Provocações corporais: uma etnografia fenomenológica entre moradores de rua em Paris

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Analise acerca dos moradores de rua (sans-abri) em Paris e o

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    As maraudes do Samusocial de Paris1, criadas em 1993, so rondas que fazem noite e dia atendimento aos moradores de rua pela cidade. Elas sempre so realizadas por um agen-te social, uma enfermeira graduada e um motorista, que tm a tarefa de intervir nos casos de emergncia social, de cuidar e de acolher os grandes excludos. Elas se do em cooperao com CHUS2, nos quais os moradores de rua, se desejarem, podem passar a noite; com os LHSS3, espa-os de maior estabilidade, nos quais, desde 2007, podem ser tratados (no sentido mdico do termo) durante algumas semanas para recuperar a sade e, finalmente, com marau-des mais especficas, como a psiquitrica, conduzida junto a

    * Traduo de Cristina Prado.1 O Samusocial de Paris uma organizao no governamental, financiada ma-joritariamente pelos poderes pblicos para implementar uma poltica social de emergncia para o atendimento de moradores de rua. Ver Gaslonde (2007) para uma apresentao institucional. 2 Centres dHbergement dUrgence Sociale [Centros de Acolhimento de Emer-gncia Social], no Brasil conhecidos como albergues de pernoite.3 Lits Halte Soins Sant [Centros de Internao para Cuidados da Sade].

    provaes CorporaIs: uma etnografIa fenomenolgICa entre moradores de rua de parIs*

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    uma equipe do hospital Esquirol, ou a da tuberculose, diri-gida por um mdico do Samusocial.

    Faremos aqui uma descrio etnogrfica de algumas das interaes corporais entre os membros dessas equipes de assistncia mvel e os moradores de rua. Trata-se de acres-centar mais uma pea ao debate acerca da transformao das intervenes sociais a partir dos anos 1980 (Ion, 2005a; 2005b), a saber: acompanhamento personalizado ao invs de burocrtico; injuno autonomia e apelo responsa-bilizao dentro de um projeto biogrfico; gesto dos riscos da precariedade mais do que reintegrao ao corpo social; atendimento a pessoas vulnerveis em vez de usurios an-nimos; dispositivos flexveis e territorializados no lugar de instituies sociais annimas e centralizadas. As maraudes participam dessas mutaes da interveno social correlatas s metamorfoses da questo social (Castel, 1995).

    Esta etnografia fenomenolgica na medida em que se apoia na descrio das provaes corporais que apare-cem no acompanhamento dos moradores de rua. Vincula-se desse modo aos trabalhos sobre as polticas do prximo (Thvenot, 1994; Breviglieri, 2005) ou as polticas do care (Laugier e Paperman, 2006). Tomado na espessura da expe-rincia da percepo e do movimento, o sentido do encon-tro entre agentes do Samusocial e os moradores de rua , de fato, encarnado. A temporalizao do encontro feita in situ. O problema para o investigador o de tornar sensveis atividades e interaes que costumam ser invisveis e silen-ciosas, o de revelar as capacidades corporais dos membros das equipes de assistncia mvel que no so do mbito de um saber cerebral, intelectual ou tcnico. um saber de expe-rincia, forjado na sucesso de domnio e de perda de domnio sobre as situaes, um saber ancorado nos corpos, que captam indcios e que os organizam, progressivamente, em configuraes de sentido. A conscincia apenas a par-te do iceberg que veio tona. Na conjuno das provaes de

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    seus corpos, os membros das maraudes captam um sentido expressivo flor das situaes. Eles trabalham por intuio; so afetados por sentimentos morais (compaixo, solicitude, respeito, indignao), ao mesmo tempo em que cumprem gestos profissionais. Nisto, esta etnografia fenomenolgica se abre tambm para uma etnografia moral4.

    a provao dos corpos: decifrar o sentido das aparnciasA vida na rua dura! E ataca o corpo!, nos diz um mdi-co do hospital psiquitrico de Saint-Michel. Antes de tudo, a maraude cuida de corpos. Sem dvida, tambm escuta e recolhe histrias, mas de maneira apressada, por falta de tempo. Se h um trabalho sobre relatos de vida, ele ser feito mais tarde, durante o dia, com uma assistente social. Aqui, no atendimento de emergncia, preciso antes de mais nada localizar, alimentar, cuidar de corpos devasta-dos; transport-los, salv-los do perigo da hipotermia ou da desidratao; coloc-los no abrigo e lhes devolver a fora. O foco nos corpos e nas consequncias sanitrias da vida na rua emergiu das consultas dedicadas aos moradores de rua de Nanterre, no CHAPSA5, montadas bem no incio dos anos 1980 pelo doutor Patrick Henry, e mais tarde retoma-das por Xavier Emmanuelli6.

    Como era de se esperar, a cada parada do caminho do Samusocial se abre uma pequena arena de apresentao

    4 Essa dimenso poltica, no entanto, no ser tratada aqui.5 Centre dHbergement et d Accueil des Personnes Sans-Abri [Centro de Aco-lhimento e de Cuidados aos Moradores de Rua] ou Maison de Nanterre [Casa de Nanterre]. Ela faz parte do CASH, Centre d Accueil et des Soins Hospitaliers [Centro de Acolhimento e Cuidados Hospitalares], e acolhe todos os dias at 250 pessoas conduzidas pela BAPSA, Assistance aux Personnes Sans-Abri de la Prfecture de Police [Assistncia s Pessoas Moradoras de Rua da Chefia de Pol-cia], pela RATP, Rgie Autonome des Transports Parisiens [Consrcio Autnomo de Transportes Parisienses] e pelo Samusocial. Ver Girola (2007).6 Mdico francs, cofundador do Mdicos Sem Fronteiras em 1971, fundador do Samusocial, Secretrio de Estado vinculado ao Primeiro Ministro, encarregado da Ao Humanitria de Emergncia.

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    recproca, de discusso e de brincadeira, de confiana e de considerao. A relao estabelecida pelas maraudes com os moradores de rua d contorno ao encontro e no se reduz apenas s funes de alimentar, de tratar, de transportar. Mas, ainda assim, tudo passa por uma interao corpo a cor-po. De um lado, os corpos dos membros da equipe so seus instrumentos de trabalho. A instituio os forma, os equipa e os treina, mas eles devem sentir, perceber e avaliar emo-es para serem operacionais; funcionrios da emergn-cia, eles aplicam procedimentos, mas tambm tm a capa-cidade de experimentar as situaes pessoalmente, de usar, flor da pele, os sentidos e o bom senso. Por outro lado, os corpos dos moradores de rua so o primeiro desafio da assistncia social de emergncia. Doentes, mais ou menos machucados, marcados pelas circunstncias de uma hist-ria, expostos s intempries, preciso proteg-los, recu-per-los ou preveni-los contra o pior. Eles sero objeto de ateno e de cuidados antes que qualquer outra medida de atendimento seja tomada.

    Os corpos mais intactos, mesmo os que no exageram na bebida, mesmo os que no so corrodos pelo mal do des-leixo, aparecem cambaleantes, pouco tonificados, desgasta-dos pela comida ruim, exalando muitas vezes um cheiro de tabaco e lcool. Os rostos tm os traos cansados e fundos, a pele plida ou a tez opaca. As barbas so mal cortadas, os cabelos so como crinas, os dentes, estragados ou ausentes... Alguns se mantm por milagre. As mulheres sobretudo, que geralmente s aparecem nos albergues de modo sorrateiro e que guardam distncia dos outros abrigados.

    Sra. C. telefona toda noite entre 2h00 e 2h30, quer esteja nevando ou ventando. Ela surge do canto do bar LEuropen, perto da Gare de Lyon, sada de seu esconderijo atrs das tuias. No Samusocial, ningum jamais conseguiu saber algo sobre sua vida diurna. Mas ela parece evitar a decadncia atravs de uma extrema regularidade, de rigor e at mesmo

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    de rigidez ao cuidar de si. Um coordenador dos abrigos me apresenta uma teoria local, fundada na experincia, a este respeito. Segundo ele, muitos homens se afogam por razes afetivas, rupturas amorosas, choques existenciais. Eles se tornam vadios, desempenham o papel de mau elemento e incrementam a encenao do comportamento desviante. Segundo ele, as mulheres, em sua maioria, deixam seu domi-clio aps terem sofrido violncia conjugal ou terem cado, por infortnio, na misria. Elas se dividem entre aquelas que encontramos nas ruas ou nos abrigos (que perderam toda referncia, que so totalmente piradas, sobretudo quando no podem mais ver seus filhos) e as que resistem (que se apoiam nos dispositivos de ajuda especficos oferecidos pelas associaes e pelas instituies). Estas ltimas, em geral, se saem bastante bem no processo de reinsero.

