor, se funda na perda involuntria da faculdade normativa.(11)

    Podemos, a partir das citaes, relacionar sade mental com norma cultural, doena mentalcom perda involuntria da faculdade normativa e tratamento psiquitrico com meio utilizadopara o seu restabelecimento. A restitutio ad integrum, to cara medicina, na psiquiatriatornou-se, assim, restituio dessa normalidade.

    O DSM-IV e a CID-10

    A questo do normal e do patolgico na psiquiatria pode ser abordada a partir dasclassificaes das doenas mentais. Quanto a isso, tivemos trs grandes momentos,distanciados aproximadamente um sculo um do outro. O primeiro foi constitudo pelanosologia pinel-esquiroliana, no incio do sculo XIX; era uma classificao eminentementesindrmica. O segundo grande momento foi a nosologia kraepeliniana, no final do sculo XIXe incio do XX; privilegiava as entidades mrbidas, consideradas como as verdadeirasdoenas mentais. O terceiro momento, no final do sculo XX e incio do XXI, quandoassistimos universalizao dos diagnsticos dos transtornos mentais e comportamentais,catalogados no DSM (IV) e na sua correlata e subsidiria, a CID (10).

    Comentamos, h pouco, a estrita relao que os psiquiatras clssicos estabeleciam entredoena mental e degradao moral. Como se situa, frente a isso, a psiquiatria

    contempornea, que se autoproclama cientfica e ancorada no progresso das neurocincias?

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    e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo. Um trabalho mais abalizado deve incluirtrs grupos de controle: (1) o primeiro, com pacientes que iro receber o novo

    antidepressivo; (2) o segundo, com pacientes que iro receber um antidepressivo j bemestudado e (3) o terceiro, com pacientes que iro receber um placebo. Para maximizar aprobabilidade de que os grupos sejam comparveis, processa-se a randomizao, queconsiste na localizao fortuita, aleatria, dos pacientes deprimidos nos diversos grupos.Alm disso, aplica-se o mtodo do duplo-cego (double-blind): ningum, nem os pacientes,nem o responsvel pelo procedimento de localizao, nem os pesquisadores encarregadosdo recolhimento dos resultados sabem em qual grupo cada sujeito foi includo. As plulas, nasua aparncia, so iguais. Somente um outro pesquisador que controla os trabalhos sabequem est tomando o qu.

    Os resultados de um ensaio clnico tm base estatstica. E o critrio de melhora este:reduo ou supresso dos sintomas. Para que seja possvel tal avaliao, os sintomas devemser quantificados pormenorizadamente. Entram em cena as escalas de avaliao; porexemplo, a Escala de Hamilton para Depresso. Os pacientes, antes de serem distribudosentre os grupos, devem ser avaliados pela Escala. Aps a randomizao, os comprimidosso administrados por tempo considerado satisfatrio e, nesse perodo, as outras medidasteraputicas so padronizadas. Durante e ao final do ensaio, realizam-se novas avaliaespela mesma Escala. Alm da verificao dos sintomas, so realizados examescomplementares e questionrios sobre os efeitos colaterais. No final, os resultados sosubmetidos a anlise estatstica, para o estudo da evoluo comparada dos grupos.

    O que est sendo medido, portanto, a eficcia, entendida como reduo ou eliminao dossintomas, e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo, comparado a um antidepressivoj bem conhecido e a um placebo. O placebo uma substncia quimicamente inerte ouincua. Tenta-se, com ele, isolar a bem documentada tendncia dos indivduos a dar

    resposta favorvel a qualquer terapia, sem considerar a eficcia fisiolgica da que elesrecebem.

    Qualquer que seja o resultado de um ensaio clnico, ele deixa fixado um ideal de eficcia: ode eliminar todos os sintomas sem causar nenhum efeito colateral.

    A excluso do sujeito

    No exemplo de ensaio clnico que eu trouxe, o que que se pretende tratar? Sem dvida, oponto de partida a idia de depresso como transtorno mental ou doena. Este osignificante que determina os trs grupos. Estar deprimido o critrio de incluso de cadapaciente. Pode haver variao quanto ao nmero ou intensidade dos sintomas, mas todos

    os includos so deprimidos. a depresso que est sendo tratada. So descartadas, nocmputo final, as particularidades que diferenciam cada caso do outro. cada um, comodeprimido, que interessa e, quanto a isso, h uma identificao de todos os pacientes.

    O mtodo duplo-cego, por sua vez, pretende ser, tanto em relao aos pacientes como emrelao aos pesquisadores, um recurso a mais para a excluso da subjetividade, tratadacomo interferncia ou fator perturbador. O cuidado com que o objetivo perseguido talque sugere para o duplo cego um melhor nome, ou seja, duplo-surdo. O desconhecimentoda subjetividade tem por correlato o desconhecimento da transferncia. O que no impede,obviamente, que esta continue existindo e produzindo efeitos. Uma das expresses datransferncia o chamado efeito placebo. Nos ensaios clnicos, um grupo de controle constitudo exclusivamente na tentativa de exorciz-lo.

    Outro aspecto importante a ser examinado o ideal de eficcia. O antidepressivo ideal seria

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    aquele que abolisse todos os sintomas sem causar efeitos colaterais. Evoluo caracterizadapor uma negativizao: no dia em que fosse descoberto teramos, no fim da pesquisa, um

    grande vazio, um vazio de sintomas, que iria desfazer a identificao dos pacientes entre si:eles deixariam de ser deprimidos. Simultaneamente, porm, uma nova identificao seconstruiria: com os indivduos normais, o que resultaria, assim, numa plena adaptaosocial. Confirmando a direo que acabo de apontar, convm ressaltar que muitos ensaiosclnicos, alm da escala de avaliao para medir a depresso, j utiliza outra escala deavaliao, para medir a adaptao social (EAS).(14)

    Da depresso adaptao social, o grande excludo o sujeito e sua subjetividade.

    A psicoterapia

    Por qu tanta nfase na abolio do sintoma?

    Embora no considere transtorno um termo exato, a CID-10 prefere us-lo, de forma aevitar problemas ainda maiores que, segundo ela, estariam inerentes a termos tais comodoena ou enfermidade. Transtorno empregado para indicar a existncia de um conjuntode sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecvel associado, na maioria dos casos,a sofrimento e interferncia com funes pessoais. Desvio ou conflito social sozinho, semdisfuno pessoal, no deve ser includo em transtorno mental, como aqui definido.(15)

    A definio focaliza o sofrimento e a disfuno pessoal. Mas, h outro aspecto do sintomaque verdadeiramente essencial, e que bem assinalado pela formalizao de ColetteSoler: O sintoma precisamente o que faz com que cada um no consiga fazerabsolutamente o que est prescrito pelo discurso de seu tempo.(16) O sintoma aquilo quetorna impossvel a cada um caminhar pelas vias comuns. Uma fobia pode impedir de viajar

    de avio ou de entrar no elevador de um edifcio. Uma impotncia sexual pode frustrar umencontro amoroso. Uma gagueira pode inviabilizar uma pretenso de ser orador. Umainibio social pode limitar oportunidades de relacionamento. Uma depresso podeprejudicar uma jornada de trabalho. E assim por diante.

    importante salientar, destarte, os dois aspectos: (1) que o sintoma est associado asofrimento e indica que algo no sujeito no est funcionando, que algo vai mal; (2) que osintoma afasta o sujeito do que est preconizado pelo discurso de seu tempo, ou seja,afasta-o da norma social.

    A abolio do sintoma, sendo assim, alm de alvio e reabilitao funcional do sujeito, est aservio da restituio da normalidade, da conformidade e da adaptao sociais.

    Ora, se antes havia sido feita a aproximao do tratamento psiquitrico e do tratamento dasade mental, agora a vez de aproximar, de ambos, a psicoterapia. Quanto a isso, no hdvida: nos trs casos temos os mesmos objetivos, quer dizer, a abolio do sintoma e anormalidade social. A diferena que a psicoterapia, para alcanar os seus fins, privilegia apalavra; a psiquiatria, alm da palavra, lana mo de meios qumicos e/ou fsicos; e a sademental, mais abrangente, inclui o trabalho com as famlias, a organizao dos servios e apoltica de sade.

    A reabilitao psicossocial

    Pode-se acrescentar na perspectiva que estamos considerando os programas de reabilitaopsicossocial. Enquanto que, por um lado, o tratamento psiquitrico ou a psicoterapia visam

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    abolio do sintoma, por outro lado a reabilitao pretende, partindo dos pontos fortes ouda parte sadia de cada indivduo, o restabelecimento de papis sociais normais. A tarefa

    deixar para trs o estigma de paciente e restaurar a capacidade de viver de maneiraindependente. A meta da recuperao de homens e mulheres com transtornos mentaisgraves e persistentes se cumpre por meio de empregos, moradias, amigos e dinheiro para odia a dia.

    Existe uma tendncia na reabilitao psicossocial com presena expressiva inclusive emcertos setores da reforma psiquitrica que prope um tratamento que no trabalhe com osintoma. Ou seja: prope-se a reabilitao como uma excluso da clnica. Um meio maisdireto de tentar inserir o louco em alguma forma de troca social.

    Existem a dois aspectos a serem observados. O primeiro a desconsiderao da estruturaclnica, o incentivo a um certo no saber como fazer com o sintoma. O segundo aspecto que reabilitar o louco seria, nesses termos, no extremo, fazer dele um no-louco.

    Uma reabilitao que exclui a clnica se resume numa forma de adaptao social, quer dizer, um modelo que produz segregao. a prevalncia da norma, o obstculo diferena.Como adverte Vigan, no falar com o louco, ou ficar com ele sem o discurso uma formade segregao, ainda que sem manicmio; a neo-segregao.(17)

    A lgica do todo

    Creio ter caminhado o suficiente para poder, nesse momento, concluir que o tratamentopsiquitrico, a psicoterapia, a reabilitao psicossocial, enfim, os cuidados que vm sendodispensados no campo hoje denominado da sade mental, embora muito diversificadosquanto aos seus meios, so muito prximos quanto a dois aspectos cruciais: o seu ponto de

    partida e o seu fim. O ponto de partida o sintoma. O fim a eliminao do sintoma e aadaptao social do indivduo; o que poderia ser chamado de normalizao psicossocial. possvel, talvez, reuni-los sob uma nica denominao: Tratamento de NormalizaoPsicossocial.

