Processo penal e a questão de classe

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Imparcialidade prejudicada: a questão de classe no Processo Penal 

 É conquista da humanidade que a defesa do acusado de crime seja plena e efetiva. De nadaadianta alguém confessar um crime e postar-se diante da cadeia para cumprir a pena queacredita merecer. O processo deve acontecer e, mesmo diante de confissão, o acusado pode ser

absolvido. Instituiu-se a função de julgar no processo, exercida por sujeito imparcial, para garantir que a sentença seja justa e declare fato aproximado da verdade. (BAJER, 2002, p.8) 

1.  O caráter de classe do Direito Processual Penal

O presente trabalho pretende introduzir uma breve reflexão a respeito do caráter de classe que oDireito possui, notadamente o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Nas palavras dePACHUKANIS (1988, p. 118): 

 A lei e a pena que pune a sua transgressão estão, em geral, intimamente unidas entre si, detal maneira que o Direito Penal desempenha, por assim dizer, muito simplesmente, o papel deum representante do direito: é uma parte que se substitui ao todo. 1 

Paula Bajer, em seu livro Processo Penal e Cidadania , conta a evolução do processo penal, desde oBrasil Colônia até a Constituição de 1988, fazendo uma equivalência entre a evolução do Estadodemocrático de Direito e o desenvolvimento da ideia de cidadania, e como isso teria afetado as reformasdo processo penal, desde o CPP de 1941 até algumas leis que o reformavam.  

Mas é possível aduzir um outro fio condutor do desenvolvimento histórico do processo penal. Ométodo materialista histórico permite indagar a respeito do caráter real do processo penal a partir de suaevolução. Como explica PACHUKANIS, o direito codificado começa na Antiguidade, positivando

apenas penalidades para os desvios de conduta. Somente depois passou a lei a versar sobre questões da vida cotidiana que não envolvessem comportamentos reprováveis. O delito gerou o direito2, a partir dodesejo de vingança. 

Nesse sentido, a evolução histórica do processo penal ligada à ideia de cidadania ignora a seguintequestão: a possibilidade de equiparar a ideia de vingança com a reparação. A composição entre as partes éuma ideia jurídica que encontra sua fonte na forma mercantil. Assim, o processo penal equivale a umarelação de troca e, por isso, seu funcionamento depende da relação que os sujeitos possuem com aprodução social. É, portanto, um processo classista. 

Diante da afirmação de que o processo penal possui caráter de classe (assim como todo oDireito), a seguinte indagação torna-se necessária: o juiz criminal é, de fato, imparcial?  

2.   A composição do ensino jurídico e da magistratura

Para responder a questão acima colocada, seria preciso fazer uma análise minuciosa dacomposição do corpo discente e docente das faculdades de direito do país, bem como da magistratura.Contudo, o intuito do presente ensaio é o de iniciar o debate, não pretendendo, por isso, apresentarqualquer resposta definitiva. 

Deste modo, servirá uma rápida observação da Faculdade de Direito da Universidade de SãoPaulo para os objetivos despretensiosos deste trabalho. É sabido que a maior parte do corpo discente é

1 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. p. 118.  2 Idem. 

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composta por alunos advindos das classes mais abastadas, burguesia e pequena burguesia3. Sem oaprofundamento da análise destes dados, é possível, de maneira imediata, apenas imaginar, com algumacerteza, que os juízes criminais sejam, em sua maioria, advindos dessas classes. 

3.  Os “consumidores” do Processo Penal

Em palestra promovida pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais - CPECC, emmarço de 2015, o abolicionista penal alemão Sebastian Scheerer apresentou interessante perspectiva arespeito do Direito Penal e do Processo Penal: imaginando o Direito (material e processual) comomercadoria, passou a supor quem seriam os consumidores  de cada ramo do Direito. 

Se se analisa a situação carcerária brasileira, vê-se que 69% dos presos cometeram crimes contrapatrimônio e de tráfico de entorpecentes, sendo que 53% da população prisional é negra 4. De um lado,sabe-se que a propriedade privada é a menina-dos-olhos da burguesia; de outro, está cada vez maisevidente que a guerra às drogas é ineficiente em seus objetivos aparentes, mas cumpre muito bem suafunção de prender ou eliminar jovens negros e pobres das periferias brasileiras 5. 

Como se vê, as classes que seriam, nos termos propostos pelo jurista alemão, as clientes   ouconsumidoras  do Direito Penal são o proletariado e o lumpemproletariado; notadamente porque os crimescometidos pela burguesia são os chamados crimes de colarinho branco, que constituem porcentagemdesmedidamente mais baixa nas prisões brasileiras. 

