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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008
Protágoras, Górgias, os Dissoi Logoi e a possibilidade do ensino de aretē
Joseane PREZOTTO
PG –UFPR
Protágoras e Górgias são considerados os mais importantes sofistas da primeira
geração. Atuantes desde a metade do séc. V a.C. eles vivenciaram e ajudaram a concretizar
mudanças profundas na sociedade grega de sua época. O século V a.C. é o século da
consolidação da democracia em Atenas, e também na Sicília e em outros lugares, e a atuação
dos sofistas está diretamente relacionada com o surgimento da pólis democrática. No
ambiente das disputas judiciais e assembléias públicas, estimulado pelas reformas
constitucionais de Efialtes e Péricles a partir de 462 a.C.1, o êxito político dependia da
capacidade de influenciar e persuadir a multidão2 e, se necessário, de defender-se, ou acusar
alguém, diante dos tribunais3. As habilidades oratórias tornam-se indispensáveis àquele que
almeja ascensão social e reconhecimento público. Para o cidadão comum, aprender retórica,
além de ser vantajoso em possíveis contendas judiciais, era um meio de tornar-se estimado e
influente. Além disso, não ser capaz de proferir um discurso razoável ou de acompanhar o
discurso do adversário era considerado desonroso. Grote (1907, p. 302, tradução nossa)
afirmou que “nenhum cidadão, rico ou pobre, estava isento de conhecer tais habilidades,
alguma aptidão com as palavras não era menos essencial que alguma aptidão com armas.”
Assim, há uma demanda crescente, neste período, por manuais de retórica e também por
especialistas que escreviam discursos mediante encomenda, os logógrafos. No outro nível, o
da formação do homem político, enquadra-se a atividade profissional dos sofistas.
1 Efialtes, com a colaboração de Péricles, diminui os poderes legislativos e jurídicos do antigo Conselho do Areópago aumentando a importância dos Tribunais e do Conselho dos Quinhentos. Por volta de 461 a.C., Péricles institui o pagamento de uma pequena quantia aos que trabalhavam nos júris.“O pagamento pelos cargos, pelo serviço no júri e até pela assistência à ekklesía viria a tornar-se um dos traços mais característicos da democracia radical.” (JONES, 1997, p. 23) 2 Estima-se que a Assembléia contava, normalmente, com a presença de quatro a seis mil cidadãos e reunia-se quarenta vezes fixas por ano ou mais, caso fossem necessárias reuniões de emergência. Os assuntos ali debatidos eram variados: acordos de guerra e paz, expedições militares e provisões para a guerra; eleição e supervisão das magistraturas; eleição de estrategos e outros cargos militares; casos de ostracismo e condenações; legislação sobre assuntos de governo interno, etc. 3 Cada tribunal normalmente compunha-se por quinhentos e um membros. Dependendo da gravidade da causa reuniam-se dois tribunais, mil e um membros, ou três, mil quinhentos e um membros, e assim por diante. O número total era sempre ímpar para evitar o empate. O número elevado de jurados evitava a prática do suborno e acabou por valorizar a retórica forense.
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Caracterizar os sofistas a partir de sua atividade profissional como professores de
retórica parece ser a maneira menos controversa de defini-los. Eles supriram a demanda por
uma educação juvenil destinada a formar homens capazes de distinguirem-se dos demais nos
assuntos públicos e privados. Vistos positivamente, eles eram “os transmissores de
competências valorizadas no seu tempo como instrumentos decisivos do sucesso na carreira
política e, de um modo geral, nos êxitos mundanos” (SOUSA; PINTO, 2002, p. 13-14). Seu
ensino era pago e eram procurados, principalmente, por jovens de famílias abastadas que
pretendiam alcançar poder político através do domínio das técnicas do discurso persuasivo.
Que alguns desses jovens fossem mal intencionados e utilizassem, futuramente, os
ensinamentos sofísticos com fins inescrupulosos era um risco da profissão e algo pelo qual os
sofistas foram muitas vezes responsabilizados4.
