Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC...
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1
Texto a ser publicado na obra: Alexandre Freire, Bruno Dantas, Dierle Nunes, Fredie Didier Jr.,
José Medina, Luiz Fux, Luiz Volpe e Pedro Miranda (Coord.). Novas Tendências do Processo
Civil - Estudos sobre o Projeto do Novo CPC.Vol. II, Salvador: Editora Jus Podivm, 2014 (NO
PRELO).
Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência
e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas
delineadas de padronização decisória
Dierle Nunes1
Rafaela Lacerda2
1. Considerações iniciais
Deveríamos abandonar a singularidade em prol da
similaridade?
Estamos em momento muito singular do ordenamento jurídico pátrio, no qual
percebemos ao longo dos últimos 25 anos uma mudança muito consistente dos níveis de
litigiosidade em aspectos qualitativos e quantitativos.
Esta mudança, conjuntamente com a transição para um modelo jurídico
principiológico (Dworkin), as altas taxas de congestionamento, os novos perfis de
litigiosidade repetitiva, vem cada vez mais gerando um peculiar modelo de Direito
Jurisprudencial no qual os precedentes são usados para geração de padrões decisórios
(mediante a técnica de causa piloto - test claim – Musterverfahren) e aplicação em casos
idênticos.
Os teóricos, como pontua Calvinho, passam a se dividir entre aqueles que
propõem um novo paradigma teórico de melhoria qualitativa, embasado em sólidas bases
constitucionais, e aqueles que defendem a mantença das velhas premissas, em face do
aumento quantitativo.3
1 Doutor em Direito Processual (PUCMinas/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito
Processual (PUCMinas). Professor Permanente do PPGD da PUCMINAS. Professor Adjunto na PUCMINAS
e na UFMG. Membro do IBDP) e do IAMG. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: E-
mail: [email protected]. 3 CALVINHO, Gustavo. La procedimentalización posmoderna. in BALIÑO, Juan Pablo Pampillo; PÁEZ,
Manuel Alexandro Munive. (coord.) “Obra Jurídica Enciclopécida”. Ed. Porrúa: México D.F., volumen
Derecho Procesal Civil y Mercantil (coord.: Mauricio A. Cárdena Guzmán y Carlos Sodi Serret), p. 135-155
2
Esta transição ganha especial importância em momento no qual se encontra,
em etapa avançada de tramitação, no Congresso Nacional, um CPC projetado, norma que
poderá viabilizar uma “nova gramática interpretativa” do estado adulterado de criação e
aplicação do direito jurisprudencial no Brasil.
E nesse aspecto, a compreensão dos impactos do processo constitucionalizado
(com nosso dinâmico modelo constitucional de processo), posto nas normas fundamentais do
CPC projetado e em seu corpo (v.g. art. 499 – fundamentação racional), podem fornecer
pressupostos interpretativos essenciais no sistema dogmático que se descortina.
Obviamente que, se esta legislação projetada for interpretada como mais uma
reforma, desprovida de novas premissas e fundamentos interpretativos (comparticipativos),
esta seria mais do mesmo, ou poderia gerar até mesmo efeitos deletérios; fato impensável em
face das balizas constitucionais institutivas do projeto.
Dentro deste aspecto, há exatos dez anos, um dos autores do presente ensaio
defende a necessidade de adoção do contraditório como garantia de influência e não surpresa
na formação das decisões.4
Essa concepção já arraigada em outros países, em face da percepção anterior
da importância dos direitos fundamentais processuais no dimensionamento e aplicação do
direito processual, somente começou a ganhar maior destaque e efetividade no discurso
processual pátrio efetivamente de poucos anos para cá.
Como já se informou em outra oportunidade sobre essa visão mais consistente
do princípio do contraditório e sobre a nulidade das decisões de surpresa:
Nota-se que, uma vez que os poderes do julgador são aumentados, impõe-se a este o
dever de informar às partes das iniciativas que pretende exercer, de modo a permitir
a elas um espaço de discussão em contraditório (NORMAND, 1988, p. 724),
devendo haver a expansão e a institucionalização do dever de esclarecimento
judicial a cada etapa do procedimento, inviabilizando julgamentos surpresa
(BENDER; STRECKER, 1978, p. 554). A colocação de qualquer entendimento
jurídico (v. g. aplicação de súmula da jurisprudência dominante dos Tribunas
Superiores) como fundamento da sentença, mesmo que aplicada ex officio pelo juiz,
sem anterior debate com as partes, poderá gerar o aludido fenômeno da surpresa.
Desse modo, o contraditório constitui um verdadeira garantia de não surpresa que
impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as
de conhecimento oficioso, impedindo que em “solitária onipotência” aplique normas
ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de
4 NUNES, Dierle. O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-
Minas, 2003, dissertação de mestrado; NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ.
e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle José Coelho, THEODORO JR, Humberto.
Princípio do contraditório: tendências de mudança de sua aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de
Minas. v.28, p.177 - 206, 2009. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise
critica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.
3
uma ou de ambas as partes (FERRI, 1988, p. 781-782). Ocorre que a decisão de
surpresa deve ser declarada nula, por desatender ao princípio do contraditório. Toda
vez que o magistrado não exercitasse ativamente o dever de advertir as partes quanto
ao específico objeto relevante para o contraditório, o provimento seria invalidado,
sendo que a relevância ocorre se o ponto de fato ou de direito constituiu necessária
premissa ou fundamento para a decisão (ratio decidendi) (FERRI, 1988, p. 781-
782). Assim, o contraditório não incide sobre a existência de poderes de decisão do
juiz, mas, sim, sobre a modalidade de seu exercício, de modo a fazer do juiz um
garante da sua observância e impondo a nulidade de provimentos toda vez que não
exista a efetiva possibilidade de seu exercício (FERRI, 1988, p. 793). [....] Para a
demonstração cabal do atual perfil comparticipativo que o princípio possui em sua
releitura democrática, faz-se necessária a análise pormenorizada do já aludido
fenômeno intitulado “decisão de surpresa”, ou “decisione della terza via”, ou
“Überraschungsentscheidungen”, que atribui a nulidade de decisões fundadas sobre a
resolução de questões de fato e de direito não submetidas à discussão com as partes
e não indicadas preventivamente pelo juiz (CIVININI, 1999, p. 4). O âmbito das
decisões de surpresa possui interesse especialmente para as questões jurídicas, das
quais o juiz poderá conhecer de oficio (LEBRE DE FREITAS, 1996, p. 102). Na
verificação do Direito estrangeiro, percebe-se que não é recente a preocupação com
essas decisões. Pollak, em 1931, ao comentar a ZPO austríaca, afirmava que o
Tribunal não deve surpreender as partes na sentença com pontos de vista jurídicos
não analisados na fase preliminar: se o Tribunal viola esse dever, o procedimento é
viciado (CAPPELLETTI, v. II, p. 509). Denti afirmava que o fenômeno não era
estranho a vários ordenamentos de diversas tradições e pressupostos ideológicos,
mesmo naqueles em que havia ocorrido um notável aumento dos poderes do juiz na
direção do processo e na obtenção dos materiais para a decisão (DENTI, 1968, p.
229). Defendia a posição de que a individuação da norma pelo juiz diversa da
suscitada pelas partes dava lugar à necessidade do contraditório, caso em que da
aplicação da referida norma surgisse “uma questão potencialmente idônea a definir a
controvérsia” (DENTI, 1968, p. 225).5 Porém, restringia a aplicação de sua tese a
questões jurídicas prejudiciais (DENTI, 1968, p. 224). Bender e Strecker, ao
comentarem, na Alemanha, o já aludido Modelo de Sttutgart (cf. 4.3.1), afirmavam
que a decisão de surpresa é um câncer na administração da justiça, visto que
subverte a confiança daqueles que procuram justiça no Direito. É a razão principal
por que na República Federal um número desproporcional de julgamentos da
primeira instância eram impugnados pela via recursal (BENDER; STRECKER,
1978, p. 554). O contraditório deve ser desenvolvido em todo o iter processual, em
relação tanto às atividades das partes quanto às atividades judiciais, de modo que “o
exercício de poderes oficiosos constitua expressão de um princípio de colaboração e
não de autoridade no processo” (tradução livre)6 (CIVININI, 1999, p. 6).
Mostrava-se a necessidade de se aprofundar no estudo e implementação dos
direitos fundamentais processuais em nosso país, notadamente, do contraditório. Seja pela
notória tendência de reforço e diversificação dos papéis da Jurisdição após a Constituição de
1988, seja pela necessidade de se adotar uma nova dimensão no processo constitucional.
Essas novas perspectivas no direito pátrio ofertavam um contraponto ao
discurso socializador (que remonta o final do Sec. XIX) que ainda mantinha a crença que
somente com o reforço do protagonismo e ativismo judicial (este, em matriz institucional, pós
5 No original: “[...] una questione potenzialmente idonea a definire la controversia”.
6 No original: “[...] l’esercizio dei poteri ufficiosi costituisca espressione di un principio di collaborazione e non
di autorità nel processo”.
4
segunda-guerra) conseguiríamos contornar os novos grandes desafios descortinados pela
ampliação exponencial da garantia de acesso à justiça, com o decorrente aumento brutal da
quantidade de litígios.
Claro que ao se cogitar da aplicação do contraditório há de se perceber a
necessidade de sua adequação e efetivação partindo das tipologias processuais e de
litigiosidade, de modo a analisar o princípio a partir de sua adaptação coerente e legítima.
Assim, deve se pensar na interpretação do contraditório como pressuposto de
base para o rompimento da abordagem reducionista das novas litigiosidades, pois, como já se
teve oportunidade de tematizar em outras oportunidades,7 o Brasil, e os tradicionais sistemas
de civil law, vêm vivenciando um movimento de convergência com o common law que não
pode mais ser considerado aparente,8 devido a colocação de cada vez maior destaque ao uso
da jurisprudência como fundamento de prolação de decisões pelo Judiciário pátrio e da
própria prática advocatícia que se vale dos julgados como importante ferramenta
argumentativa de persuasão (ou convencimento).
Há de se perceber que após a efetiva falência do modelo processual reformista
imposto, entre nós, após a década de 1990, que apostou, em apertada síntese, prioritariamente,
em reformas legislativas (e não em uma abordagem panorâmica e multidimensional,
nominada de “processualismo constitucional democrático”)9 (e no ideal socializador de busca
de reforço tão só do protagonismo judicial),10
que alguns vêm a alguns anos, em face da
explosão exponencial de demandas e dos altos índices de ‘congestionamento judicial’,
defendendo um peculiar uso dos precedentes (vistos como padrões decisórios) para
dimensionar a litigiosidade repetitiva.
O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso,
sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua
7 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do
judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o
common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, p. 3, São Paulo: Ed.
