Psicanálise Da Experiência Religiosa Antonio Muniz de Rezende

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EM DIÁLOGO COM DR. ODILON DE MELLO FRANCO FILHO MITOS E RELIGIÃO SUGESTÕES PARA UMA EVENTUAL “PSICANÁLISE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA” Antonio Muniz de Rezende, 1 Campinas Introdução - ligioso de uma Equipe de Casais, da qual Odilon fazia parte juntamente com Maria Ignez sua esposa. Pouco tempo depois, deixei São Paulo para começar uma longa jornada por esse mundo afora. Só voltei vinte anos mais tarde. Quando ingressei na Sociedade de Psicanálise na condição de candidato, fui por ele acolhido de maneira extremamente amigável, a ponto de confiar-me a chave de uma sala no interior de seu consultório, à rua Sergipe, para ali eu poder estudar e eventualmente descan- sar. Durante meu período de formação, recebi supervisões do Odilon, tanto indi- vidualmente, em seu consultório, como no grupo de psicanalistas que se formava em Campinas. E quando, depois de formado, passei a dar meus cursos sobre Bion na sede da Sociedade, tive o prazer de contar com sua presença em várias ocasiões. Tínhamos em comum grande admiração pela obra de Bion, a cujo respeito trocamos inúmeros e-mails. Numa de nossas conversas, com humor e um pouco de ironia, ele me fez o seguinte comentário, posteriormente inserido num artigo seu. “Imagine um analista que, quando o paciente lhe diz que não acredita em Deus, simplesmente convida-o a mudar de assunto para falar de outras coisas. Mas quando o paciente diz que continua acreditando, o analista se preocupa e convida o paciente a analisar a questão com maior profundidade”. E concluía: “Para alguns analistas, não crer em Deus não é problema, mas crer em Deus lhes parece um problema muito sério, quem sabe mesmo patológico, a merecer tratamento mais cuidadoso”. Ouvi a anedota como um convite desafiador: seria possível desenvolvermos uma psicanálise da experiência religiosa, com uma reflexão mais profunda sobre o 1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e docente do Instituto de Psicanálise da SBPSP.

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  • EM DILOGO COM DR. ODILON DE MELLO FRANCO FILHO

    MITOS E RELIGIOSUGESTES PARA UMA EVENTUAL

    PSICANLISE DA EXPERINCIA RELIGIOSA

    Antonio Muniz de Rezende,1 Campinas

    Introduo

    -ligioso de uma Equipe de Casais, da qual Odilon fazia parte juntamente com Maria Ignez sua esposa. Pouco tempo depois, deixei So Paulo para comear uma longa jornada por esse mundo afora. S voltei vinte anos mais tarde. Quando ingressei na Sociedade de Psicanlise na condio de candidato, fui por ele acolhido de maneira extremamente amigvel, a ponto de con!ar-me a chave de uma sala no interior de seu consultrio, rua Sergipe, para ali eu poder estudar e eventualmente descan-sar. Durante meu perodo de formao, recebi supervises do Odilon, tanto indi-vidualmente, em seu consultrio, como no grupo de psicanalistas que se formava em Campinas. E quando, depois de formado, passei a dar meus cursos sobre Bion na sede da Sociedade, tive o prazer de contar com sua presena em vrias ocasies. Tnhamos em comum grande admirao pela obra de Bion, a cujo respeito trocamos inmeros e-mails. Numa de nossas conversas, com humor e um pouco de ironia, ele me fez o seguinte comentrio, posteriormente inserido num artigo seu.

    Imagine um analista que, quando o paciente lhe diz que no acredita em Deus, simplesmente convida-o a mudar de assunto para falar de outras coisas. Mas quando o paciente diz que continua acreditando, o analista se preocupa e convida o paciente a analisar a questo com maior profundidade. E conclua: Para alguns analistas, no crer em Deus no problema, mas crer em Deus lhes parece um problema muito srio, quem sabe mesmo patolgico, a merecer tratamento mais cuidadoso.

    Ouvi a anedota como um convite desa!ador: seria possvel desenvolvermos uma psicanlise da experincia religiosa, com uma re(exo mais profunda sobre o

    1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanlise de So Paulo SBPSP e docente do Instituto de Psicanlise da SBPSP.

