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    Nosso vizinho Eduardo

    Pequena coletnea de crnicas do escritor Eduardo Galeano

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    A dignidade da arte

    Eu escrevo para os que no podem me ler. Os de baixo, os queesperam h sculos na fila da histria, no sabem ler ou no temcom o qu.

    Quando chega o desnimo, me faz bem recordar uma lio dedignidade da arte que recebi h anos, num teatro de Assis, na Itlia.Helena e eu tnhamos ido ver um espetculo de pantomima, e nohavia ningum. Ela e eu ramos os nicos espectadores. Quando aluz se apagou, juntaram-se a ns o lanterninha e a mulher da

    bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o pblico,trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glria deuma estria com lotao esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-seinteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.

    Nossos aplausos ressoaram na solido da sala. Ns aplaudimos atesfolar as mos.

    (O livro dos abraos)

    **At quando os horrores continuaro a ser chamados de erros?

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    Esta carnificina de civis comeou a partir do seqestro de um

    soldado. At quando o seqestro de um soldado israelense poderjustificar o seqestro da soberania palestina?

    At quando o seqestro de dois soldados israelenses poderjustificar o seqestro de todo o Lbano?

    A caa aos judeus foi, durante sculos, o esporte preferido doseuropeus. Em Auschwitz desembocou um antigo rio de espantos,que havia atravessado toda a Europa. At quando os palestinos e

    outros rabes continuaro a pagar por crimes que no cometeram? OHezbol no existia quando Israel arrasou o Lbano em suasinvases anteriores.

    At quando continuaremos a acreditar no conto do agressoragredido, que pratica o terrorismo porque tem direito de se defenderdo terrorismo? Iraque, Afeganisto, Palestina, Lbano... At quandose poder continuar a exterminar pases impunemente?

    As torturas de Abu Ghraib, que despertaram certo mal-estaruniversal, nada tm de novo para ns, os latino-americanos. Nossosmilitares aprenderam essas tcnicas de interrogatrio na Escola dasAmricas, que agora perdeu o nome, mas no as manhas. Atquando continuaremos aceitando que a tortura continue legitimando,como fez a Corte Suprema de Israel, em nome da legtima defesa daptria?

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    Israel deixou de ouvir 46 recomendaes da Assemblia Geral e

    de outros organismos das Naes Unidas. At quando o governoisraelense continuar a exercer o privilgio de ser surdo? As NaesUnidas recomendam, mas no decidem. Quando decidem, a CasaBranca impede que decidam porque tem direito de veto. A CasaBranca vetou, no Conselho de Segurana, 40 resolues quecondenavam Israel. At quando as Naes Unidas continuaro aatuar como se fossem outro nome dos Estados Unidos? Desde queos palestinos foram desalojados de suas casas e despojados de suas

    terras muito sangue correu. At quando continuar correndo sanguepara que a fora justifique o que o direito nega?

    A histria se repete, dia aps dia, ano aps ano, e um israelensemorre para cada 10 rabes que morrem. At quando a vida de cadaisraelense continuar valendo 10 vezes mais? Em proporo populao, os 50 mil civis, em sua maioria mulheres e crianas,mortos no Iraque equivalem a 800 mil americanos. At quandocontinuaremos a aceitar, como se fosse costume, a matana deiraquianos, em uma guerra cega que esqueceu seus pretextos? Atquando continuar sendo normal que os vivos e os mortos sejam deprimeira, segunda, terceira ou quarta categoria?

    O Ir est desenvolvendo a energia nuclear. At quandocontinuaremos a acreditar que isso basta para provar que um pas um perigo para a humanidade? A chamada comunidadeinternacional no se angustia em nada com o fato de Israel ter 250

    bombas atmicas, embora seja um pas que vive beira de umataque de nervos. Quem maneja o perigosmetro universal? Tersido o Ir o pas que lanou as bombas atmicas em Hiroshima eNagasaki?

    Na era da globalizao, o direito de presso pode mais do que odireito de expresso. Para justificar a ocupao ilegal de terraspalestinas, a guerra se chama paz. Os israelenses so patriotas e os

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    palestinos so terroristas, e os terroristas semeiam o alarmeuniversal.

    At quando os meios de comunicao continuaro a ser receios decomunicao?

    Esta matana de agora, que no a primeira nem ser, receio, altima, ocorre em silncio? O mundo est mudo? At quandoseguiro soando em sinos de madeira as vozes da indignao?

    Estes bombardeios matam crianas: mais de um tero das vtimas,no menos da metade. Os que se atrevem a denunciar isto soacusados de anti-semitismo. At quando continuaro sendo anti-semitas os crticos dos crimes do terrorismo de Estado? At quandoaceitaremos esta extorso? So anti-semitas os judeus horrorizadospelo que se faz em seu nome? So anti-semitas os rabes, tosemitas como os judeus? Por acaso no h vozes rabes paradefender a ptria palestina e repudiar o manicmio fundamentalista?

    Os terroristas se parecem entre si: os terroristas de Estado,respeitveis homens de governo, e os terroristas privados, que soloucos soltos ou loucos organizados desde os tempos da Guerra Friacontra o totalitarismo comunista. E todos agem em nome de Deus,seja Deus, Al ou Jeov. At quando continuaremos a ignorar quetodos os terrorismos desprezam a vida humana e que todos sealimentam mutuamente. No evidente que nesta guerra entre Israele Hezbol so civis, libaneses, palestinos, israelenses, os que choram

    os mortos? No evidente que as guerras do Afeganisto e doIraque e as invases de Gaza e do Lbano so incubadoras do dio,que fabricam fanticos em srie?

    Somos a nica espcie animal especializada no extermnio mtuo.Destinamos US$ 2,5 bilhes, a cada dia, para os gastos militares. Amisria e a guerra so filhas do mesmo pai: como alguns deusescruis, come os vivos e os mortos. At quanto continuaremos a

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    aceitar que este mundo enamorado da morte nosso nico mundopossvel?

    **A linguagem, as coisas e seus nomes

    Hoje em dia, no fica bem dizer certas coisas perante a opiniopblica. O capitalismo exibe o nome artstico de economia demercado. O imperialismo se chama globalizao. As vtimas doimperialismo se chamam pases em via de desenvolvimento, que como chamar de meninos aos anes. O oportunismo se chamapragmatismo. A traio se chama realismo. Os pobres se chamamcarentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos.

    Na era vitoriana era proibido fazer meno s calas na presenade uma senhorita. Hoje em dia, no fica bem dizer certas coisasperante a opinio pblica:

    O capitalismo exibe o nome artstico de economia de mercado;

    O imperialismo se chama globalizao;

    As vtimas do imperialismo se chamam pases em via dedesenvolvimento, que como chamar de meninos aos anes;

    O oportunismo se chama pragmatismo;

    A traio se chama realismo;

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    Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas deescassos recursos;

    A expulso dos meninos pobres do sistema educativo conhecidapelo nome de desero escolar;

    O direito do patro de despedir sem indenizao nem explicaose chama flexibilizao laboral;

    A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os

    direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidadefosse a maioria;em lugar de ditadura militar, se diz processo.

    As torturas so chamadas de constrangimentos ilegais ou tambmpresses fsicas e psicolgicas;

    Quando os ladres so de boa famlia, no so ladres, socleoptomanacos;

    O saque dos fundos pblicos pelos polticos corruptos atende aonome de

    enriquecimento ilcito;

    Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas deautomveis;

    Em vez de cego, se diz deficiente visual;

    Um negro um homem de cor;

    Onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler cncer ouAIDS;

    Mal sbito significa infarto;

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    Nunca se diz morte, mas desaparecimento fsico;

    Tampouco so mortos os seres humanos aniquilados nasoperaes militares: os mortos em batalha so baixas e os civis, quenada tm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, danoscolaterais;

    Em 1995, quando das exploses nucleares da Frana no PacficoSul, o embaixador francs na Nova Zelndia declarou: No gosto

    da palavra bomba. No so bombas. So artefatos que explodem;

    Chama-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colmbia,que agem sob proteo militar;

    Dignidade era o nome de um dos campos de concentrao daditadura chilena e Liberdade o maior presdio da ditadura uruguaia;

    Chama-se Paz e Justia o grupo militar que, em 1997, matou pelascostas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres ecrianas, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, emChiapas.

    (Do livro Pernas para o Ar)**O Medo Global

    Os que trabalham tm medo de perder o trabalho.Os que no trabalham tm medo de nunca encontrar trabalho.Quem no tem medo da fome, tem medo de comida.Os motoristas tm medo de caminhar e os pedestres tm medo de

    serem atropelados.

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    A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo dedizer.

    Os civis tm medo dos militares, os militares tm medo da falta dearmas, as armas tm medo da falta de guerras.

    o tempo do medo.Medo da mulher da violncia do homem e medo do homem da

    mulher sem medo.Medo dos ladres, medo da polcia.Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relgios, da criana

    sem televiso, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo

    do dia sem comprimidos para despertar.Medo da multido, medo da solido, medo do que foi e do quepode ser, medo de morrer, medo de viver.

    (Do livro De Pernas Pro Ar)**Desculpem a molstia

    Quero compartilhar com vocs algumas perguntas, moscas quezumbem na minha cabea:

    O zapatista do Iraque, o que jogou os sapatos contra Bush, foi

    condenado a trs anos de priso. No merecia, na verdade, umacondecorao?

    Quem o terrorista? O zapatista ou o zapateado? No culpadode terrorismo o serial killer que, mentindo, inventou a guerra doIraque, assassinou a um monto de gente, legalizou a tortura emandou aplic-la?

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    So culpados os habitantes de Atenco, no Mxico, ou os indgenasmapuches do Chile, ou os kekchies da Guatemala, ou os camponeses

    sem terra do Brasil, todos acusados de terrorismo por defender seudireito terra? Se sagrada a terra, mesmo se a lei no o diga, noso sagrados tambm os que a defendem?

    Segundo a revista Foreign Policy, a Somalia o lugar maisperigoso do mundo. Mas quem so os piratas? Os mortos de fomeque assaltam navios ou os especuladores de Wall Street, que h anosassaltam o mundo e agora recebem multimilionrias recompensas

    por suas atividades?

    Porque o mundo premia os que o saqueiam?

    Por que a justia cega de um nico olho? Wal Mart, a empresamais poderosa de todas, probe os sindicatos. McDonalds, tambm.Por que estas empresa violam, com delinqente impunidade, a leiinternacional? Ser que por que no mundo do nosso tempo otrabalho vale menos do que o lixo e valem menos ainda os direitosdos trabalhadores?

