Prólogo de Herbert Marcuse Ao 18 Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx
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Prlogo* de Herbert Marcuse a O 18 de brumrio de Lus Bonaparte de Karl
Marx
In: Boitempo Editoral, So Paulo, 2011; Traduo de Nlio Schneider
A anlise que Marx faz do processo de evoluo da Revoluo de 1848 para o
domnio autoritrio de Lus Bonaparte antecipa a dinmica da sociedade burguesa
tardia: a liquidao do seu perodo liberal, que se consuma em razo da sua prpria
estrutura. A repblica parlamentarista se transforma num aparato poltico-militar
encabeado por um lder carismtico, que tira das mos da burguesia as decises
que essa classe no consegue mais tomar e executar por suas prprias foras.
Simultaneamente, sucumbe, nessa fase, o movimento socialista: o proletariado sai
de cena (por quanto tempo?). Tudo isso j sculo XX ? mas sculo XX na
perspectiva do sculo XIX, que ainda no conhece o horror do perodo fascista e
ps-fascista. Esse horror exige uma correo das sentenas introdutrias de O 18 de
brumrio: os fatos e personagens da histria mundial que ocorrem, por assim
dizer, duas vezes, na segunda vez, no ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a
farsa mais terrvel do que a tragdia qual ela segue.
A repblica parlamentarista incorre numa situao em que s resta uma
escolha burguesia: Despotismo ou anarquia. Ela, naturalmente, optou pelo
despotismo. Marx conta a anedota do Conclio de Constana, segundo a qual o
cardeal Pierre dAilly respondeu aos defensores da reforma dos costumes: 0 nico
que ainda pode salvar a Igreja Catlica o diabo em pessoa e vs rogais por anjos1.
Hoje, nem mesmo o desejo de que os anjos intervenham continua na ordem do dia.
Mas como se chegou a essa situao em que a sociedade burguesa s pode ainda ser
salva pela dominao autoritria, pelo exrcito, pela liquidao e traio das suas
promessas e instituies liberais? Tentemos resumir o universal que Marx torna
manifesto em toda parte nos acontecimentos histricos particulares.
A burguesia tinha a noo correta de que todas as armas que havia forjado contra o
feudalismo comeavam a ser apontadas contra ela prpria, que todos os recursos de
formao que ela havia produzido se rebelavam contra a sua prpria civilizao, que
todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas
as assim chamadas liberdades civis e todos os rgos progressistas atacavam e
ameaavam a sua dominao classista a um s tempo na base social e no topo
poltico, ou seja, que se haviam tornado socialistas.2
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Essa inverso manifestao do conflito entre a forma poltica e o contedo
social da dominao da burguesia. A forma de dominao poltica a repblica
parlamentarista, mas, em pases com estrutura de classes evoludas e modernas
condies de produo, a Repblica s pode representar a forma de revoluo poltica
da sociedade burguesa e no a sua forma de vida conservadora3. Os direitos liberdade
e igualdade conquistados contra o feudalismo, que so definidos e instaurados nos
debates, compromissos e decises parlamentares, no se deixam circunscrever ao
mbito do Parlamento e dos limites por ele traados: eles so generalizados nas lutas e
nos interesses de classe extraparlamentares. A prpria discusso parlamentar na sua
forma liberal-racional (no sculo XX, ela tambm j foi descartada e transformada em
passado) transformou em ideias universais cada interesse, cada instituio social: o
interesse particular da burguesia tomou o poder como interesse geral da sociedade. Mas
a ideologia, tornando-se oficial, compele sua realizao. Os debates no Parlamento
tm continuidade na imprensa, nos bares e sales, na opinio pblica. O regime
parlamentarista submete tudo deciso das maiorias; como poderiam as maiorias que
esto alm do Parlamento querer no decidir? Se vs que estais no topo do Estado tocais
o violino, por acaso no esperais que os que esto l embaixo dancem?4 E os que
esto l embaixo so o inimigo de classe ou os no privilegiados da classe burguesa.
Aqui, liberdade e igualdade tm um sentido bem diferente ? um sentido que ameaa a
dominao estabelecida. A generalizao e a realizao da liberdade no so mais do
interesse da burguesia; isso j socialismo. Onde se originou essa dinmica nefasta?
Onde se pode capt-Ia? O espectro ameaador do inimigo parece estar em toda parte,
inclusive no prprio arraial. A classe dominante se mobiliza para liquidar no s o
movimento socialista, mas tambm as suas prprias instituies, que entraram em
contradio com o interesse da propriedade e do negcio: os direitos civis, a liberdade
de imprensa, a liberdade de reunio, o direito ao sufrgio universal foram sacrificados a
esse interesse para que a burguesia pudesse, sob a proteo de um governo forte e
irrestrito, dedicar-se aos seus negcios privados. Ela declarou inequivocamente que
estava ansiosa por desobrigar-se do seu prprio domnio poltico para livrar-se, desse
modo, das dificuldades e dos perigos nele implicados5. O Poder Executivo se converte
em poder autnomo.