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    tema de Deus, eventualmente preparando o programa de um curso a ser oferecido aos interessados? Pessoalmente aceitei o convite do Odilon, e juntos comeamos um dilogo em vrias etapas. De maneira condensada, creio poder resumir nossa con-versa numa frase de Bion falando de um movimento de K para O e outro de O para K, no uso adequado dos vrios modelos: cient!co-!los!co, esttico-artstico, mito-potico-religioso, e !nalmente tico-mstico. Antes, porm, de falar do aspecto me-todolgico e suas consequncias, acho indispensvel mencionar algumas situaes pessoais em que pude sentir mais de perto as preocupaes do Odilon.

    I. Mise en question

    1. No dia 15 de maro de 1997, Odilon e Maria Ignez me deram de presente um livro cujo ttulo O desaparecimento de Deus, com a seguinte dedicatria: As

    -

    por subttulo Um mistrio divino. como tal, isto , como misterioso, que Deus pode desaparecer Inconsciente, como lugar do Desconhecido sumrio desse livro encontramos trs desdobramentos: Primeiro mistrio: o desaparecimento de Deus na Bblia; Segundo mistrio: Nietzsche em Turim; Terceiro mistrio: O Big bang e a Cabala.

    Meu comentrio principalmente a respeito da palavra mistrio, no subt-tulo desse livro. Ela me faz pensar, espontaneamente, no smbolo O usado por Bion, para representar o in!nito, informe, inominvel. Como falar do inominvel? Como acessar o que no tem forma? Como de!nir o in!nito? E !nalmente, como conhecer o incognoscvel? A psicanlise bioniana no tem di!culdade em admitir a presena de mistrios no universo mental. Alis, em relao a eles, Bion explcito em proclamar sua f: Creio na Realidade ltima como fato primordial. A questo que se coloca inevitavelmente a respeito da extenso do smbolo O empregado por Bion: seria ele identicamente smbolo da Realidade ltima, do In!nito, de Deus? Seja qual for a resposta, o mistrio divino, em razo de sua natureza misteriosa, tambm se oculta, podendo mesmo ser ignorado, ou simplesmente permanecer es-condido no Inconsciente, inclusive daqueles que tentam desvend-lo. E assim surge tambm a questo a respeito da fdo psicanalista? Muito provavelmente o correspondente de O, enquanto mistrio, e conotando capacidade negativa muito mais que simples tolerncia frustrao. Muitas vezes repeti com o Odilon a frase inspirada em Nicolau de Cusa a respeito da

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    docta ignorantia: o verdadeiro sbio sabe que no sabe. Em outras palavras: uma f alm da cincia!

    A respeito do desaparecimento de Deus na Bblia, no deixei de mencionar Deus uma biogra$a.

    Nesse livro o autor considera a prpria Bblia como um texto literrio, uma obra de arte, e Deus um personagem que entra em cena, no teatro da histria, desempenhan-do vrios papis. Do ponto de vista psicanaltico, o maior interesse est na veri!ca-o do papel que cada Escritor atribui ao Personagem central, nas diversas situaes descritas.

    Quando Nietzsche chorou, com o subttulo Cem anos aps sua morte, Nietzsche o principal personagem deste romance magn!co sobre o nascimento da psicanlise. Apesar do estilo romanceado adotado pelo autor, seu livro no deixa de estabele-cer uma relao especial entre atesmo e psicanlise. Por esse motivo, entre outros, Odilon aceitou participar de um grupo de estudos organizado por Karin Hellen

    O futuro e a iluso: um embate com Freud sobre Psicanlise e Religio.

    2. Outro assunto que Odilon e eu discutimos foi trazido por Rodney Bomford e Franois Regnault, a respeito das relaes entre o Inconsciente e Deus. No livro de

    &e symmetry of God, o autor faz uma leitura psicanalti-ca do fato religioso cristo, e tenta mostrar como se constri um sistema religioso

    ao a!rmar que Deus inconsciente Dieu est inconscient). Nesse livro, o autor cita a seguinte frase de Lacan: La vritable formule de lathisme nest pas que Dieu est mort, cest que Dieu est inconscient.