    Mais do que aproximar cuidados primeira vista to distintos, tentarei avanar no sentidode demonstrar que funcionam dentro de um mesmo sistema lgico; eles operam de acordocom a lgica do todo.

    Trata-se de uma lgica que na atualidade conhece grande difuso a partir do discurso dacincia. Seu aspecto essencial a busca de leis universais que dariam fundamento aos seusprocedimentos. Para elucidar, tomarei uma vez mais o exemplo da depresso. possvel

    estabelecer o universal no tratamento da depresso? Pode-se, pelo menos, caminhar nesserumo.

    O primeiro passo a definio operacional de depresso. Quanto a isso, o DSM-IV e a CID-10 cumpriram a sua parte, e pretendem t-lo feito em escala universal! Na psiquiatriaclssica, os autores das escolas francesa e alem no chegavam a um acordo entre si;havia, quase, uma classificao para cada autoridade. Hoje nos tempos da globalizaoa classificao tem apagado at mesmo as fronteiras dos continentes.

    Alm de definir o que depresso, preciso um critrio para dizer quem um deprimido.Entram em cena as escalas de avaliao, que, alm, de catalogar, permitem quantificar ossintomas. Pode-se, ento, formar um conjunto de deprimidos e submet-lo a tratamentoestatstico, embora isso anule ainda mais as particularidades que diferenciavam um do

    outro. A validao estatstica imprescindvel quando se pretende alcanar o universal.

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    To importante como definir a partida precisar a chegada: o que se almeja com o

    tratamento. A abordagem em termos negativos a reduo ou abolio dos sintomascumpre esse item, como j foi visto, e possibilita a avaliao estatstica dos resultados. Oideal, nesses casos, estabelecer uma conduta teraputica padronizada, o que na medicina conhecido como guideline: isso j vem sendo adotado pela psiquiatria e at mesmo pelapsicoterapia.

    Assim, temos: um incio padronizado, um meio padronizado e um trmino padronizado. No que sejam desconsideradas as variaes individuais. Elas so levadas em conta:exatamente para instruir medidas excepcionais que procuram retomar o caminho padro.

    O final do tratamento pode ser abordado, tambm, em termos positivos. Exemplificando:por meio das escalas de adaptao social (EAS). O que importa, no caso, exatamente isto:a identificao com a normalidade social.

    Poderia ser objetado que a lgica do todo visa lei universal e que a norma se afasta douniversal. Pondero, a tal respeito, que a norma, a regra, o padro esto includos na lgicado todo e que constituem, na verdade, uma modulao do universal.

    TRATAMENTO DENORMALIZAO PSICOSSOCIAL(Psiquiatria, psicoterapia,reabilitao, sade mental)

    PSICANLISE(psicanlise pura,psicanliseaplicada)

    tica (igual a) Moral tica (diferante de) Moral

    Conformidade, adaptao socialAutenticidade, singularidade dosujeito

    Restituio da normalidade anterior Mutao subjetiva

    Norma Paradigma

    Validao estatstica Construo do caso clnico

    Gozo socialmente modelado Gozo prprio do sujeito

    Reabilitao, no sentido ortopdico Reabilitao, no sentido jurdico

    Lgica do todo (o universal) Lgica do no-todo (o um por um)

    Segunda parte

    A Psicanlise Aplicada

    A primeira parte foi necessria para situar a proposta da psicanlise aplicada ao campo dasade mental, aos tratamentos realizados nos servios pblicos, tema que passo adesenvolver. Questo complexa, que exige de imediato precisar alguns aspectos.

    A pretenso levar o discurso analtico ao servio pblico, no campo da sade mental. Notoa importncia de advertir: no se trata de psicanlise pura, mas de psicanlise aplicada.Espero que no decurso do texto a diferena seja problematizada, mesmo sabendo que temasto amplos sero aqui apenas esboados. Tampouco se preconiza o tratamento de todos ospacientes com o discurso analtico. Longe disso. O servio pblico, como toda instituio, ,ou deveria ser, o lugar de muitos discursos. O que se procura isto: situar o discurso

    analtico no servio pblico como um discurso entre outros.

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    Desfazendo equvocos

    Por que razo o discurso analtico no campo da sade mental? Muitos levantam, pelocontrrio, objees a esse propsito. Darei alguns exemplos, ao mesmo tempo em queprocurarei esclarecer pontos cruciais.

    Uma objeo freqentemente levantada que a psicanlise s teria uma funo notratamento dos extratos scio-econmicos mais abastados. O que no verdade. Em nossomeio, a psicanlise tem sido aplicada em servios que atendem exclusivamente a pacientesdo SUS, muitos deles em situao scio-econmica extremamente precria.

    Uma segunda objeo que o tratamento psicanaltico seria excessivamente longo, eimprprio para os servios pblicos. Respondo lembrando que tratamentospsicanaliticamente embasados podem consistir numa nica sesso.

    Terceira objeo: nos servios pblicos de sade mental so atendidos geralmente casosmuito graves, e a psicanlise seria indicada para casos leves. Frente a esse argumentoapresento o seguinte dado: j existe, em nosso meio (assim como em outros lugares),experincia e literatura expressiva a respeito do tratamento psicanaltico de psicticos e detoxicmanos.

    Exponho uma ltima objeo. O avano da psicofarmacoterapia inviabilizaria e faria caducara abordagem psicanaltica. Na minha avaliao, nem uma coisa nem a outra. falsa a idiasegundo a qual o frmaco necessariamente se ope psicanlise, ou a que esta nada teria adizer sobre aquele. A psicanlise tem o que dizer sobre o frmaco, que, por sua vez, emcertas circunstncias, pode viabilizar a abordagem analtica. No est a a diferena entrepsiquiatria e psicanlise.

    Tentarei, ento, coloc-la em termos claros. A oposio entre psicanlise e psiquiatria amesma que existe entre psicanlise e o que foi nomeado Tratamento de NormalizaoPsicossocial. A oposio se situa na diferena radical na direo do tratamento, diferenaesta que pode ser formulada em termos ticos.

    Uma outra tica

    Afirmar que existe diferena radical na direo do tratamento quando se tem, de um lado, apsicanlise, e de outro, o Tratamento de Normalizao Psicossocial (psiquiatria, psicoterapia,reabilitao, sade mental), e que tal diferena se formula em termos ticos, algo queexige uma digresso.

    O Vocabulrio da Filosofia de Lalande assim define tica:

    Cincia que tem por objeto o juzo de apreciao enquanto se aplica distino do bem edo mal.(18)

    E assim define moral:

    O que concerne seja aos costumes, seja s regras de conduta admitidas numa poca, numasociedade determinada.(19)

    primeira vista, por essas definies, tica seria diferente de moral. Ocorre, porm, que ojuzo de apreciao a que se refere aproxima, sistematicamente, do que valorizado como

    bem, o que definido como norma social. Como conseqncia, h um apagamento da

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    diferena entre os dois conceitos. Pode-se evidenciar o que foi dito quando se examinamoutras definies dos conceitos que estamos considerando. Por exemplo, o brasileiro Houaiss

    assim define tica:

    Parte da filosofia responsvel pela investigao dos princpios que motivam, distorcem,disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito daessncia das normas, valores, prescries e exortaes presentes em qualquer realidadesocial.(20)

    O mesmo Houaiss d, dentre outras, a seguinte definio de moral:

    Parte da filosofia que estuda o comportamento humano luz dos valores e prescries queregulam a vida das sociedades. tica.(21)

    O que faz convergir e equivaler tica e moral, destarte, a idia de norma, regra, ouprescrio social como bem.

    Pode-se, a partir de agora, introduzir a problematizao que a psicanlise traz. necessriouma outra tica simplesmente porque a tica da psicanlise diferente das demais. Dizendoem poucas palavras em que consiste a diferena: enquanto que a moral da ordem daconformidade social, a tica da psicanlise da ordem da autenticidade do sujeito. A ticada psicanlise distinta da moral, e freqentemente at mesmo se ope a ela. a busca doque mais verdadeiro de si mesmo ou do que mais verdadeiramente si mesmo, ou seja,sua falta a ser.

    Clnica do sujeito

    A proposta de uma psicanlise aplicada ao campo da sade mental poderia ser formuladacomo uma clnica do sujeito. De que sujeito se trata? A referncia o sujeito doinconsciente, conceito to caro psicanlise de orientao lacaniana. O que se procura perseguir o ditame tico tocar o sujeito no doente, preocupao de Lacan em nosso meiotantas vezes evocada por Antonio Beneti.

    No se trata do sujeito do cogito, do sujeito agente, do sujeito da conscincia. Lacan partedo sujeito cartesiano para subvert-lo, levando s ltimas conseqncias a revoluocopernicana empreendida por Freud. Revoluo que compreende dois aspectos essenciais: asubordinao do sujeito estrutura que o determina e a sua marcao como sujeito fendido.

    Quanto ao primeiro aspecto, importante considerar que o sujeito determinado por uma

    estrutura simblica que no s lhe pr-existe como o condiciona desde antes de seunascimento. Estrutura que pe em jogo um sistema de regras e convenes (o lxico, asintaxe, a lgica), funcionando como cdigo e definindo o sujeito por sua posio e no porum contedo interno. Antes de falar, o sujeito falado. A frmula o inconsciente odiscurso do Outro resume o que est sendo proposto; o inconsciente no um reservatrioque cada indivduo carrega em seu interior um lugar que depende de uma convenosignificante e que est em relao de exterioridade com o sujeito.

