Pronunciamento Do Ministro Cezar Peluso

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PRONUNCIAMENTO DO MINISTRO CEZAR PELUSO NA ABERTURA DO SEGUNDO CONGRESSO DA CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL O Supremo Tribunal Federal tem a honra de promover, em parceria com a Comissão de Veneza, este Segundo Congresso da Conferência Mundial sobre Justiça Constitucional. Em nome de ambos e do povo brasileiro, agradeço-lhes a todos terem, em escala surpreendente, aceitado nosso convite, e a oportunidade ímpar de frutuosa troca de experiências. Sejam bem-vindos. Quiseram as forças incontroláveis do acaso que este Congresso se iniciasse, no Rio de Janeiro, no momento em que o Estado sofre com a brutal tragédia das inundações. Tenho a certeza de que falo em nome de todos ao expressar nossa solidariedade para com a família das vítimas e o incansável trabalho de resgate e reconstrução por parte das autoridades e das iniciativas particulares. A hospitalidade com que estamos sendo recebidos, ainda em circunstâncias tão funestas, constitui demonstração cabal de que os cariocas são dotados de forças incomuns para superar as adversidades do presente. Senhoras e senhores, O aprofundamento do intercâmbio entre sistemas jurídicos é uma realidade do nosso tempo. Antes restrita aos limites do território dos Estados soberanos, as operações do mundo do Direito assumem cada vez mais caráter transnacional. Além das evidentes implicações políticas, culturais, sociais e econômicas, a crescente interdependência entre as nações impõe agora duplo desafio aos Judiciários nacionais. De um lado, a freqüente interação com sistemas normativos de outras nações. De outro, a necessidade de construção de pontes entre sistemas jurídicos

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Pronunciamento Do Ministro Cezar Peluso

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  • PRONUNCIAMENTO DO MINISTRO CEZAR PELUSO NA ABERTURA DO SEGUNDO CONGRESSO DA

    CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE JUSTIA CONSTITUCIONAL

    O Supremo Tribunal Federal tem a honra de promover, em parceria com a Comisso de Veneza, este Segundo Congresso da Conferncia Mundial sobre Justia Constitucional. Em nome de ambos e do povo brasileiro, agradeo-lhes a todos terem, em escala surpreendente, aceitado nosso convite, e a oportunidade mpar de frutuosa troca de experincias. Sejam bem-vindos.

    Quiseram as foras incontrolveis do acaso que este Congresso se iniciasse, no Rio de Janeiro, no momento em que o Estado sofre com a brutal tragdia das inundaes. Tenho a certeza de que falo em nome de todos ao expressar nossa solidariedade para com a famlia das vtimas e o incansvel trabalho de resgate e reconstruo por parte das autoridades e das iniciativas particulares. A hospitalidade com que estamos sendo recebidos, ainda em circunstncias to funestas, constitui demonstrao cabal de que os cariocas so dotados de foras incomuns para superar as adversidades do presente.

    Senhoras e senhores,

    O aprofundamento do intercmbio entre sistemas jurdicos uma realidade do nosso tempo. Antes restrita aos limites do territrio dos Estados soberanos, as operaes do mundo do Direito assumem cada vez mais carter transnacional.

    Alm das evidentes implicaes polticas, culturais, sociais e econmicas, a crescente interdependncia entre as naes impe agora duplo desafio aos Judicirios nacionais. De um lado, a freqente interao com sistemas normativos de outras naes. De outro, a necessidade de construo de pontes entre sistemas jurdicos

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    autnomos, com o propsito de reforar e difundir o culto ao imprio universal da lei e segurana jurdica como condies elementares do mundo civilizado e do refinamento contnuo do esprito humano.

    Essas pontes materializam-se de diversas formas: referncias a julgamentos estrangeiros em decises de mbito nacional, cooperao entre tribunais e entre magistrados, intercmbio de professores e profissionais do Direito, interao em tribunais internacionais, alm de inmeros outros mecanismos de comunicao.

    O dilogo entre sistemas jurdicos nacionais tem um nome: diplomacia judicial. Est claro que com ele no me refiro poltica externa definida e executada pelos Poderes Executivos. Entendo a diplomacia judiciria como o conjunto das relaes e interaes entre cortes domsticas e estrangeiras, com vistas ao aprimoramento da atuao jurisdicional diante das novas realidades produzidas pela crescente interdependncia das naes.

