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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE/UFES MESTRADO EM EDUCAÇÃO
POLLYANA DOS SANTOS
“FAZENDO A CABEÇA”:
PROCESSOS DE (TRANS)FORMAÇÃO DE JOVENS
EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO
VITÓRIA 2008
POLLYANA DOS SANTOS
“FAZENDO A CABEÇA”:
PROCESSOS DE (TRANS)FORMAÇÃO DE JOVENS
EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Educação, na área de concentração História, sociedade, cultura e políticas educacionais. Orientador: Prof.ª Dr.ª Luiza Mitiko Yshiguro Camacho.
VITÓRIA 2008
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Santos, Pollyana dos, 1983-
S237f Fazendo a cabeça : processos de (trans)formação de jovens em
cumprimento de medida socioeducativa de internação / Pollyana dos
Santos. – 2008.
203 f. : il.
Orientadora: Luiza Mitiko Yshiguro Camacho.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação.
1. Juventude. 2. Infrações. 3. Socialização. I. Camacho, Luiza Mitiko
Yshiguro. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação.
III. Título.
CDU: 37
POLLYANA DOS SANTOS
“FAZENDO A CABEÇA”:
PROCESSOS DE (TRANS)FORMAÇÃO DE JOVENS
EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso
de Mestrado em Educação da
Universidade Federal do Espírito
Santo como requisito parcial para
obtenção de Graus de Mestre em
Educação.
Aprovada em 05 de março de 2008.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Luiza Mitiko Yshiguro Camacho Universidade Federal do Espírito Santo
Prof.ª Dr.ª Janete Magalhães Carvalho Universidade Federal do Espírito Santo
Prof. Dr. Lídio de Souza Universidade Federal do Espírito Santo
Prof.ª Dr.ª Olga Celestina da Silva Durand Universidade Federal de Santa Catarina
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................17
1 JUVENTUDES: DA VIOLÊNCIA À POLÍTICA DE ATENDIMENTO E AO
PROCESSO DE (TRANS)FORMAÇÃO...............................................................22
1.1 DE QUE JUVENTUDE ESTAMOS FALANDO?...................................................22
1.1.1 A juventude como construção sócio-cultural..............................................22
1.1.1-1 Discutindo a condição juvenil e as situações juvenis.....................................29
1.1.1-2 A condição juvenil atravessada pela situação de gênero..............................34
1.2 TECENDO CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA......................................36
1.2.1 A ética como “antídoto” para a violência.....................................................43
1.3 A POLÍTICA DE ATENDIMENTO A JOVENS EM CONFLITO COM A LEI NO
BRASIL.................................................................................................................48
1.3.1 A política de atendimento a crianças e adolescentes em conflito com a lei
no Espírito Santo – 1967-2007........................................................................53
1.4 PROCESSOS DE FORMAÇÃO: AS SOCIALIZAÇÕES, O HABITUS E AS
EXPERIÊNCIAS JUVENIS...................................................................................56
2 O CAMINHO DAS PEDRAS: SE FOSSE FÁCIL ENCONTRÁ-LO, TANTAS
PEDRAS NO CAMINHO NÃO SERIA RUIM .........................................................66
2.1 O CAMINHAR DA PESQUISA.............................................................................66
2.1.1 Da pesquisa idealizada à pesquisa realizada...............................................72
2.2 MAPEANDO O ESPAÇO DA PESQUISA ...........................................................76
2.3 QUEM SE ESCONDE ATRÁS DOS MUROS? OS SUJEITOS DA PESQUISA..82
2.3.1 As jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação.....87
2.3.2 As jovens falam sobre si mesmas.................................................................94
2.3.3 As jovens sob a ótica dos funcionários........................................................98
3 DO PRESCRITO AO VIVIDO: A PROPOSTA PEDAGÓGICA E O DIA-A-DIA DA
INSTITUIÇÃO DE INTERNAÇÃO............................................................................102
3.1 A PROPOSTA PEDAGÓGICA DA INSTITUIÇÃO.............................................102
3.2 O DIA-A-DIA EM UMA INSTITUIÇÃO DE INTERNAÇÃO.................................108
3.2.1 Sexta-feira .....................................................................................................114
3.2.2 As mudanças de rotina.................................................................................115
3.2.3 A rotina dos professores..............................................................................116
3.3 “TIRANDO CADEIA”...........................................................................................120
3.3.1 “Tirando cadeia” – brincadeiras e traquinagens........................................124
4 A VIDA POR DETRÁS DOS MUROS: AS EXPERIÊNCIAS JUVENIS, AS
VIOLÊNCIAS E OS PROCESSOS DE (TRANS)FORMAÇÃO..........................129
4.1 A CONDIÇÃO JUVENIL “DIXAVADA” NA SITUAÇÃO DE PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE........................................................................................................129
4.2 AS REDES GRUPAIS........................................................................................136
4.3 AS VIOLÊNCIAS PRATICADAS E SOFRIDAS PELAS JOVENS EM CONFLITO
COM A LEI..........................................................................................................142
4.4 “FAZENDO A CABEÇA”: OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO QUE OCORREM
DURANTE A INTERNAÇÃO...............................................................................145
4.4.1 As relações instituição-jovem, jovem-instituição e jovem-jovem............150
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: JUNTANDO AS PEDRINHAS................................154
6 REFERÊNCIAS ....................................................................................................161
APÊNDICES.............................................................................................................167
ANEXOS..................................................................................................................187
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Idade das jovens.......................................................................................84
Tabela 2 - Idade e tempo de internação das jovens em medida sócio-educativa de
internação...................................................................................................84
Tabela 3 - Relação idade-série escolar (anterior à internação) das jovens da
internação provisória..................................................................................85
Tabela 4 - Relação idade-série escolar (anterior à internação) das jovens da
internação...................................................................................................85
Às “minas de responsa”, as quais pude enxergar como rosas
para além dos espinhos
Florescer
Por: Sandra Mara Herzer (ex-interna da FEBEM)
Prantos a rolar
nas faces humanas já sem compreensão flores a secar
em terras perdidas sem amor irmão. E se um dia eu tivesse
o calor que aquece dores sem igual
e na noite encontrasse a miséria que nasce com o gosto do sal.
Sei que não compreendo sei que não mais entendo
as dores do mal. E se o céu me guardasse
das dores da face todas sem feitio.
Pintaria teu sangue e as flores do mangue
no meu céu de abril.
(HERZER, A Queda Para o Alto, 12ª edição, 1985)
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi construído por muitas mãos. Ao olhar para ele, enxergo um quebra-
cabeça em que cada peça representa alguém que partilhou comigo desse processo.
Assim, não poderia deixar de agradecer a todos os que participaram desta
“empreitada”.
À minha orientadora, professora Luiza Mitiko Yshiguro Camacho, agradeço,
primeiramente, pela firme condução deste trabalho, pelas orientações preciosas e
por seus ensinamentos. Meus agradecimentos se dirigem ainda ao trabalho
realizado por ela desde a iniciação científica, que dizem respeito não somente a
minha formação de pesquisadora, mas também de profissional da educação.
Aos professores Janete Magalhães Carvalho e Cláudio Luiz Zanotelli, pelas
importantes contribuições trazidas a este trabalho no Exame de Qualificação.
Aos professores das disciplinas cursadas no Programa de Pós-Graduação em
Educação PPGE/CE/UFES pelas aprendizagens e por suscitarem incômodos que
alimentaram em mim, e acredito que também em meus colegas, a busca por novos
conhecimentos. À professora Vânia Maria Monfroi e ao Programa de Pós-Graduação
em Política Social (Mestrado) por me acolher como aluna especial para cursar a
disciplina “Fundamentos Históricos, Teóricos e Metodológicos da Política Social”.
Aos funcionários do PPGE/CE/UFES pelo dedicado trabalho.
Ao professor Thimoteo Camacho, agradeço pela disponibilidade para discussões e
sugestões de leituras. Seus ensinamentos foram muito importantes para este
trabalho.
Aos colegas da turma 20 com os quais pude dividir conhecimentos da academia e
de vida, angústias e divertimentos. Em especial aos que me acompanharam com
maior proximidade, os colegas da linha de pesquisa, Maria das Dores, Charlini,
Marcos “Peu”, Sérgio, Daniel, Marluce e André, muito obrigada pelo apoio de todas
as horas.
Ao grupo de orientandos da professora Luiza, meus companheir@s de orientação:
Sérgio, Luanna e Alessandro, agradeço pelas observações e discussões, que muito
contribuíram para a pesquisa e, ainda, pelas conversas que não cabiam à vida
acadêmica, que ajudavam a descontrair.
À Capes, pela bolsa concedida entre 2006 e 2008.
À professora Solange Corrêa Harckbart, minha tia querida, pela revisão cuidadosa
desta dissertação.
Ao Vítor e à Carla, pela tradução do resumo desta dissertação. Obrigada pelo
carinho com que vocês me ajudaram.
Aos amigos e às amigas tão queridos(as) pelas alegrias compartilhadas, pelo apoio
e pelo carinho com que me ofereceram não só o ombro amigo, como também os
braços e as mãos quando preciso.
Agradeço à Luiza e ao Thimoteo, por me apresentarem um mundo novo, pelo
carinho construído por laços de amizade “extra-academia” e pelo tanto que
acrescentaram à minha formação pessoal.
Ao meu namorado, Flávio, com quem tenho aprendido nestes poucos meses de
convivência o doce sentido da palavra “companheirismo”.
À minha irmã, Fabíola, pela carinhosa companhia, pelos cuidados a mim
direcionados e pela sua presença em todos os momentos deste trabalho.
À minha mãe, Aida e ao meu pai, Dante, pelos ensinamentos de vida e pelo amor
incondicional, que não mede esforços e que vê nas realizações das filhas, suas
realizações. A vocês, mais esta etapa. À minha mãe, especialmente, minha gratidão
por me contagiar com a sua paixão pela profissão docente.
Meus agradecimentos finais se dirigem ao Instituto de Atendimento Sócio-Educativo
do Espírito Santo (IASES), que autorizou minha entrada como pesquisadora nas
unidades de internação. Aos(às) funcionários(as) da UNIS e da UFI: à direção da
Unidade Feminina de Internação (UFI), por autorizar a pesquisa naquele lócus; à
equipe técnica (gerente, sub-gerentes, psicólogos(as), assistentes sociais e
pedagogas), que se puseram à disposição para o desempenho do trabalho; aos(as)
assistentes de aluno, com quem convivi diariamente, sem o empenho dos quais não
teria sido possível circular por tantos espaços; aos(as) oficineiros(as) e aos(as)
professores, pela abertura de espaço para a realização da pesquisa e por me
acolherem em suas atividades de rotina, pelas contribuições trazidas a este trabalho
quando buscavam seus “jeitinhos” para que eu me aproximasse das/dos jovens,
pelos aprendizados frutos de nossas convivências diárias. E, em especial, às
“minas” e aos “manos” que participaram desta pesquisa, jovens com ricas vivências,
que permitiram ter suas histórias narradas neste estudo. Obrigada pela confiança
em mim depositada.
A liberdade das flores
Por: Tereza, 25/06/2007 (interna da unidade feminina pesquisada)
Nesse momento queria ser como uma flor Pois ela é livre e pode curtir o ar da natureza
Esse ar nos transmite o ar da liberdade
Quando paro pra lembrar que as rosas têm espinhos Lembro que o espinho machuca
Penso que posso me comparar a uma rosa Ela é bonita e machuca
Nós erramos e podemos acertar
Os espinhos machucam Mas se você souber ver a beleza da flor
Ela não vai te ferir
Assim como nós Com o tempo aprendemos a ver nossa beleza
Mas nem sempre as pessoas conseguem enxergar essa beleza Acabam vendo só os espinhos
Se a pessoa não se aproxima com medo dos espinhos
Jamais verá a beleza da flor!
Num jardim você encontra vários tipos de flores Umas são amarelas, outras são brancas e nem todas são iguais
Nem todas são perfeitas
Vejo que nem mesmo as flores são perfeitas!
As flores podem nos mostrar que erramos e podemos acertar Elas não são completamente perfeitas
Nós seres humanos também não Assim como as flores têm espinhos e beleza
Nós temos qualidades e defeitos
Na natureza há vida nova para as flores Ela nunca é a mesma
Sempre nasce algo de novo nela e em nós também
Podemos mudar a nossa personalidade Às vezes para pior, às vezes para melhor
Se nós não tomarmos cuidado os espinhos tomam conta de nós Por isso devemos mostrar a nossa beleza
Podar os espinhos E as pessoas verem realmente a nossa beleza!
RESUMO
Este estudo se volta para a análise dos processos de (trans)formação vivenciados
por jovens ao longo do cumprimento de medida socioeducativa de internação. Para
tal, buscam-se apreender experiências juvenis possíveis de serem vivenciadas por
jovens em situação de privação de liberdade bem como as relações estabelecidas
entre esses sujeitos e a instituição socializadora sob a guarda da qual se encontram.
Este trabalho tenta responder ao seguinte problema: Como ocorrem os processos
de formação das jovens que se encontram em privação de liberdade? Os sujeitos da
pesquisa são jovens, na faixa etária de 12 a 18 anos, em cumprimento da medida
socioeducativa de internação em uma unidade de internação feminina situada na
Região Metropolitana da Grande Vitória – ES. A pesquisa que inspira este estudo se
propôs a um trabalho quanti-qualitativo, cuja coleta de dados se deu por meio das
seguintes técnicas: consulta às atividades escolares produzidas pelas jovens;
consulta a documentos da unidade pesquisada; observação do cotidiano da
instituição; aplicação de questionários com questões abertas para assistentes de
aluno, equipe técnica, professores e jovens. As categorias teóricas trabalhadas são:
juventude, violência, socialização, habitus e experiência. Analisando a relação
instituição-jovem, pode-se observar que aquela se pauta na intenção de promover
uma socialização ou uma “re-socialização” das jovens a partir da incorporação das
normas e dos valores que as tornem “aptas” ao convívio social. Na relação jovem-
instituição, observa-se um movimento de resistência à função socializadora da
instituição. Percebe-se ainda um descrédito no que toca à escolarização como
caminho para uma melhoria de vida. Na relação jovem-jovem é possível notar a
construção de experiências entre as internas, ou seja, a existência de outros
processos de formação que acontecem no distanciamento das jovens em relação à
instituição. Esse descompasso entre a esfera institucional e o mundo juvenil
possibilita brechas para que esses processos se desenvolvam, nos quais a
instituição não consegue interferir e nos quais outras e novas redes de sociabilidade
são construídas.
Palavras-chave: Juventude. Medida socioeducativa de internação. Processos de
formação.
ABSTRACT
This is a study directed towards the analysis of the processes of (trans)formation
lived by youngsters while going through socio-educational internment. To accomplish
that, we tried to grasp juvenile experiences suitable for young people in a situation of
freedom deprivation as well as the relationships established between these subjects
and the institution in which they are confined. This work tries to answer the following
question: How the formation processes of young female interns develop? The
subjects of the research are young women, between 12 and 18 years of age, going
through socio-educational internment measures in an female socio-educational
internment unit situated in the “Great Vitória” metropolitan region, in the state of
Espírito Santo, Brazil. The research that is behind this dissertation proposed a
quantitative and qualitative work, whose data collection was conducted using the
following techniques: analysis of school work done by the youngsters; analysis of the
documents of the socio-educational internment unit; observation of the day-to-day
activities of the institution; questionnaires with open questions to student assistants,
technical staff, teachers and youngsters. The theoretical categories that were
considered were: youth, violence, socialization, habitus and experience. Analyzing
the relationship between institution and youngsters, we could observe that it is based
on the intention of promoting the integration or “re-integration” of the young women
into the society by the incorporation of rules and values that will make them “apt” to
social relations. In the institution/youngster relationship, we observed a resistance to
the re-integration function of the institution. We also noticed a lack of belief on
schooling as a way for improving life. In the youngster/youngster relationship it is
possible to notice the construction of experiences among the interns, that is, the
existence of other formation processes that emerge from the distancing of the interns
from the institution. This disparity between the institutional sphere and the juvenile
world create opportunities for these processes to develop and, since the institution is
not able to interfere, new socialization networks are constructed.
Keywords: Youth. Socio-educational internment measure. Formation processes.
17
INTRODUÇÃO
No cenário brasileiro, as políticas voltadas para crianças e adolescentes em conflito
com a lei flutuam entre o avanço representado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e as práticas contraditórias que se remetem, em sua maioria, aos
antigos Códigos de Menores. Assim, embora o Estatuto represente um marco na
garantia de direitos a esses sujeitos – principalmente quando se trata daqueles que
se encontram em conflito com a lei – as práticas nele prescritas parecem não ser
cumpridas em grande parte das instituições de internação.
Volpi (1999), Silva (2001), Soares (2005) consideram a existência de tais
incoerências no tratamento dispensado aos adolescentes em conflito com a lei.
Esses autores apontam ainda para a existência de estratégias de criminalização da
pobreza. Silva (2001, p.12) destaca a:
[…] Desarticulação das políticas, ações isoladas, órgãos públicos que não assumem seu papel, profissionais acuados pelo desemprego atuando em condições completamente insatisfatórias e desmonte dos serviços públicos, são algumas das principais causas de um atendimento, salvo raras exceções, que ainda se faz sob a ótica do Código de Menores.
Em 15 de março de 2006, ocorreu, em 21 estados da Federação e no Distrito
Federal, a “Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em
Conflito com a Lei”. A iniciativa partiu das Comissões de Direitos Humanos do
Sistema de Conselhos de Psicologia e das Comissões de Direitos Humanos e da
Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil, em colaboração com
entidades e profissionais de outras áreas. As constatações presentes no relatório
caminham para a confirmação das incoerências apresentadas pelos autores acima
citados:
[…] ainda que com relatos diferenciados, o retrato que emerge desta Inspeção Nacional é de uma realidade muito semelhante: unidades superlotadas, projetos arquitetônicos semelhantes a presídios, presença de celas fortes e castigos corporais, ausência ou precariedade dos projetos
18
sócio-educativos, desconhecimento por parte dos adolescentes de sua situação jurídica, procedimentos vexatórios de revista dos familiares por ocasião das visitas, adolescentes acometidos de sofrimento mental, dentre outros. (CONSELHO FEDERAL DA OAB, CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA , 2006, p.13)
Observa-se, em âmbito nacional e estadual, um aumento significativo do número de
jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Segundo a
matéria publicada no jornal “A Gazeta” de 15 de abril de 2007, 9.555 adolescentes1
cumpriam medida de internação no país no ano de 2002. Em 2006, esse número
aumentou para 15.426, como aponta o levantamento realizado pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O artigo ainda traz
outros dados sobre as instituições socioeducativas de internação no Brasil:
366. Esse é o número de estabelecimentos que abrigam adolescentes cumprindo pena em todo o país. Segundo o Conanda, pelo fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente não ser claro quanto à aplicação das medidas educativas cada estabelecimento adota um critério. 100% dos estabelecimentos atingiram a lotação máxima, sendo que vários deles já a ultrapassaram. O déficit de vagas para cumprimento de medidas socioeducativas em regime fechado no país é de 3.396. (Jornal “A Gazeta”, 15 de abril de 2007).
No Espírito Santo, o número de jovens sob medida de internação cresceu de 122, no
ano de 2002, para 406 em 2006, cumprindo internação em regime provisório2 ou
definitivo. Nessa mesma reportagem, consta que “no Estado, 26 municípios têm
adolescentes internados nas unidades do Instituto de Atendimento Sócio-Educativo
do Espírito Santo (IASES)” (Jornal “A Gazeta”, 15/04/2007).
1 O documento do SINASE detalha esse número:
“Destes, 90%(noventa por cento) eram do sexo masculino; 76% (setenta e seis por cento) tinham idade entre 16 e 18 anos; 63%(sessenta e três por cento) não eram brancos e destes 97% (noventa e sete por cento) eram afrodescendentes; 51%(cinqüenta e um por cento) não freqüentavam a escola; 90% (noventa por cento) não concluíram o Ensino Fundamental; 49%(quarenta e nove por cento) não trabalhavam; 81% (oitenta e um por cento) viviam com a família quando praticaram o ato infracional; 12,7% (doze vírgula sete por cento) viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% (sessenta e seis por cento) em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos, e 85,6% (oitenta e cinco vírgula seis por cento) eram usuários de drogas.” (CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, p.19). 2 A internação provisória corresponde ao período máximo de 45 dias ao qual o(a) jovem é
submetido(a) enquanto aguarda a sentença do juiz. Durante este tempo, o(a) jovem fica sob responsabilidade da instituição de internação. Em alguns casos, o tempo de internação provisória excede os 45 dias, dependendo do andamento das audiências às quais o(a) jovem deve comparecer e nas quais cada caso é estudado até que seja definida a sentença.
19
Tratar a questão dos(as) jovens em conflito com a lei divide opiniões que vão desde
a cobrança por medidas mais rígidas para autores de atos infracionais – e para este
caso a internação deveria assumir um caráter penitenciário – a posicionamentos em
defesa dos direitos a eles assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em 2007, um episódio ocorrido no Rio de Janeiro marcou o cenário nacional e
suscitou a retomada das discussões sobre os jovens em conflito com a lei: no dia 07
de fevereiro desse ano, durante um assalto, um menino de 6 anos foi arrastado por
mais de 7Km, preso ao cinto de segurança do carro que foi levado pelos assaltantes.
Esse fato trouxe à tona a discussão sobre a redução da maioridade penal. Em meio
a muita polêmica, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, no dia
26 de abril de 2007, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos “no caso de
tráfico de drogas, tortura, terrorismo e crime hediondo (como homicídio qualificado,
seqüestro, estupro e roubo seguido de morte)”3. A proposta de Emenda
Constitucional será votada ainda pelo plenário do Senado, em dois turnos. Em caso
de aprovação, será encaminhada para a Câmara.
A medida de internação é definida, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente,
como medida socioeducativa aplicada ao adolescente responsabilizado por prática
de ato infracional. De acordo com o Estatuto, “art.121- A internação constitui medida
privativa de liberdade sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e
respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. (BRASIL, 2003, cap.
VI, seção VI). A medida de internação somente será aplicada quando:
Art.122 I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III- por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta;
Sobre a “condição de pessoa em desenvolvimento”, Volpi (1999, p. 14) diz que:
A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento coloca aos agentes envolvidos na operacionalização das medidas sócio-educativas a missão de proteger […]. Esse processo se dá a partir de um conjunto de ações que
3 Jornal A Gazeta, 27 de abril de 2007.
20
propiciem a educação formal, profissionalização, saúde, lazer e demais direitos assegurados legalmente.
No art. 123 do referido Estatuto, parágrafo único, fica estabelecida a obrigatoriedade
do desenvolvimento de atividades pedagógicas durante o período de internação,
inclusive nas instituições de internação provisória.
Este trabalho, inicialmente, visava investigar os impactos da internação nos projetos
de futuro de jovens em cumprimento de medida socioeducativa na Unidade
Masculina de Internação do Espírito Santo. No entanto, por razões que serão a
explicitadas no capítulo 2, os sujeitos desta pesquisa foram jovens que se
encontravam na Unidade Feminina de Internação do Espírito Santo.
As mudanças dos sujeitos e do local da pesquisa incitaram outros questionamentos
que surgiram a partir da observação do cotidiano: como era ser jovem em privação
de liberdade? Elas se reconheciam como tal? Como elas eram percebidas pelos
funcionários da Instituição? De que juventude se estaria falando? O que “fazia a
cabeça” das jovens durante a internação? Qual era o sentido das atividades
socioeducativas para as adolescentes? O desenrolar da coleta4 de dados empírica
conduziu ao seguinte problema: Como ocorriam os processos de
(trans)formação das jovens que se encontravam em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
O objetivo geral que orienta este trabalho visa a analisar os processos de
(trans)formação das jovens que estão em cumprimento de medida socioeducativa de
internação. Como objetivos específicos têm-se: identificar experiências juvenis
possíveis de serem vivenciadas pelas jovens em situação de privação de liberdade;
investigar as concepções que os sujeitos desta pesquisa têm sobre a juventude;
analisar as concepções que as jovens internas têm a respeito de si mesmas;
analisar as concepções que os funcionários da Unidade pesquisada têm sobre as
jovens internas; identificar os processos de (trans)formação ocorridos durante o
processo de internação e analisar como ocorrem os processos de (trans)formação
das jovens sob medida socioeducativa de internação.
4 Ver capítulo 2.
21
Esta dissertação está dividida em quatro capítulos. O primeiro se destina à reflexão
teórica sobre a juventude como construção sócio-cultural, sobre a condição juvenil e
a situação juvenil. Posteriormente, são tecidas considerações sobre a violência e
sobre o discurso da ética para combater esse fenômeno. Este capítulo ainda abarca
um breve resgate histórico da política de atendimento a jovens em conflito com a lei
no Brasil e no Espírito Santo. Finalizando este bloco, traçam-se discussões sobre as
socializações, analisando-se como os processos de formação ocorrem nas
sociedades atuais, no cenário da pós-modernidade.
No segundo capítulo, são narrados os caminhos percorridos no desenrolar da
pesquisa, desde os contatos iniciais com a instituição e a definição de um trabalho
de pesquisa a ser realizado até a modificação das estratégias de coletas empíricas
de dados, por força dos imprevistos do dia-a-dia e das exigências de obediência à
hierarquia institucional. Isso resultou nas mudanças dos sujeitos, do espaço da
pesquisa e do tema estudado. Apresenta-se o locus investigativo, a Unidade
Feminina de Internação do Espírito Santo e os sujeitos investigados, que
compuseram dois grupos basicamente: de um lado, as jovens em cumprimento de
medida socioeducativa de internação e de outro, os funcionários responsáveis por
elas.
No terceiro capítulo, há um aprofundamento no estudo da proposta pedagógica da
instituição e do seu cotidiano. Observa-se a existência de um descompasso entre o
prescrito e o vivido, no qual se analisam as rotinas, os imprevistos, as redes de
sociabilidade, ou seja, a vida dentro de uma instituição de internação.
O quarto e último capítulo trata de como a juventude experimenta a privação de
liberdade e busca-se identificar as estratégias de sobrevivência utilizadas pelas
jovens, construídas a partir da experiência. Dentre elas, observa-se a tentativa de
manter experiências juvenis que as aproximem da condição juvenil vivenciada em
liberdade. Os processos de formação vivenciados pelas internas são aqui
analisados. É possível destacar a existência de uma relação de distanciamento entre
as jovens e a instituição, produzindo brechas nas quais acontecem as
aprendizagens mais significativas para as jovens, mas também onde se reproduzem
práticas consideradas não educativas e indesejáveis à formação do sujeito.
22
1 JUVENTUDES: DA VIOLÊNCIA, À POLÍTICA DE ATENDIMENTO
E AO PROCESSO DE (TRANS)FORMAÇÃO
[A juventude] é curtir a liberdade que os pais começam a nos dar,
sair “zuar” com os amigos, ir a escola estudar e se divertir com os colegas.
É mostrar para as pessoas que já temos mentalidade o bastante para fazer certas coisas.
Ser jovem é ter capacidade para trabalhar e se manter, cultivar suas próprias coisas, seus próprios objetos,
ter responsabilidade com si próprio, por ter afeto, carinho, amor, esperança em tudo que faz.
E ter respeito com pai, mãe e os mais velhos por exemplo. Eu acho que o essencial para o jovem é isso.
5
1.1 DE QUE JUVENTUDE ESTAMOS FALANDO?
1.1.1 A juventude como construção sócio-cultural
O entendimento da juventude enquanto construção sócio-cultural pressupõe que as
noções sobre ela variam de acordo com os contextos social, histórico, econômico e
cultural em que são formuladas. De acordo com os autores que partilham dessa
visão – como, por exemplo, José Machado Pais (1993), Marilia Sposito (2001/ 2003),
Juarez Dayrell (2001/ 2003/ 2005), Luiza Mitiko Yshiguro Camacho (2002/ 2004/
2007), Paulo César Rodrigues Carrano (2000), Levi e Schimitt (1996) – a juventude
não se traduz como um conjunto social homogêneo e único, compreendendo a
diversidade das culturas juvenis.
A juventude vista como um grupo autônomo com características próprias passou a
ser assim entendida a partir do século XIX, quando problemas referentes a essa
faixa etária emergiram e passaram a ser percebidos numa dimensão mais ampla,
5 Registro feito por Tereza em atividade escolar de Língua Portuguesa.
23
delineando-se o que se poderia chamar de uma “cultura adolescente”. Segundo
José Machado Pais (1993, p.31):
[…] a noção de juventude adquiriu uma certa consistência social a partir do momento em que, entre a infância e a idade adulta, se começou a verificar o prolongamento – com os conseqüentes „problemas sociais‟ daí derivados – dos tempos de passagem que hoje em dia continuam a caracterizar a juventude, quando aparece referida a uma fase de vida.
Esse autor ressalta que a juventude pode ser compreendida a partir de duas
correntes: a corrente geracional e a corrente classista. A corrente geracional a
compreende como uma fase da vida, tendenciando a uma homogeneização
traduzida nas gerações. Admite-se a existência de uma cultura juvenil, a qual se
afirmaria pela oposição às outras gerações mais velhas.
Assim, de acordo com essa corrente, a dinâmica das relações estabelecidas entre
as gerações pode se caracterizar pela continuidade ou pela descontinuidade
geracional. A primeira seria percebida na interiorização – sem grandes rupturas –
das normas, crenças, valores, transmitidos às gerações mais novas por meio dos
processos de socialização ocorridos nas instituições como a família e a escola –
“socialização contínua”. A descontinuidade geracional se faria notar no confronto e
no questionamento à cultura transmitida pelas gerações adultas, ocasionando o que
Pais denominaria “fracionamentos culturais”. Segundo essa corrente, “as
descontinuidades intergeracionais estariam na base da formação da juventude como
uma geração social” (PAIS, 1993, p.38).
Vista pela unidade, os problemas, as experiências, as culturas, seriam
compartilhadas por todos os jovens de uma geração. Eis aí uma crítica a essa
corrente que é ressaltada por Pais: ao se tomar a juventude como uma “entidade
homogênea”, como uma “categoria etária”, estende-se a todos os membros
características percebidas em apenas um grupo juvenil. Ignoram-se ainda, as
questões de classe, de gênero, de raça, etnia, de origem urbana ou rural.
A corrente classista, por sua vez, compreende a juventude a partir das relações de
classe. Sendo assim, as culturas juvenis seriam definidas como culturas de classes,
provenientes das relações antagônicas de classe. “Por outras palavras, as culturas
24
juvenis seriam sempre „soluções de classe' a problemas compartilhados por jovens
de determinada classe social”. (PAIS, 1993, p.48).
Segundo essa corrente, o trajeto percorrido pelos jovens até a fase adulta seria
sempre perpassado por desigualdades sociais, fossem elas na divisão sexual do
trabalho ou na condição social.
Dessa forma, as manifestações culturais dos diferentes grupos juvenis seriam
traduzidas como formas de contestação a uma ordem dominante. As culturas juvenis
assumiriam uma conotação política.
Embora essa corrente entenda que existem diferentes formas de manifestações
juvenis, tendo em vista a questão das classes sociais, essa compreensão acaba por
empregar uma “homogeneidade cultural ou de modos de vida” a jovens de uma
mesma classe social. Pais (1993, p.50) alerta ainda que “os processos que afetam
os jovens não podem ser unanimemente compreendidos como simples ou exclusiva
resultante de determinações sociais e posicionamentos de classe”.
Buscando estabelecer uma relação entre as duas correntes, esse autor propõe que
se realize um exercício de enxergar a juventude a partir de dois eixos: um tomando-
a em seu aspecto aparentemente unitário, que seria vê-la como uma fase da vida; e
outra, compreendendo sua diversidade em diferentes contextos sociais.
Para Margulis (1996), dois fatores caracterizam a juventude: a moratória social e a
moratória vital. A primeira é entendida como um período permitido ao jovem para
vivenciar a sua juventude sem assumir os mesmos compromissos que os adultos.
Os jovens teriam um tempo livre, socialmente aceito, para vivenciar diferentes
experiências. No entanto, quando o desemprego e a crise levam a esse tempo livre,
o que se caracterizaria para as classes médias e para a elite em uma moratória
social, traduzir-se-ia para aqueles oriundos das classes populares em um
sentimento de frustração, de impotência, de culpabilização, podendo conduzi-los à
marginalidade.
25
Uma vez que o conceito de moratória social não contempla todos os jovens em
diferentes classes sociais, Margulis trabalha, de maneira complementar, a noção de
moratória vital. Segundo este autor, a moratória vital diz respeito ao aspecto
energético do corpo próprio da juventude. Essa moratória é comum a todos os
sujeitos juvenis e se identifica com a sensação de imortalidade. “Tal sensação e tal
forma de se situar no mundo se somam à falta de temeridade de alguns atos
gratuitos, com condutas autodestrutivas que colocam em risco a saúde que os
jovens julgam inesgotável, com a audácia e o lançar-se em desafios e, com a
exposição a acidentes, a excessos e a superdoses” (CAMACHO, 2004, p.332). 6
Ainda sobre as diferentes formas de se conceber a juventude, Pais (1993) destaca
que ela pode ser percebida sob dois pontos de vista antagônicos: o primeiro admite
uma idéia positiva de juventude, enxergando no jovem o “futuro da nação” e outros
chavões que exaltam o seu dinamismo e a sua vitalidade. O segundo ponto de vista
diz respeito à idéia de juventude como problema social. Segundo Camacho (2004,
p.331),
[Os jovens] ora são considerados como “problemas sociais” porque estão envolvidos em problemas de inserção profissional, em problemas de drogas, em problemas de violência, em problemas de delinqüência, em problemas com a escola, em problemas com pais, em problemas de gravidez precoce, dentre tantos outros reconhecidos socialmente como sendo juvenis.
Sobre a compreensão da juventude como problema, Bango (2003) destaca alguns
pressupostos ou enfoques que fundamentaram as políticas de juventude na América
Latina, a saber:
a) a incorporação dos jovens no processo de modernização (década de 1950) –
dava ênfase às políticas educativas, vendo no sistema educativo
possibilidades de promoção da mobilidade social. O Estado também se
encarregava de oferecer boas oportunidades de tempo livre aos jovens, como
forma de controle, para que ele fosse utilizado adequadamente;
6 Sobre as moratórias social e vital conferir, ainda, Camacho (2007).
26
b) o enfoque do controle social (décadas de 1960 e 70) – emergiu com o
objetivo de controlar, suprimir, repreender as mobilizações dos setores juvenis
que haviam adquirido uma maior participação social;
c) o enfoque do “jovem problema” (década de 1980) – considerava como
setores juvenis beneficiários das políticas de caráter compensatório, aqueles
excluídos socialmente, que apresentavam condutas delinqüentes e que eram
identificados como um fator de insegurança nacional;
d) o enfoque dos jovens como capital humano (década de 1990) – começou a
generalizar um novo modelo de políticas juvenis, preocupado com a
incorporação dos jovens excluídos no mercado de trabalho.
No Brasil, segundo Sposito (2003), apesar da marcante concepção do jovem como
problema social, encontram-se transitando nas políticas de juventude diferentes
concepções dominantes em períodos anteriores. Tais concepções vão desde a
defesa de uma integração dos jovens nos moldes da modernização, observada na
década de 1950, até a compreensão dos segmentos juvenis como capital humano,
percebida nos programas implantados no Brasil na década de 1970, encontrando-se
também o caráter compensatório voltado para os jovens marginalizados.
Sposito e Carrano (2003) destacam que, no caso das ações que envolvem a
juventude, é preciso considerar dois aspectos importantes:
De um lado a idéia de que qualquer ação destinada aos jovens exprime parte das representações normativas correntes sobre a idade e os atores jovens que uma determinada sociedade constrói, ou seja, as práticas exprimem uma imagem do ciclo de vida de seus sujeitos […] A conformação das ações e programas públicos não sofre apenas os efeitos de concepções mas pode, ao contrário, provocar modulações nas imagens dominantes que a sociedade constrói sobre seus sujeitos. […] Por outro lado, é no âmbito de uma concepção ampliada de direitos que alguns setores da sociedade brasileira têm se voltado para a discussão dos adolescentes e jovens, cuja expressão maior reside no Estatuto da Criança e do Adolescente […] (SPOSITO e CARRANO, 2003, p.3-5)
Sobre a associação: “jovens e problemas”, Sposito (2003) recorre a Dubet:
27
Traçadas sobretudo a partir da associação jovens e problemas, as ações operaram campos de significados que permitem duplo deslizamento semântico possível e, portanto, práticas, políticas diversas: os problemas que atingem os jovens que expõem uma série de demandas e necessidades não atendidas que resultariam no reconhecimento do campo de direitos e de formulação de políticas globais para a juventude; ou de forma mais recorrente, os problemas que atingem os jovens transformam-se nos problemas da juventude e, portanto, é o sujeito jovem que se transforma no problema para o sociedade. Nesse caso, os programas buscariam, de certa forma, minimizar a potencial ameaça que os jovens trazem para a vida social, alguns deles considerados a “nova classe perigosa” que precisa estar sob um campo forte de controle. (DUBET, 1987, apud SPOSITO, 2003, p. 67).
Tais considerações a respeito das diferentes formas de conceber as juventudes se
relacionam às noções sobre a juventude quando tomada em um sentido geral. No
que se refere aos jovens em conflito com a lei, as associações estabelecidas entre
juventude, risco social e violência se acentuam e estigmas são construídos. Nesse
caso, não se designa o sujeito por jovem, mas por “infrator”, “interno”, “menor”,
“delinqüente”, “marginal”. Tende-se a enxergar a infração praticada pelo jovem em
lugar do sujeito responsável pela ação.
A própria definição do que venha a ser “marginal” assume outra conotação, como
afirma Maria Lúcia Violante (1985, p.21):
A marginalidade é o produto de uma forma de articulação necessária e intrínseca de um modo específico de acumulação capitalista. […] As zonas urbanas têm baixa capacidade de absorver a força de trabalho em relações de produção tipicamente industriais. […] Marginal é o tipo de inserção no mercado de trabalho destes segmentos da população trabalhadora. […] Marginal não é um traço de personalidade como a psicologização do miserável faz querer.
Segundo a autora, considera-se discurso dominante a marginalidade do “menor”
como produção de seu mundo próximo, vistos as carências sociais e educacionais
que dele fazem parte, sem, no entanto, considerar os fatores que produzem essa
situação, excluindo do âmbito de análise a estrutura social. Da mesma forma que se
produz e justifica a marginalidade, constrói-se o estereótipo social do “marginal” e do
personagem “anti-social”, projetando-se sobre ele, conseqüentemente, o estigma
que o discrimina dos demais. (VIOLANTE, 1985).
Sobre a estigmatização, Luiz Eduardo Soares afirma:
28
Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ela ou ele um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa. […] O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos. (SOARES, 2004, p. 132-133)
Este autor aborda a invisibilidade a que estão sujeitos os jovens de classes
populares. Sendo assim:
A invisibilidade é uma carreira que começa cedo, em casa, pela experiência da rejeição, e se adensa, aos poucos, sob o acúmulo de manifestações sucessivas de abandono, desprezo e indiferença, culminando na estigmatização. (SOARES, 2004, p.138)
Segundo Soares (2004), o estigma torna o sujeito mais invisível uma vez que não
permite ver quem ele é, enxergando-se apenas as imagens caricatas formadas para
ele. Da mesma forma, tornam-se invisíveis os fatores econômicos, sociais, políticos
que envolvem a problemática de jovens em conflito com a lei. É sobre esses sujeitos
invisíveis que se perpetua o estigma do “marginal”, do “infrator”, do “anti-social”, do
“delinqüente”, e que se erguem as instituições responsáveis pela integração social
desses jovens – que a própria sociedade exclui ao torná-los invisíveis. Tais
instituições não garantem a visibilidade dos sujeitos, pelo contrário, reforçam-na uma
vez que ocultam o que a sociedade não quer ver, pois lhe imprime risco. De acordo
com Soares (2005, p.145), na sua compreensão sobre as instituições,
Na verdade, quem já freqüentou uma dessas instituições “socioeducativas” logo compreenderá o que são as tais medidas “socioeducativas”. Elas nada têm de minimamente parecido com o sentido elevado da expressão que os legisladores cunharam […] se o objetivo é afastar o jovem do crime, seria preciso oferecer oportunidades para a mudança.
Para Volpi (1999, p.9),
Os adolescentes em conflito com a lei […] não encontram eco para a defesa de seus direitos, pois, pela condição de terem praticado um ato infracional, são desqualificados enquanto adolescentes. A segurança é entendida como fórmula mágica de “proteger a sociedade (entende-se as pessoas, o seu patrimônio) da violência produzida por desajustados sociais que precisam ser afastados do convívio social, recuperados e reincluídos”. Reconhecer no agressor um cidadão parece ser um exercício difícil e, para alguns, inapropriado.
Sendo assim, na discussão proposta por este trabalho, procura-se não eximir o
jovem de suas responsabilidades pelos atos infracionais cometidos, mas, pretende-
29
se alcançar uma análise mais ampla, que envolva a compreensão dos contextos em
que esses sujeitos se situam. Questiona-se, também, a situação em que eles se
encontram nas instituições socioeducativas, que têm parecido reafirmar a condição
“marginal” atribuída ao jovem em conflito com a lei. As análises referentes à
instituição também procuram não se direcionar para o “denuncismo”. Incorrer nessa
prática significaria estigmatizá-la, tornando invisíveis aqueles profissionais que dela
fazem parte e que também se indignam com a estrutura institucional. No entanto,
não há como ignorar as condições precárias encontradas na instituição, assim como
as práticas que ferem os direitos humanos.
1.1.1-1 Discutindo a condição juvenil e as situações juvenis
Abad (2003) destaca a importância de estabelecer a distinção entre a condição
juvenil e a situação juvenil para o entendimento da juventude. A condição juvenil
seria a forma como a sociedade constitui e significa esse momento do ciclo da vida.
A situação juvenil, por sua vez, corresponderia aos diferentes percursos
experimentados pela condição juvenil a partir dos mais diversos recortes: classe,
gênero, etnia, origem rural ou urbana. Em outras palavras, segundo Sposito (2005,
p.89), a situação juvenil significaria como jovens de classes e origens diversas
experimentam a condição juvenil, enquanto que esta última seria uma construção
histórico-social.
Segundo Helena Abramo (2005), Miguel Abad (2003), Marilia Sposito (2005/2003), a
condição juvenil esteve (e está) relacionada a uma etapa do ciclo de vida marcada
pela transição entre a infância e a idade adulta na qual se destaca o papel das
instituições de transição, em especial da escola.
Abad (2003) aponta as mudanças ocorridas na maneira de se compreender a
condição juvenil ao longo dos anos:
Anteriormente, a condição juvenil estava sobretudo mediada pelas relações de incorporação à vida adulta e à aquisição da experiência, caracterizando-
30
se a juventude, em certas camadas sociais, como a etapa vital entre a infância e a maturidade, determinada pela vinculação com as instituições de transição ao mundo adulto. Por outro lado, hoje dificilmente se pode negar que os jovens, inclusive os do meio rural, têm-se convertido numa categoria social, interclassista e comum a ambos os sexos, definida por uma condição específica que demarca interesses e necessidades próprias, desvinculadas da idéia de transição de suas instituições responsáveis. […] (ABAD,2003, p.23)
Abramo (2005, p.41) destaca o aparecimento de duas situações que se constituíram
elementos básicos para a caracterização da condição juvenil: 1) estar livre das
obrigações do trabalho; 2) dedicar o tempo livre ao estudo em instituição escolar.
Nessa concepção, o significado social atribuído à condição juvenil era estabelecido a
partir da noção de moratória social e, sendo assim, encontrava-se restrita aos jovens
de classes médias e das elites, e, em princípio, aos rapazes.