    Quem so os justos e quem so os injustos? Se a justiainternacional realmente existe, por que no julga nunca aospoderosos? No so presos os autores dos mais ferozes massacres?Ser que porque so eles que tm as chaves das prises?

    Por que so intocveis as cinco potncias que tem direito de veto

    nas Naes Unidas? Esse direito tem origem divina? Velam pela pazos que fazem o negcio da guerra? justo que a paz mundial estejaa cargo das cinco potncias que so as cinco principais produtorasde armas? Sem desprezar aos narcotraficantes, este tambm no um caso de crime organizado?

    Mas no demandam castigo contra os senhores do mundo osclamores dos que exigem, em todos os lugares, a pena de morte. S

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    faltava isso. Os clamores clamam contra os assassinos que usamnavalhas, no contra os que usam msseis.

    E a gente se pergunta: j que esses justiceiros esto to loucos devontade de matar, por que no exigem a pena de morte contra ainjustia social? justo um mundo em que a cada minuto destinatrs milhes de dlares aos gastos militares, enquanto a cada minutomorrem quinze crianas por fome ou doena curvel? Contra quemse arma, at os dentes, a chamada comunidade internacional? Contraa pobreza ou contra os pobres?

    Porque os adeptos fervorosos da pena de morte no exigem a penade morte contra os valores da sociedade de consumo, quecotidianamente atentam contra a segurana pblica? Ou por acasono convida ao crime o bombardeio de publicidade que aturde amilhes e milhes de jovens desempregados ou mal pagos, repetindopara eles dia e noite que ser ter, ter um automvel, ter sapatos demarca, ter, ter, e que no tem, no ?

    E por que no se implanta a pena de morte contra a pena demorte? O mundo est organizado a servio da morte. Ou no fabricaa morte a industria militar, que devora a maior parte dos nossosrecursos e boa parte das nossas energias? Os senhores do mundo scondenam a violncia quando so outros os que a exercem. E estemonoplio da violncia se traduz em um fato inexplicvel para osextraterrestres e tambm insuportvel para os terrestres que aindaqueremos, contra toda evidncia, sobreviver: os humanos somos os

    nicos especializados no extermnio mtuo e desenvolvemos umatecnologia da destruio que est aniquilando, de passagem, aoplaneta e a todos os seus habitantes.

    Esta tecnologia se alimenta do medo. o medo que fabrica osinimigos que justificam o desperdcio militar e policial. E em vias deimplantar a pena de morte, que tal se condenamos morte o medo?No seria saudvel acabar com essa ditadura universal dos

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    assustadores profissionais? Os semeadores de pnico nos condenam solido, nos probem a solidariedade: salve-se quem puder,

    destruam-se uns aos outros, o prximo sempre um perigo que seaproxima, olho, cuidado, esse cara vai te roubar, aquele vai te violar,este carrinho de nen esconde bomba muulmana e se essa mulher teolha, essa vizinha de aspecto inocente, certamente vai te contagiarcom a gripe Porcina.

    No mundo de cabea para baixo, do medo at os maiselementares atos de justia e de bom senso. Quando o presidente

    Evo Morales comeou a refundao da Bolvia, para que esse pasde maioria indgena, deixasse de ter vergonha de olhar no espelho,provocou pnico. Este desafio era catastrfico do ponto de vista daordem racista tradicional, que dizia que era a unida ordem possvel.Evo era, trazia o caos e a violncia e por sua culpa a unidadenacional ia explodir em pedaos. E quando o presidente equatorianoRafael Correa anunciou que se negava a pagar as dvidas nolegtimas, a noticia produziu terror no mundo financeiro e o Equadorfoi ameaado com terrveis castigos, por estar dando um to mauexemplo. Se as ditaduras militares e os polticos ladres foramsempre mimado pelos bancos internacionais, no nos acostumamosj a aceitar como fatalidade do destino que o povo pague o garroteque o golpeia e a cobia que o saqueia?

    Mas ser que se divorciaram para sempre o bom senso e a justia?No nasceram para andar juntos, bem pegadinhos, o bom senso e ajustia?

    No de bom senso, e tambm de justia, esse lema dasfeministas que dizem que se ns, os machos, ficssemos grvidos, oaborto seria livre? Por que no se legaliza o direito ao aborto? Serporque ento deixaria de ser o privilegio das mulheres que podempag-lo e dos mdicos que podem cobr-lo?

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    O mesmo acontece com outro escandaloso caso de negao da justia e do bom senso: por que no se legalizam as drogas? Por

    acaso no se trata, como no caso do aborto, uma questo de sadepublica? E o pas que tem mais drogados, que autoridade moral tem,que autoridade moral tem para condenar aos que abastecem suademanda? E por que os grandes meios de comunicao, toconsagrados guerra contra o flagelo da droga, no dizem nuncaque ela provm do Afeganisto quase toda a herona que se consomeno mundo? Quem manda no Afeganisto? No esse um pasocupado militarmente pelo pas messinico que se atribui a misso

    de salvar a todos ns?

    Por que no se legalizam as drogas pura e simplesmente? No serporque elas do o melhor pretexto para as invases militares, almde brindar os mais suculentos lucros aos bancos que de noitetrabalham como lavanderias?

    Agora o mundo est triste porque se vendem menos carros. Umadas conseqncias da crise mundial a queda da prspera indstriaautomobilstica. Se tivssemos algum resto de bom senso e umpouquinho de sentido de justia, no teramos que celebrar essa boanoticia? Ou por acaso a diminuio de automveis no uma boanoticia, do ponto de vista da natureza, que estar um pouquinhomenos envenenada e dos pedestres, que morrero um pouco menos?

    Segundo Lewis Carroll, a Rainha explicou a Alice como funcionaa justia no pas das maravilhas:

    - Ai voc tem disse a Rainha. Est preso cumprindo suacondenao; mas o processo s vai comear na segunda-feira. E,claro, o crime ser cometido no final.

    Em El Salvador, o arcebispo Oscar Arnulfo Romero comprovouque a justia, como a serpente, s morde aos descalos. Ele morreu

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    baleado, por denunciar que no seu pas os descalos nasciamcondenados de ateno pelo delito de nascimento.

    O resultado das recentes eleies em El Salvador no de algumaforma uma homenagem. Uma homenagem ao arcebispo Romero eaos milhares que como ele morreram lutando por uma justia justano reino da injustia?

    s vezes acabam mal as historias da Histria, mas ela, a Histria,no acaba. Quando diz adeus, est dizendo at logo.

    **O Imprio do consumo

    A exploso do consumo no mundo atual faz mais barulho do quetodas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Comodiz um velho provrbio turco, aquele que bebe a conta, fica bbadoem dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeirauniversal parece no ter limites no tempo nem no espao.

    Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como otambor, porque est vazia; e na hora da verdade, quando o estrondocessa e acaba a festa, o bbado acorda, sozinho, acompanhado pela

    sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expanso dademanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistemaque a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos emais amplos tanto quanto os pulmes precisam de ar e, ao mesmotempo, requer que estejam no cho, como esto, os preos dasmatrias primas e da fora de trabalho humana. O sistema fala emnome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo,entre todos espalha a febre compradora; mas no tem jeito: para

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    quase todo o mundo esta aventura comea e termina na telinha daTV. A maioria, que contrai dvidas para ter coisas, termina tendo

    apenas dvidas para pagar suas dvidas que geram novas dvidas, eacaba consumindo fantasias que, s vezes, materializa cometendodelitos. O direito ao desperdcio, privilgio de poucos, afirma ser aliberdade de todos.

    Dize-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilizaono deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nasestufas, as flores esto expostas luz contnua, para fazer com que

    cresam mais rapidamente. Nas fbricas de ovos, a noite tambmest proibida para as galinhas. E as pessoas esto condenadas insnia, pela ansiedade de comprar e pela angstia de pagar. Estemodo de vida no muito bom para as pessoas, mas muito bompara a indstria farmacutica. Os EUA consomem metade doscalmantes, ansiolticos e demais drogas qumicas que so vendidaslegalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas queso vendidas ilegalmente, o que no uma coisinha -toa quando seleva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento dapopulao mundial.

    Gente infeliz, essa que vive se comparando, lamenta umamulher no bairro de Buceo, em Montevidu. A dor de j no ser, queoutrora cantava o tango, deu lugar vergonha de no ter. Umhomem pobre um pobre homem. Quando no tens nada, pensasque no vales nada, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, emBuenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San

    Francisco de Macors: Meus irmos trabalham para as marcas.Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feito loucos para pagaras prestaes.

    Invisvel violncia do mercado: a diversidade inimiga darentabilidade, e a uniformidade que manda. A produo em srie,em escala gigantesca, impe em todas as partes suas pautasobrigatrias de consumo. Esta ditadura da uniformizao obrigatria

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    mais devastadora do que qualquer ditadura do partido nico:impe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres

    humanos como fotocpias do consumidor exemplar.

    O consumidor exemplar o homem quieto. Esta civilizao, queconfunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boaalimentao. Segundo a revista cientfica The Lancet, na ltimadcada a obesidade mrbida aumentou quase 30% entre a populao jovem dos pases mais desenvolvidos. Entre as crianas norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos ltimos dezesseis anos,

    segundo pesquisa recente do Centro de Cincias da Sade daUniversidade do Colorado. O pas que inventou as comidas ebebidas light, os diet food e os alimentos fast free, tem a maiorquantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce docarro s para trabalhar e para assistir televiso. Sentado na frente datelinha, passa quatro horas por dia devorando comida plstica.

    Vence o lixo fantasiado de comida: essa indstria estconquistando os paladares do mundo e est demolindo as tradiesda cozinha local. Os costumes do bem comer, que vm de longe,contam, em alguns pases, milhares de anos de refinamento ediversidade e constituem um patrimnio coletivo que, de algummodo, est nos foges de todos e no apenas na mesa dos ricos.Essas tradies, esses sinais de identidade cultural, essas festas davida, esto sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposiodo saber qumico e nico: a globalizao do hambrguer, a ditadurado fast food. A plastificao da comida em escala mundial, obra do

    McDonalds, do Burger King e de outras fbricas, viola com sucessoo direito autodeterminao da cozinha: direito sagrado, porque naboca a alma tem uma das suas portas.

    A Copa do Mundo de futebol de 1998 confirmou para ns, entreoutras coisas, que o carto MasterCard tonifica os msculos, que aCoca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardpio doMcDonalds no pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso

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    exrcito do McDonalds dispara hambrgueres nas bocas dascrianas e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M

    serviu como estandarte, durante a recente conquista dos pases doLeste Europeu.

