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2019 1 a Edição TEORIA SOCIOLÓGICA I Prof.ª Franciele Otto Duque

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2019

1a Edição

Teoria Sociológica iProf.ª Franciele Otto Duque

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Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:

Prof.ª Franciele Otto Duque

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

D946t

Duque, Franciele Otto

Teoria sociológica I. / Franciele Otto Duque. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

206 p.; il.

ISBN 978-85-515-0285-3

1. Sociologia - Teorias. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 301.01

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apreSenTação

Caro acadêmico!

Este é seu Livro de Estudos de Teoria Sociológica I. Com ele você iniciará seus estudos de teoria sociológica, já que esta primeira parte trata da chamada Sociologia Clássica. Diferentes autores contribuíram para a consolidação da Sociologia, inclusive os autores clássicos que aqui você estudará: Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Os três legaram grandes contribuições teóricas e metodológicas para as ciências sociais, e certamente você já ouviu estes nomes — pois podemos dizer que são famosos em se tratando da área de sociologia.

Sendo o primeiro passo de seus estudos em Teoria Sociológica (que prosseguirão com os componentes curriculares: Teoria Sociológica II e Teoria Sociológica III), cabe reforçar a importância dos clássicos. Autores clássicos são sempre atuais, ou seja, eles adquirem o estatuto de clássicos justamente porque são revisitados com frequência, e seu arcabouço intelectual reinterpretado em diversos momentos. Em se tratando de Durkheim, Marx e Weber, muitas produções contemporâneas ainda são embasadas nas obras destes autores.

A divisão deste livro está baseada em três unidades, uma sobre cada autor. As unidades dividem-se em tópicos que seguem uma lógica similar: o primeiro apresenta as bases teórico- metodológicas da teoria sociológica de cada autor; o segundo apresenta os principais conceitos desenvolvidos por cada um; e o terceiro traz os desdobramentos de sua teoria sociológica — com os principais temas de estudo e como foram abordados pelo autor.

A primeira unidade trata da obra de Émile Durkheim e de sua teoria da integração. Inicialmente você conhecerá as influências do positivismo em seu pensamento, o uso da noção de fato social, e o método funcionalista em ação a partir deste conceito. Ou seja, são as bases do pensamento teórico e das aplicações metodológicas que o autor produziu ao longo de sua carreira. Em seguida, terá acesso ao estudo aprofundado dos conceitos relativos à teoria da integração, baseada na divisão do trabalho social: solidariedade mecânica, consciência coletiva, solidariedade orgânica e anomia. Para fechar, alguns desdobramentos da aplicação de sua teoria sociológica: o estudo sobre o suicídio, a moral, a religião e a educação.

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A segunda unidade está direcionada para a obra de Karl Marx e a teoria do materialismo histórico-dialético. Partindo das influências recebidas dos autores Hegel e Feuerbach para o desenvolvimento do materialismo dialético, segue-se pelo materialismo histórico e pela importância da análise do modo de produção indicada pelo autor. Após, o aprofundamento será nos conceitos de: infraestrutura e superestrutura, mercadoria e dinheiro, exploração e mais-valia, alienação. Os temas de seus estudos principais, que a parte final apresenta, são: classes sociais, a ideia de luta de classes, o papel das revoluções na história, e o projeto político de Marx — que perpassa o socialismo e o comunismo.

A terceira e última unidade é dedicada à obra de Max Weber e sua teoria sociológica compreensiva. Iniciaremos identificando as influências que o autor sofreu para desenvolver a proposta de individualismo metodológico, e para analisar a relação entre objetividade e conhecimento. Segue-se o estudo da noção de ação social, central na obra do autor. Após, seu estudo será sobre os conceitos de tipo ideal, relação social, poder, dominação e estratificação social (classes, estamentos e partidos). Para fechar o tópico sobre Weber, você conhecerá aspectos principais de sua sociologia da religião, o processo de racionalização social e seu favorecimento do capitalismo, a dominação carismática e o chamado desencantamento do mundo.

Por meio desta trajetória, objetiva-se que você finalize a disciplina identificando as características principais da teoria sociológica de cada autor, bem como seus conceitos e principais estudos. Ressalto a importância de seus estudos irem além deste livro, já que cada autor possui uma vasta obra e temas diversos de estudo, impossíveis de sistematização total. Veja o estudo desta disciplina como uma oportunidade de conhecer o básico sobre cada autor, e de selecionar materiais complementares para conhecê-los com mais afinco ao longo de toda a sua formação.

Desejo um ótimo processo formativo na teoria sociológica clássica!

Franciele Otto Duque

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Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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UNIDADE 1 – O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM .................................................... 1

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO ........................ 31 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 32 VIDA E OBRA ....................................................................................................................................... 43 POSITIVISMO ...................................................................................................................................... 64 FATO SOCIAL ....................................................................................................................................... 125 FUNCIONALISMO .............................................................................................................................. 17RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 22AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA INTEGRAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE ............................................................................. 251 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 252 DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL ............................................................................................... 25

2.1 SOLIDARIEDADE MECÂNICA ................................................................................................... 272.1.1 Consciência Coletiva .............................................................................................................. 28

2.2 SOLIDARIEDADE ORGÂNICA ................................................................................................... 343 ANOMIA ................................................................................................................................................ 42RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 48AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 49

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM ............. 511 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 512 O SUICÍDIO .......................................................................................................................................... 513 VIDA SOCIAL E MORALIDADE ..................................................................................................... 554 A RELIGIÃO .......................................................................................................................................... 595 A EDUCAÇÃO ...................................................................................................................................... 63LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 66RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 71AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 72

UNIDADE 2 – O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO DE KARL MARX .................. 73

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA E MÉTODO ..................................... 751 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 752 VIDA E OBRA ....................................................................................................................................... 753 MATERIALISMO DIALÉTICO ......................................................................................................... 784 MATERIALISMO HISTÓRICO ........................................................................................................ 865 ANÁLISE DO MODO DE PRODUÇÃO ......................................................................................... 90

5.1 MODO DE PRODUÇÃO PRIMITIVO .......................................................................................... 915.2 MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA ....................................................................................... 915.3 MODO DE PRODUÇÃO ASIÁTICO ............................................................................................ 92

Sumário

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5.4 MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL ............................................................................................... 925.5 MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA ..................................................................................... 935.6 MODO DE PRODUÇÃO COMUNISTA ...................................................................................... 935.7 MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA ..................................................................................... 94

RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 98AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 99

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1012 INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA ...............................................................................1013 MERCADORIA, VALOR E DINHEIRO .......................................................................................1054 EXPLORAÇÃO, MAIS-VALIA E LUCRO ....................................................................................1095 ALIENAÇÃO .......................................................................................................................................114RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................119AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................120

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX .......................1211 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1212 CLASSES SOCIAIS ............................................................................................................................1213 PROJETO POLÍTICO: LUTA DE CLASSES ..................................................................................1254 PAPEL REVOLUCIONÁRIO DA BURGUESIA ...........................................................................1275 SOCIEDADE CAPITALISTA E COMUNISMO ...........................................................................130LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................133RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................138AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................139

UNIDADE 3 – A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER ......................................141

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO ...................................1431 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1432 VIDA E OBRA .....................................................................................................................................1443 BASES DA SOCIOLOGIA COMPREENSIVA .............................................................................1454 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO ......................................................................................1505 OBJETIVIDADE E CONHECIMENTO ..........................................................................................152RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................159AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................160

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE ...........................................................................1611 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1612 AÇÃO SOCIAL ...................................................................................................................................1613 TIPO IDEAL .........................................................................................................................................1664 RELAÇÃO SOCIAL ............................................................................................................................1705 PODER E DOMINAÇÃO ..................................................................................................................1746 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: CLASSES, ESTAMENTOS E PARTIDOS ...............................178RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................182AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................183

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TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER .......................1851 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1852 SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO ........................................................................................................1863 CAPITALISMO E RACIONALIZAÇÃO SOCIAL .......................................................................1894 CARISMA E DESENCANTAMENTO DO MUNDO ..................................................................194LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................198RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................203AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................204REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................205

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UNIDADE 1

O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade tem por objetivos:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e metodológicas do pensamento sociológico de Émile Durkheim;

• examinar as principais contribuições da teoria da integração de Durkheim para a teoria sociológica clássica, a partir da sistematização de seus conceitos principais;

• analisar os desdobramentos da teoria sociológica de Durkheim para a sociologia, com base em temas cuja sua influência, nas formas de análise, persiste nas interpretações contemporâneas.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA INTEGRAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM

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TÓPICO 1UNIDADE 1

A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM:

TEORIA E MÉTODO

1 INTRODUÇÃONeste primeiro tópico você irá estudar alguns elementos sobre as principais

teorias e aplicação do método sociológico de acordo com o autor clássico Émile Durkheim. Digo alguns elementos porque sua obra é bastante extensa e, mesmo sintetizada, nos ocuparia muito tempo de estudo. Conforme for se interessando pelas temáticas, procure encontrar as obras sugeridas para que possa prosseguir com os estudos sobre o autor.

Iniciaremos pela retomada de sua vida e obra, que você já estudou em História da Sociologia, seguindo pela explicação acerca das influências positivistas em seu pensamento (e suas teorias). Se você ainda não cursou esta disciplina, é essencial saber que a Sociologia surge baseada essencialmente em três movimentos: o Renascimento – como marco cultural baseado nos ideais iluministas que defendiam a racionalidade humana; a Revolução Francesa – enquanto marco político de tomada de poder por parte do povo, ou seja, mudança na ordem social; e a Revolução Industrial – que modifica a sociedade feudal para uma sociedade industrial. Todas estas mudanças provocaram inúmeros problemas sociais com os quais as pessoas não sabiam lidar, e por isso surge a necessidade de uma ciência para tentar explicá-los, a ciência sociológica. A partir disso surgem autores buscando explicações para a ordem social, e Durkheim é um deles.

Após iremos nos aprofundar no conceito de fato social, base para o desenvolvimento de seu pensamento sociológico. É a partir deste conceito que Durkheim se define com relação a um pensamento que posiciona a sociedade como prevalente em referência ao indivíduo. Para finalizar o tópico, veremos o método funcionalista em ação em seu pensamento teórico e na busca por uma metodologia para a ciência sociológica.

Novamente reforçamos: estude este tópico pensando que ele é uma síntese dos principais pontos a serem estudados quando se fala em Émile Durkheim. Não pare por aqui, caminhe pelas obras e teorias deste autor consagrado na Sociologia. Para começar, vamos situá-lo no contexto de sua vida, para entender o local de onde ele fala. Boa leitura!

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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2 VIDA E OBRAPara começar, vamos entender um pouco sobre a biografia de Émile

Durkheim:

Filho, neto e bisneto de rabinos, Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858. Com 21 anos, ingressou na Escola Normal Superior, principal centro de formação da elite intelectual francesa. Entre seus colegas mais próximos, destacaram-se Jean Jaurès e Henri Bergson.Durkheim atingiu a maturidade logo após a derrota da França para a Alemanha, na guerra de 1870, e a sangrenta repressão aos trabalhadores rebelados na Comuna de Paris. Sob o impacto desses acontecimentos, grande parte de sua geração aderiu aos ideais republicanos, laicos e universalistas da III República, fornecendo-lhe alguns de seus principais quadros intelectuais e políticos.Ao escolher como objeto de estudo as relações entre a personalidade individual e a solidariedade social, Durkheim afasta-se de sua área de formação, a filosofia, encaminhando-se para a sociologia. Esta, no entanto, ainda não era reconhecida como ciência ou mesmo como disciplina acadêmica. Ele se impõe a tarefa de dar forma científica (método e corpo) a esse saber, dissociando-o tanto da pregação doutrinária dos seguidores de Comte como do ensaísmo eclético de Renan e Taine.Em 1885, como bolsista do governo francês, passa um semestre na Alemanha. Assiste aos cursos de Wundt e toma contato com as obras de Dilthey, Tönnies e Simmel. Os dois artigos que escreve sobre o estado das ciências sociais na Alemanha abrem caminho para que seja nomeado, em 1887, professor de pedagogia e ciência social na Universidade de Bordéus.Durkheim permaneceu em Bordéus por 15 anos. Nesse período, escreveu e publicou seus principais livros e firmou sua reputação como sociólogo. Nas disciplinas de pedagogia, tratou dos temas clássicos da área, introduzindo paulatinamente o viés da sociologia da educação. Nos cursos de sociologia (os primeiros na universidade francesa e um sucesso de público), abordou temas que antecipam os principais tópicos de sua obra: a solidariedade social, a família e o parentesco, o suicídio, a religião, o socialismo, o direito e a política.Publica seu primeiro livro, a tese doutoral Da divisão do trabalho social, em 1893. Apenas dois anos depois, surgem as regras do método sociológico, e, em 1897, O suicídio.Em 1896, funda e dirige uma revista que se tornou rapidamente modelo de pesquisa sociológica. Mais que um periódico, L’Année Sociologique estabelece um programa sistemático, por meio de uma divisão intelectual do trabalho que agrupa talentosos e destacados cientistas.Seu esforço para transformar a sociologia em disciplina acadêmica é reconhecido em 1902, com sua nomeação para a Universidade de Sorbonne, em Paris: a primeira cátedra de sociologia na França.O interesse cada vez maior de Émile Durkheim pela sociologia do conhecimento e da religião consolida uma inflexão em vida intelectual. Em 1912, publica As formas elementares da vida religiosa. Após sua morte, em 1917, foram editados novos livros, reunião de artigos, como Sociologia e filosofia, ou de suas anotações de cursos: Educação e sociologia, O socialismo, Pragmatismo e sociologia, Lições de sociologia (DURKHEIM; MUSSE, 2007, p. 76–77).

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO

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FIGURA 1 – ÉMILE DURKHEIM

FONTE: <https://www.comunidadeculturaearte.com/wp-content/uploads/2017/08/emile-durkheim-589909c93df78caebcf505a41.jpg>. Acesso em: 10 set. 2018.

DICAS

Uma excelente síntese sobre a vida de Durkheim e o contexto histórico no qual este autor esteve inserido é a introdução da obra Émile Durkheim: Sociologia. É uma coletânea de textos do autor organizada por José Albertino Rodrigues, publicada em várias edições pela Editora Ática. Além disso, este texto também apresenta diretrizes gerais da concepção sociológica e da posição metodológica do autor. Leitura altamente recomendada!

FONTE:<https://www.estantevirtual.com.br/livros/jose-albertino-rodrigues/durkheim/683457527>. Acesso em: 16 jan. 2019.

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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Para sua localização na obra do autor, segue adiante um mapa conceitual trazido nesta obra mencionada anteriormente, muito esclarecedor e que irá auxiliá-lo na organização de seus estudos ao longo de toda esta unidade.

FIGURA 2 – MAPA CONCEITUAL DO PENSAMENTO DE ÉMILE DURKHEIM

FONTE: Durkheim e Rodrigues (2006, p. 31)

De posse das informações sobre a vida e obra deste autor, bem como o mapa conceitual de suas principais análises, vamos iniciar nossa leitura, na seção seguinte, pelo Positivismo, corrente filosófica que influenciou toda a obra deste autor. Prossiga!

3 POSITIVISMOVamos iniciar nossos estudos aprofundados no autor Durkheim,

conhecendo as formas de pensar as análises sociais, os métodos propostos para a Sociologia, e inevitavelmente para isso passaremos pelas suas obras com base positivista.

Durkheim pode ser classificado, especialmente em seus primeiros escritos, como um autor do Positivismo — já que pensa as análises sociais como ciência que necessitava, à sua época, delimitar seu objeto específico de análise e seu método.

DIVISÃODO

TRABALHO SUICÍDIO

INDIVÍDUO

ORGÂNICA

GRUPOS EINSTITUIÇÕES

MECÂNICA

REPRESENTAÇÕESCOLETIVAS

CONSCIÊNCIACOLETIVA

FISIOLOGIA SOCIAL

MORAL RELIGIÃO

tipo

tipoDireito

Repressivo

DireitoRestitutivo

AN

OM

IA

coerção

coerçãofunçõesegoísta

altruísta

anôm

ico

coerç

ão

SOCIEDADE

(complexo integrado de fatos sociais)

SOLI

DA

RIED

AD

E SO

CIA

L

Sagrado

Profano

MORFOLOGIA SOCIAL

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO

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DICAS

Você já estudou o Positivismo? Caso já tenha cursado a unidade curricular História da Sociologia, retome os textos desta unidade, pois lá essa temática está presente. Se ainda não cursou ou quer aprimorar seus conhecimentos sobre o tema, busque a obra O que é Positivismo?, de João Ribeiro Junior, publicada na coleção Primeiros Passos. Há várias edições e a editora é a Brasiliense.

FONTE:<https://www.skoob.com.br/o-que-e-positivismo-8961ed10233.html>. Acesso em: 16 jan. 2019.

Para definir de maneira bem simples, Durkheim entendia que a tarefa da Sociologia era estudar as instituições sociais, desde seu surgimento às suas leis de funcionamento. Ele entendia que eram as instituições que levavam ao compartilhamento de comportamentos por parte dos grupos. Todo comportamento coletivo, portanto, tinha origem em um sistema de crenças, de representações, de formas de pensar a ordem social e interpretar o mundo que tinham base nas instituições sociais.

Tente pensar em exemplos... Nos dias atuais, onde você consegue visualizar comportamentos coletivos que têm origem nas instituições sociais? Muitos rituais das igrejas que são coletivos possuem origem na instituição religião: casamentos, batismos, funerais, entre outros. Também conseguimos visualizar comportamentos baseados em outras instituições: educação, política, família... Pense um pouco sobre estes exemplos.

Você deve ter percebido que estes comportamentos compartilhados sempre são baseados em regras externas ao indivíduo, que são assimiladas por ele conforme avança sua vida social e sua socialização nos grupos. É isto que Durkheim entendia que deveria ser estudado: como esta externalidade das regras impacta a vida individual, buscando assim respostas para esta troca indivíduo X sociedade.

Para pensar nestas questões ele baseia-se na ideia de fundar uma ciência que estude esta externalidade, encontre as leis de funcionamento da sociedade e as descreva. Parte, portanto, da superioridade da ciência como forma de conhecimento de mundo, defendida por Comte e pelo Positivismo, e do poder da razão humana presente nas análises iluministas.

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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O Positivismo aparece nas teorias de Durkheim especialmente quando ele se defronta com as questões sobre o conhecimento, ou seja, quando ele busca entender o que é o objeto da Sociologia e seu método científico.

IMPORTANTE

Nas reflexões sobre epistemologia (estudos sobre a teoria do conhecimento), portanto, é que você conseguirá buscar elementos para conhecer melhor as influências positivistas quando Durkheim lança luz às características científicas da ciência sociológica.

Sell (2002) destaca duas questões que o autor analisa em que se percebe a veia positivista atuando. Um primeiro item com qual Durkheim se preocupa é a superioridade da sociedade com relação ao indivíduo.

Para o Positivismo, o objeto condiciona a explicação da realidade, portanto, a conclusão do autor é a mesma sobre este tema: a determinação da sociedade em relação ao indivíduo, ou, a objetividade predominando com relação à subjetividade.

É por isso que ao estudar Durkheim você irá ouvir muito que as explicações sociais, para ele, têm fundamento na vida social, ou seja, na sociedade, e não no indivíduo. Em termos de representação imagética, temos:

FIGURA 3 – REPRESENTAÇÃO DA RELAÇÃO INDIVÍDUO X SOCIEDADE PARA DURKHEIM

SOCIEDADE

INDIVÍDUO

FONTE: A autora (2018)

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO

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Durkheim reconhecia que a sociedade não existia sem os indivíduos, mas “o que ele desejava ressaltar é que uma vez criadas pelo homem, as estruturas sociais passam a funcionar de modo independente dos indivíduos, condicionando suas ações” (SELL, 2002, p. 64).

Este funcionamento independente é o que ele visualiza como sendo as instituições sociais, como estrutura externa de condicionamento dos indivíduos, que possuem regras próprias, dinâmicas próprias, existindo independentes daqueles que fazem parte delas. As instituições permanecem mesmo com a passagem dos indivíduos por elas.

Novamente vamos parar para refletir: existem regras e funcionamentos próprios da educação que estão aí, desde antes de nascermos, e seguem depois de falecermos. Na religião funciona da mesma forma, há regras que sequer conseguimos estabelecer quando surgiram na história, de tão antigas que são. É esta independência do indivíduo que Durkheim busca destacar, combinados regras, diretrizes, funcionamentos que existem antes do indivíduo, durante sua vida e sua participação nas instituições, e seguirão depois dele.

Diante da identificação das instituições sociais (atualmente na Sociologia se reconhece principalmente os exemplos: Religião, Família e Educação), o autor persegue a ideia de que a tarefa da Sociologia é descrever como o todo condiciona as partes, ou como a sociedade condiciona os indivíduos. Parte-se, portanto, do estudo do objeto, e não do sujeito.

Em todas as obras de Durkheim vamos perceber que este pressuposto está presente. Tanto em suas explicações sobre a origem da religião, sobre o conhecimento, sobre o comportamento suicida e mesmo sobre a divisão social do trabalho; é a sociedade que age sobre o indivíduo, modelando suas formas de agir, influenciando suas concepções e modos de ver, condicionando e padronizando o seu comportamento. Ninguém mais do que Durkheim vai colocar tanta ênfase na força do social sobre nossas vidas, procurando sempre ressaltar que, em última instância, até mesmo a noção de que nós somos pessoas ou sujeitos individuais não passa de uma construção social (SELL, 2002, p. 64).

ESTUDOS FUTUROS

Para estudar o condicionamento do objeto diante do indivíduo, Durkheim apresentou o conceito de Fato Social, central para o entendimento de sua teoria sociológica. Teremos uma seção específica para tratar deste conceito, dada sua importância.

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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Seguimos agora com o segundo item onde a influência positivista se manifesta nas obras durkheimianas, trata-se de um método científico desenvolvido para as ciências sociais ou, mais especialmente, para a Sociologia. Se o objeto de estudos é a sociedade, a partir da objetividade, então era preciso também definir um método para esta ciência. Para tal, seguiremos com a interpretação do autor Sell (2002).

Uma das principais intenções de Durkheim, elencada, inclusive, como uma das principais contribuições deste teórico para a Sociologia — e que contribuiu para que este fosse considerado um autor clássico —, foi o seu esforço em consolidar o espaço científico da ciência sociológica.

E foi para fixar esta ciência que ele se concentrou tanto no método. Resgate em sua mente, qual o modelo ideal de método científico para o Positivismo? Lembrou? O método das ciências naturais. Em função disso, Durkheim se concentrou em verificar como o método das ciências naturais poderia ser uma referência para as ciências sociais.

Para isso, o primeiro item que ele identifica ser fundamental é o distanciamento do pesquisador com relação ao seu objeto de análise, ou seja, os fenômenos sociais deveriam ser considerados como coisas. “Ao equiparar os fenômenos sociais a ‘coisas’, Durkheim partia do princípio de que a realidade social é idêntica à realidade da natureza e que, portanto, equipara-se também aos fenômenos por ela estudados” (SELL, 2002, p. 65).

Segundo seu raciocínio, se as coisas naturais podem ser estudadas independentes da ação humana, as coisas sociais também poderiam ser. O cientista teria a tarefa de buscar regularidades, distinções, semelhanças, princípios. Para isso, o primeiro passo seria que o cientista libertasse suas pré-noções, ou melhor, aquilo que já conhecia ou interpretava sobre o fenômeno, analisando-o de forma objetiva e baseado em suas características exteriores (objetivando o fenômeno).

Esta aproximação do objeto social com o objeto natural, entendendo ambos como coisas, permitiu que Durkheim defendesse que o método de estudo poderia ser o mesmo para ambas as tipologias científicas.

Ou seja, o papel da sociologia consiste em “registrar” da forma mais imparcial possível a realidade pesquisada (o objeto), tal como naquelas ciências. Cabe ao pesquisador apenas fazer um retrato da realidade pesquisada, pois ela é uma realidade objetiva, tão objetiva como qualquer “coisa” da natureza. Na percepção sociológica de Durkheim, portanto, a realidade (objeto) é que se impõe ao sujeito (observador), por isso, as ciências sociais deveriam adotar o mesmo método que as ciências da natureza (SELL, 2002, p. 65).

Toda esta dinâmica de análise foi sintetizada por Tura (2006), conforme segue:

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Enfim, na visão durkheimiana só se poderia pensar no estudo dos fenômenos sociais no campo da ciência se fosse possível concebê-los como algo de real e existente fora das consciências particulares, ou seja, como realidade coletiva, externa ao indivíduo, que o ultrapassa e se impõe sobre ele. Para Durkheim, as sociedades, assim como os fenômenos naturais, são ordenadas e reguladas por certas leis ou tendências gerais e necessárias e que, por isso, se deve proceder à análise das relações de causa e efeito entre os fenômenos sociais. É assim que se pode antever algumas tendências futuras.Em seus diversos textos, Durkheim se mostrou preocupado em dar indicações minuciosas de seus procedimentos de análise e em apresentar os limites de seu trabalho, posto que, segundo ele, estava lidando com uma ciência jovem que tinha que se ater a um conjunto ainda precário de dados acumulados e a um desenvolvimento teórico ainda iniciante. Por isso, acreditava que seria mais viável naquele momento a investigação de normas cristalizadas, instituições consolidadas e sistemas de regras morais estabelecidas.Os métodos de investigação das ciências naturais, já bastante desenvolvidos no século XIX, foram a base de onde partiu. Essa gênese marcou muito a linguagem de sua sociologia e do que se produziu posteriormente. Pode-se notá-la em termos recorrentes com: espécies de sociedade, sistemas, organismo social, funções e formas de regulação. Os métodos experimentais da psicologia, a que Durkheim teve bastante acesso participando de atividades de laboratório, também tiveram influência em seu pensamento. Contudo, este interessado em distinguir os métodos e as leis próprias da sociologia, sempre se referindo à natureza sui generis da sociedade e, portanto, a impossibilidade de redução dos fatos sociais aos fatos psicológicos e afirmando que os fatos sociais só podem ser explicados por outros fatos sociais.A sociologia é para Durkheim a ciência das instituições sociais, de sua gênese e seu funcionamento. Instituições, no caso, entendidas em seu sentido largo que abrange também as crenças, valores e comportamentos instituídos. Por isso, ele pensou que a sociologia podia e devia auxiliar na compreensão das instituições pedagógicas e a “conjeturar o que devem ser elas, para o melhor resultado do próprio trabalho”. Esta compreensão deve conduzir o pesquisador à análise de práticas sociais. Pode-se verificar isto quando afirma que “os estudos devem recair sobre fatos que conheçamos, que se realizem e sejam passíveis de observação” (TURA, 2006, p. 33–35).

O método que estava no auge da discussão científica na época de Durkheim era o chamado método funcionalista, e foi nele que o autor encontrou material para solucionar seus anseios com relação aos objetos sociológicos, e com relação especialmente ao método de análise.

NOTA

Iremos estudar o Funcionalismo em uma seção específica mais adiante, por hora é importante que você saiba que é uma forma de explicação da ordem social que entendia o funcionamento e a dinâmica sociais análogas ao funcionamento do corpo humano. Cada grupo social, portanto, possuía uma função no organismo – que deveria ser cumprida para que o todo funcionasse harmonicamente.

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Por isso, é possível classificar parte da obra de Durkheim como sendo fruto de um pensamento funcionalista, e é o que iremos estudar mais adiante. Enquanto prossegue com a leitura, tenha em mente sempre essa tentativa de aproximação do método com as ciências naturais e a importância da objetividade do pesquisador em suas análises sociais. Assim irá compreender o quanto este pensamento interfere na Sociologia até os dias contemporâneos.

Antes de conhecer o detalhamento de seu pensamento funcionalista, vamos destrinchar o conceito de Fato Social, base para o entendimento deste método e da objetividade prevista por Durkheim para o analista social. Mas antes, uma indicação de leitura!

DICAS

Para conhecer o pensamento durkheimiano sobre o método científico da Sociologia, nada melhor do que as palavras do próprio autor. Veja, portanto, a obra “As regras do método sociológico”, do próprio Émile Durkheim, traduzida e publicada por diferentes editoras no Brasil. Uma edição compacta e barata pode ser a da Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, Editora Martin Claret, cuja imagem de capa está ao lado.

FONTE:<https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/ciencias-sociais/sociologia/as-regras-do-metodo-sociologico-3055247>. Acesso em: 16 jan. 2019.

4 FATO SOCIALEm seus estudos básicos de Sociologia no Ensino Médio você já deve ter

se aproximado do conceito de Fato Social. É uma das noções mais presentes na sociologia durkheimiana, e como explica boa parte de seu pensamento social, é utilizada com bastante frequência. Nesta seção iremos nos aprofundar no entendimento deste conceito, amparados pelas obras do autor e por sistematização de outros autores.

Lembre-se, é essencial que você busque conhecer as próprias obras do autor, pois são clássicos, ou seja, um autor de base para quem estuda Sociologia. Nada melhor do que ter acesso às obras originais e interpretá-las a partir de sua vivência e seus estudos.

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Diante disso, nosso primeiro pressuposto é de que os fatos sociais são o objeto de estudo dos sociólogos. São eles que o pesquisador deve buscar descrever e interpretar, pois a partir deles é possível entender a sociedade como coisa, como ente externo ao cientista, garantindo a tão importante neutralidade — conforme vimos na seção anterior.

IMPORTANTE

O objeto formal da Sociologia, portanto, para Durkheim, são os fatos sociais!

Ele define fato social no livro que indicamos anteriormente, logo em seu início:

É um fato social toda a maneira de agir, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade, tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais (DURKHEIM, s.d. apud MUSSE, 2006, p. 93).

É no fato social que Durkheim materializa, portanto, a exterioridade da vida social no indivíduo, o condicionamento que este sofre em seus comportamentos, reconhecendo a coerção da sociedade para com as ações individuais.

A tirinha a seguir (Figura 4) explica uma situação como esta, veja:

FIGURA 4 – TIRINHA: EXTERIORIDADE DA VIDA SOCIAL

Mãe, querofazer uma

mecha verdeno cabelo.

Praquê?!

É paraexpressar a minha

individualidade!

E tá todomundo

fazendo!

FONTE: <https://blogdoenem.com.br/pensadores-sociologia-emile-durkheim/>. Acesso em: 20 set. 2018.

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Reconhecendo estas características próprias nos fatos sociais, sua influência nas ações, pensamentos e sentimentos das pessoas, Durkheim defende a necessidade de uma ciência que compreenda a ordem social a partir de um método científico, que consiga chegar em suas leis específicas de funcionamento. Não poderia ser o mesmo método da Psicologia, por exemplo, já que o entendimento psicológico pode ser feito por meio da introspecção.

Da perspectiva do autor, a sociedade não é o resultado de um somatório dos indivíduos vivos que a compõem ou de uma mera justaposição de suas consciências. Ações e sentimentos particulares, ao serem associados, combinados e fundidos, fazem nascer algo novo e exterior àquelas consciências e às suas manifestações. E ainda que o todo só se forme pelo agrupamento das partes, a associação “dá origem ao nascimento de fenômenos que não provêm diretamente da natureza dos elementos associados” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 62).

É em função desta definição que Durkheim distingue as consciências individuais da consciência coletiva. A sociedade não é apenas a soma dos indivíduos, mas sim uma síntese, um todo com forças que as particularidades não apresentam. As formas de agir coletivas são diferentes das quais os indivíduos utilizariam como referência se estivessem sozinhos.

Ainda para explicar com mais detalhes os fatos sociais:

Os fatos sociais podem ser menos consolidados, mais fluidos, são as maneiras de agir. É o caso das correntes sociais, dos movimentos coletivos, das correntes de opinião “que nos impelem com intensidade desigual, segundo as épocas e os países, ao casamento, por exemplo, ao suicídio, a uma natalidade mais ou menos forte etc.” Outros fatos têm uma forma já cristalizada na sociedade, constituem suas maneiras de ser: as regras jurídicas, morais, dogmas religiosos e sistemas financeiros, o sentido das vias de comunicação, a maneira como se constroem as casas, as vestimentas de um povo e suas inúmeras formas de expressão. Eles são, por exemplo, os modos de circulação de pessoas e de mercadorias, de comunicar-se, vestir-se, dançar, negociar, rir, cantar, conversar etc., que vão sendo estabelecidos pelas sucessivas gerações. Apesar de seu caráter ser mais ou menos cristalizado, tanto as maneiras de ser quanto de agir são igualmente imperativas, coagem os membros das sociedades a adotar determinadas condutas e formas de sentir. Por encontrar-se fora dos indivíduos e possuir ascendência sobre eles, consistem em uma realidade objetiva, são fatos sociais (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 63).

Da definição de fato social, Durkheim destaca três características que nos auxiliam a compreender os mesmos: a exterioridade, a coercitividade e a objetividade. Vamos pontuar cada uma delas:

• Exterioridade: as formas de agir sempre são determinadas pela sociedade, e não pelo indivíduo, ou seja, são exteriores.

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• Coercitividade: os fatos sociais exercem coerção sobre os indivíduos, ou seja, são impostos a eles pela sociedade.

• Objetividade: a existência de formas de agir coletivas se dá independente do indivíduo, ou seja, os fatos sociais existem, independentemente de quem forma o grupo naquele momento.

Deste modo, podemos compreender o quanto o indivíduo é produto da sociedade nas análises de Durkheim, sendo que esta deve ser a perspectiva de análise para o entendimento dos comportamentos compartilhados, a ideia da prevalência da sociedade com relação ao indivíduo.

Para explicar a exterioridade e objetividade dos fatos sociais, ele argumenta que a internalização das formas de agir coletivas só ocorre por meio de um processo educativo, ou seja, por meio de um processo de internalização. A este processo damos o nome de socialização, outro conceito da Sociologia que certamente permeará seus estudos futuros sobre Sociologia da Educação.

O processo educativo insere o indivíduo nas regras sociais, que ensinam ao novo ser os comportamentos aceitos ou rejeitados, que, aos poucos, fazem com que ele sinta, pense e interprete como seu grupo. “Com o tempo, as crianças vão adquirindo os hábitos que lhes são ensinados e deixando de sentir-lhes a coação, aprendem comportamentos e modos de sentir dos membros dos grupos dos quais participam” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 63).

Esta internalização ocorre por meio do processo educativo e conforma o indivíduo no pensamento do grupo, gerando representações coletivas e representações individuais. A associação de ideias, percepções, sentimentos, estados, como já dissemos, a “síntese”, faz com que existam representações que são compartilhadas sobre o próprio grupo, sobre o mundo. Elas são expressas em regras morais, padrões de beleza, lendas, mitos, religiões, entre outros. Estas representações coletivas, também chamadas de consciência coletiva, são exemplos de fatos sociais.

Eles são perceptíveis também no conjunto de valores dos grupos, pois “eles também possuem uma realidade objetiva, independente do sentimento ou da importância que alguém individualmente lhes dá; não necessitam expressar-se por meio de uma pessoa em particular ou que esta esteja de acordo com eles” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 64).

A coercitividade é trazida por Durkheim quando explica como os fatos sociais exercem autoridade específica sobre os indivíduos, materializada em diferentes obstáculos, impostos a quem realizar ações que contrariam as convenções do grupo.

Como exemplo, podemos pensar em uma pessoa que tenta usar um idioma diferente do local, uma moeda diferente, viola uma regra ou resiste a uma lei. Ela sofre punições e/ou sanções, institucionalizadas no Estado, ou mesmo de pessoas do próprio grupo.

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Ele tropeçará com os demais membros da sociedade que tentarão impedi-lo, convencê-lo ou restringir sua ação, usarão de punições, da censura, do riso, do opróbrio e de outras sanções, incluindo a violência, advertindo-o de que está diante de algo que não depende dele. Quando optamos pela não submissão, “as forças morais contra as quais nos insurgimos reagem contra nós e é difícil, em virtude de sua superioridade, que não sejamos vencidos. [...] estamos mergulhados numa atmosfera de ideias e sentimentos coletivos que não podemos modificar à vontade (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 64).

A dificuldade de modificação de regras, a existência de sanções e punições para quem avança de uma forma diferente do grupo, é o poder de coercitividade dos fatos sociais sendo exercido. Durkheim reconhece que é possível que haja modificações, mas para isso é necessário que os comportamentos sejam combinados, que as ações de mudanças sejam também coletivas. Assim os fatos sociais são reformados e podem sofrer modificações.

A ação transformadora é tanto mais difícil quanto maior o peso ou a centralidade que a regra, a crença ou a prática social que se quer modificar possuam para a coesão social. Enquanto nas sociedades modernas, até mesmo os valores relativos à vida - o aborto, a clonagem humana, a pena de morte ou a eutanásia - podem ser postos em questão, em sociedades tradicionais, os inovadores enfrentam maiores e às vezes insuperáveis resistências (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 65).

Os fatos sociais surgem a partir de causas externas, que vão se moldando na interação dos grupos e dos indivíduos que compõem os grupos, adicionando a esta interação as consciências individuais plurais, cuja síntese forma a consciência coletiva.

Tura (2006) apresenta uma dimensão importante, destacada por Durkheim acerca dos fatos sociais, os quais, muitas vezes, são ignorados por nossa própria consciência individual. Ela explica:

Os fatos sociais são também coisas ignoradas, posto que, apesar de estarmos convivendo com eles, os apreendemos a partir de formas não metódicas, de uma penetração acrítica, de impressões confusas. Para conhecê-los cientificamente é necessário que se utilize criteriosamente o método científico e se vão realizando procedimentos ligados à observação, à experimentação, à análise do tempo histórico e social de constituição dos fenômenos sociais. Dessa forma, se está intentando estudar como as coisas se dão no contexto de seu tempo e espaço, marcado pelas crenças e valores de uma organização social que determina formas de ver, sentir e pensar, que são forjadoras de símbolos que se imbricam na consciência coletiva e produzem representações coletivas (TURA, 2006, p. 37).

Antes de adentrarmos os métodos para estudo dos fatos sociais, vamos ao autor para conhecer como este define fato social e apresenta o conceito em sua obra, veja a leitura sugerida no Uni.

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DICAS

A leitura complementar desta unidade apresenta o texto do próprio Durkheim, extraído da obra As Regras do Método Sociológico, intitulado O que é fato social? Sugiro que você faça esta leitura antes de prosseguir com os estudos deste tópico.

5 FUNCIONALISMOReconhecendo a superioridade da sociedade com relação ao indivíduo,

e que as ciências sociais deveriam buscar desenvolver um método similar aos métodos das ciências da natureza, Durkheim se aproximou da biologia para pensar uma possibilidade de método para a Sociologia. Com isto ele se aproxima das ideias de Herbert Spencer, o qual afirmou que natureza e sociedade obedecem à mesma lei geral: a lei da evolução (SELL, 2002).

Toda a explicação funcionalista não é uma criação de Durkheim, mas sim fruto da influência que esta teoria possuía na biologia, reinterpretada por Spencer a partir das obras evolucionistas de Charles Darwin. A ciência daquela época estava influenciada pelas maneiras de pensar baseadas no Evolucionismo.

NOTA

O Evolucionismo é uma corrente de pensamento presente na Antropologia, que entende a existência de uma unidade psíquica nos seres humanos, pelo aspecto cultural, e que em função disso os grupos sociais possuiriam estágios de desenvolvimento socioculturais pelos quais deveriam passar.

Definido, portanto, o fato social como objeto formal dos estudos sociológicos, Durkheim debruçou-se sobre o método. Ele precisava definir como ocorreria o estudo dos fatos sociais, como garantir a neutralidade científica que almejava, e foi a partir destas reflexões que ele se aproximou de uma metodologia funcionalista.

No estudo da vida social, uma das preocupações de Durkheim era avaliar qual método permitiria fazê-lo de maneira científica, superando as deficiências do senso comum. Conclui que ele deveria assemelhar-se ao adotado pelas ciências naturais, mas nem por isso ser o seu decalque, porque os fatos que a Sociologia examina pertencem ao reino social e têm peculiaridades que os distinguem dos fenômenos da

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natureza. Tal método deveria ser estritamente sociológico. Com base nele, os cientistas sociais investigariam possíveis relações de causa e efeito e regularidades com vistas à descoberta de leis e mesmo de “regras de ação para o futuro”, observando fenômenos rigorosamente definidos (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 65).

Segundo Durkheim, os fatos sociais não existem apenas sem razão de ser, mas cumprem uma função dentro do sistema social. É preciso, portanto, investigar não apenas as causas que os levam a serem produzidos, mas também a função que desempenham. Explicar os fatos sociais seria, então, demonstrar a função que estes exercem.

Para isso, seria preciso inicialmente pesquisar as causas que levaram o fato social a surgir, ou seja, não buscar no futuro, e sim no passado, quais motivos fizeram com que esta forma de agir coletiva existisse. As análises sobre o surgimento da prática social deveriam vir seguidas de investigação sobre a sua utilidade social. A função seria determinada pela análise da utilidade projetada no fato social, ou seja, para quê exatamente servia esta prática social.

Esta seria a dinâmica de pesquisa que deveria ser aplicada pela sociologia segundo Durkheim, e assim seria possível determinar a função exercida pelos fatos sociais no grupo ao qual estava vinculado. Desta maneira, pensando as funções, Durkheim compara a sociedade com um corpo, um organismo vivo. Lakatos e Marconi definem:

O método funcionalista considera, de um lado, a sociedade como uma estrutura complexa de grupos ou indivíduos, reunidos numa trama de ações e reações sociais; de outro, como um sistema de instituições correlacionadas entre si, agindo e reagindo umas em relação às outras. Qualquer que seja o enfoque, fica claro que o conceito de sociedade é visto como um todo em funcionamento, um sistema em operação. E o papel das partes nesse todo é compreendido como funções no complexo de estrutura e organização (LAKATOS; MARCONI, 1990, p. 35).

Nos corpos, cada órgão cumpre uma função. Assim também seria na sociedade, segundo ele, cada segmento cumprindo uma função. As partes existiriam para cumprir funções essenciais para a existência do todo, reforçando novamente a percepção de um todo predominando sobre as partes (SELL, 2002).

Sell (2002, p. 69) propõe um exercício listando as instituições sociais, para você pensar quais são as funções sociais que cada uma exerce:

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QUADRO 1 - EXEMPLOS DE INSTITUIÇÕES SOCIAIS

FAMÍLIA RELIGIÃO EMPRESA ESCOLAEXÉRCITO LEIS GOVERNO LAZER

FONTE: Sell (2002, p. 69)

Determinando a função de cada instituição é possível explicar sua existência e entender as formas de agir coletivas que cada uma determina, gerando fatos sociais e entendendo sua contribuição para o bom funcionamento da sociedade. A escola, por exemplo, cumpre a função de socialização dos indivíduos mais jovens nas diretrizes e comportamentos já estabelecidos pelos mais velhos, além de socializar o novo indivíduo com outros.

É na determinação da função social que estas instituições cumprem que a metodologia funcionalista procura explicar sua existência, bem como das nossas formas de agir, ou, como queria Durkheim, dos fatos sociais. Esta é a essência da metodologia funcionalista, que apesar das inovações e aprofundamentos posteriores, constitui até hoje seu núcleo de ideias básicas (SELL, 2002, p. 69).

O método proposto por Durkheim para entender as funções das instituições era baseado na comparação, entendendo diferentes modos de organização social e tempos históricos diversos, e assim, buscando comparar suas diferenças e regularidades. As combinações de fatos e causalidades, portanto, poderiam auxiliar na determinação de causas e efeitos, traduzindo as funções.

Outro aspecto fundamental da teoria funcionalista durkheimiana era a ideia de pensar não apenas no conceito de sociedade, mas sim de sociedades, no plural. Isto porque a analogia feita era de que haveria diferentes formas de sociedades, passíveis de classificações em espécies, assim como os vegetais e animais podem ser classificados na biologia.

Seria possível, por meio do método comparativo, encontrar sociedades que se aproximam e estabelecer tipologias. Utilizando a observação criteriosa e a descrição minuciosa, poderiam ser observados tipos de família, tipos de religião, tipos de educação, atuando com similaridades, mas em “espécies” diferentes de sociedades. O foco, para tal, precisa ser direcionado à identificação de homogeneidades e regularidades.

Da mesma maneira, seria possível identificar quando alguma função social não está sendo cumprida corretamente pela instituição à qual está vinculada, e identificar as chamadas patologias sociais. Uma patologia ocorreria, portanto, na situação em que o órgão responsável estivesse com problemas para desempenhar seu papel, dificultando a manutenção da harmonia de todo o sistema. Vejamos:

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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Para explicar um fenômeno social, deve-se procurar a causa que o produz e a função que desempenha. Procura-se a causa nos fatos anteriores, sociais e não individuais; e a função, através da relação que o fato mantém com algum fim social. Durkheim, ao estabelecer as regras de distinção entre o normal e o patológico, propôs: um fato social é normal, para um tipo social determinado, quando considerado numa determinada fase de seu desenvolvimento, desde que se apresente na média das sociedades da mesma categoria, e na mesma fase de sua evolução. Esta regra estabelece uma norma de relatividade e de objetividade na observação dos fatos sociais, como foi ilustrado em sua obra sobre o suicídio. Demonstra, também, que certos fenômenos sociais, tidos como patológicos, só o são à medida que ultrapassam uma taxa dita "normal", em determinado momento, em sociedades de mesmo nível ou estágio de evolução (LAKATOS; MARCONI, 1990, p. 47).

