PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL MARCUS VINÍCIUS DA SILVA LIMA PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE Porto Alegre 2012

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Trabalho de conclusão de curso, apresentado na Faculdade de Comunicação Social da PUCRS - Curso de Publicidade e Propaganda. Esta monografia traz um novo olhar para a propaganda atual, que deve encontrar, na arte, um novo diálogo com o espectador/consumidor, propondo o uso de novas estéticas para tratar o cotidiano em filmes publicitários através da análise do uso do realismo crítico no filme UNHATE, da Fundação criada pela marca italiana Benetton em 2011 com o mesmo nome. A metodologia utilizada foi a análise fílmica como narrativa, afim de explicar as ligações entre os códigos de representação estética, os conceitos sobre realismo elaborados por Beatriz Jaguaribe e o filme em questão. Como resultados, evidenciamos, através de experimento, que as imagens fílmicas, quando estáticas, conseguem obter a mesma construção estética dos anúncios gráficos de Toscani, no entanto, a narrativa se perde quando analisamos as imagens em movimento, pois carregam junto uma ambiguidade que requer do espectador uma interpretação além daquela proposta numa primeira análise, que parece tratar muito mais de contatos humanos, do que da questão principal que se propõe a Fundação UNHATE: a luta contra o ódio.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

   

MARCUS VINÍCIUS DA SILVA LIMA

PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

Porto Alegre 2012

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MARCUS VINÍCIUS DA SILVA LIMA

PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do curso e obtenção do título de bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda da Faculdade de Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientadora: Prof. Drª. Cristiane Freitas Gutfreind

Porto Alegre 2012

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MARCUS VINÍCIUS DA SILVA LIMA

PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do curso e obtenção do título de bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda da Faculdade de Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovado em:_____ de ___________________ de______.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Orientadora: Profª. Drª. Cristiane Freitas Gutfreind – PUCRS

___________________________________________ Profª. Drª. Beatriz Regina Dorfman – PUCRS

___________________________________________ Profª. Drª. Cristiane Mafacioli Carvalho – PUCRS

Porto Alegre 2012

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Dedico este trabalho a quem me permitiu experimentar, tentar, errar e

mudar – sempre: minha família.

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AGRADECIMENTOS

Finalmente, depois de uma longa e árdua caminhada, chego a mais uma

etapa da vida – aquela que me confere o grau de bacharel em Comunicação Social.

Quando iniciei esse processo de produção de conhecimento, em março de dois mil e

oito, estava com um sentimento bem confuso quanto às escolhas que eu faria a

partir de então - comecei no curso de Relações Públicas e findei na Publicidade. Ali,

começava o desafio em decidir, sozinho, os rumos da minha vida. As ligações para

casa, numa tentativa de compartilhar os medos, as tensões, as lágrimas, eram todas

canalizadas ao som da voz da minha mãe, do meu pai e da minha irmã. E os

telefonemas resolveram: ouvi-los, de longe, resultou numa força que permitiu que eu

pudesse ficar longe deles por todos esses anos, enquanto eu estava aqui, fazendo

valer cada investimento dos meus pais em manter-me numa das melhores

universidades do país: a PUCRS. Nesse tempo, quis poder dividir com eles todas as

alegrias, os encantos pela vida no campus, o orgulho que eu sentia em fazer parte

daquele que passou a ser o meu mundo.

A minha mãe, Lúcia Lima, que sempre – indiscutivelmente – soube mostrar-

me o valor da persistência e do conhecimento e, como artista e professora, o valor

de perceber a delicadeza das coisas nas suas formas mais simplificadas.

Ao meu pai, Edivaldo Lima, por mostrar-me a importância da paciência, da

calma e da tranquilidade para enfrentar os desafios impostos pelo mundo todos os

dias.

A minha irmã, Débora Lima, por fazer-me entender que sem ambição nossos

sonhos não se movem. Pelas conversas, que mesmo em meio a tantas diferenças,

foram francas e verdadeiras.

Ao meu amigo e fiel companheiro, Alexandre Voelcker, por entrar na minha

vida de forma tão especial e mostrar-me o poder do sorriso ao dizer que ao sorrir

para a vida ela é capaz de nos sorrir de volta.

Aos meus tios, Fernando e Fátima Sirena, por estarem sempre comigo

durante todos os momentos em que precisei e por apoiarem minhas decisões,

desempenhando o papel de pais; e as minhas primas, Mariana e Nives Sirena, por

mostrarem-me o gosto pelo estudo, a leitura, o bom filme e a boa música.

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A minha orientadora, Cristiane Gutfreind, por conduzir-me tão bem no

caminho das descobertas e incertezas da vida acadêmica. Pela sabedoria e

confiança prestados durante todo este período de estudo.

E, por fim, aos meus amigos, cada qual a sua maneira, por estarem sempre

ao meu lado, dando um significado muito maior à palavra amizade.

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Espero que, a minha maneira, desenvolvendo uma atitude crítica do sistema publicitário, virando-o pelo avesso, tenha contribuído para lançar uma reflexão nova sobre a comunicação. A publicidade não poderá por muito tempo continuar escondendo a cara e evitando cuidadosamente toda a significação, utilidade social e reflexão sobre a sua iniciativa. (TOSCANI, 2009, p. 185).

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RESUMO

O presente trabalho traz um novo olhar para a propaganda atual, que deve

encontrar, na arte, um novo diálogo com o espectador/consumidor, propondo o uso

de novas estéticas para tratar o cotidiano em filmes publicitários através da análise

do uso do realismo crítico no filme UNHATE, da Fundação criada pela marca italiana

Benetton em 2011 com o mesmo nome. A metodologia utilizada foi a análise fílmica

como narrativa, afim de explicar as ligações entre os códigos de representação

estética, os conceitos sobre realismo elaborados por Beatriz Jaguaribe e o filme em

questão. Como resultados, evidenciamos, através de experimento, que as imagens

fílmicas, quando estáticas, conseguem obter a mesma construção estética dos

anúncios gráficos de Toscani, no entanto, a narrativa se perde quando analisamos

as imagens em movimento, pois carregam junto uma ambiguidade que requer do

espectador uma interpretação além daquela proposta numa primeira análise, que

parece tratar muito mais de contatos humanos, do que da questão principal que se

propõe a Fundação UNHATE: a luta contra o ódio.

Palavras-chave: Realismo. Propaganda. Benetton. Publicidade. Estética.

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RÉSUMÉ

À travers l’analyse de l’utilisation du réalisme critique dans le film UNHATE,

cette étude apporte une nouvelle perspective pour la publicité actuelle, qui doit

trouver dans l’art un nouveau dialogue avec le spectateur/consommateur, et ce, par

la proposition de nouvelles esthétiques, utilisées pour analyser le quotidien dans des

filmes publicitaires. La méthodologie est basée sur l’analyse du film en tant que récit

puisque l’objectif principal est celui d’expliquer le rapport entre les codes de

représentations esthétiques, les concepts sur le réalisme élaborés par Beatriz

Jaguaribe et le film en question. Les résultats de cette analyse, obtenus à partir

d’une expérimentation, démontrent que les images statiques du film ont la même

construction esthétique des annonces graphiques proposées par Toscani.

Cependant, le récit perd son fils conducteur lorsqu’on analyse les images en

mouvement. En effet, à mesure où ces images portent signifiante ambiguïté, elles

requièrent du spectateur une interprétation plus approfondie sur le sujet principal du

film. Ainsi, l’ambiguïté suggère que le film porte surtout sur les contacts humains et

non sur la lutte contre la haine, comme a premièrement proposé la Fondation

UNHATE, un organisme de propriété de Benetton.

Mots-clés : Realisme. Benetton. Publicité. Esthétique.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Evolução da logomarca Benetton............................................................. 16

Figura 2 - Mulher amamentando................................................................................ 21

Figura 3 - Homens algemados................................................................................... 21

Figura 4 - Padeiros..................................................................................................... 22

Figura 5 - Crianças no penico.................................................................................... 22

Figura 6 - Mão de criança negra com a mão de um adulto branco............................ 23

Figura 7 - Pinóquios................................................................................................... 24

Figura 8 - Crianças com língua de fora...................................................................... 24

Figura 9 - Cemitério com cruzes brancas...................................................................25

Fluxograma 1 - Como se apresenta o realismo no filme publicitário UNHATE.......... 51

Quadro 1 - Categorização das cenas, segundo o autor............................................. 54

Figura 10 - Tentativa de beijo gay.............................................................................. 56

Figura 11 - Bullying sofrido por criança...................................................................... 56

Figura 12 - Momento íntimo entre casal..................................................................... 56

Figura 13 - Gesto obsceno......................................................................................... 56

Figura 14 - Manifestação política / religiosa............................................................... 56

Figura 15 - Beijo entre mulheres................................................................................ 56

Figura 16 - Experimentação das imagens com logomarca........................................ 57

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 1 BENETTON ............................................................................................................ 13 1.1 O INÍCIO DA UNITED COLORS OF BENETTON................................................ 13

1.1.1 Oliviero Toscani: o mago da polêmica.......................................................... 17 1.1.2 Campanhas polêmicas da Benetton ............................................................. 20 1.2 FUNDAÇÃO UNHATE E SUA PRIMEIRA CAMPANHA...................................... 28

2 O REALISMO E SUAS FORMAS........................................................................... 32 2.1 O REALISMO NA PUBLICIDADE........................................................................ 35

2.1.1 As funções do realismo na publicidade........................................................ 40 2.1.2 A manipulação do real na publicidade e quando o manipulado se torna real............................................................................................................................. 42 2.2 O CHOQUE DO REAL......................................................................................... 44

3 O USO DO REALISMO EM UNHATE.................................................................... 49 3.1 ANÁLISE FÍLMICA...............................................................................................50

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 60 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 64 ANEXO A - Filme UNHATE em CD-ROM..................................................................66

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INTRODUÇÃO

É comum nos depararmos com anúncios publicitários diariamente.

Promessas de produtos que parecem resolver todos os problemas, famílias vivendo

felizes, pessoas de diferentes etnias convivendo harmoniosamente, sem conflitos e

inúmeras fantasias que, se fossem verdades, viveríamos como num conto de fadas,

onde basta ligar a TV em tal canal, comer aquela pizza, dirigir aquele carro e beber

daquele refrigerante, que todos os nossos problemas acabam.

Este trabalho tem sua origem a partir da leitura do livro A publicidade é um

cadáver que nos sorri, uma crítica à publicidade convencional, onde segundo

Toscani (2009), nada tem a acrescentar as nossas vidas e uma breve análise do

filme UNHATE, da United Colors of Benetton, uma marca que sempre retratou o

cotidiano através de seus anúncios carregados de significados e impressões de

realidade e que tempos depois, retoma o realismo na campanha de lançamento da

Fundação que leva o nome do filme, cheia de imagens que mostram experiências

vividas em cenários de intolerância política, religiosa, sexual e étnica, como forma de

introduzir a realidade representada no filme publicitário às vidas dos espectadores,

assim como nos anúncios que levaram a marca a ser conhecida mundialmente pelas

imagens de Oliviero Toscani.

O mundo vive atualmente um período intenso de conflitos políticos, religiosos,

étnicos, sexuais e ambientais. Na contramão desse fluxo, a sociedade compartilha

experiências reais em ambientes virtuais e lança uma nova interpretação de

realidade às nossas vidas. A publicidade não poderia ficar de fora de uma

oportunidade como esta: produzir cenários que possam significar, dialogar de forma

íntima com seus consumidores, colaboradores, espectadores. Esse período é

marcado por uma produção exacerbada de imagens reais, que dependem da

interpretação dos indivíduos para possuir seu significado e competem com as

experiências vividas.

O realismo, no entanto, foi pouco abordado com ênfase na publicidade – com

exceção de alguns teóricos, as ideias do realismo raramente entram em contato com

a propaganda. Esse ambiente favorece a desafiadora promessa do estudo de

problematizar a questão dos usos do realismo na propaganda. Desta forma, o

objetivo geral desta monografia é investigar o uso do realismo no filme UNHATE. A

pesquisa ainda tem, como objetivos específicos, descrever como ocorre a utilização

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do realismo no filme; conhecer as funções que ela desencadeia e identificar como

pode ocorrer o processo de significação e interpretação do filme. A pesquisa

bibliográfica será utilizada para a construção de uma fundamentação teórica a fim de

encontrar e revisar livros e artigos de autores como Jaguaribe (2007), Rocha (1995),

Tosin (2006), Gutfreind (2011), Eagleton (2003), entre outros, abrangendo conceitos

de realismo, arte e publicidade. A análise da imagem fílmica como narrativa,

defendida por Aumont e Marie (2009) será o método utilizado, tendo em vista um

dos principais objetivos deste estudo: a análise do realismo na narrativa do filme

UNHATE. Desse modo, foi preciso utilizar-se da análise fílmica como narrativa

através do significado dado ao uso do realismo na sua temática.

Este estudo é divido em três capítulos. O primeiro contextualiza a marca

United Colors of Benetton, expõe as campanhas anteriores que carregavam o

realismo crítico nas peças e apresenta Oliviero Toscani como profissional que

revolucionou, através de suas fotografias, a forma de fazer propaganda. Por fim,

coloca em evidência a Fundação UNHATE, criada pela marca em 2011.

A descrição do realismo, suas formas, funções, a manipulação do real, a

presença na publicidade e o choque causado por imagens representadas é realizada

no segundo capítulo. Nele, destacaremos o processo de transformação da imagem

manipulada em imagem real, bem como as definições de “impressão de realidade” e

“choque de realidade”. No terceiro e último capítulo, utilizaremos os conceitos

trazidos pelos teóricos para compreender a forma como o realismo é empregado no

filme e verificar a sua função enquanto na narrativa.

O grande grau de interesse por este tema motiva o autor a dar início a

estudos na área de cinema e publicidade através do sincretismo entre as artes como

projeto pessoal e, levando em consideração a presente escassez de publicações na

área, contribuir com relevância à bibliografia brasileira neste assunto. Obter

conhecimento inicial nesta área permite a visualização de uma perspectiva que vai

além de um trabalho de conclusão de curso, tendo como objetivo fazer, deste, um

estudo que se desdobre em projeto pessoal e início de sua carreira: entender que a

arte, a publicidade e o cinema podem caminhar juntos em trajetos que possibilitam o

diálogo crítico das questões cotidianas.