    As filas na frente do McDonalds de Moscou, inaugurado em1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitria do Ocidentecom tanta eloqncia quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinaldos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre,nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer

    sindicato. O McDonalds viola, assim, um direito legalmenteconsagrado nos muitos pases onde opera. Em 1997, algunstrabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamlia,tentaram sindicalizar-se em um restaurante de Montreal, no Canad:o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados doMcDonalds, em uma pequena cidade prxima a Vancouver,conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

    As massas consumidoras recebem ordens em um idiomauniversal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e nopde.

    Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que ateleviso transmite. No ltimo quarto de sculo, os gastos empropaganda dobraram no mundo todo. Graas a isso, as crianaspobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e otempo de lazer vai se tornando tempo de consumo obrigatrio.

    Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres no tmcama, mas tm televiso, e a televiso est com a palavra. Compradoem prestaes, esse animalzinho uma prova da vocaodemocrtica do progresso: no escuta ningum, mas fala para todos.

    Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automveis doltimo modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxasde juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem

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    transformar as mercadorias em mgicos conjuntos contra a solido.As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia,

    compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro o amigo quenunca falha. A cultura do consumo fez da solido o mais lucrativodos mercados.

    Os buracos no peito so preenchidos enchendo-os de coisas, ousonhando com fazer isso. E as coisas no s podem abraar: elastambm podem ser smbolos de ascenso social, salvo-condutos paraatravessar as alfndegas da sociedade de classes, chaves que abrem

    as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisasescolhem voc e salvam voc do anonimato das multides. Apublicidade no informa sobre o produto que vende, ou faz issomuito raramente. Isso o que menos importa. Sua funo primordialconsiste em compensar frustraes e alimentar fantasias. Comprandoeste creme de barbear, voc quer se transformar em quem?

    O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruasno so frutos somente da extrema pobreza. Tambm so frutos datica individualista. A obsesso social pelo sucesso, diz Platt, incidedecisivamente sobre a apropriao ilegal das coisas. Eu sempre ouvidizer que o dinheiro no trs felicidade; mas qualquer pobre queassista televiso tem motivos de sobra para acreditar que o dinheirotrs algo to parecido que a diferena assunto para especialistas.

    Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o sculo XX marcou o fimde sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que

    apareceram os primeiros cultivos, no final do paleoltico. Apopulao mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-secidados. Na Amrica Latina temos campos sem ningum e enormesformigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as maisinjustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportao e pelaeroso das suas terras, os camponeses invadem os subrbios. Elesacreditam que Deus est em todas as partes, mas por experinciaprpria sabem que atende nos grandes centros urbanos.

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    As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os

    filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrembocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados emcortios, a primeira coisa que os recm chegados descobrem que otrabalho falta e os braos sobram, que nada de graa e que osartigos de luxo mais caros so o ar e o silncio.

    Enquanto o sculo XIV nascia, o padre Giordano da Rivaltopronunciou, em Florena, um elogio das cidades. Disse que as

    cidades cresciam porque as pessoas sentem gosto em juntar-se.Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? Aesperana encontra-se com a realidade? O desejo encontra-se com omundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas?Se as relaeshumanas foram reduzidas a relaes entre coisas, quanta genteencontra-se com as coisas?

    O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela deteleviso, na qual as coisas se olham mas no se tocam. Asmercadorias em oferta invadem e privatizam os espaos pblicos.

    Os terminais de nibus e as estaes de trens, que at poucotempo atrs eram espaos de encontro entre pessoas, esto setransformando, agora, em espaos de exibio comercial. Oshopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines,impe sua presena esmagadora. As multides concorrem, emperegrinao, a esse templo maior das missas do consumo. A

    maioria dos devotos contempla, em xtase, as coisas que seus bolsosno podem pagar, enquanto a minoria compradora submetida aobombardeio da oferta incessante e extenuante. A multido, que sobee desce pelas escadas mecnicas, viaja pelo mundo: os manequinsvestem como em Milo ou Paris e as mquinas soam como emChicago; e para ver e ouvir no preciso pagar passagem. Osturistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda nomereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto,

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    aos ps das marcas internacionais mais famosas, tal e como antesposavam aos ps da esttua do prcer na praa.

    Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanosvo ao center, ao shopping center, como antes iam at o centro. Otradicional passeio do fim-de-semana at o centro da cidade tende aser substitudo pela excurso at esses centros urbanos. De banhotomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas,os visitantes vm para uma festa qual no foram convidados, maspodem olhar tudo. Famlias inteiras empreendem a viagem na

    cpsula espacial que percorre o universo do consumo, onde aesttica do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos,marcas e etiquetas.

    A cultura do consumo, cultura do efmero, condena tudo descartabilidade miditica. Tudo muda no ritmo vertiginoso damoda, colocada servio da necessidade de vender. As coisasenvelhecem num piscar de olhos, para serem substitudas por outrascoisas de vida fugaz. Hoje, quando o nico que permanece ainsegurana, as mercadorias, fabricadas para no durar, so tovolteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. Odinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava l, hoje est aqui,amanh quem sabe onde, e todo trabalhador um desempregado empotencial.

    Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade,oferecem a mais bem-sucedida iluso de segurana. Eles resistem

    fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e semmemria, e existem fora do espao, alm das turbulncias daperigosa realidade do mundo.

    Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartvel:uma mercadoria de vida efmera, que se esgota assim como seesgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pelametralhadora da televiso e as modas e os dolos que a publicidade

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    lana, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamosnos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de

    que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque,estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedadede consumo uma armadilha para pegar bobos.

    Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que no sabemdisso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que agrande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada,necessariamente, para garantir a existncia da pouca natureza que

    nos resta. A injustia social no um erro por corrigir, nem umdefeito por superar: uma necessidade essencial. No existenatureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho doplaneta.

    **Operao Chumbo Impune

    Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas:semeia dio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina deGaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas,acabar por multiplic-los.

    Desde 1948, os palestinos vivem condenados humilhaoperptua. No podem nem respirar sem permisso. Perderam suaptria, suas terras, sua gua, sua liberdade, tudo. Nem sequer tmdireito a eleger seus governantes. Quando votam em quem nodeveriam votar, so castigados. Gaza est sendo castigada. Gaza seconverteu numa ratoeira sem sada, desde que o Hamas ganhoulimpidamente as eleies no ano 2006. Algo parecido havia ocorridoem 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleies de El

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    Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiraram sua mconduta e desde ento vivem submetidos a ditaduras militares. A

    democracia um luxo que nem todos merecem.

    So filhos da impotncia os foguetes caseiros que os militantes doHamas, encurralados em Gaza, disparam com pssima pontariasobre as terras que haviam sido palestinas e que a ocupao israelitausurpou. E o desespero, s margens da loucura suicida, a me dasbravatas que negam o direito existncia de Israel, gritos semnenhuma eficcia, enquanto a muito eficaz guerra de extermnio est

    negando, h anos, o direito existncia da Palestina. J sobra poucoda Palestina. Passo a passo, Israel a est apagando do mapa. Oscolonos invadem, e atrs deles os soldados vo corrigindo afronteira. As balas sacralizam o despojo, em legtima defesa. No hguerra agressiva que no diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu aPolnia parta evitar que a Polnia invadisse a Alemanha. BushInvadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Emcada uma das guerras defensivas, Israel tragou outro pedao daPalestina, e os almoos prosseguem. O ato de devorar se justificapelos ttulos de propriedade que a Bblia outorgou, pelos dois milanos de perseguio que o povo judeu sofreu, e pelo pnico quegeram os palestinos que esto observando.

    Israel o pas que jamais cumpre as recomendaes nem asresolues das Naes Unidas, o que nunca acata as sentenas dostribunais internacionais, o que burla as leis internacionais, e tambm o nico pas que legalizou a tortura de prisioneiros. Quem

    deu a Israel o direito de negar todos os direitos? De onde vem aimpunidade com que Israel est executando a matana de Gaza? Ogoverno espanhol no pde bombardear impunemente o Pas Bascopara acabar com o ETA, nem o governo britnico pde arrasar aIrlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragdia do Holocaustoimplica uma aplice de eterna impunidade? Ou essa luz verdeprovem da potncia que quer mandar em tudo e que tem em Israel omais incondicional de seus vassalos?

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    O exrcito de Israel, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe

    a quem mata. No mata por erro. Mata por horror. As vtimas civisse chamam danos colaterais, segundo o dicionrio de outras guerrasimperiais. Em Gaza, de cada dez danos colaterais, trs so crianas.E somam a milhares os mutilados, vtimas da tecnologia doesquartejamento humano, que a indstria militar est ensaiandoexitosamente nesta operao de limpeza tnica. E como sempre,sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Por cada cem palestinosmortos, um israelense. Gente perigosa, adverte o outro bombardeio,

    a cargo dos meios massivos de manipulao, que nos convidam acrer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas.E esses meios tambm nos convidam a crer que so humanitrias asduzentas bombas atmicas de Israel, e que uma potncia nuclearchamada Iran foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

    Existe a chamada comunidade internacional? ela algo mais queum clube de comerciantes, banqueiros e guerreiros? algo mais queo nome artstico que os Estados Unidos se colocam quando fazemteatro? Ante a tragdia de Gaza, a hipocrisia mundial se manifestamais uma vez. Como sempre, a indiferena, os discursos vazios, asdeclaraes ocas, as declamaes em voz alta, as posturas ambguas,rendem tributo sagrada impunidade. Ante tragdia de Gaza, ospases rabes lavam as mos. Como sempre. E como sempre, ospases europeus esfregam as mos. A velha Europa, to capaz debeleza e perversidade, derrama uma ou outra lgrima, enquantosecretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caa aos

    judeus foi sempre um costume europeu, mas h meio sculo, essadvida histrica est sendo cobrada aos palestinos, que tambm sosemitas e que nunca foram, nem so, anti-semitas. Eles estopagando, com sangue "contante e soante", uma conta alheia.

    (Este artigo est dedicado a meus amigos judeus assassinadospelas ditaduras latino-americanas que Israel assessorou)

    **

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    Oitavo mandamento: Mentirs

    A grande midia, at um tempo atrs, dizia que a pobreza estavabatendo em retirada no mundo. Agora, os burocratas mais bempagos do mundo esto confessando que estavam mal informados.Tambm ficamos sabendo, agora, que os pases pobres so bem mais

    pobres do que os nmeros diziam.