    , no fundo, a tal este exerccio que nos dedicaremos neste Congresso, luz do temrio proposto.

    Peter Hberle j sintetizou o sentido conceitual ltimo da Constituio como veculo de auto-representao prpria de todo um povo, espelho de seu legado cultural e fundamento de suas esperanas e desejos (Teoria de La Constitucin como Cincia de La Cultura, 2000). Diante dessa idia nuclear, o conhecimento das estruturas jurdico-polticas fundamentais, bem como dos princpios e fins de outros Estados, passa a configurar elemento natural da rotina das cortes constitucionais.

    Como ressaltou recentemente o magistrado espanhol Jorge Carrera Domnech, as relaes e o dilogo internacional dos operadores da Justia

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    compem no apenas realidade indiscutvel, mas se evidenciam como necessidade para o fortalecimento dos sistemas da justia e, portanto, do Estado Democrtico de direito.

    A Comisso de Veneza completou 20 anos em 2010. No por acaso, suas duas dcadas de existncia coincidiram com a propagao e a cristalizao da democracia ao longo do planeta. No quadro da cronologia sugerida por Giuseppe de Vergottini (Diritto Costituzionale Comparato, 2004), alguns especialistas chegaram a descrever o processo de difuso da democracia aps o fim da Guerra Fria como a quarta onda do constitucionalismo da era moderna.

    O primeiro desses ciclos teria sido a vigncia das Constituies liberais na virada do sculo 18 para o 19, sob influncia dos ideais e das Cartas escritas inspiradas na independncia norte-americana e na Revoluo Francesa.

    A segunda fase teria sido integrada pelas Constituies que, ao reconhecer os chamados direitos econmicos e sociais, introduziram o Estado de Bem-Estar Social, em meados do sculo 20.

    Seguiram-se-lhe, finalmente, os textos constitucionais dos pases que alcanaram a independncia no processo de descolonizao do segundo ps-guerra.

    Confirmando a riqueza potencial do exerccio que iniciamos hoje, esses quatro ciclos constitucionais esto representados nesta sala.

    Adaptando-se s condies de cada pas, o Estado Democrtico de direito parece consolidar-se como o modelo dominante de organizao do poder em escala global. Nessa forma especfica de arranjo fundamental do Estado, democracia e Constituio legitimam-se mutuamente, definindo, nas palavras de Norberto Bobbio, um conjunto de regras de

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    procedimento (as ditas regras do jogo) para a formao de decises coletivas.

    Em contraste com um passado no muito remoto, democracia e constitucionalismo significam hoje os pilares fundamentais da maioria de nossos sistemas polticos, garantindo a legitimidade, tanto do processo decisrio, quanto dos resultados (output legitimacy, no jargo tcnico anglo-saxo) da vivncia do jogo poltico.

    Aps as turbulncias econmico-financeiras de 2008, o cenrio contemporneo segue marcado pelo signo da incerteza. Ainda persistem duvidas quanto profundidade do choque e eficcia das medidas adotadas para conter a maior crise dos ltimos 70 anos. Mas certas caractersticas do novo mundo em que viveremos j podem ser identificadas, algumas com repercusses profundas sobre o Direito e o Constitucionalismo.

    Em primeiro lugar, a crise parece ter revitalizado o papel dos Estados e das instituies jurdicas nacionais.

    Pensadores, como o prmio Nobel Amartya Sen, h anos ensinam que as instituies jurdicas so instrumentos do desenvolvimento, no resultados ou conseqncias desse processo.

    Um sistema legal slido garante a segurana jurdica e a rpida soluo de controvrsias. A democracia fundada no Estado de Direito assegura a transparncia das decises do governo, a accountability das autoridades e a eficiente alocao dos recursos pblicos e dos investimentos sociais. Instituies jurdicas funcionam, assim, como fator indutor de investimentos produtivos, com gerao de renda e melhoria das condies scio-econmicas.

    Essa lio ainda mais importante durante crises econmicas de grande magnitude. Programas severos de estabilizao econmica so ou

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    deveriam ser processos altamente polticos. preciso identificar os problemas a serem enfrentados de forma prioritria, avaliar os prejuzos potenciais que dependem do bom sucesso ou do fracasso das medidas adotadas e concluir um acordo social de distribuio de perdas ao definir o montante que ser socializado pelo oramento nacional e o valor a ser absorvido pelos agentes privados.