RT, nov. 2010. NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas
para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de
padronização decisória. Revista de Processo, vol. 199, p. 38, São Paulo: Ed. RT, set. 2011. 8 HONDIUS, Ewoud. Precedent an the law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of
Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelles, Bruylant, 2007. 9 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a
litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização
decisória. Cit. p. 38 10
Para uma análise mais consistente dos equívocos do movimento reformista brasileiro conferir: NUNES, Dierle
José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas processuais. Curitiba:
Juruá, 2008.
5
formação,11
mediante a técnica de causa piloto,12
o Tribunal Superior (e existe a mesma
tendência de ampliação dessa padronização nos juízos de segundo grau no CPC Projetado)
formaria um julgado (interpretado por nós como precedente) que deveria ser aplicado a
todos os casos “idênticos”.
Pode-se notar a intenção de estender o âmbito de aplicabilidade das decisões
judiciais, fazendo com que o Judiciário no menor número de vezes possível tenha que se
aprofundar na análise de questões similares, tornando-se mais eficiente quantitativamente
através do estabelecimento de padrões a serem seguidos nos casos idênticos subsequentes, sob
o argumento de preservação da isonomia, da celeridade, da estabilidade e da previsibilidade
do sistema.
Neste particular, o movimento reformista brasileiro convergiria para alguns, de
modo peculiar, com o sistema do common law, ao adotar julgados que devem ser seguidos nas
decisões futuras – o que configuraria uma peculiar forma de precedente judicial, com
diferentes graus de força vinculante.
Falta, assim, aos nossos Tribunais uma formulação mais robusta sobre o papel
dos “precedentes”.13
Se a proposta é que eles sirvam para indicar aos órgãos judiciários qual o
entendimento “correto”, deve-se atentar que o uso de um precedente apenas pode se dar
fazendo-se comparação entre os casos – entre as hipóteses fáticas –, de forma que se possa
aplicar o caso anterior ao novo.
Parece prevalecer um modelo de aplicação de precedentes como regras de
Shauer, tendendo ao uso de julgados (e súmulas), pelos juízes de primeiro e segundo grau,
com redução de sua responsabilidade, mas com aceitação de uma busca de eficiência que
permite decisões sub-ótimas.
Quando explica o critério de eficiência na aplicação de precedentes de Shauer,
Maues aduz que:
[…] quando um agente decide de acordo com regras, ele se encontra
parcialmente livre da responsabilidade de analisar cada característica
11
Cf. THEODORO JR. Humberto, NUNES, Dierle. Princípio do contraditório: tendências de mudança de sua
aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. , v. 28, p. 177 - 206, 2009. 12
“Trata-se de uma técnica conhecida em diversos países, que a denominam de ‘caso-piloto, ‘caso-teste’ ou
‘processo-mestre’. Consiste o mecanismo em permitir que, entre várias demandas idênticas, seja escolhida uma
só, a ser decidida pelo tribunal, aplicando-se a sentença aos demais processos, que haviam ficado suspensos.
Esse método é utilizado pela Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega e Espanha (nesta, só para o contencioso
administrativo)’.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. “O tratamento dos processos repetitivos”. JAYME, Fernando
Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord). Processo civil: novas tendências:
estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 5 13
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas. Revista
do Tribunal Superior do Trabalho. V. 79, n.2, abr.-jun./ 2013. p. 118-144.
6
relevante do caso, concentrando sua atenção somente na presença ou
ausência de alguns fatores. O resultado seria uma maior eficiência do
processo de tomada de decisão, pois os agentes estariam livres para cumprir
outras responsabilidades e não haveria duplicação de esforços dentro do
mesmo ambiente decisório em eliminar suas vantagens. No que se refere ao
argumento da confiança, seu valor depende da medida em que um ambiente
decisório tolera resultados sub-ótimos, a fim de que os afetados pelas
decisões sejam capazes de planejar certos aspectos de sua vida. Essa
tolerância tende a diminuir quanto mais relevantes forem os fatos
suprimidos, ou menos relevantes, os fatos destacados no predicado da regra,
e também quanto mais a decisão estiver abaixo da melhor decisão que seria
tomada se todos os fatores fossem levados em conta. Assim, decisões erradas
podem aca- bar tornando mais difícil confiar em quem as toma. Quanto à
busca de eficiência, Schauer considera que seu valor depende das outras
destinações que podem ser dadas aos recursos decisórios economizados, e se
for um uso valioso pode tolerar um certo número de resultados sub-ótimos.
Portanto, quando os recursos decisórios não são escassos ou há poucas
alternativas atraentes para seu uso, é menos provável que os benefícios da
eficiência tenham mais peso que os custos necessariamente envolvidos em
qualquer processo de tomada de decisão que não esteja apto para buscar o
resultado ótimo em cada situação.14
Porém, ao invés de se promover a imposição de uma concepção de acesso à
justiça democrático,15
continuamos a dedicar maior vigor na busca de alterações legislativas e,
agora, num CPC Projetado; o qual recentemente teve aprovado seu relatório na Comissão
Especial da Câmara dos Deputados em 16 de julho de 2013 (Relatório do Dep. Paulo
Barradas, Presidência do Dep. Fábio Trad) e início de discussão no plenário no dia 27 de
agosto, cinco sessões de discussão e previsão de votação em outubro de 2013.
Felizmente, o mesmo (CPC projetado) desde a redação do anteprojeto
consagrou a concepção dinâmica do Contraditório no seu art. 10,16
com a confessada
adoção de um modelo comparticipativo ou cooperativo de processo.
No entanto, muitos ainda não perceberam o impacto que tal concepção gerará
em termos de avanço no trato da litigiosidade tradicional (individual e patrimonial) e nas
novas litigiosidades (com destaque para a repetitiva).
14
MAUÉS, Antônio Moreira. Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV,
São Paulo 8(2) | p. 611 | JUL-DEZ 2012.
15 NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democrático. Brasília: Gazeta Jurídica. 2013.
16 “Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de
ofício.”
7
Isto pois o dispositivo, consagrado na parte geral do Código Projetado,
conjuntamente com o dispositivo que impõe uma fundamentação racional legítima (art.
49917
), servirão de pressupostos para a interpretação de todas as técnicas processuais; seja no
trato da técnica cognitiva de primeiro grau, seja na formação dos precedentes (padrões
decisórios), que vêm sendo usados para o trato da litigiosidade repetitiva.
Em relação a litigiosidade individual, em outros textos,18
mostrou-se que tal
concepção de contraditório é extremamente bem vinda, desde que adotada uma metódica fase
de preparação do procedimento que filtre todas as questões a serem debatidas e provadas na
fase de debates. Contraditório dinâmico e fase preparatória metódica da cognição devem ser
analisados em nexo instrumental; um depende do outro para evitar que o juiz tenha que
promover aberturas de vistas constantes, em face da carência de filtragem concentrada das
questões. Mas para uma percepção melhor remeto os leitores aos trabalhos antigos.
Aqui interessa o trato, mesmo que perfunctório, do impacto do contraditório
dinâmico na formação dos precedentes.
Já se vem criticando o modo superficial e romântico como a técnica de
precedentes vem sendo utilizada pelos tribunais pátrios; sejam os superiores na formação,
sejam os de segunda grau, os aplicando, de inexplicável modo mecânico.
Ocorre que com a adoção normativa do contraditório dinâmico será
impensável pensar que um julgado de um tribunal (superior ou de segundo grau) pelo simples
17
“Art. 499. São elementos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a
identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências
havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de
direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º
Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I –
se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a
questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua
incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não
enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo
julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir
enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o
órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada. § 3º A decisão judicial
deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da
boa-fé. 18
NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85,
Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle José Coelho, THEODORO JR, Humberto. Princípio do contraditório:
tendências de mudança de sua aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. v.28, p.177 - 206,
2009. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas
processuais. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle; NASCIMENTO, Renata Gomes. A fase preliminar da
cognição e sua insuficiência no projeto de lei do Senado n. 166/2010 de um novo Código de processo civil
brasileiro. in. BARROS, Flaviane Magalhães; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Reforma do Processo civil:
perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Editora fórum, 2010. p. 201-229
8
fato de ter passado pela técnica de causa piloto, vá ter o condão de gerar um padrão decisório
hábil a obter alto teor persuasivo (ou mesmo efeitos vinculantes) se não tiver promovido uma
análise extenuante de todos os argumentos relevantes na discussão do caso.
No entanto, para a demonstração da necessidade de releitura dos sistema de
formação dos precedentes, e da necessidade de se discutir a força do contraditório de modo
mais claro, é absolutamente imperativa a análise prévia das premissas do movimento de
convergência.
2. Algumas premissas da percepção da convergência de sistemas...
Os sistemas jurídicos contemporâneos, devido às suas complexidades, não se
apresentam mais como modelos “puros” de aplicação, podendo-se perceber uma tendência
mundial de convergência entre os sistemas de Common Law e Civil Law. Nesse sentido,
países de tradição do Civil Law, como o Brasil, vêm adotando de modo mais denso em sua
prática jurídica, e mesmo no desenho institucional de seus sistemas judiciários, um modelo de
aplicação de precedentes como fonte do Direito.
É fato indubitável que a aplicação de precedentes é uma ferramenta essencial
para a efetivação do princípio da segurança jurídica, bem como do princípio constitucional a
fundamentação das decisões judiciais19
(art. 93, IX, CRFB/88), uniformizando a aplicação do
direito e contribuindo para a celeridade e eficiência do sistema judicial. Isso porque o
precedente facilita o julgamento de demandas repetitivas e, geralmente, implementa o
princípio da igualdade formal entre os jurisdicionados20
, que, ao promoverem demandas,
passariam a contar com respostas uniformes por parte do Judiciário.
19
“[...] há uma regra constitucional segundo a qual ‘todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões’. Tal norma expressamente declara nulas todas as decisões
judiciais não propriamente “fundadas” em razões explicitamente formuladas, o que estabelece um dever para
os Tribunais Superiores em revertê-las.” [tradução livre do inglês: “[...] there is a constitutional rule according
to which ‘all judgements shall be public and all decisions properly justified’. Such norm expressely renders
void all judicial decisions not properly ‘grounded’ on explicitly formulated reasons, establishing a duty for the
Higher Courts to reverse them.”] Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil.
In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy
of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.290. 20
“[...] o princípio da justiça formal (exigência de igualdade de tratamento) exige que a decisão seja tomada
olhando-se para o futuro (forward-looking) e para o passado (backward-looking) [MacCormick 1978-a: 75;
MacCormick 2005: 148]: uma decisão jurídica justificável onde surjam disputas sobre questões de direito deve
estar fundamentada em regra jurídica que não seja nem ad hoc nem ad hominem [MacCormick 2005: 148].”
(BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras
Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p.45)
9
No entanto, é notável que a experiência de uso de precedentes no sistema
judicial brasileiro tem se revelado acentuadamente diferente daquela dos países de tradição do
Common Law. Tanto na doutrina, quanto na prática jurídica, percebe-se uma enorme confusão
conceitual no processo argumentativo ao se defender a aplicação de “súmulas”, “súmulas
vinculantes”, “jurisprudência”, “julgados” e “precedentes”. Nesse processo não é raro que os
técnicos defendam como “vinculante” jurisprudência preventiva, de modo que o precedente é
criado e aplicado ao mesmo tempo.
E não apenas as partes sofrem dessa confusão, mas os próprios juízes que
aplicam precedentes em suas decisões: falta a habilidade de manejo do distinguishing e do
overruling e no respeito e continuidade às decisões proferidas pelas Cortes. Nesse contexto,
não é raro que um mesmo órgão jurisdicional profira decisões contraditórias sem tomar o
cuidado de harmonizá-las com seu passado institucional.
Surgem conflitos sincrônicos (syncronous), que ocorrem quando a mesma
matéria é decidida de modo diferente e concomitantemente ou em pequenos espaços
temporais, e conflitos diacrônicos (diachronic), quando o mesmo tema é decidido de modo
diverso ao longo do tempo.21
Ambos dificultam a verificação da efetiva posição do Tribunal
sobre alguma temática, gerando-se a ausência de uma estabilidade decisória horizontal
(tribunal respeitar suas decisões) e dificuldade de obtenção de uma estabilidade vertical
(juízes e tribunais funcionalmente inferiores respeitarem).
Chega-se ao absurdo do negar-se por completo o passado de análise do tema no
Tribunal, atribuindo uma força maior às decisões mais recentes, quando somente a busca do
leading case e a reconstrução da cadeia de julgados, mediante um comparativo analítico,
permite a aplicação correta.
Observa-se que esse mal acomete os Tribunais Superiores, que carregam a
missão constitucional de uniformização da interpretação da Constituição e das leis federais.
Quanto à jurisdição de primeiro e segundo grau, o problema se torna ainda
maior, pois se os julgados das Cortes Superiores encontram-se conflitantes, fica aberto o
espaço para sua não aplicação por aqueles, ou para o surgimento de “entendimentos”
divergentes por essas instâncias inferiores, subutilizando a estrutura constitucional do
Judiciário brasileiro.
21
TARUFFO, Michele. Precedent in Italy. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the
XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant,
2007. p. 184.
10
Portanto, nota-se a necessidade de adoção de uma sólida teoria de precedentes,
para que o sistema judicial brasileiro possa gozar dos benefícios de previsibilidade, excelência
e qualidade na produção de decisões judiciais que países legatários da doutrina do stare
decisis gozam, minando problemas de insegurança jurídica e morosidade para os litigantes,
num contexto de amplo acesso à justiça democrático.
Ademais, é absolutamente necessária a mudança de nosso paradigma de
aplicação, que se preocupa pouco com as ratione decidendi (holding) e se contenta com a
aplicação quase mecânica de súmulas e ementas, que parcamente representam o julgado
utilizado como base.
3. A experiência do direito estrangeiro .... e algumas conexões com o sistema
pátrio...
Antes que se analise o contexto brasileiro, e de modo breve, as novas
interações com o contraditório, urge promover uma análise do direito estrangeiro, colocando
em evidência como a experiência estrangeira.
3.1. Precedente e a experiência angloamericana
Precedente, segundo Bustamante seria, de maneira ampla, qualquer decisão
pretérita que seja evocada por um juiz para justificar uma decisão posterior. Contudo, ele
destaca que, enquanto nos países de tradição de Civil Law, as razões dadas no precedente
são o elemento em que se foca a argumentação quando do uso do julgado, no caso do
Common Law a ênfase é dada na autoridade da Corte que a proferiu. Assim, o uso do
precedente na tradição inglesa dependeria diretamente da repetição dos fatos concretos que
se ligaram à decisão evocada, bem como da autoridade do juiz que a proferiu: essa autoridade
seria determinante para se decidir se o julgado contém uma ratio decidendi a ser
obrigatoriamente reproduzida em decisões futuras ou se goza apenas de força persuasiva
(argumentativa), sendo um mero dictum22
.
22
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the
Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.
Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.300-301.
11
Pontue-se que predomina um pressuposto positivista de que a decisão obtem
esta força por uma autorização de que o juiz possa produzir o direito. Aspecto, inclusive,
criticado (como em Dworkin)
Por ratio decidendi pode-se ter diversas concepções: i) compreendida como
norma geral que se vê afirmada como suficiente para decidir o caso num esquema de
subsunção, a concepção de ratio decidendi poderia se aproximar da construção da massima
italiana, ou da súmula brasileira; ii) compreendida como uma versão contextualizada da
norma geral que se liga aos fatos e aos argumentos que a enunciam para resolver o caso; iii)
compreendida como um argumento essencial da argumentação judicial, podendo ser um fato
ou uma norma23
. Nessas duas últimas concepções, entrevê-se diferentes teorias para a
compreensão do precedente na tradição britânica.
No sistema do Common Law inglês, o uso do precedente judicial com
autoridade para embasar futuras decisões judiciais deriva de uma prática jurídica (tradição
judicial) ou da autoridade pura ou essencial do agente público, o juiz (explicação
positivista)24
: “[...] a força vinculante do precedente está intrinsecamente conectada às
matérias jurídicas tratadas pela Corte que o decidiu e à sua relação com os fatos do caso.”25
.
É tradição judicial a aceitação de que o Parlamento, uma vez que legisle, pode
derrogar ou mudar o direito comum26
. Esse entendimento se desenvolveu sobretudo a partir
da segunda metade do séc. XIX, quando regras surgiram que reforçaram a autoridade
atribuída aos precedentes, conjuntamente com uma profunda reforma no sistema judiciário e
com a sistematização dos registros da atividade decisória27
.
Além disso, traço marcante do sistema processual inglês é que as partes não
buscam apenas provar os fatos alegados: é-lhes oposta a obrigação de evocar e provar o
direito, com as autoridades (legais, jurisprudenciais, costumeiras) que embasam a pretensão,
23
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the
Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.
Bruxelas: Bruylant, 2007. p.302. 24
POSTEMA, Gerald J.. Some Roots o four notion of precedent. In: GOLDSTEIN, L. (Ed.). Precedent in law.
Oxford: Clarendon, 1987. Pp.9-33. Apud: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:
HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of
Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.293. 25
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.36. 26
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.31. 27
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.37.
12
demonstrando que, seguida a linha argumentativa da parte, o conflito fático pode ser resolvido
a partir do direito demonstrado. O Juiz, a sua vez, não apenas determinará os fatos, mas
afirmará qual a resolução jurídica trazida pelas partes guarda pertinência para a resolução da
lide28
.
Nesse sentido, Whittaker afirma que a máxima do Civil Law, curia nouit legem
[ou da mihi facti dabo tibi ius], não se verifica verdadeira no processo judicial inglês29
, pois
há reflexos relevantes para a decisão per incuriam, ou seja, aquela em que o precedente
carrega uma decisão proferida com o desconhecimento judicial do estado evolutivo do direito
àquele tempo. Tal precedente carece de força vinculante, pois a Corte decidiu sem “saber” o
direito30
. A autoridade do precedente também pode ser restringida caso o juiz inove em
sua decisão trazendo argumentos que não foram defendidos pelas partes, não
submetidos, portanto, ao contraditório. Esse traço revela uma ativa participação das
partes inclusive na produção do precedente, sendo que a efetiva discussão das teses
jurídicas é elemento determinante para revestir o julgado de autoridade vinculante.
O que demandaria uma reflexão, entre nós, do papel das técnicas de
participação das partes e da utilização legítima dos amici curiae na formação dos
precedentes.
Além dessas considerações, há pelo menos duas classes de procedimentos
aceitos pela doutrina para determinar, dentro de um caso, quais de suas partes são vinculantes
e quais não são necessárias ou essenciais, procedimentos que conformam a chamada
“Doutrina do Precedente”. Primeiramente, deve-se separar qual parte do julgado é capaz de
vincular decisões futuras (ratio decidendi31
) e qual parte não é central, e portanto não
28
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras
Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p.45. 29
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.37-38. 30
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.38. 31
“A ratio decidendi de um caso, ou a base de uma decisão, pode ser definida como a proposição jurídica, ou as
proposições jurídicas, que são necessárias para a resolução do caso a partir dos fatos. Aqui, eu uso a expressão
neutra “proposição jurídica” para reconhecer que as vezes a ratio pode ser expressa como uma regra, como a
definição de um conceito jurídico (ou aspecto de um conceito jurídico), ou mesmo como uma asserção jurídica
mais ampla, que pode ser chamada de princípio.”. Tradução livre de: “A case’s ratio decidendi or grounds of
its decision may be defined as that proposition of law or those propositions of law which are necessary for the
disposal of the case on the facts. Here, I use the fairly neutral phrase ‘proposition of law’ so as to recognise that
sometime the ratio may be expressed as a ‘rule’, sometimes as a definition of a legal concept (or aspect of a
legal concept), and sometimes even a broader legal statement, worthy of being called a principle.”
(WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).
13
vinculante, apesar de gozar de força persuasiva (obter dictum)32
. Em segundo lugar, a
vinculatividade depende da autoridade da Corte que profere o precedente em questão, sendo
mandatória a observância do precedente vertical (Cortes superiores vinculam as inferiores) e
existindo inclusive o precedente horizontal, até em última instância (a Corte dos Lordes se
vincula aos próprios precedentes)33
.
Finalmente, há uma notável preocupação das Cortes com os fatos concretos do
caso, buscando-se relacionar a solução encontrada com as especificidades do litígio, de modo
a se produzir um repertório bem especificado para o corpus do stare decisis: “[...] sua força
vinculante depende de sua ligação com os fatos da decisão na qual eles foram declarados e em
sua ligação com os fatos da decisão para a qual se argumenta que o precedente seja
aplicável.”34
. De outro modo, o engessamento do sistema e a impossibilidade da evolução dos
debates judiciais se faria inevitável.
O grande dilema dos juristas ingleses, segundo Whittaker é justamente o
equilíbrio entre um uso judicial do precedente que potencialmente pode engessar toda
atividade judicial futura, com a possibilidade de novas decisões sobre assuntos já
anteriormente tratados e deliberados: “[...] os juízes procuram resolver a tensão entre as
virtudes da coerência e justiça proporcionadas pelo stare decisis e a necessidade de se adaptar
o direito para garantir decisões acertadas para os fatos que constantemente mudam perante
si.”35
.