    Uma mentira

    At um tempinho atrs, a grande mdia nos presenteava, a cadadia, nmeros alegres sobre a luta internacional contra a pobreza. Apobreza estava batendo em retirada, apesar de que os pobres, malinformados, no tomavam conhecimento da boa notcia. Os

    burocratas mais bem pagos do planeta esto confessando, agora, queos mal informados eram eles.

    O Banco Mundial deu a conhecer a atualizao do seuInternational Comparison Program. Do trabalho participaram, juntocom o Banco Mundial, o Fundo Monetrio Internacional, as NaesUnidas, a Organizao para a Cooperao e o DesenvolvimentoEconmico e outras instituies filantrpicas.

    Nele os especialistas corrigem alguns errinhos dos relatriosanteriores.

    Entre outras coisas, ficamos sabendo agora de que os pobres maispobres do mundo, os chamados indigentes, somam quinhentosmilhes a mais do que aparecia nas estatsticas.

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    Alm disso, percebemos de repente que os pases pobres so bemmais pobres do que os numerinhos diziam, e que sua desgraa

    piorou enquanto o Banco Mundial estava vendendo-lhes a plula dafelicidade do mercado livre.

    E se todo isso ainda fosse pouco, agora ficamos sabendo que adesigualdade universal entre pobres e ricos tinha sido mal medida, eem escala planetria o abismo ainda mais fundo que o do Brasil,pas injusto por excelncia.

    Outra mentira

    Ao mesmo tempo, um ex-vice-presidente do Banco Mundial,Joseph Stiglitz, em um trabalho conjunto com Linda Bilmes,investigou os custos da guerra do Iraque.

    O presidente George W. Bush tinha anunciado que a guerrapoderia custar, no mximo, 50 bilhes de dlares, que a primeiravista no parecia caro demais, tratando-se da conquista de um pasto rico em petrleo. Eram nmeros redondos ou, melhor dizendo,quadrados. A carnificina do Iraque j dura mais de cinco anos, eneste perodo os Estados Unidos j gastaram um trilho de dlaresmatando civis inocentes. Caindo das nuvens, as bombas matam semsaber a quem. Embaixo da mortalha de fumaa, os mortos morremsem saber por qu. Aquele clculo de Bush basta para financiarsomente um trimestre de crimes e discursos. O nmero mentia, aservio desta guerra, nascida de uma mentira e que mentindo

    continua.

    E mais uma mentira

    Quando todo o mundo j sabia que no Iraque no existiam outrasarmas de destruio massiva que as usadas por seus invasores, aguerra continuou, apesar de j ter esquecido seus pretextos.

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    Ento, em 14 de dezembro do ano 2005, os jornalistasperguntaram quantos iraquianos tinham morrido nos dois primeiros

    anos da guerra.

    E o presidente Bush falou desse tema pela primeira vez.Respondeu:

    Uns trinta mil, mais ou menos.

    E a seguir fez uma piada, confirmando seu sempre oportuno senso

    de humor; e os jornalistas riram.

    No ano seguinte, reiterou esse nmero.

    No esclareceu que os trinta mil referiam-se aos civis iraquianoscuja morte tinha aparecido nos jornais. O nmero real era muitomaior, como ele bem sabia, porque a maioria das mortes no publicada; e bem sabia, tambm, que entre as vtimas havia muitosvelhos e crianas.

    Essa foi a nica informao proporcionada pelo governo dosEstados Unidos sobre a prtica de tiro ao alvo contra os civisiraquianos. O pas invasor s contabiliza, em uma conta detalhada,seus soldados cados. Os demais so inimigos, ou danos colaterais,que no merecem ser contados. E, de qualquer jeito, cont-lospoderia ser perigoso: essa montanha de cadveres poderia causar mimpresso.

    E uma verdade

    Bush estava vivendo seus primeiros tempos na presidnciaquando, no dia 27 de julho do ano 2001, perguntou aos seuscompatriotas:

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    Vocs podem imaginar um pas que no fosse capaz de cultivaralimentos suficientes para alimentar sua populao? Seria uma

    nao exposta s presses internacionais. Seria uma naovulnervel. E por isso, quando falamos da agricultura americana, naverdade falamos de uma questo de segurana nacional.

    Dessa vez, o presidente no mentiu. Ele estava defendendo osfabulosos subsdios que protegem o meio rural do seu pas.Agricultura americana significava, e significa ainda, nada mais doque Agricultura dos Estados Unidos.

    Contudo, o Mxico, outro pas americano, que melhor ilustraseus acertados conceitos. Desde que assinou o tratado de livrecomrcio com os Estados Unidos, o Mxico no cultiva alimentossuficientes para as necessidades da sua populao; assim, umanao exposta s presses internacionais e uma nao vulnervel,cuja segurana nacional corre grave perigo:

    - Atualmente, o Mxico compra dos Estados Unidos 10 bilhes dedlares em alimentos que poderia produzir;

    - Os subsdios protecionistas tornam impossvel a concorrncia;

    - Ao passo que vamos, daqui a pouco as tortillas mexicanas scontinuaro sendo mexicanas pelas bocas que as comem, mas nopelo milho de que so feitas, importado, subsidiado e transgnico;

    - O tratado prometeu prosperidade comercial, mas a carnehumana, camponeses falidos que migram, o principal produtomexicano de exportao.

    H pases que sabem se defender. So poucos. Por isso so ricos.H outros pases treinados para trabalhar pela prpria perdio. Soquase todos os outros.

    **

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    Somos todos culpveis pela runa do planeta

    A sade do mundo est um asco. 'Somos todos responsveis',

    clamam a vozes de alarme universal, e esta generalizao absolve:se todos ns somos responsveis, ningum o . Tais como coelhos,reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. a taxa denatalidade mais alta do mundo: os peritos geram peritos e maisperitos, que se ocupam em envolver o tema no papel celofane daambigidade.

    Eles fabricam a brumosa linguagem das exortaes ao 'sacrifcio

    de todos' nas declaraes dos governos e nos solenes acordosinternacionais que ningum cumpre. Estas cataratas de palavras inundao que ameaam converter-se numa catstrofe ecolgicacomparvel ao buraco na camada de oznio no se desencadeiamgratuitamente. A linguagem oficial afoga a realidade para concederimpunidade sociedade de consumo, a qual imposta como modeloem nome do desenvolvimento e das grandes empresas que lhesextraem o sumo.

    Mas as estatsticas confessam. Os dados ocultos debaixo dopalavrrio revelam que 20 por cento da humanidade comete 80 porcento das agresses contra a natureza, crime a que os assassinoschamam suicdio e a humanidade inteira quem paga asconseqncias da degradao da terra, da intoxicao do ar, doenvenenamento da gua, do enlouquecimento do clima e dadilapidao dos recursos naturais no renovveis.

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    A senhora Harlem Bruntland, que dirige o governo da Noruega,comprovou recentemente que se os 7 bilhes de habitantes do

    planeta consumissem o mesmo que os pases desenvolvidos doOcidente, "fariam falta 10 planetas como o nosso para satisfazertodas as suas necessidades". Uma experincia impossvel. Mas osgovernantes dos pases do Sul que prometem a entrada no PrimeiroMundo, passaporte mgico que tornar ricos e felizes todos ns, nodeveriam apenas ser processados por roubo. No esto apenas nosgozando, no: alm disso, esses governantes esto cometendo odelito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se

    apresenta como paraso, fundado na explorao do prximo e naaniquilao da natureza, o que nos est enfermando o corpo,envenenando a alma e nos deixando sem mundo.

    2. verde o que se pinta de verde.

    Agora os gigantes da indstria qumica fazem a sua publicidadeem cor verde, e o Banco Mundial lava a sua imagem repetindo apalavra ecologia a cada pgina dos seus relatrios e tingindo deverde os seus emprstimos. "Nas condies dos nossos emprstimosh normais ambientais estritas", esclarece o presidente do supremobanco do mundo.

    Somos todos ecologistas, at que alguma medida concreta limite aliberdade de contaminao. Quando o Parlamento do Uruguaiaprovou uma tmida lei de defesa do meio ambiente, as empresasque lanam veneno para o ar e apodrecem as guas sacaram

    subitamente a sua recm comprada mscara verde e gritaram a suaverdade em termos que poderiam ser assim resumidos: "osdefensores da natureza so advogados da pobreza, dedicados asabotar o desenvolvimento econmico e a espantar o investimentoestrangeiro".

    O Banco Mundial, em contrapartida, o principal promotor dariqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez

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    por reunir tantas virtudes, o Banco manejar, junto ONU, o recmcriado Fundo para o Meio Ambiente Mundial. Este imposto sobre a

    m conscincia dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do quehaviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que nodestruam a natureza.

    Inteno inquestionvel, concluso inevitvel: se esses projetosrequerem um fundo especial, o Banco Mundial est a admitir, defato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor aomeio ambiente. O Banco se chama Mundial, assim como o Fundo

    Monetrio se chama Internacional, mas estes irmos gmeos vivem,cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e anumerosa tecnocracia jamais cospe no prato onde come.

    Sendo, como , o principal credor do chamado Terceiro Mundo, oBanco Mundial governa nossos pases cativos que a ttulo de servioda dvida pagam aos seus credores externos 250 mil dlares porminuto, e lhes impe a sua poltica econmica em funo dodinheiro que concede e promete.

    A divinizao do mercado, que compra cada vez menos e pagacada vez pior, permite estufar de quinquilharias as grandes cidadesdo mundo, drogadas pela religio do consumo, enquanto os camposse esgotam, apodrecem as guas que os alimentam e uma crosta secacobre desertos que antes foram florestas.

    3. Entre o capital e o trabalho, a ecologia neutra.

    Pode-se dizer tudo de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: obom Al sempre enviava flores aos velrios das suas vtimas. Asempresas gigantes da indstria qumica, petrolfera e automobilsticapagaram boa parte das despesas da Eco 92, a confernciainternacional que no Rio de Janeiro se ocupou da agonia do planeta.

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    E essa conferncia, chamada Cimeira da Terra, no condenou astransnacionais que produzem poluio e dela vivem, e nem sequer

    pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comrcioque torna possvel a venda de veneno. No grande baile de mscarasdo fim do milnio, at a indstria qumica veste-se de verde.