Mas, como poder autnomo, ele precisa de legitimao. Ao promover a
secularizao da liberdade e da igualdade, a democracia burguesa pe em perigo o
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carter abstrato, transcendente, interior da ideologia e, desse modo, a
tranquilidade trazida pela diferenciao essencial entre ideologia e realidade ? a
liberdade e a igualdade interiores querem exteriorizar-se. Na sua ascenso, a
burguesia mobilizou as massas e reiteradamente as traiu e abateu. A sociedade
capitalista em desenvolvimento precisa contar de modo crescente com as massas,
integr-las na normalidade econmica e poltica, torn-las capazes de pagar e (at
certo ponto) inclusive de governar. O Estado autoritrio necessita de uma base
democrtica de massas; o lder deve ser eleito pelo povo, e ele o . O direito ao
sufrgio universal, que a burguesia nega de facto e depois tambm de iure, torna-se
a arma do Poder Executivo autoritrio contra os grupos renitentes da burguesia.
Em O 18 de brumrio, Marx oferece uma anlise exemplar da ditadura plebiscitria.
Naquela poca, quem alou Lus Bonaparte ao poder foram as massas dos pequenos
camponeses. O seu papel histrico no presente foi projetado pela anlise marxiana.
A ditadura bonapartista no conseguiu eliminar a misria do campesinato e este
descobre o seu aliado e lder natural no proletariado citadino, cuja misso a
subverso da ordem burguesa6. E vice-versa: nos camponeses desesperados, a
revoluo proletria recebe o coro sem o qual o seu canto solo se transforma em
lamento fnebre em todas as naes camponesas7.
O compromisso da dialtica marxiana com a realidade impede o seu
compromisso com o dogma: talvez em nenhuma outra parte a distncia entre a
teoria marxiana e a atual ideologia marxista seja to grande quanto no
reconhecimento da abdicao do proletariado em um dos anos mais esplndidos
de prosperidade industrial e comercial. A anulao do direito ao sufrgio universal
excluiu os trabalhadores de toda e qualquer participao no poder poltico. Ao se
deixarem conduzir pelos democratas frente a um acontecimento como esse e ao
esquecerem o seu interesse revolucionrio por fora de uma sensao momentnea
de bem-estar, eles renunciaram honra de ser um poder conquistador,
submeteram-se sua sina, comprovaram que a derrota de junho de 1848 os havia
incapacitado para a luta por muitos anos e que o processo histrico, num primeiro
momento, necessariamente voltaria a desenrolar-se por cima das suas cabeas8. J
em 1850, diante do Comit Central de Londres, Marx havia se voltado contra uma
minoria que, no lugar da viso crtica, colocava uma viso dogmtica e, no lugar
da avaliao materialista, colocava uma avaliao idealista da situao:
Enquanto ns dizemos aos trabalhadores: Vs deveis arrostar quinze, vinte,
cinquenta anos de guerras civis e entre naes para transformar no s as
condies imperantes, mas tambm a vs mesmos e capacitar-vos para a
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dominao poltica, vos dizeis, ao contrrio: Devemos chegar imediatamente ao
poder 9.
A conscincia da derrota e at do desespero fazem parte da teoria e da sua
esperana. A fragmentao do pensamento ? sinal da sua autenticidade frente
realidade fragmentada ? determina o estilo de O 18 de brumrio: contra a vontade de
quem a escreveu, a obra se torna alta literatura. A linguagem torna-se conceito da
realidade, o qual, mediante a ironia, resiste ao horror dos eventos. Diante da
realidade, nenhuma fraseologia, nenhum clich ? nem mesmo os do socialismo. Na
medida em que os homens traem, vendem a ideia da humanidade e chacinam ou
trancafiam os que lutam por ela, a ideia como tal deixa de ser pronuncivel; o
escrnio e a stira constituem a aparncia real da sua verdade. A sua figura se
encontra tanto na sinagoga socialista, que o governo instaura no Palcio de
Luxemburgo, quanto na carnificina das jornadas de junho. A mistura de estupidez,
ganncia, baixaria e brutalidade que perfaz a poltica deixa a seriedade sem fala. O
que acontece ento cmico: cada partido se apoia sobre os ombros do primeiro
que est sua frente at que este o deixa cair, ento se apoia sobre o seguinte.