A experiência norte-americana oferece uma realidade parecida com a
inglesa, apesar de não ser comum uma teorização profunda acerca do precedente. De maneira
direta, ele é compreendido como a aplicação da Constituição ou da lei ao caso presente tal
qual foi feito anteriormente quanto a casos semelhantes. Essa reprodução e continuidade
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.41.) 32
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.40. 33
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.42-43. 34
Tradução livre de: “[...] their binding forcedepends on their relationship to the facts of the decision in which
they were declared ando n their relationship to the facts of the decision in which they are subsequently claimed
to apply.” (WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.42.) 35
Tradução livre de: “[...] the judges seek to resolve the tension between the virtues of consistency and fairness
which lie behind stare decisis and the need to adapt the law to do justice to the evolving facts before them.”
(WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.73.)
14
guarda importância prática na familiarização do cidadão com a legislação, observando-se em
casos concretos as implicações de enunciados jurídicos abstratos36
.
O precedente também pode ser compreendido como uma necessidade lógica,
pela qual o juiz torna o seu trabalho ao mesmo tempo coerente e contínuo, o que dá
previsibilidade às decisões da Corte, fazendo o exercício do Poder político aceitável: um só
direito, tanto no texto legal quanto na prática judicial37
. Nesse sentido, não poderia haver
finalidade ou estabilidade no sistema judiciário, caso a manutenção de entendimentos
passados fosse deixada de lado38
.
Tal qual a tradição inglesa, o precedente existe tanto em sua modalidade
vertical (com Cortes superiores no topo da organização judiciária, proferindo decisões que
vinculam as Cortes inferiores) quanto horizontal (pelo qual as Cortes que proferem as
decisões sentem-se obrigadas a manter a coerência de sua orientação em casos futuros,
necessariamente considerando tais decisões em seus processos argumentativos). Como reação
aos perigos do engessamento da doutrina do stare decisis, é um traço comum na prática
judiciária que os juízes enunciem em suas decisões o mínimo possível de fatos relevantes, de
modo a não minar a atividade judicial futura, abrindo-se amplo espaço para a prática do
distinguishing, pela qual, presentes outros suportes fáticos, não obstante a semelhança de
situações, uma decisão distinta pode ser proferida, afastando-se a imposição do stare decisis
ao novo caso39
.
Além disso, pode se verificar que quando se conclui que as razões dadas no
precedente encontram-se inadaptadas ou mal justificadas, é aberta a possibilidade do
overruling, desde que utilizado de maneira parcimoniosa, de modo a não colocar em risco a
confiança do público na atividade judicial40
. A doutrina do stare decisis, nesses termos, não é
inexorável na prática judiciária norte-americana, havendo espaço para a superação do
36
SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.112 e 132. 37
FRIED, Charles. Saying What the Law Is: The Constitution in the Supreme Court. Cambridge: Harvard
University Press, 2004. p.5. 38
SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p. 133. 39
SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.112. 40
SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.134.
15
precedente (citando-se aqui Brown v. Board of Education, no qual ocorreu overruling de toda
uma série de precedentes)41
.
3.2. Precedente versus jurisprudência
Segundo Taruffo, há que se fazer uma distinção entre precedente e
jurisprudência:
Quando se fala em precedente se faz normalmente referência a uma
decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da
jurisprudência se faz normalmente referência a uma pluralidade,
frequentemente bastante ampla relativa a vários e diversos casos
concretos [...] em regra a decisão que se assume como precedente é
uma só, de modo que fica fácil identificar qual decisão faz precedente.
Ao contrário nos sistemas nos quais se alude à jurisprudência, se faz
referência normalmente a muitas decisões: às vezes são dúzias até
mesmo centenas.42
Ainda, existem problemas decorrentes da dificuldade de estabelecer qual
decisão seja verdadeiramente relevante ou de decidir quantas decisões são necessárias para
que se possa dizer que existe jurisprudência firmada e pacífica a respeito de determinada
interpretação da norma43
.
3.3. Diferentes graus de vinculatividade
No caso brasileiro, o instituto das súmulas revelam uma tendência muito
maior a generalizações e à procura por normas gerais afirmadas nos julgados do que a prática
inglesa de valorização dos fatos concretos e separação metódica entre ratio e dictum.
Contudo, é de se assinalar que o Supremo Tribunal Federal não é estranho a esse modus
operandi, extremamente útil em se tratando das dúvidas que podem surgir da tradicional
estrutura das decisões judiciais brasileiras – fatos, fundamentos, dispositivo –, já tendo
41
SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud
(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law
Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.123. 42
TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, pp.142-143, 2010. 43
TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, pp.142-143, 2010.
16
afirmado a doutrina dos fundamentos relevantes44
do julgado, que conformam o precedente e
são vinculantes45
.
Bustamante propõe, finalmente, que no sistema brasileiro há diferentes níveis
de peso que se pode dar ao precedente. Nos casos de inconstitucionalidade declarada pelo
Supremo Tribunal Federal, tratar-se-ia de precedentes vinculantes num sentido forte, pois
outros Tribunais e o Executivo – mas não o Legislativo – estariam impedidos de aplicar a lei
ou ato normativo declarado inconstitucional, gozando o ofendido do remédio da Reclamação,
para dar imediata efetividade à deliberação do STF.
Já quanto aos demais precedentes, chamados vinculantes num sentido fraco,
haveria diferentes pesos, de acordo com a conformação de cada julgado. Bustamante enumera
algumas variáveis que poderiam ser consideradas no processo de argumentação por
precedentes, no caso dos julgados vinculantes num sentido fraco, na tradição brasileira:
i) a existência de uma Súmula das Cortes Superiores sobre o assunto;
ii) a existência de “jurisprudência reiterada” da Corte acerca da matéria;
iii) o ônus argumentativo do juiz ordinário para dissentir de um julgado de
Corte Superior ou do Tribunal a que se filia;
iv) o grau de aderência de um precedente perante outras Cortes;
44
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the
Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.
Bruxelas: Bruylant, 2007. p.290. 45
RECLAMAÇÃO. CABIMENTO. AFRONTA À DECISÃO PROFERIDA NA ADI 1662-SP. SEQÜESTRO
DE VERBAS PÚBLICAS. PRECATÓRIO. VENCIMENTO DO PRAZO PARA PAGAMENTO. EMENDA
CONSTITUCIONAL 30/00. PARÁGRAFO 2º DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1.
Preliminar. Cabimento. Admissibilidade da reclamação contra qualquer ato, administrativo ou judicial, que
desafie a exegese constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado
de constitucionalidade, ainda que a ofensa se dê de forma oblíqua. 2. Ordem de seqüestro deferida em razão do
vencimento do prazo para pagamento de precatório alimentar, com base nas modificações introduzidas pela
Emenda Constitucional 30/2000. Decisão tida por violada - ADI 1662-SP, Maurício Corrêa, DJ de 19/09/2003:
Prejudicialidade da ação rejeitada, tendo em vista que a superveniência da EC 30/00 não provocou alteração
substancial na regra prevista no § 2º do artigo 100 da Constituição Federal. 3. Entendimento de que a única
situação suficiente para motivar o seqüestro de verbas públicas destinadas à satisfação de dívidas judiciais
alimentares é a relacionada à ocorrência de preterição da ordem de precedência, a essa não se equiparando o
vencimento do prazo de pagamento ou a não-inclusão orçamentária. 4. Ausente a existência de preterição, que
autorize o seqüestro, revela-se evidente a violação ao conteúdo essencial do acórdão proferido na
mencionada ação direta, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em
substância, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação.
Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a decisão e
dos princípios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos resultantes da interpretação da
Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a
preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. 5. Mérito. Vencimento do prazo para pagamento
de precatório. Circunstância insuficiente para legitimar a determinação de seqüestro. Contrariedade à
autoridade da decisão proferida na ADI 1662. Reclamação admitida e julgada procedente. (grifou-se) (STF,
Rcl n. 1987, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 21/04/2004)
17
v) o grau de aderência a um precedente perante as câmaras ou turmas do
Tribunal;
vi) precedentes emitidos por Cortes especializadas (Justiça Eleitoral, Militar,
do Trabalho) não vinculariam a Justiça Comum e vice-versa;
vii) no caso de conflito entre precedentes, ambos teriam apenas força
persuasiva, mas não vinculante;
viii) decisões isoladas teriam mero poder persuasivo, dependendo diretamente
de sua qualidade;
ix) a autoridade, sozinha, não deveria justificar precedentes, pois justificação
deficiente desqualificaria a decisão (art. 93, IX, CRFB/88)46
;
x) decisões que se referem a normas específicas em suas razões tornam-se mais
consolidadas e tornam mais difícil o aparecimento de exceções ao decidido.
Esse conjunto de fatores evidencia a complexidade do uso de precedentes na
argumentação jurídica no caso brasileiro, não obstante sua utilidade e necessidade, de vista
dos fatores institucionais que reclamam sua aplicação. Conforme se verá a seguir, sua
introdução no sistema brasileiro, via legal e constitucional, fomentou uma profunda alteração
da tradição jurídica pátria, com inerentes dificuldades que acompanharam tais alterações.
4. Convergência entre common law e civil law no sistema jurídico brasileiro:
aplicação de precedentes
Até o fim do segundo pós-guerra prevalecia uma noção positivista das fontes
do Direito, em que a lei era uma diretriz suprema, de modo que cabia ao julgador apenas
aplicá-la sistemática e dogmaticamente. Com o fim da segunda guerra, emergiu uma nova
doutrina pós-positivista que afirma a existência de valores supralegais, que superaram a mera
aplicação fria da letra da lei, de modo que foi suplantada a concepção de que “o legislativo
dita o que será reproduzido pelo julgador”, afirmando-se desse modo a discricionariedade
judicial na aplicação da lei.
Assim, após o surgimento de tal doutrina, observou-se no Brasil uma constante
valorização dos julgados dos Tribunais como elemento persuasivo nas decisões judiciais.
46
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the
Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.
Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.305-306.
18
A partir década de 1960 adotou-se o modelo de súmulas (Enunciados de
Súmula da Jurisprudência Dominante) no STF que, tal como as atuais, eram pequenos
enunciados de matérias recorrentemente julgadas pelo Tribunal.
Com a elaboração do Código de Processo Civil de 1973, introduziu-se o
Capítulo I, do Título IX (arts. 476 a 479 do CPC), que dispõe sobre a Uniformização da
Jurisprudência, mantendo-se, em verdade, a alteração feita na década de 1950 no CPC de
1939, dispondo sobre a mesma “uniformização de jurisprudência”. Trata-se da uniformização
horizontal, produzida dentro dos Tribunais, com fins institucionais, de criação de uma
identidade de julgamento dentro do mesmo órgão jurisdicional colegiado. Dos julgamentos
dirimentes da divergência resultarão súmulas, indicativas da jurisprudência prevalecente, com
conteúdo persuasivo.
Com a Constituição de 1988 esse movimento inicialmente legal tomou força.