O processo, porém, inclui outra questão. BAJER afirma ser o processo “o instrumento por meiodo qual o juiz vai ver a verdade e decidir se alguém é culpado ou inocente” 6. O erro está exatamente emcolocar a verdade como algo absoluto que se apresenta ao juiz nos autos do processo.  

Isso porque as formas jurídicas do processo penal, tendo originado sua estrutura a partir daforma mercantil, são, como as categorias da economia burguesa, “formas do intelecto que têm uma

 verdade objetiva, enquanto refletem relações sociais reais”7, mas possuem em si uma dimensão ideológica. Desta maneira, a “verdade” que, segundo BAJER, emerge do processo para o juiz, é apenas em

parte objetiva; a outra parte não emerge dos autos, submerge da consciência - mas como uma falsaconsciência, como ideologia. Existe, por isso, uma aparência de justiça. 

Os consumidores do processo penal são, portanto, todos aqueles que cometem crimes. Porém,no que tange o desenvolvimento do processo em si, enquanto narrativa da relação de troca, poder-se-iadizer que os resultados são previsíveis conforme a classe social do processado. 

Por isso, expor a equivalência do desenvolvimento do processo penal pura e simplesmente àevolução do conceito de cidadania, como faz BAJER, não é suficiente, pois pressupõe que as teoriasabsolutas de Direito Penal são apenas juridicamente equivocadas, quando, na realidade, “esta formaabsurda de equivalência não resulta do erro de alguns criminalistas” - cuja correção, por si só, atribuiria ao

3 Estudo revelou que existem mais alunos da USP morando em uma única rua de um bairro nobre na região centralde São Paulo do que em 74 bairros periféricos da zona sul da cidade. Disponível em<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3005200401.htm >. Acesso em 14/03/2016. 4 Disponível em <http://abordagempolicial.com/2013/03/o-sistema-carcerario-brasileiro-em-numeros/ >. Acessoem 14/03/2016. 5 A esse respeito, cumpre refletir a respeito de como se forjou o capitalismo no Brasil, o que não se pode aqui fazerde maneira aprofundada. Defende-se aqui, sem maiores reflexões, a ideia de que o capitalismo brasileiro fundou-sesobre o regime escravocrata e, por isso, carrega o racismo em sua estrutura: a burguesia é majoritariamente branca,de modo que o desenvolvimento histórico das políticas públicas no Brasil trataram de manter a população negra àsmargens da sociedade e, em resposta a recentes avanços, como as cotas sociais e raciais, por exemplo, o Estado forja

e o Direito prende a juventude negra; e tudo isso se faz por interesse de classe. 

6 BAJER, Paula. Processo penal e cidadania. p. 8. 7 MARX, Karl. O capital. Livro I, capítulo IV, p. 88. 

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processo penal a imparcialidade julgadora -, “mas das relações materiais da sociedade de produçãomercantil de que ela se nutre”8. 

4.  O tribunal do júri e o juiz classista

Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado porseus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidadão, todos ossentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar.9 

Diferente do que pretendeu Beccaria no trecho acima, aqui não se defende que seja possíveleliminar o caráter de classe do Processo Penal, sendo a forma jurídica em si algo que carrega os interessesda burguesia. É possível, porém, conseguir progressos mesmo dentro das categorias burguesas - aexemplo da abolição de penas cruéis. 

Sabe-se que, no passado, existiu a figura do  juiz classista , extinta pela Emenda Constitucional nº24, de 1999. Em que pese haver sido um instituto contraditório, tendo em vista que era indicado

pessoalmente pelos sindicatos - o que prejudicava qualquer resquício de imparcialidade -, propõe-se, aqui,a seguinte reflexão: seria possível fazer do Tribunal do Júri uma versão do “juiz classista” mais fiel aospreceitos marxistas, em busca da imparcialidade real? 

O Código de Processo Penal não coloca critérios específicos para a atribuição dos juradossorteados para compor o Tribunal do Júri nos casos de sua competência. Desta maneira, e diante daanálise de que o problema dos juízes classistas estava primordialmente em suas indicações pessoais,indaga-se aqui se a inclusão de critérios de classe - mantendo-se o método do sorteio, sem favorecimentospessoais ou indicação das partes - poderia transformar o Tribunal do Júri em uma espécie de juízo

 verdadeiramente classista, não como uma saída para o caráter burguês do Direito, mas oferecendo maiorproteção às classes despossuídas. 

Bruna de Vasconcellos Torres - nº USP 8995818 

8 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. pp. 130-1.  9 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 16.