    Categorias, explicaes e especulaes nativas medeiam, desse modo, a forma como os membros das equipes com-preendem a situao dos usurios. Mas seu raciocnio pr-tico no passa apenas pelo desfile dos preconceitos. todo um trabalho de observao que feito cara a cara para saber com quem se est lidando. Quem est a?, O que est dizendo?, O que quer?: nada dado de antemo e um bom agente social no pode se proteger da incerteza das situaes fechando-se em seus preconceitos. Pelo con-trrio, o menor indcio sensvel levado em conta. Julgue-mos isso comparando as anotaes que tomei ao longo de uma maraude diurna com os comentrios da enfermeira da equipe sobre o mesmo caso tratado acima:

    Mulher hngara, comunicao difcil, todos os dentes cariados. No muito malvestida. Roupas de segunda mo de uma burguesa do bairro? Pedinte na Rua de Rennes, debaixo do cinema LArlequin, ex-Cosmos. Sentada num degrau, em cima de um papelo. Ela diz: O corpo, tudo bem, mas cabea e corao, em Budapeste!.

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    Quando a deixamos, pergunto enfermeira por que no insistiu e nem props nada. Ela me faz o seguinte relatrio:

    Acho que ela no precisa muito da gente. O colarinho de sua camisa no est preto e est bem penteada. Diz que no est num abrigo, mas no deve estar dormindo na rua. Est bem vestida, quase melhor que mim [sic]. Deve ter uma rede, ou pessoas do bairro que cuidam dela, ou uma associao de bairro [St-Sulpice, onde a prtica religiosa ainda valorizada e cujos habitantes tm posses]. Talvez seja um juzo de valor, no tenho certeza, mas acho que ela finge que no sabe falar francs. Ela parece entender mais do que deixa transparecer. Estava ansiosa para que a gente fosse embora para continuar a pedir esmola sossegada. No bairro, ela deve ter um bom rendimento dirio.

    Numa visada (Ginzburg, 1989), a enfermeira fez um diagnstico; reuniu um monte de indcios observveis e decidiu que esta senhora, aparentemente autnoma, no precisava de nossos servios.

    Outros salvam as aparncias. Jean-Jacques, por exem-plo, que se encontra em Garel. Sempre de terno e gravata, diz ter sido motorista na Prefeitura de Paris e parece agar-rar-se ao uniforme do antigo emprego. Ele fuma um cigarro atrs do outro (apesar de seu pulmo arrebentado), mas fala sempre calma e educadamente, como seus interlocu-tores. Doing being ordinary (Sacks, 1994): toda uma arte da organizao das aparncias deve ser investida para fingir que tudo est bem, para ter relaes normais com os outros, para no deixar transparecer seu cansao ou seu desampa-ro. Mas por baixo desse jeito de resistir entropia da rua, de quem no se deixa abater, a preocupao consigo mesmo e o cuidado com os outros, a capacidade de habitar o mundo e de estar-a, e bem a, na situao, que esto em jogo. Jean-Jacques no faz seno salvar as aparncias e se

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    esconder atrs de uma mscara. Ele forma laos, controla a situao, tenta enrolar uma menina bonita que apareceu no CHUS h algumas noites. Ele trai suas pequenas vaidades estatutrias, revela sua sagacidade e mostra que no desistiu de sair desse momento de infortnio. Sentimos que fica vontade na intimidade e sabe dar conta de si mesmo em pblico (Breviglieri, 2002).

    Ao contrrio dele, alguns residentes de Garel, tendo perdido a capacidade e os meios de se lavar e de se ves-tir, parecem totalmente destrudos, arruinados pelos maus tratos, incapazes de se empenhar e de se reinserir na roti-na cotidiana. Fechados sobre o que resta de si mesmos, esgotados, prostrados, assustados, sonolentos. Alguns no conseguem mais falar uma linguagem articulada, tm o rosto agitado por tiques e seus gestos vm acompanhados de gritos. Outros, inversamente, so levados por sua logor-reia verbal. Ou o mutismo absoluto, pesado, insondvel. Ou discurso circular, redundante; fuga de ideias (Binswanger, 2000; Tellenbach, 1979); delrio de perseguio. Diante de um morador de rua que apresentava comportamentos com-pulsivos, balanando-se de um lado para o outro, sem con-seguir controlar seus membros agitados por gestos desorde-nados, um agente social solta: Seu corpo tenta dizer algo mas no tenho o decodificador adequado. E veremos que as aparncias nem sempre so fceis de decifrar.

    o olfato: sentir e ressentirViolenta a ponto de fazer alguns dos novatos desistirem logo na primeira noite de ir atrs dos moradores de rua, uma das provaes corporais enfrentadas pelos membros das maraudes a olfativa. O olhar , por excelncia, um sentido distncia. O olho, o rgo da objetivao. O tato e o paladar so os sentidos do contato que se d ime-diatamente no senciente. O tipo de afeco que o olfato propicia de uma outra ordem: ele traz uma experincia

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    da impregnao e da penetrao, do envolvimento e do contgio (Straus, 1989; 1966). O olfato um sentido pat-tico ou atmosfrico7. Nem sempre permite localizar a fon-te odorfera, j que os perfumes que afetam o corpo so difusos e volteis. E mesmo se alguns clnicos so capazes de identificar uma patologia pelo gosto e pelo cheiro, a avaliao dos odores raramente compartilhada. O lxi-co dos odores a no ser em profisses especficas , extremamente reduzido e o que podemos exprimir a seu respeito permanece eminentemente impreciso, de ordem analgica ou metafrica.

    O olfato desperta as mais violentas emoes, as que nos conduzem ao limite do suportvel. Emmanuelli, na poca mdico-chefe de um albergue para moradores de rua em Nanterre, deu acerca disso a descrio seguinte:

    Naqueles que tomaram um banho e que, portanto, vo passar o dia ou a noite, o exame mais fcil porque a pele fala mais espontaneamente de todas suas cicatrizes, todos seus buracos, suas tatuagens, todas suas leses. Mas com aqueles que passaram pela outra entrada e no tomaram banho, preciso enfrentar o descascar, camada aps camada, de todos os trapos, para chegar pele da pele: a ltima roupa de baixo, maculada de modo imundo, espcie de invlucro secreto da epiderme. Um cheiro feroz salta ento destas cordas retiradas uma depois da outra, a ponto de captar todo o oxignio, de provocar soluo, de cessar a inspirao, de escancarar as portas e as janelas mas que preciso enfrentar para tornar suportvel o encontro. Cheiro de excrees, lquidos orgnicos, transpirao e sujeira, mas tambm cheiro arcaico da morte, da carne ftida que comea a se decompor. Ele fala por eles. Eu que

    7 Diz-se ainda que ele pertence a uma conscincia fenomenal que nos mostra qual o efeito de sentir sensaes. As qualidades desta experincia so chamadas de qualia. Ver Lenclud (2006, pp. 5-18) e Tellenbach (1983).

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    no fumo e no tenho, portanto, um cheiro sobressalente para me proteger, s me livrarei dele mais tarde com o aerosol. Por enquanto, ele se espalha pela pequena sala, fiel acompanhante da decadncia deles (Emmanuelli, 1994, pp.11-12).

    Est tudo a: as camadas sucessivas, como cascas de cebola, das roupas aglomeradas umas nas outras, coladas pelo suor e pela sujeira, aprisionando miasmas pestilentos; a putrefao das carnes no arejadas, maceradas em seus fermentos; o cheiro da podrido e da decomposio, que desperta um medo visceral da morte; a pregnncia destes perfumes mrbidos, que se agarram s coisas, e se incrus-tam nas roupas e nas paredes; a asfixia sentida pelos agen-tes, que devem colocar entre parnteses sua repulsa e con-ter o soluo de suas entranhas para que se abra um espao de cuidado e de ateno. Esse invlucro corporal, o Eu-pele (Anzieu, 1995) que alguns moradores de rua carregam con-sigo, pode ser a assinatura olfativa que marca seu territrio atravs da repulsa que provoca. O autor continua:

    Seguro de seu poder, [o cheiro] estagna entre ns e pode se tornar mais imundo ainda, mais violento e mais repugnante, a ponto de fazer vomitar, quando s vezes desfazemos velhos curativos esquecidos em suas pernas. o cheiro proibido, o que deve permanecer sob a terra e nos tmulos, o das carnes informes derretendo como gorduras ptridas, em sua legio de vermes revelados de repente. Eles se contorcem no cho e nas ataduras negras e duras de humores, at dentro do lixo os curativos fedem ao picito ou ao anaerbio, cheiro de carnia e matria em decomposio. a prpria violncia do ar em volta das leses que a agresso a derradeira arma dos que no tm nada sua disposio para lhes dizer merda, a de faz-la ser inalada sem que digam nada (Emmanuelli, 1994, pp. 11-12).

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    Essa descrio no a de um etngrafo. Deve ser tomada pelo que ela : o testemunho de um mdico que eventualmente recorre a imagem crstica (de sofrimento e de redeno) para insistir, do ponto de vista sanitrio, na condio catastrfica na qual se encontravam os grandes excludos antes da formao dos instrumentos de assistn-cia social. Para Emmanuelli, o territrio de interveno jun-to aos moradores de rua equivale, em tempos de paz, aos campos de batalha enfrentados pelos Mdicos Sem Frontei-ras. A a descrio possui uma funo retrica. Ele enfatiza o carter extremo da condio desses grandes excludos, que perdem at o sentido da dor. Eles se divorciam de seu corpo8, se desconectam de suas emoes. Mas, enquadra-da desse modo, ela no menos falante. A enfermeira e o membro da equipe que lhe serve de assistente, quando precisam trocar um curativo, aguentam, sem dizer nada, a provao do corpo que apodrece, com seu gosto de mor-te. Eles conhecem o nome dos trs ou quatro moradores de rua que cheiram pior. Alguns destes moradores de rua no sentem mais a si mesmos, anestesiados por seu prprio cheiro, num estado de denegao que no leva em conta os comentrios alheios. Para outros, o cheiro uma manei-ra de estar-a, bem-a, de chamar ateno e de ocupar um espao ao mesmo tempo em que obriga os demais a reagir.