    O segundo aspecto considerado o sujeito enquanto fendido, dividido. Um sujeito que no idntico a si mesmo. Vrios so os termos que nomeiam a diviso: sujeito da conscincia esujeito do inconsciente, sujeito do enunciado e sujeito da enunciao, sujeito do significadoe sujeito do significante; entre outros. Para o eu que fala, o sujeito do inconsciente umele e no um outro eu. No so duas partes de um todo: o sujeito existe atravs da

    ruptura, ele o lugar da ruptura, ele existe ali mesmo onde h corte.

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    a partir da clnica que se apreende o que est sendo proposto. O primeiro aspecto a

    determinao do sujeito pelo Outro fica a cu aberto na clnica da psicose. Quando osujeito se v ameaado ou comandado por vozes bem discernidas que o invadem desde oreal, quando sente que seu corpo ou seus movimentos so controlados ou impulsionados porinfluncias estranhas, ou quando acredita que seus pensamentos so devassados, impostosou roubados por algum poderoso, estamos diante de fenmenos denominados xenopticos,includos por Clrambault na sua sndrome do automatismo mental. Ora, so fenmenos quedesvelam a estrutura, ou seja, a determinao do sujeito pelo campo da linguagem, peloOutro. Nesse sentido, o louco que normal, a xenopatia que a normalidade. E asquestes, conforme prope Miller, passam a ser as seguintes: Como possvel no estarlouco? Por que o sujeito chamado normal, que no est menos afetado pela palavra, queno menos xenopata do que o psictico, no se d conta disso? Como podemos crer quesomos os autores de nossos pensamentos?(22) O psictico pe s claras, portanto, o queno chamado normal est invertido. Que, antes de falar, o sujeito falado.

    O segundo aspecto a diviso do sujeito formulado a partir da clnica da perverso eprincipalmente a partir da clnica da neurose. Um paradigma o lapsus linguae. Um tropeona fala que revela o hiato entre o enunciado e a enunciao, entre o dito e o dizer. O sujeitoest ali, exatamente, nessa fenda.

    A lgica do no-todo

    A tica que se identifica com a moral tem por quinta-essncia a norma social e ostratamentos que esto sob sua gide buscam, influenciados pelo discurso da cincia, inserir-se no regime do todo, ou do paratodo, ou seja, estabelecer o universal, escrever-se,constituir conjunto. A tica da psicanlise situa-se numa perspectiva radicalmente diversa.

    Funda-se na singularidade da relao do sujeito com seu desejo e seu gozo. Quanto a isso, possvel afirmar categoricamente: cada sujeito diferente do outro. Assim sendo, o discursoanaltico se insere na lgica do no-todo, do caso a caso, onde no se pode escrever ouniversal ou formar conjunto.

    imprescindvel dar-se conta das implicaes do que foi dito. Se cada sujeito diferente dooutro, cada caso diferente do outro, cada tratamento diferente do outro... O quefundamenta um tratamento no uma lei universal, mas uma construo que se faz uma auma. Como tem sido salientado desde os tempos de Freud, no h estatstica que sejapossvel em tais circunstncias.

    No que tange ao que estamos abordando, cabe afirmar que o sujeito no existe, da mesmaforma que a mulher no existe ou que o analista no existe. Isso quer dizer que no hcritrio para definir o sujeito, a mulher ou o analista, no h como caracteriz-los ou fech-los num conjunto. Como disse certa vez Lacan: No temos critrios, temos paisagem. Seno h critrios para definir um analista, isso no quer dizer que no seja possvel defini-lo. possvel faze-lo um por um, como no procedimento do passe. Tal como uma paisagem.Uma paisagem tem harmonia prpria; necessariamente incompleta, medida em quesempre se pode incluir mais um detalhe; e sempre diferente de outra paisagem.(23)

    Da norma ao paradigma

    A norma est, para os outros tratamentos, como o paradigma para a psicanlise. De acordocom o discurso da cincia, o que d validao a um tratamento a avaliao estatstica, que, tambm, uma forma de validao de uma teoria. Para a psicanlise, pelo contrrio, a

    estatstica no se aplica, e prevalece o paradigma. Um nico caso permite estabelecer linhas

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    para a direo do tratamento ou teorizaes de validade geral. Lacan costumava dizer quetudo o que sabemos sobre neurose obsessiva devemos anlise que Freud fez do homem

    dos ratos. Temos outros paradigmas: Dora, para a histeria; o pequeno Hans, para a fobia;Schreber, para a psicose; Aime, para a parania; para citar alguns. A idia de paradigmaclnico no especfica da psicanlise; temos, por exemplo, o caso de Ellen West, deBinswanger, paradigmtico para a analtica existencial.(24)

    Como possvel fazer uma teoria a partir de um? Uma resposta para a questo aconstruo do caso clnico, a partir de sua estrutura lgica. o que verificamos nosparadigmas citados.

    Cumpre destacar a importncia diametralmente oposta do diagnstico para a psiquiatria epara a psicanlise. O diagnstico psiquitrico anula o sujeito. O psiquiatra, como vimos,trata a depresso e nesta designao se perdem as particularidades que distinguem osdiversos deprimidos. O psicanalista, por sua vez, ainda que teorize sobre histeria, porexemplo, ao fazer esse diagnstico est apontando para o sujeito. O diagnsticopsicanaltico uma interpretao da relao do sujeito com a estrutura. A partir da, opercurso de uma anlise evidenciar, cada vez mais, a singularidade do sujeito, sendo que,no final, teremos a teoria do prprio caso. o que prope Lacan com o procedimento dopasse. O depoimento do passante uma boa histria que pode ser contada, mas tambmuma verso teorizada da prpria anlise.

    A construo do caso clnico

    Na psicanlise, por conseguinte, a validao do tratamento se faz por meio da construo docaso clnico. Trabalho artesanal, que se realiza um por um, em que cada um diferente dooutro e em que cada caso sempre algo indito.

    Existe, aqui, uma reconstituio da histria do sujeito. importante destacar, ainda, que aconstruo do caso clnico se faz tendo em vista a lgica do tratamento e a lgica do caso.

    Para abordar a questo, muitos caminhos so possveis. Tomarei como base o percurso deuma anlise. Freud, numa clebre metfora que Lacan certamente endossou, comparou apsicanlise ao jogo de xadrez. O comeo e o fim so bem estabelecidos, mas o meiocomporta uma srie infinita de possibilidades.

    Seja como for, uma psicanlise tem um comeo, um meio e um fim. Numa conferncia,Miller discute a questo da lgica do percurso analtico. E considera vrios meios utilizadospor Lacan para estruturar logicamente o tratamento psicanaltico. Mencionarei um deles: o

    percurso analtico pode ter a estrutura do tempo lgico.(25)Em sntese, seria isto: o comeo de uma anlise como instante do olhar, o meio como tempopara compreender e o fim como momento de concluir. A instaurao do sujeito supostosaber seria da ordem do instante do olhar, a construo da fantasia corresponderia aotempo para compreender e o ato psicanaltico, com a precipitao que ele comporta, seriaum momento de concluir. A entrada em anlise, como instante do olhar, antecipa comopoder ser o final de anlise, e este, como momento de concluir, ressignifica,retroativamente, a entrada em anlise.

    A estrutura do tempo lgico pode estar presente no percurso analtico, quando se trata deuma psicanlise pura, mas tambm na psicanlise aplicada, ou seja, na construo do casoclnico em sade mental,(26) e at mesmo quando se considera uma nica sesso. Por

    exemplo, o corte como momento de concluir.

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    Do sintoma ao sinthoma

    Assim como a psiquiatria, assim como a psicoterapia, assim como a sade mental, apsicanlise tambm parte do sintoma. Mas, se o ponto de partida comum, o ponto dechegada diametralmente oposto.

    Sim, a psicanlise parte do sintoma, do sofrimento do sintoma, que indica que algo no estfuncionando, que algo vai mal. No basta, no entanto, que se procure o alvio para osofrimento por meio do levantamento do sintoma. A demanda analtica exige mais: implicaquerer tratar o sintoma no s pela vertente do sofrimento como pela vertente do enigmaque ele representa, ou seja, implica um querer saber sobre o sintoma. Um passo importante dado quando o analista suposto como aquele que detm esse saber. A postulao doanalista como sujeito-suposto-saber a entrada na transferncia.

    O saber de que se trata do prprio inconsciente do sujeito; o inconsciente como um saberque no se sabe. No contexto, a interpretao pode, ento, ter lugar como uma leitura, umadecifrao do sintoma, explicitando seu significado inconsciente. Uma anlise tambmproduz efeitos teraputicos, com o levantamento do sintoma. E s vezes, o que seconsegue fazer. Freud chegou a comentar, porm, que freqentemente tal resultado est aservio da resistncia, evitando os verdadeiros objetivos de uma anlise, caracterizandouma fuga para a cura.

    O querer saber sobre o sintoma pode levar sua leitura e desapario, mas pode ainda,numa evoluo mais ousada, caminhar em direo fantasia, relao do sujeito com seudesejo e com seu gozo. isso que, em ltima instncia, um tratamento analtico visa amudar.

    A psicanlise, j foi dito, no se fia na eliminao do sintoma; a rigor, ela no considera quehaja desaparecimento, mas, sim, transmutao, metamorfose do sintoma. Com freqncia,na clnica dos servios de sade mental, o que se consegue a substituio de um sintoma,mais penoso e mais limitante, por outro, mais suportvel.

    Na ltima etapa de seu ensino, Lacan reelabora o conceito de sintoma (symptme),denominando-o ento sinthoma (sinthome). E prope: Ame o seu sinthoma tal comoFreud dizia que o psictico ama o seu delrio. E situa mesmo, no final da anlise, umareconciliao do sujeito com o seu sinthoma, uma identificao: o sujeito como sinthoma. Osinthoma inclui o sintoma e a fantasia; aproxima-se da idia de estilo. Um exemplo desinthoma seria o prprio psicanalista. Do sintoma ao sinthoma h, assim, um avano dosujeito rumo quilo que nele existe de mais singular.