    No prolongamento de semelhante abordagem, temos o livro de Eric Rayner Unconscious Logic: An introduction to Matte Blancos bi-logic and its uses. A

    importncia desse livro para os estudiosos da questo religiosa est no fato de que tambm os que crem no se restringem aos limites impostos por uma lgica un-voca, do terceiro excludo, com alternativas limitadas a uma nica opo racional. Sobre esse assunto, recebi preciosa colaborao do colega Igncio Gerber, que escre-veu o captulo Bion e Matte Blanco, em meu livro sobre A psicanlise atual na interface das novas cincias

    Tirando inevitvel consequncia de semelhante abordagem, Waldemar Falco O Deus de cada um: nove histrias

    reais, nove diferentes crenas, nove vidas transformadas. Na minha discusso com Odilon, sempre nos perguntvamos como era o deus do paciente em anlise. Em

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    muitos casos, no era de admirar que fosse concebido, inconscientemente, imagem de algum personagem mais in(uente na vida do paciente com interveno do Id, por um lado, e do Superego por outro. Mais ainda, tanto Odilon como eu nos per-guntvamos: e como ser o Deus de cada analista? Que Deus considerado na an-lise pessoal do analista, e na anlise de seus pacientes? Indo mais longe ainda: como

    perguntado Por que Freud rejeitou a Deus? -pondeu corajosamente em um artigo intitulado Fundamentos teolgicos das te-orias psicanalticas : Freud e o judaismo com as seguintes palavras Freud, judeu, ateu. No entanto, o texto mais importante cuja leitura sugeri ao Odilon foi escrito

    Freud e a questo da religio. Essa uma leitura indispensvel para os que esto interessados em saber como um telogo analisa os

    3. Um terceiro presente que Odilon me deu foi Felicidade, uma histria, es--

    sequncias do desaparecimento de Deus foi no apenas sua substituio pelo ho-mem, mas uma signi!cativa transformao na concepo da tica e da felicidade, encaradas no tanto em funo do Bem Supremo, mas do Bem Comum, considerado como possvel.

    Desse ponto de vista, os principais interlocutores da psicanlise passaram a ser os representantes da Escola Crtica de Frankfurt, com a proposta de um terceiro princpio, o princpio esperana, alm do princpio de prazer e realidade. Sem ne-nhum constrangimento, eles se declaravam freudo-marxistas, com nfase especial

    -tomado numa dimenso maior, que no exclua nem mesmo a perspectiva da trans-cendncia. Alm do princpio esperana, passou-se a falar do princpio solidariedade, no reconhecimento de que a presena do Outro torna-se integrante da identidade de cada um. O outro me faz apelos, e eu mesmo me constituo como algum que responde desta ou daquela forma aos apelos que me so feitos. Na linguagem de Bion, a respeito do stimo elemento de psicanlise, pode assim haver uma passagem

    em a!rmar que esse outro !nalmente manifestao do OutroOutro que me permite ser Eu-mesmo, na relao.

    A respeito de Lvinas, pude contar com algumas informaes de Frei Carlos Josaphat Pinto de Oliveira, dominicano, que foi seu colega na Universidade de Friburgo. Inspirando-se na tradio bblico-judaica, Lvinas acabava adotando uma postura mstica caracterizada pela impossibilidade de separar o humano e o divino,

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    o outro e o Outro. E acabava falando do Rosto do outro, como prenncio de uma viso Face a Face, como condio de uma verdadeira realizao da personalidade de

    entender melhor a relao que se estabelece entre Totalidade e In$nito na expanso

    ismo, mas no movimento de K para O de acordo com O, em direo a O.

    4. De minha parte, e no prolongamento de tal maneira de pensar, vrias vezes sugeri ao Odilon a leitura de dois autores atuais que muito nos poderiam ajudar, Leonardo Bo0 e Dalai Lama, ambos permitindo um aprofundamento do que Bion considera como At-one-ment ou Comunho com O. Leonardo Bo0, sabiamente, estabelece uma distino importantssima entre religio e espiritualidade, em sen-tido muito prximo ao adotado por Bion ao falar do Establishment, em seu artigo

    institudas separam, enquanto a espiritualidade rene, numa experincia mstica que tambm possibilita uma experincia ecumnica da verdade, muito alm dos diversos funda-

    A arte da felicidade, no prolongamento de Felicidade, uma histria, citado acima.

    Em termos histricos, de uma histria recente, Andr Comte-Sponville e Luc Sabedoria dos Modernos,

    no qual abordam as grandes linhas do pensamento contemporneo, relativamente aos mais diversos setores da cultura com nfase especial na questo religiosa.

