Princípio de Justiça e Direito No Mundo Contemporâneo - CENPESJUR - Professora Sílvia Mota

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20/08/2015 Princípio de Justiça e Direito no mundo contemporâneo CENPESJUR Professora Sílvia Mota http://www.silviamota.com.br/enciclopediabiobio/artigosbiobio/principiojustedirnomundocontemp.htm 1/3 centro de pesquisa jurídica SÍLVIA MOTA 1 usuário(s) online Enciclopédia Virtual de Bioética e Biodireito Autora: Professora Sílvia Mota | Home | Direito | Bioética e Biodireito | Pesquisa Jurídica | Alunos Direito | Outras Áreas | Budismo | Curriculum | *Esta página foi atualizada em 31/01/14* ________________________________________________________________________________________________ Princípio de Justiça e Direito no mundo contemporâneo Síntese e adaptação de texto contido em: MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. Em andamento. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte]. ___________________________________________________________________________________ Introdução Nenhum teórico, nenhum povo ou civilização possui um imarcescível e peremptório conceito de Justiça. Esta assertiva aproximase do pensamento grego, pois os sofistas ainda muito cedo haviam negado a existência de uma Justiça absoluta. Sócrates afirmaraa arrebatadora e dogmaticamente, curvandose, a seguir, ao encargo de revelar ser inalcançável à sua reflexão aquele significado. Platão dispôsse atingir essa verdade, mas pressagiou também ser o resultado desta busca, inexprimível. Desta forma, o vestíbulo no qual se desvendaria este conhecimento, culminou por contentarse a presidir o culto a um misticismo religioso. A idéia de Justiça dos ocidentais é herdada, em grande parte, das noções expostas inicialmente por Platão, Aristóteles e pelos juristas romanos. Em Platão, Justiça é a virtude suprema, sintonizadora das demais virtudes, sendo, portanto, a harmonia, sua nota basilar; Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça distributiva e justiça comutativa em função dos critérios da proporção e da igualdade; e, neste contexto, é pertinente entrar em curso a velha colocação do jurista romano Ulpiano: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi significando: Justiça é a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o seu direito. Normalmente decifrada pelos múltiplos autores através das exigências da justiça distributiva, suscita esta definição ponderações em torno da dificuldade de distribuir precisamente os recursos disponíveis, limitados ou escassos, e provoca um grande busílis: o da afinidade entre Justiça e Direito. Pelas dificuldades oferecidas, o Ocidente não se limitou a construir uma Teoria da Justiça, mas importouse em encontrar o meio de realizála historicamente. Dessa forma, o Relatório Belmont, em 1978, articula ser o Princípio de Justiça uma questão de imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios. Mas desta assertiva surgem mais perguntas: quem é igual e quem não é igual, se os homens têm diferenças de todo tipo? Quais considerações justificam afastarse da distribuição igualitária? Pretendese nas próximas laudas, conquanto perfunctoriamente, estudar os critérios apontados pelos estudiosos com vistas à resolução da distribuição dos bens, estabelecendo a viabilidade da sua aplicação no contexto do mundo contemporâneo, quando o Princípio de Justiça é enlaçado definitivamente ao direito que todos possuem de serem tratados igualmente. A importância dessa discussão repousa na possibilidade de indicar nova interpretação aos aspectos então apresentados, reconhecendo o engano do discurso atual e, também, em demonstrar quais as atitudes tomadas pelos tribunais diante dos casos in concreto. A busca pela Justiça, por ser inerente à própria vida do ser humano, exsurge como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. As possíveis respostas serão formuladas com supedâneo na legislação, na literatura filosóficojurídica e na jurisprudência fracionária, buscandose a análise da atual amplitude dessa virtude humana suprema cognominada Justiça. 