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1 BENETTON Este primeiro capítulo servirá como panorama de contextualização da marca

Benetton, uma marca que conseguiu, no período do pós-guerra, fazer um

diagnóstico do momento econômico que a Itália passava e fez surgir uma das mais

importantes empresas do setor têxtil mundial.

Veremos como a Benetton ganha visibilidade através de sua publicidade, que

unia questões sociais à venda de produtos e criava imagens para um novo mundo

onde um imaginário, através dos meios de comunicação, ultrapassava a linguagem

de defesa do consumismo e a falsa realidade dos noticiários.

As campanhas contextualizadas neste primeiro capítulo serão trazidas para

mostrar que elas, ao apresentar uma “impressão de realidade” (através das imagens

e dos fatos cotidianos), passaram a ser reconhecidas e lembradas no mundo todo

pelo seu estilo contestador.

É apresentada, ainda, a Fundação UNHATE, criada em 2011 pela Benetton,

numa tentativa de espalhar o fim do ódio no mundo, a tolerância, a divulgação dos

direitos humanos, e a luta contra as desigualdades em geral. O trabalho da

Fundação é financiar projetos e ações nas comunidades para promover o diálogo e

a aceitação da diversidade. Contextualizaremos, de forma rápida, a campanha de

lançamento da Fundação, que se propõe a resumir os objetivos de se opor à cultura

do ódio e promover a proximidade entre os povos, crenças, culturas e a

compreensão pacífica das diversidades. Além disso, será apresentado o objeto

central de análise da pesquisa: o filme 1 UNHATE, do diretor francês Laurent

Chanez.

1.1 O INÍCIO DA UNITED COLORS OF BENETTON

A segunda guerra mundial foi o grande incentivo para Luciano Benetton, filho

mais velho de quatro irmãos, fundar, em 1965, na cidade de Ponzano, Vêneto, na

Itália, um dos maiores empreendimentos do século XX. Sua trajetória começa

                                                                                                               1 O filme pode ser encontrado no anexo A (p. 66). CD-ROM: Filme UNHATE (1:08) ou, ainda, no link Youtube, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=qImJFg5dgTE>.

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quando, aos 10 anos de idade, perde o pai e vê a mãe, doente, ser obrigada a

vender o que tinha para sustentar os filhos.

Inquieto, criativo e cheio de iniciativa, aos 23 anos faz um diagnóstico do

momento econômico vivido pela Itália e do setor têxtil da época. Surgia, tempos

depois, um pequeno negócio de roupas que iria contra os padrões do mundo

convencional dos empreendimentos e da moda.

Presente em 120 países do mundo e com uma rede de 6.500 lojas, seu

principal negócio é o vestuário de moda. A marca foi durante muito tempo a maior

importadora de lã do mundo e seus produtos eram vendidos para um grande número

de jovens e adultos que descobriam a inovação e a ousadia ao vestirem suéteres

coloridos.

Para se lançar no mercado europeu e, mais tarde, no mercado mundial da

moda com uma linguagem global, a Benetton teve de abrir as portas para a

publicidade, e foi com a criatividade ousada do fotógrafo Oliviero Toscani que a

Benetton passaria a ser conhecida internacionalmente pela suas campanhas

publicitárias.

Toscani cria o slogan “Todas as Cores do Mundo” conseguindo, então,

relacionar as diversas etnias do mundo com cores e vestindo crianças com as “cores

da Benetton”. O slogan fez tanto sucesso que após reelaborado para “United Colors

of Benetton” logo se tornou o novo nome da marca.

Como descreve o próprio Toscani (2009), a campanha se serve dessa ideia

filosófica de miscigenação racial como trampolim para desenvolver um estado de

espírito antirracista, cosmopolita e anti-tabu. Transforma um slogan publicitário numa

iniciativa humanista. Ela se aplica em “colorir” a Benetton com uma atitude

progressista e desenvolve uma imagem de marca filosófica, que vai muito além do

mero consumo.

No livro Benetton: A família, a empresa e a marca (1999), que reúne entrevistas

com Luciano Benetton, Jonathan Mantle escreve sobre a entrada de Toscani à

empresa e o sucesso da campanha que levaria o slogan criado:

Toscani estava usando a linguagem da harmonia racial para transcender as barreiras culturais àquela imagem global que Luciano estava buscando para a companhia. O resultado foi brilhante e belo e um avanço em relação ao niilismo e amadorismo bobo da era punk [...]. (MANTLE, 1999, p. 136).

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Toscani utilizou-se de um assunto visto como polêmico para a época, como

as questões étnicas, sobretudo na África e nos EUA, para iniciar a tão sonhada

comunicação global que desejava Luciano Benetton para a sua empresa. E foi

através dessa linguagem de cores e etnias que Toscani começou a ser conhecido

por sua fórmula Benetton de fazer propaganda, como afirma Calazans (1998, p. 49),

unindo questões sociais à venda de produtos, ao invés de sobrecarregar o seu

público com a repetição.

Como escreve Mantle (1999), na África do Sul, os anúncios foram

inteiramente banidos, exceto numas poucas revistas dirigidas à comunidade negra.

Algumas cartas dos Estados Unidos e da Inglaterra refletiram o racismo ao qual as

imagens eram uma resposta. Para algumas pessoas, aquela campanha era uma

vergonha, simplesmente pela Benetton tentar misturar etnias que, segundo os mais

racistas, “Deus queria manter separadas”, como coloca Mantle (1999, p. 49) em seu

livro.

As polêmicas que rodavam as imagens de Toscani e dividiam opiniões,

mostravam, na verdade, o sucesso de “Todas as Cores do Mundo”, que incentivou

ainda mais o fotógrafo a continuar capitalizando o tema da harmonia étnica.

Como as franquias da marca deveriam encomendar as roupas com vários

meses de antecedência e não aceitava devolução, as imagens de Toscani

significavam também que grande parte do aparente poder de venda das imagens

globais do fotógrafo, na verdade tinha sido calculada de antemão. O que aquelas

imagens tinham de fazer não era vender as roupas, mas dar-lhes um novo tipo de

visibilidade num mercado já identificado, como o próprio Toscani declarou:

[...] Não estou vendendo pulôveres. As roupas, de boa qualidade, de todas as cores, oferecidas em sete mil lojas através do mundo, vendem-se por si mesmas. Não estou procurando convencer o público a comprar – a hipnotiza-lo –, mas sim a entrar em ressonância consigo mesmo a respeito de uma ideia filosófica, a da miscigenação racial. (TOSCANI, 1995, p. 48).

Mantle (1999, p.118) relata ainda que o que Toscani fazia não era apenas

publicidade, mas criação de imagens para um novo mundo, e um mundo em que um

novo imaginário, por meio dos canais de comunicação de massa, suplantaria a

linguagem de defesa do consumismo e a falsa realidade dos noticiários.

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A ousadia criativa de Toscani e a mente aberta de Luciano foi primordial para

que o trabalho de comunicação da United Colors of Benetton chegasse ao ponto de

possuir uma estética própria em suas imagens, como escreve o fotógrafo:

[...] Eu não sabia na época que ia encontrar um espírito tão aberto, tão audacioso. Ele sempre me apoiou. Sinto-me orgulhoso de ter utilizado o dinheiro de sua marca, um pequeno orçamento comparado ao das grandes empresas equivalentes, para buscar uma nova maneira de comunicação. (TOSCANI, 2009, p.123).

Até 1989, a Benetton dependia de agências de publicidade para não só

administrar a criação e manutenção da imagem da empresa e da marca, como para

veicular suas campanhas. Nesse momento, o grupo Benetton cria sua própria

estrutura de comunicação e a partir daí a produção e compra de espaço na mídia

seria feita por meio de departamentos externos da empresa.

Nesse momento, toda a comunicação é de responsabilidade da própria

empresa, que muda o logotipo do “nó” de fios da Benetton e o substitui pelo

retângulo verde, que se torna, mais tarde, a marca registrada da companhia. Nesse

novo logotipo não há mais legendas, apenas as palavras “United Colors of

Benetton”, que pode ser interpretado como uma nação global, sem limites, de

respeito comum.

Figura 1 – Evolução da logomarca Benetton

Fonte: Mundo das Marcas.

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A Benetton é um exemplo de marca que expandiu-se rapidamente no período

econômico do pós-guerra. Seu crescimento, quase que instantâneo, deu a ela a

oportunidade de desenvolver uma comunicação global. As roupas desapareceram

dos anúncios, chamando mais atenção por sua ausência e, embora a marca

quisesse promover esses anúncios como um passo criativo e revolucionário, o

argumento que mais pesou no momento em que a Benetton era a responsável pela

sua própria criação publicitária foi a questão financeira. A solução foi criar uma

marca única, global, em vez de tentar adaptar uma série cada vez maior de produtos

a uma série igualmente crescente e diversificada de países e mercados. Uma marca

universal, como diz Mantle (1999, p. 179), calculada em termos de imagens

apropriadas, equiparadas a vida, morte, amor, ódio, guerra, paz, religião e meio

ambiente.

Ainda presente nas principais cidades do mundo, a empresa tenta se reerguer

e acompanhar as mudanças do mundo de hoje se renovando. Alessandro Benetton,

filho de Luciano, é quem tem a missão de, com tantas marcas de roupas de

qualidade e preço acessível como a Zara, Gap e H&M, tentar retomar o caminho do

sucesso que tiveram outrora, ligado, principalmente, à criação dos anúncios por

Oliviero Toscani que, mesmo visto como polêmico pelos publicitários, soube fazer de

suas fotos, a fórmula para a Benetton ser a marca que foi um dia.

1.1.1 OLIVIERO TOSCANI – O MAGO DA POLÊMICA

Nascido na Itália, em 1942, Oliviero Toscani herdou do seu pai,

também fotógrafo, a paixão pelo ofício de registrar momentos cotidianos e publicou

sua primeira foto em julho de 1957, aos 14 anos de idade. A foto era a mulher de

Mussolini, o grande símbolo do fascismo italiano. Em 1962, entrou para a escola das

Artes aplicadas de Zurique, considerada, até então, uma das melhores da Europa, e

foi após sua formação na Suíça que Toscani conseguiu mostrar que suas fotos eram

a prova de que estava mesmo era preocupado com a política cotidiana, com os

problemas não resolvidos da sociedade da época.

Toscani reconhecia as divergências existentes entre os profissionais da

publicidade e os artistas, jornalistas e cineastas. Escreveu em seu livro:

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Quando a Terra se tornar uma peça arqueológica, os pesquisadores não encontrarão diferenças entre uma foto de publicidade, uma reportagem de guerra ou um retrato. Qualquer foto se terá transformado num documento. [...] Hoje a publicidade está morrendo de insignificância e mediocridade por ter sempre querido fazer “publicidade”. A fotografia merece bem mais do que essas briguinhas de gênero. Ela não é o primo pobre da pintura nem do cinema. Ela é e continuará sendo por muito tempo a arte maior que a imagem moderna inventou. Nem mesmo a televisão conseguirá eliminá-la.” (TOSCANI, 2009, p. 115).

Além da crítica sobre os (pré) conceitos que tinham os profissionais da

publicidade, o fotógrafo apresentava também ideias de uma imagem que para

muitas marcas e fotógrafos, parecia difícil compreender: a fotografia como

instrumento de crítica social. Para ele, a publicidade não devia se conter com a

atividade medíocre de apenas vender, mas sim servir como instrumento de

contestação social.

Toscani trabalhou para revistas como Elle, Vogue Hommes, Donna e

Mademoiselle, entre outras, porém foi realmente reconhecido a partir das

campanhas feitas para a Benetton. Suas controversas imagens para a marca italiana

nas décadas de 1980 e 1990 representaram uma proposta de reflexão sobre o poder

e o propósito da publicidade, além de o consagrarem como um dos mais notórios

fotógrafos da atualidade.

Não demorou muito para que a plasticidade de suas imagens chamasse a

atenção das principais marcas de moda do país, entre elas Valentino e Chanel, mas

foi com a Benetton que consolidou seu estilo e impôs sua visão crítica de como a

fotografia era usada na publicidade.

Em 1965, a fotografia de moda passava por um momento de reconstrução e

devia evoluir-se e adequar-se aos novos movimentos da sociedade. Uma época em

que o rock, o street style, os novos rostos de garotas, as mudanças de atitude e dos

costumes tinham revolucionado o mundo de imagens da moda convencional. Num

contraponto dessa ideia de renovação conceitual da moda da década de 1960,

Toscani (2009, p. 118) afirma que hoje “a moda não se renova mais. Anda em

círculos, enerva o público, não surpreende mais. A indústria está matando a moda

ao impor regras draconianas de marketing aos estilistas.”

Pela Benetton, Toscani fotografou e publicou imagens de soropositivos no

leito de morte, cadáveres vítimas da máfia italiana, trabalho escravo, crianças recém

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nascidas, padres beijando freiras. Tocou em questões sexuais, religiosas e étnicas

excluindo de forma definitiva o ar pedante que os anunciantes costumavam ter e a

lição de moral pobre embutida naqueles com pretensão social, como coloca

Calazans (1998) em seu livro Benetton: o vírus da nova era:

Mostrar com naturalidade pássaros encharcados de petróleo, aidéticos morrendo na cama, roupas sujas de sangue e outras imagens que chocariam qualquer pessoa é obrigação da Benetton. Seu objetivo é denunciar e acabar com todo o preconceito que está envolvido com tais fatos, independente de quem venha a se ofender com isso. (CALAZANS, 1998, p. 150).

Para Toscani (2009), os publicitários não cumprem a sua função: comunicar à

sociedade sobre a realidade atual, educando-a, revelando talentos e artistas.

Carecem de ousadia e de senso moral. Não refletem o papel social, público e

educativo da empresa que lhes confia um orçamento.

Ao invés de sobrecarregar o público com a repetição de modelos conhecidos

e clichês, ele unia questões sociais à venda de roupas. Sua propaganda era

institucional, de marca, conceitual, e não apenas do produto. Parecia esse o estilo

da propaganda Benetton criada por Toscani.