Assim se procede da esquerda at a direita, do partido proletrio at o Partido da
Ordem. O Partido da Ordem encolheu os ombros, deixou os republicano-
burgueses carem e se jogou nos ombros das Foras Armadas. Ele ainda acreditava
estar sentado sobre os ombros destas quando, numa bela manh, deu-se conta de
que os ombros haviam se transformado em baionetas. Cada um desses partidos
bateu por trs naquele que avanava e se curvou para trs para apoiar-se naquele
que retrocedia. No admira que, nessa pose ridcula, cada um desses partidos tenha
perdido o equilbrio e, depois de ter rasgado as suas inevitveis caretas, estatelado-
se no cho fazendo cabriolas esquisitas.10
Isso cmico, mas a prpria comdia j a tragdia, na qual tudo jogado
fora e sacrificado. Tudo ainda sculo XIX: passado liberal, pr-liberal. A figura do
terceiro Napoleo, que Marx ainda acha ridcula, h muito j deu lugar a outros
polticos ainda mais temveis; as lutas de classe se transformaram e a classe
dominante aprendeu a dominar. O sistema dos partidos democrticos foi abolido
ou reduzido unidade que se faz necessria para no pr em risco a sociedade no
que se refere s suas instituies estabelecidas. E o proletariado integrou-se na
generalidade das massas trabalhadoras dos grandes pases industrializados, que
carregam e mantm o aparato de produo e dominao. Este fora a sociedade a
unir-se numa totalidade administrada, que mobiliza as pessoas e o pas em todas as
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dimenses contra o inimigo. Somente estando sujeita administrao total, que a
qualquer momento pode transformar o poder da tcnica no poder dos militares, a
mxima produtividade em destruio definitiva, essa sociedade capaz de se
reproduzir em escala ampliada e estendida, pois o inimigo no est s fora dela,
mas tambm dentro, como a sua prpria possibilidade: como pacificao da luta
pela existncia, como eliminao do trabalho alienado. Marx no chegou a antever
com que rapidez e quo prximo o capitalismo chegaria dessa sua possibilidade e
como as foras que o detonariam se converteram em instrumentos da sua
dominao.
Nesse estgio, a contradio entre foras produtivas e relaes de produo
se tornou to ampla e to manifesta que no mais podia ser dominada
racionalmente, no mais podia ser expressa. No h vu tecnolgico, no h vu
ideolgico que possa continuar a encobri-la. O nico modo de manifestar-se que lhe
resta a contradio nua e crua, a irracionalidade convertida em racionalidade; s
uma conscincia falsa pode ainda suport-la, uma conscincia que se tornou
indiferente prpria diferena entre verdadeiro e falso. Ela encontra a sua
expresso autntica na linguagem orwelliana (que Orwell com excessivo otimismo
projetara para 1984**). Nela, a escravido denominada liberdade, a interveno
armada, autodeterminao, tortura e bombas incendirias so conventionaI
techniques [tcnicas convencionais], o objeto sujeito. Nela, fundem-se poltica
epublicity [publicidade], negcio e filantropia, informao e propaganda, bom e
ruim, a moral e a sua eliminao. Em que antilinguagem a razo ainda pode se
expressar nesse caso? O que se encena a no mais uma stira, e, diante da
seriedade do terror, a ironia se transforma em cinsmo. O 18 de brumrio comea
lembrando Hegel: a anlise marxiana ainda estava comprometida com a razo no
histrica: dela e das suas manifestaes no mbito do ser-a a crtica extraiu a sua
fora.
Mas a razo com a qual Marx estava comprometido naquela poca tampouco
estava a: ela se manifestou somente na sua negatividade e nas lutas daqueles que
se sublevaram contra o existente, que protestaram e foram derrotados. A eles o
pensamento marxiano permaneceu fiel ? em face da derrota e contra a razo
dominante. E da mesma forma, na derrota da Comuna de Paris de 1871, Marx
manteve a esperana para os desesperanados. Nos dias atuais, em que a prpria
irracionalidade se converteu em razo, seu nico modo de ser a razo da
dominao. Assim, ela continua sendo a razo da explorao e da represso
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inclusive quando os dominados colaboram com ela. E, em toda parte, ainda h
aqueles que protestam, que se rebelam, que combatem. At mesmo na sociedade da
superabundncia eles esto a: os jovens, que ainda no desaprenderam a ver, a
ouvir e a pensar, que ainda no abdicaram, e aqueles que ainda so as vtimas da
superabundncia e que dolorosamente esto apenas comeando a aprender a ver,
ouvir e pensar. para eles que O 18 de brumrio foi escrito, para eles que ele ainda
no envelheceu.
Notas:
*Originalmente publicado como eplogo em Der achtzehnte Brumaire des Louis
Bonaparte (Frankfurt, Insel, 1965, p. 143-50). 1Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte (Berlim, verlag fr Literatur
und Politik, 1927, p. 124 [150]). 2Ibidem, p. 64s. 3Ibidem, p. 30. 4Ibidem, p. 655. 5Ibidem, p. 100. 6Ibidem, p. 121. 7Ibidem, p. 123. 8Ibidem, p. 695. 9Karl Marx, Enthllungen berden KommunistenprozeB zu Kln (ed. por Franz Mehring,
Berlim, 1914), p. 52. 10Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparle, cit., p. 445.
**George Orwell, 1984 (So Paulo, Companhia das Letras, 2009).