As disfunções sociais são consideradas normais em todas as sociedades, no entanto, o patológico é definido como uma função doente, que pode colocar em risco a existência do grupo, a destruição. Seria necessário ao investigador verificar, em cada espécie de sociedade, o que é patológico em seu contexto. Como exemplo, é possível citar a criminalidade, sempre existente em grupos sociais, mas que dependendo do tipo e das taxas, passa a ser uma patologia.

A sociologia, neste caso, teria um papel fundamental na medida em que ela deveria identificar qual parte do corpo não está mais integrada ao todo em pleno funcionamento, para que a sociedade pudesse ajustar o que fosse necessário, restaurando seu equilíbrio.

Estas ideias, infelizmente, levaram a sociologia de Durkheim a uma visão política profundamente conservadora. Como a sociedade era comparada com um corpo, não fazia sentido transformá-la. Para a sociologia, a única solução possível para os problemas era “preservar” (conservar) a sociedade, assim como o médico deve preservar o corpo dos pacientes. Se existe algum problema, não há como mudar todo o conjunto da sociedade: a única solução possível seria restaurar o funcionamento das partes ou mesmo eliminar o problema. A tradição funcionalista, portanto, coloca toda ênfase no equilíbrio e na integração social, e todas as formas de conflito ou de contestação são vistas como desvios e anomalias que precisam ser eliminadas. Desta forma, os movimentos que contestam a ordem vigente e buscam a mudança não encontram respaldo nesta teoria, pois ela está comprometida com a ordem vigente e com sua preservação. Trata-se, portanto, de um projeto político conservador (SELL, 2002, p. 85).

Diante destas analogias com o método biológico, é possível identificar o viés de pensamento estabelecido por Durkheim ao ser influenciado pelo Funcionalismo. Mais adiante, sua forma de pensar passa a ser chamada de Estrutural-funcionalismo, em distinção a outras correntes sociológicas que utilizam a metodologia funcionalista para interpretação da ordem social.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM: TEORIA E MÉTODO

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Até aqui você viu os principais aspectos teóricos e metodológicos do pensamento durkheimiano. Para fechar, sugiro um vídeo indicado no UNI a seguir, e no próximo tópico você irá se aprofundar no estudo da Teoria da Integração deste autor.

DICAS

Para finalizar este tópico, veja o vídeo Clássicos da Sociologia: Émile Durkheim, disponível na plataforma Youtube, uma aula produzida pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP, sobre Durkheim. Você poderá acessá-lo em: <https://www.youtube.com/watch?v=SMaxxNEqk7U>.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A teoria sociológica de Durkheim e seu método foram desenvolvidos a partir de influências positivistas.

• Ele buscou interpretar como a externalidade das regras impacta a vida individual, buscando assim respostas para esta troca indivíduo X sociedade.

• É no conceito de fato social que Durkheim materializa a exterioridade da vida social no indivíduo, reconhecendo a coerção da sociedade para com as ações individuais.

• Os fatos sociais possuem como características: exterioridade, coercitividade e objetividade.

• Reconhecendo que as ciências sociais deveriam buscar desenvolver um método similar aos métodos das ciências da natureza, Durkheim se aproximou da biologia para pensar uma possibilidade de método para a Sociologia.

• Os fatos sociais cumprem uma função dentro do sistema social. É preciso investigar não apenas as causas que os levam a serem produzidos, mas também a função que desempenham no sistema social.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 A teoria sociológica de Durkheim é marcada pela observação das relações entre indivíduo e sociedade, enfatizando a prevalência da sociedade diante do indivíduo, manifesta em diferentes fatos sociais. Sobre as principais influências sofridas por Durkheim para o desenvolvimento de seu pensamento sociológico, analise as seguintes sentenças:

I- O Positivismo influenciou o pensamento de Durkheim quando este buscou um método adequado para a análise social, a fim de torná-la científica.II- A objetividade defendida pelo Positivismo aparece nas obras de Durkheim quando ele afirma a determinação da sociedade no comportamento do indivíduo.III- A neutralidade científica defendida pelo Positivismo não seria possível nas análises sociais, já que o pesquisador é também parte de seu objeto de estudos.IV- O método adequado para a sociologia deveria ser buscado com base nos métodos das ciências naturais, mais precisamente a química.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a afirmativa IV está correta.b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.d) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas.

2 É no desenvolvimento da noção de fato social que Durkheim materializa a exterioridade da vida social no indivíduo, o condicionamento que este sofre em seus comportamentos, reconhecendo a coerção da sociedade para com as ações individuais. Sobre as características do fato social, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Exterioridade.II- Coercitividade.III- Objetividade.

( ) Os fatos sociais são impostos a ele pela sociedade.( ) As formas de agir são determinadas pela sociedade e não pelos indivíduos.( ) As formas de agir coletivas existem independentes do indivíduo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I - III - II.b) ( ) II - I - III.c) ( ) I - II - III.d) ( ) III - I - II.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA

INTEGRAÇÃO PARA A COMPREENSÃO

DA SOCIEDADE

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOAgora que você já compreendeu como funciona a lógica do pensamento

durkheimiano, entendendo as influências positivistas e o funcionamento do método funcionalista, além da centralidade do conceito de fato social em suas análises sociais, é hora de nos debruçarmos sobre o estudo de algumas noções de base de seu arcabouço conceitual.

Durkheim desenvolveu importantes conceitos a partir da busca de uma explicação funcionalista para as dinâmicas sociais. Boa parte deste material ainda é utilizado na Sociologia atualmente, muitas vezes reinterpretado por autores contemporâneos.

Como já frisamos, sua obra é muito vasta, portanto, neste tópico você verá um recorte dos principais conceitos para entender a lógica da teoria da integração social a partir da visão de Durkheim. Para este autor, é determinante que o sociólogo interprete a forma pela qual o indivíduo se integra em seus grupos sociais para que se possa apreender o funcionamento da ordem social.

A teoria da integração passa pela divisão do trabalho social, uma parte, muito famosa, do pensamento durkheimiano. Acreditamos que você já tenha lido ou ouvido algo em seus estudos até aqui. Portanto, é hora de conhecer detalhes e se aprofundar neste conjunto teórico! Para este caminhar, passaremos pela divisão do trabalho social através dos conceitos de: solidariedade mecânica, consciência coletiva, solidariedade orgânica e anomia. Boa leitura!

2 DIVISÃO DO TRABALHO SOCIALConsiderado uma das primeiras grandes obras de Durkheim, o livro A divisão

social do trabalho, escrito em 1893, pode ser tido como uma análise sobre as relações dos seres humanos com o trabalho, e o impacto deste na vida social dos grupos. Para sermos mais específicos, ele busca compreender, dentro da lógica da sociedade moderna, a função que é exercida pela chamada divisão social do trabalho.

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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Ou seja, as ditas sociedades simples, primitivas, não possuíam a centralidade de suas atividades no trabalho, ou, ao menos, este não era determinante e relacionado diretamente com a forma de suas relações sociais. Mas no caso das sociedades complexas, modernas, o trabalho torna-se o centro gerador das demais relações, é sua forma que determina e influencia como os integrantes de um grupo se relacionam naquele momento.

Por conta disso, para Durkheim, era essencial compreender a dinâmica de funcionamento e a divisão das funções que ocorriam no mundo do trabalho, pois estas se espalhavam para além deste espaço, inclusive gerando processos de diferenciação social entre os sujeitos.

NOTA

Uma pausa na teoria para um destaque: você consegue imaginar o quanto este raciocínio é importante para uma obra sociológica? Durkheim fez o movimento de relacionar formas de diferenciação no trabalho com formas de diferenciação social, ou seja, buscando compreender as trocas ocorridas no microcosmo (trabalho) que modificavam as formas de existência do macrocosmo (sociedade). Não é à toa que esta obra é estudada até hoje, e que auxilia a compreender as bases da teoria sociológica durkheimiana.

Voltando... Para entendermos como ele analisa a função desta divisão social do trabalho, vamos precisar de dois conceitos: solidariedade orgânica e solidariedade mecânica. Você já deve ter ouvido falar em ambos, digamos que são famosíssimos conceitos cunhados por Durkheim. Não temos como estudar seu pensamento e obras sem passar pela noção de solidariedade.

Antes de prosseguir, reflita sobre o significado de solidariedade. Um deles, se formos buscar no dicionário, é: “Sentimento de amor ou compaixão pelos necessitados ou injustiçados, que impele o indivíduo a prestar-lhes ajuda moral ou material” (MICHAELIS, 2018, s.p.). Este é o significado mais comum que utilizamos quando falamos de solidariedade. No entanto, na sociologia, não estamos nos referindo a um sentimento quando falamos nesta palavra, e sim uma situação social na qual existe compartilhamento de ações e pensamentos por grupos sociais. Então lembre-se, quando falarmos de solidariedade a seguir, não é sobre o sentimento com relação aos desfavorecidos, e sim sobre comportamentos coletivos de grupos sociais, certo?

Neste sentido, podemos buscar no dicionário mencionado uma definição sociológica: “Estado ou situação de um grupo que resulta do compartilhamento de atitudes e sentimentos, tornando o grupo uma unidade mais coesa e sólida, com a capacidade de resistir às pressões externas” (MICHAELIS, 2018, s.p.).

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Agora sim, temos uma definição relacionada com os estudos de Durkheim, que pensava a solidariedade como o laço de coesão entre os grupos.

A seguir, vamos estudar individualmente a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica, e voltaremos, depois, a analisar a divisão social do trabalho, pois, para entendê-la, você precisa consolidar primeiro estes dois conceitos. Prossigamos!

2.1 SOLIDARIEDADE MECÂNICA

Para Durkheim, uma forma de laço possível entre os indivíduos, e que determina o nível de evolução social de um grupo e/ou sociedade, é a solidariedade mecânica. Sempre que você pensar em solidariedade mecânica, lembre-se de que ela está associada a outro conceito importante na obra dele, o de consciência coletiva.

IMPORTANTE

A existência da consciência coletiva no grupo permite o predomínio da solidariedade mecânica como base para as relações sociais, procure fixar esta relação conceitual em sua mente durante seus estudos. Um conceito é interdependente do outro na obra de Durkheim.

A consciência coletiva é definida como: “um conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, que forma um sistema determinado que tem vida própria” (DURKHEIM, s.d. apud SELL, 2002, p. 72). Veja que aqui aparece a externalidade do fenômeno, a determinação de comportamentos compartilhados a partir de estruturas externas, marca da teoria sociológica durkheimiana — como vimos no tópico anterior.

A vida em comum, cujo vínculo se dá a partir da solidariedade mecânica, é baseada nesta externalidade do grupo com relação ao indivíduo. Pouco aparece o individual nas relações, a dominação que gera a coesão social é de predomínio do grupo.

Segundo Sell (2002), a explicação para que os indivíduos vivam em sociedade é justamente o compartilhamento de uma cultura comum, carregada de itens que, de certa maneira, obrigam o indivíduo a participar do grupo e a partilhar a cultura, até mesmo por uma questão de sobrevivência. “Quando Durkheim fazia estas análises, estava pensando em sociedades do tipo simples, como são as sociedades indígenas, por exemplo, em que a inserção dos indivíduos no grupo é fundamental para sua cultura” (SELL, 2002, p. 72).

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Vamos dar uma pausa na solidariedade mecânica para aprofundar o conceito de consciência coletiva e, depois deste estudo detalhado, continuaremos com o estudo da solidariedade. Respire e retome a concentração, para compreender um conceito precisamos de outro!

2.1.1 Consciência Coletiva

Para que você entenda com clareza o conceito de consciência coletiva, pode começar pensando no significado literal das palavras que compõem a expressão. A consciência é algo de que se está consciente, algo que ativamos racionalmente para responder com ações aos estímulos da nossa vida. E o coletivo é aquilo que é compartilhado, reconhecido pelo grupo como de propriedade de seus integrantes. Portanto, a consciência coletiva são respostas racionais do grupo aos estímulos, e respostas compartilhadas — repetidas e reforçadas por todo o grupo.

Segundo o autor, possuímos duas consciências: “Uma é comum com todo o nosso grupo e, por conseguinte, não representa a nós mesmos, mas a sociedade agindo e vivendo em nós. A outra, ao contrário, só nos representa no que temos de pessoal e distinto, nisso é que faz de nós um indivíduo.” Em outras palavras, existem em nós dois seres: um, individual, “constituído de todos os estados mentais que não se relacionam senão conosco mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal”, e outro que revela em nós a mais alta realidade, “um sistema de ideias, sentimentos e de hábitos que exprimem em nós [...] o grupo ou os grupos diferentes de que fazemos parte; tais são as crenças religiosas, as crenças e as práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões coletivas de toda espécie (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 70).

Conforme o indivíduo se envolve com sua vida social, cada vez mais deixa sua individualidade ao largo para se comportar de acordo com os preceitos defendidos pelo grupo. A educação, neste contexto, possui obrigações de integração, moralizadoras, na medida em que irá instituir no indivíduo as diretrizes morais do grupo, e, por meio desta ação, desenvolver a consciência grupal no sujeito egoísta.

O conjunto de crenças e sentimentos compartilhados pelo grupo a partir da consciência coletiva produz ideias, imagens, representações, que são manifestadas de formas diferentes pelos sujeitos, mas cuja realidade própria sempre está presente. A dimensão que será ocupada na consciência total das pessoas é variada, de acordo com os dispositivos mobilizados pelo grupo para que esta consciência se manifeste.

A coesão entre o grupo é determinada pela extensão da consciência coletiva: quanto mais extensa a consciência, maior é a coesão. Vejamos:

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A consciência comum recobre “áreas” de distintas dimensões na consciência total das pessoas, o que depende de que seja ou segmentar ou organizado o tipo de sociedade na qual aquelas se inserem. Quanto mais extensa é a consciência coletiva, mais a coesão entre os participantes da sociedade examinada refere-se a uma “conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum”, o que faz com que todas se assemelhem e, por isso, os membros do grupo sintam-se atraídos pelas similitudes uns com os outros, ao mesmo tempo que a sua individualidade é menor (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 71).

Durkheim também reconhece que, mesmo com um elevado grau de coesão, e uma consciência coletiva consolidada, é possível que haja ações de rebelião por parte dos sujeitos. Nem todos possuem a moral do grupo tão inculcada pelo coletivo a ponto de sempre optarem pelas ações coletivas em detrimento das individuais.

Isto quer dizer, o teórico reconhece que uma uniformidade total não é possível, que existem as faltas morais ou mesmo os crimes — divergências entre o indivíduo e as estruturas determinadas pelo coletivo. Quando a originalidade individual se impõe com relação ao coletivo é como se esta pessoa estivesse realizando um delito, deixando de seguir a moral coletiva, sendo tomada como alguém que comete erros.

É aí que entra a ausência ou fraqueza da divisão do trabalho. Quando a consciência individual é tão reduzida e fraca (afinal, só conhecemos parte do todo, só compreendemos como funciona a nossa parte nesta divisão de trabalhos), facilmente, a consciência total domina as decisões racionais sobre a vida individual. Afinal, se não conhecemos o todo, é mais fácil nos guiarmos pelo comportamento que todos estão tendo, do que nos rebelarmos e tomarmos decisões diferentes — já que não temos referência do que pode ser um comportamento diferente.

Barbosa, Oliveira e Quintaneiro destacam um trecho da obra de Durkheim para ilustrar:

Quanto mais o meio social se amplia, menos o desenvolvimento das divergências privadas é contido. Mas, entre as divergências, existem aquelas que são específicas de cada indivíduo, de cada membro da família, elas mesmas tornam-se sempre mais numerosas e mais importantes à medida que o campo das relações sociais se torna mais vasto. Ali, então, onde elas encontram uma resistência débil, é inevitável que elas provenham de fora, se acentuem, se consolidem, e como elas são o âmago da personalidade individual, esta vai necessariamente se desenvolver. Cada qual, com o passar do tempo, assume mais sua fisionomia própria, sua maneira pessoal de sentir e pensar (DURKHEIM, 1921 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 71).

A individualidade gera uma interdependência entre os indivíduos, na medida em que para sobreviver no organismo o individual precisa existir,

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também precisa se moldar ao coletivo, gerando uma interdependência entre as partes. Isso fortalece ainda mais a coesão social.

No entanto, mesmo com esta interdependência, as sociedades, cujo laço social desenvolve-se com base na consciência coletiva do indivíduo, vão sendo gradativamente moldadas à imagem e semelhança do grupo. Exemplo:

São sociedades que podem ser chamadas de clãs, segmentos que executam funções semelhantes e processos similares na vida social, todos caçadores, ou todos agricultores, e papéis sociais são cumpridos de forma semelhante. O cimento que une esses organismos individuais a esse corpo coletivo, como as células em um tecido, é a solidariedade mecânica, por repetição (VERAS, 2014, p. 20).

A consciência coletiva gera um tipo psíquico nos indivíduos, eles passam, e ela permanece. As agressões, as rebeliões contra isso são consideradas crimes, já que ferem, de alguma maneira, aquilo que é coletivo e reconhecido como legítimo por todos.

Você percebeu como utilizamos, com certa frequência, a analogia do organismo quando estamos tratando das teorias e obras de Durkheim? Isto é fruto da forma como ele pensou a sociedade, baseada no organicismo, que vimos no tópico anterior. Se você ficou com dúvidas sobre este tema, releia o conteúdo sobre o organicismo em Durkheim, pois ele é essencial para que você compreenda a forma de pensar deste autor.

ATENCAO

Vamos conhecer um pouco mais sobre a consciência coletiva nas palavras do próprio autor, Durkheim:

O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria: pode-se chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um único órgão; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade; mas possui caracteres específicos que a tornam uma realidade distinta. Com efeito, ela independe das condições particulares em que se encontram os indivíduos; estes passam e ela permanece. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes e nas pequenas cidades, nas mais diferentes profissões. Da mesma forma, não muda a cada geração, mas ao contrário, enlaça umas às outras as gerações sucessivas. Ela é, portanto, algo inteiramente diferente das consciências particulares, ainda que não se realize senão nos indivíduos. Ela forma o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de desenvolvimento, tal como os

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tipos individuais, ainda que de uma outra maneira. Assim sendo, tem o direito de ser designada por um termo especial. Aquele que empregamos acima não está isento por certo de ambiguidades. Como os termos coletivo e social são muitas vezes confundidos um com o outro, é-se levado a crer que a consciência coletiva é toda a consciência social, ou seja, estende-se tanto quanto a vida psíquica da sociedade, enquanto, sobretudo nas sociedades superiores, só ocupa uma parte muito restrita. As funções judiciárias, governamentais, científicas, industriais, em uma palavra, todas as funções especiais são de ordem psíquica, posto que constituem sistemas de representação e de ações: entretanto estão evidentemente fora da consciência comum. Para evitar a confusão que se tem cometido, talvez fosse melhor criar uma expressão técnica que designasse especialmente o conjunto de similitudes sociais. Não obstante, como o emprego de um termo novo, quando não é absolutamente necessário, tem seus inconvenientes, reservamos a expressão mais usada de consciência coletiva ou comum, mas relembrando sempre o sentido restrito em que a empregamos.Podemos, pois, resumindo a análise precedente, dizer que um ato é criminoso quando ofende as condições consolidadas e definidas da consciência coletiva.[...]Existem em nós duas consciências: uma contém os estados que são pessoais a cada um de nós e que nos caracterizam, enquanto os estados que abrangem a outra são comuns a toda a sociedade. A primeira só representa nossa personalidade individual e a constitui; a segunda representa o tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual não existiria. Quando um dos elementos desta última é que determina nossa conduta, não é em vista do interesse pessoal que agimos, mas perseguimos fins coletivos. Ora, ainda que distintas, essas duas consciências são ligadas uma à outra, pois que, em suma, elas formam uma só, não havendo para ambas mais que um só e único substrato orgânico. (DURKHEIM, s.d. apud MUSSE, 2007, p. 66–69).

Após o estudo detalhado sobre a consciência coletiva, voltemos à solidariedade mecânica. Você já sabe que ela é produzida a partir da existência desta consciência de grupo, que se sobrepõe ao indivíduo em suas escolhas e ações.

A solidariedade é chamada mecânica quando “liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário”, constituindo-se de “um conjunto mais ou menos organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o chamado tipo coletivo”. Isso significa que não encontramos ali aquelas características que diferenciam tão nitidamente uns dos outros os membros de uma sociedade, a ponto de podermos chamá-los de indivíduos (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 72).

Nos grupos em que a solidariedade mecânica predomina, os indivíduos são pouco desiguais entre si, o que dificulta a consolidação de uma individualidade. A solidariedade acontece, portanto, em função das similitudes compartilhadas, do coletivo que predomina a partir da identificação com os pares. Nestes grupos, mesmo a propriedade de bens muitas vezes não é individual, apenas coletiva, e não existem mestres ou dominadores que guiem o grupo — as decisões e orientações também são compartilhadas a partir do conjunto de ideias comum.

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A parcela de responsabilidade que a solidariedade mecânica tem na integração social depende da extensão da vida social que ela abrange e que é regulamentada pela consciência comum. O estabelecimento de um poder absoluto - ou seja, a existência de um chefe situado “muito acima do resto dos homens”, que encarna a extraordinária autoridade emanada da consciência comum -, embora já seja uma primeira divisão do trabalho no seio das sociedades primitivas, não muda ainda a natureza de sua solidariedade, porque o chefe não faz mais do que unir os membros à imagem do grupo que ele próprio representa. Esse tipo de sociedade, na qual a coesão resulta “exclusivamente das semelhanças, compõe-se de uma massa absolutamente homogênea, cujas partes não se distinguiriam umas das outras”, é um agregado informe: a horda, um tipo de sociedade simples ou não organizada (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 73).

As hordas, que as autoras mencionam na citação em conjunto, formam os clãs. São sociedades baseadas nos laços de solidariedade mecânica, onde os agregados homogêneos predominam.

A dissolução das sociedades segmentares é concomitante à formação de sociedades parciais no seio da sociedade global. Nesse processo, dá-se uma aproximação entre os membros que a formam, “a vida social generaliza-se em lugar de concentrar-se numa quantidade de pequenos lares distintos e semelhantes”, reduzem-se os “vácuos morais” que separavam as pessoas e, com isso, as relações sociais tornam-se mais numerosas e se estendem. Esse é o resultado de um aumento da densidade moral e dinâmica. Com a intensificação das relações sociais, os participantes dessas sociedades passam a estar em contato suficiente entre si, e desse modo reagem aos demais desde o ponto de vista moral, e “não apenas trocam serviços ou fazem concorrência uns aos outros, mas vivem uma vida comum” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 73).

As sociedades segmentadas que Durkheim analisa são as tradicionais, formadas por segmentos homogêneos e similares, sem relações entre si. “Uma sociedade segmentada é aquela onde os grupos sociais (como aldeias, por exemplo) vivem isolados, com um sistema social que tem vida própria” (SELL, 2002, p. 73).

Neste caso o crescimento do grupo não diferencia funções, apenas cria grupos com a mesma dinâmica anterior, um novo segmento, mas com as mesmas características. Os povos indígenas, quando avançam de território, por exemplo, formam novas aldeias, mas não complexificam seu sistema social. Para ilustrar, veja Figura 5:

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FIGURA 5 – SOCIEDADE COM PREDOMÍNIO DA SOLIDARIEDADE MECÂNICA

FONTE: <http://www.eletronorte.gov.br/opencms/opencms/pilares/meioAmbiente/programasIndigenas/waimiri/subprogramaApoioProducao.html>. Acesso em: 10 set. 2018.

Agora, conforme a densidade material e humana dos grupos cresce, havendo a multiplicação das relações sociais que cobrem os vazios sociais entre os segmentos do grupo e surgindo a necessidade da divisão social do trabalho, fomenta-se o surgimento de outro tipo de solidariedade, outra forma de laço social: a solidariedade orgânica.

Mas antes de estudar o próximo conceito, queremos apresentar como Durkheim visualizou a solidariedade mecânica do ponto de vista da análise sociológica: analisando os aspectos jurídicos, ou seja, o direito.

Para ele, as normas jurídicas são um dos meios pelos quais a sociedade materializa suas convicções morais, um dos elementos da consciência coletiva (SELL, 2002). A organização das normas jurídicas materializa a forma de direito que existe na sociedade, predominando o direito repressivo, no caso da existência de solidariedade mecânica, e o direito restitutivo, no caso da solidariedade orgânica. O primeiro é baseado em punição, e o segundo, em restabelecer a ordem das coisas.

A partir disso, Durkheim analisa a existência e a pressão da consciência coletiva sobre as pessoas, já que no predomínio da solidariedade mecânica, os atos criminosos devem ser punidos, pois representam um perigo para a coesão social (SELL, 2002). As transgressões não são permitidas e a punição existe para mostrar aos demais os custos do distanciamento da moral coletiva. Este direito repressivo, portanto, denota a existência da forte consciência coletiva na sociedade.

Agora sim, após esta visualização da análise sociológica da existência da consciência coletiva, pela forma do direito, presente no grupo, podemos prosseguir e estudar como se dá a evolução para uma nova forma de laço social: a solidariedade orgânica.

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2.2 SOLIDARIEDADE ORGÂNICA

Como vimos há pouco, é com o crescimento quantitativo, material e moral que as sociedades iniciam um processo de especialização das funções, ou como chama Durkheim: divisão social do trabalho. Esta nova densidade gera a necessidade de novas formas de laço social, ou seja, uma integração social na qual os indivíduos passam a depender uns dos outros, já que suas funções são especializadas.

Esta dependência mútua é gerada porque a individualidade pressupõe especialização quando se fala de divisão social do trabalho, por exemplo, se um indivíduo é especialista apenas em uma dimensão, precisaria dos outros para a própria sobrevivência, já que cada um é especializado em dimensões diferentes. Para funcionarmos, precisamos de todos.

Ainda sobre esta dependência:

Onde existe uma divisão do trabalho desenvolvida, a sociedade não tem como regulamentar todas as funções que engendra e, portanto, deixa descoberta uma parcela da consciência individual: a esfera de ação própria de cada um dos membros. À medida que a comunidade ocupa um lugar menor, abre-se espaço para o desenvolvimento das dessemelhanças, da individualidade, da personalidade autônoma (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 71).

Podemos visualizar a solidariedade orgânica na sociedade moderna, na medida em que esta dependência fica evidente, afinal, cada indivíduo exerce funções vitais, bem específicas, para o funcionamento do organismo — dependendo umas das outras para que sejam executadas com sucesso.

Exemplo: um funcionário de uma fábrica de roupas só irá produzir se receber seus tecidos, que por sua vez precisam ser transformados por funcionários que os desenvolvem a partir do algodão, e que por sua vez precisa ser transportado até à fábrica. Este transporte também exige pessoas envolvidas, que receberão o algodão de produtores rurais, responsáveis pelo plantio e colheita. Todos interdependentes entre si, se uma função falha, o organismo todo sofrerá consequências.

Mas não é apenas ao setor econômico que Durkheim se refere quando fala de especialização das funções e de divisão social do trabalho. Ele visualiza este fenômeno em outras dimensões sociais, como na vida política, na cultura, educação, arte etc. Para além das funções econômicas, todas estas outras esferas vão se especializando cada vez mais e gerando uma dinâmica própria de funcionamento, se diferenciando a partir da diversidade de suas atividades (SELL, 2002).

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IMPORTANTE

Observe: não é porque a forma de laço social modifica-se a partir da especialização das funções que não existe mais solidariedade. Segundo as análises de Durkheim, ela apenas se modifica e gera uma nova forma de solidariedade, a orgânica. É diferente, mas segue sendo uma forma de integração social.

Esta nova forma de integração institui-se justamente porque, diferente da solidariedade mecânica em que a consciência coletiva predomina, a solidariedade orgânica é gerada a partir do espaço para as esferas próprias de ação. Com esta esfera específica, gera-se a interdependência mútua mencionada no início desta seção.

A originalidade da explicação durkheimiana está em demonstrar que, longe de ser um entrave, este processo representa um novo mecanismo de integração social. É a própria especialização das funções e das pessoas que gera a solidariedade social, já que os indivíduos passam a ser interdependentes das atividades desenvolvidas em outros setores da vida social (SELL, 2002, p. 75).

A divisão social do trabalho integra o grupo, organiza a sociedade, que necessita disso para sua coesão, em função do seu nível de complexidade. Quanto mais complexa, maior a divisão e especialização de tarefas para que esta coesão seja mantida, e a solidariedade gerada entre os membros.

E, novamente, vemos aqui a analogia de Durkheim com os órgãos, seu vínculo com as perspectivas organicistas, quando ele afirma que é nesta situação onde podemos visualizar que cada órgão tem um papel separado, especializado, uma função definida no organismo. A unidade do corpo social funciona a partir do desempenho de funções individuais.

As afinidades das pessoas, e de suas funções, as aproximam, e segundo ele, as sociedades evoluirão para um momento em que as organizações sociais e políticas terão como bases as diferenciações profissionais. Esta interdependência, portanto, geraria noções coletivas, comportamentos compartilhados. Em outras palavras:

Daí deriva a ideia de que a individuação é um processo intimamente ligado ao desenvolvimento da divisão do trabalho social e a uma classe de consciência que gradativamente ocupa o lugar da consciência comum e que só ocorre quando os membros das sociedades se diferenciam. E é esse mesmo processo que os torna interdependentes. Segundo Durkheim, somente existem indivíduos no sentido moderno da expressão quando se vive numa sociedade altamente diferenciada, ou seja, onde a divisão do trabalho está presente, e na qual a consciência coletiva ocupa um espaço já muito reduzido em face da consciência individual (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 74).

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É importante que você observe, nas suas leituras de Durkheim, que a divisão social do trabalho não exerce apenas funções econômicas, mas antes de tudo, função moral. Se na solidariedade mecânica a consciência coletiva mantinha o conjunto moral a salvo de transgressões e impunha ao indivíduo este conjunto de princípios, na solidariedade orgânica esta consciência se enfraquece.

Este enfraquecimento gera duas consequências (SELL, 2002):

• Uma maior autonomia dos indivíduos, pois não dependem somente da consciência coletiva, podem ter ideias diferenciadas ou agirem de formas diferentes, distinguindo-se do corpo social a partir do espaço ocupado por sua individualidade, buscando aumentar suas ações em relação ao mundo social.

• O enfraquecimento da consciência coletiva pode gerar um excesso de egoísmo, colocando os indivíduos em choque e comprometendo o bom funcionamento do organismo social. Neste caso teríamos a divisão anômica do trabalho, um problema da sociedade moderna, e que iremos estudar na próxima seção.

FIGURA 6 – SOCIEDADE COM PREDOMÍNIO DA SOLIDARIEDADE ORGÂNICA

FONTE: <https://sites.google.com/site/alltoclock/home/portugues/importancia-na-sociedade>. Acesso em: 10 set. 2018.

Para fechar, voltamos ao estudo das palavras do autor:

Inteiramente diferente é a estrutura das sociedades em que a solidariedade orgânica é preponderante.Elas são constituídas não por uma repetição de segmentos similares e homogêneos, mas sim por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos quais com um papel especial e formado de partes diferenciadas.

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Os elementos sociais não são da mesma natureza, ao mesmo tempo que não se acham dispostos da mesma maneira. Eles não se acham justapostos linearmente como os elos de uma cadeia, nem encaixados uns nos outros, mas sim coordenados e subordinados uns aos outros, em torno de um mesmo órgão central que exerce uma ação moderadora sobre o resto do organismo. Este órgão, por sua vez, não tem o mesmo caráter que no caso precedente; porque se os outros dependem dele, ele, por sua vez, depende dos outros. Há sem dúvida uma situação particular e, se quisermos, privilegiada, mas ela decorre da natureza do papel que desempenha e não de qualquer coisa estranha às suas funções e de qualquer força transmitida do exterior. Nada mais tem que não seja temporal e humano; entre ele e os outros órgãos só há diferença de grau. Assim é que, entre os animais, a preeminência do sistema nervoso sobre os outros sistemas se reduz ao direito, se é que se pode falar assim, de receber uma alimentação mais escolhida e pegar sua parte antes dos demais; mas ele precisa dos outros, da mesma forma que os outros precisam dele.Esse tipo social se assenta em princípios tão diversos do precedente que só se pode desenvolver na medida em que este desapareça. Com efeito, os indivíduos estão agrupados não mais segundo suas relações de descendência, mas segundo a natureza particular da atividade social a que se consagram. O meio natural e necessário não é mais o meio natal, mas o meio profissional. Não é mais a consanguinidade, real ou fictícia, que marca o lugar de cada indivíduo, mas a função que ele desempenha. Sem dúvida, quando essa nova organização começa a aparecer, tenta utilizar e se assimilar à já existente. A maneira em que as funções se dividem, se modela, pois, tão fielmente quanto possível, sob o modo pelo qual a sociedade já está dividida. Os segmentos ou pelo menos os grupos de segmentos unidos por afinidades especiais tornam-se órgãos. Assim é que o clã, cujo conjunto forma a tribo dos levitas, se apropria, entre os hebreus, das funções sacerdotais. De maneira geral, as classes e as castas não têm provavelmente outra origem nem outra natureza: elas resultam da mistura da organização profissional nascente com a organização familiar preexistente. Mas este arranjo misto não pode durar muito tempo, pois entre os dois termos que ele pretende conciliar existe um antagonismo que acaba necessariamente por explodir. Não há qualquer divisão do trabalho, por mais rudimentar que seja, que se possa adaptar a esses moldes rígidos, definidos, e que não são feitos para ela. Ela só pode crescer ao se libertar desse quadro que a encerra. Desde que atinja um certo grau de desenvolvimento, desaparece a relação entre o número invariável de segmentos e aquelas crescentes funções que se especializam, bem como entre as propriedades hereditariamente fixadas dos primeiros e a novas aptidões que as segundas exigem. É preciso pois que a matéria social entre em combinações inteiramente novas para se organizar sobre outras bases. Ora, a antiga estrutura, enquanto persiste, opõe-se a isso; eis porque ela deve necessariamente desaparecer (DURKHEIM, s.p. apud MUSSE, 2007, p. 55–57).

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DICAS

Para estudar os conceitos principais da obra de Durkheim, mais especificamente, fato social e divisão do trabalho, sugerimos o livro comentado pelo professor Ricardo Musse, vinculado ao Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. A obra é: Émile Durkhein: Fato social e divisão do trabalho, comentado por Ricardo Musse. Publicado pela Editora Ática em 2007, na coleção Ensaios Comentados.

FONTE:<http://lelivros.love/book/baixar-livro-fato-social-e-divisao-do-trabalho-emile-durkheim-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em: 16 jan. 2019.

Voltando à Divisão do Trabalho Social...

Agora que você já conhece as definições de Durkheim para solidariedade mecânica e orgânica, pode perceber que ele observa um processo evolutivo que envolve ambas. A sociedade, portanto, evoluiria de relações pautadas na solidariedade mecânica, para relações pautadas na solidariedade orgânica. O estágio evolutivo final, portanto, estaria ocorrendo quando os laços sociais se pautassem na divisão social do trabalho.

O autor Sell apresenta um esquema para auxiliar na interpretação destes dois tipos de sociedade:

QUADRO 2 – CARACTERÍSTICAS TIPOS DE SOLIDARIEDADE

Solidariedade Mecânica Solidariedade OrgânicaLaço de solidariedade Consciência coletiva Divisão social do trabalhoOrganização Social Sociedades segmentadas Sociedades diferenciadasTipo de direito Direito repressivo Direito restitutivo

Fonte: Sell (2002, p. 71)

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Perceba que o desenvolvimento do tipo de solidariedade que irá predominar na evolução de um grupo social, para Durkheim, está relacionado com o laço de solidariedade, que pode ser entendido como o mecanismo que gera esta solidariedade: a consciência coletiva ou a divisão social do trabalho (SELL, 2002). Ambas são tão importantes porque são estratégias de integração dos indivíduos nos grupos sociais e nas instituições sociais.

Chegamos, portanto, ao título deste tópico: a Teoria da Integração. Explicar a integração social a partir da obra e raciocínio de Durkheim é utilizar como base a Divisão Social do Trabalho, e sua respectiva relação com as formas de solidariedade dos grupos.

O predomínio de formas de integração mecânicas ou orgânicas está diretamente relacionado à organização dos indivíduos nestes grupos, e ao posicionamento na evolução social identificado por Durkheim. Para ele, a modernidade é explicada a partir desta polarização, inclusive (SELL, 2002).

Agora, para consolidar a importância que a Divisão Social do Trabalho possui na obra de Durkheim, vamos conhecer um texto do próprio autor, para que além da interpretação realizada por outros autores, você possa refletir a partir de suas próprias palavras. O texto a seguir é a tradução de um trecho no qual Durkheim busca pensar acerca do papel da divisão do trabalho, a fim de compreender se a solidariedade social realmente deriva dela.

Não temos apenas que verificar se, em certos tipos de sociedade existe uma solidariedade social que decorra da divisão do trabalho. Esta é uma verdade evidente, visto que, se a divisão do trabalho é muito desenvolvida, ela produz a solidariedade. Mas é preciso sobretudo determinar em que medida a solidariedade por ela produzida contribuiu para a integração geral da sociedade: somente então saberemos até que ponto ela é necessária, se é um fator essencial da coesão social ou, ao contrário, se não passa de uma condição acessória e secundária. Para responder a essa questão é preciso, pois, comparar essa relação social com outras a fim de medir a parte que lhe cabe no cômputo total – e para isso é indispensável começar por classificar os diferentes tipos de solidariedade social.Mas a solidariedade social é um fenômeno sobretudo moral que, por si mesmo, não se presta à observação exata e principalmente a uma medição. Para proceder tanto a essa classificação como a essa comparação, é preciso substituir ao fato interno que nos escapa, o fato exterior que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo.Esse símbolo visível é o direito. Com efeito, onde existe solidariedade social, apesar do seu caráter imaterial, ela não permanece no seu estado puro, mas manifesta sua presença pelos seus efeitos sensíveis. Quando ela é forte, aproxima os homens uns dos outros, coloca-os frequentemente em contato, multiplica as oportunidades de seu relacionamento. Para ser mais exato, no ponto a que chegamos, é errôneo dizer que ela é produto desses fenômenos, ou, ao contrário, que ela é forte, ou antes, se ela é forte porque eles estão próximos uns dos outros. Mas não é necessário no momento elucidar a questão.

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Basta constatar que essas duas ordens de fatos estão ligadas e variam ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Quanto mais solidários sejam os membros de uma sociedade, mais eles mantêm relações diversas, seja se os seus contatos fossem raros, eles não dependeriam uns dos outros, senão de maneira frágil e intermitente. Por outro lado, o número dessas relações é necessariamente proporcional àquele das regras jurídicas que o determina. Com efeito, a vida social, sempre que exista de maneira durável, tende inevitavelmente a assumir uma forma definida e a se organizar. E o direito não é outra coisa senão essa própria organização, naquilo que ela tem de mais estável e mais preciso. A vida geral da sociedade não pode se desenvolver num certo ponto sem que a vida jurídica se desenvolva ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Podemos, portanto, estar seguros de ver refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social.Poder-se-ia, é certo, objetar que as relações sociais podem se estabelecer sem assumir por isso uma forma jurídica. É que a regulamentação não atinge esse grau de consolidação e de precisão: elas não permanecer indeterminadas por esse motivo, mas, ao invés de serem reguladas pelo direito, o são pelos costumes. O direito só reflete uma parte da vida social e, consequentemente, não nos fornece senão dados incompletos para resolver o problema.[...]Será que poderíamos ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não se encontra inteiramente nas suas manifestações sensíveis; que estas não a exprimem mesmo que parcial e imperfeitamente; que, por trás do direito e dos costumes existe um estado interno de onde ela se deriva e que, para conhecê-la verdadeiramente é preciso penetrá-la diretamente e sem intermediários? – Mas não podemos conhecer cientificamente as causas senão pelos efeitos que produzem e, para melhor determinar-lhe a natureza, a ciência nada mais faz que escolher entre esses resultados e aqueles que sejam os mais objetivos e que se prestam melhor para medi-la.[...]O estudo da solidariedade pertence pois à Sociologia. É um fato social que só se pode conhecer por meio de seus efeitos sociais. Se tantos moralistas e psicólogos puderam tratar a questão sem seguir esse método é porque eles contornaram a dificuldade. Eles eliminaram do fenômeno tudo que ele tem de mais especificamente social, para reter apenas o germe psicológico de que ele é o desenvolvimento. É certo, com efeito, que a solidariedade, sendo um fato social de primeira categoria, depende do nosso organismo individual. Para que ela possa existir, é preciso que a nossa constituição física e psíquica a comporte. Pode-se, pois, a rigor, contentar-se em estudá-la apenas sob este aspecto. Mas, nesse caso, só se vê a parte mais indistinta e menos especial; não é dela que se deve tratar, mas antes, do que a torna possível (DURKHEIM; MUSSE, 2007, p. 66–69).

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA INTEGRAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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DICAS

Em seus estudos sobre Teoria Sociológica, é essencial que você procure ler as obras originais dos autores em estudo, e não apenas interpretações realizadas por outros autores. Para os conceitos de divisão do trabalho, solidariedade, entre outros, procure a obra: Da Divisão do Trabalho Social, de Émile Durkheim, publicada pela Editora Martins Fontes, em diferentes edições/anos.

FONTE:<https://cienciassociais2016.wordpress.com/2016/09/22/resenha-critica-divisao-social-do-trabalho-emile-durkheim-conclusao/>. Acesso em: 16 jan. 2019.

Pelo texto é possível perceber a relação que Durkheim estabelece entre as formas de solidariedade e o direito vivenciado pelas organizações sociais, conforme indicado na tabela de Sell (2002), anteriormente apresentada (Quadro 2). Sendo assim, evoluem juntos: tipo de solidariedade, organização social e forma de direito.

O direito foi fundamental para as análises do autor, conforme explica Veras:

O exame partiu de dados que considerou observáveis, externos e passíveis de constatações e interpretações: o crime que cada sociedade considera, as penas aplicadas e, em última análise, o direito que ostenta. O direito foi tido como manifestação da consciência coletiva, o substrato comum, a alma difusa de cada sociedade. O fato jurídico e, pois, um fato social, é regra de conduta sancionada e é observável como exterior, sendo percebida como expressando todas as variedades da solidariedade social. Assim, poder-se-iam estudar as causas (solidariedade) pelos efeitos que provocam (direito) (VERAS, 2014, p. 15).

Esta evolução mencionada por Durkheim, caracterizada pelo avanço na diferenciação social, segue sempre no sentido da maior divisão do trabalho. Quanto maior essa diferenciação de funções, portanto, maior o crescimento da sociedade. A especialização no mundo do trabalho provoca o desenvolvimento da solidariedade orgânica como forma de integração entre os indivíduos.

Esta integração é essencial para compreender a relação do indivíduo com a sociedade em que vive, e a dinâmica social, pois ela promove um propósito de vida, um suporte social que o grupo garante ao sujeito. Em outras palavras, na interpretação de Ramos (2002, p. 158):

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Os efeitos estruturais no bem-estar psicológico das pessoas estão implícitos na Teoria da Integração Social de Durkheim [1897] (1951). Estritamente falando, a integração social, para Durkheim, promove um sentido de significado e propósito para a vida. Isto é, de acordo com Thoits (1982), a integração social leva ao suporte social, protegendo a pessoa contra problemas que podem levar a comportamentos desviantes. Alguns autores (Su e Ferraro, 1997; House, Landis e Umberson, 1988) medem o conceito de integração social de Durkheim como a frequência e a intensidade dos contatos sociais. Neste sentido, a integração social acontece através de um comprometimento que as pessoas têm com a ordem social e exerce controle sobre o comportamento dos indivíduos. Esses contatos também reforçam um sentimento de pertencimento perante a sociedade, que afeta positivamente a saúde dos indivíduos. A integração social (frequência de contatos) pode ter efeitos negativos na saúde, mas isso tem de ser medido pela qualidade dos contatos. Em geral, a perspectiva da integração social assume que a frequência dos contatos promove bem-estar (Durkheim, 1897).

O tipo de sociedade, portanto, é passível de análise a partir da integração existente entre os indivíduos, na medida em que é possível identificar esta pela divisão do trabalho social. Quanto maior esta divisão, mais especializada, é menor a coesão social. E esta aumenta quando a divisão social do trabalho é menor. A coesão social pode ser um indicativo para a compreensão de como os fatos sociais se impõem a um grupo, se menos ou mais coercitivos.

Para seguir com esta reflexão, vamos passar para o próximo conceito das teorias durkheimianas, diretamente relacionado com o que vimos até aqui: o conceito de anomia — ausência dos estados de solidariedade e integração, no grupo, provoca uma situação de redução de regras morais. Após esta breve definição de anomia. Prossiga!