Princípios constitucionais como o da igualdade formal (art. 5º, caput) e o da fundamentação
racional das decisões judiciais (art. 93, IX) foram determinantes para dar dignidade
constitucional à necessidade de coerência e continuidade como atributos da atividade
judicante. Como bem pontua Ricardo Marcelo Fonseca:
Essa mudança histórica de rumos obviamente afeta profundamente o sistema
das fontes formais. Na medida em que a lei perde sua aura de diretriz
soberana e absoluta e deve ser confrontada em todos os momentos com a
axiologia constitucional, o papel da jurisprudência – e sobretudo das Cortes
Constitucionais – ganha um novo relevo. A última palavra sobre a validade
da lei diante da Constituição ocorrerá nos tribunais, e não mais nos
Parlamentos.47
Com a criação do STJ, houve um apelo pela uniformização da interpretação da
legislação federal, principalmente a partir da definição na Constituição de 1988 da
competência do Tribunal para dirimir dissídio pretoriano, além da possibilidade de edição de
súmulas persuasivas.
Outra alteração técnica considerável foi a introdução do art. 55748
do CPC com
a Lei n. 9.756/98 que permite o julgamento através da jurisprudência, o que possibilitou a
inadmissão de recursos baseada em súmula ou mesmo em jurisprudência dominante de
Tribunal Superior.
47
Fonseca, Ricardo Marcelo.A jurisprudência e o sistema das fontes no Brasil: uma visão histórico-jurídica.
Revista Seqüência, no 58, p. 23-34, jul. 2009. 48
Art. 557: O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou
em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal
Federal, ou de Tribunal Superior
19
No entanto, a modificação mais polêmica introduzida até então veio com a
Emenda Constitucional n. 45/2004 que introduziu a súmula vinculante. Após discussão
extensa, buscou-se consolidar a aplicação do entendimento jurisprudencial como critério de
julgamento, de modo que a jurisprudência perdesse o caráter meramente persuasivo e passasse
a ter caráter de aplicação obrigatória, vinculante em todos os Tribunais brasileiros.
A mesma Emenda Constitucional introduziu o §3º, ao art. 103-A da
Constituição da República de 1988, prevendo o recurso à Reclamação para sancionar o
descumprimento judicial ou administrativo de súmula vinculante49
.
Outra reforma processual relevante foi a introdução dos arts. 543-A e 543-B
com a Lei 11.418/2006 que determinou a demonstração de Repercussão Geral como requisito
de admissibilidade recursal perante o STF. Tal requisito, além de filtrar o recurso por sua
transcendência jurídica, política e social, é capaz de sobrestar todos os demais recursos
extraordinários na origem que possuam “a mesma temática” do recurso paradigma que será
julgado com efeitos pan-processuais sobre os demais,
Ainda houve a introdução do art. 543-C pela Lei n. 11.672/2008 que introduziu
a chamada “Técnica do Julgamento do Recurso Repetitivo” para o STJ. Tal técnica, ao
contrário do que ocorre no STF, não é um requisito de admissibilidade, porém, do mesmo
modo haverá o pinçamento de apenas um recurso paradigma pelo Presidente do Tribunal de
Origem e os demais ficaram sobrestados, de modo que o julgamento desse recurso escolhido
promoverá a uniformização jurisprudencial para todos aqueles que guardam a mesma
temática, segundo critérios subjetivos do Presidente do Tribunal de Origem.
Também, como exemplo pitoresco da força que a aplicação jurisprudencial
adquiriu no atual sistema jurídico brasileiro é o PARECER PGFN/CRJ/Nº 492 /2010,
publicado em março de 2011. Tal parecer trata de diretrizes direcionadas aos procuradores da
Fazenda Pública para evitar a interposição de recursos infrutíferos, quando houver
jurisprudência dos tribunais superiores a respeito. Ou seja, há uma orientação interna da
Procuradoria da Fazenda sobre como observar e eventualmente recorrer extraordinariamente,
de vista dos precedentes dos Tribunais Superiores. Veja-se:
Dentre os dispositivos legais veiculadores de mecanismos processuais que,
ao reforçar a importância dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais
Superiores, pretendem atingir as finalidades mais acima elencadas, podem
49
“Art. 103-A [...]
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar,
caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou
cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula,
conforme o caso.”
20
ser citados o art. 475, §3º (inexistência de remessa necessária quando a
sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em
Súmula de Tribunal Superior), o art. 518, §1º (Súmula “impeditiva de
recursos”), o art. 557 (inadmissão monocrática de recurso contrário à súmula
ou à jurisprudência dominante do STF ou do STJ) e o art. 557,
§1º(provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou
jurisprudência dominante do STF ou do STJ), todos do CPC e, por fim, o
art. 103-A da CF/88 (Súmula Vinculante), introduzido pela Emenda
Constitucional n. 45, de 30 de novembro de 2004 (Emenda da “Reforma do
Judiciário”).50
(grifou-se)
5. Críticas ao atual modelo de aplicação jurisprudencial
Como visto anteriormente, a introdução do julgamento por precedentes na
tradição brasileira ganhou força posteriormente a Emenda Constitucional n.45/2004 que
trouxe a instituição de súmulas vinculantes do STF. No entanto, há um grande problema na
aplicação dessas súmulas, visto que o julgamento que nelas se baseia geralmente é
desconectado de seu acórdão paradigma e, às vezes, pela necessária aplicação de direitos
fundamentais, induz-se o seu não seguimento. 51
É dizer: aplica-se simplesmente o enunciado geral e abstrato, resumido em
poucas palavras como regra jurídica de aplicação para qualquer caso que se afigure pertinente.
Conforme visto, as súmulas possuem conteúdo específico traduzido em enunciações gerais, de
modo que, pela aplicação equivocada, se descolam dos acórdãos-paradigma que as originam,
pois seu breve texto é incapaz de traduzir os fatos e fundamentos discutidos na decisão
precursora, de modo que a aplicação dessa regra universalizada não se funda na analogia dos
fatos, mas sobre uma regra geral.52
Aplica-se meramente a regra jurídica sem identidade dos fatos, pois os fatos
não foram sequer analisados por impedimento de competência dos Tribunais Superiores.
Desse modo, os acórdãos são elaborados para descobrir qual é o princípio de direito, uma vez
que o que se procura é apenas a regra de direito abstrata para aplicar no caso concreto sem
individualização concreta dos fatos que foram objeto da decisão53
.
Nesse sentido, tal qual percebido na tradição inglesa, é um desafio não
engessar a atividade judicial presente a partir do stare decisis proporcionado por decisões
50
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. PARECER PGFN/CRJ/Nº 492 /2010. Disponível em:
<http://www.pge.sp.gov.br/blog/PGFN%20PARECER%20No%20492-2010.pdf>. Acesso em: 10/01/2013. 51
MAUÉS, Antônio Moreira. Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV,
São Paulo 8(2) | p. 588- 590 | JUL-DEZ 2012.
52 TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, p.143, 2010.
53 TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, p.144, 2010.
21
vinculantes pretéritas. Se tais decisões gozam de efeitos imediatos e de ação constitucional
com a dignidade da Reclamação, não se pode passar ao largo dos fatos e do direito que a
produziram, sob pena de uma miríade de situações fáticas, não tratadas pelos precedentes que
originaram o “precedente” (ordinariamente aplicado pela comparação com uma ementa ou
súmula), virem a ser nele abarcados por generalização e assim passarem a ser regrados. Trata-
se de evidente lesão à segurança jurídica, além de extrapolação de competência da parte do
STF quando se presta a semelhante papel.
Outro elemento problemático é a chamada uniformização horizontal, na qual
o Regimento Interno de cada Tribunal determina o procedimento para a produção de súmulas.
Não obstante o esforço de uniformização dentro de um mesmo Tribunal, com fins de
formação de um padrão decisório institucional, nota-se ainda um grande número de
divergências dentro dos sub-órgãos dos Tribunais, de forma que, na prática, para a
uniformização de decisões, são necessários anos e um enorme número de decisões a respeito
do mesmo caso, antes que um Tribunal tome a iniciativa de uniformizar, via súmula, a
questão jurídica repetidamente litigada54
. E mesmo com a produção da súmula, não há
vinculação entre os julgamentos posteriores e aquele incidente de uniformização resolvido,
sendo que o próprio Tribunal muitas vezes não obedece a uniformização que promoveu55
.
Ainda, um dos maiores problemas enfrentados é a inexistência, em certos
casos, da possibilidade de superação do precedente (overruling) e de distinção do caso
(distinguishing).
Nos casos de Súmula impeditiva de recurso (art. 518, §1º, do CPC), inadmissão
monocrática de recurso contrário a súmula ou jurisprudência dominante do STF ou STJ (art.
557 do CPC) e provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou
jurisprudência dominante do STF ou STJ (art. 557 § 1), há mecanismo de distinção do
precedente, visto que existe recurso idôneo previsto no CPC para esses casos pelos quais se
leva à atenção de Tribunal hierarquicamente superior a possibilidade de não se tratar, naquele
caso, de hipótese de aplicação do precedente em questão.
54
No original: “Each Brazilian court has its own internal code of procedures (Regimento Interno). Literally all
those internal codes contais expres rules about the unification of the court’s jurisprudence. Nevertheless, there
is still large divergence among each court’s panels. Generally speaking, it takes many years and hundread of
identical cases for a court to unify its ruling on a particular legal question. In: BUSTAMANTE, Thomas da
Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth
Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007.
p.307. 55
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the
Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.
Bruxelas: Bruylant, 2007. p.310.
22
No entanto, quando se trata de Repercussão Geral e Técnica do Recurso
Repetitivo56
, não há nenhum mecanismo processual de superação ou distinção da aplicação
jurisprudencial, de modo que a parte que se entende lesada não dispõe de sucedâneos
recursais para defender seus direitos.
O que ocorre é que apenas um recurso escolhido pelo Presidente do Tribunal
de Origem, sem critérios objetivos e sem um procedimento adequado de escolha, será julgado
pelos Tribunais Superiores como um tema, como uma tese, sem análise fática ou mesmo
identificação ou descrição dos fatos ocorridos naquele recurso representativo da controvérsia.
Após, o resultado desse julgamento será aplicado mecanicamente a todos os recursos
sobrestados, sem sequer haver descrição das especificidades de cada caso, apenas aplicando-
lhes a “tese” que em teoria os torna idênticos ao recurso paradigma, massiva e
mecanicamente.