1 Localização da Justiça A Teoria da Justiça é situada por Miguel Reale no âmbito da Axiologia [1] , ramo do conhecimento cujo objeto é o estudo da noção de valor em geral. De sua raiz, abrolha o termo axiológico, significando império da Axiologia; com fulcro em valores intrínsecos ou essenciais, ou envolventes, fazendo as obrigações morais dependerem de valores. [2] O termo Justiça é preocupação inflexível dos estudiosos das ciências humanas e sociais, e esta realidade leva o pesquisador a indagar se o estudo do Princípio de Justiça não deveria transcender os grilhões da Ética e imporse ao campo do Direito. Para dirimir tal contenda, procurase fundamento nas palavras de Hans Kelsen, jusfilósofo, privilegiado cultor do refletir humano, por pretender exorcizar do interior da teoria jurídica a inquietação quanto aos conceitos de justo ou injusto. Segundo o artífice, o homem procura justificação absoluta para o seu próprio comportamento e, para tal, não lhe basta aceitálo apenas como meio adequado para um determinado fim. Para saciar esta necessidade, busca na religião ou na metafísica uma justificativa, imposta sob a denominação de justiça absoluta e desloca a justiça, deste mundo para um mundo transcendental, onde será concretizada por uma autoridade sobrehumana, divina, cujas características e funções são, por sua natureza, “inacessíveis à cognição humana”. [3] É, portanto, irracional, o ideal de justiça absoluta. Para Hans Kelsen, todas as reflexões aptas a propiciar o debate sobre valores possui um campo delimitado: a Ética, ciência comprometida com o estudo não das normas jurídicas, mas das normas morais, estas às quais compete a missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. Inúmeras são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto, levando este estudo a investigações inconclusivas. Por tal razão, deflagra o autor, a interpretação das leis deve ser objetiva. [4] Com inspiração ressaltante no pensamento kelseniano, implantase o Princípio de Justiça nos domínios da Ética. 2 A Justiça é absoluta? Os favoráveis à ala jusnaturalista respondem: sim, a Justiça é absoluta. A medida do justo deriva do Direito Natural. Desde que o mundo é mundo, sempre se praticam guerras e morticínios em nome dessa virtude e todos os praticantes desses atos declararam permanecer a Justiça do seu lado. Aos adeptos da linha positivista, a Justiça não é absoluta, por ser algo subjetivo e as medidas do justo serem mutáveis de grupo para grupo e mesmo de pessoa para pessoa. É a justiça absoluta um ideal bruto e desconexo da realidade, simplesmente um pulcro devaneio da humanidade. 3 Classificação da Justiça Com ímpetos de facilitar o estudo, proferemse os tipos de Justiça apontados pelos estudiosos do tema. Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva. A justiça comutativa, com base no princípio de igualdade, preside as relações entre os indivíduos, equilibrandoas e tornando justas as trocas entre as pessoas. Não se abrevia ao restrito campo dos contratos, estendendose aos demais arrolamentos entre particulares. O devido a cada