3 ANOMIAUm dos possíveis efeitos da complexificação social, e consequente divisão

social do trabalho, é a passagem da integração realizada pela solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, certo? Isto você já deve ter fixado. Esta passagem pode gerar um problema, chamado por Durkheim de individualismo exacerbado, ou então, excesso de egoísmo.

Dado que a integração orgânica se dá pelos vínculos frágeis estabelecidos pela especialização das funções, e pela perda da noção do todo, a força da consciência coletiva é minimizada e o egoísmo de cada pessoa é ampliado. Esta seria uma das contradições do mundo moderno para Durkheim: “Se, de um lado, existe maior autonomia para o indivíduo, por outro, existe o risco de que o excesso de liberdade leve à desagregação social” (SELL, 2002, p. 86).

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As acirradas lutas sociais, frequentes à época de Durkheim, eram vistas por ele como efeito deste excesso de egoísmo, especialmente as lutas de classes. Assim, ele também buscou analisar o socialismo, que para ele era um indicador de algo errado nas relações sociais, já que se contestava a raiz dos problemas sociais. Mas para ele a questão não era econômica, como destacavam os socialistas, e sim de ordem moral.

Ele apresenta, nas obras que tratam sobre a divisão social do trabalho, a existência da anomia, ou ausência de normas, que ocorria a partir do declínio da consciência coletiva. Se na integração via solidariedade mecânica a consciência coletiva fazia o papel de integradora, na integração pela solidariedade orgânica não havia quem fizesse este papel. Isto gerava a ausência de um conjunto de orientações morais que guiassem a conduta individual e mantivessem os indivíduos integrados na sociedade.

Enfim, sendo a divisão do trabalho um fato social, seu principal efeito não é aumentar o rendimento das funções divididas, mas produzir solidariedade. Se isto não acontece, é sinal de que os órgãos que compõem uma sociedade dividida em funções não se autorregulam, seja porque os intercâmbios ou contatos que realizam são insuficientes ou pouco prolongados. Com isso, não podem garantir o equilíbrio e a coesão social. Nesses casos, o estado de anomia é iminente (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 85).

A liberdade e autonomia, que o mundo moderno permitia aos seres humanos, poderiam gerar este excesso de egoísmo, se os desejos humanos não fossem freados, se as ambições não encontrassem um limite (SELL, 2002). Era preciso haver um sentido para a vida, um sentido coletivo que viesse acompanhado da noção de dever e disciplina, um guia para sua conduta.

Esta função é exercida, em sociedades menos complexas, pelos códigos morais — materialização da consciência coletiva. Em sua ausência, os conflitos se ampliam e surge a anomia, o egoísmo exagerado em função da falta de orientação moral. Para Durkheim, era este movimento o causador de conflitos, e não a questão econômica.

Analisando sob o viés funcionalista, é possível afirmar que:

Vê-se, assim que, sob certas circunstâncias, a divisão do trabalho pode agir de maneira dissolvente, deixando de cumprir seu papel moral: o de tornar solidárias as funções divididas. A ausência de normas — que em situação normal se desprendem por si mesmas como prolongações da divisão do trabalho — impossibilita que a competição presente na vida social seja moderada e que se promova a harmonia das funções (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 85).

Um dos fatores identificados por Durkheim, que contribui para este estado de anomia, é o enfraquecimento da religião (SELL, 2002). Os valores

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e normas sociais sempre estiveram vinculados às religiões, e seus desejos e ambições regrados a partir destas normas. Mas na sociedade moderna o papel da religião vinha sendo reduzido, mais precisamente, sendo substituído pela razão humana. No entanto, até aquele ponto, a razão ainda não havia encontrado formas para realizar a integração social, ainda não havia desenvolvido novos valores para substituir os antigos — e que tivessem a mesma força sobre o grupo no quesito condutas.

Durkheim também compreendia que a sociologia, enquanto ciência, não tinha o papel de apontar novos valores e regras morais, e sim identificar os fenômenos e situações, permitindo à própria sociedade intervir de maneira a restaurar o equilíbrio social.

Ele entendia que os novos valores morais e diretrizes sociais deveriam ser desenvolvidos pela própria sociedade, restaurando assim a ordem social (SELL, 2002). Para isto, ele destaca, na sociedade da época, dois elementos que poderiam auxiliar neste restauro, um de ordem moral e outro de ordem institucional.

Quanto ao elemento de ordem moral, Durkheim afirmava que o único valor que poderia reduzir o excesso de egoísmo seria o valor do indivíduo. Ele não vê problema no individualismo, e sim no excesso de egoísmo, que são coisas diferentes. “Quando os homens tomarem consciência do valor do ser humano, dizia ele, os laços de solidariedade, fraternidade e respeito poderiam ser retomados” (SELL, 2002, p. 88). O egoísmo e os conflitos sociais, provenientes dele, poderiam ser reduzidos quando fosse atribuído valor ao indivíduo e à sua liberdade individual.

Já no quesito ordem institucional, ele busca pensar quais instituições iriam substituir a religião na difusão desta nova moral, baseada na liberdade individual. Primeiro, pondera que seriam a família e o Estado, mas já naquela época, a família estava em um movimento de desprestígio, e o Estado era algo afastado do indivíduo. Ele identifica, portanto, as corporações como instituições para o restauro dos valores sociais.

Estas organizações profissionais teriam o poder de integrar os indivíduos e instituir estados de disciplina, se impondo a eles e reorganizando as funções. Detalhando:

Agindo diretamente no mundo do trabalho, as corporações difundiriam a nova moral do “culto do indivíduo” e eliminariam os conflitos de classe, sinais de que a sociedade estava anômica (ou carente de normas). Com isso, a divisão social do trabalho estaria consolidada e as disfunções e patologias da sociedade (as lutas de classe) dariam lugar a uma sociedade integrada e harmônica (SELL, 2002, p. 89).

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Este movimento seria necessário para reduzir o estado de anomia identificado por Durkheim nas sociedades modernas, e podemos perceber, claramente, o pano de fundo das metodologias funcionalistas funcionando nesta análise. Agora, vamos diretamente para a obra do autor para conhecer um pouco de sua interpretação sobre este conceito.

Visto que um corpo de regras é a forma definida que, com o tempo, assumem as relações que se estabelecem espontaneamente entre as funções sociais, pode-se dizer a priori que o estado de anomia é impossível sempre que os órgãos solidários estejam em contato bastante e suficientemente prolongado. Com efeito, sendo contíguos, eles são facilmente advertidos em qualquer circunstância da necessidade que têm uns dos outros e adquirem por consequência um sentimento vivo e contínuo de sua mútua dependência. Pela mesma razão, os intercâmbios entre eles se fazem facilmente; tornam-se frequentes por serem regulares; eles se regularizam por si próprios e o tempo termina pouco a pouco a obra de consolidação. Enfim, porque as menores reações podem ser mutuamente sentidas, as regras assim formadas trazem a sua marca, isto é, preveem e determinam até no detalhe as condições de equilíbrio; mas se, ao contrário, qualquer elemento opaco se interpõe, desaparecem as excitações de uma certa intensidade que possam se comunicar de um órgão para outro. As relações sendo raras não se repetem bastante para se definirem; a cada nova oportunidade correspondem novas tentativas. Os caminhos por onde passam as ondas de movimentos não podem se aprofundar porque essas ondas são muito intermitentes. Se pelo menos algumas regras conseguem, no entanto, se constituir, elas são gerais e vagas; porque, nessas condições, só os contornos mais gerais dos fenômenos é que se podem fixar. O mesmo ocorrerá se a contiguidade, ainda que suficiente, for muito recente ou durar muito pouco.Essa condição se realiza geralmente pela força das coisas. Porque uma função não pode se distribuir em duas ou mais partes de um organismo, a não ser que estas sejam mais ou menos contíguas. Além do mais, uma vez que o trabalho esteja dividido e como elas necessitam umas das outras, tendem naturalmente a diminuir a distância que as separa. Por isso, na medida em que se eleva na escala animal, vê-se que os órgãos se aproximam e, como diz Spencer, introduzem-se nos interstícios uns dos outros. Mas um conjunto de circunstâncias excepcionais pode fazer que isto ocorra de outra forma.É o que acontece nos casos de que nos ocupamos. Quanto mais acentuado for o tipo segmentar, os mercados econômicos serão mais ou menos correspondentes aos vários segmentos; consequentemente, cada um deles será muito limitado. Os produtores, estando muito próximos dos consumidores, podem colocar-se mais facilmente a par da extensão das necessidades a serem satisfeitas. O equilíbrio se estabelece, portanto, sem dificuldade e a produção regula-se por si mesma. Ao contrário, na medida em que o tipo organizado se desenvolve, a fusão dos diversos segmentos conduz os mercados a serem um só, que abrange quase toda a sociedade. Ele se estende além destes e tende a se tornar universal; pois as fronteiras que separam os povos se reduzem, ao mesmo tempo que aquelas que separavam os segmentos uns dos outros. Resulta que cada indústria produz para consumidores que estão espalhados sobre toda a superfície do país ou mesmo do mundo inteiro. O contato não é mais suficiente. O produtor não pode mais abranger o mercado pelo olhar, nem mesmo pelo pensamento; ele não pode mais fazer representar seus limites,

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

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pois que o mercado é por assim dizer ilimitado. Em consequência, a produção não tem freio nem regra; ela só pode tatear ao acaso e, no curso desses tateamentos, é inevitável que as medidas sejam ultrapassadas, tanto num sentido como no outro. Daí essas crises que perturbam periodicamente as funções econômicas. O crescimento destas crises locais e restritas que são as falências é certamente um efeito dessa mesma causa.Na medida em que o mercado se amplia, aparece a grande indústria. Ora, ela tem como efeito transformar as relações entre patrões e operários. Uma maior fadiga do sistema nervoso, juntamente com a influência contagiosa das grandes aglomerações, aumenta as necessidades destas últimas. O trabalho da máquina substitui o do homem; o trabalho da manufatura, o da pequena oficina. O operário é colocado sob regulamentos, afastado o dia inteiro de sua família; vive sempre separado daquele que o emprega etc. Essas novas condições da vida industrial exigem naturalmente uma nova organização; mas, como estas transformações se completaram com extrema rapidez, os interesses em conflito não tiveram tempo ainda para se equilibrarem.Enfim, o que explica o fato de as ciências morais e sociais estarem no estado que nós indicamos é que elas foram as últimas a entrar no círculo das ciências positivas. Não é por menos, com efeito, que há um século este novo campo de fenômenos se abriu para a investigação científica. Os sábios se instalaram, uns aqui, outros ali, segundo suas inclinações naturais. Dispersos nessa vasta área, eles permaneceram até agora muito afastados uns dos outros para sentir todos os laços que os unem. Mas, só porque eles conduziram suas pesquisas cada vez mais longe do ponto inicial, acabarão necessariamente por alcançar e, em consequência, tomar consciência de sua própria solidariedade. A unidade da ciência se formará, portanto, por si mesma; não pela unidade abstrata de uma fórmula, aliás muito exígua para a multiplicidade de coisas que ela deveria envolver, mas pela unidade viva de um todo orgânico. Para que a ciência seja una, não é necessário que se apegue inteiramente ao campo de visão de uma só e mesma consciência – o que é, aliás, impossível –, mas basta que todos aqueles que a cultivam sintam que colaboram numa mesma obra.Isto que precede tira todo fundamento das mais graves restrições feitas à divisão do trabalho.Ela foi muitas vezes acusada de diminuir o indivíduo, reduzindo-o ao papel de máquina. E, com efeito, se ele não sabe para onde tendem essas operações que se lhe exigem, não as associa a qualquer fim e só pode se contentar com a rotina. Todos os dias ele repete os mesmos movimentos com uma regularidade monótona, mas sem se interessar nem compreendê-los. Não é mais a célula viva de um organismo vivo, que vibra incessantemente ao contato com as células vizinhas, que age sobre elas e responde por vezes à sua ação, estende-se, contrai-se, dobra-se e se transforma segundo as necessidades e as circunstâncias; não passa de uma engrenagem inerte que uma força externa põe em funcionamento e que se move sempre no mesmo sentido e do mesmo modo. Evidentemente, de qualquer maneira que se represente o ideal moral, não se pode ficar indiferente a um tal aviltamento da natureza humana. Porque se a moral tem como objetivo o aperfeiçoamento individual, não pode permitir que se arruíne a tal ponto o indivíduo, e se ela tem pôr fim a sociedade, não pode deixar que se esgote a própria fonte da vida social; porque o mal não ameaça apenas as funções econômicas, mas todas as funções sociais, por mais elevadas que sejam (DURKHEIM, s.d. apud MUSSE, 2007, p. 68–73).

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA INTEGRAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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Também é a anomia um dos motivos atribuídos por Durkheim para a existência de suicídios. Ele estudou o fenômeno do suicídio e, a partir do material empírico obtido, desenvolveu diferentes análises sobre a teoria da integração na sociedade. Como este recorte já pode ser definido, não mais como conceito da Teoria da Integração, e sim como uma pesquisa em si realizada pelo autor, ele segue no próximo tópico, que tratará sobre os desdobramentos da sociologia de Durkheim.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Durkheim buscou compreender, dentro da lógica da sociedade moderna, a função que é exercida pela chamada divisão social do trabalho.

• A forma de laço entre os indivíduos, baseada na consciência coletiva, é a solidariedade mecânica.

• A consciência coletiva é definida como um conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, que forma um sistema determinado com vida própria.

• A forma de laço entre os indivíduos desenvolvida a partir da diferenciação entre as funções dos indivíduos, provocada pela divisão do trabalho social, é a solidariedade orgânica.

• O tipo de sociedade é passível de análise a partir da integração existente entre os indivíduos, na medida em que é possível identificar esta pela divisão social do trabalho.

• A anomia é o egoísmo exagerado em função da falta de orientação moral.

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1 Descreva os conceitos a seguir a partir das definições apresentadas por Émile Durkheim na teoria da integração:

a) Divisão Social do Trabalho

b) Solidariedade Mecânica

c) Solidariedade Orgânica

d) Consciência Coletiva

e) Anomia

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DA

SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOChegamos ao último tópico de seus estudos sobre o autor Émile Durkheim.

Ele trata sobre os desdobramentos de sua sociologia, ou seja, da aplicabilidade de suas teorias e conceitos vistos até aqui, em pesquisas empíricas e temas de análise que até hoje são referência para reinterpretações e para autores contemporâneos.

Estes desdobramentos iniciam quando Durkheim enfatiza a importância da busca por um método próprio da sociologia, conseguindo, assim, consolidar esta ciência, inclusive do ponto de vista acadêmico: ele é um dos principais responsáveis pela inserção da sociologia na universidade como disciplina acadêmica.

Ele também contribuiu significativamente para a epistemologia desta ciência em seus escritos sobre religião, quando desenvolve uma perspectiva de que o conhecimento é fruto da própria sociedade. Analisa, portanto, a ciência como fruto da ordem social, buscando explicar os limites e possibilidades de uma ciência sociológica.

Fato é que a teoria sociológica de Durkheim e o arcabouço conceitual por ele desenvolvido permitiram o estudo de alguns fenômenos sociais cujos dados e métodos persistem até hoje como referência para a Sociologia. É por isso que estudaremos neste tópico suas análises sobre o suicídio, a moral, a religião e a educação, todos como fenômenos sociais. São temas cujas análises durkheimianas são clássicas, em se tratando de Sociologia. Desejo um ótimo estudo!

2 O SUICÍDIOOs estudos sobre o suicídio de Durkheim são bastante famosos na

teoria sociológica clássica, pois é o momento no qual o autor aplica seu método sociológico em uma pesquisa com dados empíricos. Ele trata o suicídio como fato social, e não como caso individual, daí resulta a originalidade da proposta.

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

A definição inicial dada pelo autor é: “Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta, direta ou indiretamente, de um ato positivo ou negativo, executado pela própria vítima e que ela sabia que deveria produzir esse resultado” (DURKHEIM, 1973, p. 11 apud VERAS, 2014, p. 25).

Sendo assim, ele explica que o interessante ao sociólogo é a morte voluntária, que não decorre de especificidades individuais, mas de causas sociais. Ele afirma que cada sociedade possui uma aptidão para o suicídio, e ela pode ser estabelecida pela relação entre o número total de mortes voluntárias e a população total. Ele chama de taxa de mortalidade-suicídio, e pode denotar tendências de variabilidade ou permanência (VERAS, 2014, p. 26).

Durkheim examinou estatísticas de diferentes países da Europa em períodos do século XIX, buscando esgotar possíveis causas para números elevados nas taxas, e após analisar exaustivamente estas causas, como: estados psicopatológicos, o que ele chamou de fatores cósmicos e imitação, desenvolveu todo um volume sobre as causas sociais do suicídio.

Estas causas estariam associadas ao grau de integração das sociedades, que ele analisa a partir de todo o arcabouço teórico estudado no tópico anterior. Falhas na integração social gerariam fissuras no tecido social, que levariam aos altos índices de suicídio.

O fenômeno suicídio está presente em todos os grupos, e, por isso, é possível definir que a causa está na mesma propriedade de todos, sendo ela um maior ou menor grau de integração social.

Analisando o suicídio, Durkheim o distingue em três tipos: suicídio egoísta, suicídio altruísta e suicídio anômico.

O suicídio egoísta é causado pela falta de integração do indivíduo aos grupos da sociedade. É fruto de uma forte individualização, e Durkheim nota que, conforme a integração em sociedades religiosas é maior, menores são as taxas de suicídio. Elas variam também conforme a religião, conforme as práticas que prendem o indivíduo à coletividade do grupo religioso. Quanto mais presos à coletividade, menos taxas de suicídio do tipo egoísta. Também na família há esta relação: casados com filhos tendem a se suicidar menos do que casados sem filhos, pois a integração é maior no primeiro caso. Quanto mais laços sociais, menos suicídios por solidão.

Quanto mais enfraquecidos estão os grupos aos quais o indivíduo pertence, menos ele dependerá deles, e estará mais vinculado a si, configurando o egoísmo. Existem disposições sociais, da vida coletiva, que levam a um menor ou maior vínculo com a vida em comunidade, impactando diretamente na influência que esta exerce sobre o indivíduo — mantendo ou não razões para viver.

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TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE ÉMILE DURKHEIM

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O suicídio altruísta é presente em sociedades menos complexas, mais simples, onde há menos egoísmo. Ele prevalece em idosos, docentes, viúvas, ou servidores que perdem seus chefes. É um tipo de suicídio com fins sociais, em que a pessoa se sente na obrigação de fazê-lo, para evitar castigos religiosos ou desonra (VERAS, 2014).

A integração do indivíduo ao grupo, nestes casos, é demasiada, por isso a perspectiva altruísta, há grande dependência entre indivíduo e grupo. Ele apresenta o exemplo de sociedades hindus, nas quais os suicidas buscam a honra, e de casos mais atuais, como soldados que se deixam matar em guerras por patriotismo, mártires religiosos, ou mesmo terroristas, que se suicidam em nome de deuses. Os militares possuem altos índices de suicídio altruísta, por exemplo, já que a formação militar é uma formação de disciplina para se abnegar os desejos individuais em função de outros.

O último é o suicídio anômico, provocado por crises que desencadeiam processos de renúncia à vida, em função da ausência de normas que guiam a vida individual. O ser humano necessita de freios aos seus desejos individuais, e quando estes não existem em função do grau de sua integração social, ele entra em crise.

FIGURA 7 – SÁTIRA AO FENÔMENO SUICÍCIO, QUE DENOTA A INTEGRAÇÃO SOCIAL

Por que agente semata?

É maisfácil do que

ter quematar todo

mundo.

FONTE: <https://divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt/280365.html>. Acesso em: 10 set. 2018.

A sociedade, esta força regularizadora, é benéfica ao indivíduo, e quando a sociedade está perturbada por crises ou profundas transformações, a regulação é reduzida e as paixões individuais sobressaem, assim, como medos e receios, aumentando as taxas de suicídio. O estado de anomia, portanto, amplia as situações favoráveis a isso (VERAS, 2014).

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UNIDADE 1 | O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM

DICAS

O desenvolvimento desta teoria durkheimiana está na obra O Suicídio, publicada no Brasil pela Editora Martins Fontes.

FONTE:<https://colunastortas.com.br/livro-da-semana-o-suicidio-emile-durkheim/>. Acesso em: 16 jan. 2019.

Há uma relação entre o suicídio egoísta e o anômico, pois ambos revelam ausência de laços sociais, mas, no primeiro tipo, a sociedade está relativamente integrada, apenas os laços sociais se fragilizaram e determinaram uma excessiva individualização. No segundo tipo, o anômico, mais presente nas sociedades industriais e comerciais complexas, a falta de mecanismos de regulação e de freios aos impulsos do homem leva-o ao suicídio (VERAS, 2014, p. 27).

Em cada um dos tipos de suicídio, é possível notar a relação entre indivíduo e sociedade, sendo causado ou pela falta da integração do indivíduo nos grupos, ou pelo excesso do peso da sociedade sobre ele. De qualquer forma, ele sempre identifica causas sociais, e considera o suicídio um fato social.

Ao contrário de fenômenos, como o crime, que Durkheim considerava como um fato social normal, o suicídio era para ele um fato social patológico, que evidenciava que havia profundas disfunções na sociedade moderna. A existência do suicídio anômico era um indício de que o excessivo enfraquecimento da consciência coletiva, a perda de uma moral orientadora e disciplinadora dos comportamentos, além do exacerbamento do individualismo, representavam um sério risco para a integração social e a preservação da sociedade (SELL, 2002, p. 78).

De maneira muito sintetizada, estas são as principais bases da obra de Durkheim, quando ele aplica seu método sociológico de base funcionalista para entender um fenômeno social complexo como o suicídio. Esta análise, elaborada a partir de pressupostos científicos da Sociologia, teve grande impacto no desenvolvimento da ciência, já que é possível na obra observar não apenas os fundamentos teóricos, mas também a aplicação prática de uma teoria sociológica.

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3 VIDA SOCIAL E MORALIDADEPartindo da Teoria da Integração, e conhecendo por ela as formas existentes

de laços sociais, identificando que se pode observá-la a partir do direito aplicado por cada grupo, e obtendo dados empíricos sobre o suicídio, desenvolvendo, inclusive, tipologias para tal patologia social, Durkheim debruça-se nestes materiais para compreender como a vida moral dos indivíduos e dos coletivos está relacionada a isto.

Suas análises levam à conclusão da importância da moralidade como fator de integração social, de integração das pessoas em uma vida coletiva, já que o utilitarismo das funções exercidas na divisão social do trabalho leva ao desentendimento do todo e às relações anômicas. Este seria o grande problema, a grande patologia do mundo moderno.

Esta seção sobre a moral e a vida social explica ambos, principalmente a partir de uma síntese da obra Um toque de Clássico, cuja referência completa você pode consultar ao final deste livro de estudos, uma obra de Tania Quintaneiro, Maria Ligia de Oliveira Barbosa e Márcia Gardênia de Oliveira, publicada pela Editora UFMG.

Durkheim olhou para a França de sua época, e identificou ali a ausência de instituições protetoras, como eram as corporações de ofício no período feudal, e a queda na legitimidade dos conjuntos de valores. Tudo isso gerava conflitos e desordens, já que não havia limitadores de interesses e de formas de ação (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002).

A ação como consciência superior, que a moral exerce sobre os indivíduos, fica prejudicada quando existe uma crise, o que ameaça a coesão social, pois os indivíduos se tornam menos solidários. Quando a autoridade moral se ausenta, a lei do mais forte volta a prevalecer, o estado de natureza, e a hostilidade e a desconfiança, entre indivíduos do mesmo grupo, se fortalecem.

Vejamos a relação estabelecida entre a vida moral e a vida profissional:

O mundo moderno caracterizar-se-ia por uma redução na eficácia de determinadas instituições integradoras, como a religião e a família, já que as pessoas passam a agrupar-se segundo suas atividades profissionais. A família não possui mais a antiga unidade e indivisibilidade, tendo diminuído a sua influência sobre a vida privada, o Estado mantém-se distante dos indivíduos, tendo “com eles relações muito exteriores e muito intermitentes para que lhe seja possível penetrar profundamente nas consciências individuais e socializá-las interiormente”. Por outro lado, a diversidade de correntes de pensamento torna as religiões pouco eficazes nesses aspectos, na medida em que não mais subordinam completamente o fiel, subsumindo-o no sagrado. Com isso, a profissão assume importância cada vez maior na vida social, tornando-se herdeira da família, substituindo-a e excedendo-a. Mas ela própria somente é regulada no interior da esfera de suas próprias atividades (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 82).

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Diante disso, Durkheim procurou entender a solidariedade gerada na vida profissional como fator de integração social, como base para o resgate da moralidade, tão ausente nas sociedades industriais da época. A corporação ou o grupo profissional faria o papel de regulamentador que a moral coletiva não estava conseguindo cumprir, a lógica de pensamento era essa.

Além de substituir alguns estados anômicos presentes nesta situação, as diretrizes do mundo profissional freariam impulsos e dariam força ao papel profissional do indivíduo, vinculando-os ao dever profissional, como, até então, estavam vinculados ao dever doméstico.

Como o sociólogo francês o percebia, tal estado de anarquia não poderia ser atribuído somente a uma distribuição injusta da riqueza, mas, principalmente, à falta de regulamentação das atividades econômicas, cujo desenvolvimento havia sido tão extraordinário nos últimos dois séculos que elas acabaram por deixar de ocupar seu antigo lugar secundário. Ao mesmo tempo, o autor conferiu às anormalidades provocadas por uma divisão anômica do trabalho uma parte da responsabilidade nas desigualdades e nas insatisfações presentes nas sociedades modernas. Mesmo tendo absorvido uma “enorme quantidade de indivíduos cuja vida se passa quase que inteiramente no meio industrial”, tais atividades não exerciam a “coação, sem a qual não há moral”, isto é, não se lhes apresentavam como uma autoridade que lhes impusesse deveres, regras, limites (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 83).

E para Durkheim, o mundo profissional deveria exercer função moralizante, na medida em que o crescimento das corporações deveria fazer com que sua autonomia se ampliasse e, portanto, estabelecesse princípios para seu ramo industrial. Assim, um poder moral passaria a existir com a instituição, minimizando a lei do mais forte e desenvolvendo a solidariedade entre os integrantes daquele nicho — gerando a ideia de sacrifício em nome do interesse comum.

Com a mesma pretensão profissional, as pessoas iriam se aproximar, já que indivíduos com ideias e ocupações similares são atraídos uns aos outros, estabelecendo relações e desenvolvendo o sentimento de todo. Daí decorre a função da divisão social do trabalho, segundo Durkheim:

Enfim, sendo a divisão do trabalho um fato social, seu principal efeito não é aumentar o rendimento das funções divididas, mas produzir solidariedade. Se isto não acontece, é sinal de que os órgãos que compõem uma sociedade dividida em funções não se autorregulam, seja porque os intercâmbios ou contatos que realizam são insuficientes ou pouco prolongados. Com isso, não podem garantir o equilíbrio e a coesão social. Nesses casos, o estado de anomia é iminente (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 85).

Esta obrigação com relação ao todo garante a manutenção do sistema moral, já que esta é compreendida como sistema de normas de conduta, as quais definem como o indivíduo deve se comportar em determinadas circunstâncias.

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Estas formas diferem de outros conjuntos de regras “porque envolvem uma noção de dever, constituem uma obrigação, possuem um respeito especial, são sentidas como desejáveis e, para cumpri-las, os membros da sociedade são estimulados a superar sua natureza individual” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 87).

Os deveres estabelecidos pela moral são praticados de forma livre, já que

o indivíduo passa a entender que cumprir estas regras é fazer o bem, é estar contribuindo para seu grupo social. A moralidade é uma autoridade, com base nela os indivíduos e suas ações são julgados. A sociedade, portanto, indica a obrigatoriedade das regras morais, definindo comportamentos a partir de regras externas ao indivíduo.

De acordo com a concepção de sociedade de Durkheim, a moral é a síntese das consciências morais individuais, já que, também, a sociedade é a síntese dos indivíduos que a compõem. Não apenas a somatória, mas sim a síntese, que atua sobre todos. Assim é o movimento de gerar o interesse coletivo: a própria sociedade provoca a subordinação dos interesses individuais aos coletivos, com base no reconhecimento de fins mais elevados.

E é nesse ponto que aparece, novamente, a divisão social do trabalho, porque a diferenciação provocada por esta divisão pode chegar ao nível de manter em comum, apenas no grupo, sua noção de humanidade. O único ponto em comum sendo o fato de serem seres humanos.

Você deve estar pensando o que isso pode provocar, não? O individualismo exacerbado, a prevalência das consciências individuais, a ausência de ter algo maior para honrar e defender. Sobre isso, ele diz que:

E como cada um de nós encarna algo da humanidade, cada consciência individual encerra algo de divino e fica, assim, marcada por um caráter inviolável para os outros. Esse é o único sistema de crenças que pode garantir a unidade moral da sociedade moderna: a moral individualista e a religião da humanidade, na qual o homem é, ao mesmo tempo, o fiel e o deus (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 88).

Neste ponto aparece a definição do papel do indivíduo na sociedade moderna, para Durkheim, que se relaciona com o Estado na defesa de seus direitos individuais, e para proteger seus interesses.

Em sociedades cuja ordem social é mais simples, o Estado se confunde comumente com a religião, a moral relaciona-se aos deveres como cidadão, e o controle é mais próximo e direto. Nas mais complexas, “o Estado possui funções muito mais extensas, existe também um número cada vez mais significativo de grupos secundários que, além de expressar os distintos interesses organizados de seus membros, mantêm com estes um contato estreito” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 88).

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Este Estado individualista une-se à concepção de todos os direitos individuais, modificando o conjunto moral coletivo. A citação que segue detalha como se dá esta situação:

A glorificação do indivíduo move-se com base na simpatia por “tudo o que é do homem, uma maior piedade por todas as dores, por todas as misérias humanas, uma mais ardente necessidade de os combater e atenuar, uma maior sede de justiça”. A vida, a honra e a liberdade do indivíduo são respeitadas e protegidas, e se “ele tem direito a esse respeito religioso é porque existe nele qualquer coisa da humanidade. É a humanidade que é respeitável e sagrada” e, quando o homem a cultua, ele tem que sair de si e estender-se aos outros. Essa moral não deve, então, ser confundida com a concepção vulgar, condenada por Durkheim, igualada ao egoísmo utilitário e ao utilitarismo estreito que fazem a “apoteose do bem-estar e do interesse individuais e desse culto egoísta do ego”. O homem livre é aquele que contém seu egoísmo natural, subordina-se a fins mais altos, submete os desejos ao império da vontade, conforma-os a justos limites. Por isso, um individualismo desregrado adviria da falta de disciplina e de autoridade moral da sociedade. A divinização do indivíduo é obra da própria sociedade, e a liberdade deste é utilizada para o benefício social. O culto de que ele é ao mesmo tempo objeto e agente dirige-se à pessoa, está acima das consciências individuais e pode servir-lhes de elo em direção a uma mesma fé. Ele representa a adesão unânime a um conjunto de crenças e práticas coletivas merecedoras de um respeito particular que lhes confere um caráter religioso (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 88).

Segundo Durkheim, este é o processo de redução da autoridade moral da sociedade, e ele busca regatar esta análise para explicar o quanto o conjunto moral dos grupos é fundamental para a manutenção da coesão social, evitando o desenvolvimento de individualidades a partir da divisão social do trabalho, que podem gerar patologias presentes nas sociedades modernas.

É por isso que ele se preocupou em estudar as religiões, para analisar seus fundamentos e sua relação com os grupos sociais, e o quanto estas estavam relacionadas ao conjunto moral e à vida social dos indivíduos. Trataremos sobre isso na próxima seção.

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DICAS

A teoria moral de Durkheim é bastante complexa, e necessita de dedicação às leituras para que seja possível apreendê-la em sua totalidade. Para isso, temos traduzidas algumas obras: Filosofia Moral, Lições de sociologia, Ética e sociologia da moral, entre outras. Sugerimos de início o livro A Educação Moral, onde é possível estudar a concepção de moral durkheimiana e sua relação com a instituição educação. Publicado pela Editora Vozes, em diferentes edições.

FONTE:<https://www.amazon.com.br/Educa%C3%A7%C3%A3o-moral-%C3%89mile-Durkheim/dp/8532636683>. Acesso em: 16 jan. 2019.

4 A RELIGIÃOUm dos grandes temas ao qual Durkheim dedicou sua obra é a questão

da vida religiosa, buscando entender nela sua relação com o desenvolvimento da moralidade. A obra principal produzida acerca deste tema chama-se As formas elementares da vida religiosa. É um livro bastante famoso, não há como estudar as análises deste autor sobre a religião sem passar por sua leitura, anote aí!

O autor buscou entender os princípios das religiões primitivas, mais diretamente, a partir do totemismo encontrado em diferentes grupos australianos. Ele utilizou-se de relatos para entender a dinâmica deste tipo de religião e teorizar sobre suas influências na vida social e moral do grupo.

Estas religiões menos complexas seriam, para Durkheim, fonte de dados importantes sobre a origem de seus preceitos, já que as individualidades e diferenças ainda não tomaram conta do essencial — permitindo a visualização daquilo que é comum a elas.

Ao analisar as religiões, o autor notou que estas são compostas pela divisão da sociedade em duas esferas: o profano e o sagrado. O sagrado seria uma percepção da humanidade, da força social agindo sobre eles mesmos, novamente denotando a superioridade da sociedade com relação ao indivíduo — sendo a religião uma expressão desse fato. Desta forma, o autor explica o surgimento da religião em si, uma transfiguração da sociedade (SELL, 2002).

Vamos aprofundar esta distinção entre profano e sagrado, a partir da síntese de Sell (2002):

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• Esfera Sagrada: composta por coisas, crenças e ritos baseados em certa unidade, chamada religião. Envolve o aspecto cultural (crenças) e o material (ritos). Com o compartilhamento de crenças pelo grupo, temos a igreja.

• Esfera Profana: conjunto da realidade que se opõe ao sagrado, esferas de atividades práticas e cotidianas da vida, como família, economia, entre outros.

A esfera sagrada é protegida e mantida em um estatuto especial nas religiões, acessível por meio de ritos. Em outras palavras:

A passagem do mundo profano para o sagrado implica uma metamorfose e envolve ritos de iniciação realizados por aquele que renuncia ou sai de um mundo para entrar em outro e que morre simbolicamente para renascer por meio de uma cerimônia. As coisas sagradas são protegidas, mantidas à distância e isoladas pelas interdições aplicadas às profanas. Elas podem ser palavras, objetos, animais, alimentos, lugares, pessoas etc. Entre essas coisas existem as que são proibidas de ser provadas, vistas, pronunciadas ou tocadas, por exemplo, por homens, mulheres, solteiros, membros de algum grupo, casta ou classe social, durante uma fase da vida ou em certos estados naturais como a gravidez ou a menstruação (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 91).

As cerimônias religiosas, portanto, além de permitir o acesso do mundo profano ao mundo religioso, possuem uma função social: aproximam os indivíduos, lembram, a eles, que fazem parte de um grupo, multiplicam os contatos e consolidam a ideia de coletividade. Assim, as consciências individuais mudam, em favor de sentimentos sociais, fortalecidos nestas celebrações.

A sociedade envolve os indivíduos a partir do fenômeno religioso, tornando-se ainda mais atuante neles, renovando sua parcela de ser social. Além disso, ela atua também nas representações dos indivíduos, auxiliando na manutenção da ordem social.

Nas religiões australianas, Durkheim identificou o uso de símbolos para identificação do grupo, o totem. O totem era representado em diferentes objetos, que passavam a ser sagrados. Ele poderia ser a representação de um animal, uma árvore etc., e era diante destes objetos que os comportamentos religiosos deveriam ocorrer. Estas práticas religiosas, chamadas ritos, poderiam ser divididas em: ritos negativos (proibições), ritos positivos (deveres religiosos) e ritos de expiação (cerimônias de perdão por violações cometidas) (SELL, 2002).

É interessante notar que nestas tribos australianas, a divindade não é concebida como um ser pessoal, distinto dos homens. É por isso que Durkheim rejeita as teorias que explicam a origem da religião a partir deste pressuposto, como é o caso do animismo e do naturismo. Enquanto para o primeiro, a religião constitui a crença em um espírito, o naturismo postula que a divindade seria a transfiguração das forças naturais que o homem percebe agindo na natureza. No totemismo, a noção de divindade pessoal é concebida como uma força anônima e impessoal que encontramos em cada um dos seres, como animais,

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plantas ou outros objetos. É por isso que se trata da mais simples das religiões: o conjunto da realidade no qual esta força se encontra é que constitui a esfera sagrada. É por isso, enfim, que Durkheim afirma que a esfera sagrada, em oposição à esfera profana, constitui a essência de qualquer religião (SELL, 2002, p. 81).

Para ele, a origem das religiões está na necessidade que elas possuem de despertar o divino nos seres humanos, para que assim a sociedade possa se manifestar e conseguir obediência a ela, como ser superior. O comportamento dos indivíduos na religião também seria explicado pelo predomínio da sociedade com relação ao sujeito.

As religiões também são formas de cosmologia, ou sistemas coletivos de representação do mundo. Elas apresentam uma sociedade idealizada, e trazem categorias do entendimento humano, como tempo, causa, espaço etc. Em função disso, Durkheim buscou estudar estes itens na religião, já que nela estas relações são expressas por meio de símbolos e conceitos (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002).

Durkheim questiona as duas teses que até então procuraram explicar a questão do conhecimento e de sua racionalidade - o empirismo e o apriorismo - e propõe que seja reconhecida a origem social das categorias, as quais traduziriam estados da coletividade, sendo, pois, produtos da cooperação. Enquanto os conhecimentos empíricos são suscitados pela ação do objeto sobre os espíritos dos indivíduos, as categorias seriam representações essencialmente coletivas, obras da sociedade expressas inicialmente por meio da religião, na qual foi engendrado tudo o que há de essencial na sociedade: o direito, a ciência, a moral, a arte e a recreação. Se isto se dá é porque “a ideia de sociedade é a alma da religião”, e nesta originaram-se quase todas as grandes instituições sociais. Ela é uma expressão resumida da vida coletiva (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 92).

O autor vai além da análise da religião em si, desenvolvendo uma teoria sobre conhecimento no estudo desta instituição. Segundo ele, a ciência e demais formas de pensamento moderno possuem origem na religião (pois são a primeira forma de representação do mundo), portanto, parte para o estudo de suas origens sociais.

Sell (2002) explica esta teoria do conhecimento durkheimiana:

A tese central de Durkheim é que classificamos os seres do universo (o mundo natural) porque temos o exemplo das sociedades humanas. Vejamos como isto se dá.No totemismo todos os seres eram classificados ou na esfera sagrada ou na esfera profana. Os entes ou objetos que representassem o totem (objetos, plantas, animais, membros da tribo, partes do corpo, etc.) pertenciam ao mundo sagrado, enquanto o restante das coisas existentes pertencia ao mundo profano. Portanto, a religião forneceu ao homem um critério a partir do qual ele podia classificar e ordenar as coisas do mundo. As categorias de pensamento humano, como as noções de tempo, espaço, gênero, espécie, causa, substância e personalidade,

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têm sua origem na religião, ou, em outras palavras, na sociedade. Foi tomando a sociedade, suas relações hierárquicas (sociais) e suas crenças como modelos, que o homem foi construindo suas primeiras explicações do universo, aplicando as categorias do mundo religioso (ou social) ao mundo natural.Com esta teoria, Durkheim julgava poder encontrar uma saída para o dualismo da teoria epistemológica, dividida entre a concepção que julgava que a origem do conhecimento provinha da experiência (teoria empirista) e a concepção que afirmava que a origem do saber está em ideias inatas no indivíduo (teoria racionalista). Para o pensador francês, se as experiências individuais fornecem ao indivíduo o conteúdo ou a matéria do conhecimento, é a sociedade que constrói no homem as categorias lógicas (como a noção de tempo, espaço, causalidade) pelas quais ele organiza os dados da experiência. A própria noção de causalidade (que é o princípio científico de que todo fenômeno tem sempre uma causa eficiente, que explica a origem do fenômeno) tem sua raiz na ideia do “mana”, ou seja, o ser divino que está materializado no totem e é responsável pela “força”, vida ou movimento das coisas. Mais uma vez, Durkheim volta ao pressuposto que guia todas as suas obras: a sociedade é o fundamento lógico que explica o comportamento humano. Assim, a sociedade também é responsável pela origem das formas de conhecimento humano ou das categorias mentais pelas quais o homem organiza os dados de sua experiência. E, ao mostrar esse fenômeno, a sociologia, finalmente, encontrava uma explicação que integrava e ao mesmo tempo superava a dicotomia presente nos estudos do conhecimento humano (SELL, 2002, p. 81–83).

Desta maneira, Durkheim buscou solucionar as questões epistemológicas que envolviam a Sociologia, contribuindo com mais um pilar para a consolidação desta como ciência. Explicando a partir de uma análise empírica da religião as representações específicas do totemismo, ele amplia esta análise para o entendimento das formas de conhecimento humanas. Destaca-se, novamente, a explicação da obtenção do conhecimento pela via social, a prevalência da sociedade com relação às representações individuais.

DICAS

O melhor material complementar que podemos indicar para o estudo aprofundado das questões da religião, em Durkheim, seria sua obra principal sobre o tema: As formas elementares da vida religiosa. Publicada pela Editora Martins Fontes, em diferentes edições. Vale a leitura para apropriação do impacto de suas análises sobre a religião, e sobre o desenvolvimento de sua teoria sociológica do conhecimento.

FONTE:<https://www.emart insfontes .com.br/ formas-elementares-da-vida-religiosa-as-p18557/>. Acesso em: 16 jan. 2019.

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5 A EDUCAÇÃODurkheim é o único, dos autores clássicos, que se deteve mais diretamente

ao estudo da instituição educação. Temos escritos dele analisando este fenômeno social, buscando compreender sua função social nos grupos, influenciando as análises do que viria a ser mais tarde o ramo da Sociologia da Educação.

Você irá estudar as teses de Durkheim sobre a educação, sempre que se direcionar para a Sociologia da Educação, no entanto, é importante compreender, em sua teoria sociológica, a relação estabelecida entre educação e moralidade. Para ele, as sociedades deveriam ter um projeto de educação moral, pois é a partir das socializações educativas que o sujeito é inserido no conjunto moral do grupo. E isso passa a ter uma função essencial quando pensamos nos laços sociais formados pelo indivíduo, seja a partir da solidariedade mecânica ou orgânica.

De início, é importante compreender que ele diferencia ciências da educação e pedagogia. A pedagogia seria responsável pela identificação de práticas, modelos, teorias sobre os sistemas educativos no sentido metodológico. Ela indica os procedimentos práticos que se deve tomar para que a educação cumpra sua função.

Já as ciências da educação, dentre elas a sociologia, deveriam ser o espaço de análise no qual se observa a educação como fenômeno coletivo, compartilhado entre diferentes grupos sociais: “a educação pode ser objeto de uma ciência positiva, baseada na realidade, na evidência dos fatos, e para tal se deve ter por fundamento a pesquisa e buscar, primeiramente, fatos exteriores ao indivíduo que sejam passíveis de observação” (TURA, 2006, p. 40).

Alguns povos não tiveram pedagogia, mas possuem um processo educativo, que pode ser analisado como fenômeno social. A partir disso, podemos entender porque a educação pode ser objeto de análise sociológica, e como ela é compreendida como instituição social.

Sendo assim, aparece na obra de Durkheim, novamente, a prevalência

da sociedade com relação ao indivíduo, quando ele reconhece a existência de dois seres que convivem nos seres humanos: o ser individual e o ser social. O ser individual é composto pelos estados mentais mais íntimos do sujeito, que possui natureza egoísta e antissocial — é o que temos de mais primitivo, instintivo. Já o ser social exprime em nós a natureza do grupo no qual estamos inseridos, os sistemas de ideias, sentimentos e hábitos coletivos dos quais fazemos parte (TURA, 2006).

O ser social não nasce conosco, ele precisa ser formatado, e é daí que decorre a concepção de Durkheim de que o ser humano ao nascer é uma tábula rasa, desprovido de percepções coletivas e sociais. A partir do nascimento, portanto, vamos recebendo estas informações:

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É a vida em sociedade, a convivência com o seu grupo, as diferentes formas de comunicação social e associação que irão progressivamente fazer com que o indivíduo internalize um conjunto de maneiras de ser, pensar e agir que são próprias de seu meio e o indivíduo irá se conformar por elas pelo que trazem de vantagens e de valor na constituição da humanidade, pois que, sem o arcabouço social, o homem retornaria à condição de animal. Se faltar ao indivíduo todo o patrimônio de conhecimentos acumulados, da ciência produzida, dos sistemas de classificações, de ideias, de fórmulas, de valores, de técnicas e, especialmente, a linguagem própria do grupo, ele não poderá sobreviver como ser humano (TURA, 2006, p. 42).