Novamente, percebe-se uma tendência a generalizações e elaboração de
“normas abstratas” que a priori têm o condão de dirimir uma questão jurídica controvertida e
repetida, mas que podem desembocar num engessamento da atividade judicial, trazendo
injustiça e inadequação para diversos casos, servindo a doutrina do stare decisis não mais
como instrumento de realização da igualdade formal (art. 5º, caput) e sim como um
desvirtuamento de uma potencialidade do Judiciário, que é a análise casuística dos fatos e
direitos envolvidos nas demandas que lhe são trazidas. Tais riscos estruturais, aliados a um
sistema judicial com um histórico de superutilização, morosidade, e baixa qualidade de
produção decisória é potencialmente um atalho para seu colapso. Julgamento de teses, ao
invés de julgamento de casos. Nesse sentido, Alexandre Bahia:
Quanto ao mecanismo de sobrestamento de alguns Recursos “idênticos”
enquanto alguns deles são apreciados pelo Tribunal (e depois a decisão destes
predetermina a sorte dos demais), apenas podemos manifestar nossa
perplexidade: na crença de que as questões em Direito podem ser tratadas de
forma “tão certa”, que se possa realmente dizer que as causas são idênticas; no
tratamento dos casos como standards, como temas, pois que as características
do caso e as pretensões que são levantadas em cada um são desconsideradas e
então um deles servirá para que tente sensibilizar o Tribunal da importância de
sua apreciação.57
56
A introdução dos artigos 543-A, 543-B e 543-C permitiram que fossem introduzidos mecanismos de
“filtragem” de Recurso Extraordinário e Especial, introduzindo a Repercussão Geral e a Técnica do Recurso
Repetitivo, de modo que o STF e o STJ julgam recursos “em bloco”. 57
BAHIA, Alexandre G. Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesses
público e privado. Curitiba:Juruá, 2009, p.293 a 295
23
Desse modo, para a parte cujo recurso foi sobrestado na origem não existe
nenhum recurso previsto no CPC que permita a distinção de seu caso, devendo a parte, ao
perceber o cerceamento de seu direito de ampla defesa, contraditório, bem como o direito à
individualidade de julgamento, se valer dos chamados sucedâneos recursais, que consistem no
uso de ações autônomas como se recurso fossem.
Porém tais sucedâneos mais uma vez instauram a insegurança jurídica, pois sua
aceitação depende do entendimento do Tribunal, ou na maioria das vezes, do entendimento
daquela específica Turma de julgamento a respeito de qual sucedâneo seria o mais adequado.
Atrai-se, finalmente, um ônus muito grande para a parte ao tentar, sem garantias de sucesso,
demonstrar a necessidade de se proceder ao distinguishing, ex post uma análise judicial
apressada e que, na visão da parte, falhou grandemente ao não perceber as diferenças que
permearam o caso em questão.
Nesse sentido, a necessidade de justificação judicial das decisões (art. 93, IX,
CRFB/88), e o recurso de embargos declaratórios, manejados com esse específico propósito,
podem se revelar ferramenta útil, desde o julgamento singular, até a última pronúncia
colegiada, para que as partes pontuem e forcem os julgadores a levar em consideração cada
ponto específico, de fato e de direito, que percebem não ter sido levado em conta na
decisão.
A preocupação judicial com o engessamento de sua atividade futura, que na
Inglaterra e Estados Unidos levam o juiz a se deter exaustivamente sobre os fatos específicos
do caso e a enunciar as teses jurídicas – trazidas pelas partes e discutidas em contraditório
– que se revelam coerentes e corretas, no Brasil deve ser, perante nossa estrutura processual
(tanto legal, quanto resultante da prática forense), uma preocupação constante das partes.
Assim, o distinguishing na estratégia processual deve ser pensado a cada decisão, desde o
início do processo, correndo-se o risco, caso tal não seja feito, de a parte se encontrar, em sede
de recurso extraordinário lato sensu, tolhida de recursos para demonstrar a particularidade de
seu caso, tentando demonstrar por sucedâneos recursais, sem segurança de serem ouvidas,
suas razões.
Quanto aos mecanismos de overruling, trata-se de uma das maiores
deficiências do Poder Judiciário brasileiro, visto que apenas raramente as partes trazem de
maneira contundente as decisões anteriores que terão de ser superadas, ou então em quase
nenhuma oportunidade o julgador considera, em sua decisão, as razões que levam-no a
superar o entendimento anteriormente tecido. Geralmente, a superação do precedente é feita
24
aleatória e tacitamente pelos próprios Tribunais que, ao invés de debaterem a questão da
superação de um julgado com a finalidade de estabelecer outro entendimento, simplesmente
julgam de modo diverso, desrespeitando de modo infundado o precedente anteriormente
adotado.
6. Algumas conexões dos precedentes com o contraditório: primeiros comentários
Delineado o panorama acima ofertado, resta, de modo breve, ofertar algumas
bases para a questão do contraditório.
Ao se perceber o movimento no Brasil para o dimensionamento da
litigiosidade repetitiva ingressa na pauta jurídica, como já dito, o modo como a jurisprudência
deve ser formada e aplicada; em especial, pelo necessário respeito ao processo constitucional
em sua formação.
Inclusive, esta é uma grande preocupação que vimos defendendo junto a
Comissão do CPC projetado na Câmara dos Deputados (com alguma repercussão no
substitutivo acerca da técnica de distinguishing). Nesse aspecto, o projeto busca ofertar
algumas premissas na formação e aplicação dos precedentes.58
58
Apesar de ser criticável a tentativa de uma metodologia, nos termos postos: “DO PRECEDENTE JUDICIAL -
Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável. Parágrafo único. Na forma e
segundo as condições fixadas no regimento interno, os tribunais devem editar enunciados correspondentes à
súmula da jurisprudência dominante. Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da
legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as
disposições seguintes devem ser observadas: I - os juízes e os tribunais seguirão a súmula vinculante, os
acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento
de recursos extraordinário e especial repetitivos; II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das
súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; III – não havendo enunciado
de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e os tribunais seguirão os precedentes: a) do plenário do
Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional; b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal
de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional; IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal
Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça ou do
Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem; V
– os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes
do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem. § 1o Na hipótese de alteração da sua jurisprudência
dominante, sumulada ou não, ou de seu precedente, os tribunais podem modular os efeitos da decisão que
supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos. § 2o A
mudança de entendimento sedimentado, que tenha ou não sido sumulado, observará a necessidade de
fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da
confiança e da isonomia. § 3o Nas hipóteses dos incisos II a V do caput deste artigo, a mudança de
entendimento sedimentado poderá realizar-se incidentalmente, no processo de julgamento de recurso ou de
causa de competência originária do tribunal, observado, sempre, o disposto no §1o deste artigo. §4o O efeito
previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos
membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado. § 5o Não possuem o efeito previsto
nos incisos do caput deste artigo: I - os fundamentos, ainda que presentes no acórdão, que não forem
imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em seu dispositivo; II - os fundamentos, ainda que
25
As discussões esposadas no CPC Projetado, que teve o relatório aprovado na
Câmara em 16 de julho de 2013, demonstram claramente a preocupação com a ausência de
“técnicas processuais constitucionalizadas” para a formação de nossos “precedentes”.
Isto pois com a percepção do contraditório como uma garantia de influência e
de não surpresa se vislumbra que sua aplicação não se resumiria a formação das decisões
unipessoais (monocráticas), mas ganharia maior destaque na prolação das decisões
colegiadas, com a necessária promoção de uma redefinição do modo de funcionamento dos
tribunais.
O “tradicional” modo de julgamento promovido pelos Ministros (e
desembargadores) que, de modo unipessoal, com suas assessorias, e sem diálogo e
contraditório pleno entre eles e com os advogados, proferem seus votos partindo de premissas
próprias e construindo fundamentações completamente díspares, não atende a este novo
momento que o Brasil passa a vivenciar.59
relevantes e contidos no acórdão, que não tiverem sido adotados ou referendados pela maioria dos membros do
órgão julgador. §6o O precedente ou a jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste
artigo pode não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, demonstrando,
mediante argumentação racional e justificativa convincente, tratar-se de caso particularizado por situação fática
distinta ou questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica. § 7o Os tribunais deverão dar
publicidade aos seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os
preferencialmente por meio da rede mundial de computadores. Art. 522. Para os fins deste Código, considera-
se julgamento de casos repetitivos: I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas; II – o dos
recursos especial e extraordinário repetitivos.” 59 Acerca das premissas essenciais para o uso dos precedente, veja-se: “Nesse aspecto, o processualismo
constitucional democrático por nós defendido tenta discutir a aplicação de uma igualdade efetiva e valoriza, de
modo policêntrico e comparticipativo, uma renovada defesa de convergência entre o civil law e common law,
ao buscar uma aplicação legítima e eficiente (efetiva) do Direito para todas as litigiosidades (sem se aplicar
padrões decisórios que pauperizam a análise e a reconstrução interpretativa do direito), e defendendo o
delineamento de uma teoria dos precedentes para o Brasil que suplante a utilização mecânica dos julgados
isolados e súmulas em nosso país. Nesses termos, seria essencial para a aplicação de precedentes seguir
algumas premissas essenciais: 1.º – Esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão
decisório (precedente): ao se proceder à análise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser
muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo
se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos
interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um “precedente” a partir de um julgamento
superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos Tribunais (de
Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um
único julgado. 2.º – Integridade da reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo
tribunal: ao formar o precedente o Tribunal Superior deverá levar em consideração todo o histórico de
aplicação da tese, sendo inviável que o magistrado decida desconsiderando o passado de decisões acerca da
temática. E mesmo que seja uma hipótese de superação do precedente (overruling) o magistrado deverá indicar
a reconstrução e as razões (fundamentação idônea)59 para a quebra do posicionamento acerca da temática. 3.º –
Estabilidade decisória dentro do Tribunal (stare decisis horizontal): o Tribunal é vinculado às suas próprias
decisões: como o precedente deve se formar com uma discussão próxima da exaustão, o padrão passa a ser
vinculante para os Ministros do Tribunal que o formou. É impensável naquelas tradições que a qualquer
momento um ministro tente promover um entendimento particular (subjetivo) acerca de uma temática, salvo
quando se tratar de um caso diferente (distinguishing) ou de superação (overruling). Mas nestas hipóteses sua
fundamentação deve ser idônea ao convencimento da situação de aplicação. 4.º – Aplicação discursiva do
padrão (precedente) pelos tribunais inferiores (stare decisis vertical): as decisões dos tribunais superiores são
26
O contraditório, nesses termos, impõe em cada decisão a necessidade do
julgador enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar sua conclusão. Perceba-se que caso as decisões procedam a uma análise seletiva
de argumentos, enfrentando somente parte dos argumentos apresentados, com
potencialidade de repercussão no resultado, haverá prejuízo na abordagem e formação
dos precedentes (padrões decisórios); inclusive com evidente prejuízo para aplicação
futura em potenciais casos idênticos.
Não é incomum a dificuldade dos Tribunais de segundo grau em aplicar os
padrões formados pelos Tribunais Superiores, por eles não terem promovido uma
abordagem mais panorâmica do caso e dos argumentos.