    A angstia ecolgica perturba o sono dos maiores laboratrios domundo, que para ajudar a natureza esto inventando novos cultivosbiotecnolgicos. Mas estes desvelos cientficos no se propemencontrar plantas mais resistentes s pragas sem ajuda qumica,

    procuram sim novas plantas capazes de resistir aos praguicidas eherbicidas que esses mesmos laboratrios produzem. Das 10maiores empresas de sementes do mundo, seis fabricam pesticidas(Sandoz, Ciba-Geigy, Dekalb, Pfiezer, Upjohn, Shell, ICI). Aindstria qumica no tem tendncias masoquistas.

    A recuperao do planeta ou o que nos resta dele implica adenncia da impunidade do dinheiro e a liberdade humana. Aecologia neutral, que se parece antes com a jardinagem, faz-secmplice da injustia de um mundo onde a comida s, a gua limpa,o ar puro e o silncio no s direitos de todos e sim privilgios dospoucos que podem pag-los.

    Chico Mendes, operrio da borracha, caiu assassinado em fins de1988, na Amaznia brasileira, por crer naquilo que acreditava: que amilitncia ecolgica no pode ser divorciada da luta social. Chicoacreditava que a floresta amaznica no poder ser salva enquanto

    no se fizer a reforma agrria no Brasil. Cinco anos depois do crime,os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadoresrurais morrem assassinados a cada ano na luta pela terra, ecalcularam que quatro milhes de camponeses sem trabalho vopara as cidades abandonando as plantaes do interior.

    Adaptando os nmeros de cada pas, a declarao dos bisposretrata toda a Amrica Latina. As grandes cidades latino-americanas,

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    inchadas at arrebentar pela invaso incessante de exilados docampo, so uma catstrofe ecolgica: uma catstrofe que no se

    pode entender nem mudar dentro dos limites da ecologia, surdaperante o clamor social e cega perante o compromisso poltico.

    4. A natureza est fora de ns.

    Nos seus 10 mandamentos, Deus esqueceu de mencionar anatureza. Dentre as ordens que nos enviou do monte Sinai, o Senhorteria podido acrescentar, por exemplo: "Honrars a natureza da qual

    fazes parte". Mas isso no lhe ocorreu.

    H cinco sculos, quando a Amrica foi apresada pelo mercadomundial, a civilizao invasora confundiu a ecologia com a idolatria.A comunho com a natureza era pecado. E merecia castigo. Segundoas crnicas da Conquista, os ndios nmades que usavam cascas parase vestir jamais descascavam o tronco inteiro, para no aniquilar arvore, e os ndios sedentrios plantavam cultivos diversos e comperodos de descanso, para no cansar a terra.

    A civilizao que vinha impor as devastadoras monoculturas deexportao no podia entender as culturas integradas na natureza, econfundiu-as com a vocao demonaca ou a ignorncia. Para acivilizao que se diz ser ocidental e crist, a natureza era uma bestaferoz que era preciso domar e castigar a fim de que funcionassecomo uma mquina, posta ao nosso servio desde sempre e parasempre.

    A natureza, que era eterna, devia-nos escravatura. Muitorecentemente soubemos que a natureza se cansa, como ns, seusfilhos, e soubemos que, como ns, pode morrer assassinada. J nose fala em submeter a natureza, agora at os seus verdugos dizemque h que proteg-la. Mas tanto num como noutro caso, naturezasubmetida e natureza protegida, ela est fora de ns.

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    A civilizao que confunde os relgios com o tempo, ocrescimento com o desenvolvimento e o grandote com a grandeza,

    tambm confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo,labirinto sem centro, dedica-se a romper o seu prprio cu.

    **Caras e caretas(Para o dia do descobrimento da Amrica - 12 de outubro)

    Cristvo Colombo descobriu a Amrica em 1492? Ou antes deleela foi descoberta pelos vikings? E antes dos vikings? E os que aliviviam? No existiam?

    Conta a histria oficial que Vasco Nunhez de Balboa foi o

    primeiro homem que viu, a partir de um pico no Panam, os doisoceanos. E os que ali viviam? Eram cegos?

    Quem foi que deu, pela primeira vez, um nome ao milho e batatae ao tomate e ao chocolate, e s montanhas e aos rios da Amrica?Fernando Corts, Francisco Pizarro? E os que ali viviam? Erammudos?

    Disseram-nos, e nos continuam dizendo que os peregrinos doMayflower foram povoar a Amrica. A Amrica estava vazia?

    Como Colombo no entendia o que lhe diziam, achou que nosabiam falar.

    Como andavam nus, eram mansos e davam tudo em troca de nada,achou que no eram pessoas dotadas de razo.

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    E como estava seguro de que havia encontrado o Oriente pela

    porta dos fundos, achou que eram ndios da ndia.

    Depois, durante sua segunda viagem, o almirante promulgou umato estabelecendo que Cuba era parte da sia.

    O documento de 14 de junho de 1494 afirmava como evidnciaque os tripulantes de suas trs naves assim o reconheciam; e quequem dissesse o contrrio receberia cem aoitadas, e teria que pagar

    uma multa de dez mil maravedies, e teria a lngua cortada.

    O tabelio, Hernn Prez de Luna, deu f.

    E ao p da pgina, assinaram os marinheiros que sabiam assinar.

    Os conquistadores exigiam que a Amrica fosse o que no era.No estavam vendo o que viam, mas o que queriam ver: a fonte da juventude, a cidade do ouro, o reino das esmeraldas, o pas dacanela. E retrataram os americanos assim como antes tinhamimaginado os pagos do Oriente.

    Cristvo Colombo viu nas costas de Cuba sereias com caras dehomem e penas de galinha, e sups que no longe dali, os homens eas mulheres tinham rabo.

    Na Guiana, segundo sir Walter Raleigh, havia gente com os olhos

    nos ombros e a boca no peito.

    Na Venezuela, segundo o frei Pedro Simo, havia ndios deorelhas to grandes que as arrastavam pelo solo.

    No rio Amazonas, segundo Cristvo de Acunha, os nativostinham os ps ao contrrio, com os calcanhares para frente e os

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    dedos para trs, e segundo Pedro Martin de Angleria, as mulheres semutilavam um seio para o melhor disparo de suas flechas.

    Angleria, que escreveu a primeira histria da Amrica sem nuncater estado l, afirmou tambm que no Novo Mundo havia gente comrabo, como tinha descrito Colombo, e seus rabos eram to grandesque s podiam sentar-se em assentos com buracos.

    O Cdigo Negro proibia a tortura dos escravos nas colniasfrancesas. Porm, no era para torturar, mas para educar, que os

    amos aoitavam seus negros, e quando fugiam lhes cortavam ostendes.

    Eram comoventes as leis das ndias, que protegiam os ndios nascolnias espanholas. Porm, ainda mais comoventes eram o patbuloe a forca cravados no centro de cada Praa Principal.

    Muito convincente resultava a leitura do Requerimento, que nasvsperas do assalto a cada aldeia explicava aos ndios que Deustinha vindo ao mundo e que tinha deixado em seu lugar So Pedro, eque So Pedro tinha por sucessor o Santo Padre e que o Santo Padretinha feito a graa rainha de Castilha de toda essa terra e que porisso deviam deixar aquele lugar ou pagar tributo em ouro e que, emcaso de negativa ou demora, seria feita uma guerra contra eles, e elesseriam convertidos em escravos, assim como suas mulheres e filhos.Porm, este Requerimento de obedincia era lido num monte, emplena noite, em lngua castelhana e sem intrprete, na presena do

    tabelio e de nenhum ndio, porque os ndios dormiam, a algumaslguas de distncia, e no tinham a menor idia do que estava porvir.

    At no muito tempo, o 12 de outubro era o Dia da Raa.

    Porm, por acaso existe semelhante coisa? O que a raa, alm deuma mentira til para exprimir e exterminar o prximo?

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    No ano de 1942, quando os Estados Unidos entraram na Segunda

    Guerra Mundial, a Cruz Vermelha desse pas decidiu que o sanguenegro no seria admitido em seus bancos de plasma. Assim seevitava que a mistura de raas, proibidas na cama, se fizesse porinjeo. Algum viu, alguma vez, algum sangue negro?

    Depois, o Dia da Raa passou a ser o Dia do Encontro.

    Ser que as invases coloniais so encontros? As de ontem, e as

    de hoje, encontros? No deveramos cham-las de violaes?

    Quem sabe o episdio mais revelador da histria da Amricaocorreu no ano de 1563, no Chile. O fortim de Arauco estava sitiadopelos ndios, sem gua nem comida, porm o capito LorenzoBernal negou-se a se render. Da paliada, gritou:

    e Ns seremos cada vez mais!

    Com que mulheres? Perguntou o chefe ndio.

    Com as suas. Ns lhes faremos filhos que sero os vossospatres.

    Os invasores chamaram de canibais aos antigos americanos,porm mais canibal era o Cerro Rico de Potosi, cujas bocas comiama carde de ndios para alimentar o desenvolvimento capitalista da

    Europa.

    E os chamaram de idlatras, porque acreditavam que a naturezaera sagrada e que somos irmos de tudo o que tem pernas, patas,asas ou raizes.

    E os chamaram de selvagens. Nisso, pelo menos, no seequivocaram. To brutos eram os ndios que ignoravam que deviam

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    exigir visto, certificado de boa conduta e permisso de trabalho aColombo, Cabral, Corts, Alvarado, Pizarro e aos peregrinos do

    Mayflower.**Assim se prova que os ndios so inferiores

    Assim se prova que os ndios so inferiores (segundo osconquistadores dos sculos XVI e XVII)

    Suicidam-se os ndios das ilhas do Mar Caribe?Por que so vadios e no querem trabalhar.

    Andam desnudos, como se o corpo todo fosse cara?Porque os selvagens no tem pudor

    Ignoram o direito de propriedade, tudo compartiham e no temambio de riqueza?

    Porque so mais parentes do maado do que do homem.

    Banham-se com suspeitosa freqncia?

    Porque se parecem aos hereges da seita de Maom, que comjustia ardem nas fogueiras da Inquisio.

    Acreditam nos sonhos e lhes obedecem as vozes?Por influencia de Sat ou por crassa ignorncia.

    livre o homossexualismo? A virgindade no tem importnciaalguma?

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    Porque so promscuos e vivem na ante-sala do inferno.

    Jamais batem nas crianas e as deixam viver livremente?Porque so incapazes de castigar e de ensinar.

    Comem quando tm fome e no quando hora de comer?Porque so incapazes de dominar seus instintos.

    Adoram a natureza, considerando-a me e acreditam que ela sagrada?