    As duas clnicas de Lacan

    O retrospecto que apresentei, embora sinptico, permite entrever que, tal como em Freud,h uma incessante mudana no ensino de Lacan. Ao ponto de permitir formular a idia deduas clnicas: a primeira, clnica estrutural ou clnica do significante, e a segunda, clnicaborromeana ou clnica do gozo. Na primeira, Lacan rel Freud luz da teoria do significante;na segunda, ultrapassa-o a partir da reformulao lgica.

    A proposio da segunda clnica inspira-se nos seminrios de Jacques-Alain Miller quetrabalham a ltima parte do ensino de Lacan, ensino este que anteviu, com notvelpreciso, os tempo atuais. poca de declnio das identificaes verticais (com o pai, com os

    ideais), poca em que o grande Outro no existe, pois se sabe, de algum modo, de sua

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    estrutura de fico e que tudo no passa de semblante. Era de globalizao, em quepequenos objetos (a) so encontrados em todas as esquinas, atrs de todas as vitrines, e

    cuja proliferao foi feita para causar o nosso desejo, pelo discurso cientfico que agora ogoverna. Era que sofre um desvario do seu gozo.

    As conseqncias esto a; a clnica est a cada dia mais distante daquela dos tempos deFreud. Os servios de sade mental conhecem bem as demandas procedentes dos novossintomas: a depresso, o pnico, a anorexia, a bulimia, as toxicomanias, a obesidademrbida, a delinqncia e assim por diante. A clnica , cada vez mais, uma clnica dapassagem ao ato. Como enfrentar esses novos desafios?

    A segunda clnica alcana em seu horizonte a subjetividade de nossa poca, preparando oterreno para o tratamento dos novos sintomas. Apontarei alguns de seus aspectos,lembrando que se trata de tema novo, complexo e pouco sistematizado. Para delimitar aquesto, abordarei um item do tratamento da psicose.

    Enquanto que a primeira clnica tenta examinar a psicose a partir da neurose (paradigma:Schreber), a segunda clnica caminha da psicose para a neurose (paradigma: Joyce).Reviravolta que tem implicaes tericas e clnicas, passando-se da aplicao da psicanlise psicose aplicao da psicose psicanlise.(27) Em poucas palavras: a psicose que nosensina. Ensina-nos sobre a estrutura e sobre as solues que ela prpria encontra para umafalta central no simblico.

    Uma conseqncia a inverso da suposio de saber, que poderia ser formulada nosseguintes termos: o psictico sabe o seu caminho. O que nos coloca em posio deaprendizagem em relao clnica, em posio de sujeito suposto no saber. Prope-se,com isso, levar ao limite o que se conhece desde os tempos de Freud: que o psictico sabe

    encontrar as suas solues, que o seu caminho autoconstrudo. Posio que est deacordo, tambm, com o que, h muito, se verifica na prtica clnica e que Miller traduz nosseguintes termos: O paranico s conhece o saber. Sua relao com o saber constitui seusintoma. O que o persegue a no ser um saber que passeia pelo mundo, um saber que sefaz mundo?(28) Com efeito, quando o Outro se apresenta para o psictico como o Outro dosaber, ele encontrado de forma persecutria ou erotomanaca.

    Ora, se o saber est do lado do psictico, no h lugar, no tratamento, do lado do analista,para nenhuma tentativa de envio a outro sentido, nenhum deciframento ou interpretao. Ainterpretao est do lado do psictico, e a posio de aprendizado que pode, notratamento, permitir ao analista escutar as indicaes que o psictico traz para o seu caso.

    Psicanlise pura, psicanlise aplicada

    Como diferenciar psiquiatria, psicoterapia, psicanlise pura e psicanlise aplicada? Existemvrias maneiras de faz-lo. A minha escolha est sendo buscar a diferena pela vertente datica.

    A psiquiatria e a psicoterapia tm como ponto de partida o sintoma e trabalham visando asua eliminao, tendo como fim a normalizao psicossocial. uma perspectiva deadaptao e conformidade social, sendo o retorno normalidade uma verso da restitutio adintegrum. A psicoterapia utiliza a via da palavra e a psiquiatria, alm dela, emprega meiosqumicos e/ou fsicos. O que importa, porm, que ambas esto sob a gide de uma ticaque coincide com a moral.

    A psicanlise, por outro lado, embora tendo tambm como ponto de partida o sintoma,

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    trabalha visando no a sua eliminao, mas certa reconciliao do sujeito com o sintoma.Em vez de tratamento do sintoma, tratamento pelo sintoma. O que implica uma mudana da

    relao do sujeito com o seu gozo, numa perspectiva tica que se distancia da moral e quese realiza no caso a caso; numa tica em que a exigncia no adequar-se norma social,mas, sim, no ceder de seu desejo.

    Qual seria, entretanto, a diferena entre psicanlise pura e aplicada? Miller faz a distino.

    A psicanlise pura a psicanlise na medida em que ela conduz ao passe do sujeito, namedida em que ela se conclui pelo passe. A psicanlise aplicada a que concerne o sintoma, a psicanlise enquanto aplicada ao sintoma.(29)

    Ou seja, a psicanlise pura aquela que apresenta uma sada pelo passe, e que encontraem Lacan uma definio radical. A distino entre pura e aplicada se apia na distinoentre sintoma e fantasia. A psicanlise aplicada trabalharia o sintoma, ao passo que apsicanlise pura comportaria um para alm do sintoma, quer dizer, a construo da fantasia,a travessia da fantasia.

    Assim formulada, a questo fica bem delimitada. Miller comenta, no obstante, que naltima parte do seu ensino Lacan d outra definio do final de anlise: a identificao dosujeito com o seu sinthoma. Ora, o conceito de sinthoma rene sintoma e fantasia.Conseqentemente, com base em suas ltimas proposies,a diferena entre psicanlisepura e aplicada fica relativizada.

    Por mais que se considere a incessante modificao que caracteriza o ensino de Lacan (e deFreud), no h como confundir, por exemplo, psicoterapia e psicanlise aplicada. Entretantos balizamentos possveis destaco, agora, para distingui-las, um que ressalta pela sua

    importncia. A psicoterapia da ordem da restituio; restituio da normalidade perdida. Apsicanlise da ordem da mudana; depois dela, o sujeito no mais o mesmo, diferentede antes. A psicanlise requer mutao subjetiva.

    Psicanlise e psicofrmaco

    comum a suposio de que a psicanlise se oporia ao tratamento com o psicofrmaco ou,ento, nada teria a dizer sobre o assunto. Na primeira parte do presente trabalho fiz umaavaliao crtica do emprego de tal medicamento segundo a orientao da psiquiatriabiolgica. Trago, agora, a questo: haveria lugar possvel para o psicofrmaco no contextode um tratamento de orientao psicanaltica?

    Lembraria inicialmente que, tanto da parte de Freud como da parte de Lacan, noencontramos otimismo ou alento em relao s possibilidades de um tratamentopsicanaltico; existe, pelo contrrio, uma cautela fundamental. Em Freud, por exemplo,pode-se identificar um desencorajamento do analista frente psicose. E de Lacan pode-sedepreender, com Miller, a frmula que reverbera como advertncia: nem tudo significante(30). Todas essas precaues apontam para um mesmo rumo, onde est: ogozo.

    Por outro lado, h indicaes precisas de que o psicofrmaco poderia ser uma intervenopossvel quando no se pode contar com a eficcia do significante. Citarei Freud:Esperamos que o futuro nos ensinar a agir diretamente, com a ajuda de substnciasqumicas, sobre a quantidade de energia e a sua distribuio no aparelho psquico. possvel que descubramos, ento, outras possibilidades teraputicas, ainda

    insuspeitadas.(31)

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    Em seu artigo Como engolir a plula, Eric Laurent comenta uma citao de Lacan no Pequeno

    discurso aos psiquiatras (1967): A psiquiatria entra na medicina geral a partir da seguintebase: que a medicina geral, entra ela mesma, inteiramente, no dinamismo farmacutico.Evidentemente, produzem-se a coisas novas: obnubila-se, tempera-se, interefere-se oumodifica-se...(32) . Laurent afirma que os termos obnubilao e tempero situam opsicofrmaco a partir da famlia dos anestsicos. E acrescenta: Num texto mais antigo,Lacan fazia a equivalncia entre o dipo e uma dose de anestsico. Poderamos aindareformul-la como primeiro paradigma do gozo em Lacan. O dipo permite asignificantizao, a neutralizao do gozo. Nesse sentido, ele sublimao ouanestesia.(33)

    Voltarei, agora pergunta: Haveria lugar para o psicofrmaco no contexto de umtratamento psicanaltico?

    As citaes de Freud e de Lacan permitem-nos precisar, portanto, qual seria a diferenaentre a funo do psicofrmaco num tratamento psiquitrico de orientao biolgica e numpossvel tratamento psicanaltico. Resumindo: para a psiquiatria, o psicofrmaco visa aosintoma, para a psicanlise, visaria ao gozo. Nos dizeres de Freud, as substncias qumicaspoderiam influir sobre a quantidade de energia e sua distribuio no aparelho psquico, ouseja, na regulao do gozo. Nos dizeres de Lacan, haveria uma equivalncia entre o dipo euma dose de psicofrmaco, na medida em que ambos introduzem uma neutralizao, umtempero do gozo.

    Eu daria como resposta sim, deixando bem claro: radicalmente diferente o lugar ou afuno do psicofrmaco num tratamento psicanaltico e num tratamento psiquitrico deorientao biolgica. No ltimo, como foi exposto, o medicamento visa reduo ou

    eliminao dos sintomas, buscando a adaptao ou a conformidade social. Por outro lado,uma articulao com a clnica psiquitrica tendo em vista o emprego do psicofrmacocompatvel com a perspectiva psicanaltica visaria a efeitos no sobre os sintomas, massobre o gozo. O psicofrmaco estaria a servio, ento, de certa regulao ou de certotempero do gozo, operao essa de algum modo impossibilitada de ser efetivada pela via dosignificante. E, o que mais importante, seria uma interveno sob a tica da psicanlise,subordinada autenticidade do sujeito.