    Do ponto de vista psicanaltico, posso terminar este pargrafo com uma ques-to bem bioniana: ser que o mistrio, especialmente o mistrio religioso, deve ser considerado apenas elemento beta gammaelemento alpha sigma) no mais alto nvel de transao? Isto porque a experincia religiosa de fato pode acontecer nesses vrios nveis do mais baixo ao mais elevado dependendo do grau de simbolizao que tenhamos alcanado. Da o prximo pargrafo.

    II. Questes de mtodo: de K para O e de O para K

    1) Deus, cincia e religioEm seu dilogo com as novas cincias, o psicanalista atual no pode igno-

    Deus: um delrio. Acostumado, porm, com uma escuta mais atenta, o psicanalista no deixa de perguntar: delrio de quem? E ao se informar, no deixa de reconhecer uma atitude surpreendente por parte daqueles, principalmente fsicos, que se puseram procura da partcula Deus!!!

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    Com efeito, foi nestes termos que pudemos ler o noticirio a respeito do acelerador de partculas construdo na Europa. Confundir Deus e a partcula inicial que explo-diu no Big Bang, cometer um erro ingnuo que Aristteles j havia denunciado como erro categorial, confundindo duas ordens de ser, num autntico delrio!

    Mais inteligente e mais cient!ca parece-me a posio de Marcelo Gleiser, f-sico brasileiro que ensina nos Estados Unidos. Ao escrever sobre a impossibilidade de a fsica descobrir Deus, preferiu dizer-se a-gnstico mais que propriamente a-teu. Tomando a palavra a-gnstico ao p da letra, um bom fsico reconhece os limites de sua cincia, quando se trata de conhecer a Deus.

    Isto sem desconhecer, por exemplo, a posio adotada por Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, ao admitir pelo menos a possibilidade de uma linguagem divina a presidir a constituio do cdigo gentico, tanto do ponto de vista indivi-dual como na evoluo das espcies. Alis, desse ponto de vista, mesmo os fsicos reconhecem que Deus no joga dados. E Stephen Hawking no se acanha em reco-nhecer O $m da fsica e da teoria fsica , permanecendo no mbito do Universo numa casca de noz Uma breve histria do tempo . Por seu lado Ilya Prigogine insiste em mostrar a diferena existente Entre o tempo e a eternidade e Jacques Monod, se pergunta a respeito do acaso e a necessidade, embora no hesitando em enaltecer a maravilhosa obra do acaso.

    2) Deus, &loso&a e religioRespeitando a fsica, mas indo alm dela, Espinosa chega a estabelecer uma

    equao entre a natureza e Deus na clebre frase: Deus sive natura. O psicanalista-!-lsofo, no entanto, no deixa de perguntar se no se trata de uma equao simblica,

    o perodo clssico, mas principalmente com Toms de Aquino, todos sabemos que a passagem da fsica para a meta-fsica s se d com a ajuda e no prolongamento de um uso analgico analogia de proporcionalidade prpriaa comear pelo conceito de ser. Isso possibilitou a Dionsio Areopagita levantar a belssima questo dos nomesUnesp, com o ttulo Nomes de Deusesmais talvez que os do passado, tendem a negar a prpria metafsica.

    Na histria da !loso!a contempornea, um captulo importante a passagem do pensamento causal para uma !loso!a do sentido. Em outras palavras, uma passa-gem da metafsica clssica para a fenomenologia e a !loso!a da linguagem. Isto, no entanto, precisa ser bem entendido como um progresso em que a etapa posterior no

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    e mais que tudo a superioridade da Causa ltima sobre as outras: a comear pela Causa E!ciente Primeira e a Causa ltima Final, ou Bem Supremo. em termos de pensamento causal que Toms de Aquino, por exemplo, estabelece as cinco pro-

    MECGG

    graus de ser, e o governo do mundo. A passagem do pensamento causal !loso!a do sentido nem por isso deixou de levantar a questo da signi!cao da existncia,

    -nuam repetindo a bem conhecida exclamao de Leibniz: O surpreendente que

    a questo de um Existente Primeiro de cujo relacionamento deriva todo sentido. Soren Kierkegaard, em toda a sua obra, um bom exemplo para falar da angstia existencial religiosa.