    Entre o pequeno grupo de pessoas conhecidas por seu cheiro forte, Jojo, cujas pernas so comidas por um estafi-lococos, s aceita muito episodicamente que refaam seus curativos. Seus tornozelos e tbias so cobertos por uma crosta negra da qual impossvel dizer se sujeira, tecido ou pele. Instalado em seu abrigo em um ponto de nibus, ele mantm afastados os usurios regulares. Ele afirma, em

    8 Emmanuelli (1999): O sofrimento no cumpre mais seu papel de sentinela. Eles dizem consigo mesmos: Sinto dor numa perna, mas no percebem mais que se trata de sua perna. E por que o fariam? Mesmo se expressassem sua dor, no haveria mais ningum por perto para ouvi-los.

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    seu discurso pouco coerente, estar controlando a evoluo do mal. Ele vai para a emergncia apenas em ltimo caso, quando sente que suas lceras cavaram fundo demais e que tem dificuldade para andar. Quando sobe no caminho, preciso escancarar as janelas e mesmo assim a vontade de vomitar continua grande. O interior do caminho impreg-nado por este cheiro que se incrusta nos assentos e desafia os desinfetantes e os desodorantes. Outro caso famoso o da Sra. D., a dama de azul. A maraude diurna a transportou por quatro meses seguidos, trs vezes por semana, para que recebesse cuidados mdicos. Ela descobria as pernas logo que subia no caminho. Os membros das equipes comen-tavam o fato ainda dois meses depois, como sendo uma das experincias mais penosas que tiveram de enfrentar. Mas valia a pena!, acrescentavam. A Sra. D. teria acabado por aceitar o internamento que lhe propuseram e suas pernas sararam. Ela foi encaminhada para o atendimento psiqui-trico e recupera aos poucos seu equilbrio.

    O cheiro tambm pode ter suas virtudes. Mais do que sintoma de desleixo ou de falta de cuidado consigo mesmo, ele pode tambm ser um ato de comunicao a se decifrar. Ele mantm o intruso distncia e demarca um territrio do Eu. A Sra. D. abusava disso para conseguir um quarto s para ela. O cheiro do mbito das tticas de interao. Ele como uma espada na ponta da qual se mantm as pessoas distncia. Ele dissuade os outros de quererem penetrar seu espao pessoal. s vezes, uma proteo: muitas mulheres contam que quanto mais cheiram mal, mais garantia tm de no serem violentadas ou violadas por homens, com teto ou sem teto. O cheiro de merda uma muralha contra a agresso. Ele tem um valor funcional. Ele protege mais que as leis. Na balana dos prazeres e dos sofrimentos, ele incomoda, d nojo, desperta o medo da mcula. Emanao nauseabunda, ele inibe o intruso em seu impulso. Ele trans-forma um objeto de desejo em objeto de repulsa e, mais do

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    que isso, em objeto proibido. bastante racional e sensato para muitas mulheres, sozinhas na rua, tornarem-se intoc-veis. O cheiro, soco no crebro reptiliano, tem um verda-deiro poder de expresso. Ele provoca uma reao l onde havia apenas indiferena, civil ou no. No metr, ele se faz suportar e aguentar, de boa ou de m vontade. Ao afastar do caminho e ao delimitar uma zona onde se evita o con-tato, ele os constrange a toler-lo sem dizer nada, impondo ao mesmo tempo uma forma de respeito. A menos que o morador de rua use de sada a cartada da m conscincia:

    Este mundo no me quer e no me d condies de existir, ento eu me largo, desisto de ser como todo mundo, vou at o fim da autodestruio e, se conseguem fingir que no me veem, no podem deixar de sentir meu cheiro. Jogo meu cheiro nas suas caras!

    O cheiro est no corao da atrao e da repulsa. Quando chegam em uma nova rea, os agentes sociais ins-piram o ar, cheiram ou farejam para saber se um odor os pe em alerta. preciso ter estmago, ainda mais que a decncia probe que se diga abertamente o que se sen-te. A gente nunca chega a se acostumar completamente, mas preciso aguentar. Este cheiro penetra, cola nos cabelos e nas roupas, gruda. Pode ser um tipo de fedor institucional, pesado e carregado, um perfume de mis-ria e de imundcie que flutua pelos corredores dos abri-gos. Aboubacar, um maliano que est temporariamente dormindo no centro aps ter perdido seus documentos, exclamou, chocado: O cheiro do albergue fica dentro da gente. Uma coisa assim, no meu pas, fecharia o Estado. Mas pode ser tambm um cheiro de angstia e sofrimento, cido, violento, para alm das simples pestilncias da sujei-ra ou da doena, um cheiro que faz a gente se sentir mal, que nos d a sensao de entrar dentro do corpo, mesmo

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    estando em apneia (Candau e Jeanjean, 2006). Com mais frequncia, so as exalaes dos corpos, de suas feridas, de seus excrementos, que fazem parte do espao sensorial das equipes de assistncia mvel. Elas so do mbito do sen-tir e do ressentir, num misto de afeco e de percepo, mas so raramente comentadas enquanto tais. A discrio uma conveno diante dos usurios e no vale a pena evocar o assunto mais tarde. A no ser atravs da risada, a propsito de alguns casos folclricos...

    apertar a mo e tocar o corpoO tato um sentido de contato. Os corpos vo alm do simples confronto. Eles se encontram. Ser tocado por uma situao ser afetado por ela, sentir compaixo s vezes, e tambm engajar-se num modo de comunicao no verbal o que requer muita intuio. Os antroplogos falam de um tipo singular de percepes hpticas, [que] so objeto de um longo aprendizado profissional no terreno e [que] so raramente verbalizadas (Bromberger, 2007)9. No h palavras para diz-lo. O aperto de mo, por exemplo, no momento de entrar em contato e de se despedir, crucial. Os membros da equipe vo um por um apertar a mo do ou dos moradores de rua. Esse aperto de mo ao mesmo tempo um rito de interao que abre a sequncia do encon-tro, uma garantia das disposies pacficas das duas partes e uma maneira de estreitar o lao, um gesto de humanidade. A maioria dos apertos de mo so francos, viris, atestados de presena e afirmaes de igualdade. Um aperto de mo eloquente. Para os agentes, j uma maneira de saber se a pessoa est de fato a, se capaz de se engajar numa relao interpessoal, se confia suficientemente para se arriscar a tocar em outra pessoa. Um aperto de mo sinaliza tambm

    9 Sobre os descritores das qualidades tteis: No h palavras para diz-lo, preciso sentir. Descrever e nomear as percepes hpticas profissionais (Sola, 2007). As percepes hpticas foram descritas pela primeira vez por Veldman (2001).

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    a configurao corporal que se desenvolve ao seu redor: olhos nos olhos, o olhar direto, sem desvio; o torso ereto, as costas no curvadas; o cumprimento franco, sonoro, nem apagado, nem forado. O aperto de mo capta as boas ou as ms vibraes. Ele inicia o trabalho de um diagnstico ttil, que vai se somar aos outros diagnsticos afetivos e senso-riais, fornecendo sua parte de informaes pr-reflexivas.

    O fato de que a pessoa se levanta em sinal de boas-vindas em seu territrio tambm significativo. Se ela permanece sentada e lana um olhar meio sombrio, isso pode significar que no um bom momento para visitas. Se ela permanece sentada sem animosidade, pode ser simplesmente porque ela esteja com dificuldade para se levantar e esse esforo fsico demais para ela. Uma pessoa que, ao cumprimen-tar, permanece deitada no ser surpreendente noite (a incomodamos em uma hora inadequada) ou se faz frio (ela apenas quer continuar agasalhada em sua coberta). Ago-ra, se dia, possvel que ela apresente sinais corporais de depresso e de esgotamento; ou se est rodeada de garrafas vazias, que ela bebeu um gole a mais. O aperto de mo apenas uma sequncia fugaz da relao cara a cara, mas ele adquire sentido na prova de sua inscrio numa experin-cia intercorporal.

    Como manter um pouquinho de cuidado quando voc morador de rua? Voc v o cara jogado no cho ao lado de sua latinha de cerveja e de sua garrafa de vinho... Eu no concordo com isso. No fique jogado no cho. Seja digno. Esteja sempre limpo, saiba tambm respeitar os outros sua volta. As pessoas, quando aparecem, podem apertar a sua mo, veem que esto limpas. importante. assim que o contato feito,

    explica Jean-Marc Restoux, que prefere pagar cinco euros por uma ducha pblica do que frequentar as duchas gra-

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    tuitas onde h grande risco de contrair fungos10. Este argu-mento tpico e serve a alguns moradores de rua para mar-car sua diferena em relao aos que se descuidam de si. A limpeza uma questo de decncia. De respeito prprio e de respeito pelos outros.