O estudo da retórica orientado pelos sofistas incluía desde o conhecimento de
pequenos detalhes gramaticais5 até a discussão de assuntos de composição, estrutura e
argumentação. Como definiu Vervaecke (1990, p. 143, tradução nossa): “[neste ambiente] a
arte oratória consiste em encontrar, a propósito de toda realidade, os discursos possíveis,
discernir o mais valioso e defender sua tese, mesmo, e sobretudo, se ela se opõe à opinião
corrente.” O objetivo destes estudos era a construção do discurso não apenas mais adequado e
convincente, mas do melhor e mais envolvente. Suas práticas pretendiam o aprimoramento
no uso de técnicas discursivas tais como: o uso do argumento provável ou verossimilhante;
contra-argumentação e justaposição de argumentos contrários; adequação à ocasião (causa,
público, situação, etc); figuras de linguagem, efeitos causados sobre o público; etc.
Os sofistas, no sentido amplo de sua atuação, foram os promotores da ‘nova
educação’. Até sua época, uma educação para além do nível básico ofertado às crianças pelos
professores de ginástica, música6 e gramática, ensinava a ler e escrever, era privilégio de umas
poucas famílias aristocráticas. O acesso ao saber era, de fato, um legado familiar e, por isso,
4 “These young men wanted political power. To gratify ambition was their end and aim. But this was an end which the Sophists did not implant. They found it pre-existing, learnt from other quarters [sic]; and they had to deal with it as a fact.” (GROTE, 1907, p. 320 cf. Ibidem, p. 319-322) 5 Protágoras teria sido o primeiro a distinguir quatro tipos de discursos (pedido, ordem, pergunta e resposta) ou sete (além das anteriores, narração, relato e intimação), e o primeiro a dividir os nomes em femininos, masculinos e neutros. Pródico foi famoso por seu estudo da distinção dos significados entre palavras consideradas sinônimas. Como seus estudos tinham fins práticos bem definidos, o mais provável é que tratassem estas e outras questões gramaticais de um ponto de vista normativo, a fim de que seus alunos seguissem determinadas ‘regras’ consideradas mais adequadas. 6 A tarefa do professor de música, ou gramática, ou ambos, continha normalmente, além da orientação prática, um elemento moralizante: o estudo dos textos edificantes dos poetas, os alunos deveriam memorizá-los e recitá-los.
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acreditou-se ser um bem hereditário, próprio da nobreza. O mesmo com os cargos
importantes, num regime oligárquico eles eram um direito de nascimento. As instituições
democráticas criaram o espaço para a educação sofística e possibilitaram que ela fosse um
instrumento de promoção social. Deve-se lembrar também que, após as Guerras Médicas e a
criação da Liga de Delos em 478 a.C., Atenas torna-se a cidade-estado mais importante da
Grécia, vivendo um momento de grande prosperidade econômica, atraindo sofistas e outros
pensadores, que encontravam ali muitos homens ricos dispostos a recebê-los e serem seus
discípulos. Mesmo sendo destinada às elites e não às massas7, a ação educativa dos sofistas
suscitou a discussão sobre as conseqüências da democratização do saber.
De um modo geral, alguns professores esclarecidos da geração anterior
assemelhavam-se aos sofistas, como os preceptores de Péricles, que ensinavam sobre
astronomia, geografia e física e mantinham com seus alunos discussões dialéticas acerca de
problemas diversos. No entanto, embora partilhassem com seus predecessores o ofício de
treinar os jovens para os deveres, as atribuições e os acontecimentos da vida adulta, privada
ou pública, os sofistas distinguiram-se
[...] por trazer à tarefa uma gama maior de conhecimento, com uma maior multiplicidade de tópicos científicos e outros - não só poderes mais impressionantes de composição e discurso, servindo como um exemplo pessoal ao aluno, mas também uma compreensão dos elementos da boa oratória, para poder transmitir os preceitos conducentes àquela realização - um tesouro considerável de pensamento acumulado em moral e assuntos políticos, destinado a tornar sua conversa instrutiva - e discursos prontos, sobre temas gerais ou ‘lugares comuns’, para que os alunos aprendessem de cor. (GROTE, 1907, p. 317, tradução nossa).