    Por sua capacidade de gerar consenso poltico apesar dos dissensos econmicos, culturais, partidrios, religiosos etc., o Estado de Direito ressurge como a melhor forma de engendrar as alternativas mais eficazes diante da turbulncia financeira. Nenhuma crise ser transposta sem a outorga, pelo Estado, da legitimidade poltica que se exerce no mbito de um dispositivo normativo com firmes fundamentos constitucionais.

    A experincia indica que pases com robustas estruturas constitucionais e democrticas conseguem encapsular a dimenso poltica dos conflitos econmicos na sede prpria a da representao poltica, com consensos temporrios e discusses permanentes e encontrar solues legtimas e eficientes para seus problemas.

    Como na famosa piada de Mark Twain ao ler notcias sobre sua prpria morte, parecem prematuras as previses de alguns tericos que viam minguar o papel tradicional das Constituies diante de fenmenos histricos como a globalizao, a perda de autonomia decisria dos governos, a unificao crescente dos mercados num nico sistema econmico de amplitude global (a economia-mundo de que falava Braudel) e o advento de novas ordens normativas ao lado daquela costumeiramente regida pelo Direito positivo.

    Antes, a crise contempornea parece dar novo relevo ao conceito, elaborado pelo professor portugus Jos Gomes Canotilho, de Constituio-dirigente. Trata-se, como se sabe, daquele tipo

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    particular de texto constitucional que, alm da estrutura organizatria do Estado, define tambm o que, como e quando os legisladores e os governantes devem fazer para concretizar diretrizes programticas e princpios constitucionais.

    Alm disso, o Estado Democrtico reaparece como o principal instrumento de garantia dos direitos fundamentais dos cidados. Bobbio j salientou os nexos evidentes entre democracia e direitos fundamentais no plano interno, e entre democracia e paz no mbito das relaes internacionais. Sem direitos fundamentais reconhecidos, protegidos e vivenciados, no h democracia; sem democracia, no existem condies mnimas para soluo pacifica de conflitos, nem espao para convivncia tica.

    Direta ou indiretamente, este Congresso analisar os dois principais remdios para conter o abuso do poder do Estado, ou doutros centros decisrios, e garantir os direitos fundamentais dos cidados. Um, a Justia Constitucional, ou seja, a subordinao incondicional de todo poder estatal ao Direito. O outro, o principio da separao de Poderes.

    Escusaria reconstituir a evoluo histrica do conceito de separao de Poderes, de Aristteles a Locke e Rousseau. Como fonte de inspirao para os debates que se seguiro, peo licena para recordar a conhecida passagem do Livro XI do Esprito das Leis, em que Montesquieu resume, de forma lapidar, toda a problemtica que nos ocupar neste Congresso:

    Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o poder legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se temer que o monarca ou o senado promulguem leis tirnicas, para aplic-las tiranicamente. No h liberdade, se o poder judicirio no est separado do legislativo e do executivo. Se houvesse tal

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    unio com o legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade seria arbitrrio, j que o juiz seria, ao mesmo tempo, legislador. Se o judicirio se unisse com o executivo, o juiz poderia ter a fora de um opressor. E tudo estaria perdido, se a mesma pessoa, ou o mesmo corpo de nobres, de notveis, ou de populares, exercesse os trs Poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a execuo das resolues pblicas e o de julgar os crimes e os conflitos dos cidados.

    Senhoras e senhores,

    Permitam-me falar um pouco sobre meu pas. O Brasil vive hoje um largo e intenso processo de transformao, com impactos positivos sobre a realidade social interna e sobre seu perfil de insero no plano internacional. Muitos fatores contriburam para essas mudanas. Um deles, porm, no tem merecido a devida ateno dos analistas. Refiro-me incindvel articulao entre a consolidao do Estado Democrtico de direito e o fortalecimento do Poder Judicirio, sob a gide da Constituio de 1988.