    Logo de sada, antes mesmo de examinar o paciente, a enfermeira, encabeando a fila, avalia sua febre. Mos quen-tes ou frias, secas ou midas, s vezes fervendo, s vezes gela-das, que valem como ndice nosolgico. A enfermeira que tem os sentidos em alerta encontra, no aperto de mo, um primeiro elemento de avaliao, da mesma forma que alguns odores recorrentes so ndices de uma infeco e que algu-mas posturas tortas so ndices de dor. Ela ento prossegue passando a prpria mo sobre a testa do paciente para ver se tem febre, se ele transpira, para depois tomar o pulso. As mos no so um rgo qualquer. Ultrassensveis e geis, fer-ramentas do manejar e da carcia, so tambm um espelho da alma e o reflexo de uma histria. As mos dos moradores de rua so sujas ou limpas, cuidadas ou descuidadas. Algu-mas so cobertas de sujeira com unhas compridas quebradas ou ulceradas, o que pressagia a higiene do resto do corpo. Outras so cuidadas e to expressivas quanto uma postura enrgica, um olhar franco e uma voz clara. As mos da enfer-meira, elas tambm, transmitem uma mensagem implcita: podem criar distncia ou facilitar uma aproximao (Th-venot, 1994; Breviglieri, 2005). Sua misso no apenas a de verificar o estado de sade de um paciente. Elas tm um magnetismo, como diz uma enfermeira. Elas acalmam, consolam e tranquilizam. Tocar algum com a mo fazer dele seu prximo (Pouchelle, 2007, p. 16). As mos rompem o isolamento, injetam fraternidade ou criam intimidade. A

    10 Jean-Marc Restoux, 54 anos, morador das ruas desde os 27 anos, que se tornou estrela de vdeo na Internet num documentrio de curta-metragem, S.D.F. (2006), de Sbastien Vixac, e que obteve 3,7% dos votos no primeiro turno das eleies municipais de maro de 2008 pela Mairie do 6 distrito em Paris.

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    enfermeira est de joelhos ao lado de D. [uma mulher de uns 50 anos]. Nos intervalos da conversa, elas batem papo como confidentes. Esto de mos dadas, se olham no fundo dos olhos. De vez em quando, a enfermeira passa a mo pelos cabelos de D. Parecem amigas. O toque serve ento de con-trole teraputico mas tambm tem o seu papel no trabalho de amansar. Aceitar ser auscultado mesmo de maneira to sumria, com ou sem a mediao do estetoscpio, significa muito mais do que se submeter a um ato mdico. conceder o direito de penetrao na bolha sagrada11 da proximidade corporal, territrio muitas vezes invisvel, de geometria vari-vel, zona limtrofe do Eu. No sentido inverso, tocar um corpo sem consentimento atentar contra a integridade e violar sua intimidade.

    Voc vai apertar uma mo e vai sentir que a pessoa no quer largar da sua, e voc vai colocar a outra por cima, e a vai sentir que tem uma energia que passa, que a pessoa precisa deste contato fsico [risos]. Depois h alguns que abusam disso, como o Chamego-da-Mame [apelido dado por elas a um morador de rua mais atrevido].

    Esse contato hptico se inscreve, ele mesmo, na totalida-de do trabalho de abordagem, no qual se realiza e inicia toda uma comunicao no verbal. Aproximar-se sem parecer ameaador. Avaliar reciprocamente quem quem. Ponderar se um bom ou mau momento. No interromper uma ativi-dade em processo. No se interpor numa discusso animada. Declarar sua identidade (em geral, primeiro a enfermeira e depois seus colegas). Agachar-se, sentar-se ou ajoelhar-se para ficar na mesma altura. No olhar de cima, manter um conta-to visual, ouvir bem o que dito. Encontrar a distncia ade-

    11 Segundo a expresso de Hall (1978), retomada por Goffman (1963). Ver tam-bm Winkin (1981).

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    quada, nem perto demais, nem longe demais. Uma distncia que no incomoda, que no entendida pelo morador de rua nem como invaso nem como frieza, e que, pelo contr-rio, permita aos membros da equipe fazer contato, conhecer, criar laos. Criar um lugar de encontro, que coloque entre parnteses o barulho dos carros no fundo e que faa abstra-o do fluxo dos pedestres. Captar um gesto nfimo como o deste homem na Rua da Ancienne Comdie, que no tem mais foras para se mexer e falar, mas que abre o olho e mexe a cabea, quase que imperceptivelmente, quando lhe dizem para subir no caminho. E assim por diante.

    Os membros das equipes so, sem querer, microssoci-logos. Praticam a quinestesia12 e a proxmica13 sem se dar conta. Sentar-se ao lado de algum que geralmente pro-voca repulsa e afastamento uma maneira de iniciar uma conversa de igual para igual. Quando um mdico de Saint-Michel que acompanha uma ronda diurna se instala num banco ao lado de um homem recalcitrante aos cuidados mdicos e apresenta-lhe uma lista de argumentos sobre a necessidade de cuidar de uma provvel insuficincia renal, no o faz mandando trazer o paciente para o seu consul-trio, quer queira, quer no. No o faz, tampouco, man-tendo-se distncia ou dirigindo-se a ele de cima, em p, em suma, ficando de fora do seu territrio corporal. Ele se senta ao seu lado, ombro a ombro, fala de perto, numa con-versa que s acontece entre ntimos. Ele enriquece sua fala com piadas, virando a cabea e observando as reaes de seu interlocutor por cima de seus culos, curvando ligeira-mente o busto a cada vez e exercendo uma presso lateral

    12 Kinesics: o estudo da comunicao no verbal, atravs de atos de linguagem corporal (movimentos, gestos, posturas, mmicas...), iniciada nos anos 1950 por Birdwhistell (1970).13 Proxemics: o estudo das distncias fsicas que se estabelecem entre as pessoas no curso das interaes e que variam segundo os meios sociais ou culturais. Ver Hall (1968; 1978).

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    com o seu cotovelo na barriga de seu vizinho. Ele recorre, claro, aos argumentos do homem de ofcio, explicando com palavras simples os riscos que corre este sem-teto que recusa o tratamento mdico. Mas, se a mensagem passa, porque se empenhou muito.

    Essa cumplicidade corporal tanto mais comovente para o morador de rua quanto maior seu carter inusitado. O mdico se aproveita, sobretudo, da incongruncia de sua presena fsica no local. Ele sabe que est provocando um curto-circuito ao transportar para esse territrio sua legitimi-dade de mdico e ao visitar pessoalmente aqueles que so considerados prias. Ele, que ocupa o ponto mais alto na hie-rarquia do status social, desce rua para tocar os intocveis. Evita, diz ele, abusar da imagem de mdico dos pobres, mas serve-se dela de duas maneiras. Por um lado, ao estar presen-te, em pessoa, diante dos corpos que ele deve tratar vistos, sentidos, apalpados no local onde vivem obtm informa-es que nunca teria em seu consultrio, que lhe permitem ter uma leitura contextual de certas patologias. (Ele se diz favorvel a uma medicina de campo e desistiu de seu con-sultrio particular em parte para recuperar esta experincia. preciso ir ver os caras na rua em vez de ficar com a bunda na cadeira.) Por outro lado, muitas vezes, sua visita permite desentravar situaes difceis e montar, assim, regularmente, junto com a enfermeira diurna, uma coreografia destinada aos que fogem ou resistem: o contato direto atinge, com pre-ciso, a cabea e o corao do morador da rua.

    A abordagem deste mdico ainda mais eficiente na medida em que coincide com uma expectativa de firme compromisso da parte do morador de rua. Trata-se, de fato, de um fugitivo do Saint-Michel, do Ridder e do Esquirol. possvel que sua doena seja de fcil tratamento, mas tam-bm possvel que ela piore de maneira dramtica. A pres-so fsica tambm uma presso moral. Os compromissos firmados cara a cara so bem mais fortes do que os firmados

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    distncia. Por fora do corpo a corpo, M. G. acabar con-cordando em ser tratado.

    Mdico: Vamos trabalhar com o organismo antes de passar para o psicolgico. O senhor no est querendo enfrentar nada. Precisa ter coragem de encarar a doena!

    M.G. [vira os olhos, oscila ligeiramente sobre si mesmo, visivelmente embaraado]: Aceito ir ao Saint-Michel!

    Mdico: O senhor pode voltar para o Saint-Michel, mas quero um compromisso seu por escrito. O custo dos leitos de 110 euros por dia e somos todos responsveis. claro que tenho um carro e o senhor, um carrinho de compras [mostrando o carrinho cheio de plumas do acolchoado, M. G. sorri], mas estamos todos dentro da sociedade. Sverine voltar. Trabalhamos em dupla. Mas no brinque mais com o seu corpo! Eu encontro um leito para o senhor, mas o senhor tem de colaborar!

    Operao em vias de ser bem-sucedida. Mas a ateno no deve ser distrada: o motorista desvia de uma terceira pessoa, Bbert, que apareceu ao ver o caminho. Um pou-co invasivo, um pouco parasitrio, h o risco de ele atra-palhar o encontro.