Assim, os acórdãos, na atualidade, deveriam possuir uma linearidade
argumentativa para que realmente pudessem ser percebidos como verdadeiros padrões
decisórios (standards) que gerariam estabilidade decisória, segurança jurídica, proteção da
confiança e previsibilidade. De sua leitura deveríamos extrair um quadro de análise
panorâmica da temática, a permitir que em casos futuros pudéssemos extrair uma “radiografia
argumentativa” daquele momento decisório.
Extrair-se-ia, inclusive, se um dado argumento foi levado em consideração,
pois caso contrário seria possível a superação do entendimento (overruling). Ou mesmo se
verificar se o caso atual em julgamento é idêntico ao padrão ou se é diverso, comportando
julgamento autônomo mediante a distinção (distinguishing).
consideradas obrigatórias para os tribunais inferiores (“comparação de casos”): o precedente não pode ser
aplicado de modo mecânico pelos Tribunais e juízes (como v.g. as súmulas são aplicadas entre nós). Na
tradição do common law, para suscitar um precedente como fundamento, o juiz deve mostrar que o caso,
inclusive, em alguns casos, no plano fático, é idêntico ao precedente do Tribunal Superior, ou seja, não há uma
repetição mecânica, mas uma demonstração discursiva da identidade dos casos. 5.º – Estabelecimento de
fixação e separação das ratione decidendi dos obter dicta da decisão: a ratio decidendi (elemento vinculante)
justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituem-se pelos discursos
não autoritativos que se manifestam nos pronunciamentos judiciais “de sorte que apenas as considerações que
representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratio
decidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que
não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obiter dictum ou, nas palavras de Vaughan, um gratis
dictum.” 6.º – Delineamento de técnicas processuais idôneas de distinção (distinguishing) e superação
(overruling) do padrão decisório: A ideia de se padronizar entendimentos não se presta tão só ao fim de
promover um modo eficiente e rápido de julgar casos, para se gerar uma profusão numérica de julgamentos.
Nestes termos, a cada precedente formado (padrão decisório) devem ser criados modos idôneos de se
demonstrar que o caso em que se aplicaria um precedente é diferente daquele padrão, mesmo que
aparentemente seja semelhante, e de proceder à superação de seu conteúdo pela inexorável mudança social –
como ordinariamente ocorre em países de common law.” NUNES, Dierle. Processualismo constitucional
democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e
as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, p. 38, São Paulo:
Ed. RT, set. 2011.
27
No entanto, ao se acompanhar o modo como os Tribunais brasileiros (incluso o
STF) trabalham e proferem seus acórdãos percebemos que se compreende parcamente as
bases de construção e aplicação destes padrões decisórios (precedentes), criando um quadro
nebuloso de utilização da jurisprudência. Flutuações constantes de entendimento, criação
subjetiva e individual de novas “perspectivas”, quebra da integridade (Dworkin) do direito,
são apenas alguns dos “vícios”.
Repetimos: aos Tribunais deve ser atribuído um novo modo de trabalho e uma
nova visão de seus papéis e forma de julgamento. Se o sistema jurídico entrou em transição (e
convergência), o trabalho dos tribunais também dever ser modificado, por exemplo, a) com a
criação de centros de assessoria técnico-jurídica (unificação das assessorias) a subsidiar a
todos os julgadores de uma Câmara pressupostos jurídicos idênticos para suas decisões; b)
respeito pleno do contraditório como garantia de influência, de modo a levar em consideração
todos os argumentos suscitados para a formação de um padrão decisório, pelos juízes e pelas
partes, entre outras medidas; c) Criação de centros de estudo e pesquisa para subsidiar dados
de pesquisa especializada para cada grande matéria em debate, inclusive para promover
críticas para aprimoramento das decisões (o que poderia ser feito em parceria com instituições
de pesquisa, v.g. Universidades).
Ademais, não se pode olvidar um dos principais equívocos na análise da
tendência de utilização dos precedentes no Brasil, qual seja, a credulidade exegeta (antes os
Códigos, agora os julgados modelares) que o padrão formado (em RE, v.g.) representa o
fechamento da discussão jurídica, quando se sabe que, no sistema do case law, o precedente é
um principium argumentativo. A partir dele, de modo discursivo e profundo, verificar-se-á,
inclusive com análise dos fatos, se o precedente deverá ou não ser repetido (aplicado).
Aqui, o “precedente” dos Tribunais Superiores é visto quase como um
esgotamento argumentativo que deveria ser aplicado de modo mecânico para as causas
repetitivas. E estes importantes Tribunais e seus Ministros produzem comumente rupturas
com seus próprios entendimentos; ferindo de morte um dos princípios do modelo
precedencialista: a estabilidade.
Sabe-se que após a CRFB/88 as litigiosidades se tornaram mais complexas e
em número maior. E que a partir deste momento o processo constitucionalizado passou a ser
utilizado como garantia não só para a fruição de direitos (prioritariamente) privados, mas,
para o auferimento de direitos fundamentais, pelo déficit de cumprimento dos papéis dos
outros “Poderes” (Executivo/ Legislativo), entre outros fatores.
28
Vistas estas premissas, devemos fazer uma breve análise de alguns dos
fundamentos do common law na sistemática de precedentes, para que, na sequência, possamos
verificar alguns exemplos na ausência de sistemática da própria construção dos padrões
decisórios no Brasil.
No sistema processual constitucional democrático brasileiro, agora encampado
pela legislação projetada, tornar-se-á nula a decisão que surpreender as partes acerca de
argumentos que não tiverem sido problematizados, mesmo que potencialmente, ao longo do
iter.
A chamada decisão de “terza via” (surpresa), na qual o órgão julgador traz
argumentos inovadores nas ratione decidendi, seria banida.
Ademais, a adoção do contraditório como influência na formação e aplicação
dos precedentes, especialmente mediante o uso da técnica de causa piloto, torna essencial
percebermos que em caso de dissonância nos votos proferidos no acordão, dificilmente
encontraremos uma única “ratio decidendi” apta a ser utilizada num caso futuro. Isso é
demonstrado no direito inglês.60
O Contraditório impõe uma linearidade do debate para que uma decisão com
eficácia pan processual seja hábil a ser usada com argumentos colhidos por amostragem.
Ao comentar a situação, Bustamante adverte:
Do mesmo modo, em um julgamento colegiado pode acontecer que os juízes que
integram a câmara ou turma de julgamento cheguem a um consenso sobre a
solução a ser dada para o caso sub judice mas divirjam acerca das normas gerais
que são concretizadas no caso em questão e justificam a solução adotada: “Em
uma corte de cinco juízes, ‘não há ratio decidendi da corte a não ser que três
pronunciem a mesma ratio decidendi’”[Montrose 1957:130]. Nesse sentido,
Whittaker recorda o caso “Shogun Finance Ltd. Vs Hudson” em que o raciocínio
de cada um dos juízes que compõem a maioria - uma maioria de três a dois –
difere muito significativamente dos demais: “O resultado estava claro: uma maioria
de três entre cinco juízes com acento na House of Lords sustentou que o fraudador
não havia adquirido o título e, portanto, não poderia em tais circunstâncias tê-lo
repassado a Hudson, aplicando-se a máxima nemo dat quod non habet. Não
obstante, a maioria apresentava diferenças muito significativas quanto ao
raciocínio seguido pelos seus componentes”[Whitakker 2006: 723-724]. Em um
caso como esse não se pode falar em um precedente da corte acerca das normas
(gerais) adscritas que constituem as premissas normativas adotadas por cada um
dos juízes da maioria, embora se possa falar, eventualmente, de uma decisão
comum constante da norma individual que corresponde rigorosamente aos fatos
60
WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).
Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,
16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p. 56.
29
do caso e às conclusões adotadas. Apenas há um precedente do tribunal em
relação às questões que foram objeto de consenso dos seus membros. “Quando
a fundamentação divergente [no caso de votos “convergentes no dispositivo e
divergentes na motivação”] descortina-se incompatível, tem-se uma decisão
despida de discoverable ratio, e, portanto, não vinculante no que concerne à
solução do caso”[Cruz e Tucci 2004:178]. Isso não impede, porém, que se
possa falar em uma ratio decidendi da opinião de um juiz e que a regra
inferida dessa ratio seja utilizada como precedente em um caso futuro. É claro
que essa regra está menos revestida de autoridade que outra que tenha sido objeto
de consenso de toda a corte, mas isso – apenas de limitar – não extingue por
completo seu valor como precedente.61
(destacamos).
Os juízes, assim, devem estar vinculados somente por fundamentos
confiáveis sobre questões jurídicas que aparecem nas decisões, não podendo haver o
contentamento do sistema apenas com o dispositivo ou a ementa das decisões judiciais.
Resta ainda a percepção de que o contraditório dinâmico garantiria às partes
técnicas hábeis para a distinção de casos e para a superação de entendimentos; nesse aspecto,
o CPC projetado, inovando a atual situação de carência técnica e como corolário do
contraditório prevê o cabimento da reclamação quando ocorrer a aplicação indevida da tese
jurídica e sua não-aplicação aos casos que a ela correspondam, do agravo de admissão, na
redação até o texto da Comissão geral, para a demonstração de existência de distinção entre o
caso em análise e o precedente invocado (distinguishing) ou a superação da tese (overruling);
seguindo antiga defesa doutrinária,62
e, em face da supressão deste último recurso na redação
da emenda aglutinativa (com ocorrência de admissibilidade direta dos recursos
extraordinários nas instâncias superiores), o pedido ao juiz ou relator do recurso para que
identifique a divergência e afaste o sobrestamento indevido, com regular processamento do
feito.
Por derradeiro, devemos sempre levar a sério, a partir dos aportes ora
discutidos, a advertência de Motta:
Uma coisa, que é correta, é a invocação dos julgamentos anteriores que,
quando tidos como acertos institucionais, bem servem como “indício
formal” das decisões que se seguirão a ele, e que com ele devem guardar a
coerência de princípio. É louvável que as partes compreendam, pois, que a
sua causa integra a história institucional, e que chamem a atenção do juiz
para a necessidade de sua continuidade. Agora, outra coisa, bem diferente é
a fraude que decorre da utilização de verbetes jurisprudenciais, como se
fundamentação fossem, sem a devida reconstrução que foram decisivos
num e noutro caso. Dworkin explica que, se é verdade que os casos
61
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses. 2012, p. 272-273.
62 THEODORO, Humberto Júnior; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão
geral no recurso extraordinário. Revista de Processo, São Paulo, n. 177. Nov. 2009. p. 43.