Contardo Calligaris, escreveu em artigo publicado em 1994, no jornal A Folha

de São Paulo, que a estratégia publicitária de Toscani está ligada na ideia de que

continua sendo possível promover uma espécie de universalidade humana, ao

reconhecer e utilizar precisamente o poder do mercado. Uma universalidade que

não se reduziria às imagens estereotipadas de uma felicidade fingida, própria do

modo de comunicação dominante, a publicidade. Sua meta não é destruir mas

modificar esse instrumento cultural de nossa época. Toscani tenciona fazer com que

se apreciem as marcas através de propagação de novas mensagens. Assim, a

capacidade comunicativa das marcas determinaria o seu valor.

Mesmo com um discurso que muitos podem achar ultrapassado para a época

atual, o que Calligaris escreve em 1994 sobre o auge do sucesso estrondoso da

Benetton, reverbera nos dias atuais (mesmo que timidamente). A forma de fazer

propaganda que a Benetton passou a utilizar no seu momento de sucesso – e de

muitas franquias –, parece ainda manter-se distante dos desejos das grandes

marcas da atualidade. No entanto, sabemos que foi com as campanhas recebidas

Page 21: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  20

pelos consumidores como polêmicas, que Toscani afirmava que a publicidade

deveria se reinventar.

1.1.2 CAMPANHAS POLÊMICAS DA BENETTON

Reconhecidas e lembradas no mundo todo pelo seu estilo de mostrar uma

“impressão de realidade” através das imagens e dos fatos cotidianos, as campanhas

da Benetton foram por muito tempo alvo de denúncia, censura e críticas. Nunes

(2002) descreve a Benetton como a mais famosa marca vinculada à ideia de

polêmica. Talvez sendo quem mais lucrou com a exposição do sofrimento humano

no meio publicitário de hoje.

A partir de 1989, os anúncios da Benetton produzidos por Toscani tiveram o

objetivo principal de mostrar a sua posição sobre a questão da discriminação racial.

A primeira campanha que inspirava uma polêmica mundial foi a de um bebê branco

nos braços de uma mulher negra, sendo amamentado (Figura 2).

Essa campanha, como afirma Toscani (2009), foi muito bem recebida no

mundo inteiro e ganhou vários prêmios. Com exceção dos Estados Unidos, onde

organizações minoritárias negras julgaram-na racista. Segundo elas, o cartaz

reproduzia o velho clichê colonialista da criança branca e a ama-de-leite negra.

No entanto, mesmo embebida de polêmica, os anúncios da Benetton eram,

para alguns, uma inovação na maneira de fazer publicidade. Semanas depois da

publicação do cartaz que havia causado espanto em comunidades negras, Spike

Lee (apud TOSCANI, 2009, p.49), escreveu em um artigo para a revista Rolling

Stone: O emprego, a droga, o crime, a Aids, a guerra, o racismo, a educação, os sem-teto, o meio ambiente são esses realmente os grandes problemas da atualidade, a cujo respeito teremos de tomar iniciativas. [...] É nesse aspecto que o responsável pelos anúncios da Benetton leva uma boa vantagem sobre os concorrentes. Devo dizer que não alimento nenhuma ilusão sobre eles. A Benetton quer ganhar dinheiro, exatamente como as outras empresas. Na realidade, todos nós queremos; os meios para consegui-lo é que faz a diferença. Todo mundo sabe que o modo mais rápido de ganhar dinheiro no cinema, na música ou na propaganda é o sexo. Frequentemente acho que se escolhe o caminho de sempre. [...] A primeira vez que eu vi um anúncio da Benetton não percebi o que ela estava vendendo [...].

Page 22: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  21

Além dessa imagem da criança mamando nos seios de uma mulher negra, a

campanha também tinha mais duas outras imagens que gerava tanto desconforto

quando a primeira. Essa segunda imagem (Figura 3) mostrava dois homens, um

branco e um negro, com as mãos unidas por uma algema – Nunes (2002, p. 76)

escreve que a inspiração veio da famosa frase do dramaturgo alemão Bertold

Bretch: “É mais ladrão quem rouba um branco ou quem funda um banco?” – na

ambiguidade de não saber quem está prendendo quem; uma terceira (Figura 4), um

jovem negro e um jovem caucasiano vestidos com uniforme de padeiro, depois de

assar uma fornada de pães. No entanto, como descreve Mantle (1999, p.179) é na

imagem da mulher amamentando a criança que Toscani realmente justifica suas

pretensões de grandeza artística e inspira até hoje uma simplicidade e beleza

espantosa com ela.

Figura 2 – Mulher amamentando

Fonte: The Inspiration Room.

Figura 3 – Homens algemados

Fonte: The Inspiration Room.

Page 23: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  22

Figura 4 – Padeiros

Fonte: Glaad.

A polêmica continua em 1990, quando Toscani produz várias fotos mostrando

contrastes e cores, numa tentativa preliminar de sugerir uma união entre as

diferentes etnias. Começaram a ser veiculadas a imagem de dois bebês nus (Figura

5), um branco e outro negro, sentados em seus penicos, e uma pequena mão de

uma criança negra contra a mão de um adulto branco (Figura 6).

Figura 5 – Crianças no penico

Fonte: Photoguides.

Page 24: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  23

Figura 6 – Mão negra com mão de um adulto branco

Fonte: Diversity Propaganda.

Tempos depois Oliviero Toscani escreve em seu livro:

Depois dessa campanha, compreendi o seguinte: cada qual de acordo com os seus preconceitos e as suas interpretações. [...] Com essas propagandas eu queria dialogar com o público sobre o poder das ideias petrificadas e dos lugares-comuns – a publicidade está repleta de tudo isso. Sobre flexibilidade e a liberdade de espírito. Sobre a tolerância. Por que a maioria das pessoas se detém na primeira reação, no tabu racista ou anti-racista? Por que a publicidade, como arte, como qualquer meio de comunicação, não poderia ser um jogo filosófico, um catalisador de emoções, um espaço polêmico? Fui o primeiro a surpreender-me com a violência das reações e do poder dos clichês racistas. Depois percebi que jogar com os lugares-comuns oferece à publicidade um formidável poder de raspagem das ideias recebidas. (TOSCANI, 2009, p. 51).

Entre 1990 e 1991 foram produzidas algumas campanhas com outros temas,

como a Guerra do Golfo e a AIDS, mas as campanhas de preconceito racial

continuaram. Nesta mesma época, Toscani fez uma foto (Figura 7) com vários

Pinóquios de cores diferentes e outra (Figura 8) com três crianças de etnias

diferentes mostrando a língua – imagem que foi considerada pornográfica e sua

exibição foi proibida nos países árabes.

Page 25: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  24

Figura 7 – Pinóquios

Fonte: Diversity Propaganda.

Figura 8 – Crianças com língua de fora

Fonte: Diversity Propaganda.

Para polemizar o momento da época, Toscani lança no verão de 1990, uma

imagem que somente foi publicada no dia em que estourou a guerra entre o Iraque e

os Estados Unidos. Era a imagem de um cemitérios com suas cruzes brancas

alinhadas sobre a grama verde (Figura 9).

Page 26: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  25

Figura 9 – Cemitério com cruzes brancas

Fonte: Photoguides.

Para Mantle (1999), a imagem é de uma realidade intensa, quase

insuportável, mesmo em tempos de paz. Na deflagração da Guerra do Golfo, ela

mostrou que era forte demais e foi banida da Itália, da França, da Inglaterra e da

Alemanha.

Toscani (2009) escreveu após as reações de repulsa – tanto dos jornais

quanto das pessoas –, que foi a primeira vez que apareceram o que ele chamava de

argumentos sobre a ingenuidade da publicidade, defendida pelos seus colegas

publicitários e que esta não devia falar de guerra, de paz, de morte.

Para esses profissionais, escreve Oliviero:

Mostrar cemitérios numa publicidade é explorar a morte para vender, é imoral, cínico. Para esses belos espíritos, a publicidade está condenada ao vazio. A publicidade não deve ser um meio de comunicação realista e polêmico [...]. (TOSCANI, 2009, p. 54).

No início de 1991, após acusarem tanto a Benetton de explorar a morte e a

guerra para vender roupas, é lançada uma nova campanha que concebia uma

imagem oposta aquela produzida anteriormente: a foto de uma criança que havia

recém nascido, nua, coberta de placenta e ainda ligada à mãe pelo cordão umbilical.

Toscani (2009) via nessa imagem, em plena guerra do Golfo, uma imagem de

esperança, que a vida continuava apesar da depressão generalizada. A imagem, no

entanto, causou uma polêmica ainda maior que a anterior, como escreve o fotógrafo

no seu livro A Publicidade é Um Cadáver que Nos Sorri (2009):

Page 27: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  26

Fui atacado por quase toda a imprensa europeia, que recusou a publicidade, na Itália, na França e na Inglaterra, inclusive nos jornais considerados de vanguarda. Na Sicília, a prefeitura de Palermo mandou que a rasgassem. Numa cidade onde a Máfia mata uma pessoa por dia, a imagem de um recém-nascido era certamente uma provocação!. (TOSCANI, 2009, p. 55).

O fotógrafo não entendia se o que mais incomodava era a imagem em si ou o

fato de que a realidade e a arte tivessem aparecido juntas na publicidade.

A imagem era e é chocante na medida em que transmitia duas realidades

conflitantes, escreve Mantle (1990, p.1999): o sentimento instintivo de intimidade

que vem da primeira visão de uma nova vida e o lançamento brutal dessa imagem

suprema de inocência sob a luz fria de um quadro de propaganda ao ar livre - já que

havia sido publicada em outdoors.

Em 1992, uma outro anúncio marca uma nova fase da Benetton em

campanhas contra a AIDS, em especial a foto do aidético David Kirby com sua

família nos momentos seguintes a sua morte, tirada por Thérèse Frare e publicada

na revista Life. A foto havia sido feita com o consentimento da família Kirby, que

também liberou o uso da imagem à Benetton como parte de sua campanha intitulada

Choque de Realidade.

Para a Benetton, a partir dessa campanha que retratava a realidade das

famílias que sofriam com a devastação causada pela AIDS, a marca abandonou

todo o artificialismo das fotos de estúdio, passando para o cenário da vida real e,

principalmente, incontestavelmente verdadeiro.

Oliviero acreditava que se as fotos fossem verdadeiras e fotografadas no

cenário cotidiano, as polêmicas desapareceriam e ele ficaria livre das acusações de

manipulação das imagens (CALAZANS, 1998, p. 50). Mesmo assim, surgiram

críticas afirmando que o trabalho de Toscani era manipular a realidade, que era uma

fraude.

Depois dessa imagem de David Kirby e das críticas que ela gerou, a Benetton

continuou seu trabalho de intervenção, comprometendo-se contra a exclusão dos

aidéticos, dessa vez com a campanha de outono/inverno de 1993, que consistia em

três fotografias mostrando um braço, uma nádega e a parte superior da virilha –

cada uma carimbada com a inscrição “HIV positivo”, que era também o nome da

campanha. O objetivo declarado era enfatizar as três principais vias de infecção,

Page 28: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  27

além de condenar a estereotipização dos portadores de AIDS, escreve Mantle

(1999, p. 218). As críticas continuaram e incluíam as reações de desaprovação de

grupos de AIDS nos Estados Unidos, que acharam que a campanha sugeria que as

pessoas contaminadas pelo vírus fossem marcadas pela sociedade. Além das

críticas de consumidores e organizações de prevenção da doença, Toscani recebeu

novamente as pesadas manifestações de repúdio dos profissionais de comunicação,

sobretudo de publicitários. E relata:

O tamanho do preconceito de todos esses homens de comunicação, ontem contestadores, libertários egressos dos acontecimentos de maio de 1968, me causa pena. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, persuadiram-se de que somente eles possuem a chave da interpretação correta das imagens “HIV positivo”. Não admitem que outros as sintam e analisem de modo diferente. Esses grandes teóricos da publicidade ainda não compreenderam o poder criador irredutível da imagem. Sua capacidade de dar livre curso às paixões e às múltiplas interpretações para além de um sentido convencional e dogmático. Esses intelectuais, que se acreditam ultramodernos, trazem novamente à cena a velha querela da coisa escrita contra a imagem, do texto como o único depositário da verdade. Não admitem que uma foto esteja carregada de uma força explosiva, sem estar legendada. [...] Ainda não compreenderam que o nosso mundo desdobrou-se num universo de imagens e telas que chega ao ponto de rivalizar com o real. Quereriam que as fotos das revistas ou aquelas que dançam nas televisões fossem apenas reflexos, reproduções sem significação, cuja verdade somente eles poderiam enunciar. Pois estão enganados, o virtual é o real. A imagem é a verdade. Uma verdade aberta. Turbulenta. (TOSCANI, 2009, p. 85).

O ensaísta Michel Danthe (apud Toscani, 2009, p. 86), refletiu sobre a

campanha da Benetton afirmando que em vez de longos discursos, da cansativa

argumentação ou de qualquer outra coisa que se dirija prioritariamente à razão, a

Benetton visa o choque emotivo e cabe ao espectador, ao pedestre que cruza seu

caminho com a publicidade e a discute com as pessoas próximas ou com os colegas

de trabalho tomar uma posição e refletir a respeito, criar uma opinião própria, entrar

ativamente no processo de comunicação. Para Danthe, a mensagem da Benetton é

o debate, a discussão, é a polêmica acirrada, a dimensão inesperada, incontrolável,

caótica, imprecisa, porque em cada vez arrebata um receptor independente, que por

fim conclui aquilo que bem entende. Já Nunes (2002, p. 77) escreve no livro

Configurações do Grotesco, que essas campanhas provocam escândalo

Page 29: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  28

precisamente porque injetam doses maciças de realidade no sistema de falsificação

da publicidade.

Apesar das campanhas serem polêmicas e carregarem uma porção de

ambiguidade, era nesse ponto que as imagens deveriam contribuir para o

renascimento da cultura, assim como fazem os artistas e fotógrafos: levar às

pessoas um sentimento crítico, um estilo desorientador, concepções novas – que

muitas vezes determina o escândalo das imagens. Era o receptor, portanto, que

deveria fazer sozinho sua leitura e ter sua compreensão de imagem através de sua

contestação crítica.

Desse modo, se a publicidade é uma indústria, é também uma arte, pois ela

traz consigo o valor do real, mesmo que as imagens sejam manipuladas ao retratar

a vida, o fato é que elas representam um ponto de vista da realidade que não pode

jamais ser contestada. O real, desse modo, é algo intrínseco a cada um que vê a

imagem e que pode – ou não – vir acompanhado com a ideia de polêmico.