    O bem e o bem-estar

    No mbito do presente trabalho a tica tem desempenhado a funo de um divisor deguas. Motivo que me leva a retomar o tema e apresentar mais alguns aspectos. Comearei

    por uma considerao fundamental: a tica da psicanlise diferente da maioria das demaisna medida em que inclui uma ciso entre bem e bem-estar. Dizendo com outras palavras: osujeito busca um bem que no lhe proporciona bem-estar. o que Freud situa alm doprincpio do prazer e que Lacan denomina gozo. Com efeito, o gozo constitui um bem para osujeito, inclusive um bem absoluto, separado de seu bem-estar, um bem quefreqentemente se traduz por mal-estar, quando no se confunde com a dor.(34) Aexpresso mxima dessa diviso do sujeito contra si mesmo o supereu.

    A idia de um para alm do princpio do prazer deu origem ao conceito freudiano de pulsesde morte, rejeitado por muitos psicanalistas como especulao filosfica. No entanto, trata-se precisamente do contrrio: de algo suscitado pela clnica e nela ancorado. umaformalizao terica que procura dar conta de achados clnicos importantes, como, porexemplo, a compulso repetio, a reao teraputica negativa, o masoquismo. Muitos

    psicanalistas eminentes consideram o supereu como o mais clnico dos conceitos

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    psicanalticos.

    A dificuldade de admitir tais proposies tem outro fundamento. O discurso capitalista,hegemnico em nossa poca, sustenta-se na tica do bem-estar e promete, com osprodutos da cincia, felicidade outrora inimaginvel. A psicanlise, no mundocontemporneo, intolervel no mais pelo sexo, hoje explcito na novela das 20 horas, nomais pelo inconsciente, numa civilizao em que os objetos mais-de-gozar superam osideais. O que torna a psicanlise hoje insuportvel a postulao das pulses de morte, averificao de um para alm do princpio do prazer.

    A coincidncia do bem com o bem-estar vem desde Aristteles, para quem o Bem Supremo da ordem da felicidade.

    Em Kant j se pode encontrar a ciso entre bem e bem-estar: preciso que o homemesteja apegado a algum bem que o separe de sua comodidade para que chegue a sermoral.(35) Ele distingue das Gute, o Bem, de das Wohl, o bem-estar. Nesse sentido, umprecursor do alm do princpio do prazer.

    No h referncia melhor do que a kantiana para a concincia moral. Exemplo disso o queele denominou imperativo categrico: Age de tal modo que a mxima de tua vontade possavaler-te sempre como princpio de uma legislao universal.(36) H, assim, subordinaoradical do prazer lei universal. Em nome da moralidade universal, a exigncia de renncias pulses. Trata-se, portanto, de uma tica do racalcamento, sendo possvel identificar oimperativo categrico kantiano ao supereu.

    O mal-estar na civilizao um texto fundamental para o desenvolvimento do conceito desupereu. Ali Freud descreve a sua gnese. Farei uma breve recapitulao. Num primeiro

    momento, a renncia pulso se faz frente a uma autoridade externa, que ameaa comperda de amor e castigo. H quem permanea nesse nvel, de uma moralidade exterior, cujosuporte a polcia, a justia, a presena do Outro. Num segundo tempo, surge aorganizao do supereu como uma autoridade interna e a renncia se deve ao medo dele. Osupereu como uma introjeo do Outro. Num terceiro tempo, o paradoxo: cada renncia pulso, em vez de aplacar, aumenta a severidade do supereu.(37) O supereu exige rennciae esta, por sua vez, engorda o supereu. o que Lacan, em Televiso, chama de a gula dosupereu. Da agressividade que o sujeito retorna contra si mesmo provm, portanto, o quese chama a energia do supereu.

    Miller comenta que a renncia pulso no a renncia ao gozo. Se no h renncia, osujeito goza. Se h renncia, o sujeito goza de renunciar. Ou goza porque comeu amarmelada, ou goza porque no comeu a marmelada.(38) Ou goza desde o isso, ou goza

    desde o supereu. Da a afirmao de Lacan, tambm em Televiso, que o sujeito feliz.(39)

    O paradoxo apresentado (a renncia pulso aumenta a severidade do supereu) prepara oterreno para outro aspecto da questo. Lacan considera o imperativo categrico umaenunciao sem enunciado. E usa Sade para explicitar, num encontro quase surrealista, oobjeto da tica, que est escondido em Kant. Nesses termos formula o imperativo sadeano:Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito,sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorses que me d gosto de nelesaciar.(40)

    Trata-se da descrio da experincia de gozo como fundamental. Se a mxima kantiana

    corresponde ao supereu, a mxima sadeana corresponde ao Goza!, que o imperativo do

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    supereu. Exigncia paradoxal, exigncia de gozo absoluto, impossvel e no permitido.

    Por que razo usar o cmulo da imoralidade para esclarecer o cmulo da moralidade? Lacanavana, na verdade, na trilha aberta por Freud: o que sustenta a conscincia moral o gozoda pulso. A crueldade sdica do supereu nada mais do que um deslocamento dasexigncias pulsionais. E a moral kantiana, com seu rigor absoluto, a outra face daperverso polimorfa sadeana. Como lembra Freud numa clebre formulao, a psicanliseveio demonstrar no s que os homens so mais imorais do que admitem, como tambmque eles so mais moralistas do que supem.

    A tica do desejo

    No horizonte da psicanlise h uma tica que no do bem-estar, que no dauniversalidade, que no do supereu. Para apresenta-la em termos mnimos necessrio

    situar, primeiro, a antinomia entre desejo e gozo.No Projeto encontramos a meno de Freud a uma experincia (mtica) de satisfao plena(Befriedgungserlebnis). Corresponderia relao incestuosa; com efeito, o objeto desatisfao, a Coisa (das Ding), Outro absoluto do sujeito, a me, o objeto do incesto.(41)E Lacan afirma que das Ding o fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da leimoral.(42) A experincia mtica de satisfao plena o gozo absoluto, exatamente o que transposto como imperativo superegico: Goza!

    Por outro lado, o que Lacan chama de lei simblica ou lei do pai a que dita a proibio doincesto, que implica no apenas o no te deitars com tua me dirigido criana, como,tambm, um no reintegrars o teu produto endereado me.(43) O Nome-do-Pai, oupai simblico , no Outro, um significante especial, que funda a lei. E a instncia que exerce

    de maneira duradoura a funo de lei proibidora o supereu. Nesse aspecto, um vestgioda resoluo do conflito principal da cena edipiana. clebre a frmula freudiana segundo aqual o supereu o herdeiro do complexo de dipo. Lacan comenta a propsito:atenhamo-nos ao supereu edipiano. Que ele nasa no declnio do dipo quer dizer que osujeito incorpora sua instncia (interditora).(44)

    O supereu, por conseguinte, uma instncia paradoxal. Nele pode-se distinguir o que sechama de supereu paterno ou edipiano (freudiano), com funo interditora de gozo, e o quese chama de supereu materno, pr-edipiano (lacaniano), que uma exortao de gozo. Oque a lei simblica interdita, ento, a satisfao impensvel do desejo incestuoso dacriana, ou seja, o gozo absoluto. Ao barrar o gozo puro, estabelece uma perda de gozo,define uma falta. Nessa falta se origina o desejo. A limitao do gozo abre espao para o

    desejo. A rigor, s se pode falar em desejo quando est inscrita a lei simblica. Desejo egozo so, assim, antinmicos.

    O gozo absoluto exclui o desejo. E a limitao do gozo pelo significante deixa um resto degozo, o objeto mais-de-gozar, objeto (a), que tambm objeto causa de desejo.

    Encontramos, com o desejo, novo paradoxo. Ele se origina de uma falta e, se o sujeito sedirige a um objeto, para preench-la. Em outros termos, o desejo busca a satisfaoplena, quer dizer, prossegue a procura da satisfao incestuosa, ainda que proibida. E que,se alcanada, aniquilaria o desejo (da, talvez, aquela expresso: matar o desejo). Por essemotivo o desejo , a um s tempo, vontade e rechao de gozo. Razo pela qual ,necessariamente, desejo insatisfeito. O desejo a sua insatisfao.(45)

    Na clnica, verificamos que o obsessivo, perturbado com o conflito inerente satisfao,

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    perde-se na dvida e na indeciso e procura desconhecer seu desejo. A histrica, por suavez, mira o impossvel da plenitude e s consegue realar ainda mais sua falta, afogando-se

    na insatisfao. No curso de uma anlise caminha-se do desejo no decidido para odecidido; do desejo impossvel para o estruturalmente insatisfeito.

    importante salientar que, se de um lado, enquanto instncia interditora, o supereu funo coordenada ao desejo, por outro lado, enquanto exortao de gozo, ele se ope aodesejo. No seu seminrio sobre A tica da psicanlise, Lacan diz que a experinciapsicanaltica permite constatar que, se o sujeito se sente efetivamente culpado, issoacontece sempre, na raiz, na medida em que ele cedeu de seu desejo.(46)

    O sujeito sempre responsvel

    Por nossa posio de sujeito, sempre somos responsveis. Que chamem a isso como

    quiserem, terrorismo.(47) De forma radical e provocadora, Lacan assim se expressa, numaformulao que tem srias implicaes ticas. Apontar a responsabilidade do sujeito diferente de apontar a influncia dos neurotransmissores, da gentica, da famlia, do Outro.Novamente, aqui, a tica da psicanlise se diferencia.