Segundo a autora, algumas mudanças históricas imprimem à condição juvenil um
foco mais amplo de análise, observando-se uma “extensão da juventude” na: 1)
duração da etapa do ciclo de vida; 2) abrangência do fenômeno para vários setores
sociais; 3) multiplicidade de instâncias de socialização; 4) elementos que constituem
a experiência juvenil bem como os conteúdos da noção socialmente estabelecida.
Tais alterações provocam mudanças no conteúdo da moratória, a partir da qual a
“experiência juvenil passa a adquirir sentido em si mesma e não somente como
preparação para a vida adulta” (ABRAMO, 2003, p. 43).
Abad (2003), analisando as mudanças sofridas na sociedade e que interferem na
significação da condição juvenil, aponta três fatores que reconhecem e valorizam a
condição juvenil: 1) o encurtamento do período da infância e o alongamento da
juventude para além dos 30 anos; 2) as dificuldades de as sociedades atuais
assegurarem o trânsito linear entre família-escola-emprego, o que acarreta uma
transição mais prolongada e descontínua entre jovens e adultos; 3) “a emergência
de novas formas de aldeia global, com forte influência dos meios de comunicação”
(p.24), constituindo uma cultura juvenil, com características quase universais,
heterogênea e inconstante, posicionando-se em paralelo, em substituição ou em
contradição à transmissão cultural da escola, da família e do emprego assalariado.
31
O autor em questão também sinaliza para a ampliação da noção de moratória social
a fim de fazer frente a dois grandes desafios: de um lado, os jovens das classes
populares que gozam de um tempo livre que não é legitimado e valorizado pela
família e pelos pares, que os leva na direção da marginalidade e da exclusão; de
outro lado, os jovens das classes sociais que podem atrasar a sua inserção no
mundo adulto. Esse período se alonga ou pela exigência de conhecimentos cada
vez mais complexos para inserção social ou pela falta de garantia de absorção no
mundo do trabalho.
Para Abad (2003, p.25), ambos são considerados jovens, embora em situações
juvenis diferentes e compartilham de uma condição juvenil marcada por um
processo de desinstitucionalização7. Esse processo se relaciona à crise das
instituições responsáveis pela transmissão de uma cultura adulta hegemônica, “pela
perda de sua eficácia simbólica como ordenadoras da sociedade”. Assim, segundo
esse autor, este espaço “passa a ser ocupado por um maior desdobramento da
subjetividade juvenil, a mesma que se realiza num tempo liberado, embora não
ainda plenamente agenciada nem recuperada como possibilidade de liberação”. A
desinstitucionalização, para Abad, oferece uma “conquista da liberdade” que
possibilita ao jovem desenvolver-se de forma mais autônoma, com menor controle
dos adultos. Nesse contexto, a nova condição juvenil se caracteriza:
[…] por uma forte autonomia individual (especialmente no uso do tempo livre e do ócio), pela avidez em multiplicar experiências vitais, pela ausência de grandes responsabilidades de terceiros, por uma rápida maturidade mental e física, e por uma emancipação mais precoce nos aspectos emocionais e afetivos, ainda que atrasada no econômico, com o exercício mais precoce da sexualidade. (ABAD, 2003, p.25)
Sposito (2005, p.92) chama atenção para o cuidado quanto à defesa da
“desinstitucionalização” citada por Abad. De acordo com a autora, considerar esse
7 Abad (2003, p.23-24) enumera, superficialmente, algumas causas que se relacionam ao processo
de desinstitucionalização: 1) “A crise da família tradicional e a multiplicação de novas formas de família. […] as relações paterno-filiais de hoje se fundamentam mais na tolerância, na negociação e na sedução, do que no rígido padrão de autoridade paternal”; 2) “O esgotamento da mobilidade e da ascensão social que se depositou na expansão da educação secundária e universitária, vinculada à modernização industrial, à economia em crescimento e à ilusão de pleno emprego”; 3) “a emergência massificada, plural e intensa de novos atores sociais, entre eles jovens, que não encontrando acomodação nos velhos formatos institucionais, têm pressionado políticas sociais”; 4) “a dissolução das identidades ligadas à idéia de Nação ou Território, com o desajuste das crenças e valores tradicionais, numa nova realidade que pôs em marcha a globalização e impossibilitou o projeto populista de uma reprodução estável e ordenada de uma cultura „nacional‟ para as novas gerações”.
32
processo apenas como um fator positivo pode levar a uma “desconsideração à
aspiração por escolaridade”, bem como a uma desconsideração aos sentidos
atribuídos à instituição escolar e à relevância das redes familiares para muitos
jovens.
Essa autora aponta para uma outra compreensão de “desinstitucionalização” trazida
por François Dubet, que a elabora ao estudar as instituições na França, como
escolas, por exemplo, e “sua crise e mutação a partir do que ele chama de
„programa institucional‟, nascido na modernidade” (SPOSITO, 2005, p.93). Esse
programa se concretizaria a partir de uma relação entre o indivíduo e as instituições,
na qual fica clara a função socializadora destas na formação dos sujeitos.
A crise de tal “programa institucional” percebida por Dubet, e retomada por Sposito,
aponta para
[…] a existência de um processo de mutação que transforma a própria natureza da ação socializadora da escola, fazendo que parte importante do processo seja considerada tarefa ou ação do próprio sujeito sobre si mesmo (DUBET, 2002). Esse processo de mutação da instituição escolar não elimina, mas transforma a natureza da dominação, pois „obriga os indivíduos a se construírem „livremente‟ nas categorias da experiência social‟ que lhes são impostas. […] a dominação impõe aos atores as categorias de suas experiências, categorias que lhes interditam de se constituir como sujeitos relativamente mestres deles mesmos […] o dominado é convidado a ser o mestre de sua identidade e de sua experiência social ao mesmo tempo em que é posto em situação de não poder realizar esse projeto‟. (DUBET, 2002, p.356, apud, SPOSITO, 2005, p.95).
A partir de então, Sposito (2005, p.95-96) propõe analisar a experiência juvenil sem
deslocá-la das instituições tradicionais de transição. A autora destaca três vertentes
que devem orientar o estudo da experiência juvenil no Brasil:
1) A primeira chama atenção para a necessidade de entendimento dos
“processos de mutação” pelos quais passam as instituições
tradicionais, como a família e a escola e, nesse contexto, como se
estabelecem as relações entre os jovens e aquelas;
33
2) A segunda se remete ao fato de que é preciso considerar que a família
e a escola, atualmente, dividem terreno na formação das “novas
gerações” com “outros processos socializadores” das juventudes;
3) A terceira aponta para a necessidade de investigar os sentidos
atribuídos pelos jovens “às suas relações com essas agências para
além de uma submissão aos modelos normativos e hegemônicos de
reprodução cultural ou de uma situação meramente instrumental e
distanciada de seu modo de funcionamento.” (SPOSITO, 2005, p. 96).
Se, por um lado, o cuidado lançado por Sposito ao termo “desinstitucionalização” se
faz pertinente, tanto no que se refere à atenção que se deve dispensar às
instituições tradicionais de transição – como a escola e a família – quanto ao que se
remete à compreensão da “crise” ou das “mutações” sofridas por elas; por outro
lado, as considerações trazidas por Abad, no que diz respeito à idéia de
“desinstitucionalização”, também se fazem necessárias para compreensão da
condição juvenil:
A primeira, por alertar que a defesa por uma desinstitucionalização que aponte para
ações mais livres dos jovens em relação às instituições de formação possa ter um
efeito negativo, no sentido de perder-se o desejo e a luta por escolarização. Ainda
por atentar para a permanência da transmissão de valores e normas sociais, por
intermédio de tais “agências socializadoras”, no entanto, com outras formas de
atuação, fazendo crer em uma autonomia plena dos jovens nas suas tomadas de
decisões.
A segunda, por apresentar o processo de desinstitucionalização como a “crise das
instituições pela perda de sua eficácia simbólica como ordenadoras da sociedade”, o
que não deixa de ser uma realidade. Abad (2003) ainda contribui nas análises sobre
as culturas juvenis que se enriquecem nessa aparente liberdade frente à perda de
domínio e do controle por parte da escola e da família sem, contudo, perder de vista
os problemas que o excesso de “liberdade” ou que a extensão da juventude podem
gerar quando não há políticas públicas que englobem tais situações.
34
1.1.1-2 A condição juvenil atravessada pela situação de gênero
Embora a situação de gênero não seja tema central para este trabalho, não há como
desconsiderá-la, uma vez que ela está presente de maneira marcante para as
jovens sujeitos desta pesquisa. Com respeito à questão de gênero, a realidade
presenciada trouxe a necessidade de discutir a reprodução da dominação
masculina.
Assim como a noção sobre juventude se constrói histórico-social-culturalmente, o
conceito de gênero é estruturado da mesma forma. Compreende-se que as pessoas
são biologicamente diferenciadas nos sexos feminino e masculino, entretanto, os
processos por meio dos quais os sujeitos se assumem mulheres e homens, são
construídos socialmente. Segundo Saffioti (1987, p.8):
A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papéis que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma que escolhe os terrenos em pode atuar o homem.
Esses processos socioculturais são, por sua vez, naturalizados e tomados como
características biológicas inerentes ao sexo masculino ou feminino. Passa-se a
atribuir como característica “naturalmente feminina” ser mais emotiva, por exemplo,
enquanto se reconhece como comum à “natureza masculina” ser racional. Essa
“naturalização dos processos socioculturais” contribuem para a manutenção de
mitos da “superioridade masculina” e da “inferioridade feminina” e dimensionam a
ocupação desses sujeitos na vida social em posições socialmente reconhecidas
como mais ou menos importantes, se destinadas a homens e mulheres,
respectivamente (SAFFIOTI, 1987; CAMACHO, 1997/2002; BOURDIEU, 1999).
Luiza Camacho (2000, p.32) recorre a Thimoteo Camacho (1997) para destacar
duas dimensões a serem consideradas na discussão de gênero:
[…] a primeira seria aquela do gênero como elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças perceptíveis entre os sexos, e a segunda, a do gênero como forma básica de representar as relações de
35
poder em que as representações dominantes são apresentadas como naturais e inquestionáveis.
Bourdieu (1999), assim como os demais autores citados, trabalha a questão da
incorporação dos papéis sociais de “mulher” e “homem”. Para ele isso acontece a
partir da incorporação de habitus próprios no processo de socialização. Segundo
este autor:
A diferença entre os sexos parece estar „na ordem das coisas‟, como se diz por vezes para falar do que é norma, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas […], em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU, 1999, p.17)
Como para Bourdieu as relações entre os gêneros são assimétricas, há juntamente
com o processo de incorporação do habitus, a reprodução da dominação masculina.
Ou seja, a socialização de homens e mulheres se orientam a partir de uma visão
androcêntrica do mundo e em conformidade com a lógica do “masculino dominante”
e do “feminino dominado”.
O autor continua seu pensamento afirmando que esses esquemas simbólicos são
introjetados no próprio corpo:
O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação estritamente performativa de nominação que oriente e estruture as representações; ele se completa e se realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero […] para produzir este artefato social que é o homem viril ou uma mulher feminina […]. (BOURDIEU, 1999, p.33)
É preciso ainda considerar que, sendo o conceito de gênero construído histórica,
social e culturalmente ele também é atravessado pelas situações de classe social,
raça/etnia, pela origem urbana ou rural, e, para o caso específico das jovens
pesquisadas, pela situação de privação ou não de liberdade.
36
1.2 TECENDO CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA
As considerações sobre a violência não são centrais para este trabalho. No entanto,
elas se fazem fundamentais à medida que os sujeitos da pesquisa são jovens
autoras e também vítimas de violências.
Definir o fenômeno da violência não é uma tarefa fácil. Há diferentes compreensões
a respeito dessa temática que variam desde a compreensão da violência enquanto
agressão física a formas de violência não física. Camacho (2003, p.183) destaca
dois motivos que proporcionam essa variabilidade de conceitos: o entendimento
diferenciado da violência em diferentes períodos históricos e a visão da violência de
acordo com os valores e a ética de cada pessoa.
Segundo Marilena Chauí (2003, p.41),
[…] para o conceito de violência observaremos que, etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e, de acordo com os dicionários, significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por alguém (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico, contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e pelo terror.
Na tentativa de não ver diluído o que há de específico no que comumente se define
por violência, Giddens assume o conceito de violência que se restringe ao uso da
força para causar dano físico a outra pessoa, considerando que a violência em
diferentes contextos sociais está relacionada a estruturas de poder (CAMACHO,
2003, p.184).
Camacho (2003) considera que a violência, em especial no espaço escolar, não se
restringe apenas a danos físicos, como também a danos morais ou emocionais.
Para discorrer sobre a violência não-física a autora traz o pensamento de Norbert
Elias, segundo o qual, a violência na forma não física existe mesmo em espaços
considerados pacificados, livres de atos violentos. Ela se encontraria de forma
37
modificada, como violência econômica, em conseqüência da imposição de um grupo
sobre o outro, possibilitada pela monopolização dos meios de produção.
Wieviorka (1997) afirma que a violência na contemporaneidade precisa ser
analisada à luz de um novo paradigma que possibilite a compreensão da mesma no
estágio do capitalismo vivenciado atualmente, a globalização. Segundo o autor:
[…] tanto como realidade histórica quanto como representação coletiva e como objeto de análise e de reflexão para as ciências sociais, a violência contemporânea parece modelar um novo paradigma. Do ponto de vista teórico, esse paradigma pede que a violência seja analisada no interior de um espaço teórico complexo, capaz de integrar o campo do conflito e o da crise. Indo mais além, ampliando-se, de um lado, no sentido de levar em consideração o sujeito, impossível, frustrado ou que funciona fora de qualquer sistema ou de normas, e de outro levando em consideração condutas que mais além da crise são reveladoras de uma verdadeira desestruturação […] (WIEVIORKA, 1997, p.14)
Wieviorka propõe quatro níveis de análise para compreender a violência. Baseando-
se em Pierre Hassner, define três níveis – o sistema internacional, os Estados, as
mutações societais – e acrescenta um quarto nível, o individualismo contemporâneo.
A compreensão da violência a partir do nível do sistema internacional supõe a
análise de dois fatores: a) o fim da Guerra Fria, a partir da qual se desenrolam
tensões mundiais em torno da utilização de armas nucleares no confrontamento
entre países e reações extremadas entre os Estados (em especial no ex-bloco
soviético) devido ao deslocamento das “energias” centradas na disputa bipolar entre
EUA x URSS8; b) a globalização da economia e o aprofundamento das
desigualdades sociais e da exclusão. O autor destaca ainda, como conseqüência
desse estágio do capitalismo, a fragmentação cultural, o retraimento identitário,
8 É importante ressaltar que, se no contexto da guerra fria o eixo das tensões estava na temeridade
do mundo capitalista frente ao avanço e consolidação do socialismo, nos dias atuais, os EUA escolhem outros inimigos para justificar suas ações bélicas, voltando-se contra os mulçumanos “no combate ao terrorismo, em defesa da paz mundial”. Compreendendo que a indústria bélica sustenta grande parte da economia estadunidense e que a conquista de países estratégicos, com territórios ricos em reservas de petróleo e outras riquezas minerais, representam acumulação de riquezas por parte dos Estados Unidos, não se pode perder de vista o caráter econômico que movimenta, ainda hoje, grandes disputas internacionais. Os EUA deslocam o eixo “capitalismo X socialismo” para “não-terroristas X terroristas” e encontra nessa justificativa um motivo para que a sua economia e a de demais países capitalistas que com eles dividem esse raciocínio mantenham o ritmo de atividades lucrativas. Segundo a matéria publicada na revista Caros Amigos (Ano X, Nº 114, setembro, 2006, p.26), no contexto neoliberal observa-se a privatização dos conflitos armados. Empresas particulares prestam serviços militares em guerras, trabalhando por encomenda de governos, em especial do estadunidense, movimentando cerca de 100 bilhões de dólares por ano, oferecendo não só produtos de guerra como também serviços de guerra.
38
contribuindo para a “mundialização da violência, com suas formas fragmentárias”. A
análise do nível do Estado pressupõe que,
Se o Estado territorial clássico se desagrega, a forma de violência que está mais diretamente ligada a ele, a guerra entre Estados, passa a ter, então, também menos importância, em benefício de outras formas, guerras civis, massacres interétnicos, por exemplo. Essas formas de violência figuram entre as mais maciças e espetaculares do mundo contemporâneo. (p. 21)
O terceiro nível para análise abarca as mutações societais. O autor discorre sobre
as transformações nos modos de produção capitalista em que as idéias de
progresso e crescimento econômico da sociedade, partilhadas durante as décadas
de 50 e 60, se dissolvem no desemprego estrutural, na concentração de renda e no
agravamento das desigualdades sociais vivenciados no neoliberalismo com a
reestruturação produtiva. Assim, Wieviorka considera que a ligação existente entre
as mudanças sociais e a violência não acontecem de maneira imediata e
automática. Para o autor,
O desemprego e a pobreza, inclusive quando eles traduzem uma queda social bruta, como nos países do antigo império soviético, não se transformam imediatamente ou diretamente em violências sociais […] mas sobretudo alimentam frustrações que transitam eventualmente por um nacionalismo exacerbado, ou um apelo ao retorno dos comunistas. E, se alimentam violências coletivas, estas são mais racistas e anti-semitas, mais ligadas a referências nacionalistas do que propriamente sociais. (1997, p.22)
No quarto e último nível, estaria em foco o individualismo contemporâneo, o qual
Wieviorka considera apresentar duas faces que podem ser complementares ou
ainda opostas. No seu entender, o sujeito quer, por um lado, participar da
modernidade e usufruir dos bens que ela oferece. Por outro lado, o indivíduo quer
ser reconhecido enquanto sujeito produtor de sua existência. O autor identifica um
tríplice feixe de condições à violência: a) a racionalidade estratégica pode utilizá-la
como um recurso; b) a necessidade de identificar-se com uma identidade coletiva
pode resultar em um fanatismo ou “sectarismo belicoso”; e, c) os “processos de
fusão de sentido, em que a dupla impossibilidade de funcionar como consumidor e
como produtor de sua própria existência termine por resolver-se através da invenção
de um sentido imaginário” (1997, p.24) considerado tanto mais violento como a
inexistência de meios concretos que se traduzam em práticas.
39
Wieviorka diz que a violência deve ser estudada a partir da compreensão de uma
dimensão ampla que possa abarcar alguns desses níveis de análise. Ele traz uma
diferenciação entre a violência objetiva e a violência subjetiva e considera que:
A tarefa de uma sociologia da violência é mostrar as mediações ausentes, os sistemas de relações cuja falta ou o enfraquecimento criam o espaço da violência: se essas mediações, se esses sistemas de relações parecem mais escondidos, incompreendidos ou ignorados […] porque a sociedade em questão […] se recusa a reconhecê-los e debatê-los, então a violência deve ser analisada antes de tudo como uma representação, como a subjetividade dos grupos.[…] se é possível estabelecer empiricamente que há um déficit de atores e de mediações através de sistemas de relações, a violência constitui […] uma forte realidade objetiva. (WIEVIORKA, 1997, p.25)
Otavio Ianni (2003) também se remete à globalização ao discorrer sobre as raízes
da violência, buscando traçar a provável existência de “relações diretas e indiretas
entre globalização, urbanização e violência” (p.25). O autor considera o momento
atual do capitalismo como um “novo ciclo” da revolução burguesa, marcada pelo
“globalismo” sob a “regência” do neoliberalismo. Como conseqüência, verifica-se no
cenário mundial: a) a “destruição criativa”, ou seja, a criação de novas técnicas de
trabalho e produção que demandam a obsolescência de técnicas de trabalho e
produção, mercadorias, ocupações e profissões; b) o aumento do contingente
urbano, bem como as transformações das formas de sociabilidade nas cidades; c) a
dissociação Estado-Sociedade.
Ianni considera possível traçar um paralelo entre a “voracidade urbana”, o
desemprego estrutural e o índice mais elevado de violência nas cidades,
[…] na medida em que a cidade se torna maior e mais complexa, por suas diversidades e desigualdades, acomodações e tensões, hierarquias e tensões, produzem-se e reproduzem-se as condições de ruptura, conflito e violência […] Na cidade concentram-se as mais poderosas forças sociais, com as quais se articulam e desenvolvem as estruturas de dominação e apropriação, bem como as tensões e contradições com as quais germinam os movimentos sociais e os protestos dos grupos e classes sociais subalternos. (IANNI, 2003, p.26)
O pensamento do autor é necessário, no entanto, deve-se fazer uma ressalva a fim
de não caracterizar o meio urbano como sendo o único em que transcorrem
violências, dissociando-se também a relação “pobreza-violência” – como nos aponta
Camacho (2003), Chauí (2003), Wieviorka (1997) –, dando destaque, contudo, ao
40
forte papel do capitalismo em acentuar as desigualdades e injustiças sociais, das
quais depende para manter seu funcionamento lucrativo.
Ianni (2003) traz à discussão o marcante papel da indústria cultural na produção e
reprodução da violência, a partir da exaustiva exposição de documentários, filmes,
programas em que ações violentas são o principal produto à venda, contribuindo
para a manutenção de uma “cultura da violência”.
Erly Euzébio dos Anjos (2003) também aponta a mídia como reforço da “banalização
da violência” na contemporaneidade. Esse termo surgido na própria mídia relaciona-
se à insignificância atribuída a crimes e homicídios, cometidos sem razão aparente.
Para o autor, é possível que essa noção tenha sido criada no intuito de explicar o
aumento da criminalidade urbana, transmitindo-a como algo passageiro, como uma
onda de violência e não como “parte integrante da sociedade e da quebra de
sociabilidade das relações sociais” (p.66).
A idéia de banalização da violência é destinada comumente a jovens residentes em
periferias urbanas e torna invisível as práticas de violências entre os jovens de
classes médias e elites, bem como torna invisível o sujeito que pratica a violência ou
o “criminoso”,
[…] por trás de um ato individual, impensado ou „quase mecânico‟, do assaltante […] deve existir uma série de fatores sociais e estruturais. São relações marcadas por uma desigualdade, mas que se aproximam, muitas vezes, através de um contrato social com base num trabalho injusto, paternalista e por um distanciamento espacial, segregado. (ANJOS, 2003, p.68)
O autor recorre a V. Robert Merton para fazer a distinção entre o caráter
individualista dos criminosos e o comprometimento social representado pela
transgressão. Esta última possibilita a alteração de normas, o questionamento de
valores, a mudança da ordem social. O criminoso, por sua vez, objetiva ganho
“próprio e privado, às custas do interesse público”9.
9 Ao que Wieviorka (1997) denomina “privatização da violência”.
41
O medo gerado a partir do aumento e da “dramatização da criminalidade” suscita,
como reação, a exigência, por parte da sociedade, da “eliminação dos bandidos”. “A
idéia de eliminar os bandidos está implícita numa outra idéia correlata: a de
naturalizar a questão social da criminalidade” (Anjos, 2003, p.70). A naturalização da
questão social, segundo o autor, embasou as idéias racistas, fascistas e nazistas.
Um questionamento levantado pelo autor diz respeito à identificação do “bandido”.
“Quais são as diferenças entre a criminalidade comum, que tanto chama a atenção
da opinião pública e o „crime organizado do colarinho branco‟?”. Observa-se uma
espécie de criminalização da pobreza, como aponta Wacquant em “As prisões da
miséria” (2001). Traça-se o estereótipo do criminoso: homem, pobre e negro. As
poucas ações de caráter social desenvolvidas sob esta ótica se revestem de um
cunho policial, a fim de controlar e conter as possíveis ações criminosas dos pobres.
Se por um lado, observa-se uma “cultura da violência” e a “banalização da
violência”, fortemente mantidas pela mídia, por outro lado, nota-se a negação da
violência no Brasil sob o mito da “não-violência essencial do povo brasileiro”,
conforme argumenta Marilena Chauí (2003). A violência que, atualmente, não pode
mais ser disfarçada seria, de acordo com esse discurso, combatida por meio de um
retorno à ética.
O discurso de “retorno à ética” contribui para a sustentação do mito10 da não-
violência do povo brasileiro. Ou seja, a manutenção de uma idéia, de acordo com a
qual o povo brasileiro é essencialmente pacífico e bom e que a violência é algo que
é externo, que não está presente nas relações tecidas na sociedade e que, assim
como uma doença, uma epidemia, é um mal que tende a passar. É nesse sentido
que a violência vigente seria combatida por meio de um retorno à ética. Chauí
destaca os mecanismos ideológicos de manutenção desse mito:
10
Marilena Chauí utiliza-se do conceito de mito e não de ideologia por considerar “que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. Em suma, a ideologia é a expressão temporal de um mito fundador que a sociedade narra a si mesma” (2006, p.346).
42
1) o da exclusão: produz-se a idéia de que a nação brasileira não é violenta,
atribuindo-se a violência aos outros, que não fazem parte da nação, mesmo
que nasçam e vivam no Brasil;
2) o da distinção: a violência é entendida como algo passageiro, “acidental”,
como uma epidemia, uma onda de violência que será superada, pois, a
“essência” do povo brasileiro não é violenta;
3) o jurídico: esse mecanismo reduz a violência ao campo da delinqüência e da
criminalidade, definindo-se como ataque à propriedade privada. Nesse
entender, delineia-se o “agente violento” – o pobre – e justifica-se a ação
violenta da polícia por defender “o „nós‟ do „eles‟”;
4) o sociológico: esse mecanismo recorre ao “fenômeno temporário da anomia,
no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram
substituídas por novas” (2003, p.51). Isto seria ocasionado pela transição
para a modernidade e pelo conseqüente aumento da população urbana em
virtude das migrações. A violência passa a ser atribuída aos “pobres e
desadaptados”;
5) o da inversão do real: esse mecanismo se mantém “graças à produção de
máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores
violentos como se não fossem violentos” (2003, p.51). Assim, como exemplo,
a autora traz a questão do machismo, interpretado não como uma violência,
mas como necessidade que se coloca à “proteção natural à natural fragilidade
feminina”; outro exemplo: a repressão aos homossexuais como forma de
proteção natural aos valores da família;
Marilena Chauí (2003) aponta para a existência de uma não compreensão da
violência como algo que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras,
naturalizando práticas de violência como discriminações raciais, sexuais,
desigualdades econômicas, sociais, culturais, corrupção, exclusões econômicas,
políticas e sociais. Assim, a discussão sobre o mito de uma sociedade brasileira
não-violenta, pacífica, livre de preconceitos nos leva à ilusão de que a solução para
43
o fenômeno da violência é simples: trata-se de lutar por um retorno à ética e de
afastar aqueles sujeitos indesejáveis, “os violentos”.
A ação das instituições socioeducativas se direciona para o afastamento da violência
mediante o discurso de formação de sujeitos éticos, que tenham valores morais, que
sejam solidários, etc. – e no caso da instituição pesquisada, que sejam, inclusive,
cristãos.
Aqui, é necessário abrir um parênteses para introduzir a discussão realizada por
Marilena Chauí (2003/1995) a respeito do discurso do retorno à ética para o
combate à violência, questionando, ainda, o que se define por “ética” e por “agente
ético”.
1.2.1 A ética como “antídoto” para a violência
Para Chauí (2003, p.40), a ética procura definir a figura do agente ético e de suas
ações bem como, o conjunto de noções (ou valores) que balizam o campo de uma
ação que possa se considerar ética. A ética é, para a autora citada, uma construção
histórico-cultural.
As diferentes formações sociais e culturais criam para si e para o convívio em grupo
conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e
interpessoais, de comportamentos sociais a fim de que se possa “garantir a
integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social”
(CHAUÍ, 1995, p. 336).
Ao iniciar a discussão sobre a ética, a autora apresenta, também, considerações
sobre senso moral e consciência moral, juízo de fato e juízo de valor.
Marilena Chauí (1995, p.335).conceitua como senso moral a expressão de nossos
sentimentos – ódio, orgulho, vaidade, frustração, alegria, ambição... – e de nossas
ações. A consciência moral se “manifesta” em situações que exigem uma decisão,
44
que precisa ser justificada para nós e para os outros, a qual implica em
conseqüências, que por sua vez, exigem de nós a responsabilidade para assumi-las.
O senso moral e a consciência moral se referem, portanto, a valores, sentimentos,
intenções, decisões, ações relacionados ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade
segundo a estudiosa.
Quanto aos juízos de fato e de valor, Chauí apresenta a seguinte distinção: a) o
juízo de fato é aquele que diz “o que as coisas são, como são e por que são”; b) o
juízo de valor, diferente do juízo de fato, que apenas constata o que acontece, avalia
os acontecimento, sentimentos, ações, etc., como “boas, “más”, “desejáveis” ou
“indesejáveis”.
Temos, então, juízos éticos de valor e juízos éticos normativos. Os primeiros dizem o
que é o bem e o mal. Já os segundos, apontam para que sentimentos, ações,
comportamentos se devem manter para que se atinjam o bem e a felicidade.
Segundo Marilena Chauí (1995, p.336):
Frequentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles, neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos […] A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.
Chauí define que o campo ético é constituído por “dois pólos internamente
relacionados”, a saber: o agente ou sujeito moral e os valores morais, ou virtudes
éticas. Além desses dois pólos, encontram-se também como constituinte do campo
ético, os meios para que o sujeito realize seus fins.
O agente ético é definido por Chauí como um ser “racional e consciente que sabe o
que faz, livre e responsável”. A ação ética, por sua vez, só pode ser assim
considerada se,
[…] realizar a natureza racional, livre e responsável do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma intersubjetividade. A subjetividade e a intersubjetividade éticas são ações e a ética existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos por laços e formas de sociabilidade criados também pela ação humana em condições históricas determinadas. (CHAUÍ, 2003, p. 41)
45
O sujeito ético caracteriza-se, então, por saber distinguir o que é certo e o que é
errado. Marilena Chauí (1995, p.337) expõe de forma mais detalhada as
características do agente ético, as quais são reproduzidas a seguir:
a) o sujeito ético precisa ser consciente de si e dos outros, ou seja, ele tem que
ser capaz de reconhecer no outro também um sujeito ético;
b) o sujeito ético precisa ser dotado de vontade. Isso significa, conforme
mencionado anteriormente, que o agente ético necessita ter a capacidade de
controlar e orientar desejos, impulsos, sentimentos, saber decidir entre as
alternativas possíveis;
c) o agente ético deve ser responsável, ou seja, assumir a ação praticada, bem
como as suas conseqüências para si e para os outros;
d) o agente ético deve ser livre, isto é, precisa ter a capacidade de dar a si
mesmo as regras de conduta, autodeterminar-se;
Sendo assim, espera-se do agente ético a “atividade” no lugar da “passividade”. O
ser passivo, como o próprio nome sugere, é aquele que se deixa “governar e se
arrastar por seus impulsos […] não exercendo sua própria consciência, vontade,
liberdade e responsabilidade” (p.338). O sujeito ativo, ao contrário, se caracteriza
por conseguir controlar suas inclinações e paixões, e por ser capaz de discutir “o
sentido dos valores e dos fins estabelecidos”; por indagar “se [os valores] devem e
como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores
aos existentes” (p.338). Em resumo, pode ser considerado um indivíduo autônomo,
cuja vontade não se submete nem à vontade dos outros, nem aos próprios instintos
e paixões.
No que se refere aos valores, a ética é definida a partir da cultura e da sociedade e,
neste ponto, não há como rejeitar as condições históricas e políticas, econômicas e
culturais da ação moral. Assim, a ação ética pode variar de uma sociedade para
outra ou na história de uma mesma sociedade, no entanto, ela estará relacionada a
46
uma diferença intrínseca entre condutas, segundo “o bem”, ”o justo” e “o virtuoso”
(CHAUÍ, 2003).
Quanto ao outro constituinte do campo ético – o meio –, a autora destaca que,
seguindo uma postura ética, nem todos os meios se justificam para atingir os fins.
Segundo Chauí (1995, p.339), “A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa
moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e
social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes”.
Conforme a autora, a violência está em oposição à ética, uma vez que trata os
sujeitos como se fossem irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos,
tornando invisível a dimensão do sujeito racional, livre e responsável.
Marilena Chauí (2003) questiona o fato de a sociedade, perante a violência que não
se consegue disfarçar, clamar por um retorno à ética, como se esta fosse “coisa” que
se pode perder, reencontrar e não como uma ação intersubjetiva, como descrita
anteriormente.
A autora apresenta como seria pensada essa ética a que se almeja “retornar”:
primeiramente, como moralidade, isto é, como uma reforma dos costumes e
dos valores;
em segundo lugar, “como dispersão de éticas (ética política, ética familiar,
ética escolar...), desprovidas de qualquer universalidade porque espelham
sem análise e sem crítica a dispersão e fragmentação socioeconômica”
(2006, p.343). A ética de forma fragmentada se resume à “competência
específica de especialista” e, desta forma, diz respeito a regras e valores
localizados, que, por vezes, quando analisados em um conjunto, conflitam
com regras e valores de outros grupos localizados. Perde-se a característica
universal da ética, uma vez que seus valores não se estendem a todos os
membros de uma sociedade;
em terceiro lugar, a ética é “entendida como defesa humanitária dos direitos
humanos contra a violência” (2006, p.344). Nesse contexto, as ONGs deixam
47
de ser vistas como parte integrante dos movimentos sociais para e passam a
meras prestadoras de assistência (leia-se, assistencialismo).
A ética, então, vista como ideologia, propicia o exercício da violência, uma vez que
supõe a existência da dualidade entre o “bem” e o “mal”, imprimindo a idéia de que é
preciso que a violência e o mal existam para que a eles possam se sobrepor a ação
boa, dos “sujeitos de bem”. Cria-se uma imagem dualista entre os grupos que são
“portadores de violência” de um lado e, de outro lado, o grupo dos “impotentes” para
combatê-la.
Além disso, o sujeito ético deixa de ser compreendido como um sujeito de direitos e
passa a ser dividido em dois: de um lado, o sujeito ético visto como a vítima, ao qual
é delegado o lugar de “sofredor passivo” e, de outro lado, o sujeito ético “piedoso”,
não-sofredor, ao qual cabe o papel de lutar por justiça em prol do sujeito “vítima”,
passivo. É negado a este último a condição de sujeito ético porque se torna objeto
do sujeito “não-sofredor”, uma vez que não é ele o sujeito de sua luta por justiça e
mudança de sua própria condição, ou seja, aos sujeitos “vítimas” resta esperar que
os sujeitos “não-sofredores” lutem por suas causas. Por essa razão, movimentos
como o MST são idealizados como “violentos”, pois não assumem os lugares de
vítimas inertes à espera da ajuda do outro.
Partindo desse pressuposto, percebe-se novamente a ética como ideologia atrelada
à violência. Isso porque, para que a ação ética – ou seja, a ação ética do sujeito
não-sofredor – aconteça é preciso que existam vítimas e que estas recebam o
“tratamento do outro como vítima sofredora passiva e inerte” (CHAUÍ, 2006, p.344).
Esses esclarecimentos fazem-se necessários pois, quando em defesa do sujeito
ético, trata-se de entendê-los como sujeitos de direitos.
Compreendendo a violência como um fenômeno de múltiplas facetas, destaca-se a
importância de analisá-la em suas relações objetivas, estruturais e em relações
subjetivas. Compreendê-la, como aponta Marilena Chauí, como estruturante e
organizadora das relações sociais.
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1.3 A POLÍTICA DE ATENDIMENTO A JOVENS EM CONFLITO COM A LEI NO
BRASIL
As políticas voltadas para crianças e adolescentes em conflito com a lei flutuam
entre o avanço representando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e as
práticas contraditórias que se remetem, em sua maioria, aos antigos Códigos de
Menores.
Faleiros (2006) trabalha sucintamente o surgimento e as transformações das
políticas voltadas ao atendimento desse público. Segundo o autor, a preocupação
em “combater a criminalidade de menores” com procedimentos diferentes dos
aplicados aos adultos se evidenciou no início do século XX.
Brito (2000) ressalta que “a transformação da criança em menor” se deu no final de
1920. Nesse período, estava presente a idéia de que a criança teria uma
“predisposição ao crime” e que, portanto, isso era algo biológico, inerente ao sujeito
e era preciso estar atento ao afloramento de tais tendências. Segundo a autora,
[…] Considerados portadores de acentuados defeitos morais, acreditava-se que somente por meio de reformatórios que garantissem escasso contato com o exterior e regras extremamente rígidas se conseguiria corrigir ou controlar tais “defeitos”. (BRITO, 2000, p. 116).
Posteriormente, passam a ser analisados outros fatores “responsáveis” por
“desencadear” a delinqüência juvenil: “as circunstâncias sociais, econômicas e
emocionais” (BRITO, 2000, p.116).
No Brasil, as discussões sobre uma política diferenciada para os adolescentes
culminaram no “Código de Menores” de 1927. Segundo Faleiros (2006, p.49):
Em 1902, o Congresso Nacional discutia a implantação de uma política chamada de „assistência e proteção de menores abandonados e delinqüentes‟. Em 1903, foi criada a Escola Correcional 15 de Novembro. Em 1923, foi autorizada a criação do Juizado de Menores e, em 1924, criaram-se o conselho de assistência e Proteção aos Menores e o Abrigo de Menores. Em 1927, toda essa legislação foi consolidada no primeiro Código de Menores.
49
De acordo com o Código de 1927, aqueles que fossem menores de 14 anos não
seriam submetidos a processo penal, enquanto que os adolescentes entre 16 e 18
anos poderiam ir para a prisão de adultos, permanecendo separados destes últimos
– o Código Penal de 1890 havia reduzido a idade penal para oito anos.
Faleiros (2006) aponta que, entre os anos de 1937 e 1945, durante o governo de
Getúlio Vargas, foram criados:
o Serviço Nacional de Assistência aos Menores (SAM)11, que funcionou de
1941 a 1964, vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Tal
serviço foi marcado pela repressão e pela violência contra os internos;
as delegacias de menores, destinadas a receber “meninos encontrados na
rua e suspeitos de vício e crime”;
o Departamento Nacional da Criança (DNCr), em funcionamento até 1964,
responsável por estimular a amamentação materna e a vigilância dos lactários
e a criação e implantação de creches, com apoio da Legião Brasileira de
Assistência;
A extinção do SAM em 1964 cedeu espaço à criação da Fundação Nacional do
Bem-estar do Menor (FUNABEM), independente do Ministério da Justiça. Autônoma
financeiramente, caberia à FUNABEM a implantação do Estado Interventor ou do
Estado de Bem-Estar na política de assistência à infância (MARCÍLIO, 2006, p.225).
De acordo com Faleiros (2006, p.52):
A política da FUNABEM não reduziu o processo de marginalização. Durante a ditadura, acentuou-se a exclusão social, ou seja, a marginalização do menor pela pobreza da família, pela exclusão da escola, pela necessidade do trabalho e pela situação de rua, que não raramente, desemboca no extermínio.
A partir de diretrizes fixadas pela FUNABEM, foram criadas Comissões Regionais,
responsáveis pela concretização da política de assistência ao “menor”. Em 1979, um
11
Segundo Brito, até o ano de 1941 não havia institutos específicos para a internação dos “menores” considerados “infratores”.
50
novo Código de Menores foi criado em substituição ao de 1927. Com o Código de
1979, ficou estabelecida a “doutrina da situação irregular” para tratar da exclusão.
“Nessa perspectiva, ser pobre era considerado doença, assim como também o eram
as situações de maus tratos, desvio de conduta, infração e falta dos pais ou
representantes legais” (FALEIROS, 2006, p.52). Crianças e jovens até então não
eram considerados “sujeitos de direitos” e os direitos destes eram garantidos
somente aos considerados em “situação de risco” ou de “doença social”.
O Estatuto do Menor de 1979 regulamentava as instituições de assistência e
proteção ao menor, submetendo-as à responsabilidade do Poder Público. Criaram-
se os institutos como as FEBEMs (institutos estaduais) que tinham como programa
de atendimento a “recepção, triagem, observação, e permanência de menores”
(MARCÍLIO, 2006, p.226). As ações desempenhadas por um corpo técnico
composto por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e psiquiatras, focavam-se
na emissão de laudos que “forneceriam subsídios às sentenças. Em caso de
internação, elaboravam-se pareceres psicossociais, considerando-se a pertinência
ou necessidade de manutenção da internação, fundamentados nas patologias e
dificuldades identificadas segundo uma visão medicalizada” (BRITO, 2000, p.118).
A década de 1980 foi marcada, no âmbito dos direitos das crianças e dos
adolescentes, por movimentos de luta que culminaram, em 1990, no Estatuto da
Criança e do Adolescente/ Lei 8.069 (ECA). Segundo Sposito e Carrano (2003, p.5):
O Estatuto […] é o marco legal de um processo prático reflexivo que se dispôs a transformar o estatuto da menoridade brasileira, especialmente naquilo que se refere aos que estão em exclusão social ou em conflito com a lei. O ECA, além de representar radical mudança no rumo ético-político frente ao antigo ordenamento institucional configurado no segundo Código de Menores gerou estruturas colegiadas nos âmbitos nacional, estadual e municipal.
Mario Volpi (1999) considera que o ECA proporcionou “mudanças substanciais” no
que se refere ao tratamento dispensado pelo Estado à criança e ao adolescente. De
acordo com o autor:
A principal [mudança], porque dela derivam todas as outras e porque implica novos deveres do Estado para com essa parcela da população, é a mudança do enfoque doutrinário da “situação irregular” para o da “proteção
51
integral” ao adolescente. Compreende-se, a partir dessa nova concepção da criança e do adolescente empobrecidos, que não são eles que estão em situação irregular, e sim as condições de vida a que estão submetidos. Portanto, a ação do governo e da sociedade não deve ser direcionada exclusivamente para o controle e repressão dessa parcela da população, mas para a garantia de condições de vida com dignidade. (VOLPI, 1999, p.48)
A partir do ECA, crianças e adolescentes passaram a ser concebidos como sujeitos
de direitos aos quais se destinaria proteção integral12. “Sua condição de sujeitos de
direitos implica a necessidade de sua participação nas decisões de seu interesse e
no respeito à sua autonomia, no contexto do cumprimento das normas legais”
(VOLPI, 1999, p.14).
O ato infracional foi definido como: conduta descrita como crime ou contravenção
penal (Art. 103). As medidas socioeducativas passaram a ser estabelecidas em
decorrência da infração cometida, das circunstâncias sociofamiliares e da
disponibilidade de programas e serviços em nível municipal, regional e estadual.
A política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, de acordo com o
Art.86 do ECA, passou a ser desenvolvida em um conjunto articulado de ações
governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios. No Art.88, dentre as diretrizes da política de atendimento, no que diz
respeito aos jovens em conflito com a lei, ficou estabelecido:
Art. 88 […] V- integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional;
Sobre as entidades responsáveis pelo atendimento foi a elas atribuída, segundo o
Art.90 (ECA), a responsabilidade pela manutenção das próprias unidades, pelo
planejamento e pela execução de programas de proteção e socioeducativos.
No Art.94 foram definidas as obrigações das entidades que desenvolvem programas
de internação, dentre elas: oferecer atendimento personalizado, em pequenas
unidades e grupos reduzidos; preservar a identidade dos adolescentes; oferecer
12
A doutrina de proteção integral destina-se “não apenas a um tipo de „menor‟, mas a toda a juventude e a toda a infância” (WEYRAUCH, 2000, p.76).
52
ambiente de respeito e dignidade ao adolescente; proporcionar o restabelecimento
dos vínculos familiares; propiciar escolarização e profissionalização; propiciar
atividades culturais, esportivas e recreativas; oferecer instalações físicas em
condições adequadas de habitabilidade; oferecer vestuário e alimentação suficientes
e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos; oferecer cuidados médicos,
psicológicos, odontológicos e farmacêuticos.
No Art. 124 (ECA) ficaram estabelecidos os direitos do adolescente privado de
liberdade, dentre eles: ser informado de sua situação processual quando solicitada;
ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; receber assistência
religiosa, segundo sua crença; manter posse de seus objetos pessoais, ter acesso
aos meios de comunicação social; corresponder-se com seus familiares e amigos;
receber visitas.