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Princípio de Justiça e Direito no mundo contemporâneoSíntese e adaptação de texto contido em:MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico aofulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro,2005. Em andamento. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun.2005.

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Princípio de Justiça e Direito no mundo contemporâneo Síntese e adaptação de texto contido em:MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico aofulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro,2005. Em andamento. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun.2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor RicardoPereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].___________________________________________________________________________________

Introdução

Nenhum teórico, nenhum povo ou civilização possui um imarcescível e peremptório conceito de Justiça. Esta assertivaaproxima­se do pensamento grego, pois os sofistas ainda muito cedo haviam negado a existência de uma Justiça absoluta.Sócrates afirmara­a arrebatadora e dogmaticamente, curvando­se, a seguir, ao encargo de revelar ser inalcançável à suareflexão aquele significado. Platão dispôs­se atingir essa verdade, mas pressagiou também ser o resultado desta busca,inexprimível. Desta forma, o vestíbulo no qual se desvendaria este conhecimento, culminou por contentar­se a presidir oculto a um misticismo religioso.

A idéia de Justiça dos ocidentais é herdada, em grande parte, das noções expostas inicialmente por Platão, Aristóteles epelos juristas romanos. Em Platão, Justiça é a virtude suprema, sintonizadora das demais virtudes, sendo, portanto, aharmonia, sua nota basilar; Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça distributiva e justiça comutativa em função doscritérios da proporção e da igualdade; e, neste contexto, é pertinente entrar em curso a velha colocação do jurista romanoUlpiano: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi significando: Justiça é a constante e perpétuavontade de atribuir a cada um o seu direito. Normalmente decifrada pelos múltiplos autores através das exigências dajustiça distributiva, suscita esta definição ponderações em torno da dificuldade de distribuir precisamente os recursosdisponíveis, limitados ou escassos, e provoca um grande busílis: o da afinidade entre Justiça e Direito.

Pelas dificuldades oferecidas, o Ocidente não se limitou a construir uma Teoria da Justiça, mas importou­se emencontrar o meio de realizá­la historicamente. Dessa forma, o Relatório Belmont, em 1978, articula ser o Princípio deJustiça uma questão de imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios. Mas desta assertiva surgem maisperguntas: quem é igual e quem não é igual, se os homens têm diferenças de todo tipo? Quais considerações justificamafastar­se da distribuição igualitária?

Pretende­se nas próximas laudas, conquanto perfunctoriamente, estudar os critérios apontados pelos estudiosos comvistas à resolução da distribuição dos bens, estabelecendo a viabilidade da sua aplicação no contexto do mundocontemporâneo, quando o Princípio de Justiça é enlaçado definitivamente ao direito que todos possuem de serem tratadosigualmente.

A importância dessa discussão repousa na possibilidade de indicar nova interpretação aos aspectos entãoapresentados, reconhecendo o engano do discurso atual e, também, em demonstrar quais as atitudes tomadas pelostribunais diante dos casos in concreto. A busca pela Justiça, por ser inerente à própria vida do ser humano, exsurge comoconseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.

As possíveis respostas serão formuladas com supedâneo na legislação, na literatura filosófico­jurídica e najurisprudência fracionária, buscando­se a análise da atual amplitude dessa virtude humana suprema cognominada Justiça. 1 Localização da Justiça A Teoria da Justiça é situada por Miguel Reale no âmbito da Axiologia[1], ramo do conhecimento cujo objeto é o estudo danoção de valor em geral. De sua raiz, abrolha o termo axiológico, significando império da Axiologia; com fulcro em valoresintrínsecos ou essenciais, ou envolventes, fazendo as obrigações morais dependerem de valores.[2]

O termo Justiça é preocupação inflexível dos estudiosos das ciências humanas e sociais, e esta realidade leva opesquisador a indagar se o estudo do Princípio de Justiça não deveria transcender os grilhões da Ética e impor­se ao campodo Direito.

Para dirimir tal contenda, procura­se fundamento nas palavras de Hans Kelsen, jusfilósofo, privilegiado cultor do refletirhumano, por pretender exorcizar do interior da teoria jurídica a inquietação quanto aos conceitos de justo ou injusto.Segundo o artífice, o homem procura justificação absoluta para o seu próprio comportamento e, para tal, não lhe bastaaceitá­lo apenas como meio adequado para um determinado fim. Para saciar esta necessidade, busca na religião ou nametafísica uma justificativa, imposta sob a denominação de justiça absoluta e desloca a justiça, deste mundo para ummundo transcendental, onde será concretizada por uma autoridade sobre­humana, divina, cujas características e funçõessão, por sua natureza, “inacessíveis à cognição humana”.[3] É, portanto, irracional, o ideal de justiça absoluta.

Para Hans Kelsen, todas as reflexões aptas a propiciar o debate sobre valores possui um campo delimitado: a Ética,ciência comprometida com o estudo não das normas jurídicas, mas das normas morais, estas às quais compete a missão dedetectar o certo e o errado, o justo e o injusto. Inúmeras são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto,levando este estudo a investigações inconclusivas. Por tal razão, deflagra o autor, a interpretação das leis deve ser objetiva.[4]

Com inspiração ressaltante no pensamento kelseniano, implanta­se o Princípio de Justiça nos domínios da Ética. 2 A Justiça é absoluta?