Em 2011, a Benetton volta a envolver-se com anúncios que desconcertam o

público com a campanha de lançamento da Fundação UNHATE. As imagens

traziam líderes políticos e religiosos beijando-se na boca e causou muita polêmica,

principalmente no Vaticano. A campanha também apresenta, em filme produzido

pelo francês Laurent Chanez, a proposta da Fundação em promover uma cultura de

passividade entre os povos e a aceitação da diversidade religiosa, étnica, sexual e

política. É esse, portanto, o objeto do nosso estudo. A análise do filme UNHATE.

1.2 FUNDAÇÃO UNHATE E SUA PRIMEIRA CAMPANHA

 A Fundação UNHATE foi criada pela Benetton e visa contribuir para a criação

de uma nova cultura contra o ódio, com base nos valores da marca, que acredita ser

um passo importante na estratégia do grupo – não no exercício comercial da moda,

mas na contribuição sobre a comunidade internacional.

A UNHATE tem como pretensão ser vista como uma think tank2, atraindo

personalidades e talentos das áreas de cultura, economia, direito e política, e

                                                                                                               2 Think tank ou Usinas de ideias são organizações que atuam no campo das políticas públicas, gerando conhecimentos para subsidiar a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, visando as transformações sociais e fortalecimento da cidadania. Os think tanks podem ser independentes ou filiados a partidos políticos, governos, grupos de interesse ou corporações privadas.

Page 30: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  29

pessoas que passaram de simples cidadãos para líderes de movimentos,

distinguindo-se através de suas ideias e ações contra as causas e os efeitos do

ódio. Para a Benetton, o ódio é uma das causas para a falta de desenvolvimento

social e econômico das novas gerações. Desse modo, a Fundação financia projetos

e ações nas comunidades locais para promover o diálogo e a aceitação da

diversidade. Esses projetos são implementados por associações e organizações

cujos beneficiários são, principalmente, crianças e jovens, e são selecionados por

sua capacidade de trazer efeitos positivos duradouros nas comunidades alvo onde

os jovens vão se tornar verdadeiros agentes de mudança e de luta contra o ódio.

No Brasil, o projeto apoia associações que trabalham para dar uma vida

melhor a crianças e jovens – por meio da arte e da música –, que vivem nas favelas

e que são vítimas e autores de ódio e violência diariamente.

Nos países onde o ódio étnico e a falta de aceitação da diversidade cultural

levou a conflitos que duram anos, a Fundação UNHATE também apoia projetos

desenvolvidos por grupos de jovens e associações que trabalham para reconstruir a

base social de seus países.

Com a nova campanha mundial de comunicação, a United Colors of Benetton

convida os líderes e os habitantes do mundo a se oporem à cultura do ódio e cria a

Fundação UNHATE.

Para a Benetton, resumindo os objetivos de se opor à cultura do ódio e

promovendo a proximidade entre os povos, crenças, culturas e a compreensão

pacífica das diversidades, a campanha dá visibilidade mundial a uma importante

ideia de tolerância, para convidar os cidadãos de todos os países, em um momento

histórico de grandes turbulências econômicas, políticas e sociais, a refletir sobre

como o ódio nasce. A campanha utiliza instrumentos como a web, as mídias sociais

e a imaginação artística, além de chamar para a ação aqueles que são o público-

alvo da campanha, ou seja, os cidadãos do mundo. Ao mesmo tempo, insere-se

plenamente nos valores e na história da Benetton que – escolhendo temas sociais e

promovendo ativamente causas humanitárias que não teriam tido a possibilidade de

serem comunicadas em escala global – deu sentido e valor à própria marca,

construindo um diálogo duradouro com as pessoas do mundo.

O projeto de comunicação inclui uma série de iniciativas e eventos que deram

início em novembro de 2011, nos principais jornais e sites do mundo. O tema central

é o beijo, o símbolo mais reconhecido do amor, entre líderes políticos e religiosos do

Page 31: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  30

mundo. A campanha publicou, nesses veículos, imagens de Barack Obama e o líder

chinês Hu Jintao; o Papa Bento XVI e Ahmed Mohamed el-Tayeb, imã da mesquita

de AL-Azhar no Cairo (imagem que mais tarde foi retirada da campanha a pedido do

Vaticano); o presidente da Autoridade Nacional Palestina Mahmoud Abbas e o

primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

Trata-se de imagens simbólicas de reconciliação, com um toque de

esperança irônica e provocação construtiva, para solicitar uma reflexão sobre como

a política, a religião e as ideias, mesmo que diferentes e contrapostas, devem,

todavia, levar ao diálogo e à reflexão.

Faz parte da campanha um filme intitulado com o nome da Fundação, do

diretor francês Laurent Chanez, que conta o equilíbrio e o envolvimento entre o

impulso para o ódio e as razões do amor. É realizado com uma progressão de

imagens intencionalmente ambíguas: flertes com os olhos ou olhares desconfiados,

pessoas que se abraçam ou lutam, rebeliões ou festejos, brigas ou danças

desenfreadas. Momentos extremos de conflito ou de amor: dois lutadores depois de

um round e um casal que acaba de fazer amor. O filme foi veiculado na internet, no

site UNHATE, no endereço benetton.com e no Youtube, além de projetado em

alguns cinemas do mundo.

A campanha, a criação da Fundação e as outras iniciativas do projeto

UNHATE testemunham a vontade da Benetton de ser propulsora do desejo de

participação e mudança que anima os cidadãos do mundo, e sobretudo os jovens,

convidando-os a ser protagonistas ativos nas suas iniciativas para a comunidade,

principalmente por meio da internet, das mídias sociais e de outros aplicativos

digitais.

Em um cenário mundial marcado por ações colaborativas, a campanha é

mais um passo adiante da comunicação da Benetton que visa a atuação e a ação de

todos, em nome de uma democracia ampliada e aberta, sem limites físicos, políticos,

sociais ou ideológicos. E é nesse ambiente que entra a análise da representação do

real no filme. Buscaremos, a partir do capítulo seguinte, entender como o realismo é

tratado na publicidade e buscar compreender as suas funções estéticas, para então

observar como é feita a sua representação no trabalho de Chanez.

De modo geral, esse panorama das campanhas da Benetton e o trabalho feito

por Toscani como fotógrafo, servirá para entendermos a construção estética do

realismo no filme que analisaremos, tendo em vista que mesmo Toscani não

Page 32: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  31

participando da construção visual da campanha, Chanez mantém, em alguns

momentos, referências que evidenciam o trabalho do fotógrafo e mostra que a

fórmula Benetton de fazer propaganda criada por Toscani ainda está presente nos

dias atuais.

Page 33: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  32

2 O REALISMO E SUAS FORMAS Este capítulo aborda o Realismo sem que seja preciso se aprofundar na

pintura e seus artistas, mas sim trazendo a questão do real nas imagens de uma

forma geral e que a revela como sendo um ideário estético que conecta a

experiência com a representatividade da realidade. Nesse viés, é a imagem com o

“efeito real” tratada na publicidade que terá a maior importância nesta segunda parte

do estudo.

Partindo das ideias que deram surgimento ao movimento artístico na França,

um dos traços marcantes que o realismo pode trazer é o tom satírico e irônico, e ao

mesmo tempo, através de representações de figuras, podem ser reveladas também

preocupações sociais. Em outras palavras, além de ter uma linha irônica, o realismo

também pode carregar sua dose de crítica social. E é esse o aspecto estético do

realismo que vamos analisar na campanha UNHATE, da Benetton.

Grosso modo, o realismo estético, em suas diversas manifestações, produz

retratos da “vida como ela é”, como afirma Jaguaribe (2007). Ou seja, o realismo faz

uso da ficção e de recursos de intensificação dramática para criar mundos plausíveis

que forneçam uma interpretação da experiência contemporânea.

Partindo desse pressuposto, essas interpretações e ficções realistas fazem

uso do senso comum cotidiano, que se sustenta no verossímil. É por esse motivo

que muito do que se vê em filmes, fotografias e na TV que retrata o cotidiano,

sempre chama atenção por estar sustentado no verossímil. Jaguaribe reforça que

Embora possam até retratar de forma crítica e contundentes as mazelas do social, esses códigos realistas não abalam a noção da realidade, mas apenas reforçam sua exposição. (JAGUARIBE, 2007, p.12).

Esses códigos realistas (formas de tratar o real) buscam acentuar a

percepção de nossa condição no mundo por meio de imagens e narrativas que

desestabilizem clichês, sem que isso implique experimentos ao estilo das

vanguardas de antigamente. Na fotografia, no cinema, na literatura e nos meios de

comunicação, por exemplo, o realismo estético constitui-se como um senso comum

que permeia a percepção do cotidiano na modernidade.

Page 34: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  33

Desde o século XIX, quando o realismo surge como uma nova estética, a

carga de sua legitimidade enquanto representação da realidade desenvolveu-se em

campos convergentes. Em linhas gerais, existe, de um lado, aqueles que aderem

aos ideários estéticos do realismo e enfatizam uma ligação entre representação e

experiência de realidade. De outro, aqueles que se opõem à legitimação privilegiada

dos códigos realistas e insistem que o realismo é uma convenção estilística que

mascara seus processos de ficcionalização porque as normas da percepção

cotidianas são medidas pela naturalização da visão de mundo realista do momento,

ou seja, as estéticas do realismo crítico almejam captar as maneiras cotidianas pelas

quais os indivíduos expressam seus dilemas existenciais por meio das experiências

subjetivas e sociais que estão em circulação nas montagens da realidade social. Em

outras palavras, o realismo passa a oferecer uma intensificação desses imaginários,

na tentativa de tornar o cotidiano disforme e disperso mais significativo, mesmo que,

na maioria das vezes, a representação social que resulte disso seja o de cenários

arrasados.

Quando, no primeiro capítulo deste estudo foi trazido à tona o histórico das

campanhas publicitárias de Oliviero Toscani para a Benetton, a ideia era mostrar

justamente essa tentativa de apresentar cenários arrasados que provinha do retrato

social/político da época em que as fotos foram tiradas, mesmo que aquelas fotos

fossem realidades ficcionalizadas. Há, nesse ponto, uma discussão paradoxal em

torno do realismo que é exatamente em inventar ficções que parecem realidades.

Porém, há um outro componente, como escreve Jaguaribe:

A realidade é socialmente fabricada, e uma das postulações da modernidade tardia é a percepção de que os imaginários culturais são parte da realidade e que nosso acesso ao real e à realidade somente se processa por meio de representações, narrativas e imagens. (JAGUARIBE, 2007, p. 16).

Dessa forma, se questionar se as estéticas do realismo são o meio mais

adequado de retratar a realidade é um assunto que necessita um longo e intenso

debate. Parece que a realidade nunca esteve em tanta demanda quanto agora na

nossa cultura global mediada pelos meios de comunicação e pelo cinema. Na

medida que há uma crescente demanda pela realidade, ela também é

crescentemente contestada.

Page 35: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  34

É importante deixar claro que uma das consequências da globalização

cultural – trazidas até mesmo nas campanhas publicitárias da United Colors of

Benetton (ver primeiro capítulo) – foi a naturalização dos códigos do realismo como

forma de apreensão do cotidiano, por mais que esse cotidiano fosse, algumas

vezes, trabalhado com um viés fortemente crítico e contestador da sociedade.

O realismo como percepção do cotidiano e registro de realidade relacionada

na evidência dos fatos parece, desse modo, legitimar uma captação corriqueira da

realidade a partir daquilo que vivenciamos na vida. Além disso, pode até mesmo se

caracterizar por uma visão de mundo que tira ou põe em isolamento fantasias,

crenças e tradições que também se manifestam na fabricação social da realidade.

Jaguaribe (2007) afirma existir uma naturalização do registro realista na produção

dos noticiários, nos romances do cotidiano, no controle e expectativas do presente e

do futuro e, ao mesmo tempo, há um mundo de fantasias consumistas, devaneios

publicitários, práticas místicas, imagens e narrativas que nos evocam mundos

encantados, improváveis e delirantes. Sobre essa dialética do realismo e a ficção da

realidade, ela completa:

O que caracteriza a ficção realista, nos seus diversos avatares desde o seu surgimento no século XIX até hoje, é que a narrativa ou a imagem realista nos diz que está em sintonia com a experiência presente, que ela traduz a equiparação entre a representação do mundo e a realidade social. [...] no mundo global saturado pelos meios de comunicação, evidenciamos uma superprodução de imagens de realidade. (JAGUARIBE, 2007, p. 17).

É possível perceber que existe, em contrapartida, uma produção de realidade

exacerbada pelo sensacionalismo, pela propulsão do choque, pela necessidade de

produzir novidades, pela velocidade de informações fragmentárias que não

compõem um retrato total do social-global.

Se a arte realista, no século XIX, se insurgiu como crítica ao romantismo e ao

imaginário fantasioso, hoje ela pode ainda retratar a realidade de forma ficcional,

como acontece – algumas vezes – na publicidade. Dessa forma, o cotidiano banal

torna-se assunto de interesse artístico, uma vez que o intuito primário da arte

realista é oferecer uma observação da vida contemporânea.

Enquanto representação estética, o realismo é, nas palavras de Terry

Eagleton (2003) (tradução nossa), “um dos termos mais escorregadios”. Para ele, o

Page 36: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  35

realismo artístico não pode significar “representar o mundo tal qual é” mas sim

“representá-lo de acordo com as convenções da representação do mundo real”. Esta

dimensão atesta não somente que uma multiplicidade de estilos e formas de

representação se expressa pela rubrica “realismo”, mas que a palavra “realismo”

traduz uma intensa conotação ideológica que enfatiza a conexão entre

representação artística e realidade. No seu sentido mais primário, o realismo estaria

conectado com a utilização da mimese3, ativando a noção da arte como cópia de

uma realidade e mundo material.

É possível entender até agora que o realismo estético do século XIX buscou

sempre proporcionar retratos da contemporaneidade, destacando a observação

distanciada, o olhar crítico sobre as formas de comportamento dos indivíduos na

sociedade e a construção ideológica de valores sociais, na tentativa de responder às

questões sociais urgentes do seu tempo. Essa busca por respostas em relação ao

mundo contemporâneo continua sendo visto hoje através de imagens realistas,

mesmo nos meios de comunicação.