Acreditar que os sofistas transmitissem apenas técnicas e aptidões específicas é
simplificar o escopo de sua atuação. Influenciados pela filosofia jônica, os sofistas são
racionalistas e inquiridores. As explicações ‘naturais’, de Anaximandro em diante, para a
origem da vida e da sociedade abriram caminho para o tratamento dos eventos como
problemas perscrutáveis, não mais como mistérios intangíveis onde os papéis fundamentais
eram representados pelos deuses. O contato com outros povos, a percepção da relatividade
dos valores morais, dos costumes, da religião, foi outro fator que contribuiu para a formação
da nova geração de pensadores relativistas e humanistas. Os gregos tinham gosto pela
descrição dos costumes e modos de vida dos povos ‘exóticos’ e começaram a nutrir interesse
7 Geralmente, apenas tinha acesso ao ensino sofista quem podia pagar seu preço. “Os recursos transmitidos, os conhecimentos especializados, bem como a aptidão dialéctica e retórica, parecem tão importantes ao sofista e aos seus ouvintes, que, regra geral, aquele exige uma retribuição que pode chegar a ser bastante elevada.” (LESKY, 1971, p. 373)
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pela discussão dos fatores desencadeantes desta ou daquela moral. Não sendo a moral algo
universal era, então, produto de uma interação específica, não determinada divinamente. Os
sofistas participaram ativamente da vida intelectual de sua época, propondo questões
fundamentais sobre a natureza humana8. Como disse Guthrie (1995, p. 78): “é notável que
muitos argumentos que se poderiam pensar éticos ou políticos, e, sendo assim, tratar de
assuntos meramente práticos, dependam, de fato, de temas filosóficos mais profundos.” Dessa
forma, seus discípulos recebiam muito mais que uma educação instrumental; implícita ou
explicitamente, eram introduzidos a um modo novo de ver o mundo e atuar sobre ele.
Outra característica dos sofistas é a de serem itinerantes, assim como os antigos aedos.
Viajavam pelo mundo grego, visitando várias cidades, transmitindo os seus conhecimentos
em palestras a pequenos grupos, em conferências maiores ou em epídeixeis. Também se
apresentaram em festivais e em outras ocasiões públicas. Dos sofistas mais famosos desta
época9, apenas Antífon parece ter sido ateniense; Protágoras era de Abdera10 (na costa da
Trácia), Górgias de Leontinos (na Sicília11), Pródico de Céos (em território jônico) e Hípias
de Élis (nordeste do Peloponeso). Todos eles estiveram, em algum ou vários momentos de
suas vidas, em Atenas, pois “Atenas, por uns sessenta anos, na segunda metade do século V
a.C., era o verdadeiro centro do movimento sofista. De fato, tanto isso é verdade que, sem
Atenas, é provável que o movimento dificilmente teria vindo a existir.”(KERFERD, 2003, p.
31) A atividade assim desenvolvida por estes homens permitiu que, mesmo sendo
8 Estiveram envolvidos, principalmente, com questões práticas e manifestaram-se, sobretudo, acerca de questões relativas à interação social humana. Debateram, por exemplo, segundo Guthrie (op. cit., p. 29): o status das leis e dos princípios morais; a teoria do progresso do homem do estado selvagem para o civilizado, substituindo a crença tradicional de uma degeneração a partir de um passado áureo; a idéia do contrato social; teorias subjetivas do conhecimento; ateísmo e agnosticismo; hedonismo e utilitarismo; a unidade do gênero humano; escravidão e igualdade; a natureza da aretē; a importância da retórica e o estudo da linguagem. Alguns deles interessaram-se pelas áreas ‘mais científicas’ existentes à época, como o estudo da matemática, geometria, astronomia e outras matérias afins. cf. KERFERD, 2003, p. 10-13. Como disse Lesky (1971, p. 370): “nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele [o movimento sofista] na permanência de seus resultados, e as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na história do pensamento ocidental até nossos dias”. 9Conforme Kerferd (2003, p. 75), “conhecemos os nomes de mais de vinte e seis sofistas do período entre mais ou menos 460 a 380 a.C. [...], talvez oito ou nove eram muito famosos, e a esses deveríamos acrescentar os autores de duas obras anônimas, a Dissoi Logoi e o chamado Anônimo Iâmblico.” A lista de nomes dos sofistas mais famosos, cujos testemunhos foram compilados por Diels e Kranz (1960), inclui: Protágoras, Górgias, Pródico, Hípias, Antífon, Trasímaco, Licófron e Crítias, aos quais Kerferd (2003) acrescenta: Cálicles, Eutidemo e Dionisodoro; e Guthrie (1995): Antístenes e Alcidamas. Se tirássemos destas listas os mais controversos e aqueles sobre os quais não teríamos muito que dizer, por termos pouca informação, ficaríamos com Antífon, Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias. 10 Mesma cidade natal de Demócrito, os dois foram coetâneos. 11 Segundo a tradição, a retórica iniciou-se na Sicília com Córax e Tísias, estimulada pelo grande número de processos judiciais existentes no início da democracia, após a queda dos tiranos de Siracusa em 467 a.C.