Os favoráveis à ala jusnaturalista respondem: sim, a Justiça é absoluta. A medida do justo deriva do Direito Natural.Desde que o mundo é mundo, sempre se praticam guerras e morticínios em nome dessa virtude e todos os praticantesdesses atos declararam permanecer a Justiça do seu lado. Aos adeptos da linha positivista, a Justiça não é absoluta, por seralgo subjetivo e as medidas do justo serem mutáveis de grupo para grupo e mesmo de pessoa para pessoa.

É a justiça absoluta um ideal bruto e desconexo da realidade, simplesmente um pulcro devaneio da humanidade. 3 Classificação da Justiça

Com ímpetos de facilitar o estudo, proferem­se os tipos de Justiça apontados pelos estudiosos do tema.Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva. A justiça comutativa, com base no

princípio de igualdade, preside as relações entre os indivíduos, equilibrando­as e tornando justas as trocas entre as pessoas.Não se abrevia ao restrito campo dos contratos, estendendo­se aos demais arrolamentos entre particulares. O devido a cada

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um lhe é próprio pelo simples fato de ser pessoa humana, como acontece com o direito à vida, o direito à indenização porperdas e danos, entre outros; e o tratamento igual será viável, se computada a necessária equivalência entre duas coisas.[5] A justiça distributiva preside as relações entre o grupo social e seus membros, suscitando inúmeros ajuizamentos emtorno do referido problema de distribuição justa dos recursos disponíveis, limitados ou escassos. Deve­se fazê­lo pelocritério da proporcionalidade, distribuindo os bens correspondentes ao mérito e às necessidades de cada um. Sendo assim,dependeria em primeiro lugar do Estado, a quem compete distribuir bens e honras, levando em conta o mérito de cada um.Mas, pode ser também incumbência de uma pessoa privada: chefe de um grupo social, pai ou mãe de família, administradorde uma sociedade comercial ou industrial.[6]

São Tomás de Aquino sobrepôs à classificação anterior, a justiça geral ou legal, enfatizando o débito de cada um aogrupo social, sendo o imposto de renda exemplo desse critério.

Na Era Contemporânea, a justiça social, reclamo da sociedade, obedece à igualdade proporcional na repartição dos bense procura assistir aos pobres e desamparados segundo suas necessidades essenciais, mediante a adoção de critérios quepatrocinem uma distribuição mais balanceada da riqueza. Este anseio pela justiça social leva alguns autores, como F. A. VonHayek, a exporem seu pessimismo quanto à sua concretização e banalização.[7] Em realidade, o apelo à justiça socialtornou­se corrupto, vinculando­se a reivindicações que pretendem abonar como morais determinadas atitudes fulcradas emideologias políticas e religiosas, distanciando­se da exigência inicial de que numa sociedade pretensamente livre todosdevem ser tratados igualmente pela norma jurídica. 4 Critérios de exteriorização da Justiça e do Direito no mundo contemporâneo

Difícil, senão impossível, no mundo atual, dar a cada um o seu direito, como pretendia Ulpiano, quando se trata dedistribuir os bens, tão escassos em relação aos indíviduos que os disputam. O que é o direito de cada um? O que é o justopara cada um? A literatura filosófico­jurídica traça alguns critérios, a partir deste ponto, aqui indicados.

O Princípio de Justiça é intrerpretado por Tom L. Beauchamp e James F. Childress através das exigências da justiçadistributiva. Uma distribuição justa, eqüitativa e apropriada na sociedade justifica as normas estruturadoras da cooperaçãosocial.[8]

William K. Frankena, por seu lado, acirra o debate e pergunta quais são os critérios ou princípios de justiça a seremlevados em conta no momento da distribuição dos bens. Para o autor, a justiça distributiva liga­se a um tratamentocomparativo de indivíduos:

[...] Estamos falando de justiça distributiva, justiça na distribuição do bem e do mal [...] A justiça distributiva é uma questão de tratamentocomparativo de indivíduos. Teríamos o padrão de injustiça, se ele existe, num caso em que havendo dois indivíduos semelhantes, em condiçõessemelhantes, o tratamento dado a um fosse pior ou melhor do que o dado ao outro [...] O problema por solucionar é saber quais as regras dedistribuição ou de tratamento comparativo em que devemos apoiar nosso agir. Numerosos critérios foram propostos, tais como: a) a justiça considera,nas pessoas, as virtudes ou méritos; b) a justiça trata os seres humanos como iguais, no sentido de distribuir igualmente entre eles, o bem e o mal,exceto, talvez, nos casos de punição; c) trata as pessoas de acordo com suas necessidades, suas capacidades ou tomando em consideração tantoumas quanto outras.[9]

A obra de John Rawls concebe a Justiça como Eqüidade (Justiça ao caso em concreto) e reinterpreta o pensamento

aristotélico baseando­se nos princípios da liberdade e da diferença. O primeiro refere­se à justiça comutativa e foi assimerigido: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejacompatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.”[10] De acordo com esse princípio, cada pessoa deveter a mais ampla e extensa liberdade possível, mantendo­se, entretanto, compatível com uma liberdade similar de outrosindivíduos. O segundo evidencia respeito à justiça distributiva e se expressa da seguinte forma: “As desigualdades sociais eeconômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: (a) consideradas como vantajosas para todosdentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.”[11]

O primeiro princípio afiança as liberdades básicas e anuncia a preferência pela liberdade, excepcionalmente estremada aserviço da própria liberdade. O segundo princípio se consagra à distribuição de renda e riqueza ou oportunidades,constituindo­se na prioridade da Justiça frente à eficiência do bem­estar. Procura John Rawls associar Justiça com Liberdadee Justiça com Desigualdade.[12] Sendo princípios autônomos, não se pode proteger um em detrimento do outro. Veta,portanto, a troca de liberdades por ganhos econômicos e, do mesmo modo, inadmite seja imolada a liberdade, a não ser,repete­se, para gerar mais liberdade. Advoga uma igualdade democrática constituída pela eqüitativa igualdade deoportunidade e a existência de desigualdade.[13] Daí a acepção de Justiça como Eqüidade. A igualdade de condições noacesso às oportunidades deverá ser outorgada a todos, sabendo­se, todavia, o resultado será sempre desigual. Adesigualdade será admissível como justa exclusivamente quando originar prerrogativas para todos, a dar início pelos maiscarentes.[14]

Alf Ross dedica­se também ao exame da idéia de Justiça como exigência de igualdade. Considerando­se a igualdade umprincípio absoluto, quaisquer sejam as circunstâncias, deveriam encontrar­se todos os indivíduos na mesma posição. Noentanto, confere o autor, isto é utópico, porque as diferenças reais existem e não podem ficar à margem da consciência dojulgador.[15] E, neste refrão, apresenta e explica seu esquema[16], inspirado nas diretrizes do Relatório Belmont[17]:

a) a cada um segundo seu mérito: diz respeito aos méritos morais ou o valor moral de uma pessoa. Liga­se estecritério à idéia de Justiça nesta vida ou após a morte, relacionando proporcionalmente mérito e destino;

b) a cada um segundo sua contribuição: o padrão de avaliação é aqui a contribuição de cada pessoa à economiasocial. Sua interpretação remete ao intercâmbio de cumprimentos entre a pessoa e a comunidade. É utilizadotambém pelos teóricos, os quais, sobre bases individualistas concebem o trabalho e a remuneração como umintercâmbio de cumprimentos entre particulares[18];

c) a cada um segundo suas necessidades: cada um deverá contribuir de acordo com sua capacidade e receber deacordo com suas necessidades. O critério relevante não é, pois, o quantum da contribuição, mas sim anecessidade[19];

d) a cada qual segundo sua capacidade: trata da distribuição de cargas, sendo a contrapartida do princípio denecessidade na distribuição de vantagens[20];

e) a cada um segundo sua posição e condição: é princípio aristocrático de Justiça sustentado para justificar asdistinções de classe social.[21] Diz respeito à desigualdade natural entre os seres humanos e a construçãoorgânica ou hierárquica da comunidade num certo número de classes, cada uma das quais desempenhando suafunção particular dentro do todo.