Desse modo, ainda, o realismo acaba se firmando não como uma estética

que nos dá uma documentação factual ou completa, mas como fabricador de uma

ilusão de mundo que reconhecemos como real. Em outras palavras, “o realismo

busca uma representação extraída da experiência cotidiana de vivenciar o mundo

atrelada ao senso comum da percepção.” (JAGUARIBE, 2007, p. 27).

Sobre o realismo e suas formas, podemos entender que ora ele se configura

como reprodução da vida “tal qual ela é”, ora se mostra como uma representação

ficcionalizada, se apresentando como um retrato de realidade ou dando um efeito de

real aquilo que ela se propõe a (re) produzir. Ou seja, o realismo enfatiza a vida

costumeira, a representação figurativa, o retrato social e a psicologia dos

personagens como marcos definidores de um sentido comum cotidiano.

2.1 O REALISMO NA PUBLICIDADE

Com o desenvolvimento dos meios de comunicação estimulado pelo

progresso das tecnologias e pela produção industrial, a sociedade pós-moderna,

carimbada pelo consumo, a economia e a comunicação, testemunhou o nascimento

                                                                                                               3 A mimese aqui é entendida como um ilusionismo espelhado, uma representação que parece copiar aquilo que existe no mundo. (JAGUARIBE, 2007, p. 26).

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  36

da era globalizada e midiatizada. É nesse cenário que a mensagem publicitária se

converte em um importante instrumento comunicacional, atuando na cultura, na

economia e no comportamento das pessoas, promovendo produtos e marcas.

É notório que o discurso publicitário, sobretudo as imagens, sofreram

transformações expressivas do ponto de vista de produção técnica, de conteúdo, na

estética visual e, principalmente, na construção de suas estratégias

comunicacionais.

Para falar especificamente do realismo na propaganda neste estudo e tentar

analisá-lo como aspecto comunicacional, foi preciso cruzar alguns teóricos que

falam sobre o realismo e o sincretismo entre a arte e a publicidade, como é o caso

de Giuliano Tosin, professor da PUC-Campinas, para então desenvolver esse

subcapítulo (além de Beatriz Jaguaribe e John Berger).

Atualmente existe um debate que mobiliza teóricos, artistas e publicitários,

sobre as possibilidades da propaganda como manifestação artística e que se utiliza

de estratégias estéticas, tais como o realismo. Em trabalho apresentado no VI

Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, Tosin (2006) escreve que na

elaboração das marcas, ou seleção dos signos empregados em suas

representações, as influências artísticas na publicidade se fazem presentes nas

criações, de modo que é comum vermos nas peças publicitárias referências diretas

a artistas e movimentos.

A arte e a publicidade juntaram-se à vida cotidiana através dos processos de

espetacularização da cultura, permeando as subjetividades dos indivíduos, e

passando a manifestar suas influências e ideologias que transcendem as instâncias

do consumo, infiltrando-se em todos os setores da vida pública e privada.

Desse modo, algumas linguagens da comunicação passaram a manifestar-se

artisticamente, como é o caso da publicidade; e essa manifestação vem trazendo o

realismo em peças publicitárias gráficas e fílmicas, onde a hibridização com as artes

se deu com tal intensidade que, em alguns momentos, é impossível defini-las

isoladamente.

Para Tosin (2006, p. 7), a peça publicitária pode dialogar consigo própria,

consciente de sua presença na sociedade, e assumindo publicamente seu papel,

indo além de sua função comercial, deixando de ser meramente persuasiva e

passando a apresentar valores de contribuição cultural.

Page 38: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  37

A forma da propaganda, que antes era voltada para a referencialidade, a

representar seus referentes de forma objetiva, visando convencer alguém em

relação a algo, ao se misturar com o pensamento artístico e, consequentemente,

aos seus movimentos, passa a concentrar-se não mais na representação do objeto

(produto), mas nos efeitos que a marca pode causar à subjetividade.

Em artigo publicado na revista Mediação, Viviane Loyola (2006, p. 135) chega

em um ponto que é possível ancorar de forma plausível o uso do realismo na

publicidade, uma vez que ela afirma que a publicidade é a vida cotidiana. Ou seja,

sua afirmação está em concordância ao que Jaguaribe (2007) afirma sobre as

questões do realismo. Segundo Loyola (2006, p. 136), não há como negar a perfeita

adequação da publicidade às expectativas do tempo vivido. A publicidade é, então,

fundida ao contexto social.

Portanto, nesse cruzamento entre o realismo trazido por Jaguaribe (2007) e

as ideias de Loyola (2006) quanto à publicidade, é possível perceber que as duas

podem caminhar juntas, desempenhando, também, seu papel revelador do mundo

real.

Em relação à publicidade, mesmo com o diminuto número de bibliografias

sobre o realismo enquanto estética valorativa a um determinado produto e/ou marca,

é possível analisar o que Jaguaribe (2007) escreve sobre a fotografia – e

posteriormente ao cinema – para, então, refletir suas ideias na publicidade.

A autora (2007, p. 30), escreve que a fotografia pode produzir um “efeito do

real” de outra ordem e categoria e que toda imagem fotográfica possui o índice de

que tal paisagem, objeto ou pessoa efetivamente esteve, durante um tempo

pretérito, imobilizado diante da câmera. Ou seja, a fotografia realiza uma

transformação do mundo em imagem. O apelo dos meios de comunicação, nesse

ponto, é justamente fazer com que a imagem ou a narrativa midiática seja mais rica

de realismo do que nossa realidade incompleta e individual.

Partindo desse ponto de vista, os enredos e imagens dos meios midiáticos,

como na publicidade, serão absorvidos no cotidiano de milhares de pessoas e se

transformarão nos códigos interpretativos com os quais elas delimitam o mundo e

enredam suas próprias narrativas pessoais. Jaguaribe (2007) aponta exatamente

essa construção de subjetividade quando diz que

Page 39: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  38

[...] a câmera fotográfica, o cinema e posteriormente, no final dos séculos XX e XXI, a realidade virtual potencializaram o “efeito do real”. A realidade tornou-se mediada pelos meios de comunicação e os imaginários ficcionais e visuais fornecem os enredos e imagens com os quais construímos nossa subjetividade. (JAGUARIBE, 2007, p. 30).

Analisando os autores – a partir do que já vimos até agora –, é possível dizer

que a publicidade, mesmo representando o real de maneira ficcionalizada e

manipulada 4 , consegue criar realidades que serão interpretadas pelo

espectador/leitor e que fará, a partir daquele momento, parte de seu cotidiano, por

se propor a representar a vida tal como ela é e também de fabricar a realidade

através dos meios de comunicação. Para fortalecer esse pensamento, Jaguaribe

(2007, p. 27) afirma que na arte realista crítica, o “efeito do real” e a retórica da

verossimilhança deveriam ser acionados não para simplesmente configurar o quadro

mimético dos costumes, mas para mascarar os próprios processos de

ficcionalização e assim garantir ao leitor/espectador uma imersão no mundo da

representação que, entretanto, contivesse uma análise crítica do social e da

realidade.

Tanto Berger (1999) quanto Toscani (2009) concordam que em algumas

propagandas tudo é felicidade, sem guerras, sem a fome nos países pobres, um

verdadeiro encanto, sendo a beleza perpetuada por corpos com bela forma e pelo

luxo material. A mensagem publicitária se encontra entre o sonho idealizado e o

desejo de usar o produto na vida cotidiana. Por outro lado, Berger (1999, p. 134)

afirma que a publicidade é eficaz justamente porque se alimenta do real, no entanto

quando chegamos ao realismo como estratégia, a ideia trazida por Berger (1999)

sobre o uso da realidade diverge com a de Toscani. John Berger (1999, p. 143)

escreve no seu livro Modos de Ver, que

[...] as mídias usam meios extremamente táteis para jogar com o sentimento que o espectador experimenta de adquirir a coisa real que a imagem mostra. Ou seja, ele tem a sensação de poder quase tocar o que está representado na imagem, fazendo com que se lembre como poderia possuir, ou efetivamente possui, a coisa real. (BERGER, 1999, p. 143).

                                                                                                               4 Gonçalves (2006, p. 133) escreve que “vivemos uma nova era no contexto fotográfico: os filmes são, cada vez mais, substituídos por dispositivos levados aos computadores que trabalham as imagens e as manipulam com tal grau de eficiência, que é possível criar o que não existe – a era virtual“.  

Page 40: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  39

Nesse caso, podemos dizer que o realismo aqui tem sua estratégia ligada ao

poder de venda de um determinado produto. Toscani (2009) se mantém na esfera

da publicidade enquanto instrumento de contestação social.

Atualmente, verifica-se o uso de estratégias publicitárias que superam os

elementos de representação de beleza e perfeição, explorados nos anúncios

convencionais. Daí o interesse deste trabalho em concentrar-se apenas nesses tipos

de estratégias (seja com a finalidade de venda, seja como ferramenta documental de

contestação social) que parecem romper com o protótipo do “mundo ideal”. São

estratégias que criam a ideia de preocupação com o destino do mundo, com as

tragédias e os problemas da humanidade. Surge, com essa fuga do lugar-comum da

publicidade, o uso de recursos, de meios e de metodologias de outras mídias, como

o jornalismo e o cinema documental.

Na dialética sobre o a produção de sentido real, existe hoje uma questão que

nos envolve numa discussão de que a mídia não é uma simples ferramenta de

registro de realidade, mas um instrumento de produção de realidade, uma realidade

espetacularizada, fabricada para a excitação dos sentidos, o que vai contra as

críticas em relação ao trabalho de Toscani de que seu trabalho era manipular a

realidade e que esta era, portanto, uma farsa.

Quando falamos em realismo na publicidade, podemos entender como

publicidade referencial, ou seja, usando como instrumento no processo criativo um

discurso que parece tratar da realidade, um discurso que procura se adequar à

realidade do público ao qual ela se destina. Confortin e Sprandel (2007), entendem

que esse tipo de publicidade exige do seu criador um caráter crítico e observador do

cotidiano, isso para criar argumentos informacionais que envolvam o público e a

mensagem ali apresentada.

Trata-se de uma publicidade de verdade, concebida como uma adequação da realidade, como uma construção. A publicidade referencial também procura, por meio de anúncios realistas, demonstrar que ao criar um anúncio, procura falar a verdade. (CONFORTIN; SPRANDEL, 2007, p. 230).

Aqui fica mais evidente como pode ter sido construído o processo criativo no

filme publicitário da campanha UNHATE, que analisaremos no terceiro capítulo.

Onde, de fato, está apoiada a linha criativa da Benetton? Na contestação política-

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  40

social e papel revelador dos problemas do mundo sem visar o lucro da marca ou

como estratégia valorativa do produto? Essas questões são possíveis pois o

realismo também pode se apresentar como estratégia subjetiva na interpretação do

consumidor – o que permite que uma linha criativa, a princípio desenvolvida para,

sim, revelar os problemas do mundo sem visar o lucro, possa mais tarde alcançar

um valor de marca justamente pela sua tentativa contestadora.

2.1.1 AS FUNÇÕES DO REALISMO NA PUBLICIDADE

Estamos em uma parte deste estudo que a bibliografia sobre o realismo

ligado especificamente à publicidade é objeto raro. Visto dessa forma,

continuaremos a nos valer do que Jaguaribe (2007) e Rocha (1995) defendem sobre

o realismo e as conceituações antropológicas da publicidade.

Segundo Jaguaribe (2007), o real e a realidade nos importam, de maneira

geral, porque pautam nossa possibilidade de significação do mundo e são

arduamente contestados e fabricados.

Num mundo de realidades em disputa, as estéticas do realismo no cinema, fotografia e literatura continuam a ser conclamadas a oferecer retratos candentes do real e da realidade, são acionadas a revelar a carne do mundo em toda sua imperfeição. (JAGUARIBE, 2007, p. 40).

Aqui estamos diante de uma análise feita a partir do realismo observado no

cinema, na fotografia e na literatura, mas se juntarmos as ideias trazidas por

Confortin e Sprandel (2007), podemos aplicar essa mesma análise de Jaguaribe

(2007) à publicidade.

Everardo Rocha (1995, p. 132) se apoia no realismo quando afirma que é no

momento da recepção que os anúncios e consumidores entram em contato, e é

neste momento que o anúncio intervém na realidade tal como esta era previamente

definida por aquele que a vivia. Ou seja, o consumidor pode vivenciar aquilo que

está no anúncio a partir do que ele interpreta e essa função pode ser revelada como

uma maneira de deixar produto e consumidor mais próximos. Nesse sentido,

podemos perceber que uma das funções do realismo na publicidade é envolver o

consumidor num fluxo de realidade próprio do anúncio.

Page 42: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  41

[...] os anúncios publicitários podem ser tomados como mitos, como narrativas de modelos ideais do cotidiano, como ideologia do estilo de vida das classes dominantes. (ROCHA, 1995, p. 144).

Essa afirmação do autor nos permite analisar a publicidade como sendo

produtora de uma realidade que ainda não existe, mas que ao ser colocada diante

do consumidor, torna-se real.

Partindo desse pressuposto, se a imagem pode apreender uma equivalência

entre o real e sua representação, é possível afirmar que no mundo dos simulacros

não há mais real nem realidade. Há somente a realidade dos simulacros que são

narrativas, cópias e imagens independentes, que não têm lastro no real. Desse

modo, as notícias na TV que comentam eventos, atentados, celebridades, etc.,

estariam na plena ordem do simulacro, porque atuam em esfera própria, fabricando

enredos próprios como um jogo virtual.

A publicidade pode estar incorporando estratégias, sobretudo estéticas da

criação tradicional do fotojornalismo (talvez não com o acontecimento e o registro

instantâneo de um fato, mas ao retratar realidades tão quentes e que se aproximam

do que vivenciamos no cotidiano). Se é possível dizer isso sobre os anúncios

publicitários gráficos, podemos ancorar esse discurso também nos filmes

publicitários (objeto de análise neste estudo), uma vez que o filme UNHATE parece

se apropriar (em algumas cenas) de estilos deixados pelo gênero documentário do

cinema, por exemplo.