Dessa forma, segundo Volpi, a contenção não é em si a medida socioeducativa, mas
sim a condição para sua viabilização. “A restrição da liberdade deve significar
apenas limitação do exercício pleno do direito de ir e vir e não de outros direitos
constitucionais, condição para sua inclusão na perspectiva cidadã”. (VOLPI, 1999,
p.27)
Embora o ECA tenha representado um avanço na política de atendimento à criança
e ao adolescente, suas pretensões não conseguiram, efetivamente, ultrapassar o
“plano jurídico e político-conceitual”. Passados 17 anos da implementação do
Estatuto, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)
apresentou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
O SINASE se constitui em um “conjunto ordenado de princípios, regras e critérios,
de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve
desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida
socioeducativa” (CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, 2006, p. 23). Tem como objetivos “concretizar os avanços contidos
na legislação e contribuir para a efetiva cidadania dos adolescentes em conflito com
a lei” (CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, 2006, p. 14). A construção e implementação de tal política foi
53
resultado de um amplo debate, que se estendeu por cinco anos, envolvendo
organizações governamentais e não governamentais.
1.3.1 A política de atendimento a crianças e adolescentes em conflito com a lei
no Espírito Santo – 1967-2007
O Instituto de Atendimento Sócio-Educativo do Espírito Santo foi fundado em 1967
com o nome Fundação Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor (FESBEM), nos
moldes do Código de Menores e da doutrina de situação irregular. O Instituto tinha
como finalidade a execução da Política Nacional de atendimento ao menor no
Espírito Santo seguindo as diretrizes estabelecidas pela FUNABEM. (EMMERICH,
2007, p.130; GALINA, 2007, p. 90)
A implantação do mesmo se deu no início de 1969, contando com dois locais para
atendimento de menores: 1) Instituto Profissional Francisco Schwab (IPFS), que
funcionava em sistema de internato de meninos, situado em Roças Velhas,
Cariacica; 2) Centro de Formação Caboclo Bernardo (CFPCB), localizado em Santa
Cruz, que se constituía em um ginásio misto com regime de internato para aqueles
diretamente assistidos pela FESBEM e semi-internato para os menores da
comunidade (EMMERICH, 2007, p.130).
Em 1980, após ser transformada em autarquia pelo decreto nº 1496-N, a Fundação
Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor passou a se chamar Instituto Espírito-
Santense de Bem-Estar do Menor (IESBEM), ligando-se à Secretaria de Estado do
Bem Estar Social.
O atendimento aos jovens em conflito com a lei estava sob responsabilidade do
Projeto Sócio-Terapêutico13, o PROSOT. Existiam duas unidades responsáveis por
atender jovens do sexo masculino e do sexo feminino: 1) o Instituto Presidente
13
Em nenhuma das fontes pesquisadas encontrou-se a data de implementação do Projeto.
54
Castelo Branco (IPCB/CRM), destinado aos “menores” do sexo masculino na faixa
etária de 14 a 18 anos considerados de “conduta anti-social (infratores) e processo
judicial formalizado”; 2) o Centro de Recuperação Feminino (CRF), para o qual eram
encaminhadas as “menores” do sexo feminino entre 12 e 18 anos “com conduta anti-
social e/ou processo judicial formalizado (EMMERICH, 2007, p.131).
Esses institutos foram desativados entre os anos de 1986 e 1987. Os internos e as
internas foram transferidos para o Centro de Recepção e Triagem (CRT). Neste local
concentraram-se outras unidades também fechadas neste período e a infra-estrutura
tornou-se inadequada. Passaram a ser atendidas crianças e jovens na faixa etária
de zero a 18 anos de ambos os sexos, que não tinham condições de serem
reintegrados às suas famílias.
Em 1989 definiu-se um sistema de atendimento aos adolescentes praticantes de
atos infracionais. A comissão responsável por essa atividade fazia parte do
Programa Co-gestão. Em fevereiro de 1990, implantou-se a Unidade de Internação
Social (UNIS)14 com fins de atender “menores infratores”, na faixa etária de 14 a 17
anos15.
Em final de 1990, o Instituto Espírito-Santense de Bem-Estar do Menor (IESBEM)
passou a se chamar ICAES – Instituto da Criança e do Adolescente do Espírito
Santo. Em 1998, o ICAES estabeleceu parceria com a Secretaria do Estado da
Educação (SEDU), que se responsabilizaria pela contratação de professores para
atuarem na Unidade de Internação Social (UNIS).
14
Faz-se necessário ressaltar que a instalação da UNIS se deu no antigo prédio construído em 1967, onde funcionava o internato. Este edifício ainda é utilizado. 15
Uma funcionária que trabalhava na unidade feminina de internação no período da coleta de dados, fez parte da comissão que, posteriormente, traçou o projeto pedagógico para a UNIS em 1990. Ela narrou que a comissão passou meses estudando. A unidade atendia meninos e meninas. O número àquela época era muito reduzido em relação ao atual (aproximadamente 200 jovens). Ela fez o seguinte relato registrado em diário de campo: “Era um show, o projeto. Os alunos acordavam às 7 da manhã. Tomavam café no refeitório! Tinha um refeitório aqui! Eles saíam em fila, por trás da unidade, passavam pela UNIP e iam andando pro refeitório, de lá iam pra aula. Ninguém ia algemado! Era assim... tinha várias salas de aula, a escolinha. Cada professor esperava pelos alunos na sala.” (04 de abril, 2007).
55
No período de dezembro de 2002 a junho de 2003, o ICAES passou por uma
intervenção judicial com objetivo de implementação de novo modelo de gestão e de
atendimento ao adolescente. (GALINA, 2007, p.90).
Em 2005 a Lei Complementar Nº 314, publicada em 03 de janeiro no Diário Oficial
do Estado do Espírito Santo, previa uma reestruturação do Instituto a fim de adequá-
lo ao Estatuto da Criança e do Adolescente. O ICAES passou a se chamar Instituto
de Atendimento Sócio-Educativo do Espírito Santo. Definiram-se como objetivos da
instituição: “Art.2º - […] formular, implementar e manter o sistema de atendimento
responsável pela execução das medidas socioeducativas ao adolescente em conflito
com a lei” (GALINA, 2007, p.90).
Entre os anos de 2006 e 2007, com a implementação do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo, o IASES buscava novas adequações do serviço
prestado às Leis competentes. O Instituto assumiu como metas:
[…] a constituição de nova forma de gestão do atendimento, utilizando-se do alinhamento conceitual, estratégico e operacional fundado em bases éticas e pedagógicas a fim de planejar, organizar, executar e articular o atendimento socioeducativo. […] O que se impõe como desafio é a formação ética para além da formação técnica dos recursos humanos, a fim de responder às novas exigências de organização do processo de trabalho e dos seus resultados. (GALINA, 2007, p.89)
Ainda entre 2006 e 2007, desenvolvia-se uma articulação entre o IASES e a SEDU
para a implantação de uma escola nas dependências do Instituto a fim de assegurar
e melhorar o atendimento escolar destinado aos jovens internos. No segundo
semestre de 2007, encontravam-se em vias de conclusão as novas instalações da
unidade de internação socioeducativa, construídas de acordo com as orientações do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
56
1.4 PROCESSOS DE FORMAÇÃO: AS SOCIALIZAÇÕES, O HABITUS E AS
EXPERIÊNCIAS JUVENIS
Para acrescentar à discussão sobre os processos de formação presentes nas vidas
dos agentes sociais, trazemos algumas considerações a respeito dos processos de
socialização.
Pais (1993), ao introduzir os processos de socialização dos quais resultam as
culturas juvenis, destaca duas definições para os mesmos: a) uma primeira que se
refere à socialização como transmissão das normas e ordenamentos sociais, a um
nível “colectivo, macrossocial (normas de gerações, normas de classes sociais, etc.)”
(PAIS, 1993, p.55); b) e uma segunda, relacionada a um “nível microssociológico”
que possibilita o entendimento da reprodução ou da modificação pelos sujeitos de
tais normas.
Berger e Luckmann (2002, p.175), por sua vez, definem a socialização como a
“ampla e consistente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma
sociedade ou setor dela”, compreendendo-a como um processo contínuo, “nunca
total nem acabada” (p.188). Esses autores apresentam a sociedade como uma
realidade objetiva e subjetiva, compreendida a partir de “um processo dialético em
curso” do qual fazem parte 3 momentos: exteriorização, objetivação e interiorização.
Sendo assim, ao mesmo tempo que o indivíduo exterioriza-se para o mundo social,
interioriza-o como “realidade objetiva”.
É nesse sentido, que Berger e Luckmann (2002, p. 177) afirmam que “a identidade é
objetivamente definida como localização em um certo mundo e só pode ser
subjetivamente apropriada com este mundo”.
Para os autores, o indivíduo, ao nascer, se depara com regras e normas sociais
referentes a um mundo “pré-estruturado” no qual ele é inserido e o qual ele
apreende como “realidade social dotada de sentido”. Essa mediação entre a
realidade objetiva e o indivíduo é realizada a partir de um “outro significativo” (pai,
mãe, avós, irmãos, etc.). Esse processo se desenrola com base em um
57
envolvimento emocional-afetivo relevante para o indivíduo socializado, que precisa
criar uma identificação com o “outro significativo”. É desde a infância que a criança
aprende a reconhecer os papéis sociais, as regras, as normas, a forma como o
mundo está estruturado e a sua localização no mesmo.
A compreensão que se tem do mundo subjetivo “passada” à criança é “filtrada” de
acordo com a visão que o outro significativo tem dessa realidade social, tomando-se
como referencial o local que ele ocupa na estrutura social.
Essa socialização que ocorre na infância, cujas aprendizagens têm um papel
fundamental na constituição do sujeito como membro da sociedade, é denominada
pelos autores de “socialização primária”.
O processo seguinte, de introdução de “um indivíduo já socializado em novos
setores do mundo objetivo da sociedade” (2002, p.175) é definido por Berger e
Luckmann como a “socialização secundária”. Os autores se aprofundam nesse
conceito afirmando que:
A socialização secundária é a interiorização de „sub-mundos‟ institucionais ou baseados em instituições. A extensão e caráter destes são portanto determinados pela complexidade da divisão de trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento. […] Os „sub-mundos‟ interiorizados na socialização secundária são geralmente realidades parciais, em contraste com o „mundo básico‟ adquirido na socialização primária. Contudo, eles também são realidades mais ou menos coerentes, caracterizadas por componentes normativos e afetivos assim como cognoscitivos. (BERGER e LUCKMANN, 2002, p.185)
Estreitamente relacionada à divisão social do trabalho, a socialização secundária
reveste-se de vocabulários específicos, de símbolos rituais ou materiais, além de
contar com um “aparelho legitimador”. A mediação entre essa “nova realidade” e o
indivíduo não necessita da mesma carga afetiva e da identificação empregada na
socialização primária. Na socialização secundária, fica claro o contexto institucional
e os “outros significativos” são percebidos como “funcionários individuais” (professor,
chefe, etc.).
Os conteúdos apreendidos na socialização secundária precisam estar alicerçados
nos conteúdos incorporados na socialização primária para que sejam aceitos pelo
58
sujeito como “verdadeiros”. À medida que a realidade percebida na socialização
secundária toma uma dimensão mais plausível, mais fácil se torna a incorporação de
novos conteúdos aos introjetados na socialização primária.
A realidade subjetiva construída pelos indivíduos no processo de socialização pode
passar ainda por transformações, ou “alternações”, como definem os autores. Berger
e Luckmann apresentam um tipo de socialização que se assemelha à socialização
primária, pela carga afetiva empregada e pela identificação estabelecida, a qual eles
denominam de “re-socialização”. Esse processo caracteriza-se pela incorporação de
uma nova realidade plausível que, para se afirmar, precisa de uma ruptura com o
“mundo anterior” da socialização primária. Os autores dão como exemplo de “re-
socialização” a conversão religiosa, na qual a realidade anterior é vista como
pecaminosa e, por esta razão repelida. Para os autores:
O que tem que ser legitimado não é somente a nova realidade, mas as etapas pelas quais é apropriada e mantida, e o abandono ou repúdio das outras realidades (BERGER e LUCKMANN, 2002, p.211).
Existe, enfim, uma diferença entre a socialização secundária e a re-socialização:
Na re-socialização o passado é reinterpretado para se harmonizar com a realidade presente, havendo a tendência a retrojetar no passado vários elementos que subjetivamente não eram acessíveis naquela época. Na socialização secundária o presente é interpretado de modo a manter-se numa relação contínua com o passado, existindo a tendência a minimizar as transformações realmente ocorridas. Dito de outra maneira, a realidade básica para a re-socialização é o presente, para a socialização secundária é o passado. (BERGER e LUCKMANN, 2002, p.215).
Bourdieu também busca estabelecer uma relação entre a dimensão objetiva e
subjetiva do mundo social (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2006, p.27). Para isso o autor
se utiliza do conceito de habitus para explicar como se incorporam, no processo de
socialização, as formas de “sentir, pensar e agir” do grupo de origem.
Bourdieu (1998, p.111) define o habitus como “matriz geradora de respostas
previamente adaptadas (mediante uma improvisação permanente) a todas as
condições objetivas idênticas ou homólogas às condições de sua produção”. Ele
funciona como um conjunto ou um sistema de dispositivos duráveis dos quais o
agente se apropria, mesmo que de maneira inconsciente, e que lhe permite transitar
59
em determinados grupos sociais. Tal dispositivo garante o reconhecimento de classe
ao agente social.
É um dispositivo durável por enraizar-se no sujeito e dele “fazer parte”. No entanto,
há situações de desequilíbrio em que o agente deve re-adaptar-se; em que há
modificação no habitus para que ele permaneça integrante a um determinado grupo.
Bourdieu define o habitus como “integrador dos grupos ou das classes”.
Segundo John Lechte (2003, p.62-63):
[…] Bourdieu afirmou que habitus tem a ver com o „sentido do lugar da pessoa‟ que emerge mediante processo de diferenciação no espaço social, e que é um sistema de esquemas para produção de práticas, bem como um sistema de esquemas de percepção e apercepção dessas práticas. As fronteiras entre um habitus e outro são sempre contestadas porque sempre fluidas – jamais firmes.
Dessa forma, o habitus, ao se configurar como um código transmitido, reproduz não
só os valores que cercam e dão sentido aos grupos sociais, como também demarca
a hierarquia social. Sendo assim, cada campo, cada grupo, tem um habitus que lhe
é próprio. É interessante observar que, sendo uma marca, o habitus se torna parte
constitutiva da subjetividade, ratificando, assim, que a subjetividade do sujeito é algo
socialmente estruturado16.
Eis aí uma relação estabelecida por Bourdieu entre as estruturas objetivas e
subjetivas do mundo social. Os comportamentos e a forma de pensar dos agentes
seriam construídas a partir de um conjunto de vivências experimentadas a partir da
posição ocupada no espaço social, ou seja, a partir de uma estrutura objetiva e
interiorizada subjetivamente.
Estreitamente ligado ao conceito de habitus está o conceito de campo. O campo se
refere a esferas da vida social que se autonomizam progressivamente. A concepção
de campo sugere, portanto, espaços de posições sociais nos quais os indivíduos se
16
SANTOS, Pollyana; SEBIM, Charlini Contarato; SILVA, Maria das Dores Santos. Contribuições de Bourdieu para pensar a educação. 2006 (em fase de publicação).
60
relacionam, produzem bens que são consumidos e classificados (capitais)17. Os
grupos demarcam sua posição social com base na aquisição do habitus e dos
capitais produzidos em sua esfera social. Determinados grupos dominantes tendem
a se utilizar dessa lógica para afirmar seus bens culturais como objetivamente
superiores aos demais. Constroem-se hierarquias culturais que contribuem para
legitimar as hierarquias sociais – as divisões entre grupos baseando-se nos bens
culturais que consomem e produzem. Esse conceito amplo se estende aos diversos
domínios, traduzindo-se em campo literário, campo religioso, campo político, campo
de poder, campo da alta costura, etc., cada qual com propriedades específicas que
se configuram como campos da realidade social18. (BOURDIEU, 1989)
A reprodução do habitus de um determinado grupo e o valor atribuído a ele (tendo
como base os capitais a ele relacionados), garante a manutenção deste mesmo
grupo na esfera social. Para Bourdieu:
[…] o habitus representa a inércia do grupo, depositada em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, apreciação e ação que tendem com mais firmeza do que todas as normas explícitas, assegurar a conformidade das práticas, para além das gerações. O habitus, isto é, o organismo do qual o grupo se apropriou e que é apropriado ao grupo, funciona como suporte da memória coletiva: instrumento de um grupo, tende a reproduzir nos sucessores o que foi adquirido pelos predecessores, ou simplesmente os predecessores nos sucessores. (BOURDIEU, 1998, p. 112-113)
17
Bourdieu utiliza o conceito de “capital” para se referir à aquisição de “bens” que garantem um reconhecimento dentro da “hierarquia social”. Bourdieu define diferentes tipos de capital: o econômico, o cultural, o simbólico, o social, devidamente reconhecidos em determinados campos sociais. Os capitais relacionam-se entre si, constituindo-se em instrumentos de acumulação. Sendo assim, quanto maior for o investimento na aquisição de capitais, maior será a possibilidade de reconhecimento e mobilidade na estrutura social. A posse de capitais está intimamente relacionada à aquisição do habitus correspondente aos campos em que se almeja adentrar. A permanência e atuação em um campo permite a aquisição do habitus “específico” que permite ao sujeito acumular o capital necessário para participar do “jogo social” em determinado campo. Bourdieu define que o capital cultural pode existir sob três formas: o capital cultural no estado incorporado, pressupõe que a acumulação do mesmo exige uma incorporação, em um processo de inculcação e assimilação que demanda tempo. “O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da „pessoa‟, um „habitus‟”. (Bourdieu, 1998, p.74-75). O capital cultural no estado objetivado diz respeito à posse de bens materiais como: quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas. Para a compreensão simbólica de tais objetos o sujeito necessita do capital cultural incorporado. O capital cultural em seu estado institucionalizado se refere ao acúmulo de diplomas e certificações escolares e o reconhecimento institucional a eles conferido. 18
SANTOS, Pollyana; SEBIM, Charlini Contarato; SILVA, Maria das Dores Santos. Contribuições de Bourdieu para pensar a educação. 2006 (em fase de publicação).
61
Sendo incorporado desde a infância, o habitus é compreendido pelo autor como
produto da socialização. Dubar (1995) define a socialização em Bourdieu como:
Um processo biográfico de incorporação das disposições sociais vindas não somente da família e da classe de origem, mas também do conjunto dos sistemas de acção com os quais o indivíduo se cruzou no decorrer da sua existência. Sem dúvida, ela implica uma causalidade histórica do passado sobre o presente, da história vivida sobre as práticas actuais, mas esta causalidade é probabilística: exclui qualquer determinação mecânica de um „momento‟ privilegiado em relação aos seguintes. Quanto mais as pertenças sucessivas ou simultâneas forem múltiplas e heterogéneas, mais se abre o campo do possível e menos se exerce a causalidade de um provável determinado. (DUBAR, 1995, p.77)
Tanto seguindo uma vertente fenomenológica, como em Berger e Luckman, quanto
uma linha estruturalista, como em Bourdieu, tais abordagens tomam como foco
principal o papel das instituições na reprodução das normas sociais para
manutenção e continuidade social. Nesse caso, a construção do sujeito está
intimamente relacionada às funções socializadoras das instituições, e o
reconhecimento de si mesmo está vinculado à posição ocupada do “espaço social”.
O reconhecimento do sujeito se dá a partir de seu reconhecimento na estrutura
social. (DUBAR 1995, DAYRELL 2005, CAMACHO, 1999).
Outras “correntes” compreendem a socialização a partir do distanciamento do sujeito
do sistema e abarcam processos de construção da identidade que extrapolam os
domínios socializadores das instituições como escola, família, religião, trabalho. Ou
seja, o sujeito não é apenas construído por e para atuar em uma realidade objetiva,
mas ele se constrói em um determinado contexto, nas práticas cotidianas que
reconstroem a realidade por ele experimentada.
Dubet e Martuccelli (1997, p.241) expressam que a socialização indica “um duplo
movimento pelo qual uma sociedade se dota de atores capazes de assegurar sua
integração e de indivíduos, de sujeitos suscetíveis de produzir uma ação autônoma”.
Esses autores entendem que a socialização se expressa por um fenômeno de
distanciamento, resultado de uma crescente diferenciação social. Para explicar
como essa outra compreensão da socialização se faz necessária para o contexto
atual, os autores buscam traçar um paralelo com as representações do indivíduo:
62
A figura do indivíduo aparece como uma conseqüência mais ou menos direta de um nível crescente de diferenciação social e de racionalização. A maior densidade subjetiva dos indivíduos da sociedade moderna procede uma sociedade mais complexa, na qual o indivíduo cruza com um número cada vez mais elevado de atores e na qual está submetido a um maior número de estímulos por parte do ambiente. Pertence a diversos círculos sociais e deve cumprir um número crescente de tarefas e papéis. (DUBET e MARTUCCELLI, 1997, p.244)
Tem-se a emergência do “indivíduo moderno” em oposição ao “homem comunitário”,
o qual se encontrava submetido à coletividade. A crescente diferenciação social leva
ao indivíduo “pós-moderno”:
[…] uma diferenciação social crescente que aumenta o fosso entre as posições sociais e as motivações individuais ao ponto em que sua junção não pode mais ser assegurada por papéis. […] Certamente, há tarefas objetivas, mas daqui em diante o espaço da iniciativa individual não pára de crescer no seio de cada situação socialmente definida. Desde então, a sociedade é o aprendizado da gestão de uma distância entre as dimensões subjetivas e as posições sociais. (DUBET e MARTUCCELLI, 1997, p.247-248).
Essa perspectiva da socialização não significa uma ruptura do “ator com o sistema”,
no entanto, entende que
No contexto de uma sociedade em mutação, diz Dubet, os atores e as instituições não são mais redutíveis a uma lógica única, a um papel e a uma programação cultural de condutas, como era pensada a socialização na sociedade industrial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade de princípios culturais e sociais que organizam as condutas, com os atores podendo adotar simultaneamente vários pontos de vista. Há mutações globais dos quadros de referência, e nenhuma delas assume centralidade. (DAYRELL, 2005, p. 181)
Ao considerar, portanto, a inserção do indivíduo em um dado contexto social,
econômico, cultural, atenta-se que esses contextos não estão estruturados em si a
partir de uma referência apenas. Assim, o sujeito que se encontra em um grupo
social experimenta, circula por outros diferentes e toma como referências para
construção de sua identidade outros modelos e valores que não são exclusivamente
aqueles transmitidos pelas instituições tradicionais socializadoras.
63
Há que se considerar ainda, que as instituições responsáveis pelas socializações às
quais os sujeitos deveriam ser submetidos adquirem novas configurações. Segundo
Dubet e Martuccelli (1997, p.261):
[…] a socialização não pode ser mais vista em termos de aprendizado de papéis, mas em termos de construção de experiências. Dito de outra maneira, a unidade da socialização não está mais dada aos atores, mas deve ser construída por eles o que implica que a socialização deve ser centrada sobre o distanciamento.
Os estudos de Dubet sobre os jovens nos liceus franceses ajudam a compreender a
socialização enquanto distanciamento. Esse autor esclarece que a instituição
escolar não tem apenas uma função de transmissão e reprodução das normas
sociais via conhecimento transmitido. A escola, enquanto instituição socializadora,
tem múltiplas funções ou dimensões:
1) Dimensão do modelo cultural: existem valores, conhecimentos, ensinamentos
que as instituições educativas julgam ser indispensáveis à formação do
indivíduo. Essa função diz respeito a que tipo de sujeito que a escola
pretende construir.
2) Dimensão da seleção ou distribuição: como o nome revela, essa função
relaciona-se à reprodução ou à produção das desigualdades sociais.
3) Dimensão da organização ou integração: essa função se relaciona ao papel
integrador da escola. “Essa dimensão organizadora da escola acolhe e
reconhece a comunidade e a vida juvenis. […] Esta função está vinculada à
distância que existe entre a cultura familiar e a cultura escolar. […] A função
de integração se torna cada vez mais difícil pela massificação e pelo
desenvolvimento de uma cultura juvenil fora da escola.” (CAMACHO, 1999,
p.52).
A escola atinge seu papel socializador quando consegue articulação entre essas três
dimensões. No entanto, o que Dubet observa nas escolas francesas é a
desarticulação entre essas funções, principalmente no que diz respeito à relação
entre a “comunidade juvenil e a organização escolar”. Esse distanciamento entre as
64
funções da escola possibilita aos jovens alunos a construção de “experiências”.
(CAMACHO, 2000).
A experiência escolar, por sua vez, pode ser percebida nas três dimensões:
1) Dimensão do projeto do aluno: diz respeito ao projeto de construção de futuro
que o aluno deve ter em mente: o que será, que profissão escolher. Dessa
forma, o aluno deve encontrar significado nos conhecimentos apreendidos na
escola para o seu projeto. O que se aprende deve ter “serventia” para o que
se almeja ser. Esse projeto, no entanto, não é uma escolha autônoma do
sujeito, pode ser resultado das expectativas dos pais, ou ainda, pode ser
orientado pela estrutura social.
2) Dimensão da formação do sujeito: refere-se à dimensão das relações
interpessoais entre alunos, professores e pode ser entendida “por meio de
sentimentos como sofrimento, vocação, tédio, identificação com os
ensinamentos, rejeição/alergia a certas matérias e a certos professores”
(CAMACHO, 1999, p.52). Essa é uma dimensão importante, uma vez que
trata das redes de sociabilidades tecidas entre os jovens e que se constroem
fora do controle do sistema escolar e possuem, por sua vez, papel
fundamental para constituição da personalidade do sujeito jovem.
3) Dimensão da estratégia: como expressa o próprio nome, essa dimensão
refere-se às estratégias utilizadas pelos jovens para conciliarem seus
interesses pessoais e a seleção que devem enfrentar, ou seja, o quanto
devem se dedicar aos estudos para ocuparem “uma posição definida nas
hierarquias sociais escolares”. (CAMACHO, 1999).
Para explicar os processos de formação experimentados pelas jovens em situação
de privação de liberdade essa idéia da socialização como um distanciamento entre
os atores e o sistema, apresentada por Dubet e Martuccelli, ajuda na compreensão
de que as jovens em questão acham-se inseridas em um dado contexto social, dele
fazem parte, mas os processos socializadores por elas vivenciados e a
representação que fazem de si mesmas enquanto sujeitos, não são construídos
65
exclusivamente a partir dos modelos ou dos papéis traduzidos pelas instituições.
Sendo assim, um entendimento da socialização apenas enquanto internalização das
normas sociais não dá conta de abarcar a riqueza das práticas cotidianas que eram
construídas pelas jovens e que davam outros sentidos às práticas institucionais,
normativas.
Da mesma forma, essa análise auxilia a entender as instituições que se
responsabilizam pela “re-socialização” de jovens em situação de conflito com a lei e
as relações que estes últimos estabelecem com aquelas e com seus funcionários.
Entende-se, portanto, que essas instituições não se orientam apenas para a função
de transmissão da cultura, das normas sociais, dos valores que fazem dos seus
internos sujeitos aptos ao retorno ao convívio social. Há ainda uma riqueza de
práticas desenvolvidas na dimensão das relações, vividas pelas jovens na
experiência, que precisam ser aprofundadas.
É importante esclarecer que não se pretende uma transposição ou uma adaptação
dos conceitos trazidos por Dubet para a análise da realidade estudada nesta
pesquisa. Primeiro por se ter como sujeitos jovens que estão em privação de
liberdade e, portanto, não têm um convívio extra-instituição e estão, a maior parte do
tempo, sob o controle institucional. No entanto, ficou evidente que o mesmo controle
não conseguia alcançar todas as dimensões da vida das jovens, mesmo naquelas
condições descritas. Segundo, por se tratar aqui de uma instituição socializadora
que tem outras funções além daquelas presentes no sistema escolar. No entanto, os
estudos trazidos por Dubet trazem inspiração para a análise dos processos de
formação vivenciados pelas jovens durante todo o processo de internação.
Por outro lado, os primeiros esclarecimentos acerca da socialização apresentados
se fazem necessários uma vez que as instituições de internação socioeducativas
pautam-se em modelos clássicos de socialização com base nos quais traçam suas
ações e procedimentos junto às internas.
66
2 O CAMINHO DAS PEDRAS: SE FOSSE FÁCIL ENCONTRÁ-LO,
TANTAS PEDRAS NO CAMINHO NÃO SERIA RUIM19
“Há outros dias que não têm chegado ainda, que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão – […]”
(Pablo Neruda, “Esperemos”. Últimos Poemas, 1973)
2.1 O CAMINHAR DA PESQUISA
Como no poema de Neruda, o desenrolar desta pesquisa aconteceu a partir da
busca e da espera pelos dias que ainda não haviam chegado. Dias que pareciam
apontar para um caminho transitável e dias que anunciavam que era preciso parar e
aguardar um pouco mais antes de prosseguir.
Esta pesquisa teve como intenção inicial investigar os impactos causados pela
internação nos projetos de futuro dos jovens. Ao partir da proposta de um debate
mais aprofundado sobre a situação do jovem em medida de internação, pretendia-se
analisar como esse processo influenciaria na forma de pensar o futuro e, depois
disso, traçar pistas sobre como as ações desenvolvidas na instituição contribuiriam
ou não para os projetos de futuro dos adolescentes.
Isso posto, o trabalho se orientava para uma abordagem quanti-qualitativa, tendo
como opção o estudo de caso, que voltava seu olhar para jovens do sexo masculino,
na faixa etária de 15 a 17 anos, que estivessem em cumprimento da medida
socioeducativa de internação20. A pesquisa de campo seria enriquecida por uma
19
Paráfrase do trecho da música “Outras Freqüências”, por Humberto Gessinger. 20
A opção por trabalhar com um grupo formado por jovens do sexo masculino devia-se ao fato de estes estarem em maior número entre os internos das unidades de internação do Instituto de Atendimento Sócio-Educativo e vivenciarem com maior freqüência situações que implicavam riscos de morte, como os episódios de rebeliões, por exemplo.
67
oficina de teatro. Essa oficina constituía-se em um projeto de extensão (APÊNDICE
I) – “Oficina de teatro na UNIS”, aprovado pela PROEX em reunião de 06/10/2006,
sob registro 105/2006, SIEX 28876 – que tinha como objetivo construir uma peça de
teatro na qual os jovens expressariam, em personagens, suas expectativas em
relação ao futuro21. No entanto, conforme mencionado na introdução deste trabalho,
os desvios encontrados no caminho desta pesquisa orientaram para a mudança dos
sujeitos, do lócus investigativo e, conseqüentemente da temática a ser analisada. A
seguir, estão descritos os caminhos percorridos, seus desvios, obstáculos, retornos
e avanços.
Aproximar-me do campo de observação e dos sujeitos desta pesquisa empenhou
uma caminhada que se iniciou em junho de 2006 por meio de um contato inicial e
informal com as sub-gerentes da Unidade a ser pesquisada22. Esse encontro foi de
grande relevância para compreender os passos que precisavam ser dados para a
autorização da pesquisa em uma instituição socioeducativa de internação. Também
foi relevante por possibilitar um contato direto com as profissionais que estariam
envolvidas nesse processo diariamente, para a apresentação da sugestão de
pesquisa juntamente com o trabalho de intervenção. Assim, poder-se-ia perceber se
havia aceitação ou não às atividades a serem desenvolvidas. Neste caso, a
aprovação das mesmas era fundamental para saber se a proposta seria exeqüível. A
idéia foi bem aceita pelas sub-gerentes, que orientaram os procedimentos
necessários para solicitar autorização para a pesquisa.
Após o projeto de extensão ter sido aprovado por esta Universidade, foi realizado o
primeiro contato com a direção técnica do Instituto de Atendimento Sócio-Educativo
do Espírito Santo (IASES) em 07 de novembro de 2006, mediante reunião com a
assessora da Diretoria Técnica. Foi apresentada a proposta da pesquisa bem como
21
A opção por este caminho se justificava por alguns fatores: primeiro, por considerar que o teatro, enquanto forma de expressão, poderia propiciar espaço de fala a esses sujeitos silenciados pela sociedade, constituindo-se em um momento em que o jovem pudesse se posicionar, por meio da arte, sobre o que pensava, o que sentia e o que esperava da vida. Segundo, do ponto de vista do desenvolvimento da pesquisa, esse processo possibilitaria a observação e a aplicação dos instrumentos de coletas de dados. Além disso, poderia estabelecer um maior contato com a equipe técnica e de professores que compunham a unidade pesquisada, auxiliando na compreensão de como as atividades de caráter educativo eram realizadas naquele espaço. 22
Esse encontro foi intermediado por uma aluna do Programa de Mestrado em Educação que
participava de um curso oferecido pelo PPGE no qual as funcionárias da UNIS participavam como alunas.
68
a do projeto de extensão, explicadas as atividades e os prazos para realização das
mesmas. A assessora, por sua vez, relatou as dificuldades para o desenvolvimento
de qualquer tipo de atividade, tendo em vista a rotatividade de jovens em internação,
a irregularidade na ocorrência de atividades escolares em virtude de fugas,
rebeliões, intervenções policiais e pela inconstância dos próprios jovens no que diz
respeito ao interesse de participação em tarefas educativas.
Para conceder a autorização à pesquisa e ao projeto de extensão, deveria haver
uma reunião interna da assessora com o diretor técnico, na qual ela apresentaria a
proposta e os dois avaliariam a relevância desta para o Instituto. Posteriormente,
seria marcada uma nova reunião para discussão e possível aprovação das
atividades.
Um mês após a primeira reunião, foi marcada a segunda, no dia 05 de dezembro de
2006. Nela estavam presentes a orientadora desta pesquisa e coordenadora do
projeto de extensão, Prof.ª Dr.ª Luiza Mitiko Yshiguro Camacho, esta pesquisadora,
a assessora da diretoria técnica do IASES, e o diretor técnico. A pesquisa, assim
como o projeto, foram autorizados e algumas decisões foram tomadas para início
das atividades em fevereiro de 2007: a) a pesquisa e a oficina de teatro desenvolver-
se-iam em uma ala denominada „Seguro‟. Integravam essa ala jovens “jurados de
morte”23 pelos outros internos da UNIS (Unidade de Internação Sócio-Educativa).
Localizava-se em Maruípe, no Centro Integrado de Atendimento Sócio-Educativo
(CIASE); b) seria providenciada presença de assistentes de aluno (monitores) para a
segurança; c) a regularidade dos encontros para a oficina seria combinada com a
gerente do CIASE.
Os contatos com a gerente do CIASE foram estabelecidos em 07 de dezembro de
2006. Restabelecido o contato na última semana de janeiro de 2007, conforme
solicitado pela gerente, encontrou-se uma situação que impunha entraves ao
desenvolvimento do trabalho: por determinação da Justiça, a ala do Seguro seria
transferida da Delegacia de Maruípe, em Vitória, para a UNIS, em Cariacica.
23
Integram as alas de Seguro jovens que, por algum motivo, correm risco de morte se forem colocados junto aos demais. O motivo pode ser desde o cometimento de uma infração que não é admitida no “código de ética” dos internos, como estupro, ou porque os jovens poderiam pertencer a facções ou bairros rivais.
69
Diante desse quadro, não haveria possibilidades de realização da pesquisa e da
oficina de teatro. A situação foi solucionada pela assessora da Direção Técnica do
IASES no dia 09 de fevereiro de 2007. Após permissão do então gerente da UNIS,
decidiu-se que o projeto de extensão e a pesquisa seriam realizados junto à ala do
Seguro transferida para aquela Unidade.
No dia 13 de fevereiro, houve uma reunião com o gerente da UNIS para
apresentação da proposta de trabalho. A receptividade foi boa. O começo das
atividades foi marcado para o dia 26 de fevereiro, após o feriado de carnaval.
No dia 26 de fevereiro, houve um retorno à Unidade para programar o andamento do
projeto24: horário, dias da semana, número de jovens, espaço para realização da
oficina, disponibilidade de monitores. A conversa, dessa vez, foi com a sub-gerente
responsável pela equipe de psicólogos e assistentes sociais. Ela expôs algumas
dificuldades para o desenvolvimento do trabalho: o reduzido número de monitores
disponíveis e o espaço precário para atividades. No entanto, ela gostou da proposta
e apresentou um local onde, possivelmente, aconteceriam os encontros, assim como
o grupo de jovens com o qual a oficina seria desenvolvida. Os jovens se mostraram
interessados pela proposta de fazer teatro e de participarem de uma pesquisa.
Ao final do encontro, todavia, a sub-gerente informou que o acerto de detalhes
relativos aos dias, horários e grupo de participantes não era responsabilidade de sua
função. Era preciso uma nova reunião com a sub-gerente pedagógica, pois essa
atividade seria desenvolvida juntamente com a equipe do Espaço Educativo.
No dia 01 de março, quinta-feira, houve a reunião com a sub-gerente pedagógica.
Explicada a proposta da pesquisa e as demandas necessárias para a oficina se
realizar, a sub-gerente informou que uma oficina de teatro já era desenvolvida por
um professor formado em Artes Cênicas, contratado pela Secretaria de Cultura do
Estado (SECULT). Segundo a mesma, havia um projeto realizado na UNIS em
parceria com a SECULT, denominado “Projeto Iluminar”, que agregava outras
oficinas, entre as quais a de teatro.
24
Até aquele momento a pesquisa realizar-se-ia a partir da oficina de teatro, pois ela possibilitaria um número fixo de jovens com os quais pudesse trabalhar diariamente.
70
Fui apresentada ao grupo de professores e oficineiros, que estavam em reunião
para início das aulas. Um professor que dava aulas de capoeira e de música se
interessou pela idéia da pesquisa e se dispôs a ajudar no que fosse necessário.
Disponibilizou suas aulas para desenvolvimento de atividades em conjunto. Por
intermédio desse professor, foi possível retornar à Unidade na semana seguinte
para acompanhamento das atividades escolares.
O retorno se deu no dia 07 de março, quarta-feira. Dessa data ao dia 15 do mesmo
mês, o trabalho realizado foi de acompanhamento das atividades diárias dos
professores(as) na UNIS e na UFI. Acompanhar tais atividades significava trabalhar
em conjunto com o corpo docente auxiliando no que fosse necessário. Durante esse
período, não havia um posicionamento da sub-gerência pedagógica quanto à
realização da oficina de teatro.
No dia 15 de março, a sub-gerente pedagógica, em uma rápida conversa, expôs as
dificuldades em se desenvolver a oficina de teatro na Unidade. Complicações,
segundo ela, de estrutura da UNIS: falta de monitores para acompanhar os jovens
até o Espaço Educativo; dificuldade para ajustar horários e definir locais para o
trabalho.
Foi solicitado que o trabalho de intervenção se realizasse por meio de
acompanhamento das atividades dos professores, em aulas e atividades extras dos
projetos programados para cada mês. Diante da impossibilidade de realização da
oficina de teatro, mas com a abertura para acompanhar grupos de jovens durante as
aulas e oficinas, o pedido feito pela sub-gerente foi acatado e as atividades de
pesquisa se desenvolveram da maneira como foi solicitada.
Durante o mês de março, foi possível acompanhar as atividades realizadas com os
meninos na unidade de internação masculina e com as meninas na unidade de
internação feminina. Como os sujeitos desta pesquisa ainda eram os meninos, era
preciso acompanhar grupos fixos de alunos durante a semana. Dias de segunda,
quarta e sexta-feira eram acompanhadas as atividades com os jovens na unidade
masculina – as aulas desenvolvidas nas salas do Espaço Educativo e na horta – na
terça e quinta-feira, o acompanhamento ocorria nas aulas na unidade feminina.
71
Como a periodicidade das aulas para as turmas da unidade masculina ainda não
estava regularizada, era comum freqüentar mais dias a unidade feminina.
No mês de abril, o trabalho com os jovens internos foi interrompido em virtude da
intervenção do Batalhão de Missões Especiais da Polícia Militar (BME)25 na UNIS. O
Espaço Educativo destinado às aulas com os internos foi transformado em
alojamento para os militares e todas as atividades de caráter pedagógico
desenvolvidas com os jovens foram suspensas.
A justificativa para a intervenção do BME foi a realização de uma reforma no prédio
da instituição. Sendo assim, era necessário reforço policial para o deslocamento dos
internos de uma ala para a outra enquanto a reforma era concretizada. A UNIS ficou
sob intervenção do BME do dia 10 de abril ao dia 02 de maio. O Espaço Educativo
foi desocupado pelos militares no dia 10 de maio. Durante esse período, os jovens
somente saíam dos alojamentos para banho de sol na quadra.
A retomada das aulas com os jovens não foi regularizada até o fim de junho.
Durante todo o mês de maio e o mês seguinte, foram realizadas tentativas,
frustradas em sua maioria, de atendimento de turmas no Espaço Educativo. O
número de monitores reduzido dificultava o trabalho dos professores. Sendo assim,
as aulas aconteciam sem a freqüência regular dos alunos, sendo por diversas vezes
interrompidas.
Tendo em vista a impossibilidade de acompanhamento de atividades junto aos
meninos e considerando que desde o mês de abril as observações estavam
acontecendo intensamente na unidade feminina, decidiu-se pela mudança dos
sujeitos e do espaço da pesquisa.
Com essas mudanças, outras questões saltaram aos olhos, como por exemplo: as
estratégias utilizadas pelas meninas para assegurarem sua condição juvenil em uma
situação de privação de liberdade; a incorporação de um novo habitus pelas jovens;
e, por fim, os processos de formação vivenciados por elas. Apesar de novos dados
25
O Batalhão de Missões Especiais (BME) no Estado do Espírito Santo equivale ao BOPE do Estado do Rio de Janeiro.
72
aparecerem, a problemática da pesquisa se mantinha focada nos impactos da
internação nos projetos de futuro.
Contudo, o andamento dos trabalhos, ainda esbarrava nos trâmites burocráticos e
hierárquicos na espera de autorizações para algumas das atividades da pesquisa.
Somado a esse quadro, a imprevisibilidade das dinâmicas do dia-a-dia impunha
dificuldades em se formar um grupo de jovens para desenvolver as discussões
sobre o tema. Posteriormente, frente à impossibilidade de realizar entrevistas,
percebeu-se a necessidade de se voltar para questões que estavam presentes nas
observações diárias e, nesse sentido, o que emergia como uma problemática eram
os processos de (trans)formação vivenciados pelas jovens durante a internação. A
vida na Instituição era assim: navegar conforme os imprevistos e não conforme as
orientações precisas de uma bússola.
Um olhar mais aguçado para as estratégias de sobrevivência das jovens fez emergir
outras questões: como era ser jovem em privação de liberdade? Elas se
reconheciam como tal? Como eram percebidas pelos funcionários da Instituição? De
que juventude se estaria falando? O que “fazia a cabeça” das jovens durante a
internação? Qual era o sentido das atividades socioeducativas para as jovens? E,
finalmente: Como ocorriam os processos de formação das jovens que se
encontravam em privação de liberdade?
2.1.1 Da pesquisa idealizada à pesquisa realizada
Este estudo se baseou em um trabalho quanti-qualitativo, tendo como opção para a
pesquisa o estudo de caso. Esse proceder permitiu um aprofundamento na
instituição pesquisada, captando as práticas cotidianas nela vivenciadas. Embora
alguns autores não cheguem a um consenso sobre a conceituação do estudo de
caso, André (2005, p.16) aponta o que se pode considerar como um ponto em
comum entre os pesquisadores: “[…] é que [o estudo de caso] sempre envolve uma
73
instância em ação. […] Não é um método específico de pesquisa, mas uma forma
particular de estudo”.