    A idia de responsabilidade est tradicionalmente ligada idia de culpa, numa conotaojurdica ou moral. importante, do ponto de vista psicanaltico, o sentimento de culpa;significa um sujeito responsvel, um sujeito tico. Um canalha , precisamente, algum quese desculpa de tudo.(48)

    A culpa pressupe o sujeito de direito que, assim como o Estado de direito, indispensvel psicanlise. Por essa razo concordando com Vigan considero a definio dereabilitao dada por Franco Rotelli mais prxima da prtica desenvolvida sob a orientao

    lacaniana. Rotelli assim afirma: A reabilitao, em psiquiatria, pode ser identificada comoum programa de restituio, reconstruo e, s vezes, construo do direito pleno cidadania e da construo material de um direito como tal.(49)

    O que no quer dizer, entretanto, que a psicanlise est a para culpar ou punir o sujeito.Ela parte do sentimento de culpa para chegar responsabilidade, mas considerando-o apatologia da responsabilidade. Parte da culpa para chegar ao crime desconhecido. Aperspectiva psicanaltica procura, pelo contrrio, retirar a idia de responsabilidade docontexto moralista. Responsabilizar pode, num primeiro momento, confrontar o sujeito comuma situao penosa. No obstante, num segundo momento, pe a seu alcance meios queele havia repelido. No terrorismo; aposta no sujeito.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS1i. MILLER, J.-A. Sade Mental e Ordem Pblica. In: Curinga, n 13. Belo Horizonte: EscolaBrasileira de Psicanlise Minas Gerais, set. 1999, p. 20-21.2i. FOUCAULT, M. A constituio histrica da doena mental. In: Doena Mental e Psicologia.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p. 78.3. BERCHERIE, P. Os Fundamentos da Clnica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989,captulo I.4. FOUCAULT, M. A constituio histrica da doena mental. Op. cit., p. 82-3.5. BIRMAN, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p.344 et seq.6. FOUCAULT, M. O Nascimento da Clnica. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987, c.VII e VIII.

    7. CANGUILHEM, G. O Normal e o Patolgico. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 3 ed.,

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    1990, p.187.8. CANGUILHEM, G. O Normal e o Patolgico. Op. cit., p. 188.

    9. LACAN, J. Psicoanlisis y medicina. In: Intervenciones y textos. Buenos Aires: Manantial,1985, p. 92.10. BERCHERIE, P. Os Fundamentos da Clnica. Op. cit., c. 5.11. ALONSO-FERNANDEZ, F. Fundamentos de la Psiquiatria Actual. Tomo I. Madrid: EditorialPaz Montalvo, 1968, p. 26-27.12. LALANDE, A. Vocabulario Tcnico y Crtico de la Filosofa. Buenos Aires: El Ateneo,1967,p.656.13. Sade Mental: Nova Concepo, Nova Esperana. Relatrio Sobre a Sade no Mundo2001. Organizao Pan-Americana de Sade e Organizao Mundial de Sade.14. GORENSTEIN, C. & COLS. Escalas de Avaliao Clnica em Psiquiatria ePsicofarmacologia. So Paulo: Lemos-Editorial, 2000, p. 401.15. Classificao de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. OrganizaoMundial de Sade. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1993, p. 5.16. SOLER, C. El sntoma en la civilizacin. In: Diversidad del sntoma. Buenos Aires: EOL,1996, p. 95.17. VIGAN, C. A construo do caso clnico. In: Curinga, n 13. Belo Horizonte: EscolaBrasileira de Psicanlise Minas Gerais, setembro de 1999, p. 50-1.18. LALANDE, A. Vocabulrio Tcnico y Crtico de la Filosofa. Op. cit., p. 331.19. LALANDE, A. Vocabulrio Tcnico y Crtico de la Filosofa. Op. cit., p. 656.20. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p.1271.21. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Op. cit., p. 1958.22. MILLER, J.- Ensenanzas de la presentacin de enfermos.Ornicar? n 3. Barcelona:Petrel, 1981, p. 58.23. MILLER, J.-A Respostas ao paradoxo. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

    Editor, 1977, p. 569.24. BINSWANGER, L. El caso de Ellen West. Estudio antropolgico-clnico. In: MAY, R., ed.Existencia. Nueva dimensin es psiquiatra y psicologa. Madrid: Gredos, 1967, p. 288-434.25. MILLER, J.-A. Lhomologue de Malaga. In: Le temps fait symptme. Paris: ECF, La Causefreudienne, n 26, 7-16, fvrier 1994, p. 9.26. VIGAN, C. A construo do caso clnico em Sade Mental. Op. cit.27. ZENONI, A. Psicanlise e Instituio. A Segunda Clnica de Lacan.In: Abrecampos, Ano1, N 0. Belo Horizonte: Instituto Raul Soares, 2000, p. 19.28. MILLER, J.-A. Lies sobre apresentao de doentes. In: Os casos raros, inclassificveis,da clnica psicanaltica. A conversao de Arcachon. So Paulo: Biblioteca FreudianaBrasileira, 1998, p. 202.29. MILLER, J.-A . Psicanlise pura, psicanlise aplicada & psicoterapia. In: Phoenix, n 3.Curitiba: Escola Brasileira de Psicanlise Delegao Paran, setembro 2001, p. 29.

    30. MILLER, J.-A. Duas Dimenses Clnicas: Sintoma e Fantasia. In: Percurso de Lacan. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor,1987, p. 94.31. FREUD, S. citado por DELAY, J. New trends in psychopharmacology. In: Proceed. Of theIV World Cong. Of Psych., 1:283-287, Sept. 1966.32. LACAN, J. Petit discours aux psychiatres (1967) (indito).33. LAURENT, E. Como engolir a plula? Op. cit., p.34. MILLER, J.-A. Clnica del supery. In: Recorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial,1984, p.. In: Recorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1984, p. 139.35. MILLER, J.-A. Clnica del supery. Op. cit., p. 140.36. KANT, E. Crtica da Razo Prtica. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 40.37. FREUD, S. O mal-estar na civilizao.ESB, Vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago,1974, p.151-2.

    38. MILLER, J.-A. Lgicas de la vida amorosa. Buenos Aires: Manantial, 1991, p. 56.

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    39. LACAN, J. Televiso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p.45.40. LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 780.

    41. Pode-se estabelecer uma correlao entre das Ding freudiana e o Bem Supremoaristotlico, das Gute kantiano, o imperativo sadeano e a vontade de gozo lacaniana.42. LACAN, J. O seminrio. Livro 7. A tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1988, p. 90.43 i. LACAN, J. O Seminrio. Livro 5. As formaes do inconsciente. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1999, p. 209.44. LACAN, J. O Seminrio. Livro 7. A tica da psicanlise. Op. cit., p. 368.45. MILLER, J.-A. Demanda e desejo. In: Lacan elucidado. Op. cit., p. 448.46. LACAN, J. O Seminrio. Livro 7. A tica da psicanlise. Op. cit., p. 382.47 . LACAN, J. Cincia e verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1998, p.873.48. MILLER, J.-A. Patologa da tica. In: Lacan elucidado. Op. cit., p.337.49. VIGAN, C. A construo do caso clnico em Sade Mental. In: Curinga n 13. BeloHorizonte: Escola Brasileira de Psicanlise, set. 1999, p. 53.

    UM MATEMA PARA A SUPERVISO*

    Lzaro Elias Rosa

    1)INTRODUO

    Vivemos um momento fecundo nas Escolas da AMP. Um momento de retorno a Lacan aoAto de Fundao. Os colegas que me antecederam aqui o abordaram sob vrios ngulos.

    O Conselho da EBP-MG, ao eleger o tema Em Direo a uma Poltica da Superviso, foca seutrabalho na Seo de Psicanlise Pura, onde Lacan inclui a superviso dos psicanalistas emformao(1).

    Abordarei a questo a partir de um conceito que se encontra no Ato de Fundao, mas nocontemplado no recorte feito pelo Comit de Ao da Escola Una, qual seja, o daTransferncia de Trabalho.

    Quanto Superviso, Lacan se refere a ela nos seguintes termos: ...a superviso imperativa..., ...entrada em superviso..., ...superviso qualificada..., e, ainda, ...a Escola...vai assegurar as supervises convenientes (2). Certo de que, aqui, os regulamentos

    estariam fadados aos prprios descumprimentos, Lacan no os formulou. Por outro lado,deixou-nos um conjunto de indicaes que so verdadeiros marcos balizadores de princpios,que exigem esforos de pesquisa para serem transformados em operadores de nossaprtica.

    2) POLTICA LACANIANAQuando falo de Poltica Lacaniana no se trata de narrar acontecimentos que envolveramLacan institucionalmente, mas de extrair deles princpios (3)

    Em Lacan, possvel falar de trs sentidos para o termo Poltica:

    a) Sentido Geral: As opinies de Lacan, inclusive suas construes, seus matemas.

    b) Poltica na Psicanlise: Diz respeito posio de Lacan, dos analistas, no s em relao

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    a IPA, mas tambm aos colegas, aos alunos, aos pacientes e ao pblico.c) Poltica na Cura: Aqui, trs termos, Ttica, Estratgia e Poltica so articulados

    respectivamente Interpretao,Transferncia e finalidade mesma da cura analtica. Estaltima, a poltica para a cura, inclui os objetivos da formao dos analistas e da conclusoda cura(4).

    3) O ATO DE LACAN

    Qual foi o ato de Lacan e o que ele inaugurou em 21/06/64? Seu Ato inaugurou umadisjuno indita, jamais pensada a disjuno entre Psicanlise e IPA. (5)

    A expresso Escola como Experincia Inaugural se encontra na Nota Adjunta e a queLacan enuncia: o ensino da psicanlise no se pode transmitir de um sujeito ao outro a noser pelas vias de uma transferncia de trabalho. ...os seminrios nada fundaro se no

    remeterem a essa transferncia. (6)A razo mesma do Ato de Fundao da Escola seria a de permitir que se efetue atransferncia de trabalho como transmisso de um ao outro, efetuada segundo o modelo daexperincia analtica. Isto absolutamente novo na histria da psicanlise a Escola com afinalidade de minimizar todo e qualquer obstculo a transmisso da Psicanlise. A Escola foifundada para o ensino de Lacan, o que lhe foi retirado desde Estocolmo da, princpios epolticas em vez de regras (7).