    Inegavelmente o fenmeno da secularizao no aconteceu to somente em funo da evoluo da !loso!a, mas dependeu de muitos outros fatores culturais,

    Em outras palavras, a crise religiosa no mundo moderno est em relao direta com outros fatores, de tal forma que tambm ela no se resolver sozinha. E a questo se coloca igualmente em relao psicanlise: que contribuio est ela dando ou po-der dar, para que surja um mundo melhor em todos os sentidos? Isto seja dito sem

    Mal estar na Civilizao!Nesse contexto levanta-se a questo de uma teologia cient!ca em dilogo com

    a psicanlise. Se, por um lado, legtimo perguntar o que os telogos conhecem de psicanlise, por outro urgente perguntar o que os psicanalistas conhecem a respeito da teologia. A resposta no costuma ser muito brilhante, nem de um lado nem de outro. Muitos psicanalistas costumam limitar-se aos aspectos infantis da experincia religiosa, que eles mesmos examinaram em suas anlises, e imaginam que devem examinar na anlise de seus pacientes. Com isso deixam de lado as questes vividas e levantadas por telogos mais srios e competentes. Em todo caso, no o que acon-tece com Bion, em dilogo com Mestre Eckhart e So Joo da Cruz, como veremos mais adiante.

    3) Deus, arte e religio: o modelo esttico-artsticoMuita gente acha que a religio absolutamente contrria ao princpio do pra-

    zer. No entanto, a verdadeira experincia religiosa comporta uma dimenso esttica, kaloskaiagatos

    artes. Frei Betto parece-me ter muita razo ao se referir criao como A obra do ar-tista. E a seu modo, Lacan tambm nos ajuda a entender esse aspecto da relao com Deus, ao distinguir entre o prazer, o gozo e a alegria. As celebraes religiosas, com

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    sua liturgia, no so apenas ocasio, mas convite a uma expresso esttico-artstica que, em algumas culturas, chegam a elevado nvel de beleza e espiritualidade. Por sua

    O olho e o esprito, valoriza o papel do artista que nos ajuda a perceber o mundo de outra forma e com outra sensibilidade. Diz ele o artista empresta-nos seus olhos, para vermos o que s ele v, quando olha o que todo mundo olha. Todo mundo olha, ouve e toca os seres da natureza, mas o artista ajuda-nos a perceber sua beleza. No s a perceber, mas a exprimi-la, numa tentativa de prolongar o gesto criador em sua grandeza admirvel. Alis, a prpria palavra admirar refere-nos ao maravilhoso, como digno de contemplao. J foi dito que a !loso!a nasceu da admirao. A arte tambm. Assim como o !lsofo pensa o admi-rvel, o artista cria, numa experincia originalssima, em que o criador humano entra em interao com o criador divino. Na Bblia, ns lemos que, depois de ter criado, Deus viu que as coisas criadas eram boas e belas, num maravilho jardim paradisaco. O artista, das diversas artes, tambm cria coisas belas para nossos cinco sentidos.

    em dia, a fotogra!a antecipa-se pintura, e ns temos colees de fotos realmente admirveis. Recebi, recentemente, pela internet, fotos extraordinrias de paisagens das mais diversas regies, da terra e do cu. Noites de luar, praias brasileiras, recantos selvagens, e at mesmo animais. E o que falar dos pintores e suas pinturas? A arte sacra, ao longo da histria, tem sido uma das expresses mais ricas das diversas cul-turas, tanto em relao pintura e escultura como prpria msica. Pessoalmente tive o privilgio de morar na Frana, no Convento Real de Saint Maximin, ao lado da Baslica de Santa Maria Madalena, em belssimo estilo gtico, na qual tambm h um rgo famoso, no qual so executadas msicas de toda beleza, no s durante as ce-rimnias litrgicas, mas por ocasio dos Festivais da Cultura, realizados anualmente

    rgo e Saint Maximinlast but not least, da literatura e especialmente da

    poesia, como direi no prximo pargrafo.