O conjunto das ideias, valores, representações que possuem natureza própria nas instituições educacionais e independem dos indivíduos que as frequentam naquele momento, permitem observar a educação como fato social. Segundo Durkheim, seria papel da sociologia explicar o funcionamento e identificar formas de melhoria para que a educação pudesse alcançar melhores resultados – o que ele chama de fins sociais da educação.

Ele identifica, a partir da comparação de sistemas educativos de diferentes sociedades, que não há uma educação única e universal, e sim variantes, de acordo com o tempo e o meio nos quais estão localizadas. Por isso a educação deveria ser analisada em seu contexto, a partir das sociedades com as quais está vinculada, e não como ideal abstrato e único (TURA, 2006).

As práticas pedagógicas não são, pois, fruto de decisões arbitrárias oriundas da vontade de um educador, mas, ao contrário, estão fortemente determinadas por uma estrutura social e, por isso, seu movimento evolutivo se dá de forma coerente com a constituição e as necessidades do organismo social. Nesse sentido, todo e qualquer sistema educativo é um produto histórico e só através da análise histórica se pode entender e explicar porque, em cada momento, em cada sociedade há um tipo regulador de educação, que se expressa em tendências, fórmulas, padrões que se impõem sobre os indivíduos e que são solidários e coerentes com o conjunto de atividades e instituições da sociedade (TURA, 2006, p. 49).

Do ponto de vista conceitual, portanto, Durkheim define a educação como a ação das gerações adultas sobre as gerações que ainda não estão preparadas para a vida social, com o objetivo de desenvolver, nestas novas gerações, estados necessários para a vida em sociedade.

Esta educação estará vinculada ao conjunto moral do grupo, por exemplo, podendo variar de acordo com a função do grupo dentro do organismo social. Ainda assim, esta educação irá conformar o indivíduo neste conjunto moral, na intenção de haver uma base comum de ideias e sentimentos, que geram práticas relativamente homogêneas. Para Durkheim, a educação possui função homogeneizadora, por assim dizer.

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Neste ponto da análise, ele trata sobre os fins da educação, que podem variar de acordo com o que a coletividade deseja que seja desenvolvido nos novos integrantes sociais, mas que “exerce sobre os educadores uma pressão moral no sentido de desenvolver nos educandos as qualidades comuns do grupo social e seus ideais coletivos” (TURA, 2006, p. 51).

A busca por uma homogeneização a partir da educação se amplia quando se trata de sociedades modernas, dado que a heterogeneidade crescente em função da divisão social do trabalho particulariza cada vez mais as relações sociais. A diferenciação se amplia, e os fins da educação relativos à manutenção do que é comum à coletividade se distanciam.

Assim, o ser social precisa ser incutido nas crianças o quanto antes, para

que se agregue à sua individualidade uma natureza moral e social. A este processo dá-se o nome de socialização, definido como “a interiorização do conjunto de maneiras de ser, sentir, pensar e agir próprios do meio social em que se vive, o que é essencial para a integração social do indivíduo” (TURA, 2006, p. 52).

Esta socialização se dá de forma metódica, porque possui objetivos institucionais claros e uma função social definida, a partir do grupo ao qual responde. A institucionalização desta educação moral é, para Durkheim, o caminho para o pensamento coletivo, para que os indivíduos gostem da vida em sociedade e pensem em ações coletivas e de comunidade, e não apenas ações individualizadas.

DICAS

Esta foi apenas uma pequena síntese do pensamento de Durkheim sobre a educação, e você pode acessar mais informações nas obras dele e nas interpretações. Muitos autores já se dedicaram a compreender as perspectivas dele sobre a educação, pesquise! Sugiro que você inicie pelo artigo que serviu como base para este texto, intitulado Durkheim e a Educação. A autora é Maria de Lourdes Rangel Tura, e está publicado no livro Sociologia para Educadores, da Editora Quartet.

Sobre as obras do autor, você poderá iniciar pela leitura de Educação e Sociologia e A Educação Moral, ambas obras de Durkheim e publicadas no Brasil pela Editora Vozes.

FONTE:<https://livralivro.com.br/books/show/352010?recommender=I2>. Acesso em: 16 jan. 2019.

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LEITURA COMPLEMENTAR

O QUE É FATO SOCIAL?

Émile Durkheim (trecho)

Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos são assim denominados.

A questão se faz ainda mais necessária porque esse qualificativo é utilizado sem muita precisão. É empregado correntemente para designar quase todos os fenômenos que ocorrem no interior da sociedade, por pouco que apresentem, com certa generalidade, algum interesse social. Mas desse modo não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados de sociais. Cada indivíduo bebe, dorme, come, pensa, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções sejam regularmente exercidas. Porém, se esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio se confundiria com o da biologia e o da psicologia.

Mas, na realidade, em toda sociedade há um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por traços específicos dos que são estudados pelas outras ciências da natureza.

Quando exerço minhas tarefas de irmão, esposo ou cidadão, quando

realizo compromissos que assumi, cumpro deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos e eu os sinta interiormente na realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os concebi, mas os recebi por meio da educação. Quantas vezes, aliás, chegamos mesmo a ignorar os detalhes das obrigações que nos incumbe, e, para conhecê-los, temos de consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Da mesma forma, as crenças e as práticas da vida religiosa, os fiéis, ao nascer, as encontram prontas; se elas já existiam antes deles, isso significa que existem fora deles. O sistema de signos de que me sirvo para expressar meu pensamento, o sistema monetário que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas adotadas em minha profissão etc. funcionam independentemente do uso que faço deles. Tomando, um após o outro, todos os membros que compõem uma sociedade, as conclusões anteriores poderão ser repetidas a propósito de cada um. Eis aí, portanto, maneiras de agir, pensar e sentir que apresentam essa notável propriedade de existir fora da consciência individual.

Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo, mas também dotados de um poder imperativo e coercitivo em virtude do qual se impõem a ele, quer queira, quer não. Sem dúvida, quando me conformo a essa coerção voluntariamente, ela não se faz ou se faz pouco sentir, sendo inútil. Mas, ainda assim, ela não deixa de ser um traço intrínseco desses

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fatos, e a prova disso é que ela se afirma caso eu tente resistir. Se experimento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir o meu ato, se ainda houver tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo à sua forma normal, se ele tiver sido realizado e for reparável, ou para me fazer expiá-lo, se não houver outro modo de repará-lo. E quanto às máximas puramente morais? A consciência pública reprime todo ato que as ofenda por meio da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e através das penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo; se, ao me vestir, não levo em conta os costumes seguidos em meu país e em minha classe, o riso que provoco e o isolamento em que me vejo produzem, ainda que de modo atenuado, os mesmos efeitos que uma pena, propriamente dita. Aliás, a coerção, por ser apenas indireta, não é menos eficaz. Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas, nem a empregar moedas legais; mas me é impossível agir de outra maneira. Se procurasse escapar dessa necessidade, minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me interdita trabalhar com procedimentos e métodos de outro século; mas, se o fizesse, certamente me arruinaria. Ainda que eu possa, de fato, libertar-me dessas regras e violá-las com sucesso, isso não ocorre jamais sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E, mesmo que elas sejam finalmente vencidas, fazem sentir suficientemente seu poder coercitivo pela resistência que opõem. Mesmo quando bem-sucedido, não há inovador cujos empreendimentos não se choquem com oposições desse gênero.

Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se lhe impõem. Em consequência, não poderiam ser confundidos com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e ações; nem com os fenômenos psíquicos, que existem somente na consciência individual e por meio dela. Esses fatos constituem, portanto, uma espécie nova, e a eles deve ser dado e reservado o qualificativo de sociais. Esse qualificativo lhes convém, pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não podem ter outro que não a sociedade, seja a sociedade política como um todo, seja qualquer um dos grupos parciais que ela contém, sejam confissões religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais etc. Por outro lado, é unicamente a esses fatos que aquela expressão convém; pois a palavra social só tem sentido definido com a condição de designar apenas os fenômenos que não entram em nenhuma categoria de fatos já constituídos e denominados. Eles constituem, portanto, o domínio próprio da sociologia. É verdade que a palavra coerção, com a qual os definimos, corre o risco de enfurecer os zelosos partidários de um individualismo absoluto. Como eles professam que o indivíduo é perfeitamente autônomo, parece-lhes que este fica diminuído todas as vezes que se evidencia que não depende apenas de si mesmo. Porém, uma vez que hoje é incontestável que a maior parte de nossas ideias e tendências não é elaborada por nós, vindo-nos de fora, elas somente podem penetrar em nós impondo-se; isso é tudo o que nossa definição significa. Sabe-se, aliás, que a coerção social não exclui necessariamente a personalidade individual.

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Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros etc.) consistem todos em crenças e práticas constituídas, poder-se-ia supor, de acordo com o que foi dito, que somente há fato social onde há organização definida. Mas há outros fatos que, sem apresentar essas formas cristalizadas, têm as mesmas objetividade e ascendência sobre o indivíduo. É o que se denomina de correntes sociais. Assim, em uma assembleia, os grandes movimentos de entusiasmo, de indignação e de compaixão que se produzem não têm origem em nenhuma consciência particular. Chegam a cada um de nós de fora, e são suscetíveis de nos mover apesar de nós. Sem dúvida, pode ocorrer que, me abandonando sem reserva, eu não sinta a pressão que exercem sobre mim. Mas esta se revela tão logo eu tente lutar contra ela. Quando um indivíduo tenta se opor a uma dessas manifestações coletivas, os sentimentos que nega retornam contra ele. Ora, se esse poder de coerção externo se afirma com tal nitidez nos casos de resistência, é porque existe também, ainda que inconscientemente, nos casos contrários. Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz acreditar que nós mesmos elaboramos o que se nos impôs de fora. Mas, se a complacência com que nos deixamos levar por essa força mascara a pressão sofrida, ela não a suprime. Da mesma forma, o ar não deixa de ser pesado, ainda que não sintamos o seu peso. Mesmo que tenhamos, de nossa parte, colaborado espontaneamente para a emoção comum, a impressão que experimentamos é completamente diferente da que sentiríamos se estivéssemos sozinhos. Assim, quando a assembleia se dispersa, quando suas influências sociais deixam de agir sobre nós e encontramo-nos novamente a sós, os sentimentos que vivenciamos dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos. Percebemos então que os sofremos muito mais do que os produzimos. Pode até mesmo acontecer de eles nos causarem horror, tão contrários eram à nossa natureza. É desse modo que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem, reunidos na multidão, ser levados a cometer atos de atrocidade. Ora, o que dizemos sobre essas explosões passageiras aplica-se igualmente aos movimentos de opinião, mais duráveis, sobre assuntos religiosos, políticos, literários, artísticos etc., que se produzem incessantemente em torno de nós, seja em toda a extensão da sociedade, seja em círculos mais restritos.

Essa definição de fato social pode, aliás, ser confirmada por uma experiência característica. Basta observar o modo como as crianças são educadas. Quando se examinam os fatos tais como eles são e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste em um esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, sentir e agir às quais ela não chegaria espontaneamente. Desde os primeiros tempos de sua vida, coagimo-la a que coma, beba, durma em horas regulares; forçamo-la à limpeza, à calma e à obediência; mais tarde a obrigamos a aprender a considerar o outro, a respeitar os costumes, as conveniências; forçamo-la ao trabalho etc. Se essa coerção, com o tempo, deixa de ser sentida, é porque pouco a pouco deu origem a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, mas que só a substituem porque dela derivam. É certo que, de acordo com Spencer, uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança agir com toda a liberdade; mas como essa teoria pedagógica jamais

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foi posta em prática por nenhum povo conhecido, ela não constitui senão um desideratum pessoal, e não um fato que se possa opor aos precedentes. Ora, esses últimos tornam-se particularmente instrutivos quando se tem em mente que a educação tem justamente por objeto formar o ser social; pode-se, assim, perceber, resumidamente, de que maneira esse ser social constituiu-se na história. Essa pressão que a criança sofre a todo o momento é a própria pressão do meio social que tende a moldá-la à sua imagem, e do qual, pais e mestres são apenas os representantes e os intermediários.

Portanto, não é a sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenômenos sociológicos. Um pensamento que se encontra em todas as consciências particulares, um movimento que todos os indivíduos repetem não são por isso fatos sociais. Quem se contentou com esse traço para defini-los, confundiu-os erroneamente com o que se poderia chamar de encarnações individuais. O que os constitui são as crenças, as tendências, as práticas de um grupo tomadas coletivamente; quanto às formas de que se revestem os estados coletivos, refratados nos indivíduos, são coisas de outra espécie. O que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentam-se frequentemente dissociadas. Com efeito, algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem, pela repetição, uma espécie de consistência que as precipita, por assim dizer, e as isola dos acontecimentos particulares que as refletem. Elas ganham, assim, um corpo, uma forma sensível que lhes é própria, constituindo uma realidade sui generis, muito distinta da dos fatos individuais que a manifestam. O hábito coletivo não existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina, mas, por um privilégio que não encontra exemplo no reino biológico, exprime-se de uma vez por todas em uma fórmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela educação, que se fixa até mesmo por escrito. Tais são a origem e a natureza das regras jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditados populares, dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou políticas condensam as suas crenças, dos códigos de gosto que as escolas literárias regulam etc. Nenhuma delas é inteiramente encontrada nas aplicações que os particulares fazem, pois podem até mesmo existir sem que sejam atualmente aplicadas.

Certamente essa dissociação não se apresenta sempre com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de maneira incontestável nos casos importantes e numerosos que acabamos de citar para provar que o fato social distingue-se de suas repercussões individuais. Aliás, ainda quando essa dissociação não se dá imediatamente à observação, pode-se com frequência realizá-la com a ajuda de certos artifícios de método; é mesmo indispensável recorrer a essa operação, caso se queira isolar o fato social de toda contaminação para observá-lo em estado puro. Assim, há certas correntes de opinião que nos impelem, com intensidade variável, segundo o tempo e conforme os países, uma ao casamento, por exemplo, outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos intensa etc. Trata-se evidentemente de fatos sociais. À primeira vista, eles parecem inseparáveis das formas que assumem nos casos particulares. Mas a estatística nos fornece o meio de isolá-los. São, com efeito, figurados, não desprovidos de

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exatidão, pelas taxas de natalidade, de nupcialidade, de suicídios, quer dizer, por um número que se obtém dividindo a média total anual dos casamentos, dos nascimentos e das mortes voluntárias pelo número de homens em idade de se casar, procriar, de se suicidar. Como cada uma dessas cifras abrange todos os casos particulares indistintamente, as circunstâncias individuais que podem ter alguma participação na produção do fenômeno se neutralizam mutuamente e, em decorrência, não contribuem para determiná-lo. O que essa cifra exprime é certo estado de alma coletivo.

Esses são os fenômenos sociais, desembaraçados de todo elemento estranho. Quanto a suas manifestações privadas, têm realmente algo de social, já que reproduzem parcialmente um modelo coletivo; mas cada uma delas depende também, e em larga medida, da constituição orgânico-psíquica do indivíduo, das circunstâncias particulares em que ele se situa. Não são, portanto, fenômenos propriamente sociológicos. Pertencem, de maneira simultânea, a dois reinos; poderiam ser chamadas de sociopsíquicas. Elas interessam ao sociólogo sem que constituam a matéria imediata da sociologia. Analogamente, no interior do organismo encontram-se fenômenos de natureza mista que são estudados pelas ciências mistas, como a química biológica.

Mas, dir-se-á, um fenômeno somente pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou, ao menos, à maior parte deles; se for, portanto, geral. Sem dúvida. Mas se ele é geral é porque é coletivo (isto é, mais ou menos obrigatório), longe de ser coletivo por ser geral. Trata-se de um estado do grupo que se repete entre os indivíduos porque se impõe a eles. Ele está em cada parte porque está no todo, longe de estar no todo por estar nas partes. Isso fica, sobretudo, evidente nas crenças e nas práticas que nos são transmitidas completamente prontas pelas gerações anteriores; nós as recebemos e as adotamos porque, sendo simultaneamente uma obra coletiva e uma obra secular, estão investidas de uma autoridade particular que a educação nos ensina a reconhecer e a respeitar. Ora, é notável como a maioria dos fenômenos sociais nos chega por essa via. No entanto, ainda que o fato social seja em parte devido à nossa colaboração, a sua natureza não é outra. Um sentimento coletivo que irrompe numa assembleia não exprime simplesmente o que possuía de comum com todos os outros sentimentos individuais. Ele é algo totalmente distinto, como já vimos. Resulta da vida comum, produto das ações e reações que se estabelecem entre as consciências individuais; e, se esse sentimento ressoa em cada uma delas, é graças à energia especial que se deve precisamente à sua origem coletiva. Se todos os corações vibram em uníssono, não é em consequência de uma espontânea concordância preestabelecida; é que uma mesma força os move numa mesma direção. Cada um é levado por todos.

[...]

FONTE: MUSSE, R. Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho. São Paulo: Ática, 2007. p. 14–23.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Para analisar o suicídio, Durkheim o trata como fato social, aplicando seu método sociológico e uma pesquisa com dados empíricos.

• Ele classifica o suicídio em três tipos: suicídio egoísta, suicídio altruísta e suicídio anômico.

• Suas análises levam à conclusão da importância da moralidade como fator de integração social, já que o utilitarismo das funções exercidas na divisão social do trabalho leva ao desentendimento do todo e às relações anômicas.

• Na divisão do trabalho social, a corporação ou o grupo profissional faria o papel de regulamentador que a moral coletiva não estava conseguindo cumprir.

• O autor buscou entender os princípios das religiões primitivas, mais diretamente a partir do totemismo encontrado em diferentes grupos australianos.

• Ao analisar as religiões, este autor nota que estas são compostas pela divisão da sociedade em duas esferas: o profano e o sagrado.

• Segundo ele, a ciência e demais formas de pensamento moderno possuem origem na religião (pois são a primeira forma de representação do mundo), portanto, parte para o estudo de suas origens sociais.

• Ele reconhece a existência de dois seres que convivem nos seres humanos: o ser individual e o ser social.

• O conjunto das ideias, valores, representações que possuem natureza própria nas instituições educacionais e independem dos indivíduos que as frequentam naquele momento, permitem observar a educação como fato social.

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1 É no estudo sobre o suicídio como fenômeno social que se pode observar a aplicação de um método sociológico durkheimiano. Sobre as três classificações apresentadas por Durkheim para o suicídio, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Suicídio egoísta.II- Suicídio altruísta.III- Suicídio anômico.

( ) Ocorre em função da ausência de normas que guiem a vida individual.( ) Ocorre por fins sociais, pela integração demasiada do indivíduo em seu

grupo social.( ) Ocorre pela falta de integração do indivíduo aos grupos da sociedade.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I - II - III.b) ( ) I - III - II.c) ( ) III - II - I. d) ( ) II - I - III.

2 Duas instituições sociais, estudadas com aprofundamento por Durkheim, foram a educação e a religião. Sobre ambas, analise as seguintes sentenças:

I- A educação pode, para Durkheim, ser observada como fato social porque sua existência independe dos indivíduos que a compõem em um determinado momento.II- A educação e a moralidade possuem uma relação direta na obra de Durkheim, pois, para ele, a educação possui finalidades de educação moral.III- As religiões são, para Durkheim, fruto de uma ordem social guiada pelo divino, que determina as influências do indivíduo na esfera social.IV- As análises sobre a religião contribuíram para Durkheim pensar em uma teoria sociológica do conhecimento.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.b) ( ) Somente as afirmativas III e IV estão corretas.c) ( ) As afirmativas I, II e IV estão corretas.d) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2

O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO DE KARL MARX

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e metodológicas do pensamento sociológico de Karl Marx;

• examinar as principais contribuições da teoria do materialismo-dialético de Marx para a teoria sociológica clássica;

• sistematizar os conceitos principais da teoria sociológica de Marx;

• analisar os desdobramentos da teoria sociológica de Marx para a sociologia com base em temas cuja sua influência nas formas de análise persiste nas interpretações contemporâneas.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 - A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA E MÉTODO

TÓPICO 2 - CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO- DIALÉTICO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 - OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX

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TÓPICO 1

A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA

E MÉTODO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOEste primeiro tópico irá apresentar as obras, teorias e métodos de análise

desenvolvidos por Karl Marx, mais um dos autores clássicos da Sociologia. Assim como Durkheim, ele também possui uma vasta obra, que será iniciada neste livro didático, cujo aprofundamento irá depender de suas leituras e buscas complementares. Neste sentido, temos uma série de obras sugeridas para que você, acadêmico, conheça melhor os trabalhos do autor.

Para iniciar, conheceremos o contexto de vida do autor e as influências sofridas para o desenvolvimento do materialismo dialético e materialismo histórico — Hegel e Feuerbach. Entendidas as bases de suas teorias, seguiremos para o método de análise, buscando compreender como o olhar sobre o modo de produção dos grupos sociais é determinante para a sociologia desenvolvida a partir de Marx. Fechando o tópico, o foco será direcionado para o modelo capitalista, principal direcionamento de análise do autor.

Esta trajetória inicial servirá como base para o entendimento dos conceitos marcados na obra marxiana, que serão estudados no segundo tópico desta unidade. Portanto, concentre-se em compreender os principais elementos da teoria e do método de análise social estabelecidos a partir de Marx. Boa leitura!

2 VIDA E OBRAPara iniciarmos nossos estudos sobre Marx, vamos contextualizar sua

vida:

Karl Marx (1818–1883) foi um filósofo e revolucionário socialista alemão. Criou as bases da doutrina comunista, onde criticou o capitalismo. Sua filosofia exerceu influência em várias áreas do conhecimento, tais como Sociologia, Política, Direito e Economia.

Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, Renânia, província ao sul da Prússia - um dos muitos reinos em que a Alemanha estava fragmentada, no dia 5 de maio de 1818. Filho de Herschel Marx, advogado e

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conselheiro da justiça, descendente de judeu, era perseguido pelo governo absolutista de Guilherme III. Em 1835, depois de concluir seus estudos no Liceu Friedrich Wilhelm, Karl ingressou no curso de Direito da Universidade de Bonn, onde participou das lutas políticas estudantis.

No final de 1836, Karl Marx se transferiu para a Universidade de Berlim para estudar Filosofia. Nessa época, se propagavam as ideias de Hegel, destacado filósofo e idealista alemão. Marx se alinha com os "hegelianos de esquerda", que procuram analisar as questões sociais fundamentados na necessidade de transformações na burguesia da Alemanha. Entre 1838 e 1840, Karl Marx se dedica a elaborar sua tese. Doutorou-se em Filosofia em 1841, na Universidade de Jena, com a tese A Diferença Entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e a de Epicuro.

Por motivos políticos, Karl Marx não consegue a nomeação para lecionar na universidade, que não aceita mestres que seguem as ideias de Hegel. Com a recusa, Marx passa a escrever artigos para os Anais Alemães, de seu amigo Arnold Ruge, mas a censura impede sua publicação. Em outubro de 1842, muda-se para Colônia, e assume a direção do jornal Gazeta Renana, onde conhece Friedrich Engels, mas logo após a publicação do artigo sobre o absolutismo russo, o governo fecha o jornal.

Em julho de 1843, Marx casa-se com Jenny, irmã de seu amigo Edgard von Westphalen. O casal muda-se para Paris, onde Marx junto com Ruge funda a revista Anais Franco-Alemãs, e publica os artigos de Friedrich Engels. Publica também Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e Sobre a Questão Judaica. Nessa época, ingressa numa sociedade secreta.

Em fins de 1844, Marx começa a escrever para o Vornaerts, em Paris. As opiniões desagradam o governo de Frederico Guilherme V, imperador da Prússia, que pressiona o governo francês a expulsar os colaboradores da publicação, entre eles Marx e Engels. Em fevereiro de 1845, é obrigado a sair da França e segue para a Bélgica.

Karl Marx dedica-se a escrever teses sobre o socialismo e mantém contato com o movimento operário europeu. Funda a Sociedade dos Trabalhadores Alemães. Junto com Engels, adquirem um semanário e se integram à Liga dos Justos, entidade secreta de operários alemães, com filiais por toda a Europa.

No Segundo Congresso da Liga dos Justos, Marx e Engels são solicitados para redigir um manifesto. No dia 21 de fevereiro de 1848, com base no trabalho de Engels, Os Princípios do Comunismo, Marx escreve o Manifesto Comunista, onde esboça suas principais ideias com a luta de classes e o materialismo histórico. Critica o capitalismo, expõe a história do movimento operário, e termina com um apelo pela união dos operários no mundo todo. Pouco tempo depois, Karl e sua mulher são presos e expulsos da Bélgica e se instalam em Londres. Apesar da crise, em 1864, Marx funda a Associação Internacional dos Trabalhadores, que fica conhecida como “Primeira Internacional". Com a ajuda de Engels, publica em 1867 o primeiro volume de sua mais importante obra, O Capital, em que sintetiza suas críticas à economia capitalista.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA E MÉTODO

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A principal obra de Karl Marx é O Capital, nele, Marx faz uma análise crítica ao capitalismo. Sintetiza o modo de funcionamento da economia capitalista, mostrando que ela está baseada na exploração do trabalhador assalariado, que produz um excedente que acaba ficando para o capitalista. Segundo as teorias desenvolvidas por Karl Marx, o excedente deveria voltar para o trabalhador, na forma de salário, numa porcentagem do valor equivalente ao que foi produzido, e a outra parte ficaria com o dono dos meios de produção. Essa seria então o que Marx chamou de “mais-valia”. Com a ajuda de Engels, o primeiro volume foi publicado em 1867.

Karl Marx faleceu em Londres, Inglaterra, no dia 14 de março de 1883 (FRAZÃO, 2018, s.p.)

FIGURA 1 – KARL MARX

FONTE: <http://fpaladini.blogspot.com/2014/05/por-que-voce-deveria-respeitar-karl-marx.html>. Acesso em: 1 dez. 2018.

DICAS

Uma excelente síntese sobre a vida de Marx e alguns textos fundamentais do autor estão em Marx: Sociologia. Organizada por Florestan Fernandes, publicada em várias edições pela Editora Ática. Além disso, este texto também apresenta diretrizes gerais da concepção sociológica e da posição metodológica do autor.

FONTE:<https://http2.mlstatic.com/marx-sociologia-florestan-fernandes-e-octavio-ianni-D_NQ_NP_796711-MLB20609408951_022016-O.webp>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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UNIDADE 2 | O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO DE KARL MARX

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Historicamente situados, vamos iniciar nossos estudos sobre as principais obras, teorias e conceitos de Karl Marx. Boa leitura!

3 MATERIALISMO DIALÉTICOAntes de acessarmos a principal herança de Marx, e o que podemos

chamar de seu método de explicação da sociedade, precisamos separar dois itens e compreendê-los individualmente: um é o materialismo dialético, entendido como sua teoria filosófica, e outro o materialismo histórico, entendido como um método de estudo para a vida social. Ambos influenciaram o desenvolvimento do materialismo histórico-dialético, que estudaremos no próximo tópico desta unidade. Por ora, vamos estudar estas duas partes separadamente, prossigamos!

Para entender o pensamento filosófico de Marx e o funcionamento da dialética em seu pensamento, iremos acompanhar principalmente o desenvolvimento lógico realizado por Sell (2002), em seus escritos sobre Marx no livro Sociologia Clássica. Ele explica o materialismo dialético a partir de três momentos: a influência dos autores Hegel e Feuerbach; a superação de Marx em relação à obra destes autores; e por último, a participação do materialismo dialético na reformulação epistemológica da sociologia.

Vamos iniciar pelo entendimento das influências de Hegel, cuja principal é o uso do método dialético.

Marx explica que mantém uma atitude crítica com relação à dialética hegeliana, com sua famosa frase de que a dialética em Hegel está de “cabeça para baixo”. Desta maneira, ele afirma ser necessário manter a dialética como método, mas realizar modificações no que diz respeito ao conteúdo previsto por Hegel. Em termos descritivos, Hegel propõe um idealismo dialético, enquanto Marx propõe um materialismo dialético.

Para Hegel, a história deveria ser compreendida como movimento, diferenciando-se da metafísica, onde a realidade possui uma essência que a define. As modificações no mundo, nas coisas, ocorreriam — mas a essência de tudo seria e permaneceria a mesma — do ponto de vista da metafísica. Quando Hegel apresenta a dialética, ele defende que a realidade é composta por um constante movimento, e não por uma essência imutável.

Portanto, aí se dá a principal inovação do pensamento hegeliano, diferenciando-se do pensamento metafísico: se para o método metafísico a essência das coisas não se modifica, no método dialético entende-se a realidade como um movimento constante (SELL, 2002).

Sendo assim, cabe descobrir o que seria a razão ou causa deste movimento constante, desta constante transformação, que para Hegel é a contradição. Todo

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA E MÉTODO

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ser é contraditório, ou seja, já contém em si a sua negação. Este é o chamado princípio da contradição. “Para Hegel, o princípio de que todos os seres são contraditórios é uma lei que governa toda a realidade. É o fato de que todo ser é contraditório que explica a causa do movimento ou do devir contínuo” (SELL, 2002, p. 153).

DICAS

Quer conhecer um pouco mais sobre Hegel e entender seu importante legado filosófico? Uma de suas obras mais famosas é A Fenomenologia do Espírito, publicada no Brasil pela Editora Vozes, em diferentes edições.

FONTE:<ht tps : / / resenhasdef i losof ia . f i les .wordpress .com/2014/09/fenomenologiadoespirito.jpg>.Acesso em: 14 fev. 2019.

Confuso? Para detalhar, e explicar melhor o exemplo do diálogo que Sell utiliza, pela sua aproximação com a o processo dialético. No diálogo o pensamento se forma pela troca de afirmações, a ação ou contradição da ideia afirmada anteriormente é que gera o movimento, ou pensamento. Assim ocorre um diálogo, ele necessita da contradição de ideias para existir. Vejamos como Sell explica:

O exemplo do diálogo nos ajuda a esclarecer duas coisas. Em primeiro lugar, ele nos mostra a ideia de movimento, de devir ou ainda de transformação. Ao trocarmos ideias com outras pessoas, nossos pensamentos vão se alterando e as ideias de nosso interlocutor também. De pensamento em pensamento, ou de ideia em ideia, o que temos no diálogo é movimento constante. Em segundo lugar, fica fácil perceber que este movimento de ideias é causado pela oposição ou contradição das ideias entre si. Se não houvesse um confronto de ideias, certamente não teríamos o movimento. A oposição ou contradição de ideias é que gera o movimento. São justamente estes dois aspectos que formam a essência da dialética em Hegel. Segundo o autor (i) a realidade é uma contínua transformação (II) cuja causa ou razão é o princípio da contradição, ou seja, o fato de que todos os seres são contraditórios (SELL, 2002, p. 154).

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FIGURA 2 – EXEMPLO SATIRIZADO DE DIALÉTICA

FONTE: <http://karlmarxicf.blogspot.com/>. Acesso em: 5 nov. 2018.

É importante frisar que o princípio para Hegel é a contradição inerente a todos os seres, ou seja, a negação que cada um possui em si. No exemplo anterior, isso está explícito quando se nota que ao afirmar uma ideia o indivíduo está se opondo a outra, sempre. A negação está intrínseca, é nisso que você precisa se concentrar para entender as ideias de Hegel: a afirmação de uma ideia gera a negação de outra, ou seja, cada ser ou ideia existente possui em si a contradição a outra ou outras.

Chegamos então ao seguinte esquema, que os intérpretes de Hegel desenvolveram para esclarecer seu idealismo dialético (SELL, 2002, p. 155):

Tese Antítese Síntese/Tese Antítese Síntese/Tese

Esta seria, portanto, a dinâmica fundamental dos seres: tese – afirmação; antítese – negação; síntese – negação da negação. A contradição precisa ser superada pela síntese, portanto, que pode ser chamada de unidade dos contrários. As sínteses serão novas teses e, assim, segue o movimento.

Desta maneira, a realidade seria marcada pelo movimento, a história seria sempre movimento, gerado pela contradição existente em si. O início da história seria a ideia, o elemento fundante. Confuso? Sell detalha bem esta parte do pensamento de Hegel, veja:

De acordo com Hegel, seguindo a lei da contradição, o pensamento aliena-se (sai de si mesmo) e torna-se o seu contrário: a matéria. Temos, assim, a segunda fase da história. Finalmente, no terceiro momento da história, a matéria supera a negação do espírito e torna-se “cultura”, que é justamente uma síntese, ou seja, a superação das contradições entre o pensamento e a matéria (SELL, 2002, p. 154).

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O que Marx entendia que precisava ser modificado no pensamento de Hegel era justamente a posição do pensamento nesta forma de pensar. Para ele, a causa, o fundamento de tudo é a matéria, o elemento material. É a matéria que provoca o movimento da história, e todo o processo de pensamento e de construção das ideias surge a partir disso.

IMPORTANTE

Você percebeu que de certa maneira Marx inverte o idealismo de Hegel? Se para Hegel o movimento parte da ideia, do pensamento, para então desenvolver a matéria e gerar história, para Marx esta ordem é invertida. Parte-se do mundo material para o pensamento e a ideia, e é esse mundo material que faz movimentar a história. Você irá perceber que os autores que tratam sobre este tema, nas obras, se referem sempre desta maneira: à inversão que Marx faz do idealismo dialético e de Hegel. Agora você já sabe do que se trata!

Agora passemos ao segundo conjunto de ideias que influenciou o materialismo dialético de Marx, provenientes do autor Feuerbach. A influência de Feuerbach se dá especialmente na noção de alienação, conceito muito presente nas obras de Marx e que terá uma seção especial nesta unidade. Por hora, cabe entender a alienação na perspectiva de Feuerbach.

Este autor fazia parte da chamada esquerda hegeliana, um conjunto de autores que estudava o pensamento de Hegel de uma forma crítica. Marx também fazia parte deste grupo. De toda a obra de Hegel, Feuerbach se debruçou mais sobre o estudo acerca da religião, que segundo ele seria uma forma de alienação dos seres humanos.

Feuerbach também coloca o materialismo como início das coisas, especialmente da religião. Para ele é o ser humano quem cria a ideia do divino, e o coloca como um ser criado à imagem e semelhança do homem. Ou seja, ele inverte a lógica religiosa, que indica o ser humano como imagem e semelhança de Deus, que criou a humanidade. A tirinha a seguir explica esta ideia (Figura 3).

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FIGURA 3 – CHARGE SATIRIZANDO O PENSAMENTO DE FEUERBACH

FONTE: <http://old.operamundi.com.br/conteudo/samuel/39073/galeria+de+imagens+as+charges+em+portugues+de+charb+editor+do+charlie+hebdo

morto+no+ataque+em+paris.shtml>. Acesso em: 5 nov. 2018.

Vejamos como chegamos a esta inversão sobre o fenômeno religioso na alienação:

De acordo com a explicação de Feuerbach, a religião é uma projeção dos desejos do homem. A ideia de que Deus é um ser perfeito e absoluto foi inventada pelo homem porque representa tudo aquilo que o homem gostaria de ser. Deus nada mais é do que o homem perfeito, um “super-homem”. Deus, portanto, é a própria essência humana. Mas, em vez de reconhecer que a essência está nele mesmo, o homem a coloca fora dele, em um ser espiritual que ele mesmo projetou. Alienação, portanto, é justamente quando o homem não perceber as coisas como elas são. O homem está alienado quando não percebe a si mesmo, não reconhece a sua própria essência (SELL, 2002, p. 157).

O ponto chave que você precisa registrar é o final desta citação. A alienação é o estado no qual o indivíduo não percebe as coisas como elas realmente são, quando ele se desconecta de sua essência e não percebe mais seu lugar no mundo, seu espaço na ordem social.

Enquanto Feuerbach refletia sobre esta alienação no quesito religioso, desenvolvendo que o próprio ser humano projetava a religião como forma de se alienar do mundo acerca do qual ele mesmo era responsável, Marx modificava este pensamento.

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Para Marx a alienação existia, mas ela ocorria em função da alienação material, ocorrida pelo sistema capitalista. É a posição do ser humano neste modo de produção que o impede de ter noção da realidade e consciência de sua essência. Para Marx, o capitalismo aliena o ser humano de sua própria essência, que é o trabalho, na medida em que a propriedade privada, fundamento desta forma econômica, separa o homem da sua natureza.

DICAS

Vamos aprofundar nossos estudos sobre a alienação em Marx ainda nesta unidade, mas se você quiser conhecer mais sobre suas reflexões acerca do pensamento de Feuerbach, a obra mais indicada é Teses sobre Feuerbach, possível de ser encontrada publicada pela Editora Jorge Zahar no Brasil.

FONTE:<https://http2.mlstatic.com/S_970347-MLB27577617945_062018-O.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019

Agora que você já conhece as influências principais para o desenvolvimento do materialismo dialético de Marx, podemos compreender como este autor supera as contribuições de Hegel e de Feuerbach. Ele entende que a esquerda hegeliana errou ao manter suas reflexões apenas no território das ideias, sem pensar as condições reais de vida (SELL, 2002). Para Marx, não é apenas o mundo de ideias que determina o pensamento humano, e sim as condições de produção material.

Para tanto, Marx elenca cinco pressupostos que, para ele, não podem ser deixados de lado quando se pretende interpretar a história, dado que determinam a humanidade do ponto de vista das condições cotidianas. A seguir segue a descrição destes pressupostos:

O primeiro pressuposto básico da história é que os homens devem estar em condições de viver para fazer história. A primeira realidade histórica é a produção da vida material. O segundo pressuposto é que tão logo a primeira necessidade é satisfeita, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido para essa satisfação criam novas necessidades. E essa produção de necessidades novas é o primeiro ato histórico.

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O terceiro pressuposto existente desde o início da evolução histórica é a de que os homens, que renovam diariamente sua própria vida, se põem a criar outros, a se reproduzirem – é a relação entre homem e mulher, pais e filhos – é a família.Segue-se um quarto pressuposto, de que um modo de produção ou um estágio industrial está sempre ligado a um modo de cooperação. A massa das forças produtivas determina o estado social.Finalmente, somente depois de ter examinado os pontos anteriores, no quarto pressuposto é que se pode verificar, segundo Marx, “que o homem tem consciência”. Para Marx, a consciência nasce da necessidade, da existência de intercâmbio com outros homens. A consciência é, desde o seu início, um produto social (SELL, 2002, p. 161).

Desse modo, Marx defende a determinação da matéria sobre a consciência individual, fundando o materialismo dialético. A realidade existe a partir do mundo material, e não a partir do pensamento, pois este também é determinado pelas condições materiais.

Ao comparar o idealismo ao materialismo, temos:

FIGURA 4 – QUADRO COMPARATIVO

MATERIALISMO DIALÉTICO

TESE Matéria (Natureza)

ANTÍTESE Pensamento (Trabalho)

SÍNTESE Sociedade (História)

IDEALISMO DIALÉTICO

TESE Ideia em si A realidade é pensamento

ANTÍTESE Ideia fora de si A realidade torna-se matéria

SÍNTESE Ideia em si e para si A realidade é pensamento e matéria

FONTE: Sell (2002, p. 162)

Esta forma de pensar a dialética é determinante para o entendimento de como as teorias de Marx influenciam a forma de pensar a ordem social. Para além da observação do meio material como determinante para a transformação da história, existem outros aspectos primordiais. Analisemos novamente a explicação de Sell (2002).

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Agora que já compreendemos as diferenças entre o método dialético em Hegel e Marx, vamos refletir sobre a influência do método dialético na sociologia marxista. Quais as contribuições que a noção de dialética em Marx trouxe para a construção dos fundamentos filosóficos desta ciência? Em que medida o método dialético permitiu a Marx entender a sociedade? Destaquemos, pois, alguns elementos neste sentido.Em primeiro lugar, para entender a importância do materialismo dialético na sociologia marxista, é importante destacarmos a posição central que a interação entre o homem e a natureza adquire nesta teoria. Para Marx, o elemento central para se entender o desenvolvimento da sociedade é o TRABALHO: a ação do homem sobre a matéria.De acordo com o esquema dialético de Marx, é pelo trabalho que o homem supera sua condição de ser apenas natural e cria uma nova realidade: a sociedade. Assim, se a matéria (mundo natural) representa a tese, temos que o trabalho representa a antítese da matéria, que uma vez modificada pelo homem gera a sociedade, que é a síntese. A sociedade é justamente a síntese do eterno processo dialético pelo qual o homem atua sobre a natureza e a transforma:O trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza [...]. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.A dialética do trabalho tem uma dupla importância para a sociologia. O trabalho não só é uma condição indispensável da vida social, mas também é o elemento determinante para a formação do ser humano, seja como indivíduo, seja como ser social. Sem o trabalho não haveria nem ser humano, nem relações sociais, nem sociedade e nem mesmo a história. Por tudo isso, pode-se dizer que a categoria trabalho é o conceito fundante e determinante de toda construção teórica marxista.Um segundo aspecto importante do método dialético é que ele permitiu à teoria marxista repensar um dos principais dilemas enfrentados no campo da epistemologia sociológica: a relação entre indivíduo e sociedade. Na teoria marxista, a relação do homem com a sociedade não é reduzida a um ou outro dos polos, como faziam as teorias anteriores. Ou seja, o homem não é fruto exclusivo da sociedade, nem esta resulta apenas da ação humana. Na perspectiva dialética, existe uma eterna relação entre indivíduo e sociedade, que faz com que tanto a sociedade quanto o homem se modifiquem, desencadeando o processo histórico-social.Marx, em frase que se tornou célebre, enunciou esta ideia de uma forma muito feliz, ao afirmar que “os homens fazem a história, mas não a fazem como querem. Eles a fazem sob condições herdadas do passado”. Nesta frase, Marx deixa muito claro o peso que as estruturas sociais exercem sobre os indivíduos, mas, dialeticamente, mostrou que os homens partem justamente destas mesmas estruturas para recriá-las pela sua própria ação (SELL, 2002, p. 161).

Desta maneira, finalizamos o entendimento sobre a importância do modo de pensar dialético e materialista para a sociologia, o que reitera a participação de Marx no desenvolvimento do pensar sociológico — a tal ponto de tornar-se um clássico. Seguiremos agora pelo estudo do materialismo histórico, outra parte importante do pensamento deste autor, especialmente para a sociologia.

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4 MATERIALISMO HISTÓRICOComo vimos, para Marx a história é fruto do movimento gerado a partir do

trabalho humano, e não do pensamento, das ideias, ou de algum espírito absoluto. A interação entre os seres humanos, buscando satisfazer suas necessidades, é que desencadearia o processo histórico. É nessa perspectiva que Marx observa e investiga a sociedade.

A análise da vida social deve, portanto, ser realizada através de uma perspectiva dialética que, além de procurar estabelecer as leis de mudança que regem os fenômenos, esteja fundada no estudo dos fatos concretos, a fim de expor o movimento do real em seu conjunto. Marx afirma que a compreensão positiva das coisas “inclui, ao mesmo tempo, o conhecimento de sua negação fatal, de sua destruição necessária, porque ao captar o próprio movimento, do qual todas as formas acabadas são apenas uma configuração transitória, nada pode detê-la, porque em essência é crítica e revolucionária” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 28).

Para Marx, a possibilidade de estudo da ordem social inicia quando se parte da consciência de que a vida social, política e intelectual é condicionada pela produção de vida material — tanto das condições preexistentes ao indivíduo, quanto das que ele mesmo criou. Para tanto, “as relações materiais que os homens estabelecem e o modo como produzem seus meios de vida formam a base de todas as suas relações” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 28).

DICAS

A ruptura de Marx com a esquerda hegeliana, ou seja, suas ideias contrapondo o que este grupo defendia e apresentando sua perspectiva materialista, estão descritas na, escrita em parceria com Engels (Marx possui algumas obras em parceria com ele). No Brasil você pode procurar pela edição publicada pela Editora Martin Claret, na coleção A obra-prima de cada autor.

FONTE:<https://d38h3sy5jr28pf.cloudfront.net/capas-livros/9788572322898-karl-marx-a-ideologia-alema-feuerbach-a-contraposicao-entre-as-cosmovisoes-materialista-e-idealista-296407947.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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Os estudos sobre a ordem social, portanto, deveriam iniciar pela economia — que condiciona todo o desenvolvimento social. A vida material do homem, e a produção desta vida material, seriam o ponto de partida para as análises sociológicas. Marx não era sociólogo de formação, no entanto, estabelecendo este pressuposto ele desenvolve uma teoria sociológica que o coloca na posição de clássico nesta ciência — ao lado de Durkheim e Weber.

A historicidade das instituições, portanto, seria perceptível a partir do estudo do modo de produção de um grupo, já que são mutáveis e impactam nas relações entre as pessoas — iniciando pelas econômicas, e seguindo para as demais (sociais, culturais etc.). Dessa mesma maneira, as representações e ideários compartilhados sofrem esta influência, sendo localizados historicamente.