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estrangeiros, exercessem influência política indireta nas cidades onde atuaram, por educarem
os jovens das famílias mais ilustres e mais poderosas.
Todas as características do movimento sofista até aqui expostas suscitam tanto
admiração como repulsa. A nova educação que promove é satirizada por Aristófanes em As
Nuvens. Os sofistas foram acusados de venderem um conhecimento imoral e pernicioso,
ensinando os jovens a justificarem más ações com argumentos retóricos, livrando-se assim de
suas conseqüências. Os ricos e conservadores consideravam-nos uma ameaça pelas mudanças
e discussões que incitavam; os mais pobres, que não tinham acesso ao seu ensino, viam-nos
com preconceito, como os detratores dos bons e velhos costumes. Neste ambiente hostil,
‘sofista’12 passa a ser um título depreciativo, usado para intelectuais, adivinhos, pedantes,
ateus, físicos, filósofos, etc., implicando charlatanismo e velhacaria ou astúcia, esperteza em
sentido pejorativo. A má reputação dos sofistas foi perpetuada pelo menosprezo de Platão,
cuja opinião continua, ainda hoje, a influenciar a visão que se tem do período sofístico.
Apenas a partir do séc. XIX é que se começa a desvincular o estudo do movimento sofista da
visão legada por Platão.
A crítica platônica, em linhas gerais, recai sob duas acusações: 1) os sofistas não são
pensadores sérios e 2) eles são indivíduos imorais. A primeira acusação diz respeito ao
empreendimento platônico que busca ridicularizar as proposições ou as possíveis conclusões
advindas da reflexão sofista, negando às doutrinas sofísticas valor filosófico. A energia gasta
por Platão neste empreendimento, por si só, já é indício da influência exercida por estes
pensadores. Grosso modo, os sofistas difundiam uma concepção relativista aplicada aos níveis
ontológico e epistemológico, e à questão da verdade, e foram considerados rivais por Platão,
que desenvolvia uma filosofia essencialmente ‘absolutista’. Embora Platão tenha tratado
Protágoras e Górgias com respeito, diferenciando-os dos homens medíocres ligados mais
tardiamente ao movimento, ele transmite um entendimento fundamentalmente errôneo (ou
conscientemente distorcido) do pensamento sofista. De qualquer forma, a obra platônica é
nossa principal fonte de informação sobre os sofistas, pois quase nada restou de suas obras, é
necessário, contudo, abordá-la de forma crítica e ponderada, pois sua exposição é uma
interpretação pessoal. 12 “Primeiramente, ‘sofista’ era sinônimo de ‘sábio’ e abrangia não só o que se afirmava como detentor de saber especializado numa determinada área, como se aplicava, num plano mais genérico, a todo aquele que, conciliando a preparação teórica e a maneira sensata de orientar a sua vida prática, surgia aos olhos dos demais como protagonista do modelo de sabedoria. [...] Na seqüência do desenvolvimento da polis, quando surgiram os sofistas como agentes ou professores de um novo modelo de paideia, deu-se uma modificação no conteúdo semântico do termo, pois este passou a designar esse tipo de novos mestres, com toda a ambivalência que a sua reputação provocava” (SOUSA; PINTO, 2005, p. 12-13).
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A segunda acusação envolve as críticas direcionadas à atividade profissional dos
sofistas, visando desmerecer o valor da educação que ofereciam. São caracterizados, no
diálogo Sofista, como caçadores de jovens ricos e comerciantes do ensino. Como Kerferd
(2003, p. 47-49) elucidou, para entender esta crítica é necessário considerar a oposição
conservadora a que qualquer um tenha acesso à formação política simplesmente pagando.
Como dito acima, até este momento a educação juvenil era restrita aos membros das famílias
nobres e acontecia numa relação de amizade entre o jovem e seu mestre. Que a instrução
estivesse acessível a todos que pudessem pagar por ela forçava a reconsideração de estruturas
internas da sociedade. O ambiente da pólis democrática era propício a tais questionamentos,
mas a polêmica foi grande e deu origem a um dos grandes debates da época: saber se aretē13
pode ou não ser ensinada.