    Para alm de assegurar direitos e princpios fundamentais, a Carta de 1988 tem permitido a formulao de demandas por polticas pblicas pela maioria da populao e a adoo de medidas eficazes no interesse e tutela dessa maioria. A combinao desses dois ingredientes constitui a base de sustentao social da nossa Constituio democrtica (ou da nossa Democracia constitucional), que jamais contou com grau to elevado de legitimidade e to largo perodo de vigncia.

    As transformaes do contexto jurdico-institucional do Brasil podem ser atestadas em diversas dimenses.

    Em primeiro lugar, nenhum ator poltico, social ou econmico relevante persegue ou logra seus objetivos por meios que tenham como

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    conseqncia o estabelecimento de um sistema poltico no-democrtico.

    Ao depois, a grande maioria da populao avalia a democracia de forma altamente positiva.

    Por fim, tanto grupos governistas, como setores oposicionistas submetem-se todos Constituio e buscam satisfazer pretenses e resolver conflitos dentro das regras constitucionais. O Supremo Tribunal Federal e o Poder Judicirio vm contribuindo de forma decisiva para a consolidao da democracia brasileira. Com atuao firme e independente, o Judicirio, e sobretudo o Supremo Tribunal Federal, tem sido incansvel guardio do texto constitucional. E, como tal, o Judicirio , sem sombra de dvida, fiador da democracia brasileira.

    A nossa Constituio proclama em texto expresso, a independncia entre os Poderes. E, na mesma norma, prescreve tambm a convivncia harmnica entre eles. Independncia no quer dizer confronto sistemtico.

    No Brasil, sem abrir mo da independncia constitucional, nem descuidar do cumprimento de suas atribuies legais, os trs Poderes tm trabalhado em conjunto na busca de solues para problemas comuns. A Emenda Constitucional n. 45, que, em 2004, introduziu relevante reforma no sistema judicial brasileiro, importante fruto da cooperao entre os trs Poderes.

    No mesmo sentido, esperamos renovar, neste ano, os chamados Pactos Republicanos, designadamente o terceiro deles, em que os chefes dos trs Poderes se comprometem no esforo conjunto de aprimoramento do ordenamento jurdico e na modernizao da Justia.

    Alguns temas j esto em fase inicial de discusso, como, p.ex., a modificao da natureza dos recursos extraordinrios a tribunais

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    superiores, para efeito de acelerao do trmite das aes judiciais. Com estrito respeito a todas as garantias constitucionais, como o duplo grau de jurisdio, a ampla defesa, a coisa julgada e os demais princpios inerentes clusula do devido processo legal (due process of law), a proposta tende a eliminar, entre outros inconvenientes, manobras processuais que retardam o cumprimento de sentenas e impedem o exerccio de um dos direitos mais fundamentais dos cidados, alis objeto agora de ostensiva regra constitucional: o acesso a uma Justia rpida e eficiente.

    Estudamos tambm a criao, em nosso territrio, possivelmente com apoio de organismos internacionais, de uma universidade multidisciplinar que tenha por objeto a segurana publica e o desenvolvimento social. Nosso objetivo gerar massa de reflexes acadmicas para abrir novas perspectivas de ao no combate criminalidade e pobreza, com os recursos de diferentes reas de especializao.

    Na mesma linha de cooperao, o Judicirio brasileiro assinou, em dezembro passado, neste mesmo local, convnio com o governo do Estado do Rio de Janeiro e o Ministrio da Justia, para, completando e disseminando a atuao estatal, assegurar a presena de juzes e servios judicirios, ao lado de promotores de justia e de defensores pblicos, nas chamadas Unidades de Polcia Pacificadora (UPPs). Trata-se de experincia inovadora e poderosa nas virtualidades que tenta levar o Estado e a cidadania plena s favelas do Rio de Janeiro, sem prejuzo de se desenhar como eventual modelo de resposta s demandas das periferias das grandes capitais.

    Senhoras e senhores,

    Temos uma agenda de trabalho ambiciosa. Trataremos aqui de conceitos complexos: democracia, justia constitucional, separao de Poderes. Se tivesse que resumi-los em uma nica

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    palavra, a escolha no poderia ser outra: liberdade. Como disse certa vez o poeta Paul Valry, liberdade uma dessas terrveis palavras que tm mais valor do que sentido. Este Congresso pode ser descrito como uma celebrao desse valor.

    Muito obrigado.