Para ele, tanto os processos ligados à produção são transitórios, como as ideias, concepções, gostos, crenças, categorias do conhecimento e ideologias, os quais, gerados socialmente, dependem do modo como os homens se organizam para produzir. Portanto, o pensamento e a consciência são, em última instância, decorrência da relação homem/natureza, isto é, das relações materiais (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 29).

A famosa frase relativa a isso é que os seres humanos precisam estar em condições de viver para poder fazer história. Para viver é preciso ter suas necessidades satisfeitas: bebida, alimento, abrigo, vestimenta etc. O primeiro fato histórico, portanto, a primeira causa, é justamente a produção destes meios — a vida material. É a partir deste argumento que ele desenvolve o materialismo histórico.

Na medida em que precisa satisfazer sua condição material, o ser humano modifica a natureza, criando objetos e artefatos — além do que, a própria forma de satisfazer as suas necessidades naturais também difere entre os grupos. A fome pode ser resolvida de diferentes formas, com diferentes refeições. A vestimenta também, modifica-se a cada grupo. O resultado das maneiras de satisfação é passado para as gerações seguintes, como cultura. Torna-se um processo de produção e reprodução da vida material.

“O processo de produção e reprodução da vida através do trabalho é, para Marx, a atividade humana básica, a partir da qual se constitui a ‘história dos homens’, é para ele que se volta o materialismo histórico, método de análise da vida econômica, social, política, intelectual” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 29).

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IMPORTANTE

Vale ressaltar que não é sobre qualquer modo de produção que Marx fala, ou seja, pela produção em si. Ele destaca a produção dos indivíduos em sociedade, este é seu foco de análise. Para entender a realidade é preciso, segundo ele, observar a estrutura social — que dependerá do estágio de desenvolvimento de suas forças produtivas — e as relações sociais de produção correspondentes.

Notou que as forças produtivas aparecem com frequência no estudo sobre o materialismo histórico? Quando Marx fala de forças produtivas ele se refere às formas pelas quais os indivíduos obtiveram os meios para satisfazer suas necessidades, “em que grau desenvolveram sua tecnologia, processos e modos de cooperação, a divisão técnica do trabalho, habilidades e conhecimentos utilizados na produção, a qualidade dos instrumentos e as matérias-primas de que dispõem” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 30). Trata-se do grau de domínio do grupo com relação à natureza.

Outro termo que aparece com frequência é o de relações sociais de produção, tratando das formas de distribuição dos meios de produção e do produto, e também do tipo de divisão social do trabalho de uma sociedade em um dado período histórico.

Ele expressa o modo como os homens se organizam entre si para produzir; que formas existem naquela sociedade de apropriação de ferramentas, tecnologia, terra, fontes de matéria-prima e de energia, e eventualmente de trabalhadores; quem toma decisões que afetam a produção; como a massa do que é produzido é distribuída, qual a proporção que se destina a cada grupo, e as diversas maneiras pelas quais os membros da sociedade produzem e repartem o produto (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 30).

O modo de produção de uma sociedade está ligado à forma necessária de cooperação entre os indivíduos para que este funcione. A própria cooperação torna-se uma força produtiva, e ela mesma pode ser utilizada em função de interesses particulares. Sendo assim, a distribuição mencionada anteriormente pode referir-se ao grupo social, ao produto e aos meios para produzi-lo — distinguindo o acesso ao próprio processo produtivo.

Já a divisão social do trabalho aparece, na leitura de Marx, em separações como trabalho intelectual e manual, trabalho industrial de trabalho agrícola, subdivisão em grupos que dominam algumas tarefas, como controle financeiro, ocupações religiosas, políticas, entre outros. Portanto, há posições desiguais que contribuem para a divisão em classes da sociedade, desenhando a estrutura social.

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Assim sendo, as noções de forças produtivas e de relações sociais de produção mostram que tais relações se interligam de modo que as mudanças em uma provocam alterações na outra. Em resumo, o conceito de forças produtivas refere-se aos instrumentos e habilidades que possibilitam o controle das condições naturais para a produção, e seu desenvolvimento é em geral cumulativo. O conceito de relações sociais de produção trata das diferentes formas de organização da produção e distribuição, de posse e tipos de propriedade dos meios de produção, bem como e que se constituem no substrato para a estruturação das desigualdades expressas na forma de classes sociais. O primeiro trata das relações homem/natureza e o segundo das relações entre os homens no processo produtivo (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 30).

Essa é a base, portanto, de análise social de Marx. A partir da necessidade de produzir sua própria existência, os seres humanos adentram relações independentes de sua vontade, mas necessárias para que possam participar do sistema produtivo — ou seja, desenvolvem relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. E é com base nestas relações que se desenvolve a estrutura econômica da sociedade, acima da qual ergue-se o que ele chama de superestrutura, que iremos estudar mais à frente na unidade, com detalhes.

DICAS

Um resumo das análises que vimos até aqui, e que discutem a chamada teoria sociológica de Marx, pode ser encontrado na obra Contribuição à Crítica da Economia Política, Editora Expressão Popular. Também há versões disponíveis em domínio público na internet.

FONTE:<https://www.expressaopopular.com.br/loja/wp-content/uploads/2016/09/1475031411_.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

A dimensão econômica é, para Marx, a base da sociedade, que ele chama de infraestrutura. É sobre esta base que está construída a estrutura ideológica da sociedade, o que ele chama de superestrutura. A infraestrutura condiciona a superestrutura, e por isso é preciso partir da análise de sua base material para compreender como esta condiciona a via ideológica e política da sociedade (SELL, 2002).

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Se formos traduzir em uma imagem o princípio de análise da teoria sociológica de Marx, vamos ver que ela é bem diferente do que vimos na unidade anterior com a imagem sobre a teoria sociológica de Durkheim, já que a análise determinante do sociólogo é no aspecto econômico, ou seja, o indivíduo é determinado pela classe na qual está posicionado na estrutura das forças de produção. Veja:

FIGURA 5 – REPRESENTAÇÃO DA RELAÇÃO INDIVÍDUO X SOCIEDADE PARA MARX

ECONOMIA(MODO DE PRODUÇÃO)

SOCIEDADE(CLASSES)

FONTE: A autora (2018)

Temos aí o domínio da dimensão econômica, da forma de produção desenvolvida pelo grupo social sobre as classes, das quais fazem parte os indivíduos. Portanto, temos uma relação de dominação entre o modo de produção e as interpretações individuais, e é sobre isso que versa a próxima seção. Vamos entender como se dá esta relação. Prossigamos!

5 ANÁLISE DO MODO DE PRODUÇÃOPara explicar a dimensão econômica da sociedade, ou infraestrutura,

como ele chama, Marx analisou as sociedades do ponto de vista da evolução. Para este autor, assim como vimos em Durkheim, também existe um percurso evolutivo a ser seguido pelos grupos sociais.

Se em Durkheim as funções do organismo social evoluem para uma solidariedade orgânica, para Marx a observação do sociólogo deve ocorrer a partir da evolução do modo de produção. Para tanto, ele desenvolveu um esquema de evolução da sociedade ocidental, “mostrando como as modificações das forças produtivas alteravam as relações de produção (classes sociais) e também produzia novas classes dominantes e novas formas de enxergar a realidade (ideologias)” (SELL, 2002, p. 172).

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Estas etapas seriam:

• Modo de produção primitivo.• Modo de produção escravista.• Modo de produção asiático.• Modo de produção feudal.• Modo de produção capitalista.• Modo de produção comunista.

Sell (2002) apresenta os detalhes de cada uma destas etapas, e iremos nos basear em seus escritos para estudá-las.

5.1 MODO DE PRODUÇÃO PRIMITIVO

As sociedades primitivas não possuem Estado, e a chefia dos grupos é realizada pelos chefes de família, ou seja, a organização dos grupos é comunitária — a partir da distribuição do poder destes chefes. A consciência que prevalece é a religião, e os grupos unem-se para enfrentar os desafios da natureza. Neste sentido, o modo de produção é baseado na coletividade de posse dos meios de produção, já que as áreas de caça e os produtos são propriedades comuns. Como exemplo, temos as tribos indígenas existentes no início da colonização no Brasil. Segue quadro sistematizando este modo de produção (Figura 6):

FIGURA 6 – MODO DE PRODUÇÃO PRIMITIVO

1. Modo de produção primitivo

Ideologia Religião primitiva

Estado Organização comunitária

Relações de Produção Propriedade coletiva Não há classes sociais

Forças Produtivas Cultivo da terra/Caça/Colheita

Fonte: Sell (2002, p. 173)

5.2 MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA

Superada a etapa de caça e coleta, instaurada a agricultura, a próxima etapa é baseada na produção agrícola, ou seja, possui excedentes econômicos e traz consigo o modo de produção escravista. Forma típica de grandes impérios como Grécia e Roma, basicamente os escravos são prisioneiros de guerra. A divisão da sociedade ocorre gerando duas classes: senhores e escravos; o poder político surge (Estados Imperiais), e a religião assume papel ideológico com a criação de deuses para que não se questione a ordem social baseada na dominação e exploração de classe.

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FIGURA 7 – MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA

2. Modo de produção escravista

Ideologia Religião do Estado

Estado Impérios centralizados (Ex: Roma)

Relações de Produção Senhores x Escravos

Forças Produtivas Cultivo da terra com base na escravidão

3. Modo de produção asiático (Oriente)

Ideologia Religião do Estado

Estado Impérios centralizados (Ex: China)

Relações de Produção Estados x Escravos

Forças Produtivas Propriedade estatal e escravidão

Fonte: Sell (2002, p. 174)

5.3 MODO DE PRODUÇÃO ASIÁTICO

O mundo oriental baseia-se, principalmente, neste modo de produção, no qual as terras são posse do Estado, e a divisão de classes se dá entre governantes e escravos. O Estado é fortemente centralizado e controla a ordem social, a exemplo dos grandes impérios como China, Egito e Babilônia. Os governantes possuem este poder porque são considerados seres divinos, e a religião é muito forte neste modo de produção.

FIGURA 8 – MODO DE PRODUÇÃO ASIÁTICO

Fonte: Sell (2002, p. 174)

5.4 MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL

O modo de produção feudal é originário da Europa, até o século XV — em função da divisão em feudos do continente, gerada pela queda do Império Romano. Estas grandes extensões de terra, ou feudos, eram cultivadas pelos servos — que eram livres, mas passavam a vida trabalhando para os senhores feudais, mantendo seu sustento dessa forma. A administração política do feudo é de cada dono, o Estado está enfraquecido, e a unidade feudal é dada pelo catolicismo — que apresenta a ordem social como vontade divina: nobreza, clero e povo. Novamente, temos a legitimidade da dominação de classe justificada pela religião.

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FIGURA 9 – MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL

4. Modo de produção feudal

Ideologia Catolicismo

Estado Poder descentralizado (Feudos)

Relações de Produção Senhores x Servos

Forças Produtivas Cultivo da terra/ arrendamento

Fonte: Sell (2002, p. 174)

5.5 MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

A Revolução Industrial modifica as formas produtivas, fazendo surgir duas grandes classes: burguesia e proletariado. A burguesia — donos dos meios de produção - exerce o poder por meio do Estado Parlamentar e impõe sua visão de mundo por meio das artes, ciência, filosofia e religião.

FIGURA 10 – MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

5. Modo de produção capitalista

Ideologia Cultura burguesa (individualismo)

Estado Estado Parlamentar

Relações de Produção Burguesia x proletariado

Forças Produtivas Indústria

Fonte: Sell (2002, p. 175)

5.6 MODO DE PRODUÇÃO COMUNISTA

É neste modo de produção que reside boa parte do esforço de Marx em compreender a ordem social, já que para ele o capitalismo enfrentaria uma grande crise e seria substituído pelo modo de produção comunista (iremos estudar este processo mais adiante, em detalhes). Neste modo de produção não haveria classes nem Estado, e a exploração e propriedade privada seriam abolidos. Fechando este pensamento, Sell nos apresenta as etapas da vida social que podem ser extraídas de Marx:

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FIGURA 11 – ETAPAS DA HISTÓRIA PARA MARX

TESE ANTÍTESE SÍNTESE

Sociedade sem classes Sociedades de classes Sociedade sem classes

- Modo de produção primitivo

- Modo de produção escravista- Modo de produção asiático- Modo de produção feudal- Modo de produção capitalista

Comunismo

Fonte: Sell (2002, p. 176)

Esta seria a lógica de evolução identificada por Marx, embora ela não seja entendida por ele como um esquema rígido que precisa ser seguido por todas as sociedades. Esta análise foi realizada por ele muito mais na tentativa de entender o surgimento do capitalismo, pois foi sobre este modelo econômico que ele se debruçou em estudos.

Verificando os modos de produção desta perspectiva, conseguimos compreender as diferenças entre eles e como o modo capitalista está posicionado, sabendo quais são suas características próprias.

5.7 MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

Marx desenvolveu suas análises sobre o capitalismo em uma grande obra, um clássico das teorias econômicas: O Capital. São quatro volumes, os três últimos editados por Engels a partir dos manuscritos de Marx:

• Livro I – O processo de produção do Capital (1867).• Livro II – O processo de circulação do Capital (1885).• Livro III – O processo global de produção capitalista (1894).• Livro IV – Teorias da mais-valia (1905–1910).

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DICAS

No Brasil há uma versão da obra O Capital publicada recentemente pela Editora Boitempo, o primeiro livro publicado em 2013 e os demais volumes em anos seguintes.

FONTE:<https://www.boitempoeditorial.com.br/resizer/view/900/900/true/false/119.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

A base de análise do sistema capitalista é a mercadoria, que pode ser definida tanto pelos produtos quanto pela própria força de trabalho — e possui valor de uso e valor de troca. Enquanto valor de uso, satisfaz as necessidades humanas, servindo como meio de subsistência ou solucionando as fantasias e desejos humanos. Esse valor de uso se efetiva no consumo. Enquanto valor de troca, há produtos que se destinam para uso próprio e não se tornam mercadorias porque não se destinam para trocas. Sobre o valor de troca, explicando:

Para calcular a valor de troca de uma mercadoria, mede-se a quantidade da “substância” que ela contém, o trabalho, embora para isso não se leve em conta as diferenças entre habilidades e capacidades de seus produtores individualmente e, sim, a força social média, o tempo de trabalho socialmente necessário, isto é, “todo trabalho executado com grau médio de habilidade e intensidade em condições normais relativas ao meio social dado”. Ou seja, o cálculo do valor de troca é feito segundo o tempo de trabalho gasto na sua produção, em uma sociedade e em um período dados. Distintas mercadorias podem ter valores diferentes e, para que seus possíveis consumidores realizem entre si os intercâmbios que pretendem, é preciso haver um meio de quantificar tais valores, que variam segundo o lugar e a época, a disponibilidade de materiais, as técnicas para obtê-las e transformá-las etc. No momento da permuta, faz-se a abstração da forma concreta assumida pela mercadoria (um prato feito ou um ramo de flores) e do seu valor de uso, e então “só lhe resta uma qualidade: a de ser produto do trabalho [...] uma inversão de força humana de trabalho, sem referência à forma particular em que foi invertida” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 43).

Há que se considerar, também, que neste sistema ninguém produz tudo o que precisa, ou seja, a diversificação da produção gera divisão do trabalho.

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Os valores de uso são diferenciados, pois as mercadorias estão relacionadas ao investimento de trabalho realizado para sua produção. Estes valores podem ser materializados em forma de moeda, e são trocados e negociados no mercado.

Portanto, o capitalismo pressupõe a existência do mercado, para negociação do capital, no qual também é possível negociar a força de trabalho, que é livre e também pode ser negociada. Mas é claro que há regras para o estabelecimento de seu valor:

E como se determina o valor da força de trabalho no mercado? Através do “valor dos meios de subsistência requeridos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho”, ou seja, tudo o que é necessário para que o trabalhador se reproduza de acordo com suas habilidades, capacitação e nível de vida, o qual varia historicamente entre épocas, regiões e ocupações. Isso também significa que o produtor reproduz a si mesmo enquanto categoria “trabalhador” e à sua família para que, como diz Marx, “essa singular raça de possuidores dessa mercadoria se perpetue no mercado”. O capital - para quem ela é útil e que compra essa mercadoria - não é simplesmente uma soma de meios de produção. Esses, sim, é que foram transformados em capital ao serem apropriados pela burguesia. O capital, assim como o trabalho assalariado, é uma relação social de produção, é uma forma histórica de distribuição das condições de produção, resultante de um processo de expropriação e concentração da propriedade (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 44).

A ideologia que sustenta o sistema capitalista é a ideologia da igualdade, pela qual todos são iguais perante a lei, o mercado, o Estado, como se o salário recebido pela sua força de trabalho fosse equivalente — ou seja, uma troca justa. Na verdade, há produção de lucros excedentes que permitem aos detentores dos modos de produção um acúmulo de capital. Este excedente é a chamada mais-valia.

FIGURA 12 – CHARGE SATIRIZANDO A DESIGUALDADE ORIGINADA PELO CAPITALISMO

FONTE: <https://www.cebi.org.br/noticias/hora-de-aceitar-que-o-capitalismo-nao-deu-certo/>. Acesso em: 26 nov. 2018.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE KARL MARX: TEORIA E MÉTODO

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Iremos estudar a mais-valia no próximo tópico, junto a outros conceitos fundamentais para que você compreenda o pensamento de Marx. Eles são a base para o entendimento de suas reflexões sobre o sistema capitalista, e também para que possamos entender o materialismo histórico-dialético.

Vamos encerrar com uma sugestão de vídeo e seguimos para o próximo tópico, onde estudaremos com mais afinco os conceitos de base das teorias marxistas.

DICAS

Para finalizar, veja o vídeo Clássicos da Sociologia: Karl Marx, disponível na plataforma Youtube — uma aula produzida pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo — UNIVESP, sobre Marx. Você poderá acessá-lo em: https://www.youtube.com/watch?v=2DmlHFtTplA.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você aprendeu que:

• Marx desenvolveu o materialismo dialético, entendido como sua teoria filosófica, e o materialismo histórico, entendido como um método de estudo para a vida social. Ambos influenciaram o desenvolvimento do materialismo histórico-dialético.

• Marx é influenciado pelo idealismo dialético de Hegel, para quem a dinâmica principal dos seres é tese, antítese, síntese.

• Se para Hegel o movimento parte da ideia, do pensamento, para então desenvolver a matéria e gerar história, para Marx esta ordem é invertida. Parte-se do mundo material para o pensamento e a ideia, e é esse mundo material que faz movimentar a história.

• Outra influência veio do pensamento de Feuerbach, que refletia sobre a alienação no quesito religioso, desenvolvendo que o próprio ser humano projetava a religião como forma de se alienar do mundo acerca do qual ele mesmo era responsável.

• Marx modificou este pensamento afirmando que a alienação existia, mas ela ocorria em função da alienação material, ocorrida pelo sistema capitalista e a partir do trabalho humano.

• Para Marx, a história é fruto do movimento gerado a partir do trabalho humano, e não do pensamento, das ideias, ou de algum espírito absoluto. A interação entre os seres humanos, buscando satisfazer suas necessidades, é que desencadearia o processo histórico.

• Quando Marx fala de forças produtivas, ele se refere às formas pelas quais os indivíduos obtiveram os meios para satisfazer suas necessidades.

• As relações sociais de produção tratam das formas de distribuição dos meios de produção e do produto, e também do tipo de divisão social do trabalho de uma sociedade em um dado período histórico.

• Se em Durkheim as funções do organismo social evoluem para uma solidariedade orgânica, para Marx a observação do sociólogo deve ocorrer a partir da evolução do modo de produção.

• A base de análise do sistema capitalista é a mercadoria, que pode ser definida tanto pelos produtos quanto pela própria força de trabalho — e possui valor de uso e valor de troca.

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AUTOATIVIDADE

1 A teoria sociológica de Marx é marcada pela observação do modo de produção como determinante para a organização social. Sobre as principais influências sofridas por este autor para o desenvolvimento de seu pensamento sociológico, analise as seguintes sentenças:

I- Para Hegel, o movimento parte da ideia, do pensamento, para então desenvolver a matéria e gerar história, para Marx esta ordem é invertida. II- Para Feuerbach, a alienação do ser humano estava na religião, e para Marx estava na alienação material originada pelo sistema capitalista.III- Marx desenvolve o materialismo dialético, onde a realidade existe a partir do mundo material, e não a partir do pensamento, pois este também é determinado pelas condições materiais.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a afirmativa III está correta.b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.d) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.

2 A história é fruto do movimento gerado a partir do trabalho humano, e não do pensamento, das ideias, ou de algum espírito absoluto. A interação entre os seres humanos, buscando satisfazer suas necessidades, é que desencadearia o processo histórico. Estamos falando da teoria sobre:

a) ( ) Materialismo Dialético.b) ( ) Materialismo Histórico.c) ( ) Sistema Capitalista.d) ( ) Luta de Classes.

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TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO

HISTÓRICO-DIALÉTICO PARA A

COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOPassamos no primeiro tópico pelas bases de construção do materialismo

histórico-dialético, e o quanto ele é uma forma fundamental de compreensão dos sistemas econômicos, especialmente do sistema capitalista.

Neste tópico, o direcionamento se dá para o estudo dos conceitos fundamentais da obra de Marx, neste contexto do materialismo histórico-dialético. Ressalto a importância de que seus estudos sigam além do material do caderno, já que a obra de Marx é vasta e são muitos conceitos a serem apreendidos e aprofundados.

O recorte se dará nos conceitos de: infraestrutura e superestrutura, mercadoria e dinheiro, exploração e mais-valia e alienação. É fundamental compreender este conjunto teórico para utilizar da maneira correta os fundamentos do materialismo histórico-dialético como modo de compreensão da sociedade. Vamos começar? Boa leitura!

2 INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURASendo simplistas, mas de uma maneira muito didática para que você

registre a diferença, é possível afirmar em síntese que a infraestrutura é a dimensão econômica, enquanto a superestrutura é composta pela vida política e cultural da sociedade, ou seja, corresponde à dimensão ideológica.

Para explicar a infraestrutura, vamos compreender a relação do ser humano com o trabalho. O trabalho é o elemento central da economia, já que para sobreviver os seres humanos produzem bens para satisfazer suas necessidades. Sendo assim, por este meio a natureza é transformada e a garantia da reprodução da existência humana se perpetua (SELL, 2002).

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Neste processo de trabalho é possível identificar duas dimensões fundamentais: a relação do homem com a natureza, e a relação do homem com outras pessoas.

A relação do ser humano com a natureza ocorre pela mediação de instrumentos de trabalho e matéria-prima, que são meios de apoio no processo de produção. Este conjunto é chamado de forças produtivas, como vimos no tópico anterior. São estas forças produtivas, compostas por tudo o que é usado no processo de produção, que determinam muitas escolhas do indivíduo — pois já estão postas na medida em que ele se insere na sociedade.

Para Marx, o trabalho e a produção não são fenômenos isolados, eles ocorrem a partir da relação entre os indivíduos, ou seja, é um fenômeno social. Desenvolvem-se, portanto, relações de produção — materializadas na divisão do trabalho. Estas relações ocorrem a partir das forças produtivas, já que estas irão determinar o posicionamento do indivíduo na classe e em seus grupos (SELL, 2002).

IMPORTANTE

A infraestrutura, portanto, é composta pelas forças produtivas e pelas relações de produção — este conjunto é a base econômica de uma sociedade. E como toda sociedade organiza seu processo de trabalho, é possível observar estas dimensões nos diferentes grupos. Assim, o sociólogo pode compreender as relações entre os indivíduos a partir da análise das forças produtivas, pois elas irão determinar o tipo de relação existente entre as pessoas. As relações sociais são condicionadas pelas forças produtivas.

Essa base (forças produtivas + relações de produção) formada pela infraestrutura é o fundamento para o desenvolvimento das instituições políticas e sociais, na medida em que são produzidos também itens que não têm forma material: as ideologias políticas, as concepções religiosas, os códigos morais, as representações coletivas, e é este conjunto que compõe a superestrutura.

São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais que o Ser consciente, e o Ser dos homens é o seu processo da vida real... Assim, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, tal como as formas de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente toda aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão, antes, os homens que, desenvolvendo

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a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos deste pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência (MARX, ENGELS; 1845, s.p.).

A forma das instituições, os sistemas jurídicos, as escolhas políticas, são determinados pela organização do processo produtivo, para Marx. Todos fazem parte do conjunto da superestrutura, estes itens não materiais ou elementos abstratos, que compõem a sociedade.

As classes geradas a partir da posse dos meios de produção dividem a sociedade em grupos — frutos das relações estabelecidas a partir do modo de produção. A propriedade privada origina os donos, os proprietários, que necessitam consolidar seu domínio utilizando a força — gerando assim o Estado.

O Estado é, portanto, instrumento para garantia de dominação econômica de uma classe sobre as outras, para Marx. As leis e as determinações estatais seguem o interesse das classes dos proprietários (SELL, 2002). Quando estas leis falham, o Estado ainda possui a possibilidade do uso estatal da força, especialmente das forças armadas — o que garante a manutenção dos privilégios. Esta é a concepção de Estado estabelecida por Marx.

Além do Estado, na superestrutura também há a ideologia. Para Marx, as ideias disseminadas na sociedade são as ideias de uma classe dominante, ou seja, ao assumir o domínio, uma classe privilegiada impõe também sua visão de mundo e seus valores. As demais classes assumem esta visão como real e não percebem sua exploração, tornando-se alienadas. Definindo, para Marx, “a ideologia, portanto, é um conjunto de falsas representações da realidade, que servem para legitimar e consolidar o poder das classes dominantes” (SELL, 2002, p. 171).

IMPORTANTE

A superestrutura é composta pelo Estado e pela Ideologia, instrumentos de dominação das classes privilegiadas. A superestrutura, portanto, é condicionada pela infraestrutura, já que é nesta segunda que se forma a classe que dominará os meios de produção e, por consequência, deterá o poder político e ideológico da sociedade.

Para fechar, cabe destacar que há contradições na interpretação destes dois conceitos segundo Marx, conforme apresenta a citação:

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De toda maneira, a complexidade da relação estrutura e superestrutura continuou levando a interpretações contraditórias do marxismo. As chamadas leituras economicistas do pensamento de Marx enfatizam o determinismo da vida econômica sobre as formas superestruturais, excluindo qualquer possibilidade de que as ideologias, as ciências, a arte, as crenças religiosas, as formas de consciência coletiva, tanto de classes como de outros modos de associação, sistemas jurídicos ou de governo tenham exercido sobre a história de um povo um papel, se não determinante, pelo menos com peso semelhante ao da estrutura. Tais perspectivas foram com frequência utilizadas com a finalidade de impor concepções políticas autoritárias, mesmo que anticapitalistas, algumas das quais se propuseram a promover uma “revolução” no nível superestrutural de modo a adequá-lo às chamadas “necessidades da produção”. Com isso, tradições culturais, valores, crenças e costumes sofreram intervenções por parte de interesses políticos organizados. Em muitos casos, manifestações artísticas como a poesia, a escultura, a pintura e o teatro servem até hoje de testemunho das exigências que lhes foram colocadas por vanguardas partidárias (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 35).

Assim como no tópico anterior, ao finalizar o estudo de um conceito do autor clássico, vamos nos remeter ao seu próprio escrito. Lembre-se: é fundamental interpretar a teoria sociológica direto da fonte, ou seja, direto do próprio autor.

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais.O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral.Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali.De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social.Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.

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E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência.Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a sua realização.A grandes traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno burguês. As relações burguesas de produção são a última forma antagônica do processo social de produção, antagônica, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém das condições sociais de vida dos indivíduos.As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo.Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana (MARX, 1859, p. 03).

Entendidos os conceitos de infraestrutura e superestrutura, bem como reforçados os conceitos de forças produtivas e relações sociais de produção, vamos seguir por duas noções não menos importantes na teoria e obra de Marx: Mercadoria e Dinheiro.

3 MERCADORIA, VALOR E DINHEIRO Dois conceitos essenciais para a interpretação do capitalismo por Marx foram

os conceitos de mercadoria e de dinheiro. Este primeiro, para ele, é a base da economia capitalista, ou seja, o sistema só existe porque temos mercado, temos mercadoria.

A mercadoria é produzida no sistema capitalista e pode ser a base inicial para explicação deste modo de produção, já que suas características ajudam a compreender o sistema como um todo e seu funcionamento (SELL, 2002).

Para isso segue-se a lógica que vimos até aqui, do valor de uso e valor de troca, enquadradas nas teorias de fundo dialético de Marx sobre a tese, antítese e síntese. O valor de uso seria a tese, o valor de troca a antítese, e o valor de uso e o valor de troca juntos, a síntese.

Vamos simplificar a partir da explicação de Sell (2002): “O valor de uso de uma mercadoria é o seu aspecto material, ou seja, sua capacidade para satisfazer uma necessidade humana. O valor de uso, portanto, tem a ver com o ‘conteúdo’ da mercadoria” (p. 179).

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Além do valor de uso, cada mercadoria possui seu valor de troca. “O valor de troca é a capacidade que cada mercadoria possui para ser trocada por outra mercadoria” (SELL, 2002, p. 179).

É nesta troca que começa a aparecer o problema: como é possível medir o valor de uma mercadoria, ou seja, como saberei quanto da mercadoria A é equivalente ao valor da mercadoria B? É neste ponto que entra na análise de Marx a categoria trabalho. Veja que ele é central em todas as análises conceituais do autor.

Para explicar esta relação de valores, Marx utiliza a teoria do valor-trabalho do autor David Ricardo — e afirma que a grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção do valor de uso. A quantidade de trabalho também pode ser compreendida pelo tempo de trabalho.

Com isto é possível inferir que o valor de uma mercadoria é definido a partir do trabalho que é investido nela, e explica: “Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor de uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais, existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho” (MARX, 1994 apud SELL, 2002, p. 170).

Para que a troca de mercadorias seja realizada é necessário que exista uma outra mercadoria, que medeia esta situação: o dinheiro. E em sua obra O Capital, Marx se lança na busca de entender a origem do dinheiro, a gênese desta mediação que explica o sistema capitalista.

Segundo Marx, é possível apresentar a origem do valor de três formas, conforme explicação de Sell (2002, p. 180):

a) Forma simples: uma mercadoria (x) pode ser trocada por outra mercadoria (y).

b) Forma total: uma mercadoria (x) pode ser trocada por várias outras mercadorias (a, b, c, d, e, f etc.).

c) Forma dinheiro: todas as mercadorias (a, b, c, d, e, f etc.) podem ser trocadas por uma única mercadoria que serve de “equivalente geral” para todas as mercadorias. É neste momento que surge o dinheiro. A ação social de todas as outras mercadorias, elege, portanto, uma mercadoria determinada para nela representarem seus valores. O dinheiro, portanto, serve a dois propósitos: servir de meio de troca e de forma de valor (ou equivalente geral das mercadorias).

A ênfase que Marx procura dar é sobre a relação entre dinheiro e trabalho. Ele demonstra que dinheiro é mercadoria, e mercadoria é trabalho. Quando o dinheiro perde sua relação direta com o trabalho, ocorre o que Marx chama de “fetichismo da mercadoria”: “O capital desvinculado do trabalho aliena o ser humano da produção de sua existência social” (SELL, 2002, p. 180).

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IMPORTANTE

Você certamente já ouviu falar nesta expressão de Marx, fetichismo da mercadoria. Ela aparece muito nos estudos atuais sobre consumo, sobre mercado. É importante lembrar que este processo aliena o ser humano: o torna objeto nas relações sociais, dependente das mercadorias, e a mercadoria se torna sujeito. Nesta situação, não é mais a produção que está a serviço do ser humano, e sim o ser humano encontra-se dominado pela produção — escravo da mercadoria. De modo geral, portanto, o ser humano aliena-se de sua relação ativa na transformação da natureza em mercadoria.

Nesta condição, as relações humanas não são mais observadas como tal, são apenas relações baseadas na economia. É como se o olhar das pessoas estivesse totalmente dominado pela produção econômica, pelas cifras mercadológicas.

FIGURA 13 – CHARGE SATIRIZANDO O FETICHISMO DA MERCADORIA

FONTE: <https://marxrevisitado.blogspot.com/2012/11/fetichismo-frases-imagem-e-som.html>. Acesso em: 26 nov. 2018.

Para finalizar, vamos a um texto esclarecedor sobre isto, que apresenta também o conceito de alienação, que estudaremos ainda neste tópico.

O conceito de “fetichismo da mercadoria” foi cunhado por Karl Marx (1818-1883) na obra-prima intitulada O Capital [1867], estando diretamente ligado a outro conceito, o de “alienação”.

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Palavra alienação vem do Latim alienus, que significa “de fora”, “pertencente a outro”. Karl Max, em sua obra Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, utilizou a palavra “alienação” para designar o estranhamento do trabalhador com o produto do seu trabalho, ou seja, o trabalhador não mais dominando todas as etapas de fabricação e não possuindo os meios de produção para tal, acaba não se reconhecendo no produto produzido, passando o produto a não ser visto como ligado ao seu trabalho. É como se o produto tivesse surgido independente do homem/produtor, como uma espécie de feitiço, daí o termo utilizado por Max: fetichismo da mercadoria.Para Marx (1994, p. 81):“A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho social total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho”.Nesse sentido, o produto perde a relação com o produtor e parece ganhar vida própria. Passa a ser compreendido como algo “de fora” do trabalhador, ficando esse “alienado” em relação ao produto. Assim, o “Fetichismo da Mercadoria” caracteriza-se pelo fato de as mercadorias, dentro do sistema capitalista, ocultarem as relações sociais de exploração do trabalho.Segundo Marx (1994, p. 81):“Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos que recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo isto de fetichismo […].”O conceito de fetichismo influenciou diversos estudos posteriores, tais como o desenvolvimento da teoria da coisificação, de Georg Lukács (BODART, 2016, s.p.).

Para complementar seus conhecimentos sobre estes conceitos, vamos a uma dica de leitura e, posteriormente, seguimos para a próxima seção, onde o estudo estará concentrado nos conceitos de exploração e mais-valia.

DICAS

Para conhecer melhor o conceito de fetichismo da mercadoria, alienação, e a relação de ambos com o trabalho, procure realizar a leitura do artigo disponível no link: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n17/0103-3352-rbcpol-17-00007.pdf. A referência é: LIMA, Rômulo André. Trabalho, alienação e fetichismo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n.17, p. 7-42, maio – ago. 2015.

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4 EXPLORAÇÃO, MAIS-VALIA E LUCRO Conforme vimos, a base do sistema capitalista para Marx é formada

por dois itens, a mercadoria e o dinheiro. Ambos passam por um processo de circulação, que ele alinha como sendo: a mercadoria é trocada por dinheiro, e o dinheiro é trocado por mercadoria. Este fluxo ele chama de processo de circulação simples.

Este processo de circulação tem início na tentativa de satisfação de uma necessidade, que parte de um valor de uso que é vendido. Com o dinheiro deste valor de uso adquire-se outro valor de uso, ou seja, satisfaz-se uma necessidade (SELL, 2002). O dinheiro, portanto, é um meio de troca neste contexto.

Esta é a lógica da circulação simples, diferente da circulação capitalista, que inicia no dinheiro, que é trocado por uma mercadoria, para que gere mais dinheiro. O objetivo da circulação capitalista, portanto, é o lucro.

Sell (2002) estabelece as seguintes fórmulas de comparação (M= mercadoria, D= dinheiro):

M -------------------- D --------------------- M circulação simplesD -------------------- M --------------------- + D circulação capitalista

A particularidade do capitalismo, portanto, é a acumulação e geração de lucro. O primeiro dinheiro, o capital, torna-se mais dinheiro — e o objetivo final não é mais a satisfação das necessidades, e sim o acúmulo. A mercadoria (valor de uso) entra neste ciclo apenas como uma mediação para a obtenção de lucro — para valorizar o capital inicial.

Mas então fica a pergunta: se este dinheiro entra e, no processo, torna-se mais capital — como isto acontece? De onde surge o lucro?

Sell (2002) nos explica, a partir da teoria de Marx, que o lucro se origina no processo de produção: “No primeiro ato da circulação, que é a compra de uma mercadoria (D – M), o capitalista interrompe a troca para transformar a mercadoria pelo trabalho. Como o trabalho cria valor, no segundo ato da troca (M – D), a mercadoria pode ser vendida por um valor maior” (SELL, 2002, p. 182).

Neste ponto da teoria chegamos ao tão polêmico, e conhecido, conceito da obra de Karl Marx, e tenho certeza de que você — com seu interesse pela sociologia — já ouviu falar sobre ele: a mais-valia.

Em resumo: “Pelo processo de transformação da mercadoria, o capitalista contrata um operário e lhe oferece um salário por uma determinada jornada de trabalho. De onde vem o lucro? Ora, vem do tempo de trabalho não pago ao trabalhador, que é chamado por Marx de mais-valia.” (SELL, 2002, p. 182).

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IMPORTANTE

A mais-valia é, nas teorias de Marx, o que origina o lucro — é o tempo de trabalho não pago ao trabalhador dentro de uma determinada jornada de trabalho.

Ainda nos apropriando de Sell (2002), vejamos seu exemplo para ilustrar a mais-valia:

FIGURA 14 – EXEMPLO DO PROCESSO DE OBTENÇÃO DA MAIS-VALIA

FONTE: Sell (2002, p. 183)

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A impressão inicial passada ao trabalhador é de que a troca da força de trabalho por um valor em salário é equivalente, no entanto, o valor produzido no tempo de trabalho é superior ao qual ele vende suas capacidades.

Marx distingue o tempo de trabalho necessário, durante o qual se dá a reprodução do trabalhador e no qual gera o equivalente a seu salário, do tempo de trabalho excedente, período em que a atividade produtiva não cria valor para o trabalhador mas para o proprietário do capital. Em função das relações sociais de produção capitalistas, o valor que é produzido durante o tempo de trabalho excedente ou não pago é apropriado pela burguesia. Parte desse valor extraído gratuitamente durante o processo de produção passa a integrar o próprio capital, possibilitando a acumulação crescente. O valor que ultrapassa o dos fatores consumidos no processo produtivo (meios de produção e força de trabalho), e que se acrescenta ao capital empregado inicialmente na produção, é a mais-valia (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 57).

Em suma, aparece aqui outro conceito para estudarmos nesta seção: a exploração. Afinal, é a partir da exploração do trabalhador, da extração da mais-valia que o sistema capitalista se mantém nas suas relações de acumulação. Boa parte das polêmicas que envolvem a obra O Capital origina-se destas análises, nas quais ele explica e demonstra como a exploração do trabalhador contribui para o acúmulo de lucro dos donos dos meios de produção.

Marx ainda diferencia dois tipos de mais-valia (SELL, 2002):

• Mais-valia Absoluta: aumenta-se a jornada de trabalho e, por consequência, o tempo de extração da mais-valia. Por isso os capitalistas defendem maiores jornadas de trabalho.

• Mais-valia Relativa: aumenta-se a produtividade, o trabalho rendendo mais, o lucro originado é maior. Geralmente é obtido pelo aperfeiçoamento tecnológico.

Este processo de exploração, que Marx define como sendo uma das leis de funcionamento do sistema capitalista, funciona porque o trabalhador alienado não percebe sua condição. O conceito de alienação é o que iremos estudar na próxima seção, mas veja como ele se articula com a mais-valia:

Ela se transforma, assim, em uma riqueza que se opõe à classe dos trabalhadores. A taxa de mais-valia, a razão entre trabalho excedente e trabalho necessário, expressa o grau de exploração da força de trabalho pelo capital. O que impede o trabalhador de perceber como se dá efetivamente todo esse processo é sua situação alienada. Em síntese, o trabalho apropriado pelo capital “é trabalho forçado, ainda que possa parecer o resultado de uma convenção contratual livremente aceita” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 57).

Segundo Marx, esta situação não se manteria por muito tempo, pois ele identificou que existe uma contradição nesta lógica, já que o lucro diminuiria na medida em que a classe trabalhadora não tivesse mais possibilidade de acessar os

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bens de consumo. Ele chama esta ideia de Teoria da Crise da Sociedade Capitalista, e a próxima unidade irá tratar sobre este tema, que tem relação com a forma como Marx propõe seu projeto político.

FIGURA 15 – REPRESENTAÇÃO DA MAIS-VALIA

FONTE: <http://calaabocajornalista.blogspot.com/2011/12/resumiu-teoria-marxista-em-uma-tirinha.html>. Acesso em: 26 nov. 2018.

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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Para finalizar, vamos estudar um exemplo dele sobre a mais-valia:

Suponhamos agora que a quantidade média diária de artigos de primeira necessidade imprescindíveis à vida de um operário exija seis horas de trabalho médio para a sua produção. Suponhamos, além disso, que estas seis horas de trabalho médio se materializem numa quantidade de ouro equivalente a 3 xelins. Nestas condições, os 3 xelins seriam o preço ou a expressão em dinheiro do valor diário da força de trabalho desse homem se trabalhasse seis horas diárias, ele produziria diariamente um valor que bastaria para comprar a quantidade média de seus artigos diários de primeira necessidade ou para se manter como operário.Mas o nosso homem é um obreiro assalariado. Portanto, precisa vender a sua força de trabalho a um capitalista. Se a vende por 3 xelins diários, ou por 18 semanais, vende-a pelo seu valor. Vamos supor que se trata de um fiandeiro. Trabalhando seis horas por dia, incorporará ao algodão, diariamente, um valor de 3 xelins. Este valor diariamente incorporado por ele representaria um equivalente exato do salário, ou preço de sua força de trabalho, que recebe cada dia. Mas neste caso não iria para o capitalista nenhuma mais-valia ou sobreproduto algum. É aqui, então, que tropeçamos com a verdadeira dificuldade.Ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-la pelo seu valor, o capitalista adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria comprada. A força de trabalho de um homem é consumida, ou usada, fazendo-o trabalhar, assim como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar. Portanto, o capitalista, ao comprar o valor diário, ou semanal, da força de trabalho do operário, adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante todo o dia ou toda a semana. A jornada de trabalho, ou a semana de trabalho, têm naturalmente certos limites, mas a isto volveremos, em detalhe, mais adiante.No momento, quero chamar-vos a atenção para um ponto decisivo.O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso desta força só é limitado pela energia vital e a força física do operário. O valor diário ou semanal da força de trabalho difere completamente do funcionamento diário ou semanal desta mesma força de trabalho, são duas coisas completamente distintas, como a ração consumida por um cavalo e o tempo em que este pode carregar o cavaleiro. A quantidade de trabalho que serve de limite ao valor da força de trabalho do operário não limita de modo algum a quantidade de trabalho que sua força de trabalho pode executar. Tomemos o exemplo do nosso fiandeiro. Vimos que, para recompor diariamente a sua força de trabalho, este fiandeiro precisava reproduzir um valor diário de 3 xelins, o que realizava com um trabalho diário de seis horas. Isto, porém, não lhe tira a capacidade de trabalhar 10 ou 12 horas e mais, diariamente. Mas o capitalista, ao pagar o valor diário ou semanal da força de trabalho do fiandeiro, adquire o direito de usá-la durante todo o dia ou toda a semana. Fá-lo-á trabalhar, portanto, digamos, 12 horas diárias, quer dizer, além das seis horas necessárias para recompor o seu salário, ou o valor de sua força de trabalho, terá de trabalhar outras seis horas, a que chamarei horas de sobretrabalho, e este sobretrabalho irá traduzir-se em uma mais-valia e em um sobreproduto. Se, por exemplo, nosso fiandeiro, com o seu trabalho diário de seis horas, acrescenta ao algodão um valor de 3 xelins, valor que constitui um equivalente exato de seu salário, em 12 horas acrescentará ao algodão um valor de 6 xelins e produzirá a correspondente quantidade adicional de fio.

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E como vendeu sua força de trabalho ao capitalista, todo o valor ou todo o produto por ele criado pertence ao capitalista, que é dono de sua força de trabalho, por tempore. Por conseguinte, desembolsando 3 xelins, o capitalista realizará o valor de 6, pois com o desembolso de um valor no qual se cristalizam seis horas de trabalho receberá em troca um valor no qual estão cristalizadas 12 horas. Se repete, diariamente, esta operação, o capitalista desembolsará 3 xelins por dia e embolsará 6, cuja metade tornará a inverter no pagamento de novos salários, enquanto a outra metade formará a mais-valia, pela qual o capitalista não paga equivalente algum. Este tipo de intercâmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem que conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista.A taxa de mais-valia dependerá, se todas as outras circunstâncias permanecerem invariáveis, da proporção existente entre a parte da jornada que o operário tem que trabalhar para reproduzir o valor da força de trabalho e o sobretempo ou sobretrabalho realizado para o capitalista. Dependerá, por isso, da proporção em que a jornada de trabalho se prolongue além do tempo durante o qual o operário, com o seu trabalho, se limita a reproduzir o valor de sua força de trabalho ou a repor o seu salário (MARX, 1865, p. 19).

Para finalizar este tópico, iremos nos aprofundar no conceito de alienação, que sustenta todo este processo de exploração da mais-valia. Vamos à última seção do tópico? Boa leitura!