Tradicionalmente, aretē era palavra usada para referir-se à qualidade inata dos grandes
homens, os que se destacaram historicamente pela coragem, força, valentia, sabedoria,
liderança; mas também havia um outro uso desta palavra, que denotava a excelência em uma
tarefa ou função específica, e relaciona-se ao domínio de uma técnica, téchnē, termo
comumente traduzido por arte.
No diálogo Protágoras, Platão apresenta Sócrates e Protágoras debatendo esta
questão. Ao afirmar que ensina téchnē política (319a), Protágoras é confrontado com dois
argumentos socráticos que pretendem demonstrar que ‘essa’ aretē não é um conhecimento
que possa ser transmitido. Os argumentos socráticos são: 1) em questões técnicas os
atenienses consultam especialistas, já em questões políticas, qualquer um pode opinar,
ninguém se opõe a isto acreditando que é preciso ter estudado ou freqüentado um professor
(319b-d); 2) os melhores e mais sábios cidadãos não foram capazes de transmitir sua aretē a
outros, cita Péricles (319e-320b). Protágoras expõe sua opinião através de um mito e conclui
que todos os homens são dotados de qualidades que os tornam capazes de participar da téchnē
política: justiça e respeito, díkē e aidōs – apenas por possuírem todos estas qualidades é que a
vida em sociedade é possível (320d-323c). Depois demonstra que os atenienses crêem que a
13 A palavra aretē costuma ser traduzida por ‘virtude’, termo que evitei usar, preferindo manter o vocábulo grego transliterado. A palavra ‘virtude’ parece ter um uso muito particular, atualmente, ligado a um conceito cristão de castidade, piedade e correção, que, talvez, funcionasse dentro do contexto idealista da filosofia platônica, mas não no ambiente prático do movimento sofista. Alguns sentidos atuais contêm o entendimento sofístico, mas há muitos mais que se afastam dele. Na discussão aqui apresentada, ‘virtude’ é um termo que poderia vir a desmerecer o debate; não é a possibilidade de, através do ensino, tornar um homem puro e de ‘bom coração’ que está sendo discutida, mas a de torná-lo um homem influente, capaz de tomar decisões adequadas e ser honrado pelos demais, recebendo distinção e reconhecimento público, bem como posição de destaque no governo da cidade.
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aretē, ou téchnē política pode ser adquirida, pois eles não punem por defeitos naturais ou
acidentais, mas punem os que cometem injustiças, com fins educativos, para coibir as pessoas
de agirem mal e estimular o aprendizado de aretē (323d-324d).
A seguir irá expressar-se não mais em um mito, mas em um logos: para que a pólis
exista, todos os cidadãos, polítai, devem possuir sentimento de justiça (dikaiosýnē),
autocontrole (sōphrosýnē) e retidão (hósion), em uma palavra, aretē, e que o ensino de aretē é
universal através da comunidade, por pais, amas, professores, através das leis e punições;
assim, é posse de todos porque é ensinada a todos, embora aqueles que a ensinem não sejam
chamados professores de aretē. “É importante notar que Protágoras não está simplesmente
dizendo que as pessoas absorvem inconscientemente as tradições da comunidade nas quais
vivem – não é uma questão casual, é uma parte essencial do ensino formal recebido por
todos.” (KERFERD, 2003, p. 229). Quanto à diferença de aretē entre pais e filhos, ela deve-se
às aptidões naturais, às oportunidades que tiveram, à qualidade da instrução que receberam e
de seus professores. Encontrar um professor capaz de fazer alguém avançar em aretē não é
tarefa fácil, mas Protágoras se diz um deles: “Tenho-me na conta de um desses, superior aos
demais homens no conhecimento daquilo que os pode deixar melhores e mais honestos, e me
julgo, sem dúvida, merecedor de receber o pagamento estipulado” (PLATÃO, 1980, p. 64).
O entendimento protagórico de aretē é: um conjunto de qualidades que permitem
realizar uma tarefa ou encargo do melhor modo possível, no caso, uma tarefa social: ser um
bom cidadão, isto é, atuar e colaborar para o melhor de sua cidade e família. Todas as pessoas
recebem uma educação mínima para a convivência social, o objetivo do ensino de Protágoras
é a aretē neste assunto, a aretē política, totalmente voltada para a época e sociedade em que
vivia. As pessoas poderiam, assim, melhorar sua situação social através da educação.