Esse uso estético do realismo na publicidade (que pode ter sua influência a

partir do fotojornalismo) tem como função, em parte, alcançar uma diferenciação em

relação as outras imagens publicitárias e, por outra, de ganhar respeitabilidade

(credibilidade e verdade) que são características não só do gênero fotográfico como

do gênero documentário.

Assim, a publicidade, ao fazer uso das estéticas documentais da fotografia e

do cinema como recurso da prática publicitária, beneficia-se ao fazer crer nos

atributos dos objetos para evocar efeitos de sentido. É nessa perspectiva que

buscaremos nos anúncios da Benetton, na campanha UNHATE, a forma de fazer

crer publicitária.

Outra função do realismo na publicidade é aquela defendida por Malpas

(2000, p. 76) de que o realismo encontra mais terreno para prosperar quando a

perspectiva é a de uma incredulidade e de um ativismo cuidadosamente

Page 43: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  42

equilibrados. Ou seja, quando se pode demonstrar seriedade e rir ao mesmo tempo

diante de algo, por mais sarcástico que possa ser esse riso.

Essa função de sarcasmo e ironia que encontramos no movimento realista

artístico pode ser facilmente observada na publicidade se analisarmos os anúncios

que trazem os fatos cotidianos de forma tão cheia de significado que, ao interpretá-

las, o espectador/consumidor se veja diante de uma realidade ficcionalizada já

interpretada por ele. Esse reconhecimento da experiência vivida pode carregar sua

porção de sarcasmo ao intensificar sentidos críticos ao anúncio.

2.1.2 A MANIPULAÇÃO DO REAL NA PUBLICIDADE E QUANDO O

MANIPULADO SE TORNA REAL

Para falarmos de realidade na publicidade é preciso também se permitir

dialogar com a manipulação e, numa instância mais artística, com a manipulação

visual (fílmica e fotográfica), uma vez que a publicidade fabrica a realidade com base

numa experiência de cotidiano.

Aqui continuamos fazendo relações entre autores do realismo e da

publicidade para tentarmos encontrar um entendimento sobre a manipulação do real

na publicidade.

Jaguaribe (2007, p. 29) aponta que “desde o surgimento da máquina

fotográfica no século XIX, o status das estéticas realistas esteve fortemente

acoplado aos meios de reduplicação do real e da realidade fomentado pela cultura

visual e pelas novas tecnologias midiáticas”. Nessa linha podemos dizer que desde

o início da fotografia, na esfera da publicidade, o realismo estava ligado ao

manipulado, uma vez que para reproduzir uma imagem é necessário também

manipulá-la.

O surgimento de novos realismos na fotografia e no cinema nos séculos XX e

XXI, afirma Jaguaribe (2007), atesta uma necessidade de introduzir novos “efeitos

do real” em sociedades saturadas de imagens, narrativas e informações. Sobre

esses efeitos de realidade, a autora afirma que eles se diferem daqueles do século

XIX, na França, pois

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  43

[...] não se pautam somente na observação empírica ou distanciada, mas promovem uma intensificação e valorização da experiência vivida que, entretanto é ficcionalizada. (JAGUARIBE, 2007, p. 31).

Quando estamos diante de uma afirmação como essa, podemos nos

questionar, então, se o realismo depende do efeito produzido pela obra de arte –

aqui vou chamar de publicidade para entendermos a relação com o real –, a

imagem que sofre manipulação para ficar mais próximo da realidade continua sendo

chamada de real. Essa experiência real através da publicidade é ficcionalizada, mas

nem por isso deixará de representar a realidade, e ainda: compete ao artista

(publicitário) conceber outras formas de arquitetar a realidade idealizando novos

códigos ligados ao seu tempo.

Portanto, se o publicitário deve ser considerado inovador ao propor novas

formas de realismo na publicidade, a manipulação de uma realidade – uma imagem

que retrate a vida cotidiana –, mesmo fotografada ou filmada em um estúdio,

permanece, sim, possuindo seu efeito de real.

Se imaginarmos o cinema e o uso das tecnologias que ele faz, nos

questionaremos, por exemplo, se um filme que trabalhou com recursos de efeitos

especiais e conseguiu reproduzir uma realidade de um tempo passado, pode, ainda

assim, ser considerado realista.

Obviamente que as tecnologias facilitam o processo de manipulação quando

falamos de imagens digitais (hoje, a fotografia e o cinema), mas se pensarmos

mesmo no início do movimento realista, no século XIX, os pintores manipulavam o

momento real, ao produzir um cenário, colocar a modelo em determinada pose, com

determinadas vestimentas, para reproduzir com veracidade a imagem que era vista.

É diferente, portanto, de uma imagem jornalística, onde o fotógrafo capta a imagem

exatamente na hora que o fato aconteceu ou um filme documentário, onde as

imagens são gravadas como referência documental. Vimos que a publicidade

realista faz uso dessa estratégia do fotojornalismo, mas percebemos também que a

manipulação dela é feita para se aliar na composição da linguagem publicitária, ou

seja, a possibilidade de criar pela imagem e retratar emoções e sensações pela

fotografia ou pelo VT publicitário.

A transição entre o produzido (manipulado) e o real acontece quando

trabalhamos com o que Gutfreind (2011, p.3) apresenta como “impressão de

realidade”, onde a construção de um significado com essa impressão corresponde à

Page 45: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  44

experiência vivida e o uso desse termo já é frequente no cinema, pois se apresenta

como uma técnica de reprodução das aparências, se valendo da busca pelo efeito

de real e a crença na aparência.

É nessa perspectiva que entendemos que aquilo que foi reproduzido e, neste

caso, manipulado, se torna real ao representar no manipulado as realidades.

Gutfreind (2011) cita exemplos como o filme fantástico ou a ficção científica que,

mesmo se distanciando do realismo, recorrem a ele em alguma instância. A

manipulação sofrida nesses gêneros, por exemplo, quando se ancoram ao realismo

para causar uma impressão de realidade, mesmo durante um período curto, se

transforma em real.

[...] a construção estética do mundo emerge num fluxo de discursos, subjetividades e imaginações. Em outros casos, a construção da realidade depende, em grande medida, do impacto do “choque do real” que, entretanto, deve construir significados que se diferenciem dos produtos comuns e correntes da mídia televisiva. (JAGUARIBE, 2007, p.104).

Tomando o termo de Gutfreind (2011) sobre “impressão de realidade”,

podemos concluir que ao reproduzir uma visão cotidiana do mundo usando a

manipulação de imagens (fotográficas e fílmicas, através da tecnologia de softwares

e a montagem, no caso do cinema), o manipulado passa a ter um sentido real, pois

se valeu da tanto de uma interpretação individual, quanto de uma intensificação de

real antes não possível (uso de efeitos especiais, cores mais vivas, etc.) que o

oferece uma impressão realista.

2.2 O CHOQUE DO REAL

O termo “choque do real” é definido por Jaguaribe (2007, p. 100), como sendo

a utilização de estéticas realistas que visam suscitar um efeito de espanto no leitor

ou espectador. Para ela, o termo busca provocar o incômodo e quer sensibilizar o

público (espectador/leitor) sem recair, necessariamente, em registros do grotesco,

espetacular ou sensacionalista. O impacto do “choque”, como ela diz, decorre da

representação de algo que não é necessariamente extraordinário, mas que é

exacerbado e intensificado. Ou seja, são ocorrências cotidianas da vivência

Page 46: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  45

metropolitana, por exemplo, tais como violações, assassinatos, assaltos, lutas,

contatos eróticos, que provocam forte ressonância emotiva.

Essa definição do “choque do real” está relacionado a ocorrências cotidianas

históricas e sociais. Da perspectiva do criador artístico, entretanto, o uso do “choque

do real” tem como finalidade provocar o espanto, atiçar a denúncia social, ou aguçar

o sentimento crítico. Em qualquer dessas modalidades, o “choque do real”, afirma

Jaguaribe (2007, p. 100), quer desestabilizar a neutralidade do espectador/leitor sem

que isto acarrete, necessariamente, um agenciamento político.

No termo “choque do real”, a autora (2007, p. 101) faz uma observação sobre

os limites da representação e a escolha em relação à palavra “real”. Para ela, o real

[...] testa os limites da representação e supera os mecanismos seletivos do nosso controle consciente. Semelhante ao instante temporal que é vivido, mas que não pode ser conscientemente processado na instantaneidade de sua vivência temporal, o real somente pode ser apreendido após a filtragem cultural da linguagem e da representação. [...] o real tanto ultrapassa quanto permeia nossa experiência. (JAGUARIBE, 2007, p. 101).

Ou seja, se o real é a existência de um mundo que independe de nós, a

realidade social, ao contrário, é uma fatia do real que foi culturalmente produzida,

processada e fabricada por uma variedade de discursos, perspectivas dialógicas e

pontos de vista contraditórios.

Partindo desta ideia que estamos envoltos numa realidade construída

socialmente, buscamos simbolizar e produzir significados por meio de narrativas,

imagens e representações. As diversas estéticas do realismo são também formas

culturalmente geradas a partir da fabricação da realidade. Sobre essa discussão da

realidade produzida, Jaguaribe (2007, p. 101) diz que ao contrário dos repertórios

surrealistas da desfamiliarização ou das invenções da imaginação fantástica, as

estéticas do realismo podem oferecer retratos críticos da “experiência do mundo”

não porque produzem uma representação incomum de uma “realidade estranha”,

mas porque fazem a “realidade” tornar-se “real”. Ou seja, fabricam uma

representação de realidade carregada de “efeito do real”. Desse modo, a “mentira”

estética do realismo, como reforça Jaguaribe (2007), reside na sua capacidade de

organizar narrativas e imagens de modo a oferecerem uma intensidade do real

maior do que o fluxo disperso da cotidianidade.

Page 47: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  46

Isso não implica que toda estética realista deve fazer uso da verossimilhança

ou que esteja estreitamente vinculada às convenções miméticas. Muitas formas

inovadoras do realismo conseguem introduzir um retrato inquietante da realidade, ao

enfatizarem aspectos pouco usuais que, entretanto, não devem ser processados

como fantasiosos, como afirma a autora:

o realismo crítico questiona, muitas vezes, as percepções do sentido comum e hegemônico da realidade que usualmente são decodificados como sendo a própria experiência do real objetivo. (JAGUARIBE, 2007, p. 102).

É possível analisar que como tantos outros esforços artísticos, certas

expressões do realismo estético buscam ir além dos mecanismos socialmente

produzidos da realidade.

Jaguaribe (2007) aponta que nas diversas abordagens da vida social,

experiência e interpretação da realidade, os diferentes códigos do realismo fazem

uso do efeito do real e que diferencia-se de acordo com cada momento histórico,

assim como depende dos variados materiais e suportes técnicos que são utilizados

enquanto meios para a representação. Isso significa que não importa quais sejam o

meio e a mensagem, esse “efeito do real” sempre depende da evocação de noções

culturalmente construídas da realidade que, muitas vezes, são absorvidas como

uma figura de linguagem do próprio real.

Existe uma dialética entre o “efeito do real” e o “choque do real” que é

refletido nas narrativas e imagens, sobre isso Jaguaribe coloca que

[...] enquanto o “efeito do real” busca, por meio do detalhe de ambientação, do fluxo da consciência ou de quaisquer outros meios narrativos, reforçar a tangibilidade de um mundo plausível, o “choque do real” visa produzir intensidade e descarga catártica. Refere-se a certas narrativas e imagens que desprendem uma carga emotiva intensa, dramática e mobilizadora que, entretanto, não dinamitam a noção da realidade em si. O elemento do “choque” reside na natureza do evento que é retratado e no uso convincente do “efeito do real” que abaliza a autenticidade da situação-limite. (JAGUARIBE, 2007, p. 103).

Vale enfatizar que atualmente as produções contemporâneas oferecem

excessos de “choque do real” sem o distanciamento da experimentação estética.

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  47

Para a autora (2007, p. 104), o impacto desses registros realistas depende dos

poderes persuasivos do “efeito do real” e da sua capacidade de oferecer narrativas e

âncoras visuais de significação em cenários urbanos fragmentados pela incerteza,

violência e desigualdade social. Essa produção de significados não potencializa

finais redentores, aspirações utópicas ou ações transformadoras, mas introduz

molduras interpretativas que intensificam a sensação do real e a apreensão crítica

da realidade.

Cineastas, fotógrafos e escritores que tentam produzir o “choque do real”

devem, nas palavras de Jaguaribe (2007), encontrar maneiras de aumentar a

intensidade estética sem o empacotamento costumeiro que envolve eventos

incongruentes, violentos e conflitantes. Partindo dessa afirmação, a “realidade”

agressiva, baixa, constrangedora e desigual choca, mas também canaliza a

percepção para vocabulários específicos de interpretação e códigos estéticos de

fácil apreensão.

Desse modo, é perceptível que a arte, a publicidade e a imagem que trabalha

com a “realidade” nesses aspectos, vai se valer da interpretação do

espectador/leitor/consumidor para possuir seu valor semântico compreendido

individualmente.

Neste capítulo entendemos o conceito do realismo e como ele aparece nas

mais diversas formas, mesmo na publicidade, onde sua função estratégica é de

deixar consumidor e produto mais próximos. Vimos também que a publicidade pode

ser vista como uma produtora de realidade que não existe e, mesmo assim,

mostrando uma realidade ficcionalizada, coloca-se num papel revelador do mundo,

onde as questões da sociedade são mostradas. Esse último, porém, depende

diretamente da interpretação do espectador. Identificamos que a manipulação da

realidade não acarreta numa desvalorização da imagem representada, pois mesmo

ao se valer do efeito de produzido, a “impressão de realidade” se mantém intacta e

que o choque do real, visa suscitar um efeito de espanto, ao representar algo

intensamente. Essa estratégia de trabalhar com o choque está diretamente ligado às

questões da publicidade crítica, se valendo dos problemas cotidianos para chamar

atenção a uma determinada problemática social. No próximo capítulo, então,

discorreremos sobre a utilização do realismo no filme UNHATE, do diretor francês

Laurent Chanez, e analisaremos se a narrativa do filme dialoga com o

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  48

consumidor/espectador, fazendo uso do realismo, no que se propuseram: criar uma

nova cultura contra o ódio.