30
semelhantes devem ser tratados de maneira semelhante (primado da
equidade, que exige a aplicação coerente dos direitos), também é verdade
que os precedentes não têm força de “promulgação”: o juiz deve “limitar a
força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de
princípio necessários para justificar tais decisões”. E isso já no sistema do
common law! Que dirá então em países como o Brasil, de tradição jurídica
totalmente diferenciada, onde os precedentes não têm (em regra, pelo
menos) força normativa vinculante? Então, atenção: para que o precedente
agregue padrões “hermeneuticamente válidos” a um provimento atual, ou
para que se revele a “força” de um precedente (ou: o que, afinal, ficou
decidido naquele caso?), temos de perguntar: quais os argumentos de
princípio que o sustentaram? Simples, pois. Estes argumentos é que
poderão (e deverão) influenciar o novo provimento. Afinal, para os
propósitos de uma produção coerente e democrática do Direito, “adequar-
se ao que os juízes fizeram é [bem] mais importante do que adequar-se ao
que eles disseram”.63
7. Considerações finais
A aplicação de precedentes no Brasil assume a função de ressaltar a
credibilidade do Judiciário garantindo ao litigante previsibilidade. Ocorre que, mantido o atual
modelo de fundamentação de decisões em jurisprudência dominante, sem um debate e uma
comparação analógica adequada, seria uma ilusão crer que a tradição judicial oferecerá tal
segurança jurídica, visto que, como demonstrado, não tem ocorrido uma aplicação séria ou
mesmo a construção de uma verdadeira tradição institucional de aplicação de precedentes.
Desse modo, afigura-se um dever argumentativo das partes, do ponto de vista
de sua estratégia, e do corpo judiciário como um todo, na busca de excelência e
aperfeiçoamento da prática forense, o exercício do contraditório e da argumentação com
clareza e cuidado, de modo que é preciso reconsiderar como um todo o que vem sendo a
prática forense brasileira. Novas estruturas processuais e a aplicação de precedentes de
maneira reiterada demandam dos operadores do direito uma reelaboração de suas práticas,
adaptando-se à nova realidade.
A uniformização jurisprudencial tem como fundamento a preservação do
princípio da igualdade formal, pois efetiva o dever de atribuir decisões idênticas a situações
idênticas. Obviamente, viola-se tal princípio quando para situações semelhantes, aplica-se
63
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo
judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 183.
31
uma tese anteriormente definida sem consideração com as questões fáticas e de direito que
diferenciam um caso de outro a ponto de exigir solução distinta64
.
O precedente, como no common law, oferece regra universalizável aplicada em
função da identidade com os fatos dos casos análogos. O critério de aplicação e escolha do
precedente é um critério fático, de modo que a regra será aplicada ou afastada pelo julgador
conforme considere prevalentes os elementos de identidade ou diferença entre os casos. Um
só precedente é suficiente para fundamentar a decisão de um caso65
.
Nesse contexto, fica evidenciado que a introdução legislativa de novas
modalidades recursais para se institucionalizar a necessidade de distinguishing quando do
julgamento da Repercussão Geral ou do julgamento de recurso repetitivo não resolverá o
problema apresentado: pois a deficiência na aplicação do precedente nessas situações não se
dá no número de recursos possíveis ou na oportunidade de sua interposição. A adoção no art.
499 projetado do dever efetivo de fundamentação racional como critério fiscalizatório do
contraditório como influência, devidamente aplicado, poderá sim viabilizar uma alteração
substancial dos problemas atuais na formação dos precedentes.
A má aplicação de precedentes é explicada pela própria realidade forense
brasileira: partes que argumentam parcamente, um grande número de litígios que se
reproduzem por falta de uniformização e pronta resposta judicial, e juízes incapazes de
proferir decisões claras, justificadas e específicas para cada caso.
Assim, o perigo das “generalizações”, alardeado pela doutrina nacional, nada
mais é do que o perigo de coexistir o acesso à justiça democrático amplo nos moldes
constitucionais, a necessidade de justiça formal por meio da aplicação de precedentes e a
manutenção de velhas práticas forenses.
A uniformização decisória em nome dos princípios da segurança jurídica e da
igualdade é louvável. Porém, ainda que seja importante a redução das demandas nos tribunais
superiores amparada por tais princípios, é ainda mais importante a instauração da qualidade
na formação dos precedentes judiciais, visto que um processo é instaurado para oferecer às
partes a contraprestação justa de seu direito violado. No entanto, se não há qualidade nas
decisões e o direito das partes é negligenciado, o processo se torna um fim em si mesmo,
64
NUNES, Dierle José Coelho; THEODORO, Humberto Júnior; BAHIA, Alexandre. Breves considerações
sobre a politização do Judiciário e sobre a panorama de aplicação no direito brasileiro - Análise da
convergência ente o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de
Processo, São Paulo, n.189, pp.25-27, 2010. 65
OP.cit. p.27
32
buscando em nome da celeridade uma perda expressiva da eficiência nas decisões judiciais,
de modo a lesar os direitos das partes envolvidas no processo.
Como demonstrado, há vários pontos críticos na aplicação atual da
jurisprudência e principalmente da formação dos precedentes no sistema processual brasileiro.
Há que se enfatizar que, para o estabelecimento do precedente como fonte do direito e
elemento de formação decisória, várias providências se fazem necessárias: (i) os Tribunais
devem consolidar e respeitar seu entendimento institucionalizado; (ii) as reformas legislativas,
(iii) deve ser adotada uma Teoria dos Precedentes adaptada para a realidade brasileira; (iv)
deve haver uma mudança de paradigma e comportamento na prática jurídica, inclusive de
iniciativa das partes, a fim de comprometer advogados e julgadores com a aplicação fiel dos
precedentes estabelecidos, bem como com a qualidade das decisões proferidas.
Deve haver a adoção de uma Teoria do Precedente que esclareça qual a força
“vinculativa” das decisões dos Tribunais Superiores. No caso de possuírem força vinculante,
deve-se definir mecanismos idôneos de aplicação, distinção e superação do precedente
vinculante. Além disso, caso subsista o julgamento por amostragem, é preciso que se julgue
os casos precursores com identidade dos fatos, com amplo debate e com aprofundamento
jurídico da questão, sendo tarefa das instâncias inferiores manejar com maestria a técnica do
distinguishing, evitando desse modo a criação de injustiças por meio do stare decisis.
Caso decida-se pela aplicação meramente persuasiva, jurisprudencial de
julgados dos Tribunais Superiores, deve-se pensar seriamente para um fim para o julgamento
monocrático por jurisprudência dominante ou negativa de seguimento de recurso. Não é
possível que se faça aplicação vinculante num momento para em seguida agir diferentemente.
Vista a abertura do conceito, poder-se-ia igualmente pensar numa solução legislativa para a
concepção de jurisprudência dominante (quantos julgados são necessários para sua formação,
quais órgãos são capazes de conformá-la).
Além disso, é urgente definir qual a força vinculativa para os próprios
Tribunais que proferem os julgados (precedente horizontal). Poder-se-ia pensar, nos moldes
da House of Lords, em se estatuir a impossibilidade de desrespeito de decisões
jurisprudenciais ou de precedentes em nome da isonomia e da segurança jurídica, assegurando
por outro lado mecanismos expressos e formalizados de superação daquilo que foi decidido
anteriormente, para que se evite a modificação de situações jurídicas pela mera mudança de
opinião do julgador.
33
Há que se ressaltar que o presente artigo não defende a ideia de uma aplicação
pura da Teoria dos Precedentes e do conceito e formação dos precedentes existentes nos
países de Common Law. Pelo contrário, é defensável a criação de uma teoria e de critérios que
compreenda as peculiaridades da aplicação de precedentes em um sistema jurídico
tradicionalmente de Civil Law, como o brasileiro.
Como se pode notar, estamos muito longe em perceber a verdadeira
importância do Direito Jurisprudencial em nosso país.
E o que mais preocupa é que muitos daqueles que se encontram ligados a
tendência de padronização decisória (no âmbito legislativo ou de aplicação) se seduzam com
o argumento simplista de que “isso resolverá” o problema da litigiosidade repetitiva entre nós,
sem que antes se problematize e se consolidem fundamentos consistentes de uma teoria de
aplicação dos precedentes adequada ao direito brasileiro.
Evidentemente que se trata de uma tendência inexorável.
E isso torna a tarefa, de todos os envolvidos, mais séria, especialmente quando
se percebe toda a potencialidade e importância que o processo e a Jurisdição,
constitucionalizados em bases normativas consistentes, vem auferindo ao longo desses 25
anos pós Constituição de 1988.
Não se pode reduzir o discurso do Direito Jurisprudencial a uma pauta de
isonomia forçada a qualquer custo para geração de uma eficiência quantitativa.
Precedentes, como aqui se afirmou, são princípio(s) (não fechamento) da
discussão e aplicação do direito. Eles não podem ser formados com superficialidade e
aplicados mecanicamente.
Precisamos sondar e aprimorar o uso do contraditório como garantia de
influência e do processo constitucional na formação dos precedentes. Para além do argumento
“ufanista” e acrítico de seu uso no Brasil.
Os custos da violação de um direito fundamental não justificam a tomada de
uma decisão sub-ótima em larga escala.
Iniciamos o presente ensaio com a indagação de se deveríamos abandonar a
singularidade em prol da similaridade em face da tendência de padronização decisória em
contraponto com a análise individualizada dos casos (case to case) e chegamos, ao final, a
partir da percepção adequada do contraditório como influência e da fundamentação racional
projetados (arts. 10 e 499 do CPC projetados, como corolários constitucionais), a conclusão
de que devemos seguir esses pressupostos interpretativos (essenciais) na formação dos
34
precedentes exatamente para viabilizar que todos os argumentos potencialmente relevantes
sejam levados a sério e cheguemos a única interpretação viável do novo CPC, que induzirá
uma melhoria qualitativa do sistema. Exatamente para evitar que o discurso em prol da
similaridade inviabilize a aplicação legítima (correta) do Direito.
Assim, há de se perceber que ao Direito Jurisprudencial se aplica com precisão
a histórica frase de Sander, ao comentar a tendência do uso das “ADRs”, na década de 1970:
“não existem panacéias, apenas caminhos promissores para explorar. E há tanta coisa que não
sabemos...”66
.
E o único caminho hermenêutico viável é aquele que interpreta o CPC
Projetado a luz do processo constitucional e do pressuposto comparticipativo.
66
“There are no panaceas; only promising avenues to explore. And there is so much we do not know.” Trecho da
conclusão da histórica preleção proferida por Frank A. Sander, na segunda Pound Conference, em 1976, que
fortaleceu muitíssimo o movimento pró técnicas alternativas (adequadas) de resolução de conflitos (ADR –
alternative dispute resolution). SANDER, Frank. A. Varieties of dispute processing. LEVEN, A. Leo,
WHEELER, Russell R.. The Pound Conference: perpectives on justice in the future. Minnesota: West
Publishing Co. 1979. p. 86.