5 ALIENAÇÃOA ideia de alienação surge, para Marx, como um conceito atrelado

ao trabalho. A alienação de que trata este autor é a alienação sobre o processo completo de trabalho, o estranhamento do trabalhador com relação à sua produção. O trabalhador conhece suas atividades, suas tarefas, suas obrigações, mas não conhece o processo completo que envolve seu trabalho, portanto, é alienado com relação a muitos itens. Pense você: em seu trabalho, conhece tudo o que envolve a produção nas suas atividades?

Marx destaca três aspectos da alienação (de acordo com BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 50):

1) o trabalhador relaciona-se com o produto do seu trabalho como com algo alheio a ele, que o domina e lhe é adverso, e relaciona-se da mesma forma com os objetos naturais do mundo externo; o trabalhador é alienado em relação às coisas; 2) a atividade do trabalhador tampouco está sob seu domínio, ele a percebe como estranha a si próprio, assim como sua vida pessoal e sua energia física e espiritual, sentidas como atividades que não lhe pertencem; o trabalhador é alienado em relação a si mesmo; 3) a vida genérica ou produtiva do ser humano torna-se apenas meio de vida para o trabalhador, ou seja, seu trabalho - que é sua atividade vital consciente e que o distingue dos animais - deixa de ser livre e passa a ser unicamente meio para que sobreviva.

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Ter um trabalho, ser produtivo, acaba se tornando uma obrigação, já que este proletário operário não possui meios de produção. A sua única possibilidade para adquirir o que é necessário à sobrevivência é vender sua capacidade de trabalho, tornar-se assalariado. Este processo reduz o ser humano a uma máquina e o mantém envolto em uma atividade abstrata, já que não participa e nem conhece todas as etapas. Ou seja, é alienado com relação ao próprio processo do qual é parte.

“O trabalhador e suas propriedades humanas só existem para o capital. Se ele não tem trabalho, não tem salário, não tem existência. Só existe quando se relaciona com o capital e, como este lhe é estranho, a vida do trabalhador é também estranha para ele próprio” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 50).

O salário é, portanto, o instrumento para que o trabalhador seja mantido como instrumento produtivo, já que muitas vezes o próprio trabalho torna-se um sacrifício — uma obrigação pela sobrevivência. Neste contexto, são criadas necessidades baseadas na posse de dinheiro, obrigando os seres humanos a maiores sacrifícios e dependência deste salário, desta condição financeira de assalariado.

Em suma, o operário não se reconhece no produto que criou, em condições que escapam a seu arbítrio e às vezes até à sua compreensão, nem vê no trabalho qualquer finalidade que não seja a de garantir sua sobrevivência. E a própria “força de produção multiplicada que nasce por obra da cooperação dos diferentes indivíduos sob a ação da divisão do trabalho” aparece aos produtores como um poder alheio, sobre o qual não têm controle, não sabem de onde procede e sentem como se estivesse situado à margem deles, independentemente de sua vontade e de seus atos e que “até mesmo dirige esta vontade e estes atos” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 51).

O crescimento da riqueza gerado pelo trabalho, portanto, se contrapõe à humanização do indivíduo que ali está responsável por parte do processo produtivo, já que ele trabalha para obter meios de suprir as próprias necessidades criadas pelo capital. Além disso, a força de trabalho funciona como uma mercadoria no capitalismo: se a oferta é maior que a demanda, uma parte destas pessoas fica fora do mercado, e a força de trabalho é desvalorizada.

Do ponto de vista interno, não existe uma participação consciente no processo produtivo, o indivíduo apenas atende alienado ao que a organização social de seu trabalho exige.

Todos os meios para desenvolver a produção transformam-se em meios para dominar e explorar o produtor: fazem dele um homem truncado, fragmentário, ou o apêndice de uma máquina. Opõem-se a ele, como outras tantas potências hostis, as forças científicas da produção. Substituem o trabalho atrativo por trabalho forçado. Fazem com que as condições em que se desenvolve o trabalho sejam cada vez mais anormais, e submetem o trabalhador, durante seu serviço, a um despotismo tão ilimitado como mesquinho. Convertem toda sua vida em tempo de trabalho... (MARX, 1973 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 53).

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Voltamos aí ao fetichismo da mercadoria, as relações sociais envoltas no processo de produção das mercadorias tornam-se ocultas no valor destas mercadorias. Os próprios produtores ficam alheios a toda a geração de valor ocorrida no processo de transformação dela pelo trabalho. A percepção da vida social por detrás deste objeto é nublada, e com isso todas as demais relações passam a ser objetificadas, ou seja, expressas em objetos.

FIGURA 16 – CRÍTICA À ALIENAÇÃO DO TRABALHO

FONTE: <http://www.zonacurva.com.br/tag/alienacao-do-trabalho/>. Acesso em: 26 nov. 2018.

Sell (2002, p. 159) indica quatro formas que Marx apresenta de alienação humana, originadas pela existência da propriedade privada, que vão além das relações de trabalho, inclusive:

• Alienação do homem do produto do seu próprio trabalho: aquilo que o trabalhador produz no capitalismo não pertence a ele. Pertence ao proprietário capitalista, ao dono dos meios de produção. Portanto, o homem aliena-se, ou seja, perde o controle daquilo que ele mesmo produz, quer dizer, do objeto de trabalho.

• Alienação do homem no ato da produção: na economia capitalista, o trabalhador também não controla a atividade de produzir. Esta capacidade é vendida por ele ao capitalista. Portanto, no processo de produção, o trabalhador também aliena sua atividade. Ela não lhe pertence e é controlada por outra pessoa.

• Alienação do homem de sua própria espécie: Com isto, Marx estava querendo ressaltar que o homem também se achava separado de seus semelhantes.

• Alienação do homem de sua própria natureza humana: a principal consequência da propriedade privada e do capitalismo é que o homem está alienado de si mesmo, ou seja, daquilo que ele mesmo é. Isto acontece porque o trabalho – que é o elemento que o diferencia das outras espécies – não está mais a seu serviço. As coisas inverteram-se. Sob a forma capitalista, o homem tornou-se escravo do trabalho.

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Vamos ao texto do próprio Marx:

Examinemos, agora, mais além, como esse conceito de trabalho alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade. Se o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como uma força estranha, a quem pertence ele? Se minha própria atividade não me pertence, mas é uma atividade alienada, forçada, a quem ela pertence? A um ser, outro que não eu. E que é esse ser? Os deuses? É evidente, nas mais primitivas etapas de produção adiantada, por exemplo, construção de templos, etc., no Egito, Índia, México, é nos serviços prestados aos deuses, que o produto pertencia a estes. Mas os deuses nunca eram por si sós os donos do trabalho humano; tampouco o era a natureza. Que contradição haveria se quanto mais o homem subjugasse a natureza com seu trabalho, e quanto mais as maravilhas dos deuses fossem tornadas supérfluas pelas da indústria, ele se abstivesse da sua alegria em produzir e de sua fruição dos produtos por amor a esses poderes!O ser estranho a quem pertencem o trabalho e o produto deste, a quem o trabalho é devotado, e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o enfrenta como uma força estranha, isso só pode acontecer porque pertence a um outro homem que não o trabalhador. Se sua atividade é para ele um tormento, ela deve ser uma fonte de satisfação e prazer para outro. Não os deuses nem a natureza, mas só o próprio homem pode ser essa força estranha acima dos homens.Considere-se a afirmação anterior segundo a qual a relação do homem consigo mesmo se concretiza e objetiva primariamente através de sua relação com outros homens. Se, portanto, ele está relacionado com o produto de seu trabalho, seu trabalho objetificado, como com um objeto estranho, hostil, poderoso e independente, ele está relacionado de tal maneira que um outro homem, estranho, hostil, poderoso e independente, é o dono de seu objeto. Se ele está relacionado com sua atividade como com uma atividade não livre, então está relacionado com ela como uma atividade a serviço e sob jugo, coerção e domínio de outro homem.Toda autoalienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza. Assim a autoalienação religiosa é necessariamente exemplificada na relação entre leigos e sacerdotes, ou, já que aqui se trata de uma questão do mundo espiritual, entre leigos e um mediador. No mundo real da prática, essa autoalienação só pode ser expressa na relação real, prática, do homem com seus semelhantes.O meio através do qual a alienação ocorre é, por si mesmo, um meio prático. Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção como com homens estranhos e hostis, mas também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como ele cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é deste.Apreciamos até aqui essa relação somente do lado do trabalhador, e posteriormente a apreciaremos também do lado do não trabalhador.

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Assim, graças ao trabalho alienado, o trabalhador cria a relação de outro homem que não trabalha e está de fora do processo do trabalho, com o seu próprio trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho também provoca a relação do capitalista (ou como quer que se denomine ao dono da mão de obra) com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado inevitável, do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito de trabalho alienado: isto é, homem alienado, trabalho alienado, vida alienada, e homem afastado (MARX, 1844, p. 110).

Finalizando, esta charge resume de maneira fantástica o que é a materialização da alienação do trabalho na vida do operário (Figura 17):

FIGURA 17 – CHARGE: ALIENAÇÃO DO TRABALHO

FONTE: <https://resistenciaantisocialismo.wordpress.com/2013/11/01/a-alienacao-do-trabalho/>. Acesso em: 26 nov. 2018.

Para solucionar o problema de todas as formas de alienação, Marx propõe que a direção da produção seja assumida por homens conscientes de suas vontades e necessidade, permitindo o retorno de formas transparentes de relação entre as pessoas e com o próprio processo produtivo, ou seja, a humanização — e para isso propõe o comunismo. Iremos estudar os desdobramentos das teorias de Marx na próxima unidade, e esta proposta de humanização é uma delas.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico apresentamos:

• A infraestrutura é a dimensão econômica, enquanto a superestrutura é composta pela vida política e cultural da sociedade.

• A infraestrutura, portanto, é composta pelas forças produtivas e pelas relações de produção — este conjunto é a base econômica de uma sociedade.

• A superestrutura é composta pelo Estado e pela Ideologia, instrumentos de dominação das classes privilegiadas.

• A base do sistema capitalista para Marx é formada por dois itens, a mercadoria e o dinheiro. Ambos passam por um processo de circulação, que ele alinha como sendo: a mercadoria é trocada por dinheiro, e o dinheiro é trocado por mercadoria. Este fluxo ele chama de processo de circulação simples.

• A Mais-valia é, nas teorias de Marx, o que origina o lucro — é o tempo de trabalho não pago ao trabalhador dentro de uma determinada jornada de trabalho, e é classificada em mais-valia relativa e mais-valia absoluta.

• A alienação de que trata este autor pode ser classificada em: Alienação do homem do produto do seu próprio trabalho, Alienação do homem no ato da produção, Alienação do homem de sua própria espécie, Alienação do homem de sua própria natureza humana.

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AUTOATIVIDADE

1 Descreva os conceitos a seguir a partir das definições apresentadas por Karl Marx na Teoria do Materialismo Dialético:

a) Infraestrutura:

b) Superestrutura:

c) Fetichismo da mercadoria:

d) Mais-valia:

e) Alienação:

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TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DA

SOCIOLOGIA DE KARL MARX

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃONeste último tópico de seus estudos sobre Marx, iremos compreender

alguns desdobramentos de suas teorias e do modo de pensar a sociedade — especialmente materializados em um projeto político famoso e polêmico, que culminaria no comunismo.

As obras de Marx continuam sendo revisitadas e reinterpretadas atualmente, o que o coloca na condição de clássico. Além disso, seu projeto político ainda segue vivo em alguns grupos, e influencia outros. Seus temas de análise seguem sendo referência para economistas, sociólogos, cientistas políticos, entre outros.

Sua maneira de observar o modo de produção, como determinante para a configuração social, serve como base para autores contemporâneos. É uma nova perspectiva de entender a ordem social lançada à época em que viveu e que perdura até os dias atuais, por isso a importância de conhecer em detalhes a obra deste autor para as teorias sociológicas. Para além das polêmicas que envolvem a obra de Marx, cabe o olhar científico para as contribuições do autor através de suas análises sociais.

Neste sentido, o último tópico é voltado para entendermos as classes sociais, a ideia de luta de classes, o papel das revoluções na história, e o seu projeto político passando pelo socialismo e comunismo. São todos temas clássicos na obra de Marx e visitados com frequência pelos autores que o interpretam, e fecharemos assim esta unidade. Boa leitura!

2 CLASSES SOCIAISUm dos conceitos desenvolvidos por Marx mais presente na atualidade e

nas reinterpretações de sua teoria é o de classes sociais. Ele serve como base para todo o desdobramento do seu pensamento, no entendimento do projeto político que propõe, nas análises sobre revolução, e sobre a superação do capitalismo pelo comunismo. Sendo assim, é essencial que iniciemos esta seção nos aprofundando no entendimento sobre a noção de classes sociais.

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Marx não desenvolveu uma única obra acerca do conceito de classes, mas disseminou diferentes elementos ao longo de sua produção, que, sistematizados, nos mostram seu entendimento sobre esta classificação social.

Ele parte da ideia de que o trabalho é a atividade vital do indivíduo, por meio da qual ele se humaniza. Durante os processos produtivos são geradas as relações sociais e os indivíduos extraem da natureza o que necessitam, sendo que uma parte (mais-valia) se torna apropriação de não produtores, como Estado, pessoas ou empresas). Como vimos, assim ele trabalha o conceito de exploração, e, alinhado a ele, é que traz a ideia de classes sociais.

Enquanto a capacidade produtiva dos grupos sociais era limitada, a organização social era simples e baseada na luta pela extração da natureza daquilo que era essencial à sobrevivência. Esta condição não permitia uma exploração, um domínio — já que a apropriação do trabalho do outro não era necessária.

Ou seja, “numa época em que duas mãos não podem produzir mais do que o que uma boca consome, não existem bases econômicas” que possibilitem que uns vivam do trabalho de outros, seja na forma de trabalho escravo ou de qualquer outro modo de exploração. É o surgimento de um excedente da produção que permite a divisão social do trabalho, assim como a apropriação das condições de produção por parte de alguns membros da comunidade os quais passam, então, a estabelecer algum tipo de direito sobre o produto ou sobre os próprios trabalhadores. Vê-se, portanto, que a existência das classes sociais se vincula a circunstâncias históricas específicas, quais sejam, aquelas em que a criação de um excedente possibilita a apropriação privada das condições de produção (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 38).

Sendo assim, o materialismo dialético de Marx rejeita a ideia de desigualdade natural, e também de que as classes se definiriam a partir da posse de uma determinada renda ou origem dela. "A renda não é um fator independente da produção: é, antes, uma expressão da parcela maior ou menor do produto a que um grupo de indivíduos pode ter direito em decorrência de sua posição na estrutura de classes” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 39).

Basicamente, Marx desenvolve a ideia de uma sociedade estruturada com base em duas grandes classes: de um lado, os possuidores dos meios de produção (burguesia), e de outro lado, os que não os possuem (proletariado). Esta polaridade permeia toda a análise deste autor sobre as classes sociais, e toda sua obra quando explica a relação direta entre as desigualdades e o modo de produção dos grupos sociais.

Esta polaridade expressa-se em diferentes formatos de acordo com o período histórico, temos aí servos e senhores feudais, escravos e patrícios, aprendizes e mestres, e as mais diretamente analisadas por Marx: capitalistas e trabalhadores livres. A sociedade moderna seria, portanto, dividida em proletariado e burguesia.

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TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX

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É importante destacar que este é um esquema teórico que não dá conta das variações e complexidades das sociedades na prática, mas que auxilia “na possibilidade de identificar a configuração básica das classes de cada modo de produção, aquelas que responderão pela dinâmica essencial de uma dada sociedade, definindo inclusive as relações com as demais classes” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 39).

FIGURA 18 – OPOSIÇÃO CLASSES SOCIAIS

FONTE: <https://enem.estuda.com/questoes/?id=141910>. Acesso em: 5 nov. 2018.

Reconhecendo estas complexidades e nuances nas classes sociais, Marx avalia que a tendência é de redução destas particularidades, e concentração cada vez maior do capital, polarizando ainda mais os grupos e reduzindo as classes intermediárias. No entanto, há críticas atualmente produzidas sobre isso, vejamos o panorama geral:

Mesmo assim, Marx acredita que a tendência do modo capitalista de produção é separar cada vez mais o trabalho e os meios de produção, concentrando e transformando estes últimos em capital e aquele em trabalho assalariado e, com isso, eliminar as demais divisões intermediárias das classes. Não obstante, as sociedades comportam também critérios e modos de apropriação e de estabelecimento de privilégios que geram ou mantêm outras divisões e classes além daquelas cujas relações são as que, em definitivo, modelam a produção e a formação socioeconômica. O estabelecimento de novas relações sociais de produção com a organização jurídica e política correspondente e, com elas, de novas classes, quase nunca representa uma completa extinção dos modos de produção anteriores, cujos traços às vezes só gradualmente vão desaparecendo. O desenvolvimento do modo de produção capitalista tomou rumos imprevisíveis para um analista situado, como Marx, em meados do século 19. A organização econômica e política ancorou-se cada vez mais firmemente em níveis internacionais e, no interior de cada sociedade, esses processos adquiriram feições muito singulares, referidas à diversidade de elementos que conformaram suas experiências históricas. Tudo isso teve como resultado novas subdivisões no interior das classes sociais, como ocorre com o crescimento das chamadas “classes médias” e dos setores tecnoburocráticos. Em outros

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casos, consolidou a existência de antigas relações de produção, às vezes sob novas roupagens, tanto no campo como nas cidades. Em suma, formaram-se historicamente estruturas econômicas e sociais complexas, conjugando relações entre as novas classes e frações de classe típicas das sociedades capitalistas tradicionais.A crítica feita pelo marxismo à propriedade privada dos meios de produção da vida humana dirige-se, antes de tudo, às suas consequências: a exploração da classe de produtores não possuidores por parte de uma classe de proprietários, a limitação à liberdade e às potencialidades dos primeiros e a desumanização de que ambos são vítimas. Mas o domínio dos possuidores dos meios de produção não se restringe à esfera produtiva: a classe que detém o poder material numa dada sociedade é também a potência política e espiritual dominante.Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, uma consciência, e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos de sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias dominantes de sua época (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 40).

Esta polarização em duas grandes classes é o fundamento da análise de Marx no que diz respeito à estruturação de classes da sociedade capitalista. Veja a seguir uma sugestão de livro no qual você pode aprofundar seu estudo sobre este tema.

DICAS

Para avançar em seus estudos, tanto sobre o conceito de classes sociais em Marx, quanto sobre a noção de luta de classes (próximo tópico), você pode utilizar a obra de Nildo Viana, A teoria das classes sociais em Karl Marx, publicada pela Editora Chiado, em maio de 2018.

FONTE:<https://content.chiadobooks.com/img/290x386/capa_a_teoria_das_classes_sociais_em_karl_marx_ebook.jpg>.Acesso em: 14 fev. 2019.

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TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX

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3 PROJETO POLÍTICO: LUTA DE CLASSESAs análises sobre a luta de classes fazem parte de uma dimensão mais

política da obra de Marx, na qual ele sugere que por meio desta luta seria possível chegar a um modelo socialista, que seria implantado após a crise do capitalismo.

Para ele, a história de todas as sociedades perpassa pela história da luta de classes, e suas reflexões sobre este tema estão, principalmente, indicadas na obra Manifesto do Partido Comunista. Portanto, para além de estereótipos compartilhados sobre esta obra, para além de ser uma análise do modelo comunista, ela apresenta o pensamento de Marx sobre as facetas da luta de classes — essencial para o entendimento de sua teoria sociológica.

A história das sociedades cuja estrutura produtiva baseia-se na apropriação privada dos meios de produção pode ser descrita como a história das lutas de classes. Essa expressão, antes de significar uma situação de confronto explícito - que de fato pode ocorrer em certas circunstâncias históricas - expressa a existência de contradições numa estrutura classista, o antagonismo de interesses que caracteriza necessariamente uma relação entre classes, devido ao caráter dialético da realidade. Dado que as classes dominantes sustentam-se na exploração do trabalho daqueles que não são proprietários nem possuidores dos meios de produção — assim como em diversas formas de opressão social, política, intelectual, religiosa etc. —, a relação entre elas não pode ser outra senão conflitiva, ainda que apenas potencialmente (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 41).

Como vimos no tópico anterior, para Marx a existência das classes sempre ocorreu — mas ele visualizava que, na época em que vivia, esta divisão acentuava-se, já que os antagonismos entre a burguesia e o proletariado se faziam cada vez mais presentes. Segundo ele, a burguesia inaugurou o capitalismo, na medida em que se voltou contra o regime feudalista e instaura esta nova ordem. E então, para superar o capitalismo seria preciso que os operários (o proletariado) fizessem o mesmo movimento derrubando o regime capitalista e instaurando o socialismo.

Para que se consiga operar a modificação do sistema econômico, Sell (2002, p. 188) destaca que Marx apresentou algumas fases:

• No início, combate às próprias máquinas.• Depois, passa a defender seus direitos (sindicalismo).• Posteriormente, se organiza enquanto classe social (partido político).• Finalmente, desencadeia uma luta que termina com a revolução contra a

burguesia.

Ele via esta vitória do proletariado como um processo de evolução do sistema, como inevitável. Para tal havia a necessidade do surgimento da consciência de classe, já que a divisão do trabalho provoca indivíduos alienados do processo e insere-os em relações sociais automatizadas e de base muito mais econômica do que humana.

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Esta consciência seria formada, para Marx, por meio de um processo gradativo de organização política. As lutas coletivas fariam com que aos poucos o indivíduo notasse subjetivamente sua condição de classe, compreendendo a necessidade de se aliar ao seu grupo e assim defender os interesses de sua classe.

Do ponto de vista do materialismo histórico, a luta de classes impulsiona a mudança estrutural na sociedade, por isso é vista como o motor da história, ou seja, essencial à superação dialética das contradições existentes no capitalismo. A classe explorada seria o mais poderoso agente de mudança social, portanto.

Para fins analíticos, Marx distingue conceitualmente as classes em si, conjunto dos membros de uma sociedade que são identificados por compartilhar determinadas condições objetivas, ou a mesma situação no que se refere à propriedade dos meios de produção, das classes para si, classes que se organizam politicamente para a defesa consciente de seus interesses, cuja identidade é construída também do ponto de vista subjetivo (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 41).

Pode-se notar a característica de recorte que existe no conceito de classe social para Marx: um grupo existe pela identificação de suas condições objetivas, bem como da posse ou não dos meios de produção. Isto gera um processo identitário, em que o grupo passa a ser a referência do indivíduo, e seus interesses podem tornar-se coletivos, a depender do desenvolvimento da consciência de classe.

A consciência de classe materializa-se em associações políticas, como sindicatos e partidos, com duas finalidades principais: defender seus interesses e combater seus opressores. Elas possuem, portanto, um papel de extrema relevância, mantendo o grupo unido em prol de bandeiras coletivas e sendo força de resistência à dominação.

FIGURA 19 – SÁTIRA LUTA DE CLASSES

FONTE: <https://acasadevidro.com/2016/04/19/em-debate-a-luta-de-classes-morreu/>. Acesso em: 5 nov. 2018.

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Os intérpretes da obra de Marx buscam compreender o quanto a luta de classes ainda pode ser um conceito aplicável à realidade atual. Este é um dos conceitos mais revisitados do clássico.

Para fechar, cabe compreender que Marx apresenta a ideia de um Estado como instrumento de classe, conforme Sell nos explica em seu texto.

Na obra “A Ideologia Alemã”, Marx já tinha apontado que o Estado surge na história como resultado da divisão da sociedade em classes sociais. Como vimos, esta tese já está presente em sua teoria do materialismo histórico.No Manifesto do Partido Comunista, Marx volta a enfatizar esta ideia, quando afirma que o Estado “é o comitê executivo da burguesia”! Com isso, ele queria denunciar o fato de que a igualdade jurídica dos cidadãos escondia sua divisão em classes. Se a lei é a mesma para todos, isso não significa que todos são iguais. Essa ilusão faz do Estado um mecanismo de ocultamento das classes sociais.Porém, mais do que um agente passivo de ocultação, Marx percebeu que o Estado só favorecia os interesses da burguesia. Assim, as leis tratavam de preservar e proteger a propriedade privada, enquanto os operários e seus movimentos eram perseguidos. Para eles, a única atenção do Estado era o uso da força (SELL, 2002, p. 190).

4 PAPEL REVOLUCIONÁRIO DA BURGUESIAPara entender a força da sociedade de classes no período em que viveu,

Marx se debruçou sobre o estudo do surgimento, evolução e superação do capitalismo a partir da destruição da sociedade feudal. Ele queria compreender como a burguesia conseguiu modificar a organização produtiva feudal para impor o modo de produção capitalista.

Conquanto a proteção das guildas e corporações da Idade Média tivesse possibilitado a acumulação do capital, o desenvolvimento do comércio marítimo e a fundação das colônias, a manutenção das velhas estruturas feudais constituir-se-iam num entrave à continuidade daquela expansão. Vimos, pois, que os meios de produção e de troca, sobre cuja base a burguesia se formou, foram criados na sociedade feudal. Ao alcançar um certo grau de desenvolvimento, esses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, toda a organização feudal da agricultura e da indústria, em uma palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Freavam a produção em lugar de impulsioná-la... Era preciso romper essas travas, e foram rompidas. Em seu lugar estabeleceu-se a livre concorrência, com uma constituição social e política adequada a ela e com a dominação econômica e política da classe burguesa (MARXS; ENGELS, 1975, p. 26 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 46).

Havia regulamentos na época para que o excesso de acúmulo fosse evitado: o empregador possuía um número limitado de pessoas que poderia empregar, além de poder comprar qualquer mercadoria exceto a força de trabalho (a não ser que o trabalhador não tivesse nenhuma outra mercadoria para troca, ele precisava ser totalmente livre no mercado para poder vender sua força de trabalho).

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Esta era uma organização que mantinha todas as outras instituições, desde a organização política do Estado até sistemas religiosos e culturais. E então, esta burguesia, limitada pelos regulamentos da época, operou verdadeira revolução — já que modificou totalmente as instituições a partir do novo sistema econômico.

Sua ação destruiu os modos de organização do trabalho, as formas da propriedade no campo e na cidade; debilitou as antigas classes dominantes como a aristocracia feudal e o clero, substituiu a legislação feudal, e eliminou os impostos e obrigações feudais, as corporações de ofício, o sistema de vassalagem que impedia que os servos se transformassem nos trabalhadores livres e mesmo o regime político monárquico nos casos em que sua existência representava um obstáculo ao pleno desenvolvimento das potencialidades da produção capitalista (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 47).

Então Marx, em parceria com Engels, desenvolve todo um raciocínio para compreender como, ao longo da história, houve outras ações revolucionárias da classe burguesa. Segundo eles, há muitos feitos históricos que precisam ser observados, como as pirâmides do Egito, aquedutos em Roma, Cruzadas, todos liderados pela burguesia. Assim, em um processo de racionalização, o capitalismo é implantado também a partir desta classe.

A disseminação deste modo de produção se dá pela “venda” da ideia de

civilização, além da necessidade da classe de obter novos mercados, ter acesso a matérias-primas e gerar novas necessidades nas populações (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002).

E esta revolução provocada pela burguesia gera, ainda mais, contradições sociais, polarizando as sociedades em dois grupos: burgueses e proletários. A luta de classes torna-se ainda mais evidente neste contexto.

E é neste ponto que quem assumiria o papel revolucionário seria a classe operária, e não mais a burguesia. Se, por necessidade, a burguesia operou uma revolução no modelo econômico em seu favor, ela também deu espaço — no modo de produção capitalista — para que os operários se tornassem uma massa que, ao ter consciência de sua situação, pudesse se reunir e evocar nova revolução. Quem efetivamente teria papel revolucionário neste novo contexto, portanto, seria o proletariado — não mais a burguesia.

Desta feita, caberia ao proletariado estabelecer a ideia de uma civilização alicerçada na coletividade e não na supervalorização do indivíduo, como no caso da burguesia.

Barbosa, Oliveira e Quintaneiro (2002, p. 49) explicam como seria este novo movimento revolucionário:

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Por meio de um processo revolucionário, as condições de apropriação e concentração dos meios de produção existentes em mãos de uma classe desaparecem e, a partir de então, inicia-se um processo de fundação da sociedade sobre novas bases. No caso de uma revolução proletária, na medida em que desaparecessem as garantias da propriedade privada dos meios de produção, o mesmo aconteceria com a burguesia como classe e com o modo capitalista de produção. Instalar-se-ia, então, uma nova forma de organização social que, numa fase transitória, seria uma ditadura do proletariado, mas, ao realizar todas as condições a que se propôs, tornar-se-ia uma sociedade comunista. A antiga sociedade civil será então substituída “por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; já não existirá um poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente a expressão oficial do antagonismo de classe dentro da sociedade civil”. Uma das premissas para a existência dessa sociedade seria o grande desenvolvimento das forças produtivas promovido pela produção capitalista “pois, sem ele, apenas se generalizará a penúria e, com a pobreza, começará paralelamente a luta pelo indispensável e cair-se-á fatalmente na imundície anterior...” Em outras palavras, “a libertação é um fato histórico e não um fato intelectual, e é provocado por condições históricas, pelo progresso da indústria, do comércio, da agricultura.

Ainda pensando sobre os movimentos revolucionários, a teoria marxiana procura entender o progresso das sociedades. Quando as forças produtivas começam a ter necessidade de expansão, as estruturas sociais, econômicas e políticas passam a se desintegrar para dar lugar às novas estruturas. Eclodem então os conflitos latentes e inicia-se a época revolucionária. O progresso é o resultado dialético desta situação.

No período medieval, as forças produtivas anunciadas pela burguesia nascente foram de encontro aos interesses representados nas corporações de ofícios e nas guildas. Por isso é que as revoluções burguesas vieram representar o processo de liberação daquelas forças, paralisadas por relações sociais ultrapassadas. Essa não correspondência entre relações sociais e forças produtivas cerceia o potencial de avanço da produção, fornece as condições materiais para que as classes atuem e exerçam seu papel revolucionário. O progresso das forças produtivas, os câmbios nas relações sociais de produção e, consequentemente, nas instituições políticas, jurídicas, religiosas etc. permitem compreender como se dá historicamente a passagem de uma organização social a outra mais avançada, ou a um novo modo de produção (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 47).

Quando uma classe consegue se impor diante de outra, ela substitui as formas econômicas, sociais, enfim, a superestrutura e a infraestrutura. Diante da ideia de progresso, a classe revolucionária seria a que faz evoluir um grupo social o mais rapidamente possível, já que “liberta” os elementos de progresso contidos nas contradições das estruturas antigas.

Para fechar seus estudos sobre Marx, vamos, a seguir, compreender como ele defendia que as contradições existentes no capitalismo levariam a um novo formato de vida, um novo modelo de produção, a partir da revolução do proletariado: o comunismo.

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5 SOCIEDADE CAPITALISTA E COMUNISMOPara Marx, a superação da sociedade capitalista era uma etapa essencial

para o progresso da humanidade, e isso só seria possível a partir da força do operariado. Mas para que esta classe se tornasse revolucionária era preciso que fosse construída uma consciência de classe, por isso indicou algumas possibilidades objetivas em sua obra Manifesto do Partido Comunista.

DICAS

A coleção A Obra-Prima de Cada Autor, que já apresentamos para você neste livro didático, possui uma edição do Manifesto do Partido Comunista, obra de Marx e Engels. Editora Martin Claret.

FONTE:<https://images.livrariasaraiva.com.br/imagemnet/imagem.aspx/?pro_id=451965&qld=90&l=430&a=-1>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Este livro não é um manual de receitas, mas a indicação de linhas possíveis para a construção de uma nova sociedade. Também é nele que Marx aborda alguns itens essenciais do modelo comunista, tais como a abolição da propriedade burguesa (e não da propriedade privada em geral) e a importância da abolição das classes sociais neste modelo.

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FIGURA 20 – SÁTIRA LIBERDADE NO CAPITALISMO

FONTE: <http://omarxistaleninista.blogspot.com/2010/06/liberdade-no-capitalismo.html>. Acesso em: 05 nov. 2018.

Para tanto, seria preciso abolir também o instrumento de luta de classes Estado, necessário em um primeiro momento para que a burguesia fosse derrubada, mas que no comunismo não deveria existir (SELL, 2002).

Sendo assim, Marx reconhece uma fase intermediária, uma fase de transição, entre os modelos capitalista e comunista. Após seu falecimento são registrados dois grupos de socialistas: os socialistas revolucionários (achavam que o caminho seria a revolução armada) e os socialistas reformistas ou social-democratas (defendiam um caminho por eleições e reformas graduais).

O desdobramento destes movimentos deu-se de duas maneiras diferentes:

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• Os socialistas revolucionários foram responsáveis pela primeira revolução socialista no mundo: a revolução russa de 1917. Foi a primeira tentativa de implantação do socialismo, mas acabou se tornando uma ditadura com a economia estatizada e Stalin à frente de tudo. Assim foi até 1991, quando a URSS se dissolveu. Também é possível citar a revolução chinesa de 1949 e a revolução cubana de 1959 (SELL, 2002).

• Os socialistas social-democratas participaram de eleições e fortaleceram sindicatos. Ganharam o governo em alguns momentos na Europa, e seguiram com a bandeira de reformas graduais para atingir o socialismo. Não conseguiram introduzir o modelo, mas produziram reformas sociais e melhoraram a vida dos trabalhadores sobremaneira, especialmente nos chamados países de Estado de Bem-Estar Social (SELL, 2002).

Ainda na atualidade existem correntes socialistas que se fundamentam nas análises de Marx para defender este sistema como projeto político. Embora suas obras não sejam manuais, as ideias nelas apresentadas auxiliam no entendimento de uma proposta alternativa ao modelo capitalista.

Após o estágio intermediário socialista, portanto, teríamos a emancipação do comunismo. Neste modelo, as condições de existência seriam apropriadas socialmente, e não haveria distinção entre privado e coletivo. A divisão do trabalho favoreceria ao interesse de todos na sociedade.

Este sistema social seria regulado de acordo com as necessidades humanas, e não mais um sistema que gera necessidades para produzir mais mercadorias. Seria uma regulação baseada na consciência da humanidade acerca de seus rumos, e cujas decisões se dariam de maneira coletiva — objetivando o bem-estar de todos.

DICAS

Para finalizar, fica a dica de filme para conhecer visualmente a vida de Marx. Ele intitula-se O jovem Marx. Lançado em 2017.

FONTE:<https://imagens.publicocdn.com/imagens.aspx/588941?tp=KM&w=220>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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LEITURA COMPLEMENTAR

BURGUESES E PROLETÁRIOS

Karl Marx (trecho)

A história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, membro de corporação e oficial-artesão, em síntese, opressores e oprimidos estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta, que a cada vez terminava com uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com a derrocada comum das classes em luta.

Nas épocas remotas da história, encontramos por quase toda a parte uma estruturação completa da sociedade em diferentes estamentos, uma gradação multifacetada das posições sociais. Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, membros de corporação, oficiais-artesãos, servos, e ainda, em quase cada uma dessas classes, novas gradações particulares.

A moderna sociedade burguesa, emergente do naufrágio da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Ela apenas colocou novas classes, novas condições de opressão, novas estruturas de luta no lugar das antigas.

A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, contudo, pelo fato de ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade toda cinde-se, mais e mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e proletariado.

Dos servos da Idade Média advieram os burgueses extramuros das primeiras cidades; deste estamento medieval desenvolveram-se os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América, a circum-navegação da África criaram um novo terreno para a burguesia ascendente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria um impulso jamais conhecido; e, com isso, imprimiram um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em desagregação.

O funcionamento feudal ou corporativo da indústria, existente até então, já não bastava para as necessidades que cresciam com os novos mercados. A manufatura tomou o seu lugar. Os mestres de corporação foram sufocados pelo estrato médio industrial; a divisão do trabalho entre as diversas corporações desapareceu perante a divisão do trabalho no interior da própria oficina particular.

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Mas os mercados continuavam a crescer, continuava a aumentar a necessidade de produtos. Também a manufatura já não bastava mais. Então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna tomou o lugar da manufatura; o lugar do estrato médio industrial foi tomado pelos milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, que a descoberta da América preparara. O mercado mundial deu ao comércio, à navegação, às comunicações por terra um desenvolvimento incalculável. Este, por sua vez, reagiu sobre a expansão da indústria, e na mesma medida em que indústria, comércio, navegação, estradas de ferro se expandiam, nessa mesma medida a burguesia desenvolvia-se, multiplicava seus capitais, empurrava a um segundo plano todas as classes provenientes da Idade Média.

Vemos, portanto, como a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções (Umwälzungen) nos meios de produção e de transporte.

Cada uma dessas etapas de desenvolvimento da burguesia veio acompanhada de um progresso político correspondente. Estrato social oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associação armada e com administração autônoma na comuna (3); aqui cidade-república independente, ali terceiro Estado tributário da monarquia; depois, na era da manufatura, contrapeso à nobreza na monarquia estamental ou absoluta; base principal das grandes monarquias de uma forma geral, a burguesia conquistou finalmente para si, desde a criação da grande indústria e do mercado mundial no moderno Estado representativo, o domínio político exclusivo. O poder estatal moderno é apenas uma comissão que administra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa.

A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revolucionário.

Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu impiedosamente os variegados laços feudais que atavam o homem ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre os seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insensível "pagamento à vista". Ela afogou os arrepios sagrados do arroubo religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da plangência do filisteísmo burguês, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Ela dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas em documento ou valorosamente conquistadas, colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio. A burguesia, em uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada por ilusões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada, direta, seca.

A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas as atividades até então veneráveis, contempladas com piedoso recato. Ela transformou o médico,

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TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX

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o jurista, o clérigo, o poeta, o homem das ciências, em trabalhadores assalariados, pagos por ela.

A burguesia arrancou às relações familiares o seu comovente véu sentimental e as reduziu a pura relação monetária.

A burguesia revelou como o dispêndio brutal de forças, que a reação tanto admira na Idade Média, encontrava o seu complemento adequado na mais indolente ociosidade. Apenas ela deu provas daquilo que a atividade dos homens é capaz de levar a cabo. Ela realizou obras miraculosas inteiramente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, ela executou deslocamentos inteiramente diferentes das Migrações dos Povos e das Cruzadas.

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios.

A necessidade de um mercado cada vez mais expansivo para seus produtos impele a burguesia por todo o globo terrestre. Ela tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte, construir vínculos por toda parte.

Através da exploração do mercado mundial, a burguesia configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, ela subtraiu à indústria o solo nacional em que tinha os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam sendo aniquiladas diariamente. São sufocadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que não mais processam matérias-primas nativas, mas sim matérias-primas próprias das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não apenas no próprio país, mas simultaneamente em todas as partes do mundo. No lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades, que requerem para a sua satisfação os produtos dos mais distantes países e climas. No lugar da velha autossuficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surge um intercâmbio em todas as direções, uma interdependência múltipla das nações. E o que se dá com a produção material, dá-se também com a produção intelectual. Os produtos intelectuais das nações isoladas tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais vai se formando uma literatura universal.

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UNIDADE 2 | O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO DE KARL MARX

Através do rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, através das comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para dentro da civilização. Os módicos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela põe abaixo todas as muralhas da China, com que ela constrange à capitulação mesmo a mais obstinada xenofobia dos bárbaros. Ela obriga todas as nações que não queiram desmoronar a apropriar-se do modo de produção da burguesia; ela as obriga a introduzir em seu próprio meio a assim chamada civilização, isto é, a tornarem-se burguesas. Em uma palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.

A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Ela criou cidades enormes, aumentou o número da população urbana, em face da rural, em alta escala e, assim, arrancou do idiotismo da vida rural uma parcela significativa da população. Da mesma forma como torna o campo dependente da cidade, ela torna os países bárbaros e semibárbaros dependentes dos civilizados, os povos agrários dependentes dos povos burgueses, o Oriente dependente do Ocidente.

A burguesia vem abolindo cada vez mais a fragmentação dos meios de produção, da posse e da população. Ela aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. Consequência necessária disso tudo foi a centralização política. Províncias independentes, quase que tão-somente aliadas, com interesses, leis, governos e sistemas aduaneiros diversificados, foram aglutinadas em uma nação, um governo, um interesse nacional de classe, uma fronteira aduaneira.

Em seu domínio de classe que mal chega a um século, a burguesia criou forças produtivas em massa, mais colossais do que todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de continentes inteiros, canalização dos rios para a navegação, populações inteiras como que brotando do chão — que século passado poderia supor que tamanhas forças produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social!

Nós vimos, portanto: os meios de produção e de circulação, sobre cujas bases a burguesia se formou, foram gerados na sociedade feudal. Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de circulação, as relações nas quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em uma palavra, as relações feudais de propriedade, não correspondiam mais às forças produtivas já desenvolvidas. Elas tolhiam a produção, em vez de fomentá-la. Transformavam-se assim em outros tantos grilhões. Precisavam ser explodidas, foram explodidas.

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TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE KARL MARX

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Em seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição social e política que lhe era adequada, com o domínio econômico e político da classe burguesa.

Sob os nossos olhos processa-se um movimento semelhante. As relações burguesas de produção e de circulação, as relações burguesas de propriedade, a moderna sociedade burguesa, que fez aparecer meios de produção e de circulação tão poderosos, assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue mais dominar os poderes subterrâneos que invocou. Há decênios a história da indústria e do comércio vem sendo apenas a história da revolta das modernas forças produtivas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que constituem as condições vitais da burguesia e da sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, em sua recorrência periódica, questionam de maneira cada vez mais ameaçadora a existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises comerciais extermina-se regularmente não apenas uma grande parte dos produtos fabricados, mas também das forças produtivas já criadas. Deflagra-se nas crises uma epidemia social que a todas as épocas anteriores apareceria como contrassenso — a epidemia da superprodução. A sociedade encontra-se remetida subitamente a um estado de momentânea barbárie; uma epidemia de fome ou uma guerra geral de extermínio parecem ter-lhe cortado todo suprimento de alimentos; a indústria e o comércio parecem aniquilados — e por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados suprimentos de alimentos, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas que estão à sua disposição já não servem mais ao fomento das relações de propriedade burguesas; ao contrário, elas se tornaram por demais poderosas para essas relações, são tolhidas por elas; e tão logo superam esse obstáculo, levam toda a sociedade burguesa à desordem, põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para abarcar a riqueza gerada por elas. — Através de que meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados. Como isso acontece então? Pelo fato de que a burguesia prepara crises cada vez mais amplas e poderosas, e reduz os meios de preveni-las.

As armas com as quais a burguesia derruiu o feudalismo voltam-se agora contra a própria burguesia.

Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte; ela produziu também os homens que portarão essas armas – os operários modernos, os proletários.

FONTE: MARX, K. ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Londres: [s.n.],1872, p. 1-5. Disponível em: <https://www.portalabel.org.br/images/pdfs/manifesto-comunista.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2018.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você viu que:

• Marx desenvolve a ideia de uma sociedade estruturada com base em duas grandes classes: de um lado, os possuidores dos meios de produção (burguesia), e de outro lado, os que não os possuem (proletariado).

• As análises sobre a luta de classes fazem parte de uma dimensão mais política da obra de Marx, na qual ele sugere que, por meio desta luta seria possível chegar a um modelo socialista, que seria implantado após a crise do capitalismo.

• Do ponto de vista do materialismo histórico, a luta de classes impulsiona a mudança estrutural na sociedade, por isso é vista como o motor da história, ou seja, essencial à superação dialética das contradições existentes no capitalismo, e só pode ocorrer a partir do desenvolvimento da consciência de classe.

• Para entender a força da sociedade de classes no período em que viveu, Marx se debruçou sobre o estudo do surgimento, evolução e superação do capitalismo a partir da destruição da sociedade feudal. Ele queria compreender como a burguesia conseguiu modificar a organização produtiva feudal para impor o modo de produção capitalista.

• Marx reconhece uma fase intermediária, uma fase de transição, entre os modelos capitalista e comunista. Após seu falecimento são registrados dois grupos de socialistas: os socialistas revolucionários (achavam que o caminho seria a revolução armada) e os socialistas reformistas ou social-democratas (defendiam um caminho por eleições e reformas graduais).

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1 Os conceitos de classes sociais e de luta de classes permeiam toda a obra de Karl Marx. Sobre ambos, analise as seguintes sentenças:

I– As classes sociais surgem com a sofisticação da organização social, pois enquanto esta era simples e dependia apenas da extração da natureza, não havia exploração do trabalho do outro.II– A polaridade presente nas análises do autor define-se em duas grandes classes sociais: burguesia e classe média.III– A única formação histórica que apresenta a divisão de classes sociais é o sistema capitalista, as outras não apresentavam divisões de classe.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.c) ( ) Somente as afirmativas II e III estão corretas.d) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas.