    Todo esforo que fizermos no sentido de traar polticas e princpios uma recuperao dapresena de Lacan desde um simples acolhimento de algum que deseja ser escutadonum dado momento, a cada concluso de cura verificada pelo passe. A Escola a casa deLacan, quer dizer, feita completamente para sustentar a transferncia de trabalho. (8)

    Quanto formao, h um princpio em Lacan: no ceder frente ao real nela em jogo. Avida de Lacan nos mostra que, este princpio, ele o entendeu, como no ceder frente osefeitos transferenciais de seu ensino ele os assumiu at o final. Escutamos a o eco deum princpio tico clebre de Lacan: no ceder sobre seu desejo.(9)

    4) O REAL EM JOGO NA FORMAO

    Denomina-se Ato o que susceptvel de isolar o Real em jogo na formao analtica. Estadefinio dada em Ato por Lacan como resposta ao sentimento de vazio de seus alunos.Lacan vai preencher esse vazio com o Passe e com uma redefinio da prtica analtica emtermos de Ato. (10)**.

    Com o episdio do seu fracasso com a Proposio,(...) quando reconhece que no conseguiu desalojar seus alunos de suas posies, Lacannos diz que eles, finalmente, preferiram o semblante de decises calcadas na forma, em vezde considerarem o de que se trata o Real. Cada vez que se percebe que o respeito s formastriunfa sobre o Real em jogo, o que se capta o sentimento de fracasso. (11)

    Penso que este ndice pode ser elevado ao nvel de princpio, pois preciso considerar o fatode que um significante pode receber significaes muito diferentes ao longo do tempo (12).Foram necessrios muitos anos para que Proposio e Passe deixassem de ser umaempresa perversa, um experimento paranico e uma aberrao de Lacan. (l3).

    No ceder frente o real em jogo permitiu a Lacan todo o avano obtido a partir de 1967.

    Mas, quanto a isto bom estarmos advertidos de que nada protege o Passe de tornar-se

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    tambm uma cerimnia(14) j que ele, alm de sua face clnica, contm tambm uma faceinstitucional, e como tal, sujeito ao real em jogo que visa afrontar. Essas duas faces devem

    se articular e nos colocam questes cruciais para nossa prpria orientao.

    Se a Escola faz Psicanlise e IPA se separarem, o Passe faz romper o que pode ter ficado demal entendido de Anlise Terminvel e Interminvel. Lacan prope, com o Passe, que hfinal de anlise. O Passe consiste em dizer o que exatamente esse final, isto , umaanlise perfeitamente terminada. Trata-se de uma ruptura de Lacan com o texto freudianode 1937 uma sensacional e ousada ruptura tanto que o texto no citado por Lacan naProposio. (15)

    Penso que h ruptura sim, mas com o que de equivocado se foi convencionando a partir domonumental texto de Freud. Seria necessrio um explorao maior do que nele se postulacomo sendo Resto. No se poderia dizer a partir disto e por isto porque ao final h umresto que uma anlise interminvel e poderia ser levada ao infinito de uma seqnciade sesses. Pelo contrrio, entendo que Lacan formaliza no Passe o que esse final,retomando o resto em sua dimenso de Real, de impossvel, de limite, que exatamente oponto a ser tocado para que a anlise se conclua e, se a se chega na empreitada, porquea anlise perfeitamente terminvel.

    5) TRANSFERNCIA DE TRABALHO E SURPERVISO

    Retomo a Nota Adjunta: O ensino da psicanlise no pode se transmitir de um sujeito aooutro a no ser pelas vias de uma transferncia de trabalho. Os seminrios, incluindo o meunos Altos Estudos, nada fundaro se no remeterem a essa transferncia. (16)

    Esta frase de Lacan no concerne direo da cura, mas ao ensino, transmisso da

    psicanlise. O trabalho em questo s poderia ser o do analista, de algum modo se pondo nolugar de analisante, daquele que fala, que ensina. Os termos maiores so Trabalho e Escola.Esta um organismo para realiza-lo. O trabalho seria um nico (...) restaurar a lminacortante da verdade freudiana... ...objetivo... indissolvel de uma formao a ser ministradanesse movimento de reconquista. (17).

    Outro termo Transferncia, que em Freud bertragung, cujo sentido original passagem, deslocamento de um lugar para outro. O que viria em 67, o Passe, j se encontraa, nesse termo inaugural de Freud.

    O que Lacan nos diz que h trabalho que se transfere e que isto se d unicamente de umsujeito ao outro e no de um sujeito para uma massa de sujeitos. Esta lgica tem uma estrutura de recorrncia matemtica de sucesso engendrada pela

    clusula +1, que permite partir de Zero e continuar at o infinito. esta linha de recorrnciaque nos permite indicar que a transferncia de trabalho no se inscreve entre Um, e Todos.Pelo contrrio, tal como a experincia psicanaltica, concerne ao lao de Um com Um, de Umcom Outro, e no de Um com Todos. (18).

    pergunta o que que que se supe que passado de Um a Outro na Transferncia deTrabalho, a resposta precisamente o trabalho, ou seja, Transferncia de Trabalho Passede Trabalho. Ento, h que se trabalhar, pois, se vadiar, o que se tem Passe dePreguia.(19).

    No Ato de Fundao a idia de Transferncia de Trabalho est ligada induo, termo deLacan para conduzir , conduzir para dentro. Para que esta induo seja realizvel

    necessrio que reste algo a fazer, a induzir ao trabalho. (20). Articulado induo e

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    Transferncia de Trabalho, encontramos o termo Impasse tambm aqui encontramos oPasse.

    Alm da vertente indutiva, em contra-ponto, h a idia de exduo, a qual conduziria oanalisante para fora da anlise. Aqui, quero apenas assinalar que no Passe se tem estadupla dimenso do que nele se ganha e do que se perde. Tanto num caso quanto no outrodiz respeito ao Saber. O que se ganha, ao final, o desejo de Saber e o que se perde ohorror ao Saber. (21). O que sustenta o sujeito em anlise o amor ao saber, quer comotransferncia quer como trabalho da mesma.O desejo de saber vem ao final o novo que se ganha da experincia. Passa-se do amorao desejo. Este desejo de saber comea mais alm da transferncia e de seu trabalho,necessrio para produzir saber. Trata-se portanto de passar do amor ao saber, ao trabalhopelo saber.(22).

    Em Cinco Variaes sobre o Tema da Elaborao Provocada, (23) o Discurso da Histeria,tomado como paradigma do discurso da cincia, manipulado em sua estrutura,fornecendo-nos os matemas do Trabalho da Transferncia e da Transferncia de Trabalho. Asimplicidade do artifcio dispensa qualquer exposio mais detalhada. Eis o matema:

    O artifcio consiste em deslocar o pequeno a de seu lugar estatutrio e coloca-lo antes de $,esvaziando o lugar da verdade e transformando o de mais de gozo em agente provocador,assim:

    Ento, de a a $ h Trabalho de Transferncia, que prolongado dessa maneira, transforma-seem Transferncia de Trabalho, assim:O artifcio do deslocamento de a de seu lugar estatutrio implica na mudana de seuestatuto de + de gozar para o de causa de desejo condio necessrio para o surgimentode seu poder de causar, provocar o sujeito barrado para o trabalho prprio que a se realiza.

    Por outro lado, o sujeito teria tido, a, o seu gozo esvaziado, o que s possvel, penso,quando o prprio trabalho da transferncia teria sido levado ao ponto de poder terprovocado no sujeito, em sua relao com seus significantes mestres, uma alterao capazde leva-lo a produzir saber, no mais por amor, mas pela via de um desejo, novo, o desaber, desejo de trabalhar pelo saber.

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    Esta frmula matmica nos mostra a posio mesma em que Lacan se sustentou no seuensino: incitando a saber, mas em posio de analisante e s falando a partir de Freud.(24)

    Todo analista que se proponha transmisso de orientao lacaniana da Psicanlise, terque se confrontar com o fato de que:

    (...) as relaes com seus analisantes e as relaes com a psicanlise so dois registrosdistintos que no obstante se articulam, pois no se poderia estar em boa posio com seusanalisantes sem elucidar suas relaes com a psicanlise mesma. A psicanlise comoprtica, comporta um saber-fazer, e podemos dizer que este se transmite pela superviso, aqual no tem nenhum valor se limita-se a pautar as relaes do analista aprendiz emposio de aprendiz com seus pacientes. A superviso no vale nada se no aponta paraum mais alm, qual seja, as relaes do analista em formao com a psicanlise. (25)Trago, ento, o que pude formular como concluso, ressalvando que se trata de pontos para

    serem debatidos:1. H Transferncia de Trabalho nos mais diferentes lugares e estgios que um analista emformao possa se encontrar, admito isto sim, mas a verdadeira transferncia de trabalhos se instala ao final da anlise ela, afinal, o elemento que garantiria o ensino dapsicanlise, transmitida de um a outro, como entendeu Lacan.

    2. A superviso, como forma de transmisso da psicanlise enquanto uma prtica, sesustenta na Transferncia de Trabalho, e o matema de Miller, acima referido e ajustado,poderia ser a expresso da estrutura que se constri quando se encontram o analistapraticante em formao e o analista por ele escolhido como seu supervisor.

    3. Esta estrutura no seria nem a do discurso do analista nem a do discurso da histeria, mas

    articula ambos, quando se trata do comentrio contnuo do ato e de manter viva e emestado nascente a psicanlise (26).