    A enfermeira explica que abordaram M. G. trs vezes nes-ses ltimos tempos. Ela acha que ele diminuiu a bebida por medo da doena, embora ainda mantenha seu litro de vinho ao alcance da mo. Ele est no ponto, ela pensava, mas no conseguia convenc-lo. A estratgia da visita pessoal do mdi-co funcionou. E como preciso forjar o ferro enquanto est quente, ela resolve redigir a carta com o consentimento do coordenador das maraudes, cujos termos so discutidos com o mdico. Eu me comprometo a fazer um exame renal, em Tenon, que precisa de dois a trs dias de hospitalizao.

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    Os presentes selam a amizade. Antes de deix-los, o mdico oferece aos dois membros da equipe diurna potes de geleias de cereja com caroo, que ele preparou na cozi-nha do hospital, numa noite de planto. Dentro dos cami-nhes, laos so formados tambm entre os agentes sociais.

    tato e contato: comunicao, explorao e contaminaoPega-se o jeito, menos atravs do contedo das magras dire-tivas por parte da organizao14 do que de instrues transmi-tidas, na prtica, de um membro da equipe para outro, com o intuito de guiar as operaes no campo. E essas instrues so bem pouco de ordem verbal. Os novatos observam bas-tante, ficam na retaguarda da ao, fazem perguntas prticas e absorvem por todos os poros. A transmisso se d numa pedagogia pelo exemplo. O contato pode ser tematizado durante as sesses de formao, mas nas situaes que os agentes sociais aprendem a pisar em ovos e a falar baixinho, a declarar sua identidade pessoal ou institucional, a esperar pela autorizao de se aproximar e de propor, a dedicar-se a uma interao sem precipitar as coisas, a envolver-se no tra-balho sem deixar de ser profissional, a fazer contato atravs da voz, e depois atravs do olhar, e depois atravs do toque. O contato requer tato. E o tato no apenas o tocar, com a ambiguidade perturbadora do que toca e do que tocado15. No so apenas a habilidade ou a delicadeza que so coloca-das prova. tambm a capacidade de formar uma opinio com rapidez a partir de indcios infinitesimais ou de avaliar espontaneamente o que convm dizer ou fazer. um sentido da convenincia (Thvenot, 1990), tanto em termos de afi-nidade afetiva e de habilidade prtica quanto de pertinncia

    14 Dignidade, solidariedade, cidadania. Ver Samusocial Charte du Samusocial de Paris ou a Charte thique et Maraude: .15 Sobre o quiasma ttil, ver Merleau-Ponty (1964).

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    perceptiva e de apropriao moral. O tato no um senti-do como os outros. Ele nos conduz maior proximidade do outro. Nele se conjugam as intuies dos cinco sentidos. Ele a qualidade primeira destes equilibristas do tato que so membros das equipes de assistncia mvel.

    O desejo de cuidados evidente no caso seguinte. Um homem, Momo (um mauriciano que vive debaixo de sua barraca) no se sente realmente doente. A enfermeira logo percebe que ele no est doente e ele sabe que a enfermei-ra sabe que ele no est doente. Mas a auscultao continua mesmo assim por via das dvidas, me dir depois a enfer-meira. Ela admite que o episdio deve ser entendido como um momento compartilhado de intimidade. Momo diz que vomitou vrias vezes. Vomitou o qu?, pergunta a enfer-meira, Blis, algo slido?. Ele no responde mas vai bus-car um cinzeiro bem grande no fundo da barraca, acende um cigarro e instala-se na interao. A enfermeira comenta, com um ar interrogativo, que ele parece ser bem-organiza-do. Percebe-se um movimento no fundo da barraca, h visi-velmente outra pessoa. Momo no leva isso em conta [Des-cobrimos atravs de um terceiro um portugus que vem interferir na interao e pedir uma sopa , que um marro-quino invadiu a sua barraca. Ele o domina, diz]. A enfer-meira volta ao seu diagnstico. O senhor teve diarreia? Ele diz que sim sem ser convincente. Quantas vezes por dia? Uma..., ele responde. O senhor bebe bastante gua ou bebe lcool? Vinho. Quantos litros por dia?. Uns trs ou quatro. Momo parece enganar a enfermeira. Ele diz ainda que est com sarna, mas no apresenta nenhuma marca nas mos. Hoje, o senhor comeu o qu? Quer um bolino16? Da ele muda de patologia: Sinto dor nas veias. Me mostre onde di. Ele mostra os dedos. A enfermeira mostra ento todo o servio. Ela o ausculta: otorrino; tem-

    16 Bolino um produto francs equivalente ao Miojo brasileiro. [N.T.]

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    peratura; exame de glicemia. Concorda com uma picada no dedo? O senhor me deixa fazer a picada?. Da ela veri-fica se Momo tem leses cutneas no torso ou nas costas. Depois de uns vinte minutos de auscultao, Momo faz o sinal da cruz, coloca a mo da enfermeira sobre sua testa e a beija em sinal de respeito e gratido. Ele fica segurando o seu punho durante uns cinco minutos e fala com ela cal-mamente, como se o mundo em volta deles tivesse desapa-recido. Os outros membros da equipe ficam distncia. Eu tomo notas enquanto finjo olhar para outro lado, o moto-rista voltou para perto do caminho, a agente social est ocupada fazendo perguntas de rotina ao portugus, que j est no seu segundo bolino. A enfermeira ainda pergunta a Momo se ele tem problemas cardacos. Mas o que ele quer, evidentemente, ser transferido para um leito de enferma-ria. Ela resiste. Ele no est doente, apenas um pouco can-sado e deveria comer e beber corretamente para ficar mais saudvel. Nada justifica o hospital. Momo no insiste. Ele agradece ainda vrias vezes com uma gratido muito teatral, mas que parece sincera.

    Esses momentos de intimidade so essenciais; delimi-tam o local do encontro interpessoal e evitam a intromis-so intempestiva de outras pessoas: uma espcie de frontei-ra invisvel. Podem acontecer ao ar livre, em pblico, mas podem acontecer tambm a portas fechadas. Assim, a higie-nizao assistida pode fornecer a oportunidade de uma pro-ximidade corporal que assume um carter afetivo. Nenhum procedimento especial rege esta operao, a no ser as instrues dadas s enfermeiras durante a sua formao: o toque deve ser feito com suavidade ou com carinho, num ritmo lento, sem gestos bruscos. Ele no apenas fun-cional: evita os apertes, sempre feito com a autorizao do paciente e no pretende substituir seus prprios movi-mentos. A autonomia passa tambm pela manuteno do esquema corporal e pelo respeito intimidade do corpo.

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    As auxiliares de enfermagem muitas vezes descrevem em voz alta o que esto fazendo ou pedem para os pacientes se mover: Levante o brao, estenda a mo, vou ensabo-lo, no est quente demais, vou enxagu-lo, vou esfregar suas costas, quer com mais fora, vai se secar agora.... Elas tm de enxaguar bem e secar bem as dobras da pele para evitar as irritaes e tratar assim que detectadas as infeces ou as escaras. Se so mulheres que esto encarregadas de cui-dar de um morador de rua, elas podem acompanh-lo at o banheiro, seno, os monitores do abrigo. Em Garel, os moradores de rua tomam duchas, enquanto em Montrouge, Chantal, a monitora faz com que tomem banho de gua quente na banheira.

    Agente social: Gosto de dar banho de chuveiro, a gente tem uma relao especial com o corpo. Aproxima. realmente um momento de intimidade...

    Enfermeira: Sr. Slavski pede para ficar mais tempo brincando na gua. um luxo poder relaxar deste jeito. quente, o cheiro gostoso, d para fazer umas bolhas, divertido! [suspirando de prazer]. Ao mesmo tempo, til para verificar o estado da pele e examinar feridas.

    Agente social: Mas bem desagradvel quando algum sofre de incontinncia fecal. s vezes menos complicado se borrar do que se locomover com as pernas machucadas e chegar at os banheiros pblicos. [A limpeza um sintoma seguro do estado fsico e psquico de uma pessoa.] De repente, as conversas vo aparecendo, mas podem ser mais srias, mais pessoais, sobre assuntos que os tocam mais. Gosto disso.

    O lao criado pela exposio da nudez e pelo cuidado com a higiene pessoal de outra pessoa , ao mesmo tempo,

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    muito profissional (no h nenhuma conotao ertica, e os comentrios provocantes que permitem-se fazer distn-cia seriam, aqui, totalmente inconvenientes) e muito nti-mo: remete ao banho que os pais do a seus filhos, cuja lem-brana , s vezes, evocada. Mais radicalmente, um lao pattico e esttico (Maldiney, 1990) que se forma na inter-face dos corpos do assistente e do assistido. Os cuidados no banho preenchem as seguintes funes: ter acesso a partes do corpo que normalmente so ocultas e examin-las; aju-dar uma pessoa que sofre de uma deficincia fsica a ser operacional; esfregar as costas, cortar as unhas ou refazer as ataduras. Esses cuidados tm a ver com a carcia (Straus, 1993, p. 437), com o abandono de si (Maldiney, 1990, p. 199), com a suspenso das rotinas cotidianas, com a osmose entre mundos vividos, com a confiana dada e com o respei-to recproco. O contato dos corpos estende-se ao contato atravs das palavras17. As lnguas se soltam e surgem relatos impensveis em outras circunstncias. Como se tocar o cor-po rimasse com tocar o corao. um momento de confi-dncias, de coisas ditas a meia voz, ao p do ouvido, coisas que so caladas no espao annimo da rua. um momento em que os locais de interao so redistribudos. A agente social ou a enfermeira, ao mesmo tempo em que assumem seu papel institucional, tornam-se as destinatrias de pala-vras secretas. O reconhecimento interpessoal supera ento, claramente, a interao de emergncia.