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  49

3 O USO DO REALISMO EM UNHATE

Neste capítulo, utilizamos a pesquisa bibliográfica para construirmos uma

fundamentação teórica para encontrar e revisar livros e artigos de autores

brasileiros e estrangeiros que abordam o tema do realismo na publicidade. Stumpf

(2008) define a pesquisa bibliográfica como um conjunto de procedimentos que

identificam, selecionam, localizam e obtém documentos convenientes para

realização do trabalho acadêmico. Além desta técnica, nos valemos também da

análise da imagem fílmica como narrativa, tendo em vista um dos principais

objetivos deste estudo: a análise do uso do realismo na narrativa do filme UNHATE.

Desse modo, foi preciso utilizar-se da análise fílmica como narrativa através do

significado dado ao uso do termo na sua temática. Para tanto, como afirma

Coutinho (2008), nesse método, é necessário levar em consideração o

conhecimento e compreensão das características discursivas da grande narrativa

em que o registro visual se insere. Coutinho (2008, p. 343) completa, sobre a

análise da imagem cinética, que:

[...] ao atribuir sentido a dada imagem, e interpretá-la à luz das questões de pesquisa que orientam o projeto, é preciso considerar sua adequação ao estilo de linguagem do programa, filme ou categoria videográfica por meio da qual aquela mensagem visual é experimentada, ou consumida. Assim, uma mesma imagem pode ser interpretada de maneiras diferenciadas, e um telejornal e um comercial televisivo de 30 segundos, por exemplo.

Coutinho (2008) fala ainda que ao selecionar o tipo de imagem a ser

analisado e definir o objeto de estudo, é possível indicar a relevância daquele tipo

de mensagem para responder às questões de pesquisa.

Aumont e Marie (2009) colocam que a narrativa fílmica é um aspecto que

depende de códigos particulares e que merecem, portanto, ser tratados à parte, por

dois motivos: o primeiro porque a grande parcela dos filmes são, em maior ou

menos escala, narrativos e o segundo, porque os códigos da narrativa foram

estudados de forma mais aprofundada do que outros, e nesse aspecto a análise

fílmica pode aproveitar o que a crítica e a teoria literárias já fazem: análise

narrativa.

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  50

O processo metodológico foi feito a partir de averiguações de imagens que

apresentassem similaridades, diferenças ou neutralidade estética quanto as

imagens em movimento. A partir de uma análise mais detalhada, onde

pudéssemos, mesmo em um filme curto, propor uma divisão entre as cenas,

conseguimos chegar a conclusão quanto à forma que o realismo é apresentado no

filme. Logo após, passamos a identificar as imagens que, de acordo com a

interpretação do autor, possuem uma maior força simbólica no que diz respeito ao

“choque do real” nas imagens. Nesse segundo experimento foi possível analisar a

unidade estética entre o trabalho de Toscani e Chanez ao acrescentar a logomarca

da Benetton nas imagens, antes em movimento.

Por fim, para concluir a análise do filme quanto a sua temática, cria-se um

quadro representativo das imagens, mostrando que as cenas não se mantém

estáticas em categorias, mas que elas tendem a mudar de posição a partir da

interpretação de cada espectador.

3.1 ANÁLISE FÍLMICA

Sendo parte da campanha institucional da Fundação UNHATE, lançada em

16 de novembro de 2011, o filme UNHATE apresenta uma progressão de imagens

com duplos significados: flertes com os olhos ou olhares desconfiados, pessoas que

se abraçam ou lutam, rebeliões ou festejos, brigas ou danças desenfreadas.

Momentos extremos de conflito ou de amor: dois lutadores depois de um round e um

casal que acaba de fazer amor. O filme é fonte de questionamento e conta com o

equilíbrio e o envolvimento entre os estímulos que levam o impulso para o ódio e as

razões do amor. Com um minuto e oito segundos de duração, Chanez trabalhou

com imagens que desencadeiam, propositalmente, um duplo sentido que pode ser

explorado de acordo com a interpretação do espectador.

No filme (Anexo A), o diretor apresenta, através do filme, a realidade de

muitos jovens e adultos: as lutas por igualdade racial, sexual e religiosa – aspectos

sociais que causam movimentação política e civil – divididas entre momentos

interpretados como sendo representações de amor e ódio. O uso de uma estética

realista ao mostrar olhares de homens, crianças, negros, lutadores e mulheres de

burca conflita diretamente com a ideia de ambiguidade das imagens, uma vez que o

espectador pode ficar em dúvida sobre a intenção do diretor.

Page 52: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  51

No entanto, ao analisar o filme UNHATE, percebemos que o choque emotivo

trazido nas campanhas anteriores da Benetton por Oliviero Toscani (apresentadas

no primeiro capítulo para contextualizar a linha criativa da marca), se perde nas

imagens do filme, onde é possível perceber também que a análise passa a ser um

processo individual e cabe ao analista refletir a respeito do que vê no filme e fazer

sua interpretação quanto a sua intensidade. Desse modo, é o receptor que faz sua

leitura sobre o filme e compreende as imagens através de sua contestação crítica.

Por estarem carregadas de ambiguidade, as imagens apresentadas no filme

podem, no entanto, refletir o sentimento crítico que a Benetton buscou suscitar com

a sua campanha e com a linha irônica que o realismo pode oferecer ao filme.

Ao representar, de forma ficcional, os retratos da “vida como ela é”, o diretor

usa de recursos de intensificação dramática, tais como o ódio, bullying, o amor

proibido, cenas de beijo gay, manifestações políticas e lutas estudantis, para criar

mundos reais que forneçam uma interpretação da experiência contemporânea.

Como representa o quadro abaixo, essas questões trazidas por Laurent

Chanez recaem sobre o mundo atual ao tentar reviver aquilo que é de conhecimento

coletivo (lutas pelos direitos dos homossexuais, políticas educacionais que inibam o

bullying entre crianças em escolas, lutas por liberdade política e religiosa em países

mulçumanos e jovens estudantes que reivindicam seus direitos):

Fluxograma 1 – Como se apresenta o realismo no filme publicitário UNHATE

Fonte: O autor (2012).

O uso dessa intensificação do drama contemporâneo recai na construção

ficcionalizada de mundos reais. Em linhas gerais, as interpretações da ficção realista

apresentada no filme faz uso do senso comum cotidiano, ou seja, esses fatos

apresentados em imagens se sustentam no verossímil e no imaginário do

espectador sobre determinado tema abordado.

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  52

Essas formas de tratar o real representados através da violência cotidiana, de

questões de intolerância religiosa e sexual, por exemplo, buscam aguçar a

percepção da condição humana no mundo por meio das imagens dramáticas e as

narrativas que desestabilizam clichês românticos, ao promoverem o choque cultural

ligado à sexualidade e que pode ser interpretado como sendo uma tentativa de ferir

os padrões morais religiosos, como a suposta cena de sexo entre dois homens (0:32

– ver figura 12, p. 56) e o beijo entre duas mulheres mulçumanas (0:50 ver figura 15,

p. 56), mostrando justamente que o tema da homossexualidade entra na narrativa

como crítica e/ou insulto à questão religiosa. Aqui identificamos o papel irônico e

crítico do uso do realismo enquanto estética.

Partindo desse ponto, é possível afirmar, a partir da análise do filme, que a

narrativa fílmica da peça está em sintonia com a experiência cotidiana, pois ela

transcreve o equilíbrio entre a representação do mundo e a realidade social. Em

outras palavras, o realismo ficcional do filme se firma como um fabricador de uma

ilusão de mundo que reconhecemos como real, buscando a representação cotidiana

ligada ao senso comum da percepção.

Ao fazer a análise do filme, um caso que acaba nos surpreendendo em

relação a ambiguidade da narrativa, é que as imagens não permanecem estanques

quanto a sua possibilidade de representação da ideia de real. Essa interpretação só

foi possível ao tentar estabelecer uma divisão entre cenas que pudessem ser

entendidas como representação da realidade “tal qual ela é” e cenas de

representação ficcionalizada. O resultado porém, é que não há como determinar,

com precisão, os tipos de representação do real no filme. O trabalho de Chanez de

envolver a narrativa numa questão ambígua pode ter impossibilitado uma análise

interpretativa concreta em relação às formas de representação do real no filme

publicitário. Essa constatação de que as imagens não permanecem estáticas em

suas formas de representação vai contra a ideia trazida no capítulo anterior de que

ora o realismo se configura como representação da vida, ora se mostra como uma

representação ficcionalizada. Na ideia de que inexiste um meio termo entre as

representações do real na publicidade é evidente que, mesmo assim, as imagens

oferecem um efeito de real naquilo que se propõem a (re) produzir.

Essa dificuldade em estabelecer critérios que realmente dividam as imagens

entre representação ficcionalizada da realidade e representação da vida “tal qual ela

é” provoca, ainda, uma outra observação: não é possível, talvez por conta da

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ambiguidade da narrativa fílmica, apontar as intenções das imagens quanto a sua

significação temática, como veremos a seguir.

Chanez tenta abordar a questão dialética entre o amor e o ódio usando

imagens que conflitam com seus sentidos ambíguos. Representados por imagens

que caracterizam momentos intensos de cada um dos sentimentos trazidos no filme:

de um lado, imagens que reproduzem combates, lutas, protestos, agressões físicas,

de outro, o equilíbrio do abraço de chegada e o de partida, dos beijos e das

tentativas de poder amar alguém. No meio dessas representações, cenas

transitórias entre um sentimento e outro: a culpa do amor proibido e das relações

homossexuais. Fizemos, aqui, um outro experimento: estabelecemos três categorias

quanto à temática ligada às imagens (positivo, neutro ou transitória e negativa), onde

a categoria positiva está ligada às cenas de abraços e beijos; neutro ou transitória às

imagens que possuem maior intensificação da ambiguidade; e negativa às que

mostram imagens com valores semânticos mais ligados às lutas físicas e

manifestações populares, no entanto, ao analisar levando em consideração o quadro

1, onde apontamos que a intensificação dramática é construída a partir de

problemas vividos por indivíduos em diferentes locais do mundo e que, portanto, o

aspecto cultural está ligado à interpretação, percebe-se que as cenas também não

poderiam ser categorizadas de maneira fixa, sem permitir o trânsito de significados

das imagens e categorias, ou seja, as cenas de ódio, beijos, gestos obscenos, etc.,

podem tanto fazer parte da categoria positiva, quanto da transitória/neutra ou

negativa.

Na interpretação das cenas que seguem, usando apenas um ponto de vista

(do analista/pesquisador) para estabelecer a categoria de cada uma das imagens,

no entanto, elas não se mantém estáticas em suas divisões se levarmos em

consideração outros modos interpretativos de diferentes espectadores. Nesse caso,

as cenas podem passar do neutro/transitório para o negativo; negativo para positivo,

e assim por diante. Ou seja, as cenas deslizam de categoria em categoria,

dependendo da interpretação de cada um.

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  54

Quadro 1 – Categorização das cenas, segundo o autor

Fonte: O autor (2012).

Mesmo com essa tentativa frustrada de categorizar semanticamente as cenas

do filme, esse experimento é importante para desvendar a ambiguidade da narrativa

que não é possível ser percebida com uma simples e rápida averiguação do filme, o

que mostra que aquilo que parece ser uma cena positiva, neutra ou negativa

depende do ponto de vista do espectador.

Essa dependência interpretativa que o filme possui pode causar uma

desconfiança quanto a sua proposta, que parece deixar de centralizar-se na

divulgação da Fundação e sua intenção, e passa a focar-se nos efeitos que a

Benetton pode causar à subjetividade enquanto marca de roupa. Ou seja, o filme,

apesar de tratar com clareza as questões sociais e o contato humano (beijo, abraço,

olhares, carinho, luta, etc.) através do realismo crítico, se perde na narrativa e acaba

não tratando sobre o ódio ou da falta dele nas imagens, para que o espectador

possa entender de forma clara a proposta da Fundação.

Lembrando o que foi trazido por Jaguaribe (2007, p. 27), onde ela abordava

que o “efeito do real” e a retórica da verossimilhança deveriam ser acionados, o

diretor consegue mascarar os próprios processos de ficcionalização com a narrativa

ambígua que, no entanto, possui um viés crítico do social e da realidade, e garantir,

assim, uma imersão no mundo da representação ao espectador. Apesar disso, o

filme se mostra ineficaz na sua proposta de contestação à intolerância e à criação de

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  55

uma nova cultura contra o ódio, pois se apega muito mais aos contatos humanos

que, de fato, às questões com valores críticos desejados pela marca.

Em outras palavras, mesmo que o filme se alimente da ideia de real através

de uma estratégia valorativa daquilo que a Fundação UNHATE se propõe a oferecer

enquanto marca à sociedade civil, esse ponto passa, facilmente, despercebido por

quem o interpreta, pois o filme acaba conflitando entre a representação intensa de

fatos cotidianos dramáticos que movem-se sem parar na ambiguidade das imagens

e a demora em responder com precisão aquilo que parece ser o objetivo central do

filme: incitar a criação de uma nova cultura contra o ódio.

Ainda nesse aspecto da temática fílmica, ao analisar a peça, é notória a

percepção que o que caracteriza o filme são as imagens carregadas de

ambiguidade, o que contribui muito para levar ao espectador/consumidor ora a um

sentimento crítico, uma desorientação e uma concepção nova quanto às imagens,

ora a nenhuma interpretação. Chanez usa a estética do realismo para deixar a

experiência cotidiana em sintonia com as questões críticas que pretende dialogar

com os espectadores. No entanto, estar em sintonia com a experiência cotidiana não

significa, necessariamente, responder às questões que a Fundação UNHATE e

Benetton se propõem a abordar. Isso porque estamos tratando do filme isolado do

restante das peças da campanha.

A partir da análise feita, é possível dizer que, das imagens que compõem o

filme, as que mais carregam sua porção de realismo crítico, são, sem dúvida, as

cenas da tentativa de beijo gay (0:20) e, posteriormente, o início da representação

do ódio intencionado por questões homossexuais (0:21), ambas na figura 10; o

bullying sofrido por uma criança negra na saída da escola (0:25), figura 11; o

momento íntimo de um casal gay (0:32), figura 12; o gesto obsceno de um

adolescente (0:36), figura 13; a manifestação política num país mulçumano (0:38),

figura 14; e o beijo de duas mulheres usando burcas (0:52), figura 15,

respectivamente. Se analisarmos essas imagens de forma isolada, poderemos

observar a semelhança entre as questões abordadas por Toscani em algumas de

suas peças para a Benetton, no que diz respeito às críticas feitas pelo fotógrafo e

intencionadas por Chanez.