    4. H na superviso um tensionamento contnuo que articula uma tica a da psicanlise:tica do bem dizer, e uma tcnica, onde Freud e Lacan constituem nosso Outro, enquantopoos de cincia, figuras de todo saber.(27) Essa tenso deve assim ser vetorizada:

    Referncias Bibliogrficas:

    1) Lacan, J. Ato de Fundao. In: Anurio da Escola Brasileira de Psicanlise - ano 2000,pg. 88.2) Idem, pg. 88 e 91.

    3) MILLER, J-A. Poltica Lacaniana Seminrio de 1997-1998 Buenos Aires: ColeccionDiva, 1999 - pg. 12.4) Idem - pg. 9 e10.5) Idem -pg. 20.6) Lacan, J. Ato de Fundao, op. cit., p. 91 e 92.7) MILLER, J-A. Poltica Lacaniana. Op. cit., pg. 23.8) Idem p. 26.9) Idem p. 28.10) Idem p. 34 e 35.11) Idem p.3412) Idem p. 35.13) Idem p. 34 e 35.14) Idem p. 35

    15) Idem p. 43.

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    16) LACAN-J. Ato de Fundao. Op. cit. pg. 92.17) Ibid., p. 87.

    18) MILLER, J-A. El Banquete de los analistas Buenos Aires: Paids. Ano 2000 - pp 180-181.19) MILLER, J-A. Orientao Lacaniana - p. 18220) Idem p. 182.21) Idem p. 189.22) Idem p. 190.23) MILLER, J.A. Cinq. Variations sur le Theme de LElaboration Provoquee. La LettreMensuelle n.61 pp. 5-- 11.***24) Idem p. 10.25) MILLER, J-A. El Banquete de los analistas. op. cit. p. 10.26) Comit de Ao da Escola Una O princpio da Superviso na Escola. Correio - Revistada Escola Brasileira de Psicanlise n. 31 Nov. de 2000 p. 9.27) MILLER, F-A. tica e Formao dos Analistas Interveno na Soire da Garantiaem 12.02.1990. Paris. Indito - p. 13.28) Ibid., p. 22

    * Este texto foi apresentado originalmente com o ttulo Transferncia de Trabalho eSuperviso, nos Seminrios do Conselho da EBP-MG, do ano 2001, cujo tema era Rumo auma Poltica da Superviso, no dia 27.09.2001. Agradeo a colega Mrcia Rosa pelainspirao do ttulo atual, que to bem nomeia a contribuio que pude trazer, poca, parao debate.** A poca de sua Proposio o tema de seu seminrio era O Ato Analtico.*** H traduo para o portugus, publicada em: O Cartel Stella Jimenez (organizadora).Rio de Janeiro: Editora Campos, 1994.

    Consideraes iniciais sobre Psicose e Debilidade

    Henri Kaufmanner

    Em seu texto cot de la plaque, Pierre Bruno nos faz uma breve introduo sobre aentrada do conceito debilidade mental no ensino de Lacan. Informa-nos que a expressodebilidade mental foi criada em 1909 por Dupr, e que esta expresso estendia ao mentaluma qualificao que at ento era reservada ao fsico. Aliada a psicotcnica, a noo dedebilidade ganha uma base mensurvel, embora de cientificidade questionvel, que permiteavaliar a debilidade como um dficit em relao a uma competncia intelectual, que teria a

    sua normalidade estabelecida estatisticamente. Tal noo, todos ns sabemos, persiste athoje.

    A primeira abordagem mais consistente da debilidade tentando abrir o caminho para umainterveno da psicanlise se deu com Maud Mannoni e seu livro que em portugus sechama A criana retardada e sua me. Mannoni descola a debilidade de uma relaounvoca com o orgnico e a relaciona a um efeito do dizer parental. Nesse dizer parentalressalta a proeminncia materna, estabelecendo uma certa relao entre o fantasmamaterno e o desenvolvimento da debilidade em uma criana.

    No Seminrio 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise, encontramos o primeiromomento em que Lacan aborda o conceito de debilidade. E provocado pelo trabalho deMaud Mannoni que ele faz essa primeira aproximao. Cabe ressaltar que posteriormente

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    associasse, at que em determinado momento de seu experimento, Pavlov passa a oferecerao animal, somente os estmulos sonoros. A partir de tal evento o cachorro desenvolve uma

    disfuno gstrica.

    Sabemos que os animais so sensveis forma, seja ela visual ou acstica, e o experimentode Pavlov uma boa demonstrao disso. Sabemos tambm que quando na natureza, osanimais no estariam isentos de uma certa antecipao de um acontecimento, como, porexemplo, a aproximao de uma forma, bem como tambm no estariam isentos de umacerta decepo decorrente da frustrao de suas expectativas antecipatrias. Toda amultiplicidade de rituais de acasalamento, de agressividade, entre outros, tantas vezesabordados por Lacan, demonstram-nos a existncia no instinto dessa dimensoantecipatria. Logo, no podemos simplesmente dedicar decepo, o valor de causa nodesenvolvimento dos problemas gstricos no cachorro da experincia de Pavlov. O quepodemos perceber, que a relao ntima desse animal com seu Umwelt arbitrariamenteatravessada por aquilo que se oferece na dimenso de presena e ausncia, maisespecificamente atravessado pela ordem simblica. Se inicialmente o cachorro no seenganava a respeito de sua necessidade, a interveno do desejo do cientista introduziu adimenso simblica na realidade do animal, introduzindo assim a dimenso do equvoco,sustentada pela tenso produzida pela hincia que conseqentemente surge na apreensoda forma. Ao animal, por no poder falar, no poder se representar no campo significante,no se apresenta a via de tomar o Outro como simblico, nem a consequente possibilidadede tomar no registro do dom, aquilo que se apresenta como capricho desse Outro. Diante dapresena infinita do desejo, na hincia a produzida, resta ao animal o tampo de seuorganismo.

    A experincia a que submetido o cachorro no laboratrio de Pavlov, no muito diferenteda experincia de qualquer criana, em sua relao com o Outro, e que Lacan nos apresenta

    no Seminrio 4, As relaes de Objeto. A me, que de acordo com seus desejos alimentaou no a criana, constitui-se para essa como seu primeiro objeto. Esse objeto simblico constitudo pela criana a partir de sua alternncia de presena e ausncia. A partir daexperincia de frustrao da criana diante da me, esta decai de sua posio simblica epassa ento a ser tomada em sua dimenso real e caprichosa. A me real, em suaonipotncia, surge ento como possuidora dos objetos que de acordo com seu caprichopodero satisfazer ou no a criana. Esses objetos, no decaimento da me de seu estatutosimblico para real, ascendem dimenso simblica sendo ento reconhecidos como umdom da me. criana resta a possibilidade de se alojar ali onde ela acredita ser amadapela me, tentando em sua interpretao, localizar-lhe o desejo, identificando-se ao objetoimaginado deste desejo, na tentativa de assim iludi-lo. , portanto na relao com a meque a criana experimenta o falo como o centro do desejo da me. (Lacan, 1956:231)

    A partir dos dois exemplos trabalhados podemos comear a operar com a dimenso de cortedo significante e com as respostas possveis a apresentao desse corte. No exemplo docachorro, paradigmtico do fenmeno psicossomtico, o S1 significante que escreve apresena ausncia da carne associado em oposio ao significante S2 que escreve apresena ausncia do estmulo sonoro. A retirada da carne pelo cientista interrompe ocircuito repetitivo de um dos significantes, produzindo um holofraseamento impossvel deser interrogado pelo animal, pelo simples fato de lhe ser impossvel falar. Lacan nos diz:

    Quer Pavlov reconhea isso ou no, propriamente associar um significante que caracterstica de qualquer condio de experincia, no que ela instituda com o corte quese pode fazer na organizao orgnica de uma necessidade o que se designa por umamanifestao ao nvel de um ciclo de necessidades interrompidas, e que reencontramos

    aqui, no nvel da experincia pavloviana, como sendo o corte do desejo.(Lacan, 1964:224)

  • 7/27/2019 Psicanlise e Sade Mental

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    J na criana neurtica, encontramos uma repercusso bem diferente ao efeito de corte dosignificante. no intervalo entre os significantes que ela localiza o desejo do Outro, fazendo-

    se objeto desse desejo e a tambm, localizando o seu prprio desejo. Basta lembrarmos aoposio dos significantes Fort Da to bem assinalada por Freud na brincadeira de seu neto,onde ele mostra o sujeito alienado em sua identificao ao carretel, objeto no qual sedefende de sua afnise, de seu desaparecimento. O desejo, em sua dimenso infinita, semantm na fantasia, que se instala no intervalo mesmo da cadeia significante, sustentadapelo falo, significante que funciona como razo do desejo.

    A debilidade e a psicose seriam situaes onde o holofraseamento do par significante,impossibilitaria a afnise do sujeito, e, portanto sua constituio como sujeito do desejo. Talholofraseamento se daria, contudo, de forma distinta em cada um dos casos, e certamenteno seria pelos motivos de uma impossibilidade natural como no caso do cachorro, o que,acentua Pierre Bruno, descarta a dimenso deficitria na debilidade e na psicose. Aindasegundo Bruno, ao invs do dficit teramos o excesso, excesso esse responsvel pelainibio do dbil e pela foracluso na psicose.

    Na psicose, a hincia, o furo, o corte produzido pelo significante, introduzindo a funo dacausa no se produziria, pela recusa a esse corte. Como nos diz Lacan, falta um dos termosda crena, o que impede a sua apreenso no momento de seu desvanecimento. Tal recusatem como conseqncia o fato de que esse buraco, essa hincia observada a partir daausncia da me, da falta do Outro, seja experimentada no real. Eric Laurent nos forneceuma srie de exemplos desse surgimento da hincia no real, como o da paciente que nopodia comer pois seu corpo estava aberto, ou outra paciente que via buracos se abrirem nocho enquanto andava. nesse buraco que Schreber experimenta delirantemente suamorte, mas tambm em torno desse furo que ele vai ordenar toda a reconstruo de seumundo. Esse buraco no real