    Porque so incapazes de ter religio e s podem professar aidolatria.

    Assim se prova que os negros so inferiores(Segundo os pensadores dos sculos XVIII e XIX)

    Baro de Montesquieu, pai da democracia moderna: impensvel que Deus, que sbio, tenha posto uma alma,

    sobretudo uma alma boa, num corpo negro.

    Karl Von Linneo, classificador de plantas e animais:O negro vagabundo, preguioso e inteligente, indolente e de

    costumes dissolutos.

    David Hume, entendido em entendimento humano:O negro pode desenvolver certas habilidades prprias das pessoas,

    assim como o papagaio consegue articular certas palavras.

    Etienne Serres, sbio em anatomia:

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    Os negros esto condenados ao primitivismo porque tm poucadistncia entre o umbigo e o pnis.

    Francis Galton, pai da eugenia, mtodo cientifico para impedir apropagao dos ineptos:

    Assim como um crocodilo jamais poder chegar a ser uma gazela,um negro jamais poder chegar a ser um membro da classe mdia.

    Louis Agassiz, eminente zologo:O crebro de um negro adulto equivale ao de um feto branco de

    sete meses: o desenvolvimento do crebro bloqueado porque ocrnio do negro se fecha muito antes do que o crnio do branco.**Muros

    O Muro de Berlim era a notcia de cada dia. Da manh noitelamos, vamos, escutvamos: o Muro da Vergonha, o Muro daInfmia, a Cortina de Ferro...

    Por fim, esse muro, que merecia cair, caiu. Mas outros murosbrotaram, continuam a brotar, no mundo, e ainda que sejam bemmaiores que o de Berlim, deles fala-se pouco ou nada.

    Pouco se fala do muro que os Estados Unidos esto a alar nafronteira mexicana, e pouco se fala do arame farpado de Ceuta eMelilla.

    Quase nada se fala do Muro da Cisjordnia, que perpetua aocupao israelita de terras palestinianas e daqui a pouco ser quinzevezes mais longo do que o Muro de Berlim.

    E nada, nada de nada, se fala do Muro de Marrocos, que desde hvinte anos perpetua a ocupao marroquina do Saara ocidental. Estemuro, minado de ponta a ponta e de ponta a ponta vigiado por

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    milhares de soldados, mede sessenta vezes mais que o Muro deBerlim.

    Por que ser que h muros to altissonantes e muros to mudos?Ser devido aos muros da incomunicao, que os grandes meios decomunicao constroem em cada dia?

    -- X --Em Julho de 2004, o Tribunal Internacional de Justia de Haia

    sentenciou que o Muro da Cisjordnia violava o direito internacionale mandou que fosse demolido. At agora, Israel no se inteirou.

    Em Outubro de 1975, o mesmo Tribunal tinha opinado: No se

    estabelece a existncia de vnculo algum de soberania entre o SaaraOcidental e Marrocos. Ficamos curtos se dissermos que Marrocosfoi surdo. Foi pior: no dia seguinte a esta resoluo, desencadeou ainvaso, a chamada Marcha verde, e pouco depois apoderou-se asangue e fogo dessas vastas terras alheias e expulsou a maioria dapopulao.

    E a continua.-- X --Mil e uma resolues das Naes Unidas confirmaram o direito

    autodeterminao do povo sarau.De que serviram essas resolues? Ia fazer-se um plebiscito, para

    que a populao decidisse o seu destino. Para assegurar a vitria, omonarca de Marrocos encheu de marroquinos o territrio invadido.Mas em pouco tempo, nem sequer os marroquinos foram dignos dasua confiana. E o rei, que tinha dito que sim, disse que quem sabe.E depois disse que no, e agora o seu filho, herdeiro do trono,tambm diz que no. A negativa equivale a uma confisso. Negando

    o direito de voto, Marrocos confessa que roubou um pas.Continuaremos a aceit-lo, como se nada fosse? Aceitando que na

    democracia universal os sbditos s podem exercer o direito deobedincia?

    De que serviram as mil e uma resolues das Naes Unidascontra a ocupao israelita dos territrios palestinianos? E as mil euma resolues contra o bloqueio de Cuba?

    O velho provrbio ensina:

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    - A hipocrisia o imposto que o vcio paga virtude.-- X --

    O patriotismo , hoje em dia, um privilgio das naesdominantes. Quando praticado pelas naes dominadas, opatriotismo torna-se suspeito de populismo ou terrorismo, ousimplesmente no merece a menor ateno.

    Os patriotas saraus, que desde h trinta anos lutam para recuperaro seu lugar no mundo, conseguiram o reconhecimento diplomticode oitenta e dois pases. Entre eles, o meu pas, o Uruguai, querecentemente se juntou grande maioria dos pases latino-

    americanos e africanos.Mas a Europa, no. Nenhum pas europeu reconheceu a RepblicaSarau. Espanha, tambm no. Este um grave caso deirresponsabilidade, ou talvez de amnsia, ou pelo menos de desamor.At h trinta anos o Saara era colnia de Espanha, e Espanha tinha odever legal e moral de amparar a sua independncia.

    Que deixou ali o domnio imperial? Ao fim de um sculo, quantosuniversitrios formou? Ao todo, trs: um mdico, um advogado eum perito mercantil. Isso deixou. E deixou uma traio. Espanhaserviu em bandeja essa terra e essas gentes para que fossemdevoradas pelo reino de Marrocos. Desde ento, o Saara a ltimacolnia de frica. Usurparam-lhe a independncia.

    -- X --Por que ser que os olhos se negam a ver o que rompe os olhos?Ser porque os saraus foram uma moeda de troca, oferecida por

    empresas e pases que compram a Marrocos o que Marrocos vende,ainda que no seja seu?

    H um par de anos, Javier Corcuera entrevistou, num hospital deBagdade, uma vtima dos bombardeamentos contra o Iraque. Umabomba tinha-lhe destroado um brao. E ela, que tinha oito anos deidade e tinha sofrido onze operaes, disse:

    - Oxal no tivssemos petrleo.Talvez o povo do Saara seja culpado porque na sua longa costa

    reside o maior tesouro pesqueiro do oceano Atlntico e porque sob

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    as imensides de areia, que to vazias parecem, jaz a maior reservamundial de fosfatos e talvez tambm haja petrleo, gs e urnio.

    No Coro poderia estar, ainda que no esteja, esta profecia:- As riquezas naturais sero a maldio das pessoas.-- X --Os acampamentos de refugiados, no sul da Arglia, esto no mais

    deserto dos desertos. um vastssimo nada, rodeado de nada, ondes crescem as pedras. E no entanto, nessas aridezes, e nas zonaslibertadas, que no so muito melhores, os saraus foram capazes decriar a sociedade mais aberta, e a menos machista, de todo o mundo

    muulmano.Este milagre dos saraus, que so muito pobres e muito poucos,no s se explica pela sua porfiada vontade de ser livres, que, issosim, sobra nesses lugares onde tudo falta: tambm se explica, emgrande parte, pela solidariedade internacional.

    E a maior parte da ajuda provm dos povos de Espanha. A suaenergia solidria, memria e fonte de dignidade, bem maispoderosa que os vaivns das governaes e os mesquinhos clculosdas empresas.

    Digo solidariedade, no caridade. A caridade humilha. No seequivoca o provrbio africano que diz:

    - A mo que recebe est sempre debaixo da mo que d.

    -- X --Os saraus esperam. Esto condenados a pena de angstia perptua

    e de perptua nostalgia. Os acampamentos de refugiados levam osnomes das suas cidades sequestradas, dos seus perdidos lugares de

    encontro, das suas querenas: El Aiun, Smara...Eles chamam-se filhos das nuvens, porque desde sempre

    perseguem a chuva.Desde h mais de trinta anos perseguem, tambm, a justia, que

    no mundo do nosso tempo parece mais esquiva que a gua nodeserto.

    **Carta ao Futuro

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    Prezado Senhor Futuro,

    Com a minha maior considerao:

    Estou lhe escrevendo esta carta para pedir-lhe um favor. O senhorsaber desculpar-me o incmodo.

    No, no tema, no que queira conhec-lo. O senhor h de sermuito solicitado, haver tanta gente que querer ter o prazer; mas euno. Quando alguma cigana me toma a mo para ler-me o porvir,saio correndo em disparada antes que ela possa cometer talcrueldade.

    E, no entanto, voc, misterioso senhor, a promessa que nossospassos perseguem querendo sentido e destino. E este mundo, estemundo e no outro mundo, o lugar onde o senhor nos espera. A mime aos muitos que no acreditamos nos deuses que nos prometemoutras vidas nos mais longnquos hotis de Mais Alm.

    E a est o problema, senhor Futuro. Estamos ficando sem mundo.Os violentos o chutam, como se fosse uma bola. Jogam com ele os

    senhores da guerra, como se fosse uma granada de mo; e os vorazeso espremem, como se fosse um limo. A este passo, temo, mais cedodo que tarde, o mundo poder ser no mais do que uma pedra mortagirando no espao, sem terra, sem ar e sem alma.

    Disso se trata, senhor Futuro. Eu lhe peo, ns lhe pedimos, queno se deixe desalojar. Para estar, para ser, necessitamos que o

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    senhor siga estando, que o senhor siga sendo. Que o senhor nosajude a defender a sua casa, que a casa do tempo.

    Quebre-nos esse galho, por favor. A ns e aos outros: aos outrosque viro depois, se tivermos depois.

    Sada-te atentamente,

    Um Terrestre**

    O paradoxo andante

    Cada dia, ao ler os dirios, assisto a uma aula de histria. Osdirios ensinam-me pelo que dizem e pelo que calam. A histria um paradoxo andante. A contradio move-lhe as pernas. Talvez porisso os seus silncios dizem mais que suas palavras e muitas vezesas suas palavras revelam, mentindo, a verdade.

    Dentro em breve ser publicado um livro meu chamado Espejos. algo assim como uma histria universal, e desculpem oatrevimento. "Posso resistir a tudo, menos tentao", dizia OscarWilde, e confesso que sucumbi tentao de contar alguns episdiosda aventura humana no mundo do ponto de vista dos que no saramna foto. Pode-se dizer que no se trata de fatos muito conhecidos.Aqui resumo alguns, apenas uns poucos.

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    Quando foram desalojados do Paraso, Ado e Eva mudaram-separa a frica, no para Paris.

    Algum tempo depois, quando seus filhos j se haviam lanadopelos caminhos do mundo, foi inventada a escrita. No Iraque, no noTexas.