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Figura 10 – Tentativa de beijo gay Figura 11 – Bullying sofrido por criança

Fonte: UNHATE, Youtube. Fonte: UNHATE, Youtube.

Figura 12 – Momento íntimo entre casal Figura 13 – Gesto obsceno

Fonte: UNHATE, Youtube. Fonte: UNHATE, Youtube.

Figura 14 – Manifestação política/religiosa Figura 15 – Beijo entre mulheres

Fonte: UNHATE, Youtube. Fonte: UNHATE, Youtube.

Esse experimento quanto à força crítica das imagens do filme é possível de

se fazer de tal forma que, ao acrescentar a logomarca da Benetton a esses trechos

(agora estáticos) do filme, presenciamos quase a mesma sensação de realidade

ficcionalizada das fotos de Toscani nas campanhas da marca.

Observemos, então, o experimento com a logomarca sob as imagens:

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  57

Figura 16 – Experimentação das imagens com logomarca

Fonte: O autor (2012).

Esse experimento revela que estamos diante de uma mesma construção

estética, tanto nas campanhas da marca (contextualizadas no primeiro capítulo),

quanto na campanha da Fundação UNHATE. Além disso, como já falado

anteriormente sobre o realismo na publicidade, podemos afirmar que o diretor usa

da publicidade referencial como instrumento no processo criativo para tratar o

discurso de forma mais próxima da realidade possível, que se adequa, a medida que

vai sendo interpretada, à realidade do público.

Como colocado por Confortin e Sprandel (2007) quanto ao tipo da publicidade

referencial, elas afirmam que esse modelo exige do seu criador, nesse caso do

diretor francês, um caráter crítico e observador do cotidiano de maneira que seja

possível criar argumentos informacionais que envolvam o público e a mensagem ali

apresentada.

Outro ponto importante de destacar na análise do filme quanto as suas

estratégias é o uso que ela faz dos recursos do gênero documentário como forma de

apresentar o real com mais credibilidade e verdade na narrativa. Exemplos do uso

desses recursos são as imagens que mostram dois homens de uma comunidade

disputando poder e força de forma física (0:30) e a de mulçumanos protestando

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contra o poder político (0:38). Essas duas imagens específicas se diferem em

relação as demais pois se assemelham a trechos de documentários e ganham

respeitabilidade na representação da questão entre amor e ódio, trazido pela

campanha.

Fica claro que o filme capta as maneiras cotidianas pelas quais os indivíduos

expressam seus dilemas existenciais por meio das experiências pessoais e sociais

que fazem parte da montagem da realidade social buscada pelo diretor, oferecendo

uma intensificação desses imaginários e tentando tornar o cotidiano mais cheio de

significado buscando, assim, apresentar, mesmo que de forma (re)produzida,

cenários que apresentem o retrato social/político atual. O diretor, ao incitar a crítica

aos temas tratados no filme, põe em quarentena as fantasias, crenças e tradições

que também se manifestam na fabricação social da realidade mas, entretanto,

parece esquecer da proposta do filme de abordar o ódio ou a falta do ódio, como diz

o título do filme.

No caso do filme analisado, estamos diante de uma propaganda institucional

da Fundação UNHATE que, assim como nas demais campanhas da United Colors of

Benetton, a aposta é na mesma estética realista crítica usada por Toscani. Nesse

ponto, o realismo no filme cumpre o seu papel independente da estratégia

comunicacional traçada: envolver o público num fluxo de realidade próprio do

anúncio. Por outro lado, se o realismo usado no filme de Laurent Chanez faz o

consumidor vivenciar aquilo que está no filme, essa função pode ser revelada como

uma maneira de deixar o produto social da Fundação (subliminarmente a marca de

roupas) e consumidores mais próximos.

Nesse aspecto, podemos entender que o “choque do real” proposto por

Jaguaribe (2007) encontra sua representação no filme ao mostrar ocorrências

cotidianas, históricas e sociais, utilizando-se de estéticas realistas que conseguem

suscitar o efeito de espanto no espectador em relação a algumas imagens, sendo

capaz de provocar incômodos e sensibilização por parte do espectador, pois passa a

mostrar de forma exacerbada e intensificada, questões – sobretudo – sexuais, que

são possíveis de atiçar a denúncia social e aguçar o sentimento crítico em relação

às questões representadas no filme.

Por fim, a análise fílmica se apresenta como um revelador do papel do

realismo no filme publicitário UNHATE e, apesar da dificuldade em estabelecer uma

interpretação concreta quanto à proposta da Fundação, é capaz de oferecer aos

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  59

espectadores – cada qual a sua interpretação –, a produção do sentimento crítico

aos problemas da atualidade, colocando a publicidade como uma forte ferramenta

de denúncia social na sociedade.

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  60

CONSIDERAÇÕES FINAIS A publicidade sempre se valeu de representações ficcionalizadas da vida

cotidiana, principalmente representações fantasiosas e de uma estereotipização de

uma felicidade fingida que mostram sempre o lado bom do mundo - os produtos que

fazem milagres, a família ideal, etc. –, esquecendo-se que, como ferramenta de

comunicação, a propaganda pode também promover o questionamento e a crítica

social.

Comungando das ideias de Toscani que a publicidade deve repensar toda a

sua comunicação, sua filosofia e sua moral, apresentamos um estudo que tenta

compreender o uso do realismo no filme UNHATE, seja ele como contestação crítica

da sociedade, seja como mera estética publicitária.

Ao notar melhor as questões que fizeram Toscani fotografar imagens

carregadas de “impressão de realidade” e “choque do real”, conseguimos

compreender como a marca italiana de roupas fundada por Luciano Benetton

durante o pós-guerra logo conseguiu mexer com a moral das famílias, igrejas,

governos e até mesmo dos meios de comunicação ao trabalhar com o realismo em

seus anúncios.

Com a pouca bibliografia sobre o uso do realismo na publicidade, nos

valemos das ideias de Jaguaribe (2007) para tentar entender as questões ligadas ao

realismo estético e suas manifestações de produzir “retratos da vida como ela é”,

fazendo uso da ficção e de recursos de intensificação dramática para criar mundos

plausíveis que pudessem fornecer uma interpretação da experiência

contemporânea.

O trabalho problematiza a questão dos usos do realismo no filme UNHATE,

trazendo como objetivo a investigação dessa utilização das impressões de realidade,

as funções que ela desencadeia e identificar como pode ocorrer o processo de

significação e interpretação do filme.

Com o estudo, percebemos que os códigos realistas (formas de tratar o real)

trazidos no filme buscam aguçar a percepção de nossa condição enquanto

indivíduos por meio de imagens e narrativas que desestabilizam clichês cotidianos e

que o realismo, enquanto representação, sempre desenvolveu-se em linhas

diferentes: de um lado, os que defendem os ideários estéticos do realismo e

promovem a ligação entre representação e experiência de realidade, de outro, os

Page 62: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  61

que insistem que o realismo é uma convenção estilística que mascara os processos

de ficcionalização. Essas referências foram importantes para ajudar no processo de

desenvolvimento da pesquisa, uma vez que para analisar o filme, levou-se em

consideração que o realismo, como percepção do cotidiano e registro de realidade

pautada na evidência dos fatos, parece legitimar uma captação corriqueira da

realidade através do que vivenciamos da vida e, quanto ao seu uso na publicidade, o

cotidiano banal torna-se assunto de interesse artístico, visto que o intuito primário da

arte realista (e nesse caso, a publicidade Benetton) é oferecer uma observação da

vida cotidiana de forma contestadora.

Na parte que trabalhamos o uso do realismo na publicidade, nos ancoramos

nas ideias de Tosin (2006) que traz a hibridização entre a arte e a publicidade,

mostrando que elas se juntam à vida cotidiana através dos processos de

espetacularização da cultura, permeando as subjetividades dos indivíduos e,

passando a manifestar suas influências e ideologias que transcendem as instâncias

do consumo, em outras linhas, isso representa que algumas linguagens da

comunicação passaram a manifestar-se artisticamente, como é o caso da

publicidade, e é natural que essa manifestação venha carregada de influências,

como o realismo, em anúncios gráficos e fílmicos, deixando claro que a hibridização

com as artes se dá com tal intensidade que, às vezes, é difícil defini-las

isoladamente.

Um outro aspecto importante que norteou este estudo foi a identificação do

realismo não como uma estética que nos dá uma documentação factual ou completa

do cotidiano, mas como fabricador de uma ilusão de mundo que percebemos como

real. A busca por um conceito que pudesse traduzir o sentido do realismo e as

diferenças entre os termos usados pelos autores, nos colocaram diante de um fator

muito mais relevante que o próprio termo realismo: a interpretação a partir da

experiência vivida. Por outro lado, pudemos observar que a manipulação do real,

uma vez que falamos sobre representação ficcionalizada da realidade e

“representação da vida tal qual ela é”, possibilitou produzir uma “impressão de

realidade” que não estava necessariamente fundida à ideia de experiência vivida,

dessa forma, o filme passou a fabricar a realidade com base numa vivência de

cotidiano.

Sendo possível dizer, portanto, que ora o realismo se mostrava como

representação da vida “tal qual ela é”, ora aparecia como uma representação

Page 63: PROPAGANDA BENETTON: O USO DO REALISMO NO FILME UNHATE

  62

ficcionalizada, se apresentando como uma montagem de realidade ou dando um

“efeito de real” aquilo que ela se propõe a (re) produzir, a narrativa do filme passou a

depender diretamente da interpretação individual. Ou seja, o filme UNHATE, mesmo

de forma ficcionalizada e manipulada, consegue criar realidades que são

interpretadas pelo espectador. A grande questão de perceber a realidade em

contextos de representações ficcionalizadas é a interpretação, subjetiva a cada um.

Sobre as funções do realismo na publicidade, são discutidas as ideias de

Everardo Rocha (1995) em seu livro Magia e capitalismo: um estudo antropológico

da publicidade, onde ele aponta que o consumidor pode vivenciar aquilo que está no

anúncio a partir do que ele interpreta e essa função pode ser revelada como uma

maneira de deixar produto e consumidor mais próximos, ou seja, uma das funções

destacadas quanto ao realismo na publicidade é o envolvimento do consumidor num

fluxo de realidade do próprio anúncio. Essa ideia permitiu a análise da publicidade

como sendo produtora de uma realidade que ainda não existe, mas que ao ser

colocada diante do consumidor, se torna real.

Por fim, é trazida a análise do filme UNHATE, cruzando as teorias abordadas

nas duas primeiras partes com a narrativa fílmica, de tal modo que foi possível fazer

duas observações relevantes: a primeira sobre o uso das estéticas do realismo

crítico no filme e a outra sobre a temática que a campanha se propõe apresentar.

Esta última não responde, de forma clara, às respostas quanto à narrativa por se

tratar de imagens permeadas de ambiguidade.

Umas das hipóteses dessa problemática na narrativa é que, por estar

carregada de ambiguidade, as imagens (em movimento) não conseguiram

desempenhar a mesma função que as campanhas de Toscani apresentadas no

início do trabalho. Para tanto, foram produzidos dois experimentos e um esquema

para tentar cruzar as teorias com a análise. O esquema abordou as representações

da realidade no filme publicitário analisado, mostrando que a intensificação

dramática acontece quando, ao criar mundos reais, as representações através de

lutas, bullying, sexo, amor proibido e manifestações, mostram os problemas vividos

em diferentes locais do mundo (experiência coletiva ligada à ideia cultural),

resultando numa união entre a experiência vivida e as reproduções e fabricações de

realidades ficcionalizadas.

Quanto aos experimentos, o primeiro se dá na esfera da força crítica das

imagens (isolando a questão ambígua das imagens) no filme. É mostrado, ao

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acrescentar a logomarca da Benetton em algumas imagens de intensificação

dramática em trechos do filme, a presença de quase a mesma sensação de

realidade ficcionalizada que encontramos nas fotos de Toscani. De tal modo que, se

fosse possível tirar a ambiguidade das imagens (deixa-las estáticas) e,

consequentemente, da narrativa do filme, estaríamos diante de uma mesma

construção estética.

O segundo experimento, no entanto, diz respeito à categoria temática na

narrativa fílmica. Dividimos as cenas do filme em três distintas áreas ou categorias:

1) positiva; 2) neutra ou transitória; 3) negativa. Essas categorias puderam auxiliar a

determinar a intensidade da narrativa fílmica – levando em conta a interpretação do

pesquisador em sua análise. No entanto, percebemos que essa mesma intensidade

narrativa não se mantinha estável, pois dependia da ideia subjetiva do espectador

em construir uma interpretação individual.

Ao analisar o filme de forma sistemática, acrescentando a ele o valor ambíguo

que carrega e a divisão de suas cenas, é possível dizer que, diferente das

campanhas da Benetton fotografadas por Toscani, Chanez não responde, de forma

clara, às questões críticas e sociais que a Benetton e, agora, a Fundação UNHATE

coloca à sociedade: tentar criar uma nova cultura contra o ódio. O filme acaba

tratando mais as questões de contato humano, quando vistas sistematizadas, que

de fato, da proposta apresentada no conceito da campanha.

Então, de acordo com tudo que foi apresentado neste estudo, é possível

afirmar que o uso do realismo no filme UNHATE serve para reforçar a estética

publicitária das campanhas Benetton e promover a ideia de que a propaganda pode

se valer de questões sociais para aguçar o sentimento crítico entre os

consumidores/espectadores e, ainda, ganhar respeitabilidade enquanto marca.

Contudo, o fator subjetivo ligado à interpretação que pode, de um lado, causar a

ausência de significado por parte do público em relação ao filme, e de outro, fazê-lo

construir um pensamento contestador em relação aos problemas do mundo, permite-

nos entender o trabalho de Chanez como não sendo capaz de deixar claro a

intenção da Fundação.

É preciso, porém, dar continuidade a esta pesquisa no que concerne à

adequação narrativa e o uso do realismo no contexto subjetivo do espectador, de

forma aprofundada e através do mesmo viés de representação do real.  

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REFERÊNCIAS

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ANEXO

ANEXO A - Filme UNHATE disponível em CD-ROM (1:08). Material complementar