Também o capítulo seis do Dissoi Logoi14 discute este tema, o ensino e aprendizagem
de aretē e sophía. O capítulo inicia-se afirmando que há uma tese, nem verdadeira nem nova,
que sustenta que aretē e sophía não se podem nem ensinar nem aprender; seguem-se cinco
argumentos usados pelos defensores desta tese: 1) não se pode continuar a possuir algo depois
que o transmitimos a outro, 2) não se conhecem os mestres deste ensino, 3) os sábios não são
capazes de transmitir sua sabedoria aos seus, 4) alguns que foram discípulos dos
14 O Dissoi Logoi é um tratado anônimo transmitido em adendo aos escritos de Sexto Empírico, sua composição costuma ser datada de 404 a.C.. Apresenta uma construção discursiva que reflete uma prática sofística da qual as Antilogiai de Protágoras também seriam um exemplo, constitui-se da oposição de duas teses diferentes acerca de um mesmo tema. No caso do capítulo seis, no entanto, apenas uma tese é apresentada e passa-se a valorar e contrastar seus argumentos concluindo-se pela insuficiência deles.
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sofistas não se aprimoraram e 5) muitos se tornaram dignos de estima sem terem tido contato
com os sofistas15 (6, 1-6).
O autor considera essa tese simplória: com respeito ao primeiro argumento, os
professores ensinam aquilo que sabem sem perderem seu conhecimento (Dissoi Logoi, 6, 7).
Os outros argumentos, note-se, são similares àqueles que Protágoras refuta no diálogo
homônimo, inclusive, como defendeu Solana Dueso (1996, p. 162-166), há semelhanças
teóricas na réplica desenvolvida pelos dois textos que poderia sugerir uma inspiração
protagórica para o Dissoi Logoi,- são elas: conceito amplo de ensino incluindo a escola e a
sociedade; valoração das disposições naturais enquanto condições para o êxito da
aprendizagem. Estas duas características são as mesmas apontadas por Taylor (apud Kerferd,
2003, p. 232) para o texto platônico: “Protágoras está empenhado em explicar a) que é
possível ensinar a alguém como ser um homem bom, em sentido lato de ‘ensinar’, que inclui
condicionamento nos costumes sociais bem como instrução em técnicas específicas tais como
retórica, e b) que as disposições inalteráveis de caráter, que produzem a conduta especificada
como apropriada às várias virtudes particulares (p. ex. ações justas ou corajosas), não são
idênticas entre si”. No Protágoras os posicionamentos encontram-se desenvolvidos e
argumentados, o Dissoi Logoi traz afirmações concisas. A refutação do autor do Dissoi Logoi
aos quatro argumentos restantes é simples: há mestres de sabedoria e virtude, e mesmo que
apenas um a tenha ensinado isto já é suficiente para demonstrar que é possível ensiná-la; há
uma disposição natural que define que alguns, mesmo estudando com os sofistas, não
aprendam, e outros, sem freqüentá-los, adquiram muitos conhecimentos; aprendemos mesmo
sem conhecer os mestres, através do ambiente familiar e social (6, 7-12).
Este assunto foi um tópico freqüente nas discussões entre os sofistas e seus
adversários. Górgias, no entanto, parece ter tentado se esquivar dele. No diálogo platônico
Ménon, este personagem, discípulo de Górgias, diz que admira o mestre porque ele jamais
prometeu ensinar aretē, inclusive ri-se quando ouve tais pretensões; sua tarefa é formar bons
oradores (95c). No diálogo platônico homônimo, Górgias diz que a arte oratória, como as
demais formas de combate, deve ser utilizada com justiça. Se alguém adquire habilidade na
oratória e, aproveitando o poder desta arte, age injustamente, o seu instrutor não deve ser
culpado, pois não é o mestre que fez mau uso da arte e sim o discípulo (457b-c). Logo
adiante, ele é levado por Sócrates a afirmar que ensinaria o justo e o injusto, caso seu aluno
não o soubesse. Para o entendimento socrático isto significa que o homem retórico precisa
15 Estes argumentos foram ‘lugares comuns’ (topói), tendo sido aplicados em outros contextos. cf. SOLANA DUESO, 1996, p. 161.