    Mas o contato, na medida em que aproxima, pode tam-bm se tornar uma fonte, real ou imaginria, de contami-nao. Mesmo sem transparecer nenhuma atitude esqui-va que seria sentida como discriminatria, barreiras entre agentes sociais e moradores de rua so estabelecidas mes-mo assim para no se contaminar. No sentido prprio do termo, limita-se os riscos de transmisso de doenas (usam

    17 Para uma reflexo sobre o contato desde Ferenczi, ver Leroy-Vimon e Gal (2008).

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    banheiros diferentes, recorrem a desinfetantes para as mos vrias vezes noite, evitam partilhar bebidas e comidas, no tocam uma ferida sem luvas). Tudo feito sem ostentao e sem um carter obsessivo. De qualquer forma, os riscos so limitados de todos os jeitos. No dia seguinte a um epis-dio de sarna, os agentes percebem que, sem ter combinado nada, todos foram consultar a Wikipdia ou o dicionrio mdico Larousse para reunir elementos informativos sobre este caro que cava galerias sob a pele: bom se informar!. Os trs membros da equipe e o pesquisador caram na gar-galhada dentro da cabine do caminho quando um contou que coou as costas, o outro, a barba a noite toda, mas que, verificaram depois, essas duas partes do corpo escapavam aos efeitos nefastos do contgio. Essa obsesso pela conta-minao profissionalmente circunscrita. Uma vez que os verdadeiros riscos so reduzidos atravs de medidas simples e fceis de serem cumpridas e de serem aplicadas no dia a dia, o resto uma questo de autocontrole. Na verdade, a transmisso de doenas neste tipo de contexto permane-ce rara, e todo agente aprende a controlar uma membrana imaginria que o protege em seu territrio corporal e ps-quico. Uma enfermeira encerra o assunto:

    Se a gente for pensar que vai pegar Aids toda vez que cuidar de um doente, ou que vai mergulhar na esquizofrenia toda vez que encontrar um maluco, no d pra aguentar! A gente aprende, na escola e na prtica, a se proteger. Eles so eles, ns somos ns.

    O aprendizado profissional do contato do qual pre-ciso se aproximar dar de si dando-se ao outro, no corpo a corpo, ao mesmo tempo em que so cumpridos gestos de cuidado vem junto com a neutralizao do medo do contgio que muitos profanos sentem ao entrar em contato com moradores de rua. A tambm h um trabalho sobre

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    si mesmo que constitutivo do ethos profissional: simulta-neamente tomada de precaues, os agentes sociais, ao abordar um corpo do qual preciso cuidar, colocam entre parnteses a repulsa sujeira que qualquer um tem.

    problemas da interao: atmosferas, espacialidades e temporalidadesOs agentes sociais funcionam na base do feeling (Valli, 2002). Boa parte de seu traquejo depende do aprendiza-do corporal. Eles recorrem s suas experincias de capta-o de atmosferas afetivas, como ao mais seguro barmetro para saber onde esto pisando. A apreenso dos indcios empricos e seu ordenamento em formas significativas no dependem apenas de um trabalho de induo ou de dedu-o. Os membros das equipes de assistncia tm como pri-meiro indicador dos ambientes as tonalidades afetivas que os assaltam, fisionomias situacionais que eles captam sem refletir. Uma parte de seu saber fundada na experincia e se d sob o modo da passividade, sua revelia. A Stim-mung18 sua bssola de orientao mais segura19. As pri-meiras impresses abrem um horizonte de expectativas que sero confirmadas ou invalidadas pelo fluxo de temporali-zao do encontro. Diz a enfermeira consigo mesma: Ui! Ai! Ai!. Depois, com o rosto srio, diz em voz alta num tom acolhedor, suave e medido (como se falar alto demais fosse provocar um cataclisma): Ol senhor, o Samusocial!. Os membros das equipes tm, como primeira abordagem, uma avaliao climtica da situao. Diante de um caso, eles se sentem arrasados ou tranquilizados, apavorados s vezes, aflitos em outras, e at meio aliviados (quando a interao

    18 Stimmung um conceito heideggeriano, usado pela anlise existencial.19 Binswanger (1998, p. 88) fala do carter tmico (de thumos: o corao e seus humores) das situaes que atravessamos. Maldiney (1973; 2007) insiste em seu carter pattico (de pathos: o sofrimento ou a paixo). Dufrenne (1987) fala, por sua vez, de uma experincia ptica do gesto ou do grito.

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    engrena alegremente). A tristeza ou a ansiedade, o desam-paro ou o desespero, e, pior talvez, o silncio profundo (quando a pessoa parece to aniquilada que se torna dif-cil saber o que ela sente) lhes so impostos como traos da situao: no apenas impresses subjetivas, retradas em seu foro ntimo, mas tambm como experincias de cognio e guias para a ao. Ao mesmo tempo em que so expostos a esse Stimmung, eles investigam o estado fsico e moral dos moradores de rua e sua explorao orienta sua interveno. As provaes se interpenetram umas nas outras: as sensaes e as percepes se encadeiam e esta configurao sensvel e perceptiva (no sentido de uma Gestalt) se desenha como portadora de sentido. Essa apreenso vem acompanhada das aes e das interaes: esse vai buscar o caf, este toma o pulso e percebe um relaxamento da ateno ou uma falta de tnus, aquele faz casualmente perguntas sobre o moral enquanto fala de assuntos do dia a dia.

    Uma primeira avaliao feita desde as primeiras fases do encontro. As tonalidades afetivas so fundamentais para a elaborao de um diagnstico. A maioria dos elementos levados em conta no so claramente explicitveis e no apa-recem nos formulrios da enfermeira ou da assistente social. Essa avaliao inicial passa tambm pela troca de palavras. Se a fala da maior importncia na hora de descobrir mais, da prpria boca do interessado, ela tambm tem um alcan-ce expressivo (Merleau-Ponty, 1968). No se trata apenas de um veculo de informao. A maneira de falar, o ritmo e o timbre da voz20 so indcios sensveis do estado de uma pes-soa, muito embora uma voz animada possa, s vezes, masca-rar o sofrimento, e, pelo contrrio, o mutismo possa levar a interpretaes excessivas. Somente ao prolongar um pou-co a interao possvel encontrar falhas e incoerncias no

    20 Sobre o timbre da voz e a aparncia dos moradores de rua, Breviglieri (2008) escreveu coisas similares. Ele recorre noo de constrangimento como embara-ar-se, emprestada a Lipps e Van Kerckhoven (2006).

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    discurso, faltas de presena, irrupes de afetos, distrbios da comunicao. Ou, ao contrrio, surgir um sentimento de confiana recproca nos quais os constrangimentos ini-ciais desapaream, os receios de ambos os lados se acalmem e que a pessoa parea capaz, ou no, de manter uma con-versa, de retom-la no ponto em que estava no dia anterior, de aliment-la ou de interromp-la de maneira coerente. A, tambm, o tato permite vencer as reticncias, ultrapassar o constrangimento ou a suspeita. preciso discrio para no assustar e para acolher o outro; circunspeco para no inti-mid-lo e para tranquiliz-lo; ateno para entend-lo e para convenc-lo; prudncia para evitar as palavras e os gestos que ferem ou que irritam. Todos esses desafios dependem de detalhes mnimos, frequentemente no limite do perceptvel. E, ao mesmo tempo, os membros das equipes de assistncia devem, se necessrio, provocar reaes, estimular, revitali-zar um impulso vital ou despertar uma vontade adormecida (Stavo-Debauge, 2007).

    Sem ter uma boa formao em psiquiatria ou em psico-patologia, as enfermeiras e os assistentes sociais esto aten-tos a indcios suscetveis de valor enquanto sintomas. Muitas vezes a categoria psi aparece numa frase meio rpida: ela significa uma incapacidade de compreender a situao e, talvez, um distanciamento, um mecanismo de defesa. Ele psico pode querer dizer que a pessoa conhecida por seu comportamento fora do comum e que j no se nutre muita esperana em sua capacidade de sair desta, ou que tenha se mostrado perigosamente agressiva no passado e que pre-fervel no se demorar muito com ela. Mas a loucura pode parecer tolervel, nada mais do que uma coleo de idios-sincrasias: Ela meio especial, mas preciso saber lidar com ela, Ele no mau, est tomado pelos tiques e tocs. Outras vezes, seu comportamento entendido como um distrbio da interao (Joseph, 2007) com a qual a pessoa no est acostumada, que pede vigilncia e que preciso

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    investigar para lhe dar um freio. Podemos distinguir nes-sas avaliaes um movimento duplo. Por um lado, de reco-nhecimento, seno de identificao e de projeo, no qual o morador de rua o duplo do agente social, seu reflexo especular (o que abre espao para todo tipo de histria sobre antigos agentes sociais que foram parar em abrigos). Por outro, de distanciamento, de demarcao e de auto-proteo, no qual o morador de rua o outro do agente social, aquele que ajudamos, mas com o qual no queremos nos parecer e que aquartelamos na alteridade daquele que no quer sair desta. Ou seja, dependendo das pessoas e das situaes, a provao da semelhana e da diferena no ser a mesma. Ora prevalecer o sentimento de que estamos todos no mesmo barco ou viemos todos do mesmo barro, isso pode acontecer com qualquer um, e no demora pra chegar!; ora se impor o sentimento de que tem um mon-te de malucos que tinham problemas antes de vir para a rua e isso s fez piorar o seu estado.