2 Marx reconhece uma fase intermediária, uma fase de transição, entre os modelos capitalista e comunista: o socialismo. Sobre os modelos socialista e comunista, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I– Modelo Socialista Revolucionário.II– Modelo Socialista Social-democrata.III– Modelo Comunista.

( ) Neste modelo, as condições de existência seriam apropriadas socialmente, e não haveria distinção entre privado e coletivo.

( ) Este modelo defende um caminho de mudança por eleições e reformas graduais para implantação do socialismo.

( ) Este modelo defende a revolução armada como forma de implantação de um novo modelo econômico.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – III.b) ( ) I – III – II.c) ( ) III – II – I.d) ( ) II – I – III.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e metodológicas do pensamento sociológico de Max Weber;

• examinar as principais contribuições da teoria da ação social de Max Weber para a teoria sociológica clássica;

• sistematizar os conceitos principais da obra de Max Weber;

• analisar os desdobramentos da teoria sociológica de Weber para a sociologia com base em temas cuja influência, nas formas de análise, persiste nas interpretações contemporâneas.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER

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TÓPICO 1

A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER:

TEORIA E MÉTODO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOChegamos ao nosso último tópico de estudos da teoria sociológica

clássica, no qual iremos tratar sobre as obras e teorias do autor Max Weber. Não diferente de Durkheim e Marx, Weber legou um grande arcabouço conceitual e metodológico para a área das Ciências Sociais — o que era inclusive uma preocupação dele. Segundo Weber, era muito importante definir as bases conceituais e metodológicas da sociologia para consolidá-la como ciência, e todo o material produzido por ele, neste sentido, é essencial até os dias atuais. Há muitos pesquisadores que reinterpretam e buscam em Weber o entendimento para aspectos da ordem social contemporânea.

Sua vasta obra será apresentada neste tópico e seu aprofundamento dependerá de você! Para tal — assim como nos tópicos anteriores — há obras do autor sugeridas, bem como artigos de interpretações que tratam sobre Weber. Aproveite este material complementar de acordo com seus interesses, e conheça ainda mais sobre a teoria sociológica weberiana.

De início, conheceremos o contexto de vida do autor para, então, nos aprofundarmos no estudo sobre sua teoria sociológica compreensiva. Você poderá identificar as influências que estimularam o pensamento de Weber, e o funcionamento das explicações sociológicas do autor a partir da ideia de compreensão. Em seguida, seu estudo será direcionado ao chamado individualismo metodológico — por meio do qual Weber define o método de análise da sociologia —, baseado nas ações sociais do indivíduo. Por último serão apresentadas as relações entre a objetividade e o desenvolvimento do conhecimento, e a postura necessária ao pesquisador para que a objetividade no estudo dos fenômenos sociais seja atingida — garantindo o rigor científico nas pesquisas sociais.

Este tópico inicial pretende apresentar as bases da teoria e metodologia propostas por Weber, para que no segundo tópico você adentre em seu mundo conceitual. Reforço a importância dos estudos complementares para o entendimento da teoria sociológica do autor que, não à toa, é considerado um clássico em nossa área de estudos. Desejo uma ótima leitura!

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UNIDADE 3 | A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

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2 VIDA E OBRAPara iniciarmos nossos estudos sobre Weber, vamos contextualizar sua

vida:

O sociólogo alemão Max Weber nasceu em Erfurt, em 21 de abril de 1864. Filho de um advogado, Weber realizou seus estudos em Heidelberg, a partir do ano de 1882. Embora tivesse seguido a carreira jurídica, também estudava filosofia, teologia, história e economia. Em 1889, ele terminou seus estudos, tendo obtido o doutorado em Direito no ano de 1891, quando defendeu sua tese.Terminada a fase de estudos, Weber passa a se dedicar à docência universitária. Foi professor de Direito em Berlim (1891-1893), de economia política em Friburgo (1895) e, finalmente, também de economia política em Heidelberg (1896).No ano de 1897, Weber foi acometido de uma crise nervosa, que durou até 1902. Somente neste ano ele vai retomando, aos poucos, seu trabalho. Em 1903, ajuda a fundar o “Arquivo para a ciência social e a ciência política”, que se tornou uma das principais revistas de ciências sociais. Em 1904, Weber fará uma viagem de estudos para os Estados Unidos, que vai influenciar diretamente sua reflexão sobre o capitalismo. É a partir deste período que Weber passa a se interessar mais diretamente pela sociologia.Em 1907, o pensador alemão recebe uma herança que permite que ele se dedique apenas às suas atividades de pesquisa. Sua casa torna-se um centro frequentado por intelectuais de renome, como Georg Lukács, Georg Simmel e outros. Em 1908, Weber ajuda a fundar a associação alemã de sociologia. Durante a primeira guerra mundial (1914-1917), administra alguns hospitais da região de Heidelberg. Em 1918, aceita uma cátedra na Universidade de Munique. Weber ainda participa da redação da nova Constituição Germânica que funda a República da Alemanha (chama de Constituição de Weimar, cidade onde foi redigida). Seu falecimento ocorreu no ano de 1920, na cidade de Munique.Entre os escritos de Max Weber, além de textos sociológicos, aparecem obras de epistemologia, história, direito e economia (SELL, 2002, p. 96).

FIGURA 1 – MAX WEBER

FONTE: <https://www.mundociencia.com.br/sociologia/max-weber/>. Acesso em: 7 jan. 2019.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

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DICAS

Assim como já indicado nas unidades anteriores, acerca dos outros clássicos, temos uma excelente síntese sobre a vida de Weber e alguns textos fundamentais na obra Weber: Sociologia — da coleção Grandes Cientistas Sociais. Coordenada por Florestan Fernandes e organizada por Gabriel Cohn, foi publicada em várias edições pela Editora Ática.

FONTE: <ht tps : / /encrypted- tbn0.gstat ic .com/images?q=tbn:ANd9GcTy-lpvFZbQRUItpSnlGioUgi7u3u2zHJItGbWZlRg_S44SatajYQ>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Agora que já conhecemos um pouco sobre a vida de Max Weber, vamos iniciar nossos estudos sobre sua tão vasta obra — extremamente importante para os estudos sociológicos. Bons estudos!

3 BASES DA SOCIOLOGIA COMPREENSIVAVamos começar contextualizando a produção da obra de Weber. A partir

de sua biografia já é possível compreender que o período em que ele viveu esteve repleto de discussões filosóficas e intelectuais. Mas o que importa destacar é que o positivismo e seus críticos possuíam a maior parte dos holofotes nestes debates, na medida em que se buscava entender a especificidade das ciências da natureza e das chamadas ciências do espírito (humanas), especialmente quanto aos valores envolvidos, à possibilidade da identificação de leis, e aos métodos de ambas.

Weber inevitavelmente participa dos debates sobre o positivismo, e desenvolve boa parte de sua teoria sociológica neste contexto. Ela é chamada de Teoria Sociológica Compreensiva. Você já parou para pensar ou pesquisar o porquê deste nome? Veremos ao longo desta seção.

Sell (2002) destaca as correntes teóricas que influenciaram o pensamento de Weber:

• Filosofia clássica: Kant, pela afirmação de que o conhecimento não capta a essência da realidade, apenas os fenômenos que nos são transmitidos por meio dos sentidos; e Nietszche com sua visão pessimista da sociedade moderna.

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UNIDADE 3 | A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

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• Filósofos neokantianos: Dilthey, Windelband e Rickert, pela insistência na necessidade da distinção entre as ciências da natureza e as características das ciências sociais.

• Pensamento social alemão: Tönnies, Simmel, Sombardt e Troeltsch, a partir da retomada de diferentes ideias, trazidas por este autor, denotando que Weber (embora seja o maior expoente alemão) não era um autor isolado.

Além destas influências, o contexto histórico é notável nas obras de Weber: um momento de expansão do capitalismo industrial; a unificação dos territórios germânicos realizada por Otto von Bismarck (1870); o governo centralizador e burocrata que foi implantado a partir de então; enfim, o papel do Estado como líder da industrialização econômica e o aumento da burocracia aparecem com frequência como tema de seus escritos — influenciando toda a sua obra.

Weber apresenta uma teoria sociológica diferenciada se comparada à perspectiva positivista de Comte e Durkheim, por exemplo, e mesmo à perspectiva do materialismo histórico-dialético de Marx. Ele apresenta o primado do sujeito, e não o primado do objeto.

Se para Durkheim as explicações sociológicas deveriam orientar-se pela externalidade, pela objetividade, e para Marx deveriam orientar-se pelo modo de produção da sociedade, aspectos econômicos, em Weber a ênfase é no indivíduo como elemento fundante da realidade social. Para ilustrar, vejamos:

FIGURA 2 – REPRESENTAÇÃO DA RELAÇÃO INDIVÍDUO X SOCIEDADE PARA WEBER

SOCIEDADE

INDIVÍDUO

FONTE: A autora (2018)

Dada a força do pensamento positivista na época, a perspectiva trazida por Weber foi bastante inovadora para as ciências sociais. Trata-se de um novo caminho de interpretação, que modifica pilares da epistemologia e propõe novas formas metodológicas para a sociologia, mais diretamente.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

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Uma primeira questão enfrentada por Weber, importante para a epistemologia das ciências sociais, partiu da discussão neokantiana sobre o uso dos mesmos métodos nas ciências da natureza e nas ciências sociais. O positivismo defendia o uso dos mesmos métodos, e os neokantianos pensavam diferente. Weber também compartilhava desta última posição (SELL, 2002).

Weber não concordava com a busca por leis sociais defendida pelo positivismo, que era o que justificava a unicidade entre os métodos das ciências naturais e os métodos das ciências sociais. “Por isso, a preocupação básica dos críticos do positivismo era apontar quais eram os aspectos que diferenciavam as ciências sociais das ciências da natureza, ao mesmo tempo em que buscavam para elas um novo método” (SELL, 2002, p. 102).

Para entender os debates que rodearam o desenvolvimento da obra de Weber sobre as bases de sua teoria sociológica, vamos manter e apresentar a diferenciação desenvolvida por Sell (2002), com base na maneira pela qual os neokantianos influenciaram o pensamento weberiano: Dilthey, Windelband e Rickert.

Dilthey defendia que a diferença principal entre as ciências da natureza e as ciências sociais consistia no fato de que seus objetos de estudo são diferentes. Em função disso, a relação com o objeto é diferenciada: nas ciências da natureza temos um objeto exterior, enquanto nas ciências sociais a humanidade é objeto e sujeito ao mesmo tempo – já que faz parte do mundo da cultura. Em função disso, as ciências naturais partem do princípio da explicação, enquanto as ciências sociais partem do princípio da compreensão. “Enquanto a explicação consiste na busca de leis causais, a compreensão implica um mergulho empático no espírito dos agentes históricos em busca do sentido de sua ação” (SELL, 2002, p. 102). Vejamos a síntese do pensamento de Dilthey:

FIGURA 3 – SÍNTESE DO PENSAMENTO DE DILTHEY

FONTE: Sell (2002, p. 103)

Windelband apresentava a diferenciação pelo método, e não pelo objeto de estudos. Ele diferenciava as ciências que utilizam o método nomotético, e o método ideográfico. “Enquanto o método nomotético está orientado para a construção de leis gerais, o método ideográfico visa destacar a individualidade e a singularidade de um determinado fenômeno” (SELL, 2002, p. 103). Desta maneira, ele rejeitava a busca por leis gerais para as ciências sociais, e sim um estudo mais detido de um fenômeno em específico. Vejamos a síntese de seu pensamento:

DILTHEY OBJETO MÉTODO

Ciências da natureza Natureza Explicação

Ciências sociais Sociedade (homem)

Compreensão(verstehen)

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FIGURA 4 – SÍNTESE DO PENSAMENTO DE WINDELBAND

FONTE: Sell (2002, p. 103)

Por último temos Rickert, também diferenciando as ciências sociais e naturais a partir do método. Nas ciências sociais, segundo ele, existe uma relação intrínseca com os valores, coisa que as ciências naturais não apresentam. A seleção de objetos passa, necessariamente, pelos valores culturais e interesses pessoais do pesquisador (SELL, 2002). Esta ideia é retomada por Weber para tratar da subjetividade inerente aos processos de investigação social.

Em meio a estes debates, Weber critica o positivismo, mas também não defende uma separação total, já que entende a busca por leis como um instrumento para compreensão da realidade útil para que as ciências sociais não caiam no subjetivismo: “Para Weber, portanto, os dois procedimentos (explicação causal e compreensão) são complementares, devendo ser usados pelo pesquisador conforme as finalidades da pesquisa” (SELL, 2002, p. 104).

Weber apresenta esta proposta para as ciências sociais, do uso do método de acordo com as possibilidades de explicação dos fenômenos. Vejamos:

Para Weber, o sociólogo deve saber integrar estes dois métodos (individualizante e generalizante) nas suas pesquisas. Assim, pelo método individualizante, o cientista social seleciona os dados da realidade que deseja pesquisar, destacando a singularidade e os traços que definem seu objeto. Ao estudar o capitalismo, por exemplo, Weber procurou distinguir os elementos que definem este sistema e o diferenciam de outras formas de comportamento econômico. Trata-se do uso do método individualizante, que procura dirigir sua atenção para os caracteres qualitativos e singulares de qualquer fenômeno. Mas, ao pesquisar a origem do capitalismo, Weber vai utilizar do método generalizante o princípio da causalidade, que busca estabelecer relações entre os fenômenos. Nas pesquisas sobre o capitalismo, para voltar ao nosso exemplo, Weber se pergunta de que forma as ideias e o modo de vida dos protestantes (ética protestante) podem ser considerados como uma das causas fundamentais na origem do moderno sistema econômico capitalista (SELL, 2002, p. 104).

Sell (2002) destaca ainda que, para Weber, a finalidade das ciências sociais não deve ser de encontrar leis científicas, pois elas são apenas probabilidades de que determinadas situações ocorram de maneira esperada. O método

WINDELBAND MÉTODO OBJETIVO

Ciências da natureza

Método nomotético Leis gerais

Ciências sociais Método ideográfico

Singularidade dos fenômenos

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

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generalizante nas ciências sociais, portanto, não deve buscar um sistema de leis para identificar que fenômenos ocorram sempre da mesma forma, mas serve como método que propicie a objetividade científica — na medida em que auxilia no estabelecimento de relações entre os fenômenos.

Para finalizar, Sell (2002) apresenta uma síntese dos debates que influenciaram Weber na elaboração de sua teoria sociológica:

FIGURA 5 – SÍNTESE DEBATES CIÊNCIAS DA NATUREZA X CIÊNCIAS SOCIAIS

FONTE: Sell (2002, p. 106)

IMPORTANTE

Você deve recordar que a essência da discussão epistemológica de Weber está direcionada para todo este debate apresentado, o qual envolve diferentes autores. O essencial é compreender que a discussão se dá para a delimitação das especificidades entre as ciências da natureza e as ciências sociais, seja com propostas que fazem pelo objeto de estudo ou com propostas que pensam o método como diferenciação. E, para Weber, a finalidade da pesquisa não é a elaboração de leis, e sim a utilização dos métodos individualizante e generalizante — de acordo com as características e necessidades da pesquisa.

POSITIVISTAS

As ciências da natureza e as ciências sociais possuem o mesmo método.

NEO-KANTIANOS

As ciências da natureza e as ciências sociais possuem métodos diferentes.

MAX WEBER

Crítica aos positivistas: a realidade é infinita. Logo, não pode ser explicada totalmente a partir de leis científicas.

Crítica aos neo-kantianos: a sociologia deverá fazer uso dos dois métodos, dependendo da finalidade da pesquisa.

Todavia, nas ciências sociais, as "leis" são apenas probabilidade de ação social. São um meio e não a finalidade da pesquisa.

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4 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICOWeber, como vimos, apresenta uma visão diferenciada do positivismo

quando pensa a relação entre as ciências sociais e as ciências naturais. Relembrando: não defende que seja preciso a obtenção de leis gerais nas análises sociais, conforme ditava o positivismo, mas sim o uso dos métodos generalizante e individualizante de acordo com as características do objeto em estudo.

Ele se diferencia também, do positivismo, no modo de pensar os fundamentos da relação entre indivíduo e sociedade, conforme antecipado na seção anterior. Inaugura o chamado primado do sujeito, sugerindo que este seja o elemento central das análises de sociólogos — e não apenas os fenômenos externos a ele (conforme autores positivistas).

A unidade básica da explicação sociológica é, para Weber, o indivíduo — que ele compara a um átomo na sociologia interpretativa. Para entender unidades maiores como o Estado, uma associação, o capitalismo etc., é preciso analisar as interações humanas ali existentes (relações sociais) e para isso a sociologia reduziria os conceitos à ação compreensível, que são os atos dos indivíduos participantes destas relações.

Se, para Durkheim, a sociedade é superior ao indivíduo, poderíamos dizer que para Weber, o indivíduo é o fundamento da sociedade. Esta afirmação vai muito além do fato de que uma sociedade não existe sem indivíduos. A existência da sociedade somente se realiza pela ação e interação recíprocas entre as pessoas (SELL, 2002, p. 107).

A partir das interações mencionadas existem as estruturas coletivas como família, grupo, Estado etc., e então, para a análise destas instituições, o ponto de partida seria a ação dos indivíduos (daí a importância do conceito de ação em sua obra) e, por isso, que ele é individualista quanto ao método.

A possibilidade do sociólogo de compreender as instituições sociais, portanto, passa pela análise do comportamento dos indivíduos. “Tudo o que existe na sociedade, seus grupos, instituições e comportamentos, são fruto da vontade e da atividade dos homens. Por isso, não faz sentido compreendê-los sem resgatar o sentido contido em cada elemento da sociedade” (SELL, 2002, p. 108).

Para Weber, é essencial retornar à gênese de cada instituição para compreender qual foi a atividade que deu importância para sua existência, e as razões pelas quais continuaram a existir. Por isso a análise deve se deter nas ações individuais, que originaram as instituições e que as mantêm até o momento da investigação.

Segue uma análise mais detida sobre as influências que geraram em Weber a proposta do individualismo metodológico e suas características:

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Max Weber incorporou o problema da compreensão em sua abordagem sociológica que, como ressaltava, era um tipo de Sociologia, entre outros tipos possíveis. Portanto, chamou sua perspectiva de Sociologia “interpretativa” ou “compreensiva”. É característico de sua posição racional e positivista o fato de ter ele transformado o conceito de compreensão, que continuou sendo para Weber uma abordagem excepcional das Ciências Morais ou Culturais que tratam do homem, e não dos outros animais ou da natureza inanimada. O homem pode “compreender” ou procurar “compreender” suas próprias intenções pela introspecção, ou pode interpretar os motivos da conduta de outros homens em termos de suas intenções professadas ou atribuídas.Weber distingue diferentes “tipos” de ações motivados. Considera, caracteristicamente, como do tipo mais “compreensivo” as ações que estão na natureza da adequação racional, e dos quais a conduta do “homem econômico” constitui exemplo destacado.As ações menos racionais são exemplificadas por Weber em termos da busca de “fins absolutos”, fluindo de sentimentos afetivos ou dos elementos “tradicionais”. Como os fins absolutos devem ser tomados pelo sociólogo como elementos “dados”, uma ação pode ser racional em relação aos meios empregados, mas irracional em relação aos fins visados. A ação “afetiva”, que nasce puramente do sentimento, é um tipo de conduta menos racional. E finalmente, aproximando-se do nível “instintivo”, há a conduta “tradicional”: irrefletido e habitual, esse tipo é sancionado porque “sempre foi feito assim”, sendo, portanto, considerado como a conduta adequada. Tais tipos de “ações” são construídos operacionalmente em termos de uma escala de racionalidade e irracionalidade. Um recurso tipológico, e não uma “psicologia” da motivação, é assim descrito. Essa abordagem nominalista, com sua ênfase sobre as relações racionais de fins e meios como a forma mais “compreensível” de conduta, distingue a obra de Weber do pensamento conservador e sua “compreensão” documental, assimilando a singularidade de um objeto a um todo espiritualizado. Não obstante, dando destaque à incompreensibilidade da conduta humana, em oposição à simples explicação causal dos “fatos sociais” como ocorre na Ciência Natural, Weber traça uma linha entre sua Sociologia interpretativa e a physique sociale na tradição de Condorcet, que Comte chamou de sociologia e Durkheim desenvolveu de modo tão destacado. Já se observou acertadamente que os tipos básicos de estrutura social usados por Weber — “sociedade”, “associação” e “comunidade” — correspondem intimamente aos seus “tipos de ação” — o “racionalmente adequado”, o “afetivo”, e o “tradicionalista”. Se aceitássemos as reflexões metodológicas que Weber faz sobre seu próprio trabalho pelo valor aparente que encerram, não encontraríamos nelas uma justificação sistemática de sua análise de fenômenos como a estratificação ou o capitalismo. Tomado literalmente, o “método de compreensão” dificilmente lhe permitiria o uso de explicações estruturais, pois elas tentam justificar a motivação dos sistemas de ação pelas suas funções como estruturas funcionais e não pelas intenções subjetivas dos indivíduos que as praticam.Segundo o método de compreensão de Weber, devemos esperar que ele siga uma teoria subjetiva de estratificação, mas isso não ocorre. Da mesma forma, podemos assinalar a refutação, por Weber, de um lugar-comum alemão sobre os Estados Unidos como uma nação de “indivíduos atomizados” : “No passado e até o presente, foi uma característica precisamente da democracia especificamente americana o fato de não constituir ela um monte informe de indivíduos, mas um

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animado complexo de associações rigorosamente exclusivas, embora voluntárias”. Weber vê a tendência para a democracia ateniense como sendo determinada pela modificação na organização militar: a democracia surgiu quando o exército dos hoplitas, mais antigo, deu lugar ao navalismo. Explicações estruturais semelhantes são reveladas na forma pela qual ele liga a difusão das burocracias à tarefa de administrar grandes impérios interiores como Roma e China, Rússia e os Estados Unidos.Ao usar o princípio de explicação estrutural, Weber aproxima-se do processo analítico do pensamento marxista, que, de uma forma “desespiritualizada”, utiliza o modo de pensar originalmente hegeliano e conservador. Na sua ênfase metodológica sobre a compreensão do indivíduo como a unidade final de explicação, Weber polemiza contra o pensamento organicista dos conservadores, e também com o uso marxista de significados objetivos de ação social, a despeito da consciência do agente (MILLS; GERTH, 1946, p. 73).

DICAS

Para avançar no entendimento do individualismo metodológico, acesse o artigo de Sell que trata especificamente sobre a discussão acerca desta temática. Está disponível no link: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/22167. A referência completa é: SELL, C. E. Max Weber e o átomo da sociologia: um individualismo metodológico moderado? Civitas: Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, vol. 16, n. 2, p. 323-347, abr.– jun. 2016.

5 OBJETIVIDADE E CONHECIMENTOJá é possível perceber, a partir do estudo das bases que influenciaram o

desenvolvimento da teoria sociológica compreensiva, que Weber se preocupou em entender como o sujeito pesquisador — que também é objeto na medida em que faz parte de grupos sociais — pode garantir que os resultados de suas pesquisas científicas não estejam “contaminados” com seus valores pessoais. Em sua obra, esta preocupação aparece sendo chamada de objetividade do conhecimento.

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DICAS

A coleção Ensaios Comentados da Editora Ática, que já apresentei a você na primeira unidade deste livro de estudos, publicou o texto A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais, em 2006. O trecho anteriormente destacado é um excerto deste texto, portanto, recomendado para todo estudante da área de Ciências Sociais.

FONTE:<https://images.livrariasaraiva.com.br/imagemnet/imagem.aspx/?pro_id=1642130&qld=90&l=430&a=-1>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Outra obra que apresenta discussões sobre a objetividade necessária ao cientista social, e a distinção entre a ciência (objetiva) e a política (valores) do pesquisador é o livro Ciência e Política: duas vocações. Há várias edições no Brasil, publicadas pela Editora Cultrix.

FONTE:<http://statics.livrariacultura.net.br/products/capas_lg/347/60347.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

O cientista precisa, para Weber, estar capacitado para poder cumprir seu dever científico e ver a realidade dos fatos, diferenciando sua defesa pelos seus valores em seu aspecto mais político. “Enquanto a ciência é um produto da reflexão do cientista, a política o é do homem de vontade e de ação, ou do membro de uma classe que compartilha com outras ideologias e interesses” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 98).

É necessário que haja uma distinção clara entre os julgamentos de valor e o saber empírico levantado pelo cientista. Ele deve analisar os problemas e sugerir soluções, mas o significado que dá a isso diz respeito ao significado que dá a estes problemas e objetos, ou seja, seu julgamento valorativo.

Destaca-se também que Weber reconhece que as ciências humanas estão relacionadas a valores, já que os valores pessoais e a cultura do pesquisador são um quadro que move suas pesquisas de acordo com interesses pessoais. O

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interesse de um sociólogo brasileiro certamente será diferente do interesse de um sociólogo francês, por exemplo. No entanto, nem por isso a ciência sociológica cai no relativismo.

Para que isto não aconteça, ele entende que a ciência deve distinguir juízos de fato e juízos de valor. “Isto implicava afirmar que, se o sociólogo era movido por seus valores na hora de definir seu objeto, na condução da pesquisa, todas as considerações pessoais do autor (seus juízos de valor ou axiológicos) deveriam ser colocadas de lado” (SELL, 2002, p. 132).

Na sua atuação em pesquisa, o sociólogo deveria apenas trabalhar com os juízos de fato. Independentemente do problema ético ou político, as ciências sociais deveriam ser neutras. Neste caso, portanto, Weber indica uma separação entre teoria e prática, quando as ciências deveriam indicar dados empíricos, apenas, e não definições práticas.

Esta postura é indicada pela ideia de neutralidade axiológica, quando há separação entre os teóricos e os movimentos políticos.

Se, por um lado, esta postura permitiu aos sociólogos uma maior profissionalização de sua ciência (já que suas questões são essencialmente teóricas), ao isolar a ciência da política, Weber deixou as ciências humanas expostas ao perigo de tornarem-se ideologias de justificação da ordem estabelecida, na medida em que elas estão impedidas de fornecer ou apontar alguma solução prático-política para as questões sociais (SELL, 2002, p. 133).

A ciência deve ser altamente racional, e o saber empírico deve ser buscado por métodos e instrumentos adequados, e, ao propor soluções para um problema, o cientista deve indicar todas as possibilidades, não dizendo o que deve ser feito — mas o que é possível. Exemplo de Weber para tal situação:

Hoje falamos habitualmente da ciência como “livre de todas as pressuposições”. Haverá tal coisa? Depende do que entendemos por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as regras da lógica do método são válidas; são as bases gerais de nossa orientação no mundo; e, pelo menos para nossa questão especial, essas pressuposições são o aspecto menos problemático da ciência. A ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico é importante no sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto estão encerrados todos os nossos problemas, evidentemente, pois esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos - só pode ser interpretada com referência ao seu significado último, que devemos rejeitar ou aceitar, segundo a nossa posição última em relação à vida. [...] A “ressuposição” geral da Medicina é apresentada trivialmente na afirmação de que a Ciência Médica tem a tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento na medida máxima de suas possibilidades. Se a vida vale a pena ser vivida e quando - esta questão não é indagada pela Medicina (WEBER, 1979, p. 170-171 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 99).

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

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Nesta discussão sobre ciência e valores, Weber indaga como é possível atingir a objetividade do conhecimento, se os valores estarão sempre presentes no cientista. Ele afirma que é possível atingir esta objetividade desde que exista consciência destes valores e que eles sejam controlados por meio dos procedimentos de análise, ou seja, que o rigor científico seja buscado a partir das metodologias científicas.

Para isto Weber aplica sua ideia de tipo ideal, entendendo que é uma metodologia que pode auxiliar na manutenção do rigor metodológico. Vejamos como:

A ação do cientista é seletiva. Os valores são um guia para a escolha de um certo objeto pelo cientista. A partir daí ele definirá uma certa direção para a sua explicação e os limites da cadeia causal que ela é capaz de estabelecer, ambos orientados por valores. As relações de causalidade, por ele construídas na forma de hipóteses, constituirão um esquema lógico-explicativo cuja objetividade é garantida pelo rigor e obediência aos cânones do pensamento científico. O ponto essencial a ser salientado é que o próprio cientista é quem atribui aos aspectos do real e da história que examina uma ordem através da qual procura estabelecer uma relação causal entre certos fenômenos. Assim produz o que se chama tipo ideal (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 99).

Há, portanto, uma questão ética, necessária ao cientista, pois precisa manter a verdade científica por meio da racionalidade com relação às suas finalidades — e manter-se racional com relação a valores, buscando evidências e não apenas reforçando algum posicionamento que já tenha a partir de seu conjunto moral.

Barbosa, Oliveira e Quintaneiro (2002, p. 110) apresentam a forma pela qual Weber entende que é possível manter esta racionalidade e, por consequência, esta objetividade com relação ao conhecimento tão necessária ao processo científico de análise:

Dada a sua complexidade, a discussão realizada por Weber sobre a objetividade das ciências sociais merece uma consideração cuidadosa. Segundo o autor, para chegar ao conhecimento que pretende, o cientista social efetua quatro operações: 1) estabelece leis e fatores hipotéticos que servirão como meios para seu estudo; 2) analisa e expõe ordenadamente “o agrupamento individual desses fatores historicamente dados e sua combinação concreta e significativa”, procurando tornar inteligível a causa e natureza dessa significação; 3) remonta ao passado para observar como se desenvolveram as diferentes características individuais daqueles agrupamentos que possuem importância para o presente e procura fornecer uma explicação histórica a partir de tais constelações individuais anteriores, e 4) avalia as constelações possíveis no futuro.Weber endossa o ponto de vista segundo o qual as ciências sociais visam a compreensão de eventos culturais enquanto singularidades. O alvo é, portanto, captar a especificidade dos fenômenos estudados e seus significados. Mas sendo a realidade cultural infinita, uma investigação exaustiva, que considerasse todas as circunstâncias ou

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variáveis envolvidas num determinado acontecimento, torna-se uma pretensão inatingível. Por isso, o cientista precisa isolar, da “imensidade absoluta, um fragmento ínfimo”: que considera relevante. O critério de seleção operante nesse processo está dado pelo significado que certos fenômenos possuem, tanto para ele como para a cultura e a época em que se inserem. É a partir da consideração de ambos os registros que será possível o ideal de objetividade e inteligibilidade nas ciências sociais. Pode-se dizer, então, que o particular ou específico não é aquilo que vem dado pela experiência, nem muito menos o ponto de partida do conhecimento, mas o resultado de um esforço cognitivo que discrimina, organiza e, enfim, abstrai certos aspectos da realidade na tentativa de explicar as causas associadas à produção de determinados fenômenos. Mas o método de estudo de que se utiliza baseia-se no estado de desenvolvimento dos conhecimentos, nas estruturas conceituais de que dispõe e nas normas de pensamento vigentes, o que lhe permite obter resultados válidos não apenas para si próprio. Existe uma grande diferença entre conferir significado à realidade histórica por meio de ideias de valor e conhecer suas leis e ordená-la de acordo com conceitos gerais e princípios lógicos, genéricos. Mas a explicação do fato significativo em sua especificidade nunca estará livre de pressupostos porque ele próprio foi escolhido em função de valores. Com isso, Weber rejeita a possibilidade de uma ciência social que reduza a realidade empírica a leis. Para explicar um acontecimento concreto, o cientista agrupa uma certa constelação de fatores que lhe permitam dar sentido a esta realidade particular.Weber procura demonstrar que conceitos muito genéricos, extensos, abrangentes ou abstratos, são menos proveitosos para o cientista social por serem pobres em conteúdo, logo, afastados da riqueza da realidade histórica. Portanto, a tentativa de explicar tais fenômenos por meio de “leis” que expressem regularidades quantificáveis que se repetem não passa de um trabalho preliminar, possivelmente útil. Os fenômenos individuais são um conjunto infinito e caótico de elementos cuja ordenação é realizada a partir da significação que representam e por meio da imputação causal que lhe é feita. Logo, a) o conhecimento de leis sociais não é um conhecimento do socialmente real, mas unicamente um dos diversos meios auxiliares que o nosso pensamento utiliza para esse efeito e, b) porque nenhum conhecimento dos acontecimentos culturais poderá ser concebido senão com base na significação que a realidade da vida, sempre configurada de modo individual, possui para nós em determinadas relações singulares.O princípio de seleção dos fenômenos culturais infinitamente diversos é subjetivo, já que apenas o ponto de vista humano é capaz de conferir-lhes sentido, assim como de proceder à imputação de causas concretas e adequadas ou objetivamente possíveis, destacando algumas conexões, construindo relações, e elaborando ou fazendo uso de conceitos que pretendem ser fecundos para a investigação empírica, embora inicialmente imprecisos e intuídos. Isto vai permitir “tomar consciência não do que é genérico, mas, muito pelo contrário, do que é específico a fenômenos culturais”. A resposta para o problema da relação entre a objetividade do conceito puro e a compreensão histórica encontra-se na elaboração dos tipos ideais, através dos quais busca-se tornar compreensível a natureza particular das conexões que se estabelecem empiricamente.

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TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE MAX WEBER: TEORIA E MÉTODO

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É por meio do conceito de tipo ideal, portanto, que Weber propõe um instrumento que possa auxiliar o pesquisador a manter-se no campo da objetividade. Este conceito será estudado de maneira mais aprofundada no próximo tópico — que apresentará o arcabouço conceitual de Weber. Para encerrar este tema, nas palavras do próprio Weber, vamos conhecer suas ideias sobre estes princípios de seleção necessários ao pesquisador:

Disso resulta que todo o conhecimento da realidade cultural é sempre um conhecimento subordinado a pontos de vista especificamente particulares. Quando exigimos do historiador ou do sociólogo a premissa elementar de saber distinguir entre o essencial e o secundário, de possuir para esse fim os “pontos de vista” necessários, queremos unicamente dizer que ele deverá saber referir — consciente ou inconscientemente — os elementos da realidade a “valores culturais” universais e destacar aquelas conexões que para nós se revistam de significado. E se é frequente a opinião de que tais pontos de vista poderão ser “deduzidos da própria matéria”, isto apenas se deve à ingênua ilusão do especialista que não se dá conta de que — desde o início e em virtude das ideias de valor com que inconscientemente abordou o tema — destacou da imensidade absoluta um fragmento ínfimo, e particularmente aquele cujo exame lhe importa.A propósito desta seleção de “aspectos” especiais e individuais do devir, que sempre e em todos os casos se realiza consciente ou inconscientemente, reina também essa concepção do trabalho científico-cultural que constitui a base da tão repetida afirmação de que o elemento “pessoal” é o que verdadeiramente confere valor a uma obra científica. Ou seja, de que qualquer obra deveria exprimir uma “personalidade” paralelamente a outras qualidades.Por certo que sem as ideias de valor do investigador não existiria qualquer princípio de seleção nem conhecimento sensato do real singular e, assim como, sem a crença do pesquisador na significação de um conteúdo cultural qualquer resultaria completamente desprovido de sentido todo o estudo do conhecimento da realidade individual, também a orientação da sua convicção pessoal e a difração dos valores no espelho da sua alma conferem ao seu trabalho uma direção. E os valores a que o gênio científico refere os objetos da sua investigação poderão determinar a “concepção” que se fará de toda uma época. Isto é, não só poderão ser decisivos para aquilo que, nos fenômenos, se considera “valiosos”, mas ainda para o que passa por ser significativo ou insignificante, “importante” ou “secundário”.O conhecimento científico-cultural tal como o entendemos encontra-se preso, portanto, a premissas “subjetivas” pelo fato de apenas se ocupar daqueles elementos da realidade que apresentem alguma relação, por muito indireta que seja, com os acontecimentos a que conferimos uma significação cultural. Apesar disso, continua naturalmente a ser um conhecimento puramente causal, exatamente como o conhecimento de eventos naturais individuais importantes, que têm caráter qualitativo (WEBER, 2003, p. 97).

Finalizando este tópico sobre a teoria sociológica de Weber, segue uma sugestão de vídeo, e seguimos para o próximo tópico, cujo foco de estudo está direcionado para os principais conceitos das obras weberianas.

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DICAS

Para se aprofundar no último dos autores clássicos, segue o link do último vídeo produzido pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo – UNIVESP: Clássicos da Sociologia: Max Weber, disponível na plataforma Youtube. Você poderá acessá-lo em: https://www.youtube.com/watch?v=ea-sXQ5rwZ4.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Em Weber a ênfase é no indivíduo como elemento fundante da realidade social.

• Uma primeira questão enfrentada por Weber partiu da discussão neokantiana sobre o uso dos mesmos métodos nas ciências da natureza e nas ciências sociais. Weber não concordava com a busca por leis sociais defendida pelo positivismo, que era o que justificava a unicidade entre os métodos das ciências naturais e os métodos das ciências sociais.

• Para Weber, a finalidade de pesquisa não é a elaboração de leis, e sim a utilização dos métodos individualizante e generalizante — de acordo com as características e necessidades da pesquisa.

• A unidade básica da explicação sociológica é, para Weber, o indivíduo — que ele compara a um átomo na sociologia interpretativa.

• Para Weber é essencial retornar à gênese de cada instituição para compreender qual foi a atividade que deu importância para sua existência, e as razões pelas quais continuaram a existir. Por isso, a análise deve se deter nas ações individuais, que originaram as instituições e que as mantêm até o momento da investigação.

• Weber indaga como é possível atingir a objetividade do conhecimento, se os valores estarão sempre presentes no cientista. Ele afirma que é possível atingir esta objetividade, desde que exista consciência destes valores e que eles sejam controlados por meio dos procedimentos de análise e da neutralidade axiológica, ou seja, que o rigor científico seja buscado a partir das metodologias científicas. Para isto utiliza seu conceito de tipo ideal.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Weber recebeu diferentes influências na elaboração de seu pensamento sociológico, sobretudo dos pensadores neokantianos. Sobre as ideias desenvolvidas por Weber a partir das discussões teóricas e metodológicas destes autores, analise as seguintes sentenças:

I – Weber indica que nas ciências sociais as leis científicas são possibilidades de ações sociais, um meio e não a finalidade da pesquisa. II – Weber reafirmava a importância da busca por leis sociais para que as ciências sociais igualassem seus métodos com as ciências naturais.III – Weber defendeu o uso de métodos individualizantes e generalizantes, a serem utilizados de acordo com o objeto de estudo em questão na pesquisa.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a afirmativa II está correta.b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.c) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas.d) ( ) Somente as afirmativas II e III estão corretas.

2 O individualismo metodológico é a forma desenvolvida por Weber para a consolidação de uma metodologia das ciências sociais. Este método inaugura uma nova perspectiva para as análises que envolvem a sociedade. Isto posto, pode-se afirmar que para o individualismo metodológico a unidade básica da explicação sociológica é:

a) ( ) o Conhecimento Objetivo.b) ( ) a Desigualdade Social.c) ( ) a Estrutura Social.d) ( ) o Indivíduo.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO

SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA

SOCIEDADE

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃONo tópico anterior, você conheceu as bases teóricas e metodológicas

do pensamento de Max Weber, que definem a chamada teoria sociológica compreensiva. Estas bases são fundamentais para entender a lógica das análises do autor, e os conceitos que ele desenvolveu para amparar suas investigações — especialmente as relações entre o individualismo metodológico e a noção de ação social.

Prosseguindo seus estudos, este tópico lhe dará condições de aprofundar os conceitos fundamentais da obra weberiana, embora não estejam todos aqui presentes. Há materiais que direcionam o estudo para que você conheça mais conceitos. O direcionamento se dá pela via dos conceitos mais utilizados na teoria sociológica compreensiva.

Para tanto, iniciaremos com o mais básico e fundamental: a noção de ação social. Em seguida, conheceremos a ideia de tipo ideal, utilizada por Weber como instrumento metodológico. Logo após, estudaremos os conceitos de relação social; poder e dominação; e estratificação social (classes, estamentos e partidos).

Com estas bases conceituais será possível avançar ao próximo tópico para compreender os desdobramentos da sociologia de Weber, quando estes conceitos são aplicados nas análises de fenômenos sociais. Bons estudos!

2 AÇÃO SOCIALComo vimos no tópico anterior, Weber busca utilizar como método de

análise social a compreensão e explicação do mundo, desenvolvendo a chamada teoria sociológica compreensiva. É por meio desta metodologia que ele defende a análise do objeto de estudo da sociologia, que para ele é a ação social. Este conceito permeia toda a sua obra, e segue sendo discutido e interpretado ainda nos dias atuais.

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UNIDADE 3 | A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

A sociologia, para ele, tem a tarefa de interpretar a ação social e seus efeitos, sempre a partir do indivíduo como fundamento da explicação sociológica, de acordo com o que vimos no item sobre o individualismo metodológico. Este autor inova, portanto, ao trazer o foco de estudos para o indivíduo como gerador das ações sociais, que seriam para ele o objeto formal da sociologia.

“A ação é definida por Weber como toda conduta humana (ato, omissão, permissão) dotada de um significado subjetivo dado por quem a executa e que orienta essa ação” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 104). A ação, portanto, é um comportamento relacionado pelos indivíduos com um sentido subjetivo.

IMPORTANTE

Se a ação é um comportamento que o indivíduo relaciona a um sentido subjetivo, a ação social é um comportamento orientado em seu curso pelo comportamento de outros indivíduos (ou seja, social).

A partir da aplicabilidade do individualismo metodológico, portanto, é que a sociologia procura na ação dos indivíduos, orientada em relação a outros indivíduos, explicar os fenômenos sociais. Na prática se dá desta maneira:

A explicação sociológica busca compreender e interpretar o sentido, o desenvolvimento e os efeitos da conduta de um ou mais indivíduos referida a outro ou outros - ou seja, da ação social, não se propondo a julgar a validez de tais atos nem a compreender o agente enquanto pessoa. Compreender uma ação é captar e interpretar sua conexão de sentido, que será mais ou menos evidente para o sociólogo. Em suma: ação compreensível é ação com sentido. As condutas humanas são tanto mais racionalizadas quanto menor for a submissão do agente aos costumes e afetos e quanto mais ele se oriente por um planejamento adequado à situação. Pode-se dizer, portanto, que as ações serão tanto mais intelectualmente compreensíveis (ou sociologicamente explicáveis) quanto mais racionais, mas é possível a interpretação endopática e o cálculo exclusivamente intelectual dos meios, direção e efeitos da ação ainda quando existe uma grande distância entre os valores do agente e os do sociólogo. Interpretar uma ação devida a valores religiosos, a virtudes, ao fanatismo ou a afetos extremos que podem não fazer parte da experiência do sociólogo ou aos quais ele seja pouco suscetível pode, portanto, dar-se com um grau menor de evidência (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 104).

O sociólogo, portanto, precisa determinar o sentido ou significado da ação social, ou seja, o motivo pelo qual o agente fundamenta a sua ação social.

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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“Para a sociologia, importa recuperar a razão e a finalidade que os próprios indivíduos conferem às suas atividades — bem como às suas relações com os demais indivíduos e com a sociedade” (SELL, 2002, p. 110). Por isso a sociologia de Weber é chamada de compreensiva, pois busca compreender o sentido da ação social.

Para dar conta da quantidade de dimensões de uma ação social, Weber elabora os chamados tipos puros da ação social, que orientam a análise das ações sociais encontradas na sociedade. Eles são tipos ideais, conforme a definição que estudaremos na próxima seção, instrumentos metodológicos e conceituais.

Vamos nos apropriar da descrição de Sell (2002, p. 111) dos tipos puros da ação social:

• Ação social referente a fins: a ação é determinada por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas. Estas expectativas funcionam como “condições” ou “meios” para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente como sucesso. Portanto, neste tipo de ação, o homem coloca determinados objetivos e busca os meios mais adequados para persegui-los. O importante é perceber que o motivo da ação é alcançar sempre um resultado eficiente.

• Ação social referente a valores: a ação é determinada pela crença consciente no valor — ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação — absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independente do resultado. O motivo da ação, neste caso, não é um resultado, mas um valor, independentemente dos resultados positivos ou negativos que ela possa ter.

• Ação social afetiva: a ação é determinada de modo afetivo, especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais.

• Ação social tradicional: a ação é determinada pelo costume arraigado.

Weber reconhece que é possível que mais de um tipo de ação condicione o indivíduo em seus comportamentos, portanto, estes tipos puros orientam a análise, mas na prática podem aparecer mesclados em suas dimensões.

Podemos utilizar essas quatro categorias para analisar o sentido de um sem-número de condutas, tanto daquelas praticadas, como das que o agente se recusa a executar ou deixa de praticar: estudar, dar esmolas, comprar, casar, participar de uma associação, fumar, presentear, socorrer, castigar, comer certos alimentos, assistir à televisão, ir à missa, à guerra etc. O sociólogo procura compreender o sentido que um sujeito atribui à sua ação e seu significado. Há que se ter claro, porém, o alerta de Weber de que “muito raras vezes a ação, especialmente a social, está exclusivamente orientada por um ou outro destes tipos” que não passam de modelos conceituais puros, o que quer dizer que em geral as ações sofrem mais de um desses condicionamentos, embora possam ser classificadas com base naquele que, no caso, é o predominante (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 104).