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conhecer, sozinho ou com a ajuda do mestre, a diferença entre o justo e o injusto, e, se ele a
conhece, só pode obrar com justiça, então não poderia usar a retórica injustamente (460a-
461a). É importante perceber que a tirada socrática relaciona-se à sua própria concepção do
assunto, que talvez fosse semelhante à de Protágoras, baseada na importância do
esclarecimento acerca da justiça (obviamente os dois possuíam métodos de atuação
diferentes). A acreditar no testemunho de Platão, Górgias ensinava a arte do discurso sem
nenhuma preocupação com qualquer ensino moral ou edificante, apenas transmitia os recursos
necessários ao bom desenvolvimento da técnica oratória. É interessante ressaltar que, mesmo
se fosse verdade, isso não necessariamente qualifica-o como um indivíduo imoral ou seu
ensino como pernicioso.
Ao ser perguntado por Sócrates sobre o que é aretē, Ménon dirá que há muitas aretaí,
de forma que não é difícil dar uma definição: ela se apresenta conforme a idade, ocupação e
ofício de cada um (Ménon, 71e-72a). Assumindo este entendimento como influenciado por
Górgias, constata-se que, mesmo em oposição acerca do objeto do ensino, sua visão e a de
Protágoras são ambas práticas, relativas, aplicáveis a contextos reais e específicos16.
Observando o uso que Górgias faz da palavra aretē em seus escritos, Segal (1962, p. 103)
conclui que: “Gorgias’ usage of arete simply follows the common practice of the fifth century
before the redefinition of the word by Plato”. Górgias criticou o uso referencial ou
‘ideacional’ das palavras, isso pode ser depreendido do seu Tratado do Não-Ser: nós não
comunicamos coisas que existem, mas apenas o logos, que é diferente destas coisas (Sext.,
Adv. Math. 7.84).
Gorgias is aware of the peculiar nature of the communicatory medium qua medium. Communication itself, therefore, is a special area of human activity, an invention of society based upon prearranged conventions, and must inevitably involve distortions and rearrangements of the message. There is no such thing as a purely objective transmission of reality. […] Gorgias has discovered ‘the autonomy of speeech’; for him ‘speech is not a reflection of things, not a mere tool or slave of description, but… it is its own master’. The logos is thus as free from the exigencies of mimetic adherence to physical reality […] as from an instrumental function in a philosophical schematization of a metaphysical reality (SEGAL, 1962, p. 109-110).
16 Dupréel (1980, p. 82) considerou que, enquanto Protágoras entendeu a virtude como consistindo na observação de regras formais, convencionadas pela sociedade e explicadas pelos mestres, Górgias defendeu uma moral de ocasião , segundo a qual a excelência e superioridade consistia em perceber o que era oportuno em cada ocasião e o que não era, a aretē seria um talento que encontra uma ocasião de exercer-se. Segal (1962, p. 103) afirma que: “Like his colleagues, Protagoras, Prodicus, and Hippias, Gorgias seems simply to have accepted the institutions of society as the necessary framework in which the civilized man can live and work.”
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Provavelmente, Górgias evitou participar de um debate cujos argumentos fossem
‘cartas marcadas’. De um lado, Protágoras, cuja visão implicava a consideração do papel
social do orador e de suas responsabilidades enquanto educador; de outro, Platão, preocupado
em encontrar uma definição única e inflexível das palavras que refletisse a razão sempre sábia
e justa de um mundo desprovido de casualidade. O diálogo entre Protágoras e Górgias, ainda
assim, é possível, pois os dois fazem uso de uma linguagem comum: um acredita no ensino da
aretē e posiciona-se como um professor dela; o outro considera risível tal pretensão e afirma
ser, apenas, professor de retórica. Entre os sofistas e Platão não há acordo, divergem no uso e
no entendimento do conceito de aretē e no uso e entendimento da linguagem. Seus métodos e
objetivos são diferentes, por trás de suas colocações estão pontos de vista essencialmente
conflitantes. Tanto que Platão, além de atacar as idéias sofísticas, achou necessário
desacreditar, também, os homens que as partilhavam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUPRÉEL, E. Les Sophistes. Protágoras, Górgias, Prodicus, Hippias. Neuchâtel: Éditions du Griffon, 1980.
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