    As enfermeiras e as assistentes sociais mais antigas da casa reconhecem, no entanto, em suas descries, o que alguns psiquiatras qualificam como sndrome da autoex-cluso (Joseph, 2007): os moradores de rua so desestimu-lados pelo sentimento de estarem privados do controle de sua situao, o que gera uma forma de des-habitao de si21, de desconexo do sensorial e do psquico (a qual con-duz a uma hipoestesia corporal e a um amortecimento afetivo, ou, pelo contrrio, a uma hiperexcitabilidade que pode chegar at a uma receptividade delirante). A esses dois elementos se acrescenta a inibio, que impede os morado-res de rua de transformar sua experincia atravs da refle-xo. Essa incapacidade de experimentar as situaes vem

    21 Sndrome que acompanha a ruptura das relaes com os parentes e os amigos e um fechamento sobre si mesmo: a errncia em uma fuga permanente, a incria, a impossibilidade de habitar e a negligncia de seu corpo, a perda do respeito por si mesmo e da vergonha perante o outro.

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    muitas vezes se acrescentar s dificuldades em que vivem os alcolicos e os psicticos, no entanto, sem se confundir com elas. Ela subentende fenmenos paradoxais do tipo: quan-to mais uma pessoa est mal psiquicamente, menos ela tem capacidade de pedir ajuda (mdica, social ou psquica). Os agentes sociais devem mostrar uma grande pacincia para superar esta renncia e para aprender a ir alm de um est tudo bem. A ttica certa a de propor ao morador de rua um cuidado que passa por cima de seu no pedido de ajuda, sem, por isso, ignor-lo ou desprez-lo.

    Convm navegar entre dois extremos: de um lado, a arrogncia violenta do direito de ingerncia por princpio, e de outro, a espera por um pedido formal e dentro das normas, que, em alguns casos, constituiria um tipo de eutansia passiva (Joseph, 2007, pp. 129-130).

    Mas as dificuldades no param a e se reencontra o parado-xo quando deixamos os albergues e vamos para os locais de estabilizao. Pode-se formul-lo assim: quanto mais o assis-tente ajuda, mais a pessoa fica mal; quanto mais sua situao material melhora em termos de dinheiro ou alojamento, mais ela se degrada num plano psicossocial. Outro proble-ma, muitas vezes desconcertante, o do pedido cruzado: um assistente social, que ouve as confidncias ntimas de uma pessoa em grande dificuldade (por exemplo, traumas ligados primeira infncia na Assistance publique 22 orienta o paciente para um psiquiatra para quem essa mesma pessoa faz um pedido de ajuda material (de trabalho ou de mora-dia) que ela deveria ter feito ao assistente social. muito comum a gente ser enrolado pelos moradores de rua; no se deve levar tudo ao p da letra com eles.

    22 A Assistance publique designa aqui a instituio francesa responsvel pelo atendi-mento a crianas rfs, abandonadas ou filhas de pais desconhecidos.

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    Embora os casos psi sejam numerosos, segundo os agentes sociais, so raramente notificados junto maraude psiquitrica da Rede Sofrimentos e Precariedade23. As enfermeiras podem telefonar ao CPOA24 para uma infor-mao complementar e pedir que o centro de atendimento verifique no banco de dados do Samusocial, o 4D, isto , se a pessoa tem antecedentes. Mas a investigao muitas vezes para por falta de formao para fazer um diagnstico. H um hiato entre o fato de os agentes sociais categorizarem muitos distrbios como sendo psicopatolgicos (Henry e Borde, 1997)25, e o fato de acionarem to raramente os ser-vios psiquitricos para cuidar de pessoas afetadas por estes males e de frequentemente fecharem os olhos, especial-mente em relao aos que eles prprios qualificam como grandes excludos. No h psiquiatrizao sistemtica feita por eles da condio dos moradores de rua. Eles tm conscincia de que os graus de acessibilidade, de inteligi-bilidade e de reciprocidade na relao com os moradores de rua podem variar ao longo do tempo. E o rtulo psi vagamente associado a qualquer tipo de distrbio interativo e de inconvenincias situacionais (Goffman, 2010), mais ou menos como dizemos de algum que conhecemos, sem que isto tenha consequncias, que ele completamente lou-co. Por fim, o exame se limita, frequentemente, a um tes-

    23 Em francs, Rseau Souffrances et Precarit. Trata-se da equipe do setor psiqui-trico do hospital Esquirol, ligada ao Samusocial de Paris. [N.R.]24 Centre Psychiatrique dOrientation et dAccueil [Centro Psiquitrico de Orien-tao e Acolhimento] do hospital Sainte-Anne. Alm de sua funo de conselho e de informao, o CPOA uma clula de emergncia mdico-psicolgica, mdico-social ou psiquitrica. Ele acolhe o paciente e sua famlia, trata a crise ou orienta para uma consulta ambulatria ou uma hospitalizao.25 Parece difcil no reconhecer a pertinncia de certos comentrios clnicos que se aplicam mais particularmente a esta minoria de moradores de rua, que os mem-bros das equipes de assistncia social mvel qualificam como grandes excludos. Mas sua sistematizao em uma sndrome de des-socializao mais problem-tica e contestada no prprio ncleo do Samusocial. Ver as operaes cumpridas por Declerck (1996; 2003), em resposta a Vexliard (1998), o primeiro a desenvol-ver a tese da des-socializao (a partir de 1950).

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    te de orientao. Trata-se de um protocolo elementar para avaliar a presena do morador de rua no mundo: Como o senhor se chama? Est na rua? H quanto tempo? Que dia hoje? Onde estamos? O senhor tem onde ficar? Para a maioria das enfermeiras e assistentes sociais, a conscincia da desorientao espacial e temporal de muitos grandes excludos aguda. Estes veem sua experincia do espao encolher e empobrecer. Quando no sofrem de agnosia ou de apraxia, so tomados por vertigens assim que se afastam de seu pequeno territrio. A degradao de sua capacidade de se mover e seu aprisionamento num crculo de rotinas implacveis desembocam na incapacidade de se situar26. Alguns andam em crculo num pequeno permetro, num pedao de bairro, e sofrem ataques de pnico quando ultra-passam suas fronteiras. Outros chegam a no mais deixar sua posio sentada ou deitada e morreriam l mesmo se ningum cuidasse deles.

    A questo da autonomia no apenas uma questo de retrica liberal. Ela se coloca em termos de capacidade de se mexer, de se orientar e de se projetar no espao. A cate-goria de PSPM27 utilizada nos albergues remete no fundo a esta distino entre os que ainda ficam de p (e que conse-guem andar sem ajuda) daqueles que no conseguem. Ela aponta para esta capacidade elementar que um corpo tem de se sustentar, de ter ps e pernas que o levam onde quiser ir. A inveno da maraude a de um dispositivo de apoio e de insero destinado em primeiro lugar queles que no tm mais foras. Mais radicalmente, a pessoa distribu-da nas vizinhanas do territrio e nos objetos que o equi-pam e o povoam. E ela progride na medida em que no est

    26 Binswanger (1998, p. 88) fala de espao tmico (gestimmt Raum). Ver tambm Fernandez-Zola (1987).27 Em francs, sigla para par ses propres moyens que se refere quele usurio da assistncia social de emergncia que capaz de vir com seus prprios meios de se deslocar com as prprias pernas. [N.R.]

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    presa a um aqui e que dispe de um poder de circular. Essa anlise existencial da mobilidade conta tanto quanto o diagnstico teraputico. A ateno que as enfermeiras do aos ps dos moradores de rua diretamente ligada a esta preocupao com a autonomia na deambulao. Afirma uma delas:

    A principal causa de doenas so os problemas venosos. Eles no se cuidam, ficam macerando em seus sapatos molhados. Eles transpiram. Quando se borram, a coisa escorrega entre as pernas e vem se aglomerar nas meias. Eles no as trocam, nem ao curativo quando so tratados. Qualquer bolha ou micose vira uma escara, as bactrias ou os fungos se multiplicam. Ou ento se coam, se coam, se coam at sangrar, ficam cobertos de feridas e acabam com uma lcera...

    A maioria das feridas problemticas vem dos ps. Um morador de rua que no pode se deslocar, que perde sua mobilidade, no mais capaz de procurar seu alimento, de se dirigir aos locais de tratamento ou de albergue por seus prprios meios e, ainda por cima, se torna presa fcil para colegas mal-intencionados. Um p ou uma perna que no funciona ou est dolorida, o comeo do fim.