A abordagem qualitativa contou com: a observação (APÊNDICE II); a consulta a
documentos da instituição e às atividades escolares produzidas pelas jovens durante
as aulas e as oficinas; o registro de conversas informais (preciosas para esta
pesquisa); a aplicação de questionários de questões abertas para as jovens, os
professores, os oficineiros, os técnicos e os assistentes de alunos26 (APÊNDICE III a
VI).
Por meio de observação, buscou-se captar as interações entre os atores – jovens-
jovens; jovens-adultos – e a dinâmica da Unidade pesquisada.
Foi realizada também uma coleta de dados quantitativos a fim de saber quantos
jovens compreendidos na faixa etária de 15 a 17 anos se encontravam em
cumprimento da medida socioeducativa de internação; desse número, quantos eram
do sexo feminino e do sexo masculino; há quanto tempo as jovens sujeitos desta
pesquisa encontravam-se em internação; e o tipo de ato infracional cometido pelas
adolescentes.
As observações realizaram-se no período de março a junho de 2007, perfazendo
quatro meses completos de incursões diárias ao campo (exceto nos fins de semana
e feriados), totalizando uma média de 6 horas por dia27. Foram observados os
26
O quadro de profissionais incluía, entre outras, as seguintes funções: a) professor: este era contratado pela SEDU sendo responsável pelo desenvolvimento de atividades educativas de caráter escolar; b) oficineiro (ou instrutor de ensino profissionalizante): este profissional se encarregava de administrar cursos profissionalizantes para os/as internos/as (havia oficinas permanentes de artesanato, música e informática); c) técnico: nesta categoria se encontravam psicólogos, assistentes sociais e pedagogos que prestavam o atendimento psico-socioeducativo aos/as internos/as; d) assistente de aluno (ou monitor, como era comumente chamado): este se responsabilizava pelo acompanhamento de jovens às consultas médicas, às audiências e outros deslocamentos de internos/as. Eram também funções deste cargo: zelar pela disciplina entre os/as jovens internos/as; distribuir as refeições diárias; administrar os medicamentos prescritos aos/ às jovens; controlar os horários de saídas e de entradas nos alojamentos; distribuir materiais de limpeza ou de higiene pessoal aos/às jovens; redigir relatórios diários dos acontecimentos vivenciados na Unidade. 27
Havia dias em que a observação se dava ou no período da manhã ou no turno vespertino. Em outras ocasiões, os acontecimentos presenciados indicavam que era interessante permanecer na instituição nos dois horários. Havia, ainda, dias em que se optava por não ir a campo, por questão de segurança.
74
momentos de aula, de “recreação”, e de “tranca”28, sempre na companhia dos
professores ou dos assistentes de alunos. O contato com as jovens era inconstante
tal qual a rotina da unidade pesquisada. Havia semanas em que era possível
encontrar as internas de segunda a sexta. Em outras, passavam-se dois, três ou
todos os dias sem poder vê-las. Isso porque ou as meninas não compareciam às
aulas – resultado da indisposição que sentiam para saírem dos alojamentos ou em
razão de medidas disciplinares aplicadas que excluíam o banho de sol – ou em
virtude de a situação do momento implicar risco à segurança dos profissionais.
Em companhia dos professores e oficineiros29, foi possível transitar por espaços de
sala de aula, pela secretaria e gerência da instituição, pela sala dos técnicos, pela
sala dos professores, pela unidade feminina de internação, pelos alojamentos das
internas na unidade feminina e pelos alojamentos dos internos da ala do Seguro da
unidade masculina30, pela quadra externa da unidade, pelos espaços onde se
desenvolviam as oficinas – como a padaria, a sala de artes e as salas de informática
–, pela horta utilizada por alguns jovens da unidade masculina, pela unidade de
saúde, pela unidade de internação provisória masculina, pelo auditório onde
aconteciam reuniões com as famílias. Em alguns destes espaços, como a sala dos
professores, a gerência, a padaria, não era necessária a companhia de professores
e/ou oficineiros. Para os demais, fazer parte do grupo dos funcionários facilitava o
acesso.
Foi feito um diário de campo – totalizando 155 páginas digitadas – no qual se
registrou o máximo das informações obtidas nas observações, descrição dos
acontecimentos, dos espaços e dos sujeitos. Foi realizado um exercício de
memorização, uma vez que não era possível andar com papel e caneta anotando o
que mais chamava atenção. Assim, ao chegar do campo de observação, o registro
28
A tranca se refere ao horário de reclusão nos alojamentos. Nesses momentos, a observação se dava por meio das visitas que eram realizadas junto aos professores, a cada ala, conversando com as jovens, perguntando por que não compareceram às atividades, entregando exercícios escolares para reposição de aulas perdidas. Enfim, era um momento informal que permitia descortinar um universo juvenil que não se fazia à mostra nos momentos de “liberdade”. 29
O oficineiros eram os educadores responsáveis por oficinas de artes, música, capoeira, contratados pelo Instituto de Atendimento Sócio Educativo do Espírito Santo, por intermédio da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo. 30
A visita aos alojamentos sempre contava com a presença de professores ou de monitores. Ao alojamento da unidade feminina tive acesso regular, quase diário. Quanto ao alojamento masculino, isso só foi possível uma vez, em companhia de um grupo de professores.
75
diário era indispensável. Buscou-se, dessa maneira, escrever tudo o que foi possível
memorizar. Conforme o dia, se este era muito intenso de acontecimentos, as
anotações chegavam a ocupar dez páginas digitadas do diário de campo. Em
outros, porém, não se estendiam por mais de duas folhas.
Em algumas ocasiões foi possível, por meio da conversa informal, direcionar
questões para as jovens e fazer uma espécie de coleta de “depoimentos”. Com o
auxílio dos professores, que me emprestavam folhas de papel e lápis, tornava-se
viável anotar as principais falas das jovens. Esse material era, posteriormente,
registrado em diário de campo.
A proposta inicial desta pesquisa incluía a entrevista individual (APÊNDICE VII) nos
instrumentos de coleta de dados. No mês de abril, foi realizada uma entrevista com
três adolescentes. Dias depois, o teor da entrevista chegou às autoridades que
decidiram recolher as fitas, o que não chegou a se concretizar. A partir desse
episódio, tomou-se a decisão, em nome da segurança de todas as envolvidas –
entrevistadas e entrevistadora – pelo redirecionamento da coleta de dados, ou seja,
pela não realização das entrevistas individuais e/ou grupais. Cabe esclarecer que
aquela entrevista de 1 hora e 30min não foi utilizada neste trabalho.
Sendo assim, optamos por substituir as entrevistas pelos questionários, que
continham questões abertas e foram aplicados às jovens em internação provisória e
definitiva, aos professores (das unidades feminina e masculina), aos oficineiros (das
unidades feminina e masculina), aos assistentes de aluno da unidade feminina, aos
técnicos (das duas unidades) e às sub-gerentes. Como a resposta ao questionário
tinha um caráter não-obrigatório, nem todos responderam. No total foram devolvidos
45 questionários; destes 22 eram de jovens (em internação e internação provisória),
5 de técnicos, 9 de professores, 5 de oficineiros e 4 de assistentes de aluno.
A aplicação desse instrumento de coleta ocorreu em dias alternados. Durante uma
semana, houve dedicação exclusiva aos professores e técnicos da unidade
masculina de internação. Quando um número significativo já havia sido devolvido
para esta pesquisadora, outra semana foi destinada à aplicação de questionários
somente aos funcionários da unidade feminina. Para as meninas, foi dispensado um
76
dia no qual a entrega do material foi realizada pela manhã e o recolhimento do
mesmo foi feito ao fim da tarde. Como nem todas retornaram o material nesse dia e
nos dias seguintes, outra data foi reservada para re-aplicação dos questionários
àquelas que não haviam respondido.
A consulta a documentos incluía: o Regimento Interno da Instituição e o projeto para
implantação de uma escola estadual (este se encontrava em fase de elaboração)
que continham lista de alunos, número de professores, oficinas oferecidas, bem
como os seus objetivos, os fundamentos pedagógicos e um histórico da instituição.
Também foi possível ter acesso às pastas que reuniam as atividades escolares
produzidas pelas jovens.
Os sujeitos principais desta pesquisa foram jovens do sexo feminino na faixa etária
entre 12 e 18 anos, que se encontravam sob medida socioeducativa de internação,
em regime provisório ou definitivo. A instituição locus da investigação foi a Unidade
de Feminina Internação (UFI), integrante do Instituto de Atendimento Sócio-
Educativo do Espírito Santo.
2.2 MAPEANDO O ESPAÇO DA PESQUISA
O Instituto de Atendimento Sócio-Educativo se situava na Região Metropolitana da
Grande Vitória, mais precisamente, na sede do município de Cariacica-ES, em uma
região onde também se localizavam outras instituições: o hospital psiquiátrico, o
presídio feminino e o centro formações da polícia militar.
O Instituto compreendia as seguintes unidades de internação: A Unidade de
Internação Masculina, as Unidades de Internação Provisória Masculina e Feminina,
a Unidade de Atendimento ao Deficiente, Unidade Feminina de Internação. Os
prédios foram construídos em um mesmo local, formando um “Complexo”, como
definido pelos próprios funcionários que lá trabalhavam. A área onde o Instituto se
77
situava ficava próximo a um vale, era arborizado, possuía um ar bucólico de cidade
de interior e a paisagem extra-muros era muito bonita.
Os muros altos separavam o Instituto da rua. Existiam duas entradas para carros e
uma entrada para pedestres, ambas vigiadas por guaritas. Na entrada principal, um
pequeno “posto” policial. Para entrar era necessário mostrar documento de
identidade e assinar uma lista de controle de entrada e saída de pessoas.
O terreno onde os prédios das unidades foram construídos era irregular. Na parte
mais alta, pouco mais a frente da entrada principal ficava a unidade de internação
masculina e a sala da gerência do Instituto. Próximo a ela, tinham-se as alas
destinadas ao Seguro e à unidade de saúde.
A escola situava-se em uma região à direita em relação à guarita principal e atrás do
prédio da unidade masculina de internação. As instalações da escola encontravam-
se em dois grandes galpões. O primeiro era dividido em quatro pavilhões. No
primeiro, encontravam-se sete salas de aulas, dois banheiros e uma sala de
informática. No segundo, funcionava a padaria e a sala de artes. No terceiro, estava
a sala dos professores e a sala dos técnicos. E no quarto funcionava um
almoxarifado. O galpão era coberto por um telhado de zinco. Nos dias de calor, a
temperatura no interior do prédio era altíssima e insuportável.
Em um segundo galpão, funcionava o auditório da escola: um salão sem divisórias,
também com cobertura de telhado de zinco, igualmente quente em seu interior. As
paredes eram revestidas por uma pintura antiga, gasta e era coberta por recados
escritos pelos jovens e por algumas pinturas envelhecidas.
Seguindo em frente à entrada principal (a guarita policial), passando pelo prédio da
unidade masculina de internação, chegávamos a mais duas unidades do Complexo.
Em frente funcionava a horta. Continuando à direita, contornando a lateral do prédio
da unidade de internação masculina situava-se a entrada para a unidade de
internação provisória.
78
Tomando novamente como referência a entrada do Instituto, à esquerda da guarita
policial estava o acesso para a unidade feminina. O edifício, de dois andares, ficava
situado na parte mais baixa do terreno. O primeiro pavimento abrigava a unidade de
atendimento para portadores de deficiência mental. O acesso a ela se dava pela
área externa do Complexo. No térreo, funcionava a unidade feminina que era de
pequeno porte e abrigava em um mesmo prédio as alas de internação provisória, de
internação definitiva e do Seguro. Esta última ficava isolada das demais, as quais
ficavam em um mesmo setor.
Ao entrar na unidade feminina, deparava-se com uma grande sala de recepção,
contendo uma mesa grande próxima a uma das paredes, umas cadeiras do outro
lado, um bebedouro, e uma geladeira, na qual eram guardados os mantimentos
trazidos pelas famílias para as meninas. Havia outros cômodos que davam para
essa recepção: um banheiro, uma pequena cozinha para uso dos funcionários e
uma outra sala que anteriormente era para uso dos professores e abrigava os
armários dos assistentes de aluno, depois passou a alojar a diretoria/secretaria.
Interno a esta sala havia um pequeno almoxarifado. De frente para a entrada, um
corredor pequeno dava acesso a mais duas salas: a sala dos técnicos (psicólogo e
assistente social) e a sala que já havia sido utilizada pela diretoria e passou a ser a
sala dos professores e assistentes de aluno. Neste cômodo ficavam os armários
utilizados por professores e assistentes de aluno, uma mesa grande, uma mesa
menor, algumas cadeiras e um banco comprido, um local para guardar as chaves
dos cadeados que trancavam os portões e alguns medicamentos usados pelas
jovens.
A unidade havia passado por reformas no primeiro semestre de 2007 e estava com
pintura nova, em tons pastel, o que tornava o ambiente mais agradável. Alguns
cartazes produzidos em aulas pelas meninas ficavam expostos nas paredes. Havia
também um quadro de avisos com informes para os funcionários e para os pais.
Folders distribuídos pelos agentes de saúde também ocupavam espaço no quadro
de avisos e nas paredes.
Ao fim do pequeno corredor, um portão de grades reforçadas dava acesso a um
outro corredor em formato de “L” onde se localizavam: à esquerda, o portão de
79
acesso à quadra de esportes; em frente, a sala de informática; e, virando à direita no
corredor, duas salas utilizadas como ala de “seguro”31. Todas as salas tinham uma
porta de madeira e outra de grade de espessura grossa e eram trancadas por
cadeado (fechadura tetra).
No fim desse corredor, à esquerda, mais um portão dava passagem a outras duas
salas de aula: uma com o quadro em más condições de uso e outra com um quadro
em condições menos precárias. Os recintos eram divididos por uma parede. Não
havia portas. No início do ano, havia cadeiras e mesas de plástico, mas, no meio do
semestre esses objetos foram levados para os alojamentos das meninas a pedido
delas. Se o professor quisesse fazer uso desses materiais, era preciso solicitar às
meninas que os emprestassem.
As paredes também tinham sido pintadas em verde claro, porém infiltrações do
prédio estragaram o trabalho feito. Em alguns locais, a cobertura de tinta havia
descascado. Nas paredes havia escritos feitos pelas meninas com seus nomes,
seguidos dos artigos em que foram enquadradas. Algumas registravam palavras de
incentivo, outras traziam declarações de amor.
O último portão no fim do recinto em que se localizavam as salas de aula era a
entrada para os alojamentos das meninas. Havia um estreito e longo corredor que
dava acesso a todos os seis cômodos. Cada alojamento tinha beliches de alvenaria.
Dentro das habitações, uma “meia parede” separava o banheiro, com um chuveiro e
um vaso sanitário (no estilo “banheiro turco”, com apenas um buraco no chão). O
piso era de cimento e as paredes eram cobertas por tinta envelhecida. Os
dormitórios eram escuros e úmidos. Nas paredes, as meninas escreviam
declarações de amor aos namorados e às namoradas, deixavam recadinhos para as
amigas, colavam fotos de familiares ou recortes de revistas. Alguns tinham um varal
preso às pilastras dos beliches onde eram penduradas roupas, lençóis, toalhas. Não
existiam armários para depositar os pertences. Algumas jovens conseguiam caixas
de papelão para guardá-los próximos às suas camas. Dependendo do grupo que
31
Uma dessas salas era destinada aos assistentes de aluno, mas precisou ser desativada para instalar três meninas. Nesse cômodo havia banheiro e duas janelas com grades, uma que dava acesso ao beco externo e outra que dava para o corredor interno. Esta era mantida fechada pelas meninas e era coberta com lençóis, impossibilitando enxergar o interior do recinto.
80
ocupasse o alojamento, havia escalas de limpeza e regras internas daquele
dormitório.
Do “quarto de dormir” não era possível avistar o céu. Era comum as jovens nos
perguntarem se na noite anterior havia muitas estrelas no firmamento ou se a lua
estava bonita.
Do lado oposto aos dormitórios, havia um beco que se estendia pela lateral direita
do prédio e cujo acesso era pelo lado de fora da unidade feminina. Desse local,
exalava um cheiro forte e desagradável, pois era comum que os internos da unidade
de atendimento para deficientes jogassem de suas janelas em direção ao beco os
restos de comidas ou fezes e urina.
No lado esquerdo do prédio da unidade feminina, situava-se uma quadra de
esportes que era utilizada em horários distintos pelas meninas e pelos meninos do
Seguro da unidade de internação masculina. A quadra possuía muros altos,
reforçados por alambrados. De um lado da quadra, havia uma arquibancada,
próxima a um muro muito alto que separava a unidade da rua. Na parede próxima
ao portão que dava acesso à unidade feminina, havia um chuveiro.
A quadra não era coberta. Desse modo, tinha-se visão da parte mais alta do terreno,
na qual se situava o prédio da unidade masculina, o seguro masculino e a unidade
de saúde.
Essa quadra era o “veículo de comunicação” entre as meninas e os meninos em
pelos menos duas situações. A primeira, quando permitia que as meninas vissem os
meninos da ala do Seguro que podiam ficar do lado de fora, na frente do prédio. Ou
ainda quando qualquer outro interno fosse para a unidade de saúde. Assim, era
possível conversar com eles. A conversa geralmente começava com uma pergunta
das meninas: “Qual é, menor?” e o “papo” se desenvolvia. Outro modo que as
meninas e meninos encontravam para se comunicar era deixando recados nos
muros que cercavam a quadra. Em geral, eram recadinhos apaixonados. Por
exemplo:
81
R.32
não “dá jelo”33
J. C.
34 – 157
35
Num tô “dando jelo”36
. R. Para as mina da UFI
37
Fé em Deus Que a liberdade vem Amo vocês tudo A. te amo!
38
Os muros da quadra também serviam para a expressão da “veia poética” de alguns
jovens:
Todos tem um sonho neste mundo Nunca desista Se você acredita core Atraz basta sonha e Espera seu sonho vai se realisa Pois eu acredito Ass.: C.
39
Quando estou sozinho Quero esta acompanhado Quando estou acompanhado Quero estar sozinho Isto faz parte de mim Mais agora que estou sozinho Quero te você eternamente Ao meu lado... Em cada rosto vejo seu rosto Em cada olhar vejo seus olhos Em cada riso vejo sua boca A cada palavra ouço sua voz Onde quer que eu vá lá está você
Te adoro
32
“R”. representa o nome da jovem. 33
A gíria “dar gelo” indica que alguém está indiferente com a outra pessoa. Na forma como era utilizada por estes/estas jovens, “dar gelo” significava que alguém não estava mais respondendo aos bilhetinhos (“catuques”) e às cartinhas que eram trocados. Neste caso, uma menina reclamava que o menino não respondia mais aos seus bilhetes. E ele deixa a resposta logo abaixo da reclamação dela. 34
Representa o nome do rapaz. 35
157 – Este é o número do artigo que enquadra o assalto a mão armada no Código Penal. Era comum que os/as jovens se identificassem escrevendo o nome do lugar onde residiam (neste caso “C.”) e/ou identificando o artigo no qual foram enquadrados. 36
Cabe observar que nesta dissertação todas as escritas dos sujeitos (jovens e demais funcionários) serão fielmente transcritas. 37
UFI: Unidade Feminina 38
“A” representa o nome de uma das jovens internas. 39
“C.” representa o nome do lugar onde o/a jovem mora.
82
Outros recados escritos demarcavam a assunção de uma condição de “bandido”:
Tudo na vida tem seu preço E valor, então não pague A prestação irmão Nois é ladrão. 157 da UNIS.
40
Bandido que é bandido Não se ilude Vive no crime E morre no estilo Hollyowd Vida Loka – 157
Outros recados escritos nos muros eram ilegíveis pois a tinta estava desgastada
pelo tempo.
A estrutura física do “Complexo” era inadequada e muito antiga. Estava passando
por reformas durante o período da pesquisa de campo. Os funcionários, em especial
os professores, lamentavam as limitações que as más condições dos prédios
impunham ao trabalho.
2.3 QUEM SE ESCONDE ATRÁS DOS MUROS? - OS SUJEITOS DA PESQUISA
Participaram desta pesquisa as jovens da unidade feminina de internação e os
funcionários da instituição: professores, oficineiros, assistentes de aluno e equipe
técnica.
Os professores que trabalhavam nas unidades eram contratados pela Secretaria de
Educação do Estado do Espírito Santo na categoria de designação temporária para
atuarem na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Não existiam turmas de
ensino médio. Havia nas unidades professores: de 1ª a 4ª séries; de Ed. Física e de
Artes de 1ª a 8ª séries; de Língua Portuguesa; de Matemática; de Ciências; de
História e de Geografia, todos de 5ª a 8º séries. Dos professores que responderam
40
Unidade masculina de internação.
83
aos questionários, todos declararam possuir curso superior completo ou em
andamento. A graduação cursada não correspondia, necessariamente, à disciplina
ministrada. Havia também docentes com cursos de pós-graduação (latu senso e
stricto senso).
Os(as) professores(as) estavam na faixa etária de 25 a 50 anos. O tempo de
trabalho na unidade variava de 4 meses a 2 anos.
Os assistentes de aluno, os oficineiros e os técnicos eram contratados pelo Instituto
de Atendimento Sócio-Educativo. Na unidade feminina, tive contato com 10
assistentes de aluno, 2 oficineiros, 4 técnicos (1 psicólogo, 1 pedagoga, 1 assistente
social e 1 chefe de segurança – responsável pela supervisão dos assistentes de
aluno), 1 diretora da unidade e 2 sub-gerentes (responsáveis pelas áreas
pedagógica e de atendimento das demais unidades).
Os(as) assistentes de aluno que responderam ao questionário tinham entre 26 e 50
anos e o tempo de atuação na unidade variava de 1 ano e 6 meses a 3 anos.
Declararam possuir segundo grau completo (formação em cursos técnicos) e um
curso superior completo.
Os(as) oficineiros(as) estavam na faixa etária de 25 a 45 anos. O tempo de atuação
na unidade variava entre 10 meses e 8 anos. Afirmaram ter curso de graduação em
andamento e um tem formação técnica.
Os(as) técnicos(as) encontravam-se na faixa etária de 30 a 55 anos. O tempo de
atuação se estendia de 9 meses a 25 anos na instituição. Todos declararam possuir
curso superior completo ou em andamento.
Na unidade feminina, 12 jovens (3 delas encontravam-se no Seguro) cumpriam
medida socioeducativa de internação. Destas, 9 responderam aos questionários
aplicados. Treze jovens em regime de internação provisória que estavam na unidade
durante o período da aplicação dos questionários também responderam aos
mesmos. Precisar um número de jovens em cumprimento de regime provisório não
foi uma tarefa fácil, uma vez que o fluxo de entrada e saída de jovens era intenso.
84
No último mês da pesquisa de campo, a atualização do número de internas
aguardando pelos resultados de suas audiências registrava 19 jovens.
A faixa etária das jovens que responderam aos questionários variava de 12 a 18
anos – no fim de maio e início de junho, meses da aplicação dos questionários –
como mostra a tabela abaixo:
TABELA 01- Idade das jovens
Idade Internação provisória41
(1 não respondeu) Internação42 (1 não respondeu)
12 anos 01 __
13 anos 01 __
14 anos __ __
15 anos 03 01
16 anos 01 04
17 anos 06 02
18 anos __ 01
Para as jovens que estavam sentenciadas, o tempo de internação variava de 3
meses a 1 ano e 7 meses. A tabela a seguir relaciona a idade e o tempo de
internação:
As jovens estudavam em escolas regulares quando em liberdade. As tabelas a
seguir mostram as séries cursadas pelas jovens no período anterior à internação.
41
A internação provisória compreende as jovens que aguardam a sentença do juiz. 42
Na internação encontram-se as jovens já sentenciadas.
TABELA 02- Idade e tempo de internação das jovens em medida socioeducativa de internação
(1 não respondeu idade, está há 3 meses)
Idade 3 a 5 meses 6 a 8 meses 9 a 12 meses Acima de 1 ano
15 anos ___ 01 ___ ___
16 anos 02 ___ ___ 02
17 anos ___ 01 ___ 01
18 anos ___ ___ ___ 01
85
As meninas da internação provisória disseram estar matriculadas nas seguintes
séries43:
As jovens já sentenciadas declararam que, quando estavam em liberdade, cursavam
as séries:
TABELA 04- Relação idade-série (anterior à internação) das jovens da internação
(1 não respondeu)
Idade 4ª série E.F.
5 série E.F.
6ª série E.F.
7ª série E.F.
8ª série E.F.
1º ano E. M
2º ano E. M
3° ano E. M
Em liberdade
Em internação
15 anos 15 anos __ __ __ __ 01 __ __ __
15 anos 16 anos __ __ __ 02 __ __ __ __
16 anos 16 anos __ __ __ __ 02 __ __ __
16 anos 17 anos __ __ 01 __ __ __ __ __
17 anos 17 anos __ __ __ 01 __ __ __ __
17 anos 18 anos __ __ __ __ __ __ 01 __
43
É importante ressaltar que as meninas da internação provisória não eram matriculadas pela escola da instituição. Se a jovem fosse sentenciada, dava-se início a um processo de “transferência” escolar e seria efetuada a sua matrícula na modalidade de ensino oferecida pela Instituição. No entanto, havia um acompanhamento de participação das jovens em internação provisória em atividades socioeducativas. Estas eram arquivadas e registradas nos relatórios das internas, que eram apresentados ao juiz responsável por cada caso. Quando saía da unidade, a jovem levava consigo uma declaração afirmando ter cursado disciplinas escolares referentes à série na qual ela estaria matriculada.
TABELA 03- Relação idade-série (anterior à internação) das jovens da internação provisória
(1 não respondeu)
Idade
4ª série E.F.
5 série E.F.
6ª série E.F.
7ª série E.F.
8ª série E.F.
1º ano E. M
2º ano E. M
3° ano E. M
12 anos __ __ 01 __ __ __ __ __
13 anos __ __ __ __ 01 __ __ __
15 anos __ 01 __ 01 __ 01 __ __
16 anos __ __ __ 01 __ __ __ __
17 anos __ __ 01 __ 02 __ 02 01
86
É possível observar que havia uma defasagem idade/série no período anterior à
internação, compensada pela escolarização na unidade, oferecida na modalidade de
ensino supletivo44.
Das 12 jovens que cumpriam medida de internação 7 foram sentenciadas por tráfico
de drogas (artigo 12), 3 por homicídio (artigo 121), 2 por assalto à mão armada
(artigo 157) e envolvimento com tráfico de drogas.
Ficou claro que a maioria das jovens, tanto em regime provisório quanto definitivo,
tinham envolvimento com o tráfico de drogas. Geralmente, as jovens entravam para
o tráfico por influência de seus parceiros e era comum serem detidas junto com eles.
Relacionando-se com homens maiores de idade, era comum escutar as meninas
dizerem que assim que saíssem da unidade iriam tirar “seus homens” da cadeia.
Uma experiência vivida por uma jovem da internação provisória chamou atenção
quanto ao envolvimento de jovens com os gerentes do tráfico de drogas. Durante o
período em que estive na unidade, foi possível acompanhar o desenvolvimento
desse caso. A jovem em questão namorava um traficante (maior de idade). A
menina morava com a avó e esta, sem saber o que fazer com a neta, pediu que ela
escolhesse entre morar com ela ou viver com o namorado. A jovem decidiu ir com o
companheiro. Tempos depois, a jovem, o namorado e os irmãos dele foram detidos.
Durante o tempo em que aguardava sua audiência na unidade de internação
provisória, a jovem repetia o discurso de sair para tirar “seu homem” da cadeia.
Na primeira audiência, todos os envolvidos foram ouvidos pelo juiz que
acompanhava o processo da jovem. Na ocasião, o namorado e os irmãos apontaram
a jovem como gerente da boca de fumo, para poderem se livrar da condenação por
tráfico de drogas e corrupção de menores. A menina, que poderia ter sido liberada
nesta audiência, retornou para internação e outra audiência foi marcada para que a
justiça pudesse apurar as novas informações apresentadas. A jovem conseguiu sua
liberação na audiência seguinte.
44
O avanço nas séries durante o período da internação não significa que as alunas tenham freqüentando regularmente às aulas e tenham apreendido o conteúdo referente à série cursada.
87
Durante o período da pesquisa empírica, só foi registrado um caso como esse. No
entanto, os professores e assistentes de aluno mais antigos relataram que não foi a
primeira vez que uma jovem da unidade era incriminada por seu parceiro para que
ele ficasse livre. Segundo os funcionários, os traficantes namoravam meninas
menores de idade para que, em uma eventualidade como essa, as apontassem
como responsáveis. Assim, eles ficariam livres, ou pegariam uma pena menor e as
jovens ficariam em internação por no máximo 3 anos.
Grande parte dos relatos feitos pelas jovens indicava que, quando elas se envolviam
em assaltos, havia a presença de parceiros do sexo masculino na ação executada.
A situação de classe também atravessava a condição juvenil das jovens internas da
unidade. Das jovens na unidade, apenas uma parecia ser de classe média. As
demais jovens eram das classes populares e residiam em bairros pobres dos
municípios da Grande Vitória.
2.3.1 As jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação
“Não sou bandida, Sou apenas artista da arte proibida.”
45
As jovens sujeitos deste estudo tinham um comportamento irreverente no falar e no
vestir, entretanto, eram reservadas com respeito às suas histórias de vida. Falavam
pouco sobre si mesmas, como forma de se proteger46.
Algumas meninas se destacaram na pesquisa pela influência que tinham sobre as
demais (ou pelo seu entrosamento em grupos que se destacavam); outras pelas
45
Carolina, 17 anos. 46
Uma jovem chegou a criar uma identidade. Apresentou-se com um nome fictício, disse ter vindo de outra cidade, inventou um artigo no qual teria sido enquadrada. Sua verdadeira identidade foi descoberta quando a jovem foi transferida para o “Seguro” e se fez necessário entrar em contato com sua família. Ao levantar a ficha da interna, desvendou-se o “disfarce”.
88
contribuições que trouxeram a esta pesquisadora para o entendimento da instituição,
das regras institucionais e grupais e das estratégias de sobrevivência por elas
utilizadas. A seguir as jovens serão apresentadas47:
1) Joana, 17 anos, era uma jovem alta, magra, com os cabelos crespos, curtos e
loiros. Tinha um pouco de sardas no rosto. Estava sempre de short e top
curtíssimos. Era divertida e namoradeira. Tinha por costume ficar na quadra com
suas amigas dançando funk ou gritando para os meninos da unidade masculina. A
jovem começou a namorar um interno da unidade, mas não tinha certeza se ele
correspondia aos seus sentimentos. [“Então os dois se acharam na escuridão/ Ela
com os pés no chão e ele não/ Seu destino cego a lhes conduzir/ Sua sorte à solta a
lhes indicar um caminho”]48. Joana não gostava de fazer atividades escolares. O
temperamento forte e as respostas ríspidas escondiam uma menina sensível e
carente de atenção. Sua mãe se encontrava detida no presídio feminino. O motivo
de estar na unidade seria o envolvimento com o tráfico de drogas. Joana recebeu
seu alvará no fim do primeiro semestre de 2007, após onze meses de internação.
2) Iolanda, 16 anos, morava em outro Estado e foi detida no Espírito Santo por porte
de drogas. Ela era diferente das demais. Tinha boa escolaridade, era muito
educada, lia muitos livros, possuía roupas caras49, falava outras línguas como:
inglês, francês, italiano, espanhol, árabe. Ela gostava de ser “classificada” pelos
professores como uma “lady”. Essa jovem foi transferida para seu Estado após oito
meses de internação no Espírito Santo. A jovem tinha os cabelos cacheados, de
tamanho médio, tingidos de loiro. Era baixa e magra. Não tinha afinidade com as
demais internas por ser considerada pelas outras como “metida”.
3) Bia, 16 anos, era morena, estatura mediana. O cabelo castanho era cacheado, na
altura dos ombros. Rosto de menina. Olhos pretos e muito expressivos. Tinha um
comportamento “espevitado”, falava alto, mexia com todo mundo. Era companheira
com as suas amigas e prestava uma acolhida às jovens recém-chegadas. Era um
pouco arredia com os adultos desconhecidos. Dengosa e um pouco mimada,
47
Os nomes utilizados são fictícios e retirados de letras de músicas. (Ver as letras nos ANEXOS I a XVI). 48
Ver ANEXO I. 49
Segundo relato dos funcionários, seus pertences estavam apreendidos na Polícia Federal.
89
chateava-se quando não tinha suas vontades satisfeitas. Bia estava grávida de sete
meses quando a conheci. Foi possível acompanhar sua gravidez até o fim. Ela foi
autuada por assalto a mão armada. Seu companheiro, pai de seu filho, também foi
preso. Ele faleceu meses depois. Bia pôde ir ao velório. Ela ficou deprimida por um
tempo até começar a trocar “catuques” com Léo, um jovem da unidade masculina de
internação. [“Como se a vida fosse um perigo/ Como se houvesse faca no ar/
Qualquer maneira de amar valia/ E Léo e Bia souberam amar”]50. Começaram a
namorar e se tornaram o “casal promissor” da instituição. Bia foi liberada após o
parto.
4) Natasha, 18 anos, era magra, de estatura média. Pele morena, olhos grades e
castanhos, cabelos de mesma cor e cacheados. De comportamento imprevisível, ela
era agressiva no falar. Agitada, mexia com todo mundo, fazia gracinhas para tentar
desviar a atenção para si. Vestia-se com roupas masculinas e assumiu-se como
liderança na unidade. Ela tinha uma tatuagem nas costas e outra no antebraço, com
o nome “Jesus Cristo”. Seu braço tinha várias marcas de cortes, que pelo tamanho e
espessura pareciam ter sido feitos com estilete ou faca pequena, tipo canivete.
[“Tem sete vidas/ Mas ninguém sabe de nada/ Carteira falsa com idade adulterada/
O vento sopra enquanto ela morde/ Desaparece antes que alguém acorde/ Um
passo sem pensar/ Um outro dia/ Um outro lugar”]51. Segundo a história contada
sobre ela na unidade, a jovem foi detida por homicídio. Ela teria um parceiro de
“trabalho”, que estaria cumprindo internação na unidade masculina, em companhia
de quem realizava assaltos à mão armada e participava de crimes mais graves.
Natasha tinha domínio sobre as jovens na unidade. Namorou Iolanda por alguns
meses. Por motivos de ciúmes, houve uma briga entre as duas, que resultou no
término do relacionamento. Em seguida, começou a namorar Bete e, ao mesmo
tempo, mantinha um relacionamento com Zoraide, o que não a impedia de ter
recaídas por Iolanda.
5) Bete, 16 anos, era uma jovem muito bonita. Chamava atenção por ser alta e ter
um corpo bem definido. Tinha pela clara, rosto arredondado, olhos grandes e azuis.
Cabelos lisos e negros, na altura dos ombros. Usava de sua sensualidade para
50
Ver ANEXO III. 51
Ver ANEXO IV.
90
convencer as pessoas a fazer o que ela queria. [“Pode seguir a tua estrela/ O teu
brinquedo de „star‟/ Fantasiando um segredo/ No ponto aonde quer chegar”]52. Bete
era animada, gostava de conversar com as amigas. Era firme na maneira de falar e
um pouco dura, às vezes. Ela participava pouco das aulas, mas gostava de estar
nas apresentações feitas para as famílias em eventos realizados na unidade. Bete
foi enquadrada por homicídio.
6) Fátima, 17 anos, tinha a pela clara, os cabelos curtos, crespos e negros e olhos
da mesma cor. Era pálida e tinha um ar abatido. Muito segura em se expressar,
afirmava não ter medo de nada. Somente não queria morrer antes de ver seu filho
novamente. Quando falava sobre ele deixava transparecer ternura e o fazia com
uma [“voz suave que era uma lágrima”]53. Muito inteligente, com raciocínio ágil, era
ela quem organizava as regras na sua ala do Seguro. Nos raros momentos de
alegria, expressava um sorriso bonito. A jovem foi enquadrada por homicídio.
7) Tereza, 15 anos, era negra, altura mediana, tinha cabelos curtos, crespos e
negros e olhos da mesma cor. Seu olhar era calmo. Tereza descobriu-se grávida
durante a internação. Pude acompanhar sua gestação até o oitavo mês. Também foi
possível presenciar a sua trajetória de internação provisória para definitiva. Muito
engraçada e divertida, garantia momentos de risadas durante as aulas. Era assídua
nas disciplinas dos professores dos quais gostava. Era conhecida entre os
professores pelo seu capricho, pela sua dedicação e por escrever textos muito
bonitos. Apesar de ser muito amiga das meninas do seu grupo, não se deixava
influenciar por ele. Ela sabia “escorregar” entre as normas internas de seu grupo de
amizades, entre as regras da instituição e tinha suas próprias convicções sobre o
que seria “certo” ou “errado”. Sua mãe e seus irmãos encontravam-se presos. Eles
tinham envolvimento com o tráfico de drogas. Na tentativa de se manter e de ajudar
seus familiares, entrou para o tráfico e foi “pega” pela polícia.
8) Maria, 16 anos, era baixinha, negra, tinha cabelos crespos, curtos e negros. Os
olhos eram dessa mesma cor. De olhar triste, Maria estava deprimida nos últimos
meses da pesquisa de campo. Quando a conheci, ela participava ativamente das
52
Ver ANEXO V. 53
Ver ANEXO VI.
91
aulas, era alegre e divertia as colegas com piadinhas. Maria [“mistura a dor e a
alegria”]54. Ela era articulada e sabia “negociar” com a direção técnica da unidade.
Maria tinha um papel importante no seu grupo. Ela ditava algumas ações e tinha o
respeito das demais jovens. Tinha também seus desafetos, principalmente com as
jovens do Seguro. Maria namorava Rubens, que era da internação provisória. De
temperamento calmo, às vezes nos surpreendia com atitudes violentas. O motivo de
estar cumprindo sua segunda internação seria envolvimento com tráfico de drogas.
Na primeira vez, foi detida por furto, mas foi liberada pouco tempo depois.
9) Ana, 16 anos, era morena, de baixa estatura, tinha os cabelos crespos, curtos e
negros. O olhos eram da mesma cor. Tinha um corpo muito bonito e chamava
atenção. Gostava de dançar e passava o dia ensaiando coreografias. Tinha um jeito
sedutor de falar, sempre com o tom de voz baixo como se estivesse choramingando
e com meiguice. No entanto, estava freqüentemente envolvida em confusões. [“O
teu olhar sempre distante/ Sempre (...) engana”]55. O motivo central das brigas era
provocação de ciúmes nas demais internas. Como resultado, teve que ser
transferida para o Seguro para garantia de integridade física. Ela era da internação
provisória e estaria sendo acusada de homicídio. Participava das aulas e fazia
atividades. Era inteligente e muito crítica.
10) Juraci, 18 anos, era talvez a mais irreverente das internas. Imprevisível em suas
ações, fazia o que lhe “desse na telha” (como ela mesma afirmava). Não havia quem
escapasse de suas piadinhas. Engraçada na maneira de se expressar, arrancava
gargalhadas das pessoas com quem convivia. Lidar com Juraci, no entanto, não era
muito fácil. Ela somente aceitava as opiniões de suas amigas, Natasha e Maria.
Freqüentava as aulas no começo do ano, mas no meio do semestre “desistiu” de
fazer atividades escolares. Juraci era negra, tinha os cabelos bem curtos, crespos e
negros. Olhos da mesma cor. Alta e de corpo avantajado, a jovem era forte. Juraci
chegou à unidade por tráfico de drogas.
11) Camila, 17 anos, era uma jovem reservada e séria. Era firme no falar. Tinha um
olhar assustado e expressão de abatimento. [“Os olhos que passavam o dia a (...)
54
Ver ANEXO VIII. 55
Ver ANEXO IX.
92
vigiar”] 56. Ela dividia a ala do Seguro com Ana e Fátima. Camila era morena clara,
cabelos longos e castanhos, com os olhos da mesma cor. Feições infantis.
Participava das atividades escolares com freqüência. O motivo que a levou para a
unidade de internação foi tráfico de drogas. Assim como Ana, Camila teve que ser
transferida para o Seguro após brigas com as internas.
12) Judite, 16 anos, era uma jovem divertida, embora tivesse um olhar triste.
Quando chegou à internação provisória, Judite era calada, andava se esgueirando
pelas paredes e quase não interagia. Tinha o costume de chupar o dedo polegar
enquanto segurava nas mãos uma tira de tecido. Um mês depois, Judite já
conversava com os professores, fazia as atividades escolares e tinha algumas
colegas. Judite não tinha o hábito de andar com o grupo maior, que tinha mais
influência na unidade. Ela se mantinha, como diziam as jovens, “na sua”. Assim
como Tereza, Judite também se descobriu grávida durante a internação. Enquanto a
confirmação médica não havia chegado a jovem costumava dizer: “Qu‟é isso gente.
Que neném o quê? Tem nada aqui dentro não! É gravidez psicológica!”; em seguida
ela ria. Judite era branca, cabelos crespos, curtos e negros. Olhos da mesma cor.
Era alta e magra. Tinha aparência infantil. Foi sentenciada por tráfico de drogas.
13) Zoraide57 era uma jovem arredia, agressiva e de poucas palavras. Quando a
conheci, ela estava na internação provisória. Foi sentenciada em alguns artigos.
Para mim, ela apenas disse que foi assalto à mão armada. Informações não
confirmadas pela jovem incluíam formação de quadrilha e tráfico de drogas. Zoraide
era branca, de estatura baixa e magra. Os olhos grandes eram castanhos claros. Os
cabelos cacheados e longos eram tingidos de vermelho. Zoraide ficou deprimida
após o término do relacionamento com Natasha. A partir de então, tornou-se mais
acessível aos funcionários. A jovem teve que mudar de alojamento, pois estava
sendo agredida pela então namorada.
14) Carolina, 17 anos, era uma menina alegre, animada e atrevida. Não gostava de
ser contrariada. Tinha pouca paciência e, constantemente, entrava em conflito com
os funcionários. Carolina era reincidente e estava na internação provisória. O motivo
56
Ver ANEXO XI. 57
A jovem recusou-se a declarar a idade. Aparentava ter entre 15 e 16 anos.
93
era envolvimento com o tráfico de drogas. As possibilidades de ela ser sentenciada
desta vez eram grandes. A jovem tinha uma filha de 1 ano de idade e morava com o
pai de sua filha. Os dois a visitavam na unidade. Carolina era alta, magra e morena.
Tinha os cabelos cacheados, na altura dos ombros, e castanhos. Os olhos,
pequenos e apertados eram da mesma cor. Tinha um sorriso bonito e cheio de vida.
[“Carolina é uma menina bem difícil de esquecer”]58. Não freqüentava as aulas, mas
gostava de participar das apresentações promovidas pelos educadores para as
reuniões com os familiares, em datas comemorativas ou em eventos.
15) Rubens59 era uma jovem que adotava nome e posturas “masculinas”. Não
gostava de ser chamada pelo seu nome verdadeiro, apenas pelo codinome
masculino por ela adotado. Por essa razão, optei por manter um nome fictício
também masculino. Era de estatura baixa, branca, olhos esverdeados e grandes.
Seu cabelo era castanho, cortado rente ao coro cabeludo. [“Um jeito diferentão”]60.
Usava roupas masculinas: camisões, bermudas largas e, segundo informações de
suas colegas de alojamento, recusava-se a usar calcinhas, preferia cuecas. Rubens
foi detida por assalto à mão armada e essa não era sua primeira internação. De
comportamento arredio, falava pouco com os funcionários, mas era bem articulada
com as internas. Juntamente com Natasha, Juraci e Maria mantinham as jovens sob
um certo controle. Ela também articulava as ações de motins ou de rebeliões.
Rubens, ao chegar para a internação provisória, causou um “frisson” com as
meninas, mas firmou namoro com Maria. Ela também foi pivô da briga entre Maria e
Ana, que resultou, como mencionado anteriormente, na transferência desta para o
Seguro.