    4) Deus segundo o modelo mito-potico-religiosoOs escritores, em especial os poetas, sempre tiveram papel importante na his-

    tria das culturas a comear pelo que aconteceu com as Sagradas Escrituras. Mais do que metaforicamente, elas foram escritas num estilo mito-potico-religioso. E importante entender como estas trs palavras so inseparveis, quando se trata dos

    Os mestres da verdade na Grcia Arcaica, nos fala sobre o papel dos poetas na conservao da verdade, principalmente a respeito das origens tal como descrita pelos mitos. O mito como linguagem tenta exprimir o mistrio. Ambas as palavras comeam com o radical my, do verbo myo que signi!ca fechar. Mistrio o tero fechado, que o mito

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    palavrasegredo. Ele diz, sem suprimir o segredo. Da o mito servir-se espontaneamente da linguagem potica, principalmente em se tratando de mistrios religiosos. O exem-plo mais espontneo que nos vem mente o dos mitos relativos ao princpio e ao !m. Nem um nem outro pode ser propriamente descrito mediante observao: como falar do comeo antes dele? Como falar do !m depois dele? Tanto o comeo como o !m s podem ser referidos miticamente, poeticamente, o que no quer dizer que seja uma linguagem falsa. No cient!co, mas no falso! Ren Girad escreveu um volume interessantssimo sobre Des choses caches depuis la fondation du monde. A seu respeito os editores escreveram:

    Un ouvrage qui rvolutionne les sciences humaines. Paralllement une analyse appro-fondie des mcanismes qui rglent la vie des socits, Ren Girad dveloppe et commente magistralement ce quil estime tre lantidote contre la violence: la parole biblique. Une lecture et une r3exion stimulantes des grands mystres de notre monde. Le systme Girad ne laissera personne indifrent.

    toma emprestado frases famosas, como as seguintes: H mais coisas entre o cu e a terra do que pode suspeitar a nossa v !loso!a, ou ento in!nito, informe, inomi-

    consegue. Para ns, descendentes da civilizao judeo-greco-latina, no permitido ig-

    norar por um lado a mitologia-religiosa da Bblia, e por outro a mitologia grega, mais talvez que a latina. E como brasileiros, no deveramos ser to ignorantes da

    O povo brasileiro Anthropologie Structurale. Pessoalmente, passei a me deliciar ainda mais com os textos bblicos depois que en-tendi, com a ajuda da psicanlise bioniana, o sentido mito-potico das sagradas escri-turas. Mas aprendi tambm a apreciar, com a mesma ajuda de Bion, as ricas narrati-vas de Mahabarata, especialmente em seu captulo Bhagavad Gita, a Cano Sublime. No Antigo Testamento, alm do belssimo Livro do Gnesis, me delicio com os livros Sapienciais, admirando em especial a sabedoria de Salomo. E, no Novo Testamento, poeticamente chamado de Eu-angelion Boa-Mensagempelos quatro evangelistas, inegavelmente misteriosamente admirveis, criando um espao e um clima que nos ajudam a entender melhor a tica e a mstica.

    5) Deus, a tica e a mstica

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    Os estudiosos de Bion so unnimes em reconhecer sua preferncia pelo mo-delo mstico. Embora tendo comeado pelo modelo cient!co-!los!co e continua-do com o modelo esttico-artstico, !nalmente ele privilegia o modelo mstico-reli-gioso, em Transformaes e mais ainda em Ateno e Interpretao. Numa frase que todos repetimos, Bion a!rma que Ser mais importante que conhecer. E por isso que, com muitos outros, eu pre!ro falar de um modelo tico-mstico de preferncia a mstico-religioso. E o fao considerando a palavra tica como derivada do verbo grego eimi, com o sentido de ser. Da Bion falar tambm do analista que , real, de verdade! E ele acrescenta que este analista de verdade tambm um mstico, numa relao muito especial com seu grupo. Por isso mesmo passa a falar do indivduo es-pecialmente bem dotado, como gnio, messias e mstico, num relacionamento nem sempre fcil com seu grupo. O gnio com ideias novas, o messias com ideias pro-missoras, o mstico com ideias verdadeiras, no deixam de criar problemas para um grupo normalmente conservador. Mas se o mstico cria problemas, tambm ele que traz a soluo, principalmente em nome da experincia que faz, uma experincia de At-one-ment, inicialmente com O e, em seguida, com todos aqueles que tambm querem ser verdadeiros.

    Onde que Bion foi buscar esse ideal de At-one-ment? Ele prprio responde dando o exemplo dos msticos das vrias culturas. Em relao ao cristianismo evi-dente sua preferncia por Mestre Eckhart e So Joo da Cruz. O primeiro falando das transformaes de K para O: de acordo com O, em direo a O; o segundo falando no apenas da Noite Escura mas tambm da Subida do Monte Carmelo.