    Esses distrbios da espacialidade e da mobilidade se juntam muitas vezes a distrbios de temporalidade. A memria que falha a ponto de no se lembrar mais do dia anterior (La, 1998), de no poder mais se orientar den-tro de um antes e um depois, s vezes acompanhada da queixa melanclica de um Eu perdido, da existncia des-pedaada por ocasio de um evento originrio em que as possibilidades parecem ter se fechado. Essa catstrofe ini-cial, em forma de cena originria, sempre existiu: maltra-to infantil, internao na Assistance publique, alcoolismo, toxicodependncia, dissoluo familiar, morte de um filho,

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    ciclo do endividamento-despejo, perda de emprego ou pas-sagem pela priso... Mas ela parece proibir definitivamente qualquer recuperao. Muitos moradores de rua descrevem um estado em que padecem sem encontrar foras para rea-gir, no qual sua liberdade selada pelo destino, em que a presena perante as coisas e os outros obscurecida pela incapacidade de (se) sentir e (se) ressentir. Eles so prisio-neiros da evidncia inabalvel de que nada mudar, mer-gulhados num estado de angstia em que toda veleidade intencional se esgota28. O tempo parou e todo o problema est em faz-lo voltar a fluir, nos diz uma assistente social. O problema maior no apenas o do acesso ao trabalho ou moradia enquanto tais, mas o da restaurao de uma experincia de si, do outro e do mundo, que contenha a angstia e que abra espao para um projeto.

    Uma cena noturna, diante do Crazy Horse, na Aveni-da George V, reveladora nesse aspecto. Um homem est deitado sobre um respiradouro de ar quente, prostrado, em estado de torpor. Ele ainda encontra foras para res-mungar e dar socos no ar de maneira desordenada. Ele fala um sabir29 incompreensvel. Diz que se chama Jim Jackson, e que afego mas vem da Amrica. As palavras saem de sua boca como suspiros. Uma enfiada de palavras e depois um longo silncio expressivo. Ele parece esgotado. Em seu charabi quase inaudvel emergem apartamento... whisky... Afeganisto.... Ele tenta nos explicar que cato-liki... No conseguimos tirar disto uma histria. A assisten-te social parece desamparada. Est de joelhos ao lado de Jim, tenta tomar-lhe uma mo que se esquiva. Ela percebe sua hesitao. Ele a olha de esguelha, desvia os olhos. De

    28 Ver Binswanger (1987) e, para uma apresentao do problema, Tatossian (2002).29 Linguajar que uma mistura do rabe, do italiano, do espanhol e do francs, falado na frica do Norte e no Mediterrneo oriental. [N.T.]

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    vez em quando d murros no ar, contra inimigos invisveis. Parece perdido, no limite do impasse, como se, na incapa-cidade de achar uma soluo para seu problema, tivesse decidido se ausentar do aqui e agora. De volta ao caminho essa assistente fala da atonia de muitos moradores de rua, da desconexo de seus afetos, de seu medo de amar e ser amado, que o quinho do sofrimento. Ela fala tam-bm da falta de confiana em si e nos outros. Os apoios do Eu lhes escapam. Eles no acreditam mais, e, para que se salvem, preciso lhes dar objetivos. Os moradores de rua so como massas que no conseguimos mais deslocar. Eles parecem estar esmagados por foras implacveis con-tra as quais eles abdicaram e que, s vezes, se materializam em vozes que os comandam.

    A viso desta melancolia pode ser justaposta da mania. Muitos moradores de rua esto, pelo contrrio, em estado de superexcitao, de humor eufrico e de agitao motora, no sem movimentos brutais. Suas palavras so desordenadas e formam uma balbrdia com um excesso de familiaridade que, s vezes, descamba para a intruso e para a grosseria. Um senhor bem vestido, superexcitado, se lana sobre ns assim que v o caminho, arrastando um grande caixote de papelo: Vocs me conhecem? No, mas vamos aprender a nos conhecer. Meu nome Florence. Ele nos puxa em dire-o a um casal bem burgus, com roupa de festa, que est pagando o parqumetro [o homem lhe d discretamente uma nota de cinco euros que ele enfia no bolso].

    Me chamo Firenze, ecco. [adulador] O senhor est muito elegante, a senhora est muito bonita. Ei! Mantenham a Frana assim, to bela. Olhem, meu apartamento [apontando para os caixotes de papelo]. Eu, pessoalmente, gosto da beleza do mundo. Olhem, as rvores vo logo florir. Vou me instalar ali. Fazem catorze anos que moro em meus caixotes.

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    Abdel Firenze explica que nunca foi nos caminhes, nos abrigos ou nos ginsios. Oferecem-lhe uma sopa, mas ele pede dinheiro abaixando a voz. Recusa da assistente social. Por fim, ele pega um bolino e se joga no meu pescoo para me dar um beijo babado na bochecha [uns cinco minutos depois dou uma sumida, como quem no quer nada, para me encharcar de desinfetante]. Madame, Sarkozy, Horte-feux, Rachida Gteau.30 Ele recita uma ladainha de nomes tirados da atualidade e me joga na cara: O senhor no gos-ta dos rabes. Revolto-me. Dois minutos depois, diz para a enfermeira: A senhora no gosta dos afegos. Eu quero calor humano, voc muito bonita. A assistente brinca com ele: O senhor italiano nos gestos [come vai, sta bene?, ele repete]. Senhora, eu a amo, bizarro, bizarro, como o Htel du Nord 31. O senhor est fazendo estatsticas [dirigindo-se a mim, que estou tomando notas]. No gosta dos italianos? A assistente: Ei, Abdel! O senhor cansativo, pare de dizer que no gostamos de ningum. Um cabila, que vende fru-tos do mar na cervejaria ao lado, se aproxima.

    Ele de Azazgha, nasceu l, mas cresceu em Argel, faz vinte anos que est nos caixotes. Ele tem filhos, no tem mais notcias, mas envia o RMI32 para l. s 6 horas da manh ele j est acordado, conhecido nos cafs, nos PMU33. Ele ainda tem um passaporte da Arglia francesa. Sempre bem vestido, nos trinques. Eu, eu sou rico, o melhor morador de rua de Paris, sempre de terno.... A equipe foge. Se quiser que a gente venha, s nos chamar. Boa noite, senhores, no briguem.

    30 O morador de rua troca o sobrenome da personalidade poltica Rachida Dati por Gteau, que quer dizer bolo em francs [N.T.]31 Aqui o sem-teto cita o famoso trecho bizarre, bizarre dito por Louis Jouvet no filme Drle de drame, de Marcel Carn, que ele confunde com Htel du nord, do mesmo cineasta. [N.T.]32 Sigla para Revenu Minimum dInsertion, uma renda social mnima. [N.T.]33 Local de apostas em cavalo. [N.T.]

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    Jim e Abdel. O contraste impressionante. Em contra-ponto com Jim, perdido no labirinto de suas queixas, em luta com seus fantasmas, labutando no calor de seu respi-radouro, no esperando mais nada, Abdel vocifera, pula de um assunto para o outro, no termina suas frases, multipli-ca os trocadilhos e as associaes disparatadas, gruda a dois centmetros do rosto de seus interlocutores, fica saltitando e agarra os braos deles, se perde num turbilho de palavras, muitas vezes desconexas, oscilando entre a simpatia invasiva e o humor agressivo. Um no diz mais nada, o outro trans-borda em palavras. Um est petrificado pela imobilidade, o outro no domina mais sua superexcitao. Mas com um ou com o outro, como entre um e o outro, a comunicao, sim, difcil.

    Na verdade, as aparncias no so sempre fceis de decifrar...

    daniel Cefa diretor de pesquisa na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Paris) e membro do Centre dtude des Mouvements Sociaux/Institut Marcel Mauss.

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    Provaes corporais: uma etnografia fenomenolgica entre moradores de rua de Paris

    Lua Nova, So Paulo, 79: 71-110, 2010

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  • Lua Nova, So Paulo, 79: 235-244, 2010

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    Resumos / Abstracts

    provaes Corporais: uma etnografia fenomenolgiCa entre moradores de rua de paris

    daniel cefaO Samusocial de Paris uma organizao no governamen-tal, financiada pelos poderes pblicos para implementar uma poltica de atendimento social a moradores de rua. As equipes da organizao, compostas por um assistente social, uma enfermeira e um motorista, fazem rondas diurnas e

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    Resumos / Abstracts

    noturnas pelas ruas da capital francesa. Este artigo prope uma etnografia fenomenolgica das experincias corpo-rais (sensoriais, afetivas e morais) que se do nos encontros entre os profissionais das equipes do Samusocial e os mora-dores de rua que eles atendem. Tenta-se compreender as inferncias prticas e os procedimentos interpretativos pos-tos em marcha pelos agentes dessas interaes especficas.

    palavras-chave: Etnografia fenomenolgica; Samusocial; Mora-dores de rua; Poltica social de emergncia.

    corporal proVations: an ethnography within homeless in parisThe Samusocial of Paris is a non-governmental organization, partly funded by the state. It undertakes a mission of outreach work with homeless people, thought as social emergency. Teams, composed of a social worker, a nurse and a driver, patrol night and day all over the capital. This paper proposes a phenomenological ethnography of some the embodied experiences (sensitive, affective and moral), lived in the encounters between the professionals of the SSP teams and the homeless. It tries to understand what kind of practical inferences and interpretative procedures are accomplished in these specifical interactions.

    Keywords: Fenomenological ethnography; Samusocial; Homeless; Social policies of emergency.

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