16) Rita, 17 anos, era a “figura lendária” da unidade, como diriam os funcionários.
Não só pelo comportamento da jovem como pelo número de vezes em que reincidia.
Ela morava nas ruas por opção. Era encaminhada para a internação provisória não
por cometimento de infrações, mas por causar muito transtorno nas ruas. Na
unidade, era difícil manter a “tranqüilidade” com a presença de Rita. Ela gostava de
fazer brincadeiras, mexer com as pessoas, confundir os funcionários. Suas
58
Ver ANEXO XIV. 59
Assim como Zoraide, Rubens se recusou a declarar a idade. Aparentava ter aproximadamente 17 anos. 60
Ver ANEXO XV.
94
confusões eram por vezes hilariantes. Em outras ocasiões tinha resultados graves.
Rita incorporou-se ao grupo de Natasha, Rubens, Juraci, Maria.
2.3.2 As jovens falam sobre si mesmas
Nós jovens somos frutos de uma geração Que nos julgam totalmente INCAPAZES
DE RESOLVER NOSSOS PRÓPRIOS PROBLEMAS.
Por isso amamos de uma maneira loka Mas totalmente real.
Por isso nós não somos Nem melhores e nem PIORES.
61
As meninas apresentaram algumas compreensões sobre si mesmas e sobre o que
entendiam por juventude.
Houve, nas respostas dadas pelas internas, diferentes noções sobre a juventude.
Algumas (06 de um total de 21) apontaram para o entendimento desta apenas como
uma fase da vida, ou ainda, como uma essência que permaneceria “para sempre”,
ou a relacionariam com a “felicidade”, como é possível observar a seguir:
A juventude é apenas uma face [fase] da vida. (QJs62
09, 17 anos) Datas marcadas que se passa na vida de uma pessoa. (QJs 03, 17 anos) É saber ser jovem, pois jovem não é aquele que sai bebe, curti pra KCT e sim isso vem de dentro pois quem é jovem uma vez, guarda essa essência, para viver sempre em plena juventude. (QJs 05, 18 anos) É uma fase ótima que todos passam na vida, é onde se deve organizar seus planos futuros, tentar ser uma pessoa feliz e brilhante, é a fase que se amar, curtir as coisas boas da vida, ter e ser uma pessoa responsável, procurar colher desde então experiencias viver de passado, presente, resgatar as experiencias boas do passado, tranformar seu futuro em uma “passagem” brilhante e construir um futuro de grande realizações, é na
61
“Recado” deixado por Maria no preenchimento do questionário. As palavras escritas em caixa alta foram assim registradas pela jovem. 62
Legenda para a identificação dos questionários: QJs – questionário de jovem em internação já sentenciada; QJp – questionário de jovem em internação provisória.
95
juventude que se deve aproveitar a vida, para construi-lá e organizar seus planos. (QJp 07, 17 anos) Ser jovem e feliz. (QJp 04, 17 anos)
A juventude também foi abordada a partir da moratória social. As jovens atribuíram
como características da juventude “o estudar”, “o divertir-se”, “o curtir a família e os
amigos”. Essa foi uma visão presente na maioria das respostas dadas (08 de um
total de 21). Ao partir dessa noção apresentada, uma jovem declarou que a
juventude era uma coisa que ela nunca teve. Alguns registros podem mostrar como
se expressaram as jovens que tiveram essa compreensão:
A juventude é livre, estuda, curtir á vida nós samos jovem para ser livre para fazer o que gosta. (QJp 06, 15 anos)
Curti, sai estudar, curti a família, etc... (QJs 01, não informou a idade) Juventude, é estudar se diverti e não fazer coisas pra não perde-las, pois é os melhores momento de um adolescente. (QJp 02, 17 anos)
Outra resposta associou a moratória social e a moratória vital para definir a
juventude como:
É curti a vida como se ela fosse um jogo, ganhando e perdendo. (QJs 08, 15 anos)
Seis jovens não responderam a essa questão. Foi perceptível, nas respostas de todas as jovens, que as experiências juvenis não
eram semelhantes para todas que se encontravam na mesma faixa etária. Quando
questionadas se se sentiam jovens, as internas apresentaram respostas próximas à
noção da moratória social para avaliar se poderiam se considerar jovens ou não.
Sentiam-se jovens aquelas que “curtiam a vida” e, conseqüentemente, não se viam
como tais aquelas que afirmavam ter muitas responsabilidades. Uma jovem
apontaria para a existência de situações juvenis que limitariam a vivência da
juventude.
96
Mantiveram-se como justificativas para explicar o porquê de se sentirem jovens a
juventude tomada enquanto uma fase da vida, a faixa etária e a juventude enquanto
sinônimo de alegria, de animação. Quatro jovens não responderam a essa questão.
Com a palavra, aquelas que se declararam jovens:
Pó eu so jovem. Só muito nova pode crê. (QJs 01, não informou a idade) Todos um dia passa pela juventude e ela e apenas um obstaculo. (QJs 03, 17 anos) Sim porque sou espivitada. (QJs 04, 16 anos) Me sinto muito jovem alias não é por que eu tenho uma filha que deixei de ser jovem. (QJp 02, 17 anos) Me sinto jovem sim porquê eu me sinto jovem e bonita. (QJp 06, 15 anos) Sim. Porque sou uma pessoa otimista, gosto de ter aventuras, amo muito e apesar de por agora estar um pouco perdida, faço o possível para organizar meus planos de vida e meu relacionamento amoroso, talvez seja cedo, mais penso em construir uma família, mas logo que após me formar e conseguir uma boa formação profissional, me preparar melhor para este mundão cheio de surpresas, muitas surpresas desagradáveis, mas se você é um jovem de responsá, todas as surpresas de sua vida serem boas, tudo depende da forma que você vive e constrói a sua vida. (QJp 07, 17 anos) Sim, por que eu sou uma pessoa que tenho esperança, adoro me divertir e ser jovem e saber crescer. (QJp 12, 16 anos) Jovem talvez, hoje sei pondera mais o real, não viver de fantasias, jovem ao tanto do que o mundo pode oferecer e assim nóis vivemos. (QJs 05, 18 anos)
As internas que não se consideravam jovens se expressaram da seguinte forma:
Não, pois vivo a vida com responsabilidade que muitos jovens jamais imaginam ter. (QJs 02, 16 anos) NÃO, NÃO ME SINTO. (QJs 06, 16 anos) Não. Porquê? Eu não sou feliz. (QJp 04, 17 anos)
Embora as respostas dadas demonstrassem, em sua maioria, um certo otimismo ao
se reconhecerem jovens, quando questionadas sobre como se viam, as meninas
traçaram sua “auto-identificação” a partir de um sentimento que a situação de
privação de liberdade lhes causava: angústia, solidão, tristeza, revolta.
97
Foi interessante observar que as poucas respostas de jovens que apresentaram
análises positivas de si mesmas foram, em sua maioria, observadas entre as
meninas da internação provisória. Dos 12 questionários entregues por elas, 5
respostas apresentaram um tom mais otimista; enquanto 6 expressaram suas
angústias e revoltas. Uma interna não respondeu. Segundo as jovens:
Eu me vejo como qualquer ser humano que era [erra] e depois se arrepende. FALO MANÉ. (QJp 08, 15 anos) Me vejo determinada e com força de vontade e muito amor e esperança no meu coração para poder superar tudo isso. (QJp 10, 17 anos) Eu me vejo uma pessoa de garra e muita determinação, porque quero ser feliz com o amor da minha vida e acho que não vou mais sofrer. (QJp 12, 16 anos) Me vejo como uma presidiária e que isso sempre vai ficar guardado no meu coração e na minha vida. (QJp 02, 17 anos) Me sinto um pouco feia porque na minha casa minhas unhas não fica suja, meu cabelo não fica duro. Me cuido mais que possível para fica bonita. (QJp 06, 15 anos) Me sinto mal pois agora daqui pra frente vai mudar pois quando sair daqui todo mundo vai fazer perguntas, e eu vou me sentir muito mal pois eu e as pessoas não vão me acha mais a mesma menina de antes “pois fui presa”. Me vejo diferente não só pra mim. Mas acho que as pessoas também não vão me ver como antes. (QJp 11, 12 anos) Eu hoje! Me vejo uma idiota, pois destruir aliás atrasei minha vida por uma pessoa que mau conheço com medo do que podia vir á acontecer comigo no futuro. Mais pelo outro lado uma garota otimista que mais do que nunca deseja sair deste lugar e seguir sua vida, e colher o que passei neste lugar como uma experiência. (QJp 07, 17 anos)
Das 9 jovens sentenciadas, 7 demonstraram suas revoltas (contra a sociedade, com
a situação de privação de liberdade), 1 analisou-se positivamente e 1 não
respondeu. A seguir, algumas respostas podem nos dar exemplos sobre o que as
jovens pensavam a respeito de si mesmas:
Agora eu me vejo uma menina que se prendeu e não consegue se soltar aquela [pessoa] alegre conseguia transmiti aquela alegria para todos que se misturava comigo porque a [unidade de internação] conseguiu fazer isso comigo. (QJs 06, 16 anos) Como uma menina privada de sua família e liberdade. (QJs 08, 15 anos) Pó como um bicho? Porque quem fica preso é bicho. (QJs 01, não informou a idade)
98
Eu me vejo como uma pessoa normal, só simplesmente contra a sociedade, pois nós somos humanos como qualquer outro seres humanos. (QJs 09, 17 anos ) Eu me vejo uma mina responsa e muito sincera há já ia me esquecendo um pouquinho baraqueira. (QJs 04, 16 anos) Eu me vejo como apenas mais uma dessa vida loka, porém com uma diferença a determinação de querer o melhor para mim querer mudar, mais sei que serei muito criticada, mas ai nem jesus que nunca pecou conseguiu escapar das críticas não vai ser eu que vou escapar, mas falem bem ou falem mal, mas falem de mim pois eu levo uma frase comigo: “Hoje eu encontrei chorando quem riu de mim no passado”. (QJs 07, 16 anos)
As falas das jovens expressaram o que foi possível observar durante o período da
pesquisa empírica. Passar pela experiência da internação era para elas um
processo de amadurecimento, ou de endurecimento. Ainda que resistissem ao
“sofrimento”, buscando manter-se jovens na privação da liberdade, era possível
perceber que, conforme o tempo de internação se prolongava, “endurecer” diante da
situação vivenciada, se tratava, também, de uma estratégia para sobreviver à
“cadeia” (este era o modo como as meninas denominavam a unidade de internação),
à saudade dos que ficaram no “mundão”, à falta de esperança na mudança do curso
de vida, às situações quase desumanas às quais estavam expostas.
2.3.3 As jovens sob a ótica dos funcionários
Os funcionários também foram convidados a expressar suas compreensões sobre a
juventude. De maneira geral, as respostas orientaram para a noção da juventude
como uma fase transitória da vida (12 de 22 respostas). No entanto, foram atribuídas
diferentes características para essa fase: a vitalidade própria da idade, aproximando-
se a uma noção de moratória vital; as mudanças biológicas ocorridas na puberdade;
a crise e a transformação na construção da identidade, sendo esta última a mais
citada. Algumas das respostas podem nos esclarecer como pensavam os
funcionários a respeito da juventude como uma fase de transição:
99
É uma fase da vida que se tem mais energia para desenvolver o ser. (QO63
02, 29 anos) É a fase da integração à corporação, da conquista da maturidade, das interrogações do “eu”, da procura da imagem do certo e do errado. (QT 03, 53 anos) Juventude é uma fase onde todo ser humano passa. Alguns conseguem absorver bem outros entram em conflito consigo mesmo, e acabam não se dando bem. (QO 04, 39 anos) Uma fase que nada tem a ver com a “aborrecência”, os ritos de passagem marca a humanidade é só uma fase a juventude se caracteriza com o “novo”. Em todas as fases o jovem vem com sua força e a vontade de mudar. (QT 05, 35 anos)
Outras respostas apontaram para compreensões diversas: a juventude como
sinônimo de “futuro da nação”, ou seja, a juventude não é o presente ela será o
futuro. Nesse entender os jovens não “são”, eles “estão em construção” e “serão”
adultos promissores para a sociedade. Uma outra compreensão indicava para a
relação estabelecida entre os jovens e a modernização. Assim, a juventude era
percebida a partir da própria capacidade de acompanharem as mudanças:
Quando se fala em juventude a idéia é que seja uma pessoa jovem de pouca idade. Pra mim juventude é todos aqueles que consegue acompanhar as mudanças, vivendo com responsabilidade e assim temos muitos jovens que se preocupa com seu futuro, sem deixar o tempo passar e não viver a cada momento, mas toda liberdade com responsabilidade, isto acontecendo com as classes baixas como nas classes altas, isto é juventude viver sempre com limites, pra não se prejudicar. (QA 03, 50 anos) Juventude é sinônimo de futuro. São seres em formação para assumirem uma vida profissional, uma família e construírem uma sociedade. (QT 04, 50 anos) É ser jovem. É aproveitar a idade com mais responsabilidade e pensar no futuro de sucesso. (QP 04, 43 anos) É aproveitar a vida todos os momentos, mas se atualizando ou seja se informando cada vez mais para garantir o sucesso em sua velhice. (QP 08, 29 anos)
Outras noções sobre a juventude a enxergavam como aprendizagem, como
diversão, como tutela. Uma compreensão sobre a juventude problematizava a
situação de classe que atravessava a condição juvenil das jovens internas:
63
Legenda para a identificação dos questionários dos funcionários: QO – questionários de oficineiros; QA – questionários de assistentes de alunos; QP – questionário de professores; QT – questionários de técnicos.
100
Juventude para mim e a melhor fase que o ser humano passa, mas infelizmente a desigualdade social e muito grande e atinge a maioria que são os “favelados”. Apontar os erros dos outros é fácil difícil é passar por situações que vejo no meu dia-a-dia, mães vindo comer na cadeia porque em casa não tem nada nem mesmo passage para ver o filho que na sua juventude errou, como posso dizer para um jovem que quando ele sair daqui tudo vai melhorar se a realidade não é essa, a melhor parte da vida que é a juventude eles passam melhorar a vida mas de forma mais fácil que é drogas etc... (QP 05, 25 anos)
A maioria dos conceitos de juventude apresentados convergiam para um ponto em
comum: a idéia de um bloco homogêneo, com as mesmas características.
Quando questionados sobre como viam as jovens que se encontravam sob medida
socioeducativa de internação, as opiniões dos funcionários se dividiam em diferentes
olhares: uns viam as jovens como alguém sem perspectiva de futuro; como jovens
que não tinham muita opção de vida além do crime; como perdidas e rebeldes; como
desinteressadas; como pessoas que buscavam aventuras:
Meninas que na maioria das vezes não tiveram oportunidade nenhuma na vida. São adolescentes que devido os mais variados problemas (financeiros, familiares, afetivos, etc.) não conseguem enxergar outro caminho senão o crime. Algumas, no entanto, demonstram até interesse em mudar de vida, porém, nem sempre isso é possível, já que, não há um trabalho fora da instituição que possa dar condições efetivas para que essa mudança aconteça na prática. (QP 09, 29 anos) Uma boa parte são vitimas mesmo antes de nascerem da desigualdade social daí nasce cresce se alimentando das migalhas que sobra de uma sociedade cada vez mais hipócrita que diz em se preocupar no bem estar de todos, na verdade a maioria que está no poder só pensa no seu bolso, e a outra parte, nasceu e cresceu tendo tudo que possa oferecer uma vida decente estudando nas melhores escolas enquanto outras nem estudar conseguem tem as melhores casas, enquanto outras nem casa tem e por aí vai, mas mesmo assim se envolve no crime, muita das vezes não recebeu limites, as vezes pensam só porque pode fazer o que quer e nada vai acontecer, e quando vem p/ instituição vê que na vida tudo tem limites pra muitos já é tarde demais pra outro sempre é tempo de recomeçar. Eu vejo que um jovem adolescente sempre buscando uma aventura mesmo que isto custa sua liberdade, eles são imediatistas, sem se preocupar com o futuro. (QA 03, 50 anos) Revoltados, a maioria, e sem um futuro certo fora da instituição. (QP 06, 29 anos)
As jovens eram vistas ainda: como alguém com o objetivo de fugir; como alunas;
como alguém em fase de desenvolvimento; como jovens iguais a quaisquer outras
de sua idade. As falas a seguir mostram as jovens na visão dos funcionários:
101
Vejo os jovens como outros, com sonhos, em busca de uma vida melhor, às vezes não pensam muito nas conseqüências, por isso vêem parar aqui. (QO 04, 39 anos) Vejo e enxergo só possibilidades. (QT 05, 35 anos) Os vejo em alguns casos anciosos por liberdade, antes de estarem “prontos”. O fato de receberem a Medida Sócio-educativa lhes causa impacto no início, depois a convivência os faz “iguais” a todos e após algum tempo querem se sentir melhor, crescendo como adultos, maduros e conscientes do erro, “pagando” para conseguir a liberdade. (QT 03, 53 anos) São jovens com sonhos, ideais, angústias, instabilidade... como qualquer outro jovem. O que os diferencia dos demais, é que, cometeram delitos. Compreendê-los é verificarmos o quadro das populações marginalizadas e, acima de tudo, a sua condição de infrator. É preciso antes de tudo dar oportunidade às famílias... emprego, moradia, educação de qualidade, melhorar os sistemas de saúde (Acesso). Educar portanto é criar espaços, dar oportunidade para a realização de seus ideais e satisfação das necessidades sociais, afetivas/emocionais (básicas). (QT 01, 54 anos) Para mim são alunos que precisam de um atendimento personalizado, com as particularidades de cada um. (QP 07, 37 anos)
O discurso de que as jovens sob medida de internação são iguais a quaisquer
outras, com a única diferença de estarem privadas de liberdade, opõe-se às
respostas dadas às questões sobre a existência de projetos de futuro para estas
jovens. Neste caso, o futuro das jovens não era visto como algo promissor, o que
parece ser contraditório à noção de “jovem como qualquer outra”.
É interessante observar em algumas falas que, se no entendimento da juventude
predominavam os aspectos positivos e pouco se mencionavam as questões de
classe, nas respostas que caracterizavam as jovens em privação de liberdade, a
situação de classe, as carências presentes no contexto social das jovens, a situação
de infratoras apareceram com maior freqüência, como se as jovens em cumprimento
de medida de internação não fizessem parte integrante da juventude; ou se, ao
analisar os sujeitos “reais”, a juventude deixava de ser esse “símbolo” construído a
partir de um tipo de juventude (em geral baseado nas experiências juvenis dos filhos
da elite) e emergiam as situações juvenis que recortavam a condição juvenil das
jovens em questão e configuravam, desta forma, outras maneiras de se perceber a
juventude.
102
3 DO PRESCRITO AO VIVIDO: A PROPOSTA PEDAGÓGICA E O
DIA-A-DIA DA INSTITUIÇÃO DE INTERNAÇÃO
Aqui cada dia é um dia. É tudo diferente! Começa tudo outra vez […]
Aqui nós temos o plano „A‟, „B‟, „C‟, „D‟, ... É um alfabeto inteiro!!!”
64
3.1 A PROPOSTA PEDAGÓGICA DA INSTITUIÇÃO
O SINASE fixa que o projeto pedagógico socioeducativo a ser desenvolvido com os
jovens deve considerar que
As ações socioeducativas devem exercer uma influência sobre a vida do adolescente, contribuindo para a construção de sua identidade, de modo a favorecer a elaboração de um projeto de vida, o seu pertencimento social e o respeito às diversidades (cultural, étnico-racial, de gênero e orientação sexual), possibilitando que assuma um papel inclusivo na dinâmica social e comunitária. Para tanto, é vital a criação de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competências pessoais relacionais, cognitivas e produtivas. (SINASE, 2006 , p. 60)
Segundo o documento fornecido pela instituição, o trabalho realizado estava
pautado em uma “abordagem existencialista”, que contemplasse a “formação
subjetiva do ser humano”, visando a formar um sujeito “consciente”, capaz de
reconhecer suas responsabilidades a fim de garantir o seu bem estar “pessoal,
individual e coletivo”. Assim, o processo educativo tinha como objetivo promover
“mudanças profundas” na vida do jovem a ser reintegrado à sociedade.
O documento definia como resultados esperados na formação do egresso:
No decorrer da sua formação escolar o educando egresso deve construir aprendizagens, posturas e valores que possam (re)significar sua vida para:
64
Registro em diário de campo de conversa informal com professores.
103
Ser um cidadão capaz de desenvolver cada vez mais as habilidades humanas, usando senso crítico para saber discernir e atuar com eficiência na sociedade.
Ser sujeito ativo, crítico e solidário, comprometido com o sucesso pessoal e com a construção de uma sociedade justa para todos.
Valorizar o estudo e a capacidade de Aprender a Aprender, com possibilidade de realização pessoal e profissional.
Atuar com competência no mercado de trabalho, utilizando o conhecimento construído, sendo participativo e contribuindo para o desenvolvimento da sociedade.
Ser um cidadão empreendedor, capaz de encontrar e propor soluções para os diversos problemas, com princípios éticos, morais e cristãos.
Não ficou muito claro o que a instituição entende por “desenvolver cada vez mais as
habilidade humanas” citadas por diversas vezes em seus documentos. No entanto,
ficou claro o tipo de sujeito almejado como resultado da ação educativa: “um sujeito
ativo, crítico, solidário, ético e cristão”. Essa última característica pressupõe que tipo
de atuação junto aos jovens? Foi possível observar que grande parte das atividades
propostas tinham princípios cristãos. No entanto, não havia aula de ensino religioso
ou algo parecido. As jovens recebiam assistência religiosa segundo suas crenças,
como previsto no ECA (art.124)65.
Nos questionários aplicados aos funcionários, perguntou-se sobre os objetivos da
Instituição. Das 23 respostas fornecidas, 8 apontaram como objetivo da unidade a
“ressocialização” ou “reintegração” do jovem em conflito com a lei na sociedade,
como foi possível observar a seguir:
Fazer com que o interno tenha condições de cumprir a pena e sair reintegrado a sociedade. (QP 07, 37 anos) Tentar reintegrar o adolescente ao meio social. (QO 02, 29 anos) A ressocialização dos adolescentes. (QT 02, 40 anos)
Nesse mesmo grupo de respostas, apareceram aquelas que destacaram os
conteúdos de um processo educativo com vistas à “ressocialização”, como por
exemplo:
65
A unidade de internação feminina recebia a visita de um pastor evangélico que fazia a pregação para as meninas interessadas em ouvir e cantava hinos, como se fosse um culto. No entanto, não havia um momento em que todas as jovens fossem chamadas a participar. A ação do pastor ocorria paralelamente às aulas e ao banho de sol. A unidade também recebia semanalmente a visita da Pastoral da Igreja Católica. Nesse caso era um grupo que ia visitar as meninas, conversava com elas, levava doações de roupas ou outro material necessário.
104
Ressocializar e retornar com os mesmos a sociedade com uma visão e atitudes diferentes da sociedade e do mundo afim de tira-los do mundo do crime. (QA 04, 27 anos) De acordo com o estatuto da criança e do adolescente é para ressocialização dos menores. Onde ele possa refletir no erro e sair da instituição de cabeça erguida e com uma nova visão do mundo e assim prosseguir sua vida com dignidade e assim respeitar o próximo. (QP 05, 25 anos) Na teoria seria a reintegração dessas adolescentes à sociedade. Seria criar condições de ressocialização. Retirá-las das inúmeras situações de risco nas quais elas se encontram. Seria também proporcioná-las uma nova visão de mundo, novas perspectivas de vida. (QP 09, 29 anos)
Em um outro grupo de respostas, 7 funcionários definiram como objetivos o
desenvolvimento de valores, uma re-avaliação de atitudes:
Formar cidadãos de bem e fazer com que eles tenham um objetivo quando sair da unidade. (QP 04, 43 anos) Fazer com que o menor possa estabelecer um pensamento crítico social. (QP 08, 29 anos) Re-significar, re-educar e disciplinar conhecendo as adolescentes, resgatando o respeito, o amor e o vínculo familiar. (QT 03, 53 anos) Objetivos da unidade e resgatar os adolescentes que estão em conflito com a lei, dando-lhes oportunidade de rever suas atitudes. (QA 03, 50 anos)
Há ainda respostas de cunho legalista que se limitaram a definir como objetivos da
instituição o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, como por
exemplo:
A responsabilidade primeira da Instituição é a de atender adolescente em cumprimento de Medidas Sócio-educativas de Internação e Internação Provisória no Estado do Espírito Santo encaminhados pelas Varas da Infância e Juventude da Grande Vitória e do interior do Estado e demais objetivos estabelecidos na lei. (QT 01, 54 anos)
Outras duas respostas apontaram para uma visão pessimista quando à finalidade da
instituição:
Depositor de menor infrator (QA 02, não informou a idade) No meu ponto de vista nenhum. Não vejo algo de concreto. (QO 05, 29 anos)
105
As intenções expressas no currículo prescrito66 da Instituição parecem confrontar
com uma realidade dura. As condições de trabalho oferecidas na unidade de
internação feminina dificultavam o desenvolvimento dos processos educativos que
atingissem tais resultados. A começar pelo caráter punitivo conferido às internas em
algumas ocasiões. Por exemplo, como medidas disciplinares, as jovens ficavam sem
sair de seus dormitórios para banho de sol e para estudos.
A inexistência de locais adequados e os materiais pedagógicos escassos para o
trabalho de professores e “oficineiros” resultavam em práticas que dependiam da
“boa vontade” e do empenho desses funcionários para a realização de projetos que
estimulassem as jovens a participar das aulas.
Quando perguntados sobre o alcance ou não dos objetivos da Instituição, os
funcionários (12 dos 23 questionários) responderam negativamente:
Não. A reeducação desses adolescentes torna-se algo praticamente impossível, porque […] isto aqui nada mais é do que um presídio, que não obedece as mínimas exigências a um órgão socioeducativo para menores, por idade, por delito, etc.. (QP 02, 43 anos) Não, falta mais mão de obra qualificada, cursos profissionalizantes e uma maior integração entre os profissionais que aqui exercem as suas funções. (QP 06, 29 anos) Ao meu ver existem alguns funcionários que se esforçam em ensinar algo de bom para essas meninas. Esses, preocupados com o futuro delas tentam evitar o retorno de algumas. No entanto, outros só estão aqui para cumprir horário e receber seu “mísero” salário no fim do mês. Assim sendo, os reais objetivos da instituição raramente são alcançados. (QP 09, 29 anos) Na maioria das vezes não. São inúmeros os problemas, como deficiência física, pois internos de diferentes situações e grau de periculosidade num mesmo espaço tende a se igualarem até mesmo para uma questão de sobrevivência entre eles. Também uma questão administrativa que se
66
Perrenoud (1995) tece suas considerações sobre o currículo prescrito ou formal e o currículo real. O primeiro está explicitado nos objetivos da escola, diz respeito à organização da ação educativa previamente planejada e sistematizada, seja na seleção de conhecimentos a serem transmitidos, seja na forma de plano de aula ou Projeto Político-Pedagógico. Ele dá uma uniformidade ao trabalho. O currículo real, por sua vez, abrange tanto a dimensão prática do currículo que foi previamente sistematizado: é a execução do currículo formal ou prescrito, como a dimensão do vivido na instituição escolar, ou seja, abarca também as aprendizagens que são construídas nas práticas cotidianas, nas relações inter-pessoais. O currículo real, portanto, garante a diversidade das práticas educativas presentes no universo escolar. Há ainda o que o autor denomina de “currículo escondido”, que diz respeito às práticas e intenções da escola que não estão inteiramente explícitas e que se orientam à formação do sujeito em conformidade com a ordem moral e social, que compreende as desigualdades a partir do respeito à hierarquia, etc..
106
impõe pouco afim de impor limites os quais sabemos que ele (os internos) não tem não dando assim tratamentos iguais a todos no oferecimento das atividades que já são precárias devido as instalações físicas que dando melhores oportunidades e previlégios aos mais indisciplinados e perigosos que são considerados líderes afim de manter o controle das unidades e quando são oferecidas as atividades o fato de praticarem as atividades juntos alguns não estão interessados na mesma e atrapalham os que realmente estão assim dificultando o desenvolvimento. (QA 04, 27 anos)
Desse grupo, 4 respostas responsabilizam as jovens, ou suas famílias para justificar
o porquê de os objetivos não serem atingidos, como é possível observar nesta fala:
Não, ou seja apenas uma pequena parte dos adolescentes que geralmente estão pela primeira vez na internação conseguem levar a sério a instrução ou seja orientação dos pais aos princípios anteriormente ensinados. Não são atingidos pelo fato do adolescente não gostar de seguir determinação quanto as orientações da Unidade e principalmente pelos funcionários terem falas diferentes. (QT 02, 40 anos)
Para essa questão, 4 respostas indicam pontos que são atingidos positivamente e
objetivos não alcançados pela instituição, outras 6 não indicam pontos negativos.
Um funcionário prefere não responder. Os pontos negativos se assemelham aos
demais citados e os objetivos alcançados podem ser resumidos nesta fala:
São atingido em grande maioria: - conhecer sua situação processual - ser atendido por advogado e/ou def.público - ter atendimento bio-psico-sócio-pedagógico - atendimentos individuais e grupais - atendimento à saúde - atendimento à escolarização com Educação Física - participar de oficinas culturais, esportivas e de lazer e profissionalizantes - receber visitas domiciliares - ter seus estudos sociais encaminhados ao judiciário no período de 6 meses (6 em 6 meses) - receber benefícios de natal quando da avaliação da Equipe multidisciplinar Dentre outros... - realizar visitas domiciliares (QT 01, 54 anos)
Ficou claro que existia um distanciamento entre a dimensão do “modelo cultural” da
instituição e o que as jovens assumiam para si como modo de vida. Não se tratava
apenas de convencer as jovens a sair da “vida loka”, ou ainda a se tornarem
“pessoas de bem”, ou fazer com que cumprissem as normas para aprenderem as
ser disciplinadas e respeitadoras. A questão passava também pelo falta de
esperança em outras perspectivas de vida. Além disso, o discurso de que, por meio
da educação, seria possível conseguir uma vida melhor havia sido confirmado como
107
“caô”67 pelas meninas quando em situação de liberdade. Embora estivessem
matriculadas em escolas, a relação que as jovens estabeleciam com as mesmas era
vazia de sentido no que dizia respeito às “promessas” da escolarização como
garantia de entrada no mercado de trabalho, ou acesso à universidade.
Essa realidade se aproxima do que Dubet define como a fragilidade do sistema
escolar, citado anteriormente. Os estudos desse autor apontam ainda que, na
experiência escolar, as estratégias utilizadas por jovens das classes populares
revelam uma relação com o sistema escolar e se constróem como “condutas de
resistência”. Como afirma Camacho (1999, p.56), a pesquisa de Dubet aponta que:
Os alunos dos liceus das classes populares formam grupos juvenis que se constróem, não ao lado da escola, mas contra ela, por meio de condutas de resistência e desafio; para eles, o bom professor é aquele que respeita e ama o aluno; eles não vinculam seus estudos a um projeto e não vêem sentido nos estudos; não conseguem dar sentido intelectual e moral ao seu trabalho; a experiência é construída em estratégias profissionais que precisam de proximidade com a cultura juvenil e com os valores operários; nesse caso a escola é uma instituição de socialização.
Pais (1993) defende que, nas relações estabelecidas entre os jovens e a instituição
escolar, a escola é vista por aqueles que visam à maior mobilidade social como uma
estratégia. Nesse caso há investimento por parte da família e por parte do próprio
jovem em buscar boas escolas, bons cursos, diplomas que tenham
representatividade no mercado de trabalho a fim de conseguirem um bom emprego
ou ingressar em uma boa faculdade. Para os jovens cujo futuro já lhes parece
definido, quase inevitável – e isso se aplica tanto a jovens de origem operária, que
não vêem condições de mudança de sua condição social, como a jovens da
burguesia, cuja certeza de herdar um patrimônio lhes dá segurança quanto ao futuro
– a escola parece vazia de sentido.
As ações socioeducativas formalizadas em aulas, oficinas pedagógicas,
atendimentos psicossociais, eram executadas na instituição. No entanto, a
convivência conflituosa com uma prática repressiva-punitiva-corretiva tornava as
67
A gíria “caô” era por elas utilizada para indicar que alguma coisa era falsa, era para enganar. “Isso aí é caô! Se nóis estudasse nóis num tava aqui!”. Essa era uma fala freqüente das meninas que se recusavam a qualquer atividade de cunho pedagógico ou até mesmo a uma conversa amigável com os professores.
108
primeiras ações “práticas coadjuvantes”, e o “sofrimento” – expressão utilizada pelas
meninas para definirem a privação de liberdade – acabava por se destacar para as
jovens na sua formação durante a internação, uma vez que isso as “marcava” com
mais intensidade – como poderá ser visto na avaliação que as jovens fizeram sobre
a condição à qual estavam submetidas.
Se, para a análise da Unidade, for traçado um paralelo entre as funções da
instituição de internação e as dimensões do sistema escolar definidas por Dubet (a
do modelo cultural, a da seleção e a da organização) será possível observar que
elas não apresentavam uma articulação harmoniosa entre si. Além dessas três,
acrescentar-se-ia uma quarta, expressa no parágrafo acima, que seria a dimensão
da “contenção”. Ou seja, aquela função caracterizada pelo cuidado com o controle e
a manutenção da ordem das jovens em privação de liberdade.
Nas unidades de internação as propostas socioeducativas idealizadas pouco se
aproximavam da realidade vivenciada e construída no cotidiano. Além disso, outros
processos de formação escapavam àqueles previstos e estariam relacionados com
as estratégias de “sobrevivência” na instituição. Há que se considerar ainda que, foi
lançado um olhar sobre as aprendizagens relativas ao currículo real, ou seja,
àquelas trocas que se relacionavam à “experiência” e se constituíam peças
importantes para a construção do sujeito durante a internação. Esses elementos
serão aprofundados posteriormente.
3.2 O DIA-A-DIA EM UMA INSTITUIÇÃO DE INTERNAÇÃO
O dia na unidade se iniciava por volta de 7h da manhã, com a troca de plantão dos
assistentes de alunos, a abertura dos alojamentos para as meninas e a chegada dos
professores e do corpo técnico para mais uma jornada de trabalho.
A rotina acompanhada por mim era a mesma dos professores, com algumas
exceções. Ao chegar à Instituição, atravessava-se a guarita policial, virava-se à
109
direita e seguia-se pela lateral do prédio da unidade masculina até uma outra área
onde funcionava a escola. Era comum ir à sala dos professores. Nesse local, os
professores do turno matutino aguardavam o horário para iniciar as aulas68. Alguns
tomavam o café da manhã e conversavam, outros liam jornal ou separavam o
material que seria utilizado nas atividades diárias.
Em seguida, os professores se dirigiam à unidade. Ao sair da área da escola,
passava-se pela lateral do prédio masculino, pela guarita policial e descia-se em
frente, para a unidade. Ao chegar, os portões encontravam-se trancados e era
preciso aguardar a presença de algum monitor para abri-lo. Portão aberto, entrava-
se na unidade feminina e encaminhava-se para a sala dos professores e dos
assistentes de alunos localizadas nesse espaço. Em raras ocasiões, as meninas já
estavam acordadas próximas ao primeiro portão interno. Quando isso ocorria, os
professores paravam para conversar com elas e entravam na sala dos professores
somente para pegar mais algum material ou para saber como estava a situação na
unidade.
Na maioria das vezes, os professores esperavam quase uma hora até que alguma
menina acordasse e chegasse para a aula. Essa espera geralmente se dava na sala
dos professores ou no interior da unidade, nas salas de aula.
À primeira vista, parecia haver uma ausência de regras, uma vez que se tinha a
impressão de que as jovens poderiam fazer o que quisessem. Uma observação mais
cuidadosa, entretanto, permitiu a percepção de que essa “ausência” ou “quebra”
ocorria em relação às regras reguladoras do cotidiano pretensamente educativo,
impostas pela instituição. Na realidade havia, sim, a obediência a outras regras, ou
seja, àquelas relativas à organização das punições (como por exemplo, os castigos)
e àquelas construídas paralelamente pelas próprias jovens nas suas relações de
sociabilidade (como a obediência à hierarquia, produzida por elas mesmas, na qual
as representantes femininas eram submetidas às masculinas).
68
Os professores ficavam aguardando que os internos comparecessem às salas de aula.
110
As aulas das jovens do Seguro se iniciavam às 8h da manhã e se encerravam às 9h.
No entanto, era difícil encontrá-las acordadas, uma vez que estas não dormiam
durante a noite com medo de terem seus alojamentos invadidos pelas demais
internas e sofrerem algum tipo de agressão.
Os alojamentos das outras jovens eram abertos pelos assistentes de aluno por volta
de 9 horas da manhã, após o recolhimento do Seguro. No entanto, as internas
continuavam dormindo, por mais que as assistentes de aluno tentassem acordá-
las69.
O café da manhã (leite, café e um pão ou biscoitos) era servido no mesmo horário.
Não havia um refeitório. As garrafas térmicas com leite e café ficavam no corredor
interno e o pão ou biscoitos eram entregues nas mãos para as jovens.
Foi interessante notar a estratégia utilizada pelas meninas que sentiam muita fome
pela manhã. Para comer dois pães, o grupo do alojamento escolhia uma de suas
meninas a fim de buscar o pão para todas. Essa era instruída a pedir uma
quantidade superior ao número de presentes no alojamento. Em seguida, uma outra
jovem, do mesmo dormitório voltava dizendo que havia faltado pão para ela. Assim
conseguiam mais um. Os funcionários da unidade percebiam a estratégia e fingiam
ser “enganados” pelas jovens. Eles somente agiam com firmeza quando a
quantidade de pães enviados pela padaria da instituição era limitada.
O acesso aos alojamentos ficava liberado até a tranca seguinte, na hora do almoço.
Enquanto as meninas tomavam café, os professores entravam para as salas de aula
e tentavam conseguir mesas e cadeiras para começarem as atividades. Os docentes
de um mesmo turno entravam em grupo para “atrair” alunas para as aulas. Eles
faziam um acordo entre si. Cada um introduzia sua atividade assim que o outro
terminasse. Ficavam todos na mesma sala acompanhando a aula do colega. Alguns
69
Pelas mesma razão que as jovens do Seguro, algumas meninas não dormiam à noite. Muitas tinham medo de dormir e sofrer represálias das demais internas. Passavam a noite em claro e dormiam pela manhã, quando a presença de funcionários transitando em frente aos alojamentos era mais constante. Outras faziam barulho durante toda a noite para que outras jovens não dormissem. Ou ainda, ficavam conversando por não terem sono.
111
professores aplicavam atividades interdisciplinares. Em muitas ocasiões, havia mais
docentes para assistirem às aulas que alunas.
Em outras abordagens, os professores ficavam na sala e quando aparecia alguma
interna interessada eles diziam quais eram as matérias para aquele turno e
perguntavam à jovem qual ela preferia estudar primeiro. Era comum também um
professor ficar em sala de aula dando atividades enquanto outro professor se
encontrava na quadra tentando convencer as internas a participarem das aulas.
O horário de aulas era também o destinado ao banho de sol, de modo que os
professores tinham que competir com a quadra. Como descrito anteriormente, as
duas salas de aulas não eram recintos fechados, eles eram abertos e se fundiam ao
corredor que ligava o segundo portão interno ao terceiro. Para irem dos alojamentos
à quadra era preciso passar por este corredor. Enquanto as meninas passavam os
professores convidavam para a aula: “Ei, vem fazer aula!”; “Olha eu tenho uma coisa
legal pra hoje.”. Algumas alunas paravam, iam até os professores, os
cumprimentavam, conversavam um pouco e depois iam para a quadra.
As jovens da internação provisória eram as mais assíduas às aulas. Em muitos
casos, procuravam os professores perguntando o que havia para fazerem. Para
elas, era importante apresentar um bom relatório de acompanhamento para o juiz
em suas audiências. As jovens sentenciadas que participavam das atividades
escolares também o faziam pela mesma razão. Outras, no entanto, assistiam às
aulas porque gostavam de conversar com os professores e tinham estima por eles.
Quando não apareciam alunas, os professores se dirigiam à quadra onde elas se
encontravam e sentavam-se próximos às jovens para conversar; procuravam saber
como elas estavam, se haviam dormido bem, se tinham se alimentado; participavam
das brincadeiras delas, ouviam as reclamações que as meninas faziam e, por fim,
próximo ao horário de irem embora deixavam as atividades escolares para as jovens
concluírem no horário da tranca. Com uma abordagem dessas, ficava difícil para as
internas recusarem-se a fazer os exercícios.
112
Enquanto os professores e algumas alunas estavam na sala de aula, as outras
internas estavam envolvidas em atividades diversas. Algumas aproveitavam o
horário para lavar os alojamentos, ou para lavar a roupa e os utensílios (pratos,
canecas, potes de plástico) no chuveiro da quadra. A roupa lavada era estendida em
uma corda amarrada às grades do corredor dos dormitórios ou nas traves de futebol
da quadra. Não havia uma lavanderia ou um espaço adequado para isso.
Na quadra, algumas jovens ficavam sentadas nas arquibancadas conversando;
outras levavam um aparelho de som e ficavam próximas aos portões dançando funk.
Mexiam com os meninos que se encontravam na frente da unidade masculina.
Outras jogavam futebol na quadra – quando tinha bola –, o que causava um
tremendo alvoroço. As jovens faziam o time das internas contra o time dos
assistentes de aluno (três do sexo masculino que trabalhavam no mesmo turno).
Quando o dia estava ensolarado, algumas meninas passavam bronzeadores e
ficavam expostas ao sol. Se o calor era intenso, elas brincavam umas com as outras
dizendo: “Amiga, vou ali dá um mergulho” e se encaminhavam para tomar banho no
chuveiro.
Por volta de 11h 30min, terminava o horário de aula e as meninas eram retiradas da
quadra para que o almoço fosse entregue. Os professores se retiravam. Depois que
todas as meninas saíam da quadra, o portão de acesso era fechado e as jovens
eram conduzidas até as salas de aula. Em seguida, o segundo portão interno era
trancado. Após esse procedimento, o primeiro portão poderia ser aberto.
O almoço era entregue em uma marmita descartável. Havia opções no cardápio
entre carne bovina e de frango. Contava ainda com arroz, feijão e macarrão. A
salada era entregue separadamente. A sobremesa era sempre um doce (mariola,
paçoca ou doce de leite). Cada marmita vinha com o nome da interna.
O almoço das jovens do “Seguro” era entregue primeiro. Cada jovem recebia sua
marmita e um pouco de água.
Às 13h 30min as atividades retornavam com as aulas e a liberação das meninas
para ficarem na quadra. No meio da tarde, um pão era servido como lanche. Por
113
volta de 16h as jovens voltavam para os alojamentos. Posteriormente, recebiam
mais uma marmita para o jantar.
Após a “tranca” das meninas, as jovens do Seguro eram liberadas para aulas e
banho de sol. Durante todo o período em que as demais estavam fora dos
alojamentos, as internas do Seguro permaneciam em seus dormitórios. Às 17h, após
as aulas, elas entravam para o alojamento e recebiam o jantar.