    Tambm a lgebra foi inventada no Iraque. Foi fundada porMohamed al Jwarizmi, h mil e duzentos anos, e as palavrasalgoritmo e algarismo derivam do seu nome.

    Os nomes costumam no coincidir com o que nomeiam. NoBritish Museum, por exemplo, as esculturas do Partenon chamam-se"mrmores de Elgin", mas so mrmores de Fdias. Elgin era o nomedo ingls que as vendeu ao museu.

    As trs novidades que tornaram possvel o Renascimento europeu,a bssola, a plvora e a imprensa, haviam sido inventadas peloschineses, que tambm inventaram quase tudo o que a Europareinventou.

    Os hindus souberam antes de todos que a Terra era redonda e osmaias haviam criado o calendrio mais exato de todos os tempos.

    Em 1493, o Vaticano presenteou a Amrica Espanha eobsequiou a frica negra a Portugal, "para que as naes brbarassejam reduzidas f catlica". Naquele tempo a Amrica tinha

    quinze vezes mais habitantes que a Espanha e a frica negra cemvezes mais que Portugal. Tal como havia mandado o Papa, as naesbrbaras foram reduzidas. E muito.

    Tenochtitln, o centro do imprio azteca, era de gua. HernnCorts demoliu a cidade pedra por pedra e, com os escombros, tapouos canais por onde navegavam duzentas mil canoas. Esta foi a

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    Algumas datas: Desde o ano 1234, e durante os sete sculosseguintes, a Igreja Catlica proibiu que as mulheres cantassem nos

    templos. As suas vozes eram impuras, devido quele caso da Eva edo pecado original.

    No ano de 1783, o rei da Espanha decretou que no eramdesonrosos os trabalhos manuais, os chamados "ofcios vis", que atento implicavam a perda da fidalguia.

    At o ano de 1986 foi legal o castigo das crianas, nas escolas da

    Inglaterra, com correias, varas e porretes.

    Em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, em 1793 aRevoluo Francesa proclamou a Declarao dos Direitos doHomem e do Cidado.

    A militante revolucionria Olympia de Gouges prope ento aDeclarao dos Direitos da Mulher e da Cidad . A guilhotinacortou-lhe a cabea.

    Meio sculo depois, outro governo revolucionrio, durante aPrimeira Comuna de Paris, proclamou o sufrgio universal. Aomesmo tempo, negou o direito de voto s mulheres, porunanimidade menos um: 899 votos contra, um a favor.

    A imperatriz crist Teodora nunca disse ser uma revolucionria,nem nada que se parecesse. Mas h mil e quinhentos anos o imprio

    bizantino foi, graas a ela, o primeiro lugar do mundo onde o abortoe o divrcio foram direitos das mulheres.

    O general Ulisses Grant, vencedor da guerra do Norte industrialcontra o Sul escravocrata, foi a seguir presidente dos EstadosUnidos. Em 1875, respondendo s presses britnicas, respondeu: Dentro de duzentos anos, quando tivermos obtido do protecionismotudo o que ele nos pode proporcionar, tambm ns adotaremos a

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    liberdade de comrcio. Assim, pois, nos de 2075, o pas maisprotecionista do mundo adotar a liberdade de comrcio.

    "Botinzito" foi o primeiro co pequins que chegou Europa.Viajou para Londres em 1860. Os ingleses batizaram-no assimporque era parte do botim extorquido China no fim das longasguerras do pio. Vitria, a rainha narcotraficante, havia imposto opio a tiros de canho. A China foi convertida num pas dedrogados, em nome da liberdade, a liberdade de comrcio.

    Em nome da liberdade, a liberdade de comrcio, o Paraguai foianiquilado em 1870. Ao cabo de uma guerra de cinco anos, estepas, o nico das Amricas que no devia um centavo a ningum,inaugurou a sua dvida externa. s suas runas fumegantes chegou,vindo de Londres, o primeiro emprstimo. Foi destinado a pagaruma enorme indenizao ao Brasil, Argentina e Uruguai. O pasassassinado pagou aos pases assassinos, pelo trabalho que haviamtido a assassin-lo.

    O Haiti tambm pagou uma enorme indenizao. Desde que, em1804, conquistou a sua independncia, a nova nao arrasada teveque pagar Frana uma fortuna, durante um sculo e meio, paraespiar o pecado da sua liberdade.

    As grandes empresas tm direitos humanos nos Estados Unidos.Em 1886, a Suprema Corte de Justia estendeu os direitos humanoss corporaes privadas, e assim continua a ser. Poucos anos depois,

    em defesa dos direitos humanos das suas empresas, os EstadosUnidos invadiram dez pases, em diversos mares do mundo.

    Mark Twain, dirigente da Liga Antiimperialista, props ento umanova bandeira, com caveirinhas em lugar de estrelas. E outroescritor, Ambroce Bierce, confirmou: A guerra o caminhoescolhido por Deus para nos ensinar geografia.

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    Os campos de concentrao nasceram na frica. Os ingleses

    iniciaram o experimento, e os alemes desenvolveram-no. Depoisdisso Hermann Gring aplicou na Alemanha o modelo que o seupapa havia ensaiado, em 1904, na Nambia. Os professores deJoseph Mengele haviam estudado, no campo de concentrao daNambia, a anatomia das raas inferiores. As cobaias eram todasnegras.

    Em 1936, o Comit Olmpico Internacional no tolerava

    insolncias. Nas Olimpadas de 1936, organizadas por Hitler, aseleo de futebol do Peru derrotou por 4 a 2 a seleo da ustria, opas natal do Fhrer. O Comit Olmpico anulou a partida.

    A Hitler no lhe faltaram amigos. A Rockefeller Foundationfinanciou investigaes raciais e racistas da medicina nazi. A Coca-Cola inventou a Fanta, em plena guerra, para o mercado alemo. AIBM tornou possvel a identificao e classificao dos judeus, eessa foi a primeira faanha em grande escala do sistema de cartesperfurados.

    **Salva-vidas de chumbo

    (Em homenagem s mulheres camponesas)

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    Pelo que diz a voz de comando, nossos pases devem acreditar naliberdade do comrcio (embora ela no exista), honrar os

    compromissos (embora eles sejam desonrosos), atrair investimentos(embora eles sejam indignos) e ingressar no cenrio internacional(embora pela porta dos fundos).

    Ingressar no cenrio internacional: o cenrio internacional omercado. O mercado mundial, onde compram-se pases. Nada denovo. A Amrica Latina nasceu para obedec-lo, quando o mercadomundial nem era chamado assim, e de um jeito ou de outro

    continuamos atados ao dever de obedincia.

    Esta triste rotina dos sculos comeou com o ouro e a prata, econtinuou com o acar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, oestanho, a borracha, o cacau, a banana, o caf, o petrleo... O queesses esplendores nos deixaram? Nos deixaram sem herana nembonana. Jardins transformados em desertos, campos abandonados,montanhas esburacadas, guas apodrecidas, longas caravanas deinfelizes condenados morte antecipada, palcios vazios ondeperambulam fantasmas...

    Agora, chegou a vez da soja transgnica e da celulose. E outra vezrepete-se a histria das glrias fugazes, que ao som de seus clarinsnos anunciam longas tristezas.

    *

    Ser que o passado ficou mudo?

    Ns nos negamos a escutar as vozes que nos alertam: os sonhos domercado mundial so os pesadelos dos pases que se submetem aosseus caprichos. Continuamos aplaudindo o seqestro dos bensnaturais que Deus, ou o Diabo, nos deu, e assim trabalhamos pelanossa prpria perdio e contribumos para o extermnio da poucanatureza que nos resta neste mundo.

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    Argentina, Brasil e outros pases latino-americanos esto vivendo

    a febre da soja transgnica. Preos tentadores, rendimentosmultiplicados. A Argentina , e j faz tempo, o segundo maiorprodutor mundial de transgnicos, depois dos Estados Unidos. NoBrasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que poucofavor fazem democracia, e disse sim soja transgnica, emboraseu partido tenha dito no durante toda a campanha eleitoral.

    Isso po hoje e fome amanh, como denunciam alguns

    sindicatos rurais e organizaes ecologistas. Mas j sabemos que ospees ignorantes se negam a entender as vantagens do pasto deplstico e da vaca a motor, e que os ecologistas so uns estraga-prazeres que no dizem coisa-com-coisa.

    *Os advogados dos transgnicos afirmam que no est provado que

    prejudiquem a sade humana. Em todo caso, tambm no estprovado que no a prejudiquem. E j que so assim to inofensivos,por que os fabricantes de soja transgnica se negam a esclarecer, nasembalagens, que vendem o que vendem? A etiqueta de sojatransgnica no seria sua melhor publicidade?

    Acontece que existem evidncias de que estas invenes doDoutor Frankenstein fazem mal sade do solo e reduzem asoberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? Estamosou no estamos presos nas gaiolas da Monsanto e de outras grandes

    empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos adepender?

    Terras que produziam de tudo para o mercado local agora seconsagram a um nico produto para a demanda estrangeira. Ns nosdesenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro. O mono-cultivo uma priso, sempre foi, e agora, com os transgnicos, muito mais. A diversidade, por sua vez, liberta. A independncia se

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    reduz ao hino e bandeira, se a soberania alimentar no assentada.A autodeterminao comea pela boca. S a diversidade produtiva

    pode nos defender das sbitas despencadas de preos que socostume, mortfero costume, do mercado mundial.

    As imensas extenses destinadas soja transgnica estoarrasando os bosques nativos e expulsando os camponeses pobres.Poucos braos ocupam essas exploraes altamente mecanizadas,que ao mesmo tempo exterminam as plantaes pequenas e as hortasfamiliares com os venenos que fumigam. Multiplica-se o xodo rural

    s grandes cidades, onde se supe que os expulsos vo consumir, setiverem sorte, o que antes produziam. a agrria reforma: a reformaagrria pelo avesso.

    *

    A celulose tambm est na moda, em vrios pases.

    Agora, o Uruguai est querendo se transformar num centromundial de produo de celulose para abastecer de matria primabarata as longnquas fbricas de papel.

    Trata-se de monocultivos para a exportao, na mais pura tradiocolonial: imensas plantaes artificiais que dizem ser bosques e seconvertem em celulose num processo industrial que arroja detritosqumicos nos rios e torna o ar irrespirvel.