Estes critérios não são expostos com a finalidade de discutir qual a formulação correta do Princípio de Justiça, mas paramostrar a insuficiência da pura reivindicação de igualdade, pois o conteúdo prático da exigência de Justiça depende depressupostos externos ao Princípio da Igualdade, entre estes as categorias às quais se deve aplicar a regra de igualdade.

ConclusãoAs necessidades humanas essenciais e a repartição dos bens fazem recordar a cultuada definição de justiça ­ conceder a

cada um o que é seu – princípio aceito por diversos pensadores, particularmente filósofos do Direito. Vazia, entretanto, estanoção, pois o mote decisivo – a distribuição justa dos bens – queda­se ainda sem contra­golpe.

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Despiciendo ignorar a verdade contida nesta asseveração, pois se nos dias atuais os bens são escassos em relação aosindivíduos a disputá­los, difícil é determinar o quinhão a ser considerado como seu pelos indivíduos em particular. Esteenigma jaz atrelado à premissa de que aquela pretensão já se tenha decidido previamente, donde se infere ser esta decisãonativa de uma ordem acalcanhada no costume ou na ordem jurídica. Por esta ordem de raciocínio e pelo senso comum, serájustificada através da fórmula ulpiniana a cada um o que é seu. No entanto, este aforismo sucumbe quando se impõe anecessidade de produzir um valor absoluto ­ neste caso, a Justiça absoluta ­ diferente dos valores, estes relativos,garantidos por uma ordem moral ou jurídica positiva.

O estudo da Justiça não se situa dentro das ambições da Teoria do Direito, considerada como conjunto sistemático denormas. A fala jurídica deve ser descritiva e não valorativa. Trabalha­se nesta seara a realidade fática, o dado, nadaobstante, este dado não é o social, mas a norma posta pela autoridade competente. É preciso delimitar o Direito noconcernente ao valor, sustentando não ser cátedra da Ciência Jurídica açambarcar esta esfera, mas isto não significapretenda­se expungir toda e qualquer consideração ética do Direito. É necessário ao jurista manter­se neutro e distante ­sob o ponto de vista subjetivo ­ do caso em concreto, não significando com isso manter­se estranho e incógnito ao estudo dojusto e do injusto, mas tão somente consciente de que as terras nas quais desabrocham suas reflexões sobre a Justiça nãodeverão ser as mesmas nas quais nutrirá seu pensamento sobre o Direito.

Para se falar de Justiça no mundo atual e, em particular, no Brasil, é relevante decretar a necessidade deconscientização das diversas desigualdades alimentadas por uma estrutura de opressão, e o propósito de amainá­las.Ingênuo engano a tentativa de torná­las incógnitas. Dessa evidência, surge a tentativa de concretizar o Direito igualitário ejusto, implícito nas letras da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988: "Todos são iguais perante a lei, semdistinção de qualquer natureza [...]", a partir de uma análise desigual, frente a desigualdade humana e/ou a desigualdadesocial, detectadas, respectivamente, a partir da natureza genética de cada um ou daquela decorrente das vicissitudes davida. A partir dos dados objetivos, deve­se partir para a distribuição proporcional dos bens, pedra de toque da civilizaçãocontemporânea em razão do entrave assentado pelos privilegiados e detentores da legitimidade da partilha.

Os critérios antes mencionados aparecem como imprescindíveis na distribuição dos bens, embora não se possa negar aexistência de uma oportuna cegueira diante da banalização da justiça social, que aflora como prestigiosa ferramenta docapitalismo, transmutando­se a mazela social em evento trivial, frente aos contra­sensos e humilhações embutidos no tratosocial. O paradoxo da modernidade mascara atitudes e costumes em atos de extrema piedade, que, por serem forjados, nãopossuem o condão de se transformarem em intervenções em nome da prosperidade dos menos favorecidos pela sorte. Oshabitantes da cidade humanizaram os sentimentos, mas conservaram­se impérvios nas atitudes.

[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 374.[2] MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. 1098765 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1998, p. 274.[3] KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2001,p. 11.