As meninas definiram o seu dia-a-dia na unidade da seguinte forma:
Aqui não acontece muitas coisas diferente, fico no 2º alojamento ao dia durmo bastante saio pro banho de sol pertubo um pouco as colegas e monitores e durante a noite fica a maior parte do tempo com minha namorada […] assistindo TV e conversando com minha “Mãe amiga” […]. (QJs 05, 18 anos) Na UFI meu dia-a-dia é quase que repetitivo quando saio para o banho de sol, faço as atividades dos educadores, procuro conversar com as amigas das outras celas. Quando estou no alojamento escrevo cartas de Amor, o meu dia-a-dia escrevo KTQ [catuque] para minhas amigas e procuro sempre arrumar uma brincadeira para eu e minhas colegas de alojamento nos distrairmos e esquecermos um pouco de onde estamos, também constumamos contar um pouco dos acontecimentos de nossas vidas, é sempre bom, porque uma coisa ou outra podemos colher de experiência. (QJp 07, 17 anos)
As meninas do “Seguro” tinham suas preocupações diárias, como é possível
observar nesta fala:
O meu dia-a-dia […] é assim passa muita preocupação e não descansar em paz, pois nós fomos envadidas pelas meninas e ficamos muito machucadas, e até hoje elas não para de enplicar com agente, e é porisso que nós não conseguimos viver em paz. (QJs 09, 17 anos)
Essa rotina foi interrompida no mês de abril, por uma medida disciplinar70 que fixava
horários de saída para banho de sol por alojamentos. Foram feitas escalas em que
se destinava apenas uma hora para o banho de sol e para as atividades escolares.
A freqüência às aulas passou a ser muito baixa. As jovens do Seguro saíam para o
banho de sol e atividades escolares antes de todas as internas e depois eram
70
A medida foi tomada após serem registradas brigas freqüentes entre as internas (incluindo agressões físicas) de alojamentos diferentes. Assim, não seria possível ficar todas soltas ao mesmo tempo.
114
levadas para o corredor que ficava na lateral no prédio e lá permaneciam até o fim
do dia. Retornavam aos seus dormitórios após todas as demais terem se recolhido
aos alojamentos.
3.2.1 Sexta-feira
A sexta-feira era um dia atípico em relação aos demais. Era nesse dia que as
meninas podiam fazer as ligações telefônicas para as famílias, podiam enviar e
receber os “catuques” dos meninos. Desenvolver qualquer atividade era difícil. As
meninas ficavam agitadas, próximas ao primeiro portão interno gritando pelo
psicólogo e pela assistente social, solicitando para fazer os telefonemas.
Por ser um dia de grande expectativa, os ânimos ficavam exaltados e a situação
poderia ficar tensa por qualquer motivo. À medida que as horas passavam e o
horário de saída dos técnicos se aproximava a tensão aumentava quando ainda
havia meninas sem terem conseguido falar com suas famílias,
Nesse caso, as jovens começavam a gritar no primeiro portão interno. Chegavam ao
extremo de “bater o chapão”, ou seja, de chutar as grades ou de arrastar objetos
nelas fazendo um barulho ensurdecedor.
Em conversas descontraídas, algumas meninas diziam o que estariam fazendo na
sexta-feira se estivessem no “mundão”. Narravam que este era o dia da semana
destinado a cuidar das unhas, dos cabelos, a passar o dia pensando na roupa que
usariam à noite para “zuar um baile”.
115
3.2.2 As mudanças de rotina
Alguns acontecimentos na unidade feminina mudavam toda a rotina das internas,
dos professores, e dos assistentes de alunos. Como afirmavam os professores:
_ “Aqui nós temos um plano. Mas ele não é único. Aqui nós temos o plano „A‟, „B‟, „C‟, „D‟, ... é um alfabeto inteiro!!!”
71.
Alguns sinais indicavam aos funcionários que seria preciso lançar mão de dois e três
“planos”. Por exemplo, quando a unidade estava muito silenciosa, era sinal de que
alguma coisa iria acontecer. Para as internas, quando a movimentação na área da
diretoria era intensa, era indício de que alguma mudança estava por vir.
As quebras na rotina poderiam acontecer pelo simples fato de ter chegado mais
jovens para a internação provisória, ou pela saída de meninas para audiência. Ou
em situações mais complicadas, a rotina era quebrada por briga entre as internas.
Dependendo da gravidade do conflito, era preciso mudar jovens de alojamento,
separar algumas no Seguro. Em outras situações, comportamentos considerados
“perturbadores” eram punidos com castigos72.
Em certas circunstâncias, da mesma forma como os acontecimentos habituais eram
interrompidos bruscamente, a rotina prontamente era restabelecida. Um dos
episódios ocorridos na unidade exemplifica com isso acontecia:
Queimando colchões
Nesse dia, por alguma razão, as jovens não saíram da tranca pela manhã. O
professor que esteve na unidade no turno matutino nos informou que não havia
alunas para a aula. O motivo: elas estariam de castigo por terem “aprontado”
durante o plantão da noite. À tarde, por volta de 13h 30min, acompanhei o professor
de História à unidade feminina.
71
Fala registrada em diário de campo. 72
O castigo mais longo aplicado e por mim presenciado foi de 15 dias de proibição de saída para banho de sol e atividades escolares. Ou seja, quase duas semanas de “tranca”.
116
Ao entrarmos, vimos que as meninas não estavam no corredor, como de costume.
Pensamos que não fosse ser possível dar aula. Observei que havia cinzas
espalhadas pelo chão. Pensei que viessem do lado de fora. Os técnicos estavam
agitados, tentado atender uma menina que não se sentia bem.
Passamos pelas grades que davam acesso ao corredor das meninas. Estava pouco
movimentado. Algumas jovens passavam com baldes para lavar suas roupas no
chuveiro da quadra. Outras estavam arrumando os alojamentos. As coisas pareciam
estar como em uma dia normal, não fosse o silêncio. Três alunas apareceram para
fazer a aula. As outras estavam dormindo, lavando as suas roupas ou estavam no
banho de sol.
Conversamos com as internas que assistiam às aulas quando uma jovem se
aproximou para nos contar o que havia acontecido na noite anterior e que resultou
em castigo pela manhã:
_ “Aí, tá sabendo o que nóis aprontamo nessa madrugada?! Então, pô o bonde, né?!
Pô Rita e a otra menina lá passando mal e nóis gritando o monitô e ele não queria
vim, ai nóis se rebelamo. Aí nóis queimamo o colchão e tudo! Até vim alguém pra
ajudar!... A gente queria era fazer rebelião! Até dava. Aí hoje deu nisso, né? Nóis
ficou de castigo, num saiu da tranca!” (falou rindo) “Mas vê se pode? As meninas
passando mal aqui. Pô, a gente é tudo amigo. Mexeu cum um, formô o bonde!”.
As demais atividades naquela tarde transcorreram bem, como se fosse um dia
qualquer.
3.2.3 A rotina dos professores
Para lecionar em uma unidade de internação, é preciso, da parte dos professores,
incorporar um modo de agir diferente daquele a que estavam acostumados em
escolas regulares. Para realizar a pesquisa, precisei apreender alguns elementos do
117
trabalho dos professores, especificamente aqueles que diziam respeito à vivência na
unidade.
Antes de se encaminharem para as salas de aulas, alguns professores e, em
especial algumas professoras, passavam por uma preparação. Retiravam os
acessórios (óculos de sol, colares, brincos, pulseiras, celulares, relógios, etc.). As
mulheres que davam aulas para os meninos colocavam um jaleco ou então um
camisão (que deixavam guardados em seus armários), prendiam os cabelos.
Quando questionados sobre o porquê desse ritual, os professores explicavam que
os/as jovens pediam tudo o que estivesse à mostra ou então, que poderiam “afanar”
relógios ou celulares. Sendo assim, era melhor evitar ir para a sala de aula portando
tais objetos.
Pude confirmar o que os docentes relataram em uma situação que vivenciei no
primeiro dia em que acompanhei o trabalho dos professores junto aos jovens na
Instituição. Ao chegar à unidade pela manhã, encontrei os professores trajados com
seus jalecos ou camisões. Havia dois professores a se encaminhar para a unidade
feminina e de pronto me chamaram para que eu fosse acompanhá-los. Aceitei o
convite e os segui. No caminho, enquanto me transmitiam informações básicas para
entender o funcionamento de uma unidade de internação73, não me alertaram para o
uso que eu estava fazendo dos brincos. Eu estava usando brincos de metal muito
pequenos, em formato de bolinha.
Ao chegar à unidade de internação feminina, o primeiro portão interno estava aberto.
As meninas ainda estavam na tranca. Os meninos do Seguro da unidade masculina
de internação estavam na quadra para banho de sol. Quando nós chegamos, os
jovens se aproximaram do portão de acesso interno da unidade para a quadra e
73
Os professores explicavam que era preciso obedecer à hierarquia sempre. Então, assim que chegássemos à unidade, eu seria apresentada à diretora, aos técnicos e depois iria até as meninas. Explicaram-me que na unidade eu encontraria uma resistência por parte das internas, por eu ser mulher, jovem e representar “concorrência” para elas. Falaram sobre as alas do Seguro. Nesse mesmo dia, uma professora da unidade feminina, em conjunto com os dois professores, explicou mais especificidades do trabalho. Estas diziam respeito à segurança pessoal: por exemplo, não era para falar às jovens o lugar onde residia; durante as aulas, era prudente evitar ficar de costas para os corredores, se possível, deveria manter-me próxima à parede, para evitar que fosse pega como refém, pelas costas, em alguma situação tensa; que não era para levar recados das meninas para os meninos a menos que elas autorizassem passar pela assistente social, pois poderia ser comprometedor.
118
começaram a conversar com os professores. Eu estava ao lado dos dois e também
participava da conversa. Um jovem me interpelou dizendo:
_ “Aê, fortalece74 esse brinco aê?!”.
Ele se aproximou da grade do portão e pediu novamente estendendo a mão:
_ “Aê menina, fortalece esse brinco aê?!”.
Tentei sair da situação:
_ “Pô... vai dar não. Esse brinco eu não posso dar não, porque se eu tirar vai fechar
o furo da minha orelha.”.
Não satisfeito, o jovem retrucou:
_ “Que nada, depois é só furá de novo assim ó (mostrou-me como eu poderia fazer
para perfurar minha orelha). Pô, dêxa de ser ambiciosa! Cê já tem três aí na orelha,
fortalece um só, tá ligado?”.
Outro jovem ria, chamando o colega de abusado. Um dos professores interferiu
dizendo:
_ “Não, esse brinco é dela. Ela gosta de usar. Ela não vai te dar, tá? Esse é dela.
Pede pra alguém que vem te visitar trazer um pra você. Esse aqui é dela, tá?”.
Todos riam da situação. Encurtamos a conversa no portão.
Antes de sair, um jovem chegou próximo às grades e perguntou:
74
Nas gírias do funk, fortalecer significa fornecer drogas (localizado em http://forum.valinor.com.br/archive/index.php/t-25126.html). Os/as jovens da Instituição pesquisada utilizavam essa expressão com diferentes sentidos: para pedir alguma coisa (neste caso, o brinco); para buscar no outro apoio para suas ações; no sentido de fornecer qualquer coisa, não precisava ser drogas especificamente.
119
_ “Aí, cê é da PM?”.
Respondi que não. O mesmo professor que havia feito a intervenção em relação aos
brincos me apresentou ao jovem:
_ “Não, essa aqui é professora. Ela agora vai trabalhar aqui com a gente.”
O menino desfez o ar de preocupação e estendeu a mão para me cumprimentar:
_ “Ah, tô ligado. Muito prazê aê fessora!”.
Somente depois percebi que eu vestia uma calça jeans de tonalidade escura e um
camisão branco, tinha os cabelos presos e havia passado pelo “batismo de fogo”,
como um ritual de iniciação. Além disso, já no primeiro dia, pude perceber que os/as
internos(as) reconheciam e respeitavam o profissional docente como uma
autoridade.
Em outras situações, quando eu era apresentada aos meninos, a primeira impressão
percebida eram os olhares maliciosos deles direcionados a mim. Após ser
identificada como uma nova professora, a relação estabelecida era de muito respeito
e, para os jovens, eu me tornava um ser “assexuado”.
Outro cuidado que os professores deveriam aprender a ter se referia à separação do
material para a aula. Lápis, borracha, apontador, caneta, tesoura, cola deveriam ser
devidamente controlados, pois poderiam ser utilizados como armas pelos internos75.
Nas tesouras eram amarradas cordas de modo a formar um “colar” que era
carregado pelos professores no pescoço. Os lápis de escrever eram cortados em
tamanhos pequenos com as pontas pouco afiadas. Estes deveriam ser contados
antes da aula e depois da mesma. Para apontar o lápis, era preciso pedir ao
professor que o fizesse, para evitar que a lâmina fosse utilizada para outros fins. Os
75
Entre eles, uma das punições para os jovens que se envolviam em confusão ou que cometiam crimes que não eram admitidos pelo “código de ética” dos internos era introduzir a caneta no ouvido daquele que estava sendo punido e bater com força. A caneta/lápis perfurava o ouvido.
120
jovens da ala masculina76 não poderiam levar nenhum destes objetos para seus
alojamentos.
Esses cuidados não eram transmitidos “oficialmente” ao professor que ingressava na
unidade. Aprendia-se na prática cotidiana, nas trocas com os colegas mais
experientes. Assemelhava-se à incorporação de um “habitus profissional”. Precisei
incorporar esse habitus e me transformar, de pesquisadora em professora, para ser
aceita e garantir minha segurança. Reconheço que precisei utilizar essa estratégia
para poder circular pelos espaços e partilhar das atividades realizadas na unidade
feminina de internação.
3.3 “TIRANDO CADEIA”
Essa música é o meu lema. Aí galera passe o pano na letra e eu ofereço para todos aqueles
que estão no sofrimento como eu.
Música: Proteja os manos que tão lá na prisão Cantor: Menor do Chapa do Turano
“Deus” proteja os manos que tão lá na prisão,
Proteja os manos que tão na solidão, Proteja os manos puro de coração,
Muita humildade e brindão na guerra fria Não posso marcar toca somos turanos
Família vida loka E nosso bonde é pronto pra guerrear
Nóis que tá.77
“Tirar cadeia” era a expressão utilizada pelas jovens para se referir ao cumprimento
da internação. Essa gíria também significava ludibriar alguém, ou ainda, “fazer hora”.
76
Na unidade feminina, era permitido às internas ter canetas nos alojamentos. Algumas meninas iam para a aula com caneta própria. Tinha-se o cuidado de depois da aula recolher os lápis ou outros objetos cortantes, mas a preocupação era diferente da destinada aos internos da unidade masculina. No quadro de avisos da unidade, existiam “recados” especiais para os familiares, para que não levassem objetos cortantes, perfurantes para as jovens. O uso de lâmina para barbear também recebia recomendações. As assistentes de aluno deveriam entregar a lâmina descartável para a jovem. Ela faria o uso sob as vistas da assistente de aluno e a devolveria logo após. 67
“Recado” deixado por Ana no preenchimento do questionário [grifo feito pela jovem].
121
Neste item, pretende-se apresentar como as jovens cumpriam a sua internação e
ainda como elas “faziam hora” para “aliviar” a privação de liberdade. Busca-se expor
como foi o primeiro contato das internas com uma unidade de internação para
jovens em conflito com a lei, o que pensavam sobre a realidade experimentada por
elas, como se dava a relação com a instituição e seus funcionários, segundo suas
próprias palavras. Em seguida, procura-se mostra as reflexões dos que trabalhavam
na unidade sobre a própria prática e sobre a instituição.
A entrada na unidade de internação implicava o aprendizado de um novo “ritmo de
vida”, a adequação a um espaço físico limitado e às normas institucionais, a
construção de laços entre pessoas desconhecidas, a incorporação de um
vocabulário próprio, o entendimento de como “negociar” com a direção e com os
interesses do grupo. A resposta dada por uma jovem aos questionários elucida esse
processo:
Ai o dia a dia aqui é difícil ta ligado pois aqui não podemos confiar em ninguém a dica para você não se enrola aqui é falar pouco e apenas observa fica só no sapatinho só passando o pano nas figura que entrão e naquelas que já estão aqui a mais tempo ta ligado aqui não tem nada de interessante não, pelo contrário o dia a dia aqui cada vez se torno mais complicado ta siente pois vai passando o tempo a cadeia começa a pesar e bate a bolação ai já viu né. (QJs 07, 16 anos)
Quando encaminhada para a internação provisória, a jovem e sua família passavam
por uma entrevista com os técnicos. A “novata” recebia um “kit” fornecido pela
unidade contendo: um colchão, lençol, sabonete, xampu, pasta e escova de dentes.
Em seguida, ela era alojada em algum dormitório, que, de preferência, fosse
habitado por internas também da unidade provisória. As recém-chegadas eram
acompanhadas de perto pelos assistentes de alunos, que lhes davam dicas,
aconselhavam a participar das atividades escolares, a não se deixarem abater. Os
professores também davam uma atenção especial às novas alunas.
Em conversas informais, fiz perguntas direcionadas às jovens sobre quais foram as
primeiras impressões sentidas ao adentrar em uma instituição de internação. Nesse
122
dia, estava de posse de papel78 para anotações e pude registrar as narrativas das
meninas. Segundo as jovens:
Pô... quando eu cheguei... Ah... Uma reação estranha, que é difícil acostumá com o lugar, é difícil acostumá com as pessoas... e a saudade bate... do mundão... da família... A gente pára e pensa... porque a gente foi fazê isso... depois se arrepende. É tarde demais... Mais... A gente tamo aí! Seguindo em frente, firme e forte! (Joana) Pô, a gente chega, acha que vai embora rápido! Faz um ano que eu tô aqui... A única coisa que dá pra fala é que é horrível, entendeu? Tirando as nossas amigas, porque aqui é como se fosse uma família. (Bete)
Em uma aula de História, o professor solicitou às alunas que escrevessem um texto
com o tema “liberdade”. Duas alunas narraram suas percepções sobre a unidade:
[…] ficar presa não é bom, você é obrigado a comer uma comida horrível, ver sua família só no domingo e isso não é vida pra ninguém. Por isso estou louca para ir embora dessa cadeia. Em breve estarei em casa eu a minha filha se Deus quiser! (Tereza) […] Aqui é outro mundo. É muito triste acordar e se ver trancado, rodeada por pessoas jamais vistas antes, não posso ver quem tenho saudade, não posso comer o que tenho vontade; hoje penso que sería maravilhoso o que antes odiava. Adoraria muito estar numa fila de banco, daquelas enormes e cansativa, poder pegar um ônibus lotado, daqueles que se você levantar o pé, não abaixa mais. […] É bem complicado mas tenho fé, e esperança de poder finalmente voutar para minha família, sair desse lugar, é muita gritaria, tudo resolvem brigando, batendo, chingando e falando auto, e não tem pra onde ir, pois é um cômodo, trancado, gradiado. É sujo, com as paredes pichadas, não se tem paz, nem pra dormir todo lado que se olha só vê palavras e gestos obcenos, despudorados. Quero ir embora daqui, precizo sair daqui, pra nunca mais voutar não quer nunca mais voutar, nunca mais quero sentir o que sinto aqui. (Renata)
Como descrito anteriormente neste trabalho, precisava-se de tempo para uma
adaptação à unidade. As avaliações que as jovens fizeram sobre a instituição de
internação evidenciam opiniões diferentes, como é possível perceber a seguir:
No meu ponto de vista a UFI é uma unidade que procura ajudar as pessoas que aqui se encontra, mas falta pessoas competente para que esse trabalho possa ser realizado com sucesso. (QJs 07, 16 anos) Eu vejo a UFI como um lugar que não dar para mudar e sim piorar pos presizamos de segurança pelo fato de ser Seguro. (QJs 03, 17 anos) Um ambiênte muito ruim, porque nem todas as pessoas são tratadas em igualdade e nem local para ninguém viver. (QJp 01, 17 anos)
78
Papel e lápis cedidos pelos professores.
123
Como uma cadeia de papel, pois ninguém conhece, e por isso não podem nos ajudar em nada pois não existimos pra eles. (QJp 02, 17 anos) Eu vejo a UFI como um orfanato e cadeia aos dois mas como orfanato infernal. Porque eu vejo os dois caso no mesmo tempo um por orfanato da roupa, colchão e lençou e etc... Agora como cadeia e porque as veses eles chama guarda para nois só poriso. (QJp 05, 15 anos) Uma casa de reflequição, onde você passa um tempo para pensar se vale a pena continuar nesta vida, que julgam ser do “crime”. Um lugar onde as pessoas que são os educadores tentam te mostrar que você pode ser uma pessoa melhor que você pode ter um futuro brilhante. Um talvez seja um castigo, onde muitas se revoltam e pioram. Mas pra mim serviu para refletir sobre meus planos, meu modo de viver, entre outros. (QJp 07, 17 anos) Eu achava que cadeia era um bicho de sete cabeças, mas também não é assim se souber levar a cadeia tranqüila não vai ter inimigos. (QJp 11, 12 anos)
Os funcionários partilharam de visões semelhantes às das jovens:
Apesar de todas as dificuldades existentes no estado, que sabemos que é existente, mesmo assim as unidades são espaços onde o adolescente pode apreender/perceber/refletir que há outros caminhos na vida, além do que ele (o aluno) pensa que é o único, ou seja, espaço de conhecimento para novos caminhos. (QP 01, 36 anos) Em termos de estrutura física as duas unidades [UNIS/UFI] não oferecem as condições básicas necessárias para um atendimento humanizado e eficaz das medidas sócio-educativas, preconizadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, visto que os prédios são antigos, construídos na década de /70, visando atender 40 adolescentes. Na UNIS, principalmente foram feitas adaptações/ampliações, considerando que nos últimos anos aumentou o número de adolescentes e a superlotação acarreta dificuldades no desenvolvimento efetivo da proposta de trabalho. Lembramos que c/ as adaptações feitas na estrutura física, contamos c/ 160 vagas (+-) e encontramos hoje 246 adolescentes internados. (QT 01, 54 anos) Vejo como uma unidade de reabilitação, socialização e humanização, onde desenvolvemos trabalhos de conquista da auto-estima e também a valorização de “Eu” Mulher, são adolescentes em conflito com a Lei, mas o seu maior conflito é o interior. Trabalho das atividades pedagógicas e ensinos profissionalizantes. (QT 03, 53 anos) Uma instituição com uma difícil missão que é lidar com jovens nesta situação de risco de cair no mundo do crime e juntos com outros que já estão nesta vida. Tudo isso com uma grave deficiência em sua estrutura física e administrativa. (QA 04, 27anos) Uma instituição que era para ressocializar os menores, mas o sistema nada faz para que isso possa acontecer, claro que há certas pessoas que se preocupam, mas é minoria e com isso o sistema a cada dia piora. (QP 05, 25 anos) Vejo de forma bastante crítica. É um lugar que deveria funcionar como espaço de ressocialização, ou seja, deveriam ser tomadas medidas socioeducativas que retirassem essas adolescentes da situação de risco
124
em que elas vivem. No entanto, a precariedade (falta de espaço físico adequado, falta de material pedagógico, falta de condições de higiêne básicas, etc.) associada a desorganização (funcionários ociosos, desvio de função, falta de preparo, cargos políticos, etc.) tornam esse espaço uma espécie de “pensão”, ou seja, as meninas apenas aguardam suas sentenças ou quem sabe a liberação para retornarem para rua e fazer tudo aquilo que fizeram para chegar aqui. (QP 09, 29 anos)
Os problemas estruturais que predominam no Brasil, em grande parte das
instituições destinadas a jovens em conflito com a lei, são aqui reafirmados pelos
sujeitos que com eles têm que conviver (seja como internas ou como profissionais) e
aprender a criar estratégias que possibilitem uma prática contraditória entre uma
concepção socioeducativa de como deveria ser e a realidade encontrada, que se
assemelha aos antigos códigos de menores.
Diante desse contexto, as relações estabelecidas entre as jovens e os funcionários
chegavam à quase cumplicidade. “Quase cumplicidade” porquê, para tal, era
necessário que houvesse confiança e identificação entre ambos, o que era
construído nas relações de amizade e de respeito.
3.3.1 “Tirando cadeia” – brincadeiras e traquinagens
A relação das jovens com as normas da instituição era de burlas constantes e de
“escapadas”. Se na experiência escolar de alunos a dimensão correspondente à
formação do sujeito se daria nas sociabilidades tecidas fora do controle do sistema
escolar, nas instituições de internação isso não seria muito diferente.
Havia um movimento de resistência à dura realidade e ao controle – conforme
relatado no tocante à manutenção de modos de ser juvenis. E foi interessante
observar que esse “confronto” se dava em diferentes direções: 1) um primeiro
caminhava para a irreverência com que se comprovava que era possível quebrar
uma norma e “bagunçar” a ordem; 2) um segundo indicava para o uso do bom
humor como forma de “quebrar” a tristeza na privação de liberdade; 3) um terceiro
125
estaria relacionado ao cuidado com a própria imagem, em “estar bonita” quando
sentisse que a “cadeia” lhes tirava a “vitalidade”.
As histórias a seguir mostram como isso acontecia no dia-a-dia:
Dançando no pátio
Ao chegar pela manhã na unidade feminina, encontramos a agitação matinal de
meninas passando de camisola, ou só de sutiã e short , com o pão em uma mão e o
copo de café na outra. “Bom dia aê fessô”. No entanto, a euforia estava um pouco
além do normal. A diretora da unidade se encontrava no corredor gritando em
direção ao pátio. Parecia discutir com Juraci. Eu e os professores nos aproximamos
do portão da quadra para ver o que estava acontecendo.
A cena era engraçada. Juraci rodopiava no pátio enrolada em um cobertor, parecia
não estar vestida. A diretora da unidade chamava pela jovem:
_ “Você entra logo e vai botar uma roupa! Onde já se viu uma coisa dessas? Você
acha que vai achar homem assim, feia desse jeito? Vai botar uma roupa pra ficar
bonita! Assim não quero não!”.
Quanto mais a diretora se exaltava, mais Juraci rodopiava, erguendo os braços
como se dançasse ameaçando soltar o cobertor. Maria resolveu intervir. Ela corria
atrás de Juraci tentando segurá-la enquanto esta rodopiava se desvencilhando da
amiga. Maria chamava Juraci às garagalhadas:
_ “Vem amiga! Amiga, você tá igual ao Bob Esponja79 nesse cobetor! Vem amiga...
Oh dó... vem meu Bob Esponjinha...”
A diretora tentava ficar séria, mas não conseguia controlar o riso.
“Vem minha amiga, meu Bob Esponjinha...”, corria Maria atrás da amiga.
79
Bob Esponja é um personagem de desenho animado. Os motivos florais da colcha de Juraci realmente lembravam o desenho Bob Esponja.
126
A cena se estendeu por um tempo até Juraci perceber que sua platéia se
dispersava. Poucos minutos depois, Juraci entrava, enrolada na coberta,
descabelada e chateada com a diretora da unidade. Enquanto isso, esta lhe dizia:
_ “Isso, agora vai tomar banho e botar uma roupa. Não quero ver você assim não.
Vai lá ficar bonita”.
Juraci não fazia sequer um comentário. Entrou para o alojamento.
Soubemos pela própria diretora que ela havia solicitado à Juraci que comparecesse
à sua sala para conversarem. A jovem apareceu enrolada na coberta dizendo que
iria para o pátio ver seu namorado80. A diretora reafirmou que queria conversar com
ela, que era para a interna se vestir pelo menos. Em pouco tempo a situação estava
“armada”.
Brincando com tinta
Era um dia tenso na instituição. De uma maneira geral, a presença do Batalhão de
Missões Especiais mudava a rotina nas unidades. Na unidade feminina, algumas
meninas estavam de castigo por terem se envolvidos em brigas. Chegamos, um
professor e eu, para as aulas no período vespertino. As jovens assistiam a um filme.
Havia colchonetes espalhados pelo chão. As meninas estavam deitadas e enroladas
em seus cobertores.
Após a “sessão”, o psicólogo – que orientava as atividades – tentou desenrolar uma
pequena discussão sobre o filme com as meninas, o que não deu muito certo. Ele
saiu da sala e retornou com cartolinas e tintas. As meninas deveriam fazer um
desenho cego e depois cada uma tentaria que explicar o da colega.
A princípio houve relutância em sujar o dedo de tinta. Pediam pincéis. O psicólogo
as encorajava. Por fim resolveram pintar. Começaram a achar divertido. Enquanto
80
Juraci tinha um namorado que era do Seguro da unidade masculina. Em abril ele recebeu seu alvará e foi liberado.
127
pintava, Tereza comentava que desenhava as grades e a prisão. As demais apenas
riam. Estavam mesmo se divertindo com a “lambança” da tinta. Quando concluíram
a atividade, tentaram comentar a pintura uma da outra e riam das interpretações
feitas.
Enquanto o psicólogo recolhia as atividades, Bete passava a mão suja de tinta no
rosto de Carolina. As duas começaram a brincar de pintar uma a outra. Riam,
corriam, divertiam-se.
_ “Quero ver se não tiver água! Aí eu quero ver!”, Carolina comentava.
O psicólogo retornou à sala e encontrou Bete e Carolina pintadas até o cabelo. A
risada foi inevitável.
_ “Gente, não tem água na unidade! Como é que vocês vão fazer?”, perguntava o
psicólogo rindo.
_ “Chega gente. A brincadeira, já chegou.”, falava o psicólogo enquanto pegava as
folhas com as pinturas feitas pelas meninas.
Enquanto tentava recolher os potinhos de tinta das mãos das meninas, elas
ameaçavam sujá-lo também.
“Eu não deixo me derrubar não”
Certo dia, ao chegar na unidade feminina, Iolanda estava com uma produção
especial. Cabelos arrumados, rosto maquiado, vestindo roupa “de sair”, salto alto.
Os elogios foram muitos.
Um professor se aproximou de mim e explicou a novidade:
_ “Ela tá mal. Quando ela se arruma assim, é porque ela tá mal.”
_ “Como assim?”, perguntei.
128
_ “Uma vez ela me disse: „_ Professor, tem dias que eu acordo me sentindo um lixo,
né? Daí eu me levanto, eu me produzo toda e digo assim: „Eu não deixo me derrubar
não!‟ Daí, eu ponho meu salto e enfrento o dia!”.
* * *
Apesar do prescrito – a proposta pedagógica – que pretendia organizar e direcionar
as atividades da instituição, construía-se um outro dia-a-dia imprevisível, gerado por
resistências e por estratégias de (con/sobre)vivência porque o dia-a-dia na
instituição era exaustivo não só para as jovens como para os funcionários que lá
trabalhavam. Ambos criavam estratégias de sobrevivência e buscavam “válvulas de
escape” para o estresse sentido. As brincadeiras eram, para os sujeitos, uma forma
de enfrentar a dura realidade.
129
4 A VIDA POR DETRÁS DOS MUROS: AS EXPERIÊNCIAS
JUVENIS, AS VIOLÊNCIAS E OS PROCESSOS DE
(TRANS)FORMAÇÃO
“É nois mesmo mané Bonde nervoso
100% furioso Pode crê”
81
4.1 A CONDIÇÃO JUVENIL “DIXAVADA”82 NA SITUAÇÃO DE PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE
A pesquisa aponta que, em uma situação de privação de liberdade, não seria
possível falar-se de uma condição juvenil com o mesmo sentido que é desenvolvido
pelas discussões teóricas atuais a respeito do tema.
Ficou claro que, no período anterior à entrada na instituição de internação, grande
parte das jovens desfrutava de uma condição juvenil atravessada pelas situações
juvenis (de classe, de gênero, de etnia, de origem urbana ou rural) e que, por esta
razão, imprimiam diferentes sentidos às experiências juvenis vivenciadas por elas.
Essa condição juvenil era marcada por uma forte presença da
desinstitucionalização, caracterizada também pelo não reconhecimento do tempo
livre e ocioso da juventude pela sociedade, uma vez que se tratava, em grande
maioria, de jovens provenientes de classes desfavorecidas. Além disso, faziam parte
da experiência juvenil dessas jovens a violência praticada e sofrida por elas e a
inserção no tráfico de drogas. Nos questionários, as jovens deram pistas de como
eram suas vidas antes da internação:
81
Recado deixado por Zoraide no preenchimento do questionário. 82
A expressão “dixavada” é uma gíria que, dentre seus vários significados, era utilizada pelas jovens quando queriam se referir a uma coisa que é escondida, escamoteada, que acontece “por debaixo dos panos”.
130
Minha vida era como de uma adolescente normal balada, escola e casa. Recebia mesada, tinha tudo que uma pessoa normal queria, mas aquilo tudo era chato d+, então aos 12 anos resolvi entrar na vida do crime pois precisava de alguma diverção […] Sinto falta da escola e das noitadas, mas não confunda eu gosto da escola não de estudar e também sinto muita falta da minha vó que esta doente e não pode vir me visitar. (QJs 05, 18 anos)
Era ótima porque eu saia. Cortia ia na igreja com a minha mãe poriso era ótimo e vivia perto dos meus pais e irmãos. (QJp 05, 15 anos) Bom, minha vida era muito boa, mas isso era quando eu morava no orfanato […] mas depois quando eu fui mora com meu falecido pai minha vida virou um inferno sem saída eu que achava que indo morar com meu pai ia ser diferente me enganei meu pai tinha mudado nada, mesmo ficando 2 anos sem me vê ele parecia que preferia me vê no orfanato do que do que com ele mais isso tinha um pouco de influência da minha madrasta que me odiava isso também afetava no meu relacionamento com meu pai pois ele preferiu ficar com ela do que comigo e fez eu ir morar no orfanato. Isso aumentou ainda mais minha revolta pois nosso relacionamento sempre foi conturbado ainda mais depois que ele me molestou, enfim acho que minha vida antes era boa por eu ter sobrevivido a uma tentativa de homicídio por 3 vezes eu tentei me matar. (QJp 05, 15 anos) Minha vida antes de entra na UFI era muito alegre eu estudava, saia namorava e simplismente minha vida era outra sinto muito falta de olhar o mundo lá fora. Sinto muita falta da minha família. (QJp 06, 15 anos) Eu não trabalhava. Eu acordava de manhã e fazia café e acordava meu marido para ele tomar café e depois ele acordava e ia trabalha. Ai eu começava a fazer os serviços de uma dona de casa, limpava a casa, lavava vasilha e mais tarde fazia almoço, aí ele chegava para almoçar e nós almoçávamos juntos. Lá pra duas horas dá tarde ele voltava para o trabalho e eu ficava sozinha e aproveitava para poder fazer minhas bijuterias e bordados que antes de entra UFI e fazia muitas coisas. (QJp 08, 15 anos)
Quando se analisa a condição juvenil das jovens sujeitos dessa pesquisa, observa-
se que, em sua maioria, vivenciavam sua condição juvenil em um processo de
desinstitucionalização, ou seja, nas brechas das instituições socializadoras.
A família, ou a relação com os familiares, foi, por diversas vezes, citada nos
questionários. Embora nem todas possuíssem uma relação “harmoniosa” com a
família, havia, na grande maioria dos relatos, a presença de um ente que se
responsabilizava pela jovem e por quem esta nutria um arrependimento por não ter
escutado os seus conselhos. Outro ponto que merece destaque diz respeito à
posição ocupada pelas jovens na família. Algumas jovens narraram terem sido
“obrigadas”, em algum momento da vida, a assumirem a condição de “chefes de
131
família”, por diferentes razões. Ou porque seus responsáveis foram presos, ou
porque já não havia quem respondesse por elas.
Algumas jovens relataram ainda que tentaram estabelecer vínculos com o mercado
de trabalho, mas não conseguiam emprego ou, quando empregadas, a remuneração
era pouca para o sustento próprio e da família.
Uma outra esfera de convívio social que tinha expressiva presença na condição
juvenil das meninas quando em liberdade era o agenciamento (por vias diretas ou
indiretas) com o tráfico de drogas. Trabalhar para o tráfico ou ser namorada de
traficante configuravam outras formas de vivenciar as experiências juvenis. Para o
primeiro caso, a atividade ilegal proporcionava uma falsa sensação de desfrutar uma
“moratória social”. Ou seja, o dinheiro proveniente do tráfico proporcionava o custeio
de um tempo “livre” para as jovens curtirem seus bailes, para estarem com os
amigos, comprar as roupas da “moda”. Ser “artista da arte proibida” garantia a essas
jovens a sensação de liberdade, de autonomia em relação à família. Ser namorada
ou mulher de traficante também garantia a visibilidade social, reconhecimento e
poder. No entanto, essa condição demandava assumir o papel da mulher fiel e
submissa ao homem.
Foi possível observar que a adesão ao tráfico de drogas era justificado pelas jovens
também por outros motivos além do apresentado acima: um primeiro explicava a
ligação com o tráfico por razões de necessidades financeiras (ou porque precisavam
sustentar as famílias, ou porque eram “sozinhas na vida” e precisavam garantir seu
sustento); um segundo aparecia na necessidade de assumir um posto no tráfico
deixado por alguém da família que foi preso ou que se encontrava foragido.
Os estudos de Alba Zaluar (2004) sobre os jovens envolvidos com o tráfico de
drogas no Rio de Janeiro, mostram que, na relação estabelecida entre “ser bandido”
do tráfico de drogas e a liberdade, o sujeito jovem é quem “se perde numa perversão
da liberdade na qual o outro não é levado em consideração” (p.64). A autora traz
para discussão a ideologia do individualismo moderno na “escolha” por aderir ao
tráfico. A ilusão de enriquecimento rápido a partir da adoção de uma atividade
considerada, a princípio, livre, autônoma, relacionada a uma compreensão
132
autoritária de poder (de decidir sobre sua vida, sobre a vida alheia) é duramente
desfeita aos olhos dos jovens ao perceberem que se encontram em uma
“armadilha”.
A “vida do crime” apareceu como uma alternativa para obter dinheiro fácil para
sustentar uma vida confortável, com direito à diversão. Essa visão foi compartilhada
pela maioria dos funcionários. As meninas apenas deram pistas de um pensamento
semelhante. Nos questionários respondidos, somente uma fala o porquê de ter
“escolhido” a chamada “vida loka”.
Ao analisar o dia-a-dia das jovens internas, foi possível observar situações juvenis
vivenciadas por elas que se manifestavam, principalmente, como forma de
resistência83 ao controle de desejos, vontades, comportamentos, relacionamentos e
sociabilidades. As vestimentas e as tatuagens84 denotavam uma maneira específica
de se identificar enquanto jovem, mulher e “presa”, como elas se auto-
denominavam.
As roupas escolhidas pelas jovens mostravam seus corpos e demonstravam
sensualidade. Independentemente do calor ou do frio, a vestimenta usada era,
geralmente, um short e um top curtíssimos. Para outras jovens, os bermudões, as
83
Henri Giroux trabalha o tema da resistência na relação aluno-escola-currículo. Este autor “sugere que existem mediações e ações no nível de escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle. A vida social em geral e a pedagogia e o currículo em particular não são feitos apenas de dominação e controle. Deve haver lugar para oposição e resistência, para a rebelião e a subversão” (SILVA, 1999, p.53) 84
Um jovem narrou sobre os significados que carregavam uma “tatuagem de cadeia”. A conversa travada entre o rapaz e os professores surgiu quando aquele viu a tatuagem que um professor tinha no braço: - “Aí fessô, ocê sabe que tatuagi tem significado? Cê conhece uma revista de tatuagi... Ah, o sinhô deve saber. Eu tava lendo... Assim, tem umas coisa qué viagim, né?... Mais tem umas coisas, sô, que são legal até. Eu li que no presídio as tatuagi tem uma simbologia. Assim: quando é uma sereia ou uma carpa, assim, é porque o cara é estrupador. Quando o cara tem desenhado uma caveira com uma faca assim, é porque é matador de políça.” _ “Eu sei que é um coração com uma faca encravada que é matador de polícia. As mulheres lá do Tucum [presídio feminino] me falaram assim. Quando tem essa tatuagem os polícias batem tanto no sujeito”, interrompeu uma professora. _ “É, deve sê mesmo um coração então... Aí, quando um cara tem um índio é porque é código 12, tá ligado?”. Ele bateu no ombro do professor de capoeira, rindo, olhando para tatuagem de índio que ele tinha no braço. _ “Ah irmão, mas isso eu nem sabia! Vi essa índia na internet, achei bacana e quis tatuar no braço. Imagina? Eu 12?” (risos), respondeu o professor.
133
camisas largas e bonés indicavam outro lugar destas frente às demais; geralmente,
eram elas que se destacavam no “comando” das ações. Ou seja, havia uma
definição de papéis sendo incorporados: femininos e masculinos, sendo traduzidos
pelas vestimentas e tatuagens e pelas atitudes e posturas.
Bourdieu (1999), ao analisar a posição das mulheres nas relações de gênero, traça
um paralelo com a troca de bens simbólicos e com a economia das trocas
simbólicas. Os homens são compreendidos como sujeitos e as mulheres, como bens
de troca. Nesse sentido, o autor destaca:
A posição peculiar das mulheres no mercado de bens simbólicos explica o que há de mais essencial nas disposições femininas: se toda relação social é, sob certos aspectos o lugar de troca no qual cada um oferece à avaliação seu parecer sensível, é maior para a mulher que para o homem a parte em que seu ser-percebido, compete ao corpo, reduzindo-o ao que se chama por vezes de “o físico” (potencialmente sexualizado), em relação a propriedades menos diretamente sensíveis, como a linguagem. Enquanto que, para os homens, a aparência e os trajes tendem a apagar o corpo em proveito de signos sociais de posição social (roupas, ornamentos, uniformes, etc.), nas mulheres, eles tendem a exaltá-lo e a dele fazer uma linguagem de sedução. (BOURDIEU, 1999, p.118)
As tatuagens eram feitas pelas jovens dentro da própria Unidade e traziam iniciais
de nomes de namorados e de namoradas, declarações de amor ou se referiam à
vida que levavam – nesse caso utilizavam a expressão “vida loka”. As tatuagens
eram inscritas de maneira precária: com a ponta aquecida de uma agulha, furava-se
a pele e fixava-se com tinta de caneta esferográfica o escrito desejado. As agulhas
eram compartilhadas pelo grupo. Embora as normas da Unidade proibissem a
entrada de qualquer objeto perfurante nos alojamentos e ainda que houvesse um
controle rígido a esse respeito, as jovens conseguiam, de alguma forma, a posse
deste material.
O gosto musical também demarcava traços juvenis. Funkeiras “de carteirinha”, o
funk era o som que as meninas ouviam na unidade durante quase todo o dia.
Também ouviam rap e hip hop. No entanto, esses estilos musicais eram cantados e
escutados em ocasiões diferentes: nos momentos em se “batia o chapão”, quando
se protestava, os raps eram cantados como hinos. Ainda quando queriam falar de
sua situação de “presa”, essas músicas eram as mais adequadas. Quando o
134
assunto se referia ao divertimento, à “zoação”, o funk trazia para trás das grades os
bailes, a “curtição”.
Juarez Dayrell, em seu livro “A música entra em cena – O rap e o funk na
socialização da juventude”, recorre à Adorno para estabelecer a relação entre a
juventude a identificação com a música. Segundo Dayrell (2005, p.37):
“De fato, ela [a música] constitui um agente de socialização para os jovens, à medida que produz e veicula molduras de representação da realidade, de arquétipos culturais, de modelos de interação entre indivíduo e sociedade, e entre indivíduo e indivíduo. A música oferece aos jovens a possibilidade de conjugar a trama de um caminho de busca existencial com os signos de uma pertença coletiva. Por meio da música, as necessidade dos jovens de uma ancoragem e agregação coletiva se articulam com os percursos de experimentação de si mesmos. […] Entretanto, a relação entre a música e as agregações juvenis não é uma relação natural; ao contrário, é uma construção histórica”.