    No Uruguai, comearam por duas fbricas enormes, uma dasquais j est a meio construir. Depois surgiu outro projeto, e j sefala de outro, e outro mais, enquanto mais e mais hectares estosendo destinados fabricao de eucaliptos em srie. As grandesempresas internacionais nos descobriram no mapa do mundo, ecaram de sbito amor por este Uruguai onde no h tecnologiacapaz de control-las, o estado outorga subsdios e evita impostos,os salrios so raquticos e as rvores brotam num piscar de olhos.

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    Tudo indica que nosso pas, pequenino, no ir agentar o

    asfixiante abrao desses grandalhes. Como costuma acontecer, asbnos da natureza se transformam em maldies da histria.Nossos eucaliptos crescem dez vezes mais depressa que os daFinlndia, e isso se traduz assim: as plantaes industriais sero dezvezes mais devastadoras. No ritmo de produo previsto, boa partedo territrio nacional est sendo espremida at a ltima gota degua. Os gigantes sedentos vo secar nosso solo e nosso subsolo.

    Trgico paradoxo: este pas foi o nico lugar do mundo em que apropriedade da gua foi submetida a plebiscito popular. Poresmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a guaseria propriedade pblica. No haver maneira de evitar o seqestrodessa vontade popular?

    *

    A celulose, preciso reconhecer, transformou-se em algo assimcomo uma causa patritica, e a defesa da natureza no despertaentusiasmo. Pior: em nosso pas, algumas palavras que no erampalavres, como ecologista e ambientalista, esto se transformandoem insultos que crucificam os inimigos do progresso e ossabotadores do trabalho.

    Celebra-se a desgraa como se fosse boa notcia. Mais vale morrerde contaminao do que morrer de fome: muitos desempregados

    acreditam que no existe outro remdio alm de escolher entre duascalamidades, e os mercadores de iluses desembarcam oferecendomilhares e milhares de empregos. Acontece que uma coisa apublicidade, e outra a realidade. O MST, movimento doscamponeses sem terra, divulgou dados eloqentes, e que no valemapenas para o Brasil: a celulose gera um emprego a cada 185hectares, e a agricultura familiar cria cinco empregos a cada dezhectares.

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    As empresas prometem o melhor. Trabalho a rodo, investimentos

    milionrios, controles rgidos, ar puro, gua limpa, terra intacta. E eume pergunto: j que assim, por que no instalam essas maravilhasem Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular oturismo em nosso balnerio principal?

    **Colar de histrias

    Nossa regio o reino dos paradoxos.

    Brasil, peguemos alguns casos:Paradoxalmente, Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou

    as mais altas belezas da arte da poca colonial;paradoxalmente, Garrincha, arruinado desde a infncia pela

    misria e pela poliomielite, nascido para a infelicidade, foi o jogadorque mais alegria deu em toda a histria do futebol;

    e, paradoxalmente, j completou cem anos de idade OscarNiemeyer, que o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dosbrasileiros.

    -------------------

    Peguemos o caso da Bolvia: em 1978, cinco mulheresenfrentaram uma ditadura militar.

    Paradoxalmente, toda Bolvia riu delas quando iniciaram suagreve de fome.

    Paradoxalmente, toda Bolvia terminou jejuando com elas, at quea ditadura caiu.

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    Eu conheci uma dessas cinco lutadoras. Domitila Barrios, no

    povoado mineiro de Llallagua. Em uma assemblia de operrios dasminas, todos homens, ela se levantou e fez todos se calarem.

    - Quero lhes dizer isto - disse. Nosso inimigo principal no oimperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigoprincipal o medo, e o levamos dentro de ns.

    E anos depois reencontrei Domitila em Estocolmo. Expulsa daBolvia, foi ao exlio, com seus sete filhos. Domitila estava muito

    agradecida pela solidariedade dos suecos, cuja liberdade admirava,mas eles lhe davam pena, to solitrios que estavam, bebendosozinhos, comendo sozinhos, falando sozinhos. E lhes davaconselhos:

    - No sejam bobos dizia a eles. Ns, l na Bolvia, nos juntamos.Ainda que seja para lutar, nos unimos.

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    E quanta razo tinha.Porque eu digo: Existem os dentes, e no se juntam na boca?

    Existem os dedos, e no se juntam na mo?Juntamos: e no apenas para defender o preo de nossos produtos,

    mas tambm, e sobretudo, para defender o valor de nossos direitos.Esto juntos, embora de vez em quando simulem rixas e disputas, ospoucos pases ricos que exercem a arrogncia sobre todos os demais.Sua riqueza come pobreza, e sua arrogncia come medo. H bem

    pouco tempo, peguemos este caso, a Europa aprovou a lei queconverte os imigrantes em criminosos. Paradoxo dos paradoxos: aEuropa, que durante sculos invadiu o mundo, fecha a porta nosnarizes dos invadidos, quando retribuem a visita. E essa lei foipromulgada com uma assombrosa impunidade, que seriainexplicvel se no estivssemos acostumados a ser comidos e vivercom medo.

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    Medo de viver, medo de dizer, medo de ser. Esta nossa regio fazparte de uma Amrica Latina organizada para o divrcio de suas

    partes, para o dio mtuo e a mtua ignorncia. Mas, somenteestando juntos seremos capazes de descobrir o que podemos ser,contra uma tradio que nos adestrou para o medo e a resignao e asolido e que cada dia nos ensina a no nos querermos, a cuspir noespelho, a copiar em lugar de criar.

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    Ao longo de toda a primeira metade do sculo XIX, umvenezuelano chamado Simon Rodrguez, andou pelos caminhos denossa Amrica, no lombo de mula, desafiando os novos donos dopoder:

    - Vocs clamava don Simon vocs que tanto imitam oseuropeus, por que no os imitam no mais importante, que aoriginalidade?

    Paradoxalmente, por ningum era ouvido este homem que tantomerecia ser ouvido.

    Paradoxalmente, o chamavam de louco,porque tinha o bom senso de acreditar que devemos pensar com

    nossa prpria cabea,porque tinha o bom senso de propor uma educao para todos e

    uma Amrica de todos, e dizia que aquele que no sabe, qualquerum o engana e aquele que no tem, qualquer o compra.

    Porque tinha o bom senso de duvidar da independncia de nossos

    pases recm-nascidos:- No somos donos de ns mesmos dizia. Somos independentes,

    mas no somos livres.

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    Quinze anos depois da morte do louco Rodrguez, o Paraguai foiexterminado. O nico pas hispano-americano verdadeiramente livre

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    foi paradoxalmente assassinado em nome da liberdade. O Paraguaino estava preso na jaula da dvida externa, porque no devia um

    centavo a ningum, e no praticava a mentirosa liberdade decomrcio, que nos impunha e nos impe uma economia deimportao e uma cultura de impostao.

    Paradoxalmente, aps cinco anos de guerra feroz, entre tantamorte sobreviveu a origem.

    Segundo a mais antiga de suas tradies, os paraguaios nasceramda lngua que lhes deu nome, e entre as runas fumegantes

    sobreviveu essa lngua sagrada, a lngua primeira, a lngua guarani.E em guarani ainda falam os paraguaios na hora da verdade, que ahora do amor e do humor.

    Em guarani, e significa palavra e tambm significa alma. Quemmente a palavra, trai a alma.

    Se te dou minha palavra, me di.

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    Um sculo depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chiledeu sua palavra, e se deu.

    Os avies cuspiam bombas sobre o palcio do governo, tambmmetralhado pelas tropas de terra. Ele havia dito:

    - Eu, daqui, no saio vivo.

    Na histria latino-americana, uma frase freqente. Foipronunciada por uns quantos presidentes que depois saram vivos,para continuarem pronunciando-a. Mas, essa bala no mentiu. Abala de Salvador Allende no mentiu.

    Paradoxalmente, uma das principais avenidas de Santiago doChile se chama, ainda, Onze de Setembro. E no tem esse nomepelas vtimas das Torres Gmeas de Nova York. No. Leva esse

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    nome em homenagem aos verdugos da democracia no Chile, comtodo respeito por esse pas que amo, me atrevo a perguntar, por puro

    senso comum: No seria hora de mudar o nome? No seria hora decham-la Avenida Salvador Allende, em homenagem dignidade dademocracia e dignidade da palavra?

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    E saltando a cordilheira, me pergunto: Por que ser que CheGuevara, o argentino mais famoso de todos os tempos, o mais

    universal dos latino-americanos, tem o costume de continuarnascendo?

    Paradoxalmente, quanto mais o manipulam, quanto mais o traem,mais nasce. Ele o mais nascedor de todos.

    E me pergunto: No ser porque ele dizia o que pensava, e fazia oque dizia? No ser que por isso continua sendo to extraordinrio,neste mundo onde as palavras e os fatos muito raramente seencontra, e quando se encontram no se sadam, porque no sereconhecem?

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    Os mapas da alma no tm fronteiras, e eu sou patriota de vriasptrias. Mas, quero culminar esta pequena viagem pelas terras daregio evocando um homem nascido, como eu, aqui por perto.

    Paradoxalmente, ele morreu h um sculo e meio, mas continuasendo meu compatriota mais perigoso. To perigoso que a ditaduramilitar do Uruguai no pde encontrar uma nica frase sua que nofosse subversiva, e teve que decorar com datas e nomes de batalhaso mausolu que ergueu para ofender sua memria.

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    A ele, que se negou a aceitar que nossa ptria grande se rompesseem pedaos;

    a ele, que se negou a aceitar que a independncia da Amricafosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres,

    a ele, que foi o verdadeiro primeiro cidado ilustre da regio,dedico esta distino, que recebo em seu nome.

    E termino com palavras que lhe escrevi h algum tempo:

    1820, Paso del Boquern. Sem voltar a cabea, voc afunda noexlio. O vejo, estou vendo-o: desliza do Paran com agilidade de

    um lagarto e afasta flamejando seu poncho esfarrapado, ao trote docavalo, e se perde na mata. Voc nos diz adeus sua terra. Ela noacreditava. Ou, talvez, voc no sabe, ainda, que parte para sempre.

    A paisagem fica cinza. Voc vai, vencido, e sua terra fica semalento.

    Lhe devolvero a respirao os filhos que nascerem, os amantesque chegarem? Os que dessa terra brotam, os que nela entram, serodignos de tristeza to profunda?

    Sua terra. Nossa terra do sul. Voc lhe ser muito necessrio, donJos cada vez que os ambiciosos se lastimarem e a humilharem, cadavez que os bobos a considerarem muda ou estril, voc far falta.Porque voc, don Jos Artigas, general dos simples, a melhorpalavra que ela pronunciou.

    **Espelhos, uma histria quase universal

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