[4] KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3. ed. Introdução: Mário G. Losano. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: M. Fontes, 1998a, p. 15­16.[5] As decisões exaradas pelos Tribunais de Justiça brasileiros apelam fielmente ao critério da justiça comutativa quando se faz necessária intervençãojudicial para estabelecer o equilíbrio dos contratos: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (10. Câmara). Cível. Se o contrato faz leientre as partes, o equilíbrio do início da contratação deve ser mantido como postulado de justiça comutativa que vincula os contratantes e o próprioEstado. O risco ou “alea” é inerente a todo contrato, sendo injusto e injurídico fazê­lo recair somente sobre uma das partes, no caso, justamente sobre aeconomicamente mais fraca. Apelação cível nº 1999.001.13905. Relator: Desembargador Jayro S. Ferreira. Rio de Janeiro, 14 de março de 2000.Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.tj.rj.gov.br>. Acesso em: 20 dez. 2005. (grifo nosso)

[6] Particularmente, nos dias de hoje, Hely Lopes Meirelles explica serem “o risco e a solidariedade social” os suportes da Teoria do Risco Administrativo,através da qual surge a obrigação de indenizar o dano do só ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração (pois não se exige qualquer falta doserviço público, nem culpa de seus agentes, bastando a lesão, sem o concurso do lesado.), porque: “por sua objetividade e partilha dos encargos,conduz à mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pelaprimeira vez no art. 194 da Constituição Federal de 1946. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 19. ed. atual. por Eurico de AndradeAzevedo, Délcio Balestro Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 557. (grifo nosso)

[7] VON HAYEK, F. A. A miragem da justiça social. Visão (Unb), 1985. Capítulo 8: A busca da justiça, p. 120.[8] BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University, 1994, p. 327.[9] FRANKENA, William K. Ética. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 61­62.[10] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.[11] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.[12] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.[13] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 66­67.[14] John Rawls sofreu críticas de diversos autores, entre estes, Robert Nozick e F. A. Hayek, e isso o fez modificar parcialmente sua teoria, expressadaem sua obra Liberalismo político, na qual conclui pela validade das críticas sofridas. Robert Nozick, ao referir­se à obra A Theory of Justice, de JohnRawls, declara­a como “[...] um trabalho vigoroso, profundo, sutil, amplo, sistemático sobre filosofia política e moral como nunca se viu igual desde asobras de John Stuart Mill.” Os filósofos políticos, continua o autor: “[...] têm agora ou de trabalhar com a teoria de John Rawls ou explicar por que não ofazem.” NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 201­202. Após esta soberba apresentação,concede crítica às regras da justiça de John Rawls.

[15] ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 314­315.[16] ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 315­316.[17] A proposta do The Belmont Report, editado em 1978 pela Comissão Nacional para Proteção de Pessoas Humanas na pesquisa biomédica ecomportamental, indica: a cada pessoa uma parte igual; a cada pessoa de acordo com a sua necessidade; a cada pessoa de acordo com o seu esforçoindividual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu. A idéia é compensar as desvantagenseventuais rumo à igualdade.

[18] Esta fórmula de Justiça é invocada quando as mulheres exigem posições de igualdade com referência aos homens, por exemplo, uma remuneraçãoigual a dos homens pelo mesmo trabalho. Segundo Alf Ross, isto expressa “precisamente a idéia de que o critério relevante que determina a classe quereclama tratamento igual é a quantidade de trabalho executado. Todas as pessoas que pertencem a esta classe, tanto as mulheres quanto os homens,têm assim o direito de reivindicar a mesma remuneração.” ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p.316.

[19] O enfermo ou fraco deve receber de acordo com suas necessidades, sem se levar em conta o fato de que por essa mesma razão dá uma pequenacontribuição ou nenhuma.

[20] Exemplo típico é a determinação do imposto de renda por meio de regras referentes a rendas mínimas isentas de imposto, escalas progressivas,deduções por filhos, entre outros.

[21] A referência a este princípio justifica uma distinção entre empregadores e empregados, brancos e negros, nobres e camponeses, entre outros. ___________________________________________________________________________________ Texto incluído em: 26 de julho de 2007Professora Sílvia [email protected]

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