Esse autor, ao analisar os estilos rap e funk, adverte que estes possuem
especificidades e nos ajuda a compreender a relação que as jovens estabeleciam
com a música:
[…] A melhor forma de caracterizá-las é pelo duplo sentido da palavra “diversão”. A diversão é ato ou efeito de distrair ou distrair-se: falta de atenção, abstração, irreflexão, esquecimento, divertimento (do latim, distractione). É o sentido do funk, em que predomina um controle descontrolado das emoções, mediado pela música. Podemos ver nele a expressão do direito legítimo dos jovens à alegria, à fruição, ao prazer. Diversão também é um ato ou efeito de divergir: mudança de direção, desvio (do latim, diversione). É o sentido do rap. Mais do que o funk, o estilo rap estimula o jovem a refletir sobre si mesmo, sobre seu lugar social, contribuindo na ressignificação das identidades do jovem como pobre e negro. Ao mesmo tempo, o rap cria uma forma própria de o jovem intervir na sociedade, por meio de suas práticas culturais, mas não significa, necessariamente, que se coloque como uma forma de resistência ou uma expressão política de oposição de classe. Ressalta-se seu sentido formativo […] uma pedagogia da palavra, nas letras, por meio das quais não pretendem impor uma compreensão da realidade, mas “fazer o cara pensar” […]. (DAYRELL, 2005, p.292)
O gosto musical era um fator de identificação grupal muito forte. Houve casos de
jovens que não gostavam desses estilos musicais e aprenderam a ouvir, a dançar, a
cantar para serem aceitas no grupo.
A música também era utilizada pelas jovens como estratégia para se verem livres de
situações complicadas. Quando travavam discussões com a direção da unidade e
135
percebiam que seriam punidas, ou ainda, quando cumpriam suas punições e
queriam sair delas, recorriam à música gospel para se mostrarem “arrependidas”.
Escutavam e cantavam os hinos em volume alto e, em extrema necessidade,
lançavam mão da Bíblia e, enquanto ouviam as músicas religiosas, liam em voz alta
trechos do livro.
Como mencionado anteriormente, as meninas costumavam ouvir músicas e ensaiar
coreografias no pátio. Nos horários de tranca, para “passar o tempo”, os alojamentos
de transformavam em “bailes funk”.
Esse “modo de ser” era assumido com o tempo, a partir do estreitamento das
relações entre pares, a partir também de um processo de aceitação nos grupos mais
influentes entre as internas. Era como uma outra socialização, que acontecia na
experiência, ou seja, fora do alcance da instituição. Não assumir esta “identidade”
também se afirmava pela oposição ao grupo dominante.
Foi possível perceber que a partir de estratégias de resistência, as jovens
ensaiavam uma outra forma de dar significado à juventude na situação de privação
de liberdade. Esse sentido não era reconhecido como condição juvenil pela
instituição, que visava à tutela, ao controle e à correção das jovens. Nesse
movimento de resistência que burlava o controle – por essa razão seria uma
condição juvenil “dixavada” –, as jovens vivenciavam experiências juvenis que se
construíam a partir das sociabilidades tecidas entre si, das formas de se vestirem,
das tatuagens que faziam pelo corpo, das músicas que ouviam e cantavam, da
forma como se apropriavam do espaço físico do prédio.
136
4.2 AS REDES GRUPAIS
“Aqui é como se fosse uma família, porque tá todo mundo no mesmo barco.”
85
Na sociologia da juventude, José Machado Pais (1993), ao analisar os “tempos
quotidianos” dos jovens, aponta para a importância das sociabilidades tecidas nos
grupos de amigos. Para o autor, as “redes grupais” estão relacionadas a
“identidades juvenis”. As identidades construídas pelos jovens em uma rede grupal
se distinguem das produzidas por outras redes. A relação que se estabelece entre
um grupo juvenil e outro passa a orientar as “imagens que os grupos jovens formam
de si mesmos e dos outros” (PAIS, 1993 , p.93).
Conforme Pais (1993) é no grupo de amigos que os jovens encontram a
possibilidade de afirmarem suas identidades individuais e ainda de se assegurarem,
e se protegerem dos processos socializantes aos quais se encontram submetidos:
As socializações a que os jovens se encontram sujeitos são muito diversificadas. Por isso, é possível admitir que uma das funções essenciais dos grupos de amigos seja, não tanto a de desafiar os valores da família ou das gerações mais velhas, mas assegurar aos jovens uma proteção aos assaltos socializantes a que estão sujeitos. Com efeito, o tempo colectivo de que os jovens desfrutam, em grupo, é sentido como um tempo mais apropriado que qualquer outro à realização dos seus desejos e interesses de marca especificamente mais juvenil. (PAIS, 1993, p.94)
Esses grupos juvenis revestem-se do que Pais denomina de “fachadas grupais”, que
se refere ao jeito de se vestir, de falar, ao gosto musical, que define uma identidade
ao grupo e que o difere dos demais. No entanto, nessa “identidade grupal”, mantém-
se a individualidade de cada jovem. As “fachadas” não se restringem apenas ao
nível simbólico, uma vez que resultam de “ações, reações e interações que
conferem aos elementos do grupo a dimensão de atores coletivos” (PAIS, 1993, p.
99).
85
Registro feito por Tereza no preenchimento do questionário.
137
Para fazer parte de um grupo, é preciso assumir os hábitos nele compartilhados.
Eles conferem a coesão a esse agrupamento. No entanto, isto demanda uma
“negociação” e aceitação desses hábitos grupais. “As relações de compromisso com
o grupo tendem a subsumir divergências individuais” (PAIS, 1993, p.99).
Como relatado anteriormente, os grupos tinham um papel muito importante para as
jovens internas na instituição. Importante para assegurarem, como afirma Pais, suas
individualidades frente ao forte processo socializante da instituição – que, por sua
vez, visava à recuperação da jovem em conflito com a lei, partindo de um modelo de
jovem apto a viver em sociedade, explicitado nos objetivos pedagógicos da
instituição anteriormente apresentados – e para garantirem a segurança física das
internas.
A influência dos membros de alguns grupos traçava uma linha tênue entre a garantia
dos interesses coletivos do agrupamento e a dominação entre pares. Um episódio
presenciado pode demonstrar como esses dois processos aconteciam nas redes
grupais. O primeiro se refere a um motim que foi sufocado ao fim de um dia. O
segundo diz respeito a uma cena comum de ser vista no “dia-a-dia” da Unidade.
A garantia dos interesses coletivos
O dia estava tenso na unidade. Ao atravessar o portão de entrada, deparei-me com
as meninas concentradas no primeiro portão interno. Espalhados pelo chão,
saquinhos de pão. As meninas gritavam pela diretora da unidade, batiam o chapão.
Cantavam músicas de rap, intercalando com uma música provocativa à polícia.
Coordenando o movimento estavam: Natasha, Rita, Maria, Rubens, Juraci, Zoraide.
Elas puxavam as músicas e se expunham na frente do portão. Natasha, Rita,
Rubens e outra interna carregavam nas mãos “chuchos” – cabos de vassoura com a
ponta afiada – que arrastavam pelas grades do portão. Carolina, Bete, Tereza e
Judite participavam de longe. Tereza e Judite estavam grávidas, portanto, não
atuavam diretamente. Esta última parecia não estar de acordo com algumas atitudes
das colegas, mas se fazia presente.
138
O importante, pelo que pude perceber era dar apoio ao grupo, mesmo que
indiretamente. Isso porque, o motivo da rebelião86 era de interesse de todas:
melhores condições no atendimento prestado e fim dos castigos.
A disputa de poder entre pares
Esse episódio se refere a um fato ocorrido após Juraci ter-se tornado braço direito
de Natasha e Rubens. A partir de então, aquela jovem passou a usar roupas mais
largas: camisões, bermudas, abandonando os tops decotados, as saias e shorts.
Era horário de aula. Dois professores e algumas alunas estavam na sala de aula.
Juraci passou apressada pelo corredor em direção à quadra. Ela vestia um camisão
e uma bermuda larga, usava um boné cor de rosa na cabeça com a aba virada para
trás. Os professores fizeram um comentário estranhando a roupa de Juraci.
_ “Que roupa é essa?”, uma funcionária perguntou no corredor que dava acesso à
quadra.
_ “É roupa de macho, pô!”, respondeu Juraci.
Juraci retornou pelo corredor em direção ao alojamento. Passou em frente à sala de
aula. A jovem voltava para a quadra quando cruzou com Natahsa, que caminhava
em sentido contrário no corredor. Natasha lançou um olhar para o boné que Juraci
usava.
_ “Juraci, qual é desse boné pra trás? Porra, foi pra isso que eu te emprestei? Foi
pra usar assim?”. Natasha falou em tom ríspido.
86
O estopim para a rebelião foi o castigo destinado a Joana, após esta ter agredido uma funcionária. A polícia foi acionada para transferir a jovem para um outro alojamento, no qual permaneceu sozinha. Ela não teve tempo para pegar seus pertences e fazer a “mudança” de dormitório. Segundo a interna, ela já estava nervosa após um dia de espera por atendimento médico sem conseguir consulta. Ela explicou também que não havia conseguido contato com sua mãe naquela semana. A mãe de Joana estava detida no presídio feminino. Por essa razão, começou a “bater chapão” no primeiro portão de entrada. Uma funcionária se aproximou das grades e lhe disse algo que soou para a jovem como uma provocação. “O sangue ferveu e quando eu vi eu tinha metido um soco na cara dela”, contou-me Joana.
139
Juraci olhou para o chão e em seguida colocou a aba do boné para o lado.
_ “Pronto. É assim.”, respondeu Natasha.
As duas saíram para a quadra.
Em uma análise psicológica, Guillermo Carvajal (1998) e Zimerman (1999) (apud,
CAMACHO, 1999) apontam também a importância do grupo na afirmação e
proteção da individualidade juvenil. Agrupar-se possibilita aos jovens um
reconhecimento como alguém que ocupa um lugar; protege-os da exposição às
críticas, garante a auto-estima “por meio da imagem que os outros lhe remetem”
(ZIMERMAN, apud CAMACHO, 1999, p.43). Fazer parte de um grupo possibilita
ainda ao jovem o fortalecimento da identidade sexual.
Camacho (1999), expondo o pensamento de Zimerman, afirma que na adolescência
[…] percebe-se, também, a ocorrência de uma oposição contra a autoridade. A formação de agrupamentos juvenis com características contestatórias – como as gangues ou as galeras – tem como meta, um enfrentamento direto e muitas vezes violento contra as normas estabelecidas. O fato de estar em grupo, dá ao jovem integrante a sensação de poder invencível. O propósito central é causar o caos, a destruição e desconcerto sociais. Suas atividades não necessariamente são criminosas. Suas condutas vão desde atos de exibicionismos que choca pela “vulgaridade”, de provocação e de escândalo até a atos considerados criminosos como roubo, furto, estupro ou assassinato. (CAMACHO, 1999, p. 44)
Para os agrupamentos juvenis formados na unidade, essas características se
aplicavam. Havia ainda um caráter afetivo muito forte presente nas relações de
amizade estabelecidas entre as internas. Uma prestava apoio à outra para “enfrentar
a cadeia”. A jovem Tereza me fez o seguinte relato em conversa informal87:
[…] Aqui dentro é um lugar assim, a gente tem o apoio da equipe técnica, dos professores, de alguns monitores, tal, mas... assim. Eu acho assim, se fosse um alojamento, cada uma sozinha, eu me sentiria muito mal. Porque às vezes, por exemplo, choro, lembro da minha família, sempre tem Bete,
87
Registrado em diário de campo.
140
Carolina pra poder ajudar. Então a gente se ajuda a cada uma, a tirar o sofrimento. Então tem sempre um. Vai dando uma força a outra.
O grupo formado pelas jovens do Seguro não podia escolher quem integraria a ala
com elas. Existiam duas jovens que eram fixas em uma das alas do Seguro e a elas
agregou-se uma terceira – todas apresentadas anteriormente. Na outra, o número
era flutuante.
Para esse grupo fixo do Seguro, a organização era importante e o cuidado com o
alojamento, onde passavam a maior parte do dia era fundamental para garantir,
como elas afirmavam, o “mínimo de dignidade”. Conforme já relatado, o dia-a-dia
dessas meninas era tumultuado e preocupante. Elas eram assustadas e muito
atentas a qualquer movimentação estranha. Aprender a garantir sua sobrevivência
era necessidade básica.
As meninas da internação provisória, em geral, compunham grupos entre si. Alguns
não se relacionavam com os da internação “definitiva”. Outros, sim. Como o número
de jovens da internação provisória era flutuante, os grupos se formavam em função
da convivência estabelecida pelas jovens de um mesmo alojamento. Estes se
desfaziam ou mudavam de configuração à medida que meninas eram liberadas e
novas jovens chegavam à unidade. Em geral, eram grupos que freqüentavam as
aulas e pareciam seguir com mais cautela as normas da instituição.
As jovens do regime provisório, que pude acompanhar por mais tempo, e que foram
apresentadas no começo do capítulo, passaram por esse processo de adequação à
instituição: observavam suas normas, aprendiam sobre os grupos e as pessoas, e
em seguida eram integradas em grupos das sentenciadas ou começavam a andar
com as jovens da internação provisória que já estavam há mais tempo na unidade.
Uma jovem, em especial, após ser sentenciada, optou por não se associar a algum
grupo específico. Apesar de ter algumas amizades, preferia “ficar na sua”. A jovem
em questão era Judite.
Um grupo se destacava como mais influente na unidade, não apenas pela
persuasão junto às jovens, como pela capacidade de intervenção junto aos
141
funcionários. Esse grupo era basicamente formado pelas jovens sentenciadas. Dele
participavam também, as meninas da internação provisória que já conheciam as
meninas internas. Caracterizado pela irreverência, pelas piadinhas, pela
contestação, pela defesa de seus direitos, pela baixa participação nas aulas88, esse
grupo também tomava atitudes extremas, e, em alguns casos, violentas. Destacava-
se na coordenação deste agrupamento, Natasha. Com a chegada de Rubens e Rita
na internação provisória, somaram-se duas integrantes de influência na tomada de
decisões. Agregou-se a elas, Juraci. Tinham relevância secundária: Maria, Joana e
Bete. Tereza e Carolina participavam do grupo, mas sem muito envolvimento em
todas as ações.
Nesse grupo, no que tange à questão de gênero, foi possível observar a reprodução
da dominação masculina. As jovens que assumiam posturas “masculinas” eram de
fato as mais respeitadas, eram aquelas que se sobrepunham às demais jovens.
Assumir essa “identidade masculina” se dava, inclusive, com relação ao corpo
físico89.
Reproduzia-se o que na representação social se definiria como traços de
masculinidade: ocupar uma posição ofensiva, ser intransigente, ser duro, ser firme,
ter coragem, ser racional (SAFIOTI, 1987). Um processo que Bourdieu explica como
aquisição do habitus relativo a uma visão androcêntrica de mundo:
A masculinidade está costurada no habitus, em todo habitus, tanto do homem quanto da mulher. A visão androcêntrica de mundo é o senso comum de nosso mundo porque é imanente ao sistema de categorias de todos os agentes […].” (BOURDIEU, 1998, p.23)
88
Tereza era a única assídua nas atividades escolares. Esse grupo apresentava uma visão semelhante em relação às aulas: uma desesperança quanto à garantia de mudanças de vida com a escolarização. Eram freqüentadoras de outras abordagens educativas, como aulas de dança, ensaios para apresentação de teatros e desfiles. 89
Não foi apenas Juraci que passou por uma mudança em seu “visual” para não perder posição de comando no grupo. Com a chegada de Rubens, foi possível observar uma mudança também em Natasha. Esta jovem, quando a conheci, usava roupas masculinas no dia-a-dia. Ela tinha os cabelos longos e cacheados e os mantinha presos em um rabo de cavalo. Usava também um boné. No entanto, em ocasiões festivas na unidade Natasha usava roupas femininas e usava os cabelos soltos. Também fazia uso de bijuterias. Como a presença de Rubens representava uma ameaça frente à influência que exercia sobre as meninas, Natasha optou por cortar seus cabelos curtos, rente ao coro cabeludo, e abandonou as aparições com roupas femininas.
142
A reprodução da dominação masculina era percebida nos namoros. Natasha e
Rubens lidavam com suas namoradas como se estas lhes devessem obrigações.
Por exemplo: as namoradas que se responsabilizavam por lavar suas roupas,
arrumar seus pertences. Em outras situações, as duas jovens quiseram proibir suas
parceiras de participarem de um desfile, porque não poderiam acompanhá-las. Elas
se utilizaram da seguinte justificativa: “Mulher minha não sai desfilando por aí!”.
As companheiras de Rubens e Natasha, por sua vez, assumiam a submissão que
lhes era imposta. Justificavam a permanência dos relacionamentos, por mais que
lhes causassem sofrimento, pelo sentimento que nutriam pelas namoradas. Manter
relações de amizade ou namoro com essas meninas também resumia uma questão
de sobrevivência. Fazer parte desse grupo representava garantias de proteção.
As relações estabelecidas entre si, de amizade e de namoro, também demarcavam
uma maneira jovem de vivenciar a internação. Os namoros estabelecidos a distância
entre as jovens internas e os jovens internos das alas masculinas, situadas em outro
prédio, formavam uma rede de sociabilidades juvenis que, segundo as internas,
“ajudava a passar o tempo na cadeia” e as aproximava um pouco das sociabilidades
juvenis construídas fora da instituição.
Nem todos os relacionamentos, porém, eram amistosos e harmônicos. Muitos eram
marcados pelas agressões verbais e até mesmo por agressões físicas.
4.3 AS VIOLÊNCIAS PRATICADAS E SOFRIDAS PELAS JOVENS EM CONFLITO
COM A LEI
As jovens sujeitos desta pesquisa chegaram à unidade de internação por práticas de
atos infracionais que inferiam “grave ameaça ou violência à pessoa”, ente outros
motivos. Eram jovens autoras de violências e, ao mesmo tempo, vítimas. Tentarei
expor neste item, como este fenômeno estava presente na instituição de internação.
143
Na unidade de internação era possível observar violências físicas e violências não
físicas. Para as internas, existia um “código de normas” que evidenciava quem era
respeitável dentro do “sistema”, bem como o que podia ou não ser feito. Infringir
esse código resultava em punições. A fidelidade era posta à prova e a confiança não
podia ser traída. Por essa razão, as jovens que conheciam essas regras tomavam
cuidado com as intrigas e as fofocas.
Um episódio ocorrido na unidade pôde exemplificar como eram estabelecidas estas
normas: Natasha, que exercia forte influência sobre as demais jovens, era tida pelas
meninas da unidade como “a dona do pedaço”. Por essa razão, era paparicada e
suas vontades eram impostas sobre os desejos das outras. Certo dia, chegou um
grupo novo de meninas para a internação provisória. Duas dessas meninas
conheciam Natasha do “mundão” e sabiam que ela havia sido detida por ter
assassinado alguém que era “do conceito” no “sistema” delas. Esse fato não era de
conhecimento das meninas da unidade. Nesse mesmo dia, um alvoroço se fez entre
as internas que faziam parte daquele “sistema”, que “encostaram Natasha contra a
parede”. Esta, sentindo que poderia sofrer represálias, fingiu estar passando mal.
Como conseqüência, passou o dia inteiro fora da unidade para atendimento médico.
Essa “regra” também se aplicava às meninas das alas do Seguro. Por terem
cometido crimes que não eram aceitos, deveriam ser punidas pelas demais.
Essas jovens sofriam ameaças diárias. As agressões verbais (xingamentos) eram
constantes. Certa feita, a violência passou da dimensão “não física” para a violência
“física”: o alojamento do Seguro foi invadido e suas internas foram duramente
espancadas.
A punição para esse ato foi imediata, com autuação das jovens autoras das
agressões.
Reproduzia-se ainda, na esfera das relações entre pares, a violência simbólica no
que diz respeito à reprodução da dominação masculina. Segundo Bourdieu (1999),
essa violência é sutil e difícil de ser percebida uma vez que:
144
[…] A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar a sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes […] resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto. (BOURDIEU, 1999, p. 47)
No entanto, essas jovens também eram vítimas de violência na relação com a
unidade. Violências físicas e não físicas. Elas relataram:
Eu vejo a UFI uma cadeia de maior porque eles falam que nos estamos cumprindo uma medida socio-educativa então por que eles deixão as policiais entrar e bater como se estivesse batendo em um adulto eu acho que se eles desse um cusco [curso] proficionalizante muitos adolescente iriam sair daqui com planos de mudar e não piorar pois uma unidade que não tem nada de bom só bate em nos, nos vamos sair daqui só a REVOLTA! (QJs 06, 16 anos) Às vezes a gente tenta resolve na conversa, aí não quer conversa, a gente acaba fazendo bagunça, acaba descendo as polícia também batendo em quem não tem nada a ver e acaba agredindo uma das grávida às vezes. As grávida fica nervosa, apavorada, ficava sentindo uma dor. Até risco de perde o neném. Bom, os cuidado aqui é mais com as grávida. As grávida tem um cuidado. Pra mim é um sofrimento, mas eu tento esquece que eu to sofrendo, tento esquece e caba levando uma vida na moral. (Joana)
90
Tristezas, tenho muito aqui dentro. Às vezes no fato de a pessoa, não pode me magoar com um tapa, com uma porrada, com nada, mas sim com uma palavra. Uma palavra dói mais que um tapa. Ah, eu fico magoada, acabo chorando, fico triste. Fico no meu canto. As vezes pergunto o que é, as
vezes prefiro nem comentar. Prefiro ficar pra mim mesmo. (Tereza)91
Outra violência sofrida pelas jovens estava intimamente relacionada à formação de
uma identificação. As jovens passavam a se identificar como “presas”,
Me vejo como uma presidiária e que isso sempre vai ficar guardado no meu coração e na minha vida. (QJp 02, 17 anos)
Essa violência acontecia pela adoção de um caráter penitenciário a muitas práticas
realizadas na unidade. Por exemplo, o uso de algemas para qualquer deslocamento
sob a alegação de risco de fugas ou, ainda, a denominação de “banho de sol” para
os horários destinados ao lazer.
90
Registro de conversa informal em diário de campo. 91
Registro de conversa informal em diário de campo.
145
É importante ressaltar que nem todos os funcionários reproduziam em suas práticas
os moldes carcerários.
As violências praticadas e sofridas pelas jovens denotam que há uma separação
entre o que se almeja alcançar – “o sujeito ético” – e as “metodologias” que levariam
a tal.
4.4 “FAZENDO A CABEÇA”: OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO QUE OCORREM
DURANTE A INTERNAÇÃO
A medida socioeducativa de internação se orienta – segundo as leis que a regem –
para a formação de um sujeito ético, solidário, autônomo, produtivo, capaz de
conviver em sociedade. Para o sucesso das ações socioeducativas, o ambiente da
unidade de internação deve se adequar a esses fins. No entanto, observou-se que
outros processos estavam envolvidos na construção da identidade de jovens sob
medida de internação que, muitas vezes, se distanciavam dos objetivos
mencionados. Ou ainda, a opção por uma mudança de vida tinha suas motivações
fundadas em outras vivências mais marcantes que as ações educativas.
Os objetivos da instituição pesquisada já foram devidamente apresentados nesta
dissertação, portanto, o foco neste momento está em “como esses objetivos eram
alcançados”. Essa questão foi lançada aos funcionários, que, por sua vez,
apresentaram suas reflexões sobre o trabalho realizado. Os integrantes do corpo
técnico ressaltaram os aspectos positivos e os avanços obtidos até então:
O IASES conta com equipe multidisciplinar que busca dentro do possível, atender aos adolescentes e jovens com vista ao retorno familiar e comunitário. Ressaltamos que o projeto de acompanhamento/atendimento ao egresso está sendo elaborado junto aos conselhos, Entidades, visitas e trabalho junto aos municípios; visando o efetivo retorno desses jovens. Estão sendo também implantadas e implementadas Unidades no interior do Estado (Cachoeiro, Colatina, Guarapari, Linhares...) com intuito de reduzir a superlotação em “Cariacica” / UNIS/UNIP/UFI. Outro trabalho importante à sua reinserção, é o incentivo à participação/preparação nas atividades oferecidas, contribuindo c/ a
146
melhoria do seu projeto de vida (c/ atenção aos objetivos): visando principalmente uma geração de emprego e renda. (QT 01, 54 anos) Toda equipe técnica realiza um trabalho individualizado de escuta, tentando interceder, auxiliando da melhor forma possível. (QT 02, 40 anos) A reintegração se dá através de alvará emitido por juiz. - O trabalho com as adolescentes na UFI, compreende: aulas para aquelas que fazem o ensino fundamental; - Aulas com prof. de educação física; - Aulas de artesanato (oficina); - Aulas de informática – dentre outras; (QT 04, 50 anos) A reintegração é feita através de documentos de responsabilidade à família. Reinserção é a integração da família, escola, trabalho e o educando para adaptação de novo desta à sociedade, com resultados positivos para a conquista da confiança deste adolescente. (QT 03, 53 anos)
Outras respostas indicam as dificuldades para o cumprimento dos fins
socioeducativos destinados à instituição:
Infelizmente os trabalhos que deveriam existir para a reinserção dos adolescentes à sociedade, ou não existe, ou quando existem não fazem parte da prioridade, aja vista a escolinha que sobrevive aos trancos e barrancos, simplesmente porque é uma obrigação do Estado. (QP 02, 43 anos) A reintegração é feita através da assistência social e depois que saem não tem nenhum acompanhamento. Alguns casos ficam em liberdade assistida por uma outra equipe. (QO 04, 39 anos) Os trabalhos de medidas sócio-educativas são feitos, só que no papel, pois a realidade do local é totalmente inconstitucional, pois eu como educador me sinto frustrado porque temos projetos mas nem sempre podem ser realizados pois o sistema é de NÃO SÓCIO-EDUCATIVAS por mais que tentemos fazer o melhor sempre um superior descorda, porque ele tem que fazer as vontades das menores se não impossível realizar um trabalho. (QP 05, 25 anos) De forma muito superficial. Os poucos trabalhos que acontecem com elas são atitudes isoladas de alguns profissionais comprometidos com o real objetivo da instituição. Não há apoio da chefia, não há integração com todos os funcionários, não existe um “conjunto” para a realização dessas atividades. Desse modo, o que existe é uma verdadeira colcha de retalhos: atividades de artes realizadas por uma oficineira que não encontra auxílio junto as outras professoras de artes da unidade; alguma atividade pedagógica trazida por alguns professores, já que, nem todos têm o real comprometimento com os objetivos da unidade. (QP 09, 29 anos)
De fato, foi possível observar que as poucas atividades educativas oferecidas
esbarravam nas dificuldades de infra-estrutura. O foco na contenção de jovens ainda
se faz muito presente para as instituições de internação.
147
Confrontando as respostas dos técnicos com as dos professores e oficineiros, nota-
se que a avaliação dos primeiros é positiva e a dos segundos é negativa. Esse fato
remete à função exercida por cada um na instituição. Para aqueles que têm como
responsabilidade supervisionar, as respostas dadas se orientam a partir da proposta
pedagógica prescrita pela instituição. Visto sob este ângulo, seria possível ressaltar,
então, avanços nas propostas formais elaboradas. Partindo de um outro “lugar”
ocupado na instituição, aqueles profissionais que fazem suas análises com base na
realidade vivida no cotidiano e que estão diretamente envolvidos em uma tentativa
frustrada de concretização de tais propostas apresentam uma avaliação menos
otimista sobre o trabalho realizado.
Os funcionários também foram solicitados a externarem quais impactos a internação
poderia causar na vida das jovens que se encontravam sob cumprimento dessa
medida. Todas as respostas mencionaram os aspectos negativos da internação,
ainda que tenham sinalizado para possíveis “efeitos” positivos. Algumas respostas
descrevem a privação de liberdade como algo “desumano”:
A privação de liberdade do jovem infrator é uma das medidas já ultrapassadas pois ficam como animais em uma jaula de circo como necessita-se de ser domado e não socializado. (QP 03, 39 anos)
Enquanto privados de sua liberdade, entendemos que o confinamento não é feito para seres humanos, percebe-se que o fator depressão e ansiedade faz parte do cotidiano destes. (QA 01, 40 anos)
Outras expressaram que a privação de liberdade sem o cumprimento do que é
prescrito pela Lei, como a separação dos internos por idade e por grau de infração
cometida, levava a aprendizagens não desejáveis:
Desenvolve um sentimento de falta de autonomia sendo obrigado a fazer as vontades dos mais fortes. (QO 02, 29 anos) Eu sou contra a privação de liberdade e sim a favor de liberdade assistida onde o menor passa parte do seu dia com a família que é a base de tudo, na escola é fazendo um curso profissionalizante, claro que de acordo com o artigo do adolescente infrator, o que não pode acontecer é misturar réu primário com um condenado. Vejo menores que chega aqui e muda de comportamento por influência de outros, mas ao lado da família tudo poderia ser melhor, já que a família é a base de tudo, desde que a família tenha princípios morais. (QP 05, 25 anos)
148
Da maneira como ela é feita hoje não surti bons efeitos na vida dessas meninas. Muitas saem daqui com uma mentalidade pior do que quando entraram. Por estarem privadas de liberdade, adquirem hábitos que não praticavam antes. Como exemplo disso, temos os casos de lesbianismo que chegam até a inspirarem confusões. (QP 09, 29 anos)
Algumas respostas consideraram ainda que a internação representava uma
interrupção na vida das jovens e a sua “retomada” esbarraria em dificuldades, uma
vez que não era realizado um acompanhamento pós-instituição que desse estrutura
ao enfrentamento do preconceito social a uma “ex-interna”:
Deveria faze-los repensar e nosso objetivo é que estes adolescentes tenham a oportunidade de serem ressocializados, entretanto, como o próprio nome diz, voltar à sociedade de forma a poder tornar-se num cidadão é tarefa para quem tem essa sociedade à sua espera, entretanto, nem todos tem. (QT 04, 50 anos)
Outros registros acrescentaram a depressão, a revolta, a angústia e a debilidade
física como conseqüências do processo de internação:
A privação de liberdade é sempre traumático e sem dúvida é a interrupção de parte importante da vida, que eles não aceitam; por isso, rebelam-se ainda mais e/ou deprimem-se, adoecem. As intervenções nesses casos são importantíssimas; o processo de escuta deve ser uma constante. (QT 01, 54 anos) Acho que o acumulo de energia e muita revolta, pois a unidade deveria ter campo e espaço para trabalhos proveitosos. (QP 08, 29 anos)
Houve ainda aquelas que consideraram que, embora a internação acontecesse
suscitando muito sofrimento, em alguns casos isso poderia gerar na jovem a
vontade de não mais retornar, optando por uma vida longe do crime.
As respostas dos funcionários sobre os impactos da internação na vida das jovens
vieram mais uma vez apontar para a disfunção entre o que era idealizado e o que
acontecia de fato. Eles ainda demonstraram sensibilidade ao perceber as
impressões que as jovens denunciaram sobre os impactos que a internação
provocava em suas vidas.
Algumas meninas afirmaram que a internação não implicou grandes mudanças para
elas. E quando as mudanças apareciam se mostravam em virtude do sofrimento
experimentado:
149
Eu acho que fiquei mais madura e percebi que a vida tem que ser vivida com bastante obstáculo para quando chegar o final sermos chamados de VENCEDOR. (QJs 04, 16 anos) Eu mudei muito mais foi uma mudança que me prejudicou pois eu não consigo mais ser aquela menina brincalhona que eu era parece que eles privou a minha liberdade e a minha alegria também. (QJs 06, 16 anos) Mudou pois nós estamos passando por um sofrimento muito grande, e ainda nós somos Seguro, então o sofrimento é maior pra nós, então é por isso que com isso tudo que nós estamos passando nossos pensamentos pode mudar, pois isso que estamos passando e apenas uma faze da vida. (QJs 09, 17 anos) Sim. Pois este tempo de internação aqui na UFI, nós faz repensar na vida e ver o que vale a pena em sua vida, ter uma certa ambição para no qual você lute para um trabalho digno, faz você pensar naqueles que dizem ser seus amigos e no pior momento para ele joga a culpa em cima de você. E estando aqui você pode ver quem são as pessoas que estão do seu lado e te dão valor, está não só em relação a família, mas seus verdadeiros amigos, aqueles que estão do seu lado, aconteça o que acontecer. Serve para você vê se a pessoa que está com voce te ama de verdade ou é de boca pra fora. Pensar em futuro melhor e produtivo lembrar que é por causa de um rock que simplesmente atrasa a sua vida, ou até mesmo aquela irresponsabilidade, talvez nem sempre mas momentânea. (QJp 07, 17 anos)
Sentir que as mudanças ocorridas se deram a partir do sofrimento não significava
garantias de outras opções de vida para depois da internação. A idéia para algumas
jovens com as quais conversei era que haveria uma maneira de continuar com as
atividades ilícitas sem ser descoberta. O importante era não passar pelo sofrimento
outra vez. Uma jovem, em conversa informal92, analisou criticamente o motivo pelo
qual ela considerava que as jovens reincidiam nas infrações cometidas:
[…] Acho um sofrimento pra caramba, porque você tá longe da sua família. Acho que isso aqui poderia melhorar. Não quero que eles me tratem igual, vamos dizer, uma princesa e tal. Mas acho que poderia melhorar. Ter mais recursos, assim, pras meninas. Igual, tipo assim, ter mais atividade que interessa. Que às vezes, estudá é bom? Todo mundo gosta. Mas chega uma hora que você enjoa. Sempre tá ali fazendo tarefa de escola. […]
Ela continuou dizendo que acreditava que, se houvesse mais investimentos em
cursos profissionalizantes (como um curso de corte e costura, de dança, de
manicure, de cabeleireira) que fossem interessantes para as internas, isso seria útil
para quando saíssem da instituição. No seu entender, tendo uma “profissão
92
Esta conversa informal foi tomada como depoimento sendo possível registrar trechos dela em um papel enquanto eu escutava a jovem.
150
decente” não seria preciso voltar às práticas ilícitas. A jovem ainda ressaltava o
preconceito que enfrentariam para conseguir voltar ao mercado de trabalho após ter
passado por uma unidade de internação socioeducativa:
[…] Então, um recurso pra menina poder sair daqui e ter o que fazer. Aí se volta, vamos botar o negócio do tráfico, se volta a traficar, por quê? Porque não tinha um outro recurso. Passou por lá? Passou. Viu que era ruim? É, mas tá sendo forma. Porque nem sempre uma loja que sabe que uma adolescente passou, vamos dizer assim, por tráfico de drogas, num colocam. Num pode falar que coloca, porque é mentira. Nem sempre eles abrem uma vaga pras pessoas. […]
Em outro momento do depoimento, ela denuncia outra situação de falta de
assistência:
[…] Isso aqui é um sofrimento também. Às vezes, desce policiais com arrogância. A gente faz a polícia descer? Faz. Às vezes, com motivos e, às vezes, sem motivos. Igual o caso, de levar pra um médico. A pessoa tá passando mal, tem que ser na hora deles passar mal. Não pode ser na nossa hora de estar passando mal. Igual, de noite, nós não podemo passa mal de noite. Uma pessoa não pode tê uma crise, não pode dá nada de noite.
O desabafo dessa jovem denunciou como se fazia sentir pelas adolescentes esse
distanciamento entre o que era idealizado como uma intervenção socioeducativa e o
que se observava nas práticas cotidianas. Como ficou claro, o sofrimento causado
pelas práticas punitivas ainda presentes marcavam a visão que as jovens tinham da
instituição. Como resultado, uma separação ainda maior entre a instituição e o
mundo juvenil. As jovens, por sua vez, fechavam-se às investidas dos adultos,
deixando espaço apenas para aqueles que consideravam amigos.
4.4.1 As relações instituição-jovem, jovem-instituição e jovem-jovem
Para entender os processos de formação experimentados durante a internação
serão traçados três eixos: instituição-jovem; jovem-instituição e jovem-jovem.
Compreendo que essas relações são interligadas entre si e esclareço que a divisão
se faz necessária apenas para fins analíticos.
151
A convivência mais próxima com algumas jovens possibilitou observar que, com o
passar dos meses, as meninas mudavam de comportamento, ou seja, passavam por
uma “transformação”. Chegavam para a internação provisória acuadas,
amedrontadas, sem falar muito, fazendo atividades escolares. Passavam pela fase
de adaptação e, ao se integrar a algum grupo, mostravam-se mais alegres, mais
expansivas. Deixavam de freqüentar as aulas e ficavam mais tempo na quadra.
Conforme o tempo de internação se estendia, tornavam-se depressivas, tristes, mais
duras na maneira de se expressar. No entanto, e isso é quase contraditório,
mantinham estratégias para fazer a “cadeia pesar menos”. Essas estratégias
aconteciam às margens do controle da instituição, que incluíam as brincadeiras, as
“molecagens” e que tinham como ponto imprescindível adaptar a condição juvenil
vivenciada em situação de liberdade para situação de reclusão (CAMACHO, 2000;
DUBET e MARTUCCELLI, 1997).
Para as jovens do Seguro, a realidade era mais dura. Não havia muito espaço para
a brincadeira e para a descontração. Eles aconteciam em raros momentos, em
especial quando estavam no pátio. Durante o período em que permaneciam no
alojamento, a apreensão era grande e o medo de invasão era constante.
Pensando nessa relação estabelecida entre a instituição e o sujeito jovem, recorro a
Dubet e a Martuccelli (1997) para analisar os processos de formação vivenciados
durante a internação, construídos nas práticas cotidianas por meio do que Dubet
denomina experiência.
A instituição analisada pode ser entendida por meio de um paralelo traçado com a
idéia da “escola múltipla” apresentada pelos autores acima citados. Para eles,
[…] A idéia de instituição deve ser decomposta em várias funções analiticamente independentes: uma função de integração que procede do modelo „clássico‟ da socialização pela internalização; uma função de distribuição que leva a considerar a escola como um „mercado‟; uma função de subjetivação ligada à relação particular que os indivíduos constróem com a cultura escolar […]. (DUBET e MARTUCCELLI, 1997, p.261)
152
Analisando a relação instituição-jovem, pode-se observar que aquela se pauta na
intenção de promover uma socialização ou uma “re-socialização” das jovens a partir
da incorporação das normas e dos valores que as tornem “aptas” ao convívio social.
Essa “re-socialização” exigiria um rompimento das jovens com a “vida do crime”, a
“vida loka”, e a assunção de um desejo por outro modo de vida que deveria ser
estimulado por meio das aprendizagens vivenciadas na instituição, visando inclusive,
à formação profissional para o mercado de trabalho. Se analisado por um lado, esse
ideal assemelha-se à compreensão de “re-socializaçao” como afirmam Berger e
Luckmann, uma vez que se impõe de forma parecida a uma “conversão”. Por outro
lado, este processo implicaria um aprendizado de normas que foram rejeitadas ou
que não foram transmitidas aos jovens na socialização primária e que seriam, então,
incorporadas em uma socialização secundária.
Pensando-se ainda pelo recorte instituição-jovem, não há como negar que as
instituições de internação socioeducativas se constituem em realidades às quais os
jovens devem se adaptar e isso demanda um entendimento de “como funciona” a
instituição – o que é e o que não é permitido; com quem, quando e como se deve
falar. Aprender a forma de como se deve “pensar, agir, sentir” em uma instituição de
internação demanda a incorporação de uma espécie de “habitus”, que vai permitir o
entendimento da gramática daquele grupo específico. Embora contrariamente ao
que a Lei prescreve para as instituições de internação, incorpora-se a identidade de
“presidiária”.
Na relação jovem-instituição, observou-se um movimento de resistência, de burla às
normas e à função socializadora da instituição. Percebeu-se ainda um descrédito no
que toca à escolarização como caminho para uma vida melhor e diferente. As jovens
lançavam mão de estratégias que pudessem amenizar a “cadeia” e,
contraditoriamente, nesse movimento, também apresentavam sinais de desgaste e
de conformação com a condição de “presa”.
Nas relações jovem-jovem foi possível notar a construção de experiências entre as
internas, ou seja, a ocorrência de outros processos de formação que não
aconteciam na ligação entre a instituição e a jovem, mas que se desenvolviam no
distanciamento desta em relação àquela. Assim, existiam práticas que resultavam na
153
construção dos sujeitos e que se estabeleciam à margem do controle da instituição,
mesmo estando sob sua guarda 24 horas.
Assumir um modo de ser jovem em situação de privação de liberdade era algo que
se construía fora do alcance da instituição. Era, de certa forma, um movimento de
resistência, mas também uma estratégia de sobrevivência. Ela era tecida nas
relações de sociabilidades em um mundo juvenil de que a instituição não conseguia
se aproximar.
Era também nessa esfera que se reproduziam práticas não aprováveis pela
instituição, como a violência, por exemplo; ou ainda o comportamento caracterizado
como a “malandragem”, ou seja, a maneira “safa” de passar pela dinâmica
institucional sem que isso constrangesse as jovens a uma mudança do estilo de vida
durante e após a internação. Nessa esfera, também se produziam novas e
diferentes relações afetivas e sexuais. Aqui também se observava o lesbianismo e a
reprodução das relações de dominação masculina.
Esse descompasso entre a esfera institucional e o mundo juvenil possibilitava
brechas para que esses processos se desenvolvessem, nos quais a instituição não
conseguia interferir e nos quais outras e novas redes de sociabilidade eram
construídas.
154
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: JUNTANDO AS PEDRINHAS
Este trabalho buscou compreender como ocorrem os processos de (trans)formação
das jovens durante o cumprimento da medida de internação em instituições
socioeducativas.
À primeira vista, a realidade percebida parecia incoerente, oscilando entre um ideal
de construção de um “modelo” de jovem “re-socializado” – um sujeito ético,
autônomo, solidário, crítico – por meio de ações socioeducativas e a não
concretização desse discurso, deixando espaço para medidas de caráter punitivo.
No entanto, a aproximação com o cotidiano da instituição de internação possibilitou
perceber que essas práticas pautadas em uma concepção socioeducativa de
atendimento aconteciam, porém não eliminavam a presença do enfoque correcional
e punitivo, partindo da noção de “reajustar” jovens à margem das normas sociais.
“Na prática”, percebiam-se dois extremos: ou permanecia a idéia de que ser infrator
era um traço da personalidade do jovem e, portanto, um problema “corrigível” (e
neste caso, o sofrimento causado pelas más condições da unidade, pelos maus
tratos contribuiriam para essa “correção); ou se assumia a idéia de que o jovem não
deveria ser responsabilizado inteiramente pelos seus atos, atribuindo-se somente às
condições sociais, à família, aos amigos a justificativa para a infração cometida. Se,
no primeiro caso, as jovens eram tratadas como adultas, no segundo, eram vistas
como crianças irresponsáveis. No discurso predominava a segunda idéia, no
entanto, na aplicação das medidas de segurança (no caso, os castigos), afirmava-se
a primeira.
Observou-se ainda que existia uma grande dificuldade de organização do trabalho
socioeducativo devido à estrutura institucional. Ficou claro que a postura
estabelecida entre grande parte das jovens e a escolarização oferecida na unidade
era de descrença, por parte daquelas, à promessa de que estudando conseguiriam
uma “vida melhor”. Esse descrédito, porém, era resultado de experiências escolares
155
anteriores à internação. Como definido por uma jovem: “se escola adiantasse
alguma coisa eu não tava aqui!”.
Era possível perceber que se o ensino adquiria um sentido “instrumental” na escola
regular – ou seja, a execução de tarefas visava à garantia de boas notas ou o
suficiente para passar de ano, deixando em segundo plano o aprendizado – ele era
também “instrumentalizado” pela maioria das jovens em internação, que cumpriam
as atividades a fim de que fossem anexadas aos seus relatórios de
acompanhamento. Apresentar um bom relatório nas audiências poderia influenciar
no andamento do processo. Para as jovens da internação provisória, ter um bom
desempenho nas atividades socioeducativas era uma esperança de não ser
sentenciada. Se fosse determinada a internação, era comum observar que as
meninas experimentavam uma “desilusão”, o que conduzia, por vezes, ao abandono
dos estudos.
Observava-se um movimento que acompanhava o processo de primeiros meses na
internação provisória e seqüente sentenciamento. As jovens, ao entrar na unidade,
participavam das aulas e estavam mais próximas aos professores e funcionários,
talvez porque se sentissem desamparadas, inseguras no novo ambiente, no novo
grupo e na nova situação. A presença de um adulto, como os professores, por
exemplo, poderia representar um “porto seguro”, um ponto de apoio e de proteção.