    Na linguagem da teologia mstica crist, o tema da Koinonia ou Comunho dos Santos. E na dos epistemlogos contemporneos o tema da verdade, principal-mente nas cincias humanas e na psicanlise: uma verdade como consenso simbli-co e concordncia. E Deus ser tudo em todos.

    Semelhante maneira de falar no deixa de lanar um outro olhar sobre a pr-pria morte, encarada no tanto como termo-!nal, mas integrao no Todo, in!nito, informe, inominvel. Nada existe fora do Todo, e nada pode ser tirado do Todo. De novo Emmanuel Lvinas, ajuda-nos a meditar sobre Totalidade e In$nito; assim como Krishna, e Bion depois dele, os trs nos convidam a uma mudana de vrtice para considerarmos tanto a vida com a morte.

    6) Sobre viver e morrer com DeusSurpreendentemente o pensamento religioso atual encontra na prpria fsica

    -no existencial. Num primeiro momento, na linguagem bblica, Deus soprou. Sopro em grego Pneuma, em hebraico Ruah, em latim Spiritus. O primeiro momento na dinmica do In!nito o Sopro-Espiritual-Divino. Num segundo momento, na

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    se em Esprito. E o movimento continua in!nitamente. Do Esprito para a Energia,

    perspectiva, a morte no propriamente o !m de tudo, mas um momento no mis-trio do in!nito! E quem somos ns para desvendar o mistrio? Bion fala portanto de capacidade negativa, no apenas como tolerncia frustrao, mas como sinal de sabedoria pois o sbio sabe que no sabe! E no esprito dos msticos orientais, ele acaba sugerindo: Diante do mistrio, !ca em silncio ou canta!

    Neste contexto lembro-me de um gesto extremamente delicado do Odilon. Ns estvamos assistindo a uma palestra da Alcia Lisondo a respeito de uma pacien-te terminal. A situao descrita era tal que eu mesmo no deixei de comover-me. O Odilon, sentado a meu lado, percebeu. E sem dizer nada, apenas colocou a mo em meu ombro. Um gesto apenas, mas em At-one-ment. Eu me senti compreendido. E logo em seguida compreendi tambm que o Odilon, j estando doente, tinha muitas condies para entender a mim e paciente da Alcia. Odilon era assim, extrema-mente sensvel, capaz de entender tanto as coisas da vida como as da morte. No creio exagerar dizendo que Odilon foi certamente uma pessoa que soube viver e morrer com Deus. Por isso lhe sou grato. Muito grato. Fui e continuo. E no me es-queo da frase que escreveu como dedicatria do livro que me ofereceu: as amizades nascidas em terreno slido no desaparecem. Obrigado Odilon!

    III. Concluso: Deus e religio depois da psicanlise

    Histria da loucura diz que estamos na era da psi-canlise. Acho que isso vlido tambm para a religio ou mais precisamente para o mito-potico-religioso.

    pergunta Por que Freud rejeitou Deus, no hesitamos em levantar a hi-ptese de que o prprio Freud no se tenha bene!ciado de todas as contribuies do movimento psicanaltico, ou simplesmente do progresso das diversas cincias neste ltimo sculo. E no tocante a Bion, parece-me que sua psicanlise ajudou-o a reconhecer que h mesmo mais coisas entre o cu e a terra do que pode sus-peitar a nossa v psicanlise. Por outro lado, as diversas religies tornaram-se gratas psicanlise por tudo que esta lhes permitiu reconhecer como proceden-do de um Inconsciente no analisado, seja na forma da ideologia, seja dos diver-sos fundamentalismos, como manifestao de um dogmatismo moralista psictico.

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    Se podemos examinar os aspectos psicticos do atesmo, a psicanlise ajuda-nos tambm a examinar as diversas formas lamentveis de uma patologia religiosa. De maneira condensada, podemos dizer que o grande desa!o continua sendo, tanto para a psicanlise como para a teologia, o de uma re(exo aprofundada sobre a dia-ltica da imanncia com a transcendncia, no espao simblico da totalidade e do in!nito. E talvez consigamos ser mais verdadeiros ao repetir a frase de Bion: Creio na Realidade ltima como fato primordial. E assim sentimos tambm a necessidade maior de uma atividade simblica, capaz de reconhecer que h sentido, h sentidos e h mais sentido. E talvez possamos exclamar, com os mestres orientais: H!OH!OM!

    leva a exclamar: Diante do mistrio !ca em silncio ou canta.Por isso mesmo, gostaria de terminar com um poema de Friedrich Nietzsche,

    seu livro intitulado Tempo de transcendncia:

    Esse desesperado !lsofo alemo que pregou a morte de Deus e fez a crtica mais vio-lenta do cristianismo, o fez a partir de uma experincia radical do Deus vivo. Quando anuncia a morte de Deus, ele fala do Deus que tem de morrer mesmo, porque o Deus de nossas cabeas, o Deus inventado, o Deus da metafsica, o Deus que no vivo. Ele fez uma orao que traduzi, sem chegar a transmitir todo o seu teor potico. Ela tem

    por ttulo Orao ao Deus Desconhecido. Ei-la:

    Orao ao Deus desconhecidoAntes de prosseguir em meu caminhoE lanar meu olhar para a frente, uma vez maisElevo, sozinho, minhas mos a Ti,Na direo de quem fujoA Ti, das profundezas de meu corao,Tenho dedicado altares festivos, Para que, em cada momento,Tua voz me pudesse chamar.Sobre esses altares,Esto gravadas em fogo estas palavras:Ao Deus DesconhecidoTeu, sou eu, embora at o presenteTenha me associado aos sacrlegos.Teu sou eu, no obstante os laosQue me puxam para o abismo.Mesmo querendo fugirSinto-me forado a servir-te

  • Em dilogo com Dr. Odilon de Mello Franco Filho 283

    Quero Te conhecer, desconhecidoTu que penetras a almaE, qual turbilho, invades minha vida.Tu o incompreensvel, mas meu semelhanteQuero te conhecerQuero servir somente a Ti.Ass. Friedrich Nietzsche

    Como post-scriptum, quero retomar a frase com que Odilon me ofereceu O desaparecimento de Deus: As amizades nascidas em terreno profundo no desapa-recem. Gostaria de acrescentar: nem depois da morte. Continuo amigo do Odilon, e tenho imenso prazer em prestar-lhe esta homenagem. Quando Joo Baptista Frana me perguntou se aceitaria participar desta mesa, eu lhe respondi simplesmente, que no me sentia no direito de recusar. Era para mim um dever prazeroso estar hoje aqui, participando desta justa homenagem memria de um grande amigo. Obrigado, Odilon, amigo de sempre, e para sempre!

    Referncias

    Transformations. London: Karnac. Attention and Interpretation. London: Karnac.

    Tempo de transcendncia. Rio de Janeiro: Sextante.&e symmetry of God. London: Free Association Books.Deus: um delrio. So Paulo: Cia das Letras.Les matres de vrit dans la Grce archaque. Paris: F. Maspero,

    O Deus de cada um: nove histrias reais, nove diferentes crenas, nove vidas transformadas. Rio de Janeiro: Agir.

    Edio standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud

    O desaparecimento de Deus: um mistrio divino. Rio de Janeiro: Imago.Histria da loucura. So Paulo: Perspectiva.

    Breve histria do tempo: do Big Bang aos Buracos Negros. Portugal: Gradiva.O $m da fsica. Portugal: Gradiva.

    O universo numa casca de noz. So Paulo: Arx.Freud e a questo da religio. Campinas: Verus.Arte da felicidade, a: um manual para a vida. So Paulo: Martins.

    Totalidade e in$nito. So Paulo; Edies 70.O olho e o esprito. So Paulo: Cosac & Naify.

    Deus: uma biogra$a. So Paulo: Cia das Letras.Felicidade, uma histria. Rio de Janeiro: Globo.

    Routledge.

  • 284 Antonio Muniz de Rezende

    Dieu est inconscient: tudes lacaniennes autour de saint &omas dAquin. Paris: Navarin.

    Via Lettera.O povo Brasileiro. So Paulo: Cia das Letras.

    Por que Freud rejeitou a Deus? So Paulo: Loyola.Ide, 33,

    Anthropologie structurale. Paris: Plon.Quando Nietzsche chorou. Rio de Janeiro: Agir.

    Existence et signi$cation. Louvain: Nauwelaerts.O futuro e a iluso: um embate com Freud sobre psicanlise e religio.

    Petrpolis: Vozes.

    Antnio Muniz de Rezende

    13023-101 Campinas, SP

    [email protected]