Além disso, as jovens ainda mantinham a esperança de melhoria e de saída da
instituição pelas vias da escolarização. As atividades escolares também eram
consideradas por algumas internas como uma distração, uma ocupação produtiva.
À medida que o tempo de internação avançava e as jovens incorporavam o “habitus
de detentas” e, conseqüentemente, se aproximavam do entendimento da lógica
interna da Unidade, das regras, construíam-se as estratégias de sobrevivência e a
integração ao grupo de pares. Manter a proximidade com os professores e a
freqüência às aulas poderia ser entendido como uma traição ao grupo de amigas.
Notou-se uma disputa de poder de persuasão entre a instituição (representada pelos
professores, oficineiros) e o grupo de jovens. Essa disputa era facilitada pela
existência de “fraturas” entre o mundo institucional e o mundo juvenil. Havia brechas
156
estas que permitiam a construção de experiências que fugiam ao controle da
instituição, realizadas em um movimento de resistência às intervenções socializantes
às quais as jovens estavam submetidas. O fortalecimento em grupos juvenis era
característica marcante desse processo.
Nessas experiências, as jovens se utilizavam de estratégias (no sentido apontado
por Dubet) para manterem-se “ilesas” nessas condições. As jovens aprendiam como
se “safarem” tanto de complicações com os técnicos, como com a polícia, não
deixando de fazer exigências e, ao mesmo tempo, descobrindo maneiras de
sobreviver no grupo das companheiras “presas”. Tanto em um quanto em outro,
havia a necessidade de entendimento de normas que não estavam totalmente
explícitas. Por exemplo, as jovens que tinham um comportamento reconhecido como
“exemplar” – ou seja, que cumpriam os horários, que não faziam ameaças, que
respeitavam os demais – não eram as que, necessariamente, conseguiam tudo o
que desejavam na Unidade. Ao contrário, eram muitas vezes ignoradas, faltava-lhes
“expressividade”. Por outro lado, as jovens que “manjavam” as relações com as
autoridades – e que eram justamente aquelas que cumpriam internação há mais de
um ano – sabiam como se impor, agressivamente ou não. Eram elas, também, que
tinham maior poder de persuasão com as demais internas, pois de certa forma, eram
elas que as representavam.
Outra estratégia de sobrevivência utilizada pelas jovens dizia respeito à manutenção
de experiências juvenis em situação de privação de liberdade. Se em um período
anterior à internação, a maioria das jovens vivenciava intensamente uma condição
juvenil que acontecia às margens das instituições formais de socialização durante a
internação, a condição juvenil aceita e reconhecida era marcada pelo controle,
regulada pela instituição e que exigia um ajustamento às normas sociais. Como um
movimento de resistência, algumas jovens (as mais “antigas” na unidade) recriavam,
uma condição juvenil que se aproximasse daquela vivenciada em liberdade. Isso era
perceptível nas vestimentas, no gosto musical, na apropriação dos espaços físicos
da unidade, nas brincadeiras, nos namoros, nas redes de amizades tecidas nos
grupos. No entanto, era preciso ter um comportamento “safo” para vivenciá-la. Isso
significava, por exemplo, não participar de nenhuma atividade escolar presencial
157
(aula) para ficar no pátio e pedir a atividade dada pelo professor para completá-la
após o horário da “tranca”.
Essas experiências juvenis eram interpretadas pela instituição como transgressão,
como um comportamento indesejado e que contaminava as novatas.
O processo de adaptação à unidade, ao sofrimento experimentado, era definido
pelas jovens como um amadurecimento, ou poderia ser traduzido por um
endurecimento. Foi possível perceber “fases” de adequação das jovens à situação
de privação de liberdade. Um primeiro momento era marcado pelo medo do
desconhecido e da punição recebida, pela saudade dos familiares e dos amigos e
pela ansiedade em saber se seria sentenciada ou não. Como relatado
anteriormente, nessa fase as jovens ficavam mais acessíveis aos adultos.
A fase seguinte se caracterizava pela euforia, pelo desenvolvimento de laços de
afeto e de solidariedade, pela descoberta de amizades e de possibilidades de
divertimento naquela situação. Era nesse momento que se criavam os sentimentos
de pertença a grupos e que se geriam as ações coletivas. Era nesse período,
também, que se observavam mudanças significativas no comportamento: baixa
freqüência às aulas, agressividade, irreverência, assunção de papéis “masculinos”
ou “femininos” de acordo com a posição demarcada no grupo. Era quando os
movimentos de resistência se fortaleciam e a recusa à condição de “presa” era
evidente. Estratégias de sobrevivência eram aprendidas e as jovens começavam a
“descobrir” como funcionava a “cadeia” e como seria preciso proceder para passar
por ela.
Um primeiro “golpe” à euforia acontecia quando a jovem era sentenciada. Era
preciso “forjar” uma adequação aos moldes institucionais se a intenção era não ter
problemas. Essa era mais uma estratégia de sobrevivência. No entanto, ainda
restava a esperança de sair no tempo mínimo de seis meses93. Passado esse prazo,
a tristeza aumentava e o confronto com a realidade era de apatia, de conformação,
93
Na maioria dos processos, estabelecia-se um tempo mínimo para a internação (em geral seis meses). Se a jovem mostrasse resultados positivos no cumprimento da medida de internação, ela poderia sair ao completar esse prazo.
158
de aceitação de uma condição de detenta. As atividades escolares, os conselhos
dos adultos pareciam não fazer mais sentido para muitas internas. Emergia, então,
uma terceira fase: as estratégias desenvolvidas com o tempo de internação
permitiam a essas jovens agir “na malandragem”, “escorregar” entre as normas
institucionais, se “safar” de situações complicadas e negociar com a direção, ou
seja, a situação não era de conformismo.
As experiências vivenciadas pelas jovens se desenvolviam, como já mencionado
nesta dissertação, nas brechas deixadas pela instituição que, por sua vez, não
conseguia exercer sua função socializadora convencional, pois não conseguia atingir
as práticas desenvolvidas, na esfera das relações, que não possuíam um caráter
educativo, como as violências praticadas e sofridas pelas jovens, como a construção
de um identidade de bandida/presa e a reprodução de práticas punitivas e
repressivas.
As dimensões ou funções da instituição de internação não apresentavam
articulações entre si (recorro mais uma vez a Dubet para defini-las e acrescento às
dimensões do modelo cultural, da seleção e da organização uma que eu chamaria
de “contenção”). Conforme as análises traçadas neste trabalho, foi possível perceber
que a predominância da contenção – ou seja, o cuidado com o controle e a
manutenção da ordem sobre jovens em privação de liberdade – era maior que a
consistência de um modelo pedagógico.
A hierarquia dos cargos dificultava a comunicação entre técnicos, professores,
oficineiros e assistentes de aluno. Sendo assim, cada um executava um pouco de
cada função e a construção de uma equipe multidisciplinar dificilmente ultrapassava
os níveis hierárquicos. Professores trocavam idéias com seus pares; os técnicos
entre si e assim por diante. Houve uma tentativa por parte dos professores de
construção de um trabalho que “quebrasse” a rígida estrutura, no entanto, este se
perdeu na burocracia, também marcante.
A percepção dos funcionários sobre o alcance ou não dos objetivos traçados pela
instituição variava de acordo com a função exercida por cada um. Para aqueles que
tinham como responsabilidade supervisionar, a análise ressaltava avanços nas
159
concepções das propostas formais elaboradas. Partindo de um outro “lugar”
ocupado na hierarquia institucional, aqueles que avaliavam o trabalho realizado com
base nas vivências do dia-a-dia e que estavam diretamente envolvidos em uma
tentativa frustrada de concretização de tais propostas (como os professores, os
oficineiros, os assistentes de aluno) apresentavam uma análise menos otimista
quanto aos alcances dos objetivos socioeducativos.
Os problemas estruturais presentes na maioria das instituições de internação
socioeducativas do Brasil também dificultam a concretização de atividades de
finalidade educativa. Predomina, para as internas, o sofrimento causado pelas
persistentes práticas repressivas, “corretivas”.
Por essa razão, a medida de internação, da forma como vem sendo processada,
não consegue levar as jovens a uma reflexão sobre o ato infracional cometido a
partir da vivência de experiências educativas que proporcionem formas diferentes e
lícitas de “ganhar a vida”. A opção por “sair da vida loka” surgia como um desejo de
não voltar à instituição, definida como um “cômodo do inferno”; existia, portanto, a
possibilidade de continuar “na vida” sem ser pega e retornar à unidade.
Ao analisar a relação instituição-jovem, foi possível observar que aquela se pautava
na intenção de promover uma socialização ou uma “re-socialização” das jovens
pautada na incorporação das normas e dos valores que as tornassem “aptas” ao
convívio social. Essa re-socialização seria quase uma conversão – e se for buscar
nos objetivos da unidade encontrar-se-á, entre eles, a incorporação de valores
cristãos –, representada pela saída da “vida do crime” e adoção de uma “vida de
bem”. No entanto, as práticas contraditórias de aquisição de um “habitus” de “presa”
apontavam que tal objetivo dificilmente seria alcançado.
Era no distanciamento das jovens em relação à instituição que ocorriam os
processos de formação apontados pelas internas como mais significativos para sua
vida, ou seja, era na convivência com seus pares que as jovens preparavam-se para
a vida que deveriam assumir dentro e fora da instituição.
160
A convivência tecida com as jovens deixou evidente a maneira pela qual elas se
sentiam representadas ou, ao menos, fortalecidas. Como se fizesse parte de um
ritual, sempre que as meninas se apresentavam publicamente em reuniões formais
realizadas pela instituição, ao final de cada uma delas, reuniam-se e cantavam em
grupo uma música utilizada como um “hino”. Esta dissertação foi uma espécie de
“apresentação formal” das jovens e elas não seriam “fielmente” representadas neste
trabalho se este não fosse da mesma forma encerrado:
Lágrimas caem quem já passou no sofrimento Coração bate acelerado mó saudade Na minha vida toda sorte do tormento
Família minha meus amigos de verdade...
Era muito longe às vezes não tinha visita Graças a Deus os companheiros lá da ilha
Sempre chegaram e nunca esqueceram de mim Em qualquer situação eu ia até o fim
Mas mesmo assim a saudade continuava
A depressão dominava na madrugada E lá no pátio na direta andava só
E os companheiros diziam conversa que é melhor
Um dia igual aos outros tava fazendo uma letra Dos amigos meus que estão bem lá no céu
No mesmo dia tinha a carta do sedex Do meu pai, escrito: “Eduardo a saudade é cruel
Você seguiu essa vida porque tu quis Eu e sua mãe que te amamos estamo aqui
Infelizmente tu se encontra aí A nossa vida aqui fora tá infeliz”
Cai lágrimas, caem agora
E vão embora, no rosto rolam,rolam,rolam Várias lágrimas caem agora
E vão embora, no rosto rolam De quem te adora
No rosto rolam De quem te adora
No rosto rolam Lágrimas
(Lágrimas - MC Duda do Marapé)
161
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Torraca de (Org.). Jovens em conflito com a lei: a contribuição da
universidade ao sistema socioeducativo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000.
53 WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tempo social: Rev.
Sociol. USP: São Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997.
54 ZALUAR, Alba. Integração perversa e tráfico de drogas. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
167
APÊNDICES
168
APÊNDICE I - Projeto de extensão
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROJETO DE EXTENSÃO
Área Temática: Centro de Educação
Departamento: Didática e Prática de Ensino
Título: Oficina de Teatro
Coordenação: Profa. Dra. Luiza Mitiko Yshiguro Camacho
Outros envolvidos: Pollyana dos Santos (mestranda do PPGE)
Resumo: Proposta de oficina de teatro envolvendo jovens internos da UNIS na
elaboração de uma peça teatro por meio da qual possam expressar
as experiências vivenciadas por eles e suas perspectivas em relação
ao futuro.
Parceria: UNIS (Instituto de Atendimento Socioeducativo do ES – IASES)
169
Apresentação
“Por que o teatro? Porque existem artes como a música, que
organizam o som e o silêncio, no tempo; outras, como a pintura, que
organizam a forma e a cor, no espaço; e existem artes como o teatro,
que organizam ações humanas, no espaço e no tempo.
Ao organizarem ações humanas, mostram onde se esteve, onde se
está e para onde se vai, quem somos, o que sentimos e desejamos.
Por isso devemos fazer teatro, todos nós: para saber quem somos e
descobrir quem podemos vir a ser.”
(BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial, 20003, p.90)
O presente projeto traduz uma proposta de intervenção educativa destinada aos
jovens internos da UNIS-Cariacica/ES compreendidos na faixa etária de 15 a 17
anos. Tal proposta se configura em uma Oficina de Teatro na qual os jovens
poderão expressar, por meio da arte, suas perspectivas em relação aos seus
projetos de futuro. Para isso, os jovens construirão uma peça teatral que reflita as
formas como pensam o futuro a partir da realidade em que se encontram, produzirão
a peça e atuarão nela.
Justificativa
A proposta de trabalho desta oficina se concretiza a partir da história de vida dos
sujeitos nela envolvidos e das experiências vivenciadas por eles, referentes ao
período anterior à internação e ao momento presente, como jovens em situação de
restrição de liberdade.
Possibilitar espaço de fala aos sujeitos silenciados pela sociedade (e, nestas
condições de internação, um silêncio abafado porque isolados do convívio social)
implica compreender as circunstâncias vivenciadas pelos jovens que culminaram em
seu ato infrator.
170
O processo de construção de uma peça de teatro que traduza, em personagens, as
vivências, os sonhos, os sentimentos de cada jovem envolvido, pode proporcionar
um momento de reflexão e, principalmente, de expressão. Além disso, pode
proporcionar um espaço no qual jovens silenciados possam expressar, por meio da
arte, o que pensam, o que sentem e o que esperam da vida.
Optamos por trabalhar com um grupo formado por jovens do sexo masculino, uma
vez que estes estão em maior número entre os internos da UNIS e vivenciam com
maior freqüência situações que implicam riscos de morte, como os episódios de
rebeliões, por exemplo.
Público alvo:
15 jovens internos compreendidos na faixa etária de 15 a 17 anos
Duração:
04 meses (de fevereiro a maio de 2007)
Obs: Os dias da semana e a carga horária deverão ser definidos oportunamente
atendendo às exigências da Instituição.
Objetivo geral:
Expressar, por meio do teatro, as perspectivas em relação ao futuro;
Objetivos específicos:
Participar de dinâmicas de grupo e técnicas de teatro que possibilitem a
sensibilização e a desinibição;
Aproximar-se de diferentes textos literários;
Produzir textos;
Construir um roteiro de uma peça teatral;
Produzir uma peça de teatro;
171
Atuar na peça teatral;
Metodologia:
A oficina de teatro se desenvolverá em quatro momentos. O primeiro (com duração
prevista para um mês) destina-se às dinâmicas de sensibilização e desinibição, bem
como ao aprendizado de técnicas de teatro. Também serão trabalhados diferentes
tipos de textos (poesias, músicas, contos, crônicas). Haverá momentos de produção
de textos, nos quais os jovens terão liberdade para escolher os tipos de textos que
desejarem produzir. Nessa fase, os jovens terão contato com roteiros de teatro como
preparação para a construção da peça.
No segundo momento, será trabalhada a elaboração coletiva do roteiro da peça de
teatro. Os jovens construirão o texto a partir de suas análises sobre seus projetos
pessoais para o futuro. Esse é não apenas um momento de construção de texto,
como de auto-reflexão dos jovens. Os jogos introspectivos os ajudarão na
“descoberta” dos elementos para construção da peça. A previsão para o
desenvolvimento das atividades referentes a essa fase é de dois meses.
Na etapa seguinte (com duração prevista para um mês) os jovens produzirão a peça
de teatro. Este momento envolve: ensaios, confecção de figurinos e cenários.
No quarto e último momento, os jovens apresentarão a peça teatral para os demais
jovens internos da UNIS.
Recursos e materiais:
Os materiais necessários para o desenvolvimento das atividades são:
500 folhas de papel Chamex
Canetas, lápis, borrachas, régua.
Papéis diversos para a confecção dos cenários.
Tinta para confecção dos cenários.
Cola, tesoura.
172
Roupas usadas e doadas para os figurinos
Aparelho de som e CDs.
173
APÊNDICE II – Roteiro de observação
ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
1 ) Espaços observados:
Espaço educativo (salas de aula);
Gerência;
Secretaria;
Sala dos técnicos;
As alas (alojamentos) das internas (se for possível);
Quadra de esportes;
O pátio externo da unidade;
Padaria em que os jovens internos trabalham;
Todos os espaços abertos à pesquisadora (Ex. enfermaria, setor de
isolamento para castigo, etc..
2) Acompanhamento de atividades:
Atendimento;
Atividades educativas;
Atividades de “lazer” para as internos;
Visitas de familiares;
Todas as demais que forem permitidas (Ex: refeições, atendimento médico,
etc..)
3) Descrição dos espaços físicos observados;
4) Descrição das atividades desenvolvidas;
5) Observação/descrição do envolvimento dos jovens, monitores e técnicos nas
atividades;
6) Descrição das relações:
174
jovens - jovens;
jovens - assistentes de aluno;
jovens - gerente;
jovens - técnicos;
jovens - policiais;
6) Registro de conversas informais com os sujeitos (jovens, gerente, assistentes
de aluno, técnicos);
175
APÊNDICE III – Questionário aplicado às jovens
QUESTIONÁRIO - JOVENS
Parte A
Idade: _________ . Estado civil: ____________ .
Sexo: Feminino ( ) Masculino ( )
Namora/namorava? ____________________.
Tem filhos? Quantos? ___________________.
Tem pai ? _______________.
Tem mãe? _______________.
Tem irmãos? ______________.
Morava com quem? _______________.
Onde? ______________.
Estudava? Em que série? _______________.
Há quanto tempo está na UFI? __________________.
Parte B (As questões 1 a 11 deverão ser respondidas à parte, ou seja, nas folhas
em branco. Favor indicar o número da questão respondida)
1) Como era sua vida antes de entrar na UFI?
2) Quando você se lembra do “mundão”, do que mais sente falta? Por quê?
3) Quando você estava lá fora, como você imaginava que seria a sua vida?
4) Agora que você está aqui na UFI, como você vê o seu futuro? Por quê?
5) Fale um pouco sobre o seu dia-a-dia na UFI.
6) Mudou alguma coisa em você depois da internação? Em caso afirmativo, por
que você acha que mudou?
176
7) Como você vê a UFI? Por quê?
8) Como você se vê? Por quê?
9) Para você, o que é juventude?
10) Você se sente jovem? Por quê?
11) Deixe um recado. Pode ser um desenho, uma poesia, uma letra de música...
Use a criatividade!
177
APÊNDICE IV – Questionário aplicado aos professores e
aos oficineiros
QUESTIONÁRIO – PROFESSORES
I. Parte A
Idade: _________ . Estado civil: ____________ .
Sexo: Feminino ( ) Masculino ( )
Tem filhos? Quantos? ___________________.
Escolaridade: __________________________ .
Profissão / Formação profissional: _____________________________ .
Função que exerce na UNIS/UFI: _______________________________ .
Tempo no cargo: _________________ .
Tempo na instituição: _________________ .
Exerce atividades profissionais fora da UNIS/UFI? Onde?
_________________________________ .
II- Parte B ( As questões de 1 a 10 deverão ser respondidas à parte, ou seja, nas
folhas em branco. Favor indicar o número da questão respondida)
1) Como você vê a UNIS/UFI?
2) Quais os objetivos da instituição?
3) Eles são atingidos? Em caso positivo, quais? Em caso negativo, por que não são
atingidos?
4) Como é realizada a “reintegração”, “reinserção”, enfim, quais são e como se
realizam os trabalhos com os(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
5) Como você vê os jovens que estão em cumprimento de medida socioeducativa
de internação?
6) Para você, o que é juventude?
7) Considerando a relação que você tem com os(as) jovens, dá para perceber se
eles(as) possuem projetos de futuro? Se existem projetos de futuro, quais são?
Se não houver, por que você acha que eles(as) não têm pretensões para o
futuro?
178
8) E você? Como vê o futuro destes(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
9) As atividades desenvolvidas aqui estimulam os(as) jovens a pensar no futuro?
Em caso positivo, quais são elas? Em caso negativo, o que poderia ser feito para
mudar isso?
10) Na sua opinião, que impactos a privação de liberdade pode causar na vida
desses jovens?
179
APÊNDICE V – Questionário aplicado aos assistentes de aluno
QUESTIONÁRIO – ASSISTENTES DE ALUNO
I. Parte A
Idade: _________ . Estado civil: ____________ .
Sexo: Feminino ( ) Masculino ( )
Tem filhos? Quantos? ___________________.
Escolaridade: __________________________ .
Profissão / Formação profissional: _____________________________ .
Função que exerce na UNIS/UFI: _______________________________ .
Tempo no cargo: _________________ .
Tempo na instituição: _________________ .
Exerce atividades profissionais fora da UNIS/UFI? Onde?
_________________________________ .
II- Parte B ( As questões de 1 a 10 deverão ser respondidas à parte, ou seja, nas
folhas em branco. Favor indicar o número da questão respondida)
1) Como você vê a UNIS/UFI?
2) Quais os objetivos da instituição?
3) Eles são atingidos? Em caso positivo, quais? Em caso negativo, por que não são
atingidos?
4) Como é realizada a “reintegração”, “reinserção”, enfim, quais são e como se
realizam os trabalhos com os(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
5) Como você vê as jovens que estão em cumprimento de medida socioeducativa
de internação?
6) Para você, o que é juventude?
7) Considerando a relação que você tem com os(as) jovens, dá para perceber se
eles(as) possuem projetos de futuro? Se existem projetos de futuro, quais são?
Se não houver, por que você acha que eles(as) não têm pretensões para o
futuro?
180
8) E você? Como vê o futuro destes(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
9) As atividades desenvolvidas aqui estimulam os(as) jovens a pensar no futuro?
Em caso positivo, quais são elas? Em caso negativo, o que poderia ser feito para
mudar isso?
10) Na sua opinião, que impactos a privação de liberdade pode causar na vida
desses jovens?
181
APÊNDICE VI – Questionário aplicado aos técnicos
QUESTIONÁRIO – TÉCNICOS
I. Parte A
Idade: _________ . Estado civil: ____________ .
Sexo: Feminino ( ) Masculino ( )
Tem filhos? Quantos? ___________________.
Escolaridade: __________________________ .
Profissão / Formação profissional: _____________________________ .
Função que exerce na UNIS/UFI: _______________________________ .
Tempo no cargo: _________________ .
Tempo na instituição: _________________ .
Exerce atividades profissionais fora da UNIS/UFI? Onde?
_________________________________ .
II- Parte B ( As questões de 1 a 11 deverão ser respondidas à parte, ou seja, nas
folhas em branco. Favor indicar o número da questão respondida)
1) Quantos jovens estão internos na UNIS? E na UFI?
2) Como você vê a UNIS/UFI?
3) Quais os objetivos da instituição?
4) Eles são atingidos? Em caso positivo, quais? Em caso negativo, por que não são
atingidos?
5) Como é realizada a “reintegração”, “reinserção”, enfim, quais são e como se
realizam os trabalhos com os(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
6) Como você vê os(as) jovens que estão em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
7) Para você, o que é juventude?
8) Considerando a relação que você tem com os(as) jovens, dá para perceber se
eles(as) possuem projetos de futuro? Se existem projetos de futuro, quais são?
Se não houver, por que você acha que eles(as) não têm pretensões para o
futuro?
182
9) E você? Como vê o futuro destes(as) jovens em cumprimento de medida
socioeducativa de internação?
10) As atividades desenvolvidas aqui estimulam os(as) jovens a pensar no futuro?
Em caso positivo, quais são elas? Em caso negativo, o que poderia ser feito para
mudar isso?
11) Na sua opinião, que impactos a privação de liberdade pode causar na vida
desses jovens?
183
APÊNDICE VII – Roteiro da entrevista realizada
ROTEIRO DE ENTREVISTA INDIVIDUAL – JOVENS
Nome (verdadeiro ou fictício):
Idade:
Estado civil:
Namora/namorava?
Filhos:
Tem pai /mãe / irmãos?
Morava com quem? Onde?
A) A VIDA EXTRA-MUROS
1) Como era a rotina da semana fora da UNIS/ UFI? Participava de atividades
escolares, familiares, esportivas, religiosas, de trabalho..? O que você fazia
durante a semana quando estava do lado de fora?
2) O que você mais gostava de fazer quando estava lá fora? E o que você menos
gostava de fazer?
3) Pensando na sua vida aqui dentro, quando você se lembra da sua vida lá fora, do
que sente mais falta?
4) Fale um pouco sobre sua família. Como são as pessoas com quem você morava,
quem sustentava a casa? Como era a rotina da casa? (Se morava na rua, por
que deixou a família? Se morava na rua, como era a rotina da rua? Quem eram
seus companheiros?)
5) Você estava matriculado(a) em alguma escola? Em que série? (Se não estava
matriculado(a), estudou até que série?)
184
6) Fale um pouco sobre a sua escola. Gostava de ir para a escola? Estudava para
quê?
7) Tinha amigos(as)? Fale sobre eles(as).
8) Qual foi o motivo que levou você a estar aqui na UNIS / UFI?
B) A VIDA POR TRÁS DOS MUROS
9) O que sentiu, o que pensou, quando entrou aqui?
10) Como é a sua rotina aqui na UNIS/UFI? Conte um pouco sobre como é o seu
dia, desde quando acorda até a hora de dormir.
11) Quais são as atividades que vocês têm durante a semana? De quais você
participa? Do que você mais gosta e do que menos gosta?
12) Como são os finais de semana? Fale um pouco sobre o dia da visita.
13) Como é sua relação:
Com os demais jovens?
Com os professores?
Com os técnicos (psicólogo(a), pedagogo(a), assistente social..) ?
14) Há diferenças entre ser uma jovem interna e em ser um jovem interno? Há
diferença no tratamento destinado às jovens e aos jovens? Quais?
15) Vocês têm namoradas(os) aqui na UNIS / UFI? Como é esse namoro? Tem
namoradas(os) fora daqui? Como é esse namoro a distância?
16) Para os meninos: O que vocês pensam sobre as jovens da UFI?
185
Para as meninas: O que vocês pensam sobre os jovens da UNIS?
17) Como você acha que os funcionários vêem vocês? Como jovens, como
alunos(as), como adultos, como infratores(as)? Como a família vê vocês?
18) E como você se vê?
19) Para você, o que é juventude?
20) Como você vê a UNIS/UFI?
C) EM CIMA DO MURO
21) Quando você estava lá fora, como você imaginava que seria a sua vida? Pode
ser sonho mesmo. Quando lhe perguntavam “o que você vai ser quando
crescer?”, o que você respondia, ou em que você pensava?
22) Pensando em termos de realidade, lá fora, como você imaginava o seu futuro?
Por quê?
23) Pensando na realidade de agora, neste momento de privação de liberdade, o
que você pensa para daqui a uns anos? Por quê?
24) Como você vê o seu futuro? Você tem planos para o futuro? O que você
imagina para a sua vida? Por quê?
25) Como você acha que vai ser quando sair da UNIS/UFI?
26) Se tivesse o poder de mudar algo, o que você mudaria na sua vida?
27) Pensando em você agora, mudou alguma coisa em você depois da internação,
não mudou? O que mudou?...
186
28) Daqui de dentro, como você vê o mundo lá fora?
29) Por que você acha que os jovens cometem infrações? O que os leva a fazerem
isso?
30) Você tem alguma revolta dentro de si? Contra o quê? Contra quem?
31) Fale sobre a felicidade.
32) Fale sobre a infelicidade/a tristeza/ a solidão/ a injustiça/o desamparo.
33) Como a entrevista acabou, você pode falar o que quiser.
Pode fazer um depoimento, contar casos, fazer desabafo, declamar poesia
Se quiser pode também deixar uma mensagem, uma música, uma poesia, uma
frase, para eu poder escrever no meu estudo/trabalho/pesquisa.
187
ANEXOS
188
ANEXO I - Música de Joana
BALADA PRA JOÃO E JOANA
(Skank)
Composição: Samuel Rosa e Chico
Amaral
Então os dois se acharam na
escuridão
Ela com os pés no chão e ele não
Seu destino cego a lhes conduzir
Sua sorte à solta a lhes indicar um
caminho
E dançavam lá em meio a tanta gente
Se encontraram ali
Djô Djô, o mundo está tão mau lá fora
Djô Djô, onde irão vocês agora
E tudo aconteceu
Quando as mãos se tocaram
Quando os olhos nem viram
Quando a noite chegou
Então eles se deram na convicção
Feitos um pro outro, mas por exclusão
Seu destino cego a lhes conduzir
Sua sorte à solta a lhes indicar um
caminho
E dançavam lá em meio a tanta gente
Se encontraram ali
Djô Djô, cai um temporal lá fora
Djô Djô, onde irão vocês agora
E tudo aconteceu
Quando as mãos se tocaram
Quando os olhos nem viram
Quando a noite chegou
E tudo estremeceu
As paredes do tempo
Os telhados do mundo
As cidades do céu
Eram os dois avessos aos normais
Ela com os pés no chão, e o chão se
abriu
Um abismo
E dançavam lá em meio a tanta gente
Se perderam ali
Djô Djô, nada pára, nada espera
Djô Djô, que o destino assim quisera
E tudo aconteceu
Quando as mãos se tocaram
Quando os olhos nem viram
Quando a noite chegou
E tudo estremeceu
As paredes do tempo
Os telhados do mundo
As cidades do céu
189
ANEXO II – Música de Iolanda
IOLANDA
Chico Buarque
Composição: Pablo Milanés
Esta canção não é mais que mais uma
canção
Quem dera fosse uma declaração de
amor
Romântica, sem procurar a justa forma
Do que lhe vem de forma assim tão
caudalosa
Te amo,
te amo,
eternamente te amo
Se me faltares, nem por isso eu morro
Se é pra morrer, quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada
Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo,
teu colo,
eternamente teu colo
Quando te vi, eu bem que estava certo
De que me sentiria descoberto
A minha pele vais despindo aos
poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores,
eternamente de amores
Se alguma vez me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda, Iolanda, eternamente Iolanda
190
ANEXO III – Música de Bia
LÉO E BIA
Oswaldo Montenegro
Composição: Oswaldo Montenegro
No centro de um planalto vazio
Como se fosse em qualquer lugar
Como se a vida fosse um perigo
Como se houvesse faca no ar
Como se fosse urgente e preciso
Como é preciso desabafar
Qualquer maneira de amar valia
E Léo e Bia souberam amar
Como se não fosse tão longe
Brasília de Belém do Pará
Como castelos nascem dos sonhos
Pra no real achar seu lugar
Como se faz com todo cuidado
A pipa que precisa voar
Cuidar de amor exige mestria
E Léo e Bia souberam amar
191
ANEXO IV – Música de Natasha
NATASHA
Capital Inicial
Composição: Indisponível
Tem dezessete anos
E fugiu de casa
Às sete horas na manhã
Do dia errado
Levou na bolsa
Umas mentiras prá contar
Deixou prá trás
Os pais e o namorado...
Um passo sem pensar
Um outro dia
Um outro lugar
Pelo caminho
Garrafas e cigarros
Sem amanhã
Por diversão
Roubava carros
Era Ana Paula
Agora é Natasha
Usa salto quinze
E saia de borracha...
Um passo sem pensar
Um outro dia
Um outro lugar...
O mundo vai acabar
E ela só quer dançar
O mundo vai acabar
E ela só quer
Dançar, dançar, dançar...
Pneus de carros cantam...
Tem sete vidas
Mas ninguém sabe de nada
Carteira falsa
Com idade adulterada
O vento sopra
Enquanto ela morde
Desaparece antes
Que alguém acorde...
Cabelo verde
Tatuagem no pescoço
Um rosto novo
Corpo feito pro pecado
A vida é bela
O paraíso é um comprimido
Qualquer balaco
Ilegal ou proibido...
Um passo sem pensar
Um outro dia
Um outro lugar...
192
ANEXO V – Música de Bete
BETE BALANÇO
Barão Vermelho
Composição: Cazuza e Frejat
Pode seguir a tua estrela
O teu brinquedo de 'star'
Fantasiando um segredo
No ponto a onde quer chegar...
O teu futuro é duvidoso
Eu vejo grana, eu vejo dor
No paraíso perigoso
Que a palma da tua mão mostrou...
Quem vem com tudo não cansa
Bete balança meu amor
Me avise quando for a hora...
Não ligue pr'essas caras tristes
Fingindo que a gente não existe
Sentadas, são tão engraçadas
Dona das suas salas...
Pode seguir a tua estrela
O teu brinquedo de 'star'
Fantasiando um segredo
No ponto a onde quer chegar...
O teu futuro é duvidoso
Eu vejo grana, eu vejo dor
No paraíso perigoso
Que a palma da tua mão mostrou...
Quem vem com tudo não cansa
Bete balança o meu amor
Me avise quando for a hora...
Quem tem um sonho não dança
Bete Balanço
Por favor!
Me avise quando for embora...
193
ANEXO VI – Música de Fátima
FÁTIMA
Capital Inicial
Composição: Fê Lemos, Renato
Russo
Vocês esperam uma intervenção
divina
Mas não sabem que o tempo agora
está contra vocês
Vocês se perdem no meio de tanto
medo
De não conseguir dinheiro pra comprar
sem se vender
E vocês armam seus esquemas
ilusórios
Continuam só fingindo que o mundo
ninguém fez
Mas acontece que tudo tem começo
Se começa um dia acaba, eu tenho
pena de vocês
E as ameaças de ataque nuclear
Bombas de neutrons não foi Deus
quem fez
Alguém, alguém um dia vai se vingar
Vocês são vermes, pensam que são
reis
Não quero ser como vocês
Eu não preciso mais
Eu já sei o que eu tenho que saber
E agora tanto faz
Três crianças sem dinheiro e sem
moral
Não ouviram a voz suave que era uma
lágrima
E se esqueceram de avisar pra todo
mundo
Ela talvez tivesse um nome e era:
Fátima
E de repente o vinho virou água
E a ferida não cicatrizou
E o limpo se sujou
E no terceiro dia ninguém ressuscitou
194
ANEXO VII – Música de Tereza
CADÊ TEREZA
Jorge Ben Jor
Composição: Indisponível
Cadê Tereza?
Onde anda
A minha Tereza?
Tereza foi ao samba lá no morro
E não me avisou
Será que arrumou outro crioulo
Pois ainda não voltou...
Mas!
Cadê Tereza?
Onde anda a minha Tereza?
Tereza minha nêga, minha musa
Eu gosto muito de você
Sou um malandro
Enciumado, machucado
Que espera por você...
Eu juro por Deus
Se você voltar
Eu vou me regenerar
Jogo fora o meu chinelo
Meu baralho
E a minha navalha
E vou trabalhar
Mas! Por Deus!
Cadê Tereza?
Aonde anda a minha Tereza?
Minha amada idolatrada
Salve! Salve!
A mais amada
Adorada do meu Brasil
Tereza a minha
Glória nacional...
-"Tereza!
O negocio é você voltar nêga
A rapaziada toda lá em cima
Já tá arrumando, olha aí!
Pintei e barraquinho
Todinho de azul e rosa
Todinho prá você, aquilo tudo
Tereza!
Cam bak minha nêga, cam bak
Sou malandro apaixonado
Caí na realidade que te amo
Só quero você
Depois de você Tereza
Bem depois, só o Flamengo
Olha aí!
Volta Tereza, volta
O negócio é você voltar"
195
ANEXO VIII – Música de Maria
MARIA, MARIA
Millton Nascimento
Composição: Milton Nascimento e
Fernando Brant
Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....
196
ANEXO IX – Música de Ana
REFRÃO DE BOLERO
Engenheiros do Hawaii
Composição: Humberto Gessinger
Eu que falei:
"Nem pensar"
Agora eu me arrependo
Roendo as unhas
Frágeis testemunhas
De um crime sem perdão...
Mas eu falei
"Nem pensar"
Coração na mão
Como refrão de bolero
Eu fui sincero
Como não se pode ser...
E um erro assim, tão vulgar
Nos persegue a noite inteira
E quando acaba a bebedeira
Ele consegue nos achar...
Num bar!
Com um vinho barato
Um cigarro no cinzeiro
E uma cara embriagada
No espelho do banheiro...
Ana, Teus lábios são
Labirintos! Ana!
Que atraem os meus
Instintos mais sacanas
O teu olhar sempre distante
Sempre me engana
Eu entro sempre na tua
Dança de cigana
197
ANEXO X – Música de Juraci
O PARQUE DE JURACI
Zeca Baleiro
Composição: Indisponível
Juraci me convidou preu ir
Num parque mais ela lá em Birigui
E eu vesti o meu terninho engomado
Alisado alinhado pra brincar com
Juraci
Já no caminho eu comi um
churrasquinho de charque
E um refresco de kiwui
E foi ficando divertido pra caramba
Juraci dançando samba enquanto eu
lia O Guarani
Mas já chegando
Eu tive o maior susto
E tentei a todo custo
Então crer no que vi
No lugar do parque
Um self-service por quilo
Fiquei puto com aquilo
E perguntei pra Juraci
Juraci que parque
Juraci que parque Juraci
que parque é esse que eu nunca vi
Juraci que parque
Juraci que parque Juraci
Quebrei o pau fiquei de mal com Juraci
(juro por Deus que odiei a Juraci)
198
ANEXO XI – Música de Camila
CAMILA, CAMILA
Biquini Cavadão
Composição: Thedy Corrêa - Sady
Homrich - Carlos Stein
Depois da última noite de festa
Chorando e esperando amanhecer,
amanhecer
As coisas aconteciam com alguma
explicação
Com alguma explicação
Depois da última noite de chuva
Chorando e esperando amanhecer,
amanhecer
Às vezes peço a ele que vá embora
Que vá embora
Camila, Camila, Camila
A lembrança do silêncio daquelas
tardes
Daquelas tardes
A vergonha no espelho naquelas
marcas
naquelas marcas
havia algo de insano naqueles olhos
Olhos insanos
Os olhos que passavam o dia a me
vigiar, a me vigiar...oh...
Eu que tenho medo até de suas mãos
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega
E eu que tenho medo até do seu olhar
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega
Camila, Camila, Camila
Camila, Camila, Camila
E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava a minha cabeça pra tudo
Era assim que as coisas aconteciam
Era assim que eu via tudo acontecer
E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava minha cabeça pra tudo
Era assim que as coisas aconteciam
Era assim que eu via tudo acontecer
Camila, Camila, Camila
Camila, Camila, Camila
199
ANEXO XII – Música de Judite
NÊGA JUDITE
Zeca Pagodinho
Composição: Dimenor/Eduardo/Silva
Pra Judite
Eu já mandei avisar
To querendo casar com Edite
Mas a nega me disse que não admite
Me deu um palpite
Isso não vai prestar
Edite é ruim de segurar
E Judite não quer que eu me irrite
Já bateu pra Zenite
que disse o desquite
Eu não vou assinar
Edite é nega de elite
Pra que se conquiste não pode brincar
Mas eu não sou brincadeira e olhei pra Edite querendo ficar
Judite ficou de bobeira e bateu pra Zenite o que aconteceu
Edite tocou a elite e tem um requinte que é muito mais eu
A mãe de Zenite tece esquisitice
Sabendo que Edite era minha mulher
E dona Clarice zombando me disse:
Meu filho Edite já vai dar no pé
Foi dito e feito depois de três meses
Edite deixava o meu
barracão
Voltei pra Zenite que disse sorrindo:
Pretinho, tu mora no meu coração
200
ANEXO XIII – Música de Zoraide
ZORAIDE
Ultraje A Rigor
Composição: Indisponível
Já não sei se te quero
Acho que não quero
Me cansei de namorar
Essa história de uma só
Zoraide tenha dó
Eu quero mais é variar
Fica com esse NHÉM-NHÉM-NHÉM
Na minha orelha
Me chateia
Eu já não agüento mais
Quero fazer o que me der na telha
Zoraide , vê se não me pentelha
Já não sei se te quero
Acho que não quero
Me cansei de namorar
Essa história de uma só
Zoraide tenha dó
Eu quero mais é variar
Fica com esse NHÉM-NHÉM-NHÉM
Na minha orelha
Me chateia
Eu já não agüento mais
Quero fazer o que me der na telha
Zoraide , vê se não me pentelha
Para com essa história chata
Que coisa mais chata
Eu não quero me casar
Só porque já foi legal
E etc. e tal
Não quer dizer que eu vou encarar
Fica juntando enxoval
Pede um fogão de natal
Diz que eu me visto mal
Que eu sou um cara chulé
Que mulher !!!
Eu já não agüento mais
Quero fazer aquilo
Que eu quiser
201
ANEXO XIV – Música de Carolina
CAROLINA
Seu Jorge
Composição: Seu Jorge
Carolina é uma menina bem difícil de
esquecer
Andar bonito e um brilho no olhar
Tem um jeito adolescente que me faz
enlouquecer
E um molejo que não vou te enganar
Maravilha feminina, meu docinho de
pavê
Inteligente, ela é muito sensual
Te confesso que estou apaixonado por
você
Ô Carolina isso é muito natural
Ô Carolina eu preciso de você
Ô Carolina eu não vou suportar não te
ver
Carolina eu preciso te falar
Ô Carolina eu vou amar você
De segunda a segunda eu fico louco
pra te ver
Quanto eu te ligo você quase nunca
está
Isso era outra coisa que eu queria te
dizer
não temos tempo então melhor deixar
pra lá
a princípio no Domingo o que você
quer fazer
faça um pedido que eu irei realizar
olha aí amigo eu digo que ela só me
dá prazer
Essa mina Carolina é de abalar, ô
Ô Carolina eu preciso de você
Ô Carolina não vou suportar não te ver
Carolina eu preciso te falar
Ô Carolina eu vou amar você
Eu vou amar você,
Pois eu vou te dar muito carinho;
Vou te dar beijinho no cangote.
Ôi Carolina
Menina Bela, Menina Bela
Maravilha de menina
Carolina, preciso te encontrar
Carolina, me sinto muito só
Carolina, preciso te dizer
Ô Carolina eu só quero amar você
202
ANEXO XV – Música de Rubens
RUBENS
Cássia Eller
Composição: Mário Manga
Eu nunca quis te dizer
Sempre te achei bacaninha
O tempo todo sonhando
A tua vida na minha
O teu rostinho bonito
Um jeito diferentão
De olhar no olho da gente
E de criar confusão
O teu andar malandrinho
O meu cabelo em pé
O teu cheirinho gostoso
A minha vida de ré
Você me dando uma bola
E eu perdido na escola
Essa fissura no ar
Parece que eu tô correndo
E sem vontade de andar
Quero te apertar
Quero te morder e já
Quero mas não posso, não, porque:
- Rubens, não dá
A gente é homem
O povo vai estranhar
Rubens, pára de rir
Se a tua família descobre
Eles vão querer nos engolir
A sociedade não gosta
O pessoal acha estranho
Nós dois brincando de médico
Nós dois com esse tamanho
E com essa nova doença
O mundo todo na crença
Que tudo isso vai parar
E a gente continuando
Deixando o mundo pensar
Minha mãe teria um ataque
Teu pai, uma paralisia
Se por acaso soubessem
Que a gente transou um dia
Nossos amigos chorando,
A vizinhança falando,
O mundo todo em prece
Enquanto a gente passeia,
Enquanto a gente esquece
Rubens, será que dá?
A gente é homem
O povo vai estranhar
Rubens pára de rir
Se a tua família descobre
Eles vão querer nos engolir
Rubens, eu acho que dá pé
Esse negócio de homem com homem,
Mulher com mulher
203
ANEXO XVI – Música de Rita
A RITA
Chico Buarque
Composição: Chico Buarque
A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
O que me é de direito
E arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de São Francisco
E um bom disco de Noel
A Rita matou nosso amor
De vingança
Nem herança deixou
Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
O violão