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UNIDADE 3 | A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

Dito isto, Weber procura explicar como as interações entre os indivíduos formam os grupos sociais e, por consequência, as instituições sociais. O sentido da ação social, sendo compartilhado, forma uma relação social. Parte-se do pressuposto de que é provável que se aja de acordo com o sentido compartilhado, seja nas relações sociais de caráter pessoal ou impessoal.

As relações sociais podem ser legitimadas por uma ordem legítima, por meio da convenção ou do direito. Exemplos: agrupamentos (grupos coletivos possuem órgãos administrativos); empresas (grupos buscando determinado fim estabelecido racionalmente); associações (regulamentos aceitos voluntariamente); instituições (regulamentos impostos aos seus membros) (SELL, 2002).

A ação social, portanto, é o conceito fundamental na teoria sociológica compreensiva, e o caminho analítico se inicia nela, passando pela interação entre os indivíduos e chegando às instituições. O caminho contrário também é possível, partindo de uma instituição para compreender quais ações sociais são comuns aos sujeitos que a formam. Para reforçar o quanto o indivíduo é importante para a teoria sociológica de Weber, Sell (2002) apresenta um quadro como exemplo:

FIGURA 6 – EXEMPLO DE ESQUEMA TEÓRICO DE WEBER

FONTE: Sell (2002, p. 113)

Barbosa, Oliveira e Quintaneiro (2002) destacam ainda a importância do cuidado com a análise das ações sociais no seguinte aspecto:

É necessário distinguir uma ação propriamente social de dois modos de conduta simplesmente reativos, sem caráter social e cujo sentido não se conecta significativamente às ações do outro, a saber: a) a ação homogênea - aquela executada por muitas pessoas simultaneamente, como proteger-se contra uma calamidade natural, ou aquelas reações uniformes de massa criadas pela situação de classe quando, por exemplo, todos os empresários de um setor aumentam automaticamente seus preços a partir do anúncio pelo governo de que será criado um imposto específico; b) a ação proveniente de uma imitação ou praticada sob a influência da ou condicionada pela conduta de outros ou por uma massa (uma multidão, a imprensa e a opinião pública seriam massas dispersas). Na medida em que o sujeito não orientou causalmente sua conduta pelo comportamento de outros já que ele apenas imita, não se estabelece uma relação de sentido, o que coloca esse tipo de ação fora do campo de interesse da Sociologia compreensiva (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 108).

INDIVÍDUO GRUPO COLETIVIDADE

Ação Social Relações Sociais Ordem legítima

Dar aulas Professor x alunos Escola

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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Para finalizar, vamos conhecer um pouco da análise do próprio autor sobre o conceito de ação social, a partir de sua obra:

O Conceito de Ação Social1. A ação social (incluindo tanto a omissão como a aquiescência)

pode ser orientada para as ações passadas, presentes ou futuras de outros. Assim, pode ser causada por sentimento de vingança de males do passado, defesa contra perigos do presente ou contra-ataques futuros. Os “outros” podem ser indivíduos conhecidos ou desconhecidos, ou podem constituir uma quantidade indefinida. Por exemplo, “dinheiro” é um meio de troca que o indivíduo aceita em pagamento, porque sua ação se orienta na expectativa de que numerosos, mas desconhecidos e indeterminados “outros” o aceitarão por sua vez, em algum tempo no futuro, como um meio de troca.

2. Nem toda espécie de ação, nem mesmo a ação manifestadamente formal, é “social”, no sentido da presente discussão. A ação formal é não-social se orientada exclusivamente ao comportamento de objetos inanimados. Atitudes subjetivas devem ser consideradas ação social apenas se orientadas à ação de outros. A conduta religiosa não é social, se permanece simplesmente uma questão de contemplação, de oração solitária, etc. A atividade econômica de um indivíduo apenas é social se é até o ponto em que concerne também à atividade de terceiros. Falando de modo geral, em termos formais, torna-se social apenas até o ponto em que reflete a extensão em que os outros respeitam o controle real de uma pessoa sobre bens econômicos. Mais concretamente, é social se, por exemplo, em relação ao consumo de uma pessoa, as necessidades futuras de outros são levadas em conta e determinam, portanto, a “poupança” desta pessoa.

3. Nem todo tipo de contato entre seres humanos tem um caráter social, mas apenas quando a ação do indivíduo é significativamente orientada para a dos outros. Assim, a colisão entre dois ciclistas é apenas um evento isolado, comparável a uma catástrofe natural. Por outro lado, qualquer tentativa de um deles de evitar bater no outro, com os insultos subsequentes, uma briga, ou mesmo uma discussão pacífica, constituiriam uma forma de “ação social”.

4. A ação social também não é idêntica a: a) a ação uniforme de muitas pessoas; b) a ação influenciada por outras pessoas. Por exemplo, se no começo de uma chuva uma quantidade de pessoas na rua abrir seus guarda-chuvas ao mesmo tempo, tal conduta normalmente não se orienta para a dos outros, pois trata-se simplesmente de uma reação semelhante de todos de protegerem-se contra a chuva. Sabe-se também que a conduta de um indivíduo pode ser fortemente influenciada pelo mero fato de que ele é um membro de uma multidão contida num espaço limitado. Este constitui o assunto das pesquisas sobre “psicologia de massas”, do tipo desenvolvido por Le Bom, sendo conhecido como ação “condicionada pelas massas”. Prosseguindo, é possível que um grande número de pessoas que se encontram bastante dispersas reaja simultânea ou sucessivamente a uma fonte de influência que atua de modo semelhante sobre todos os indivíduos, como faz, por exemplo, a imprensa: desta maneira a ação do indivíduo é influenciada por sua associação à multidão e por sua própria percepção deste aglomerado. De fato, certos tipos de reação são possíveis apenas pelo mero fato de que o indivíduo se porta como parte de uma multidão embora outros tipos se tornem mais difíceis sob as mesmas condições (WEBER, 2002, p. 37-38).

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Além de seu conceito central, ação social, Weber também desenvolve a noção de tipo ideal — essencial para sua obra sociológica. A seguir nos aprofundaremos neste conceito.

3 TIPO IDEALO pensamento weberiano é bastante conhecido por desenvolver a ideia de

tipo ideal, a fim de estabelecer como funcionam os conceitos sociológicos como instrumentos de interpretação na busca pela compreensão da realidade social. Ele busca, portanto, entender como os conceitos funcionam na ciência sociológica e sua relação com formas conceituais de outras ciências.

Para Weber, o erro do positivismo consistia em tratar os conceitos e teorias como uma reprodução real da realidade. O sociólogo não deveria lidar desta maneira com estes instrumentos, já que o conhecimento humano não seria uma reprodução da essência da realidade, ideia que ele extrai da filosofia kantiana (SELL, 2002).

O conhecimento humano apenas consegue captar as relações entre as coisas existentes, a partir da estrutura estabelecida pela mente humana. É o pressuposto da ideia famosa de Kant: O real é relacional. Assim também, para Weber, não seria possível que o conhecimento humano captasse toda a essência da realidade de maneira exata e exaustiva. “A explicação sociológica só pode captar determinados elementos da realidade, que são condicionados pela cultura na qual o sociólogo está inserido” (SELL, 2002, p. 114).

É possível notar, portanto, o quanto o sujeito tem um papel ativo na construção do conhecimento sociológico, já que é o próprio sociólogo quem determina as dimensões e traços que serão analisados na realidade. Em outras palavras, o recorte metodológico é estabelecido por uma pessoa, um profissional que irá delimitar os aspectos e a relação entre eles.

Isto é necessário já que a sociedade é complexa e composta por diferentes dimensões, cuja diversidade de elementos é infinita. O trabalho do cientista social, neste caso, é muito distinto do cientista da natureza, já que o sociólogo procura conhecer os aspectos socioculturais desde a composição histórica daquele recorte, para compreender as relações atualizadas entre os elementos.

A generalização, portanto, é inevitável. Vejamos nas palavras de Barbosa, Oliveira e Quintaneiro (2002, p. 30):

Sendo uma ciência generalizadora, a Sociologia constrói conceitos - tipo, “vazios frente à realidade concreta do histórico” e distanciados desta, mas unívocos porque pretendem ser fórmulas interpretativas através das quais se apresenta uma explicação racional para a realidade empírica que organiza. Esta adequação entre o conceito e

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a realidade é tanto mais completa quanto maior a racionalidade da conduta a ser interpretada, o que não impede a Sociologia de procurar explicar fenômenos irracionais (místicos, proféticos, espirituais, afetivos). O que dá valor a uma construção teórica é a concordância entre a adequação de sentido que propõe e a prova dos fatos, caso contrário, ela se torna inútil, seja do ponto de vista explicativo ou do conhecimento da ação real. Quando é impossível realizar a prova empírica, a evidência racional serve apenas como uma hipótese dotada de plausibilidade. Uma construção teórica que pretende ser uma explicação causal baseia-se em probabilidades de que um certo processo “A” se siga, na forma esperada, a um outro determinado processo “B”.

Sendo assim, interpretar exaustivamente, em todos os seus aspectos, uma realidade e as relações que estabelece com todos os demais elementos sociais não é possível, o que leva o cientista a trabalhar com os recortes já mencionados, certos aspectos relevantes que, segundo seu princípio de seleção, mereçam mais atenção. Este princípio de seleção apresenta, portanto, os valores individuais do cientista.

Embora este recorte seja determinado pelo investigador e por sua época, os conceitos e métodos somente são válidos sendo científicos. Daí a importância do rigor metodológico. Pensando assim, Weber indica a importância de um instrumento metodológico que oriente o cientista social na busca das relações causais de um elemento, ou seja, um modelo de investigação-interpretação que o guie nas suas análises sobre a realidade.

É neste ponto que ele apresenta como alternativa o conceito de tipos ideais. Vejamos a definição a partir do autor:

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isolados dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento (WEBER, 2003, p. 106).

Segue um destaque importante:

IMPORTANTE

Diferente de outros conceitos que refletem a sociedade, a ideia de tipo ideal não se acha de forma pura na realidade, pois é uma construção teórica elaborada a partir dos elementos enfatizados de um dado fenômeno — e a partir de um recorte realizado pelo próprio sociólogo.

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Para explicar os limites e possibilidades desta construção teórica, Barbosa, Oliveira e Quintaneiro (2002, p. 103) indicam três características do tipo ideal:

• Unilateralidade - Ao elaborar o tipo ideal, parte-se da escolha, numa realidade infinita, de alguns elementos do objeto a ser interpretado que são considerados pelo investigador os mais relevantes para a explicação. Esse processo de seleção acentua - necessariamente – certos traços e deixa de lado outros, o que confere unilateralidade ao modelo puro.

• Racionalidade - Os elementos causais são relacionados pelo cientista de modo racional, embora não haja dúvida sobre a influência, de fato, de incontáveis fatores irracionais no desenvolvimento do fenômeno real.

• Caráter utópico - No relativo à ênfase na racionalidade, o tipo ideal só existe como utopia e não é, nem pretende ser, um reflexo da realidade complexa, muito menos um modelo do que ela deveria ser. Um conceito típico-ideal é um modelo simplificado do real, elaborado com base em traços considerados essenciais para a determinação da causalidade, segundo os critérios de quem pretende explicar um fenômeno.

É possível construir tipos ideais de diversos exemplos, como interesses de classe, grupos religiosos, outros grupos, enfim, todos os fenômenos sociais são passíveis de serem analisados pela via da construção teórica dos tipos ideais. Assim, as concepções do cientista o levam a realizar uma seleção dos aspectos a serem analisados, comparando seu modelo à realidade em exame. Esta construção ideal será diferente para cada cientista ou observador.

As próprias formas de ação, que vimos na seção anterior neste mesmo tópico, são tipos ideais — não estão em sua forma pura na realidade. O sociólogo necessita acentuar alguma característica da ação para compreender em qual tipo ideal ela se encaixa.

Um exemplo da aplicação do tipo ideal encontra-se na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo. Weber parte de uma descrição provisória que lhe serve como guia para a investigação empírica, “indispensável à clara compreensão do objeto de investigação”, do que entende inicialmente por “espírito do capitalismo”, e vai construindo gradualmente esse conceito ao longo de sua pesquisa, para chegar à sua forma definitiva apenas no final do trabalho. O tipo ideal é utilizado como instrumento para conduzir o autor numa realidade complexa. O autor reconhece que seu ponto de vista é um entre outros (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 30).

Sell (2002) faz um alerta importante sobre a elaboração de tipos ideais, destacando que esta construção não pode ser arbitrária por parte do pesquisador e, portanto, o ato de análise torne-se subjetivista. Weber propõe este conceito como instrumento de pesquisa que permite uma aproximação mais objetiva da realidade — permitindo a organização de dados e auxiliando na compreensão das diferentes dimensões de um fenômeno social. Portanto, é essencial que os acontecimentos, a realidade, sejam a base para esta análise.

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA AÇÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

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“É justamente para isto que servem os tipos ideais: permitir ao pesquisador uma forma constante de comparar suas teorias com a realidade pesquisada, a partir de um aspecto da mesma” (SELL, 2002, p. 115).

Na obra de Weber, portanto, amplos conceitos são compreendidos como tipos ideais, como o capitalismo, o feudalismo, a burocracia, o Estado, entre outros. As elaborações de Marx sobre o capitalismo, por exemplo, para Weber, são entendidas como tipos ideais — construções teóricas que auxiliam a análise, mas não refletem a realidade total da aplicação deste modelo econômico.

DICAS

Para avançar nas leituras sobre o conceito e a aplicabilidade dos tipos ideais, veja a obra Sobre a Teoria das Ciências Sociais, com versão do ano de 2004 e publicada pela Editora Centauro.

FONTE:<https://www.traca.com.br/capas/92/92672.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Marconi e Lakatos (1990, p. 34) apresentam o uso do tipo ideal de Weber como um método das ciências sociais, chamado método tipológico. Vejamos o que elas afirmam sobre o uso deste método:

Habilmente aplicado por Max Weber. Apresenta certas semelhanças com o método comparativo. Ao comparar fenômenos sociais complexos, o pesquisador cria tipos ou modelos ideais, construídos a partir da análise de aspectos essenciais do fenômeno. A característica principal do tipo ideal é não existir na realidade, mas servir de modelo para a análise e compreensão de casos concretos, realmente existentes. Weber, através da classificação e comparação de diversos tipos de cidades, determinou as características essenciais da cidade; da mesma maneira, pesquisou as diferentes formas de capitalismo para estabelecer a caracterização ideal do capitalismo moderno; e, partindo do exame dos tipos de organização, apresentou o tipo ideal de organização burocrática.Exemplo: estudo de todos os tipos de governo democrático, do presente e do passado, para estabelecer as características típicas ideais da democracia.

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Para Weber, a vocação prioritária do cientista é separar os juízos de realidade - o que é - e os juízos de valor - o que deve ser – da análise científica, com a finalidade de perseguir o conhecimento pelo conhecimento. Assim, o tipo ideal não é uma hipótese, pois se configura como uma proposição que corresponde a uma realidade concreta; portanto, é abstrato; não é uma descrição da realidade, pois só retém, através de um processo de comparação e seleção de similitudes, certos aspectos dela; também não pode ser considerado como um "termo media", pois seu significado não emerge da noção quantitativa da realidade. O tipo ideal não expressa a totalidade da realidade, mas seus aspectos significativos, os caracteres mais gerais, os que se encontram regularmente no fenômeno estudado.O tipo ideal, segundo Weber, diferencia-se do conceito, porque não se contenta com selecionar a realidade, mas também a enriquece. O papel do cientista consiste em ampliar certas qualidades e fazer ressaltar certos aspectos do fenômeno que se pretende analisar.Entretanto, só podem ser objeto de estudo do método tipológico os fenômenos que se prestam a uma divisão, a uma dicotomia de "tipo" e "não-tipo". Os próprios estudos efetuados por Weber demonstram essa característica:"cidade" - "outros tipos de povoamento";"capitalismo" - "outros tipos de estrutura socioeconômica";“organização burocrática” – “organização não-burocrática”.

É desta maneira que opera o uso desta construção teórica chamada, por Weber, de tipo ideal, que vem sendo interpretada e reaplicada desde então no campo das ciências sociais. Outro campo que muito se utiliza desta noção é a área de teoria organizacional, campo da administração. Se você se deparar com textos desta área que utilizam este conceito, certamente estão se remetendo à obra de Weber.

DICAS

Se você ficou curioso sobre a aplicabilidade dos conceitos de Weber nas teorias organizacionais, procure realizar a leitura do artigo disponível no link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-65552003000200004. A referência é: MORAES, L. F. R.; FILHO, A. D. M.; DIAS, D. V. O paradigma weberiano da ação social: um ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na teoria organizacional. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba, v. 7, n. 2, p. 57-71, abr. – jun. 2003.

4 RELAÇÃO SOCIALWeber, ao pensar o conceito de relação social, destaca que são

comportamentos, condutas sociais que possuem seu sentido compartilhado. O significado dado pelas pessoas às ações é entendido por todos os envolvidos, constituindo a relação social. Como exemplos, temos as relações comerciais, afetivas, políticas, de hostilidade, de amizade, entre outras.

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“Podemos dizer que relação social é a probabilidade de que uma forma determinada de conduta social tenha, em algum momento, seu sentido partilhado pelos diversos agentes numa sociedade qualquer” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 108).

Vejamos o exemplo indicado pelas autoras da citação anterior: você, como membro da sociedade moderna, é capaz de compreender o gesto de uma pessoa que pega seu cartão de crédito para pagar uma conta. No entanto, se um índio que não tivesse convivência com este tipo de situação visse o ocorrido, ele não compreenderia do que se trata. Ou seja, ele não partilharia do significado da ação social (comercial) que estaria acontecendo ali.

Quando, ao agir, cada um de dois ou mais indivíduos orienta sua conduta levando em conta a probabilidade de que o outro ou os outros agirão socialmente de um modo que corresponde às expectativas do primeiro agente, estamos diante de uma relação social. O gerente do supermercado solicita a um empacotador que atenda um cliente. Temos aqui três agentes cujas ações orientam-se por referências recíprocas, cada um dos quais contando com a probabilidade de que o outro terá uma conduta dotada de sentido e sobre a qual existem socialmente expectativas correntes (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 109).

Indiferente do caráter e do conteúdo destas relações, sejam de poder, amor, conflito etc., uma característica importante para definir a relação social é a reciprocidade, “embora essa reciprocidade não se encontre necessariamente no conteúdo de sentido que cada agente lhe atribui, mas na capacidade de cada um compreender o sentido da ação dos outros” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 109).

Um parceiro pode sentir paixão pelo outro e não ser correspondido, um prestador de serviço pode ser solidário ao cliente enquanto este é agressivo com ele, entre outros. Não necessariamente a atuação é recíproca por parte dos agentes envolvidos, mas todos compreendem e compartilham o significado das ações, sabem o que está acontecendo. Além disso, o conteúdo atribuído a uma relação não é permanente, pode variar.

Cada indivíduo, ao envolver-se nessas ou em quaisquer relações sociais, toma por referência certas expectativas que possui da ação do outro (ou outros) aos quais sua conduta se refere. O vendedor que aceita um cheque do comprador, o desportista que atua com lealdade com o adversário e o político que propõe a seus futuros eleitores a execução de certos atos estão se baseando em probabilidades esperadas da conduta daqueles que são o alvo de sua ação. Em suma: as relações sociais são os conteúdos significativos atribuídos por aqueles que agem tomando outro ou outros como referência - conflito, piedade, concorrência, fidelidade, desejo sexual etc., e as condutas de uns e de outros orientam-se por esse sentido, embora não tenham que ter reciprocidade no que diz respeito ao conteúdo (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 110).

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Para que as relações sociais sejam identificadas como tais, é preciso que estejam reguladas por expectativas recíprocas quanto ao seu significado, havendo referências comuns ao significado das ações ali ocorridas. As relações também podem mudar, passando de efêmeras para duráveis, serem interrompidas, serem retomadas, mudarem de curso, entre outros.

As relações sociais são importantes na teoria weberiana, porque ele as defende como estruturas fundamentais da sociedade: para ele, as instituições existem apenas a partir da existência das relações. “Weber chama o Estado, a Igreja ou o casamento de pretensas estruturas sociais que só existem de fato enquanto houver a probabilidade de que se deem as relações sociais dotadas de conteúdos significativos que as constituem” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 110).

Os casamentos só existem porque pessoas pensam que devem se casar, impostos existem porque são legítimos entre seus pagadores, e as cerimônias religiosas são importantes para as pessoas que as frequentam. Assim, ao analisar as relações sociais, nota-se que a instituição constituída com base nelas só existe porque há uma conduta coletiva compartilhada a partir de referências de ação.

Weber indica uma análise das instituições sociais que ele chama de personalidades coletivas:

Não são outra coisa que desenvolvimentos e entrelaçamentos de ações específicas de pessoas individuais, já que apenas elas podem ser sujeitos de uma ação orientada pelo seu sentido. Apesar disto, a Sociologia não pode ignorar, mesmo para seus próprios fins, aquelas estruturas sociais de natureza coletiva que são instrumentos de outras maneiras de colocar-se diante da realidade. [...] Para a Sociologia, a realidade Estado não se compõe necessariamente de seus elementos jurídicos, ou mais precisamente, não deriva deles. Em todo caso, não existe para ela uma personalidade coletiva em ação. Quando fala do Estado, da nação, da sociedade anônima, da família, de uma corporação militar ou de qualquer outra formação semelhante, refere-se unicamente ao desenvolvimento, numa forma determinada, da ação social de uns tantos indivíduos [...] (WEBER, 1984, p. 12 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 110).

Quanto mais racionais forem as relações sociais, mais facilmente é possível expressá-las por meio de normas, tais como contratos ou acordos, sejam jurídicos, econômicos, entre sócios etc. E quanto mais emotivas ou valorativas, mais difícil é desenvolver uma ação racional deste tipo.

Weber trata também das relações sociais chamadas comunitárias, envoltas no sentimento de pertença ao grupo e no reconhecimento do grupo acerca do pertencimento do indivíduo. Da mesma maneira, ele fala sobre as relações sociais associativas, baseadas em interesses mútuos entre os envolvidos.

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Weber refere-se também ao conteúdo comunitário de uma relação social, fundado num sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) de pertença mútua, que se dá entre as partes envolvidas e com base no qual a ação está reciprocamente referida, de modo semelhante ao que costuma ocorrer entre os membros de uma família, estamento, grupo religioso, escola, torcedores de um time ou entre amantes. Já a relação associativa apoia-se num acordo de interesses motivado racionalmente (seja com base em fins ou valores), como o que se dá entre os participantes de um contrato matrimonial, de um sindicato, do mercado livre e de associações religiosas ou como as Organizações Não Governamentais. Podemos identificar, na maioria das relações sociais, elementos comunitários e societários, assim como há motivos afetivos, tradicionais, religiosos e racionais mesclados em quase todas as ações. Numa igreja ou associação religiosa podemos encontrar claramente tanto o conteúdo comunitário quanto o acordo de interesses racionais. Se o sentimento de pertença a uma comunidade - a comunhão - é a base da vida religiosa para o praticante leigo, o trabalho profissional dos sacerdotes apoia-se em uma organização racional (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 110).

Além disso, a regularidade nas condutas interessa à ciência sociológica, na medida em que podem tornar-se hábitos, depois costumes e direcionar orientações racionais da ação dos indivíduos. “A moda é um uso que se contrapõe, graças ao seu caráter de novidade, ao costume, mas também pode resultar de convenções impostas por um estamento em busca de garantir seu prestígio, como a distinção que se expressa no consumo da alta costura” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 111). Vejamos como o próprio Weber destaca a regularidade de costumes e sua relação com o indivíduo:

O processo de racionalização da conduta pode exigir que o agente tome consciência e rejeite sua própria submissão à regularidade imposta pelo costume. Os agentes podem orientar-se pelas suas crenças na validez de uma ordem que lhes apresenta obrigações ou modelos de conduta (como é o caso dos que vão à escola, ao templo ou ao trabalho). Ao adquirir o prestígio da legitimidade, ou seja, quando a ordem se torna válida para um ou mais agentes, “aumenta a probabilidade de que a ação se oriente por ela em um grau considerável”, tanto mais quanto mais ampla for a sua validez. A garantia da validade de uma ordem pode se dar com base na “probabilidade de que, dentro de um determinado círculo de homens, uma conduta discordante tropeçará com uma relativa reprovação geral e sensível na prática” ou “na probabilidade de coação física ou psíquica exercida por um quadro de indivíduos instituídos com a missão de obrigar à observância dessa ordem ou de castigar sua transgressão”. No primeiro caso, a ordem chama-se convenção e, no segundo, direito (WEBER, 1984, p. 27 apud BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 110).

A partir desta citação é possível observar como a noção de relações sociais está intrinsecamente ligada com a ideia de poder, tão presente nas obras de Weber. Ter a referência e compartilhar o comportamento de outrem, muitas vezes, indica reconhecer a presença de uma ação de poder de um indivíduo sobre o outro, a partir dos papéis que estejam desempenhando na relação. Existem relações que

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pressupõem legitimidade para a tomada de decisões ou mesmo para representar instituições ou grupos de indivíduos. É sobre este conceito que iremos tratar na próxima seção. Mas, antes, um estudo mais detido das palavras do autor.

O conceito de Relação SocialO termo “relação social” será usado para designar a situação em que duas ou mais pessoas estão empenhadas numa conduta onde cada qual leva em conta o comportamento da outra de uma maneira significativa, estando, portanto, orientada nestes termos. A relação social consiste, assim, inteiramente na probabilidade de que os indivíduos comportar-se-ão de uma maneira significativamente determinável. É completamente irrelevante o porquê de tal probabilidade, mas onde ela existe pode-se encontrar uma relação social.1. Um critério de definição exige, pois, ao menos um mínimo de

orientação mútua da conduta de cada um em relação à de outro. Seu conteúdo pode variar bastante: conflito, hostilidade, atração sexual, amizade, lealdade ou intercâmbio comercial, pode envolver cumprimento, evasão, ou rompimento de um acordo; competição econômica, erótica ou de qualquer outro tipo; participação em comunidades nacionais, estamentais ou de classe. Nestes últimos casos, a mera associação de grupo pode não constituir ação social, como discutiremos adiante. Além disso, a definição não nos informa quanto ao grau de solidariedade ou oposição predominante entre os que estão envolvidos nesta conduta.

[...]1. O significado subjetivo de uma relação social pode mudar.

Por exemplo, uma relação política baseada na solidariedade pode mudar para outra baseada no conflito. Mas então trata-se simplesmente de uma questão de conveniência terminológica e do grau de continuidade na mudança, podendo-se dizer que uma nova relação está começando a existir ou que a antiga continua, mas está adquirindo novo sentido. O significado também pode oscilar entre a constância e a permanência.

2. O conteúdo de sentido que permanece relativamente constante numa relação social pode ser expresso em axiomas que nos levam a esperar que as partes envolvidas correspondam ao menos aproximadamente a seus parceiros. Isto será tanto mais provável quanto mais racional for a conduta em sua relação a valores ou fins dados. Há muito menos possibilidade de formulação racional de sentido subjetivo no caso de uma atração erótica ou de uma relação baseada na lealdade pessoal ou em outro tipo emocional, do que a existente, por exemplo, no caso de um contrato de negócios (WEBER, 2002, p. 45-46).

5 PODER E DOMINAÇÃOOutros conceitos presentes com muita frequência na teoria sociológica

weberiana são as noções de poder e dominação. Ambos permeiam a obra de Weber, especialmente seus escritos políticos. É a partir deles que o autor busca explicar como a vida social se mantém, já que são as ações individuais que a constroem.

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Poder é definido como a capacidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social. Não se trata apenas do poder político, mas do poder como um todo, vivenciado nas relações cotidianas entre as pessoas — e que impõe um indivíduo sobre o outro. Não existe uma situação social específica que desencadeie o uso do poder, já que a imposição da vontade de alguém pode ocorrer em inúmeras situações.

Ele deve ser diferenciado da noção de dominação, que trata da “probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato” (SELL, 2002, p. 137). Este conceito, sim, interessa mais diretamente à sociologia, pois “possibilita a explicação da regularidade do conteúdo de ações e das relações sociais” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 119).

Na dominação manifesta-se a vontade do dominador por meio da influência nos atos de outros indivíduos, ou seja, os dominados agem por si mesmos adotando a vontade de um ente que os domina — gerando assim a obediência. Cabe à sociologia, então, compreender os fundamentos que tornam esta autoridade, este domínio, legítimo.

FIGURA 7 – CHARGE SATIRIZANDO SITUAÇÃO DE DOMINAÇÃO

FONTE: <https://wikiteacher.wordpress.com/tag/max-weber/>. Acesso em: 11 jan. 2019.

Do ponto de vista analítico, Weber divide a dominação em três tipos puros (conforme SELL, 2002, p. 137):

• Dominação legal racional: a obediência apoia-se na crença na legalidade da lei e dos direitos de mando das pessoas autorizadas a comandar pela lei.

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• Dominação tradicional: sua legitimidade apoia-se na crença de que o poder de mando tem um caráter sagrado, herdado dos tempos antigos.

• Dominação carismática: a legitimidade da autoridade do líder carismático lhe é conferida pelo afeto e confiança que os indivíduos depositam nele.

Cada forma de dominação legítima baseia-se em distinta fonte de autoridade, como é possível notar. Neste sentido, a luta é a essência da política e da vida social: nem sempre pelo poder para enriquecer economicamente, às vezes, pelas honras sociais que a posse do poder produz.

A vitória daqueles possuidores de qualidades - não importa se baseadas na força, na devoção, na originalidade, na técnica demagógica, na dissimulação etc. - as quais aumentam suas probabilidades de entrar numa relação social (seja na posição de funcionário, mestre de obras, diretor-geral, empresário, profeta, cônjuge ou deputado) é chamada de seleção social. Nesse quadro, a realidade social aparece como um complexo de estruturas de dominação. A possibilidade de dominar é a de dar aos valores, ao conteúdo das relações sociais, o sentido que interessa ao agente ou agentes em luta. [...] A luta pelo estabelecimento de uma forma de dominação legítima - isto é, de definições de conteúdos considerados válidos pelos participantes das relações sociais - marca a evolução de cada uma das esferas da vida coletiva em particular e define o conteúdo das relações sociais no seu interior. As atitudes subjetivas de cada indivíduo que é parte dessa ordem passam a orientar-se pela crença numa ordem legítima, a qual acaba por corresponder ao interesse e vontade do dominante. Desse ponto de vista, é a dominação o que mantém a coesão social, garante a permanência das relações sociais e a existência da própria sociedade (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 121).

A partir destas ideias, Weber procura explicar a manutenção da vida social, mesmo que o indivíduo seja, para ele, a fonte de dados para as análises sociológicas. Como já destacado, é importantíssimo ter contato com a obra do próprio autor no estudo de teorias sociológicas clássicas, portanto, seguem definições obtidas na obra do próprio Weber.

Os conceitos de Poder e DominaçãoEntende-se por poder a oportunidade existente dentro de uma relação social que permite a alguém impor a sua própria vontade mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual esta oportunidade se fundamenta.Por dominação entende-se a oportunidade de ter um comando de um dado conteúdo específico, obedecido por um dado grupo de pessoas. Por “disciplina” entender-se-á a oportunidade de obter-se obediência imediata e automática de uma forma previsível de um dado grupo de pessoas, por causa de sua orientação prática ao comando.1. O conceito de poder é sociologicamente amorfo. Todas as qualidades

concebíveis de circunstâncias podem pôr alguém numa situação na qual possa exigir obediência à sua vontade. O conceito sociológico de dominação consequentemente deve ser mais preciso e pode significar apenas a probabilidade de que o comando será obedecido.

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2. O conceito de “disciplina” inclui a “natureza prática” da obediência em massa, sem crítica e sem resistência. O fato é que a dominação depende apenas da presença real de uma pessoa emitindo com sucesso comandos a outra; não implica necessariamente quer a existência de um quadro administrativo, quer a existência de uma associação. Na medida em que membros de uma associação estão sujeitos ao exercício de uma tal dominação, denominar-se-á “associação de dominação”.

3. O patriarca domina sem um quadro administrativo. Um chefe beduíno, que recebe tributo das caravanas, pessoas e transportes de bens que passam através de suas montanhas, domina todos aqueles indivíduos mutáveis e indiferentes, aos quais, sem estarem associados entre si, ocorreu encontrarem-se casualmente nesta situação particular. Ele pode fazer isto em virtude de que seus servidores reais agem, quando a ocasião exige, como seu quadro administrativo, impondo sua vontade. Teoricamente, tal dominação seria concebível também por uma pessoa sozinha, sem a ajuda de qualquer quadro administrativo.

4. Se uma associação possui um quadro administrativo, ela será sempre, numa certa medida, empenhada numa associação de dominação. Mas este conceito é relativo. Normalmente a associação de dominação é ao mesmo tempo também uma associação administrativa. A natureza de uma associação é determinada por uma variedade de fatores: a maneira pela qual a administração se efetua, o caráter do pessoal, os objetos sobre os quais exerce controle e a extensão da jurisdição efetiva da sua dominação. Os primeiros dois fatores em particular dependem, no mais alto grau, da maneira pela qual a autoridade é legitimada (WEBER, 2002, p. 97-98).

DICAS

Se você se interessou pelo estudo das categorias de poder e dominação em Weber, cujo conteúdo é muito amplo para ser concluído neste livro de estudos, procure a leitura do segundo volume de Economia e Sociedade. O capítulo IX é composto sobre o tema Sociologia da Dominação. A referência completa é: WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. Disponível em: https://ayanrafael.files.wordpress.com/2011 /08/weber-m-economia-e-sociedade-fundamentos-da-sociologia-compreensiva-volume-2.pdf.

FONTE:<https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/41Nosaz2iQL._SX356_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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6 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: CLASSES, ESTAMENTOS E PARTIDOS

Weber também dedicou parte de sua obra para compreender como o poder e a dominação estão presentes na sociedade e como estão associados à estratificação social. Ele busca entender as posições do indivíduo a partir da sua inserção em diferentes esferas da realidade, destacando que, do ponto de vista econômico, as pessoas estão divididas em classes sociais, do ponto de vista político estão em diferentes partidos, e do ponto de vista cultural estão em diferentes estamentos (SELL, 2002).

Para o autor, as diferenças sociais podem ter vários princípios explicativos, e o critério de classificação é dado pelo peso de uma esfera da vida coletiva naquele momento — como no capitalismo é a esfera econômica que impera, as desigualdades ocorrem principalmente pela posse de capital econômico. Em sociedades anteriores, como a feudal, a linhagem (origem) era um critério de classificação, por exemplo.

Como cada esfera da vida coletiva possui suas regras e lógicas de funcionamento, o indivíduo orienta suas ações sociais a partir destas diretrizes. O significado de suas ações terá um sentido compartilhado por quem também participa daquela organização ou ordem social (instituição).

É nas ações e no sentido que o agente lhes confere que se atualiza a lógica de cada uma das esferas da vida em sociedade, e é a partir do contexto significante da ordem na qual uma ação individual está inserida que poderemos compreender sociologicamente seu significado (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 113).

Cada pessoa pode participar de diferentes esferas e orientar suas ações sociais a depender de cada uma que esteja presente no momento da ação, por isso Weber as dividiu essencialmente nos planos econômico, cultural e político (classes, estamentos e partidos).

Quanto às classes, a posição de uma pessoa em uma determinada situação de classe se refere à propriedade de bens ou habilitações. “Nesse contexto, as ações sociais vão ter a sua racionalidade e o seu significado definidos pelo mercado no qual os indivíduos lutam para adquirir poder econômico” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 113). Exemplo:

Como exemplos de classes, cita os proprietários de terras ou de escravos, os industriais, os trabalhadores qualificados e os profissionais liberais - todos os quais constituiriam grupos positivamente privilegiados devido à sua situação no mercado, isto é, a de possuidores de algum tipo de propriedade que tem valor (moeda, terra, máquinas, conhecimentos). Os trabalhadores não qualificados, ao contrário, formariam uma classe negativamente privilegiada, mas é entre eles que se verificam com mais frequência ações comunitárias, que envolvem o sentimento de pertença mútua. Em cada caso, o

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conjunto específico de agentes orienta sua ação num sentido que é definido pela sua posição/situação no mercado. É o sentido comum (e fundado em determinadas probabilidades) dessas ações orientadas para o mercado (de trabalho, de produtos, de empreendimentos) que faz de cada conjunto de agentes uma classe (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 114).

Quando o significado das ações se orienta para a luta por honra e prestígio, ou seja, pelo pertencimento a grupos de status, Weber fala da estratificação por estamentos. As ações nos estamentos são orientadas pelo modo de vida, ou seja, apenas pertence ao grupo quem atende uma determinada forma de vida. Exemplo:

Weber cita os exemplos do reconhecimento social de que desfrutavam, nos Estados Unidos, os descendentes das Primeiras Famílias da Virgínia, da princesa indígena Pocahontas, dos Pilgrim Fathers e dos Knickerbocker - o qual é comparável, dentro de certos limites, ao prestígio que pretendem as chamadas tradicionais famílias de algumas regiões brasileiras. Os estamentos (ou estados) expressam sua honra por meio de um estilo de vida típico, constituído pelo consumo de certos bens, por determinados comportamentos e modos de expressão, pela celebração de matrimônios endogâmicos, uso de um tipo específico de vestimentas etc. Ligadas a essas expectativas, existem “limitações à vida social, isto é (...) especialmente no que se refere ao matrimônio, até que o círculo assim formado alcance o maior isolamento possível”, assim como a estigmatização de algumas atividades, como o trabalho manual e até industrial. Os estamentos garantem a validez das condutas desejáveis por meio de convenções, através das quais expressa-se uma desaprovação geral relativamente a comportamentos discordantes. A validez de uma ordem manifesta-se no fato de que aquele que a transgride é obrigado a ocultar essa violação (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 115).

Quanto aos partidos, estes dizem respeito à esfera do poder social, vinculada à distribuição de poder gerada pelas diferenciações entre a ordem social pelos estamentos, e a posse de bens das classes. A ação, neste caso, é orientada pelo indivíduo no sentido de uma influência racional para a direção de uma associação ou comunidade, por exemplo. O partido é a instância que luta pelo domínio, e pode ou não adquirir caráter político.

Vejamos nas palavras do próprio Weber:

Toda ordem jurídica (não só a "estatal"), por sua configuração, influencia diretamente a distribuição do poder dentro da comunidade em questão, tanto do poder econômico quanto de qualquer outro. Por "poder" entendemos, aqui, genericamente, a probabilidade de uma pessoa ou várias impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo contra a oposição de outros participantes desta. Naturalmente, o poder "economicamente condicionado" não é idêntico ao "poder" em geral. O surgimento do poder econômico pode, antes pelo contrário, ser consequência de um poder já existente por outros motivos. E o poder, por sua vez, não é buscado exclusivamente para fins econômicos

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(de enriquecimento), pois o poder, também o econômico, pode ser apreciado "por si mesmo", e, com muita frequência, o empenho por ele está também condicionado pela "honra" social que traz consigo. Mas nem todo poder traz honra social. O típico boss americano bem como o típico especulador em grande escala renunciam a ela conscientemente, e, em geral, o "simples" poder econômico, particularmente o "meramente" monetário, de modo algum constitui um fundamento reconhecido da "honra" social. Por outro lado, o poder não é o único fundamento da honra social. Ao contrário, a honra social (o prestígio) pode ser, e com muita frequência o foi, a base de poder, também daquele de natureza econômica. A ordem jurídica pode garantir, além do poder, também a honra. Mas, em regra, ela não é sua fonte primária, senão também, neste caso, um fator adicional que aumenta a probabilidade de sua posse, embora nem sempre possa assegurá-la. Denominamos "ordem social" a forma em que a "honra" social numa comunidade se distribui entre os grupos típicos dos seus participantes. Sua relação com a "ordem jurídica" é naturalmente semelhante à da ordem econômica com esta. Não é idêntica à ordem econômica, pois esta é para nós simplesmente o modo como são distribuídos e empregados bens e serviços econômicos. Mas, naturalmente, está condicionada, em alto grau, por ela e nela repercute. Fenômenos da distribuição do poder dentro de uma comunidade são, então, as "classes", os "estamentos" e os "partidos".As "classes" não são comunidades no sentido aqui adotado, mas representam apenas fundamentos possíveis (e frequentes) de uma ação social. Falamos de uma "classe" quando 1) uma pluralidade de pessoas tem em comum um componente causal específico de suas oportunidades de vida, na medida em que 2) este componente está representado, exclusivamente, por interesses econômicos, de posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas pelo mercado de bens ou de trabalho ("situação de classe"). É o fato econômico mais elementar que o modo como está distribuído o poder de disposição sobre a propriedade material, dentro de uma pluralidade de pessoas que se encontram e competem no mercado visando à troca, cria já por si mesmo oportunidades de vida específicas. Segundo a lei da utilidade marginal, exclui os não possuidores da participação na concorrência quando se trata de bens de alto valor, em favor dos possuidores, e monopoliza para estes, de fato, a aquisição desses bens.[...]Os estamentos, em contraste com as classes, são, em regra, comunidades, ainda que frequentemente de natureza amorfa. Em oposição à "situação de classe", determinada por fatores puramente econômicos, compreendemos por "situação estamental" aquele componente típico do destino vital humano que está condicionado por uma específica avaliação social, positiva ou negativa, da honra, vinculada a determinada qualidade comum a muitas pessoas. Esta honra pode também estar ligada a uma situação de classe: as diferenças das classes combinam-se das formas mais variadas às diferenças estamentais, e a propriedade como tal, conforme já observamos, nem sempre, mas com regularidade extraordinária, adquire, a longo prazo, também significação estamental.[...]

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Enquanto as "classes" têm seu verdadeiro lar na "ordem econômica", e os "estamentos" na "ordem social", isto é, na esfera de distribuição da "honra", exercendo a partir dali influência uns sobre os outros e ambos sobre a ordem jurídica, além de também serem influenciados por esta, os "partidos" têm seu lar na esfera do "poder". Sua ação dirige-se ao exercício de "poder" social, e isto significa: influência sobre uma ação social, de conteúdo qualquer: pode haver partidos, em princípio, tanto num "clube" social quanto num "Estado". A ação social típica dos "partidos", em oposição àquela das "classes" e dos "estamentos" que não apresentam necessariamente este aspecto, implica sempre a existência de uma relação associativa, pois pretende alcançar, de maneira planejada, determinado fim - seja este de natureza "objetiva": imposição de um programa por motivos ideais ou materiais, seja de natureza "pessoal": prebendas, poder e, como consequência deste, honra para seus líderes e partidários, ou, o que é o normal, pretende conseguir tudo isto em conjunto. Por isso, partidos somente são possíveis dentro de comunidades que, por sua vez, constituem, de alguma forma, uma relação associativa, isto é, que possuem alguma ordem racional e um aparato de pessoas dispostas a pô-la em prática, pois o objetivo dos partidos é influenciar precisamente este aparato e, se possível, compô-lo com seus adeptos (WEBER, 2002, p. 97-98).

A obra de Weber é extremamente ampla quando se trata de conceitos e noções fundamentais para a sociologia. Uma das preocupações do autor foi, inclusive, dotar a ciência sociológica de arcabouço conceitual. Não é possível estudarmos todos eles em nosso livro de estudos, portanto, a dica é realizar leituras que apresentem e esclareçam os aspectos conceituais da sociologia weberiana. Segue uma sugestão de leitura inicial neste sentido, e então, prosseguindo, vamos conhecer os desdobramentos da sociologia de Weber no próximo tópico.

DICAS

Um bom livro conceitual escrito por Weber chama-se Conceitos Básicos de Sociologia. Traduzido por Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard Georges Delaunay. Primeira edição brasileira publicada pela Centauro Editora, em 2002.

FONTE:<https://static.wmobjects.com.br/imgres/arquivos/ids/3588520-344-344/.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A ação é um comportamento que o indivíduo relaciona a um sentido subjetivo, a ação social é um comportamento orientado em seu curso pelo comportamento de outros indivíduos.

• Os tipos puros da ação social definidos por Weber são: ação social referente a fins; ação social referente a valores; ação social afetiva; e ação social tradicional.

• Tipo ideal é uma construção teórica elaborada a partir dos elementos enfatizados de um dado fenômeno — e a partir de um recorte realizado pelo próprio sociólogo.

• Características do tipo ideal: unilateralidade, racionalidade e caráter utópico.

• Relação social é a probabilidade de que uma forma determinada de conduta social tenha, em algum momento, seu sentido partilhado pelos diversos agentes numa sociedade qualquer.

• Poder é definido por Weber como a capacidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social.

• Dominação é definida como a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato.

• Tipos puros da dominação identificados por Weber: dominação legal racional, dominação tradicional e dominação carismática.

• Ao analisar a estratificação social, Weber indica que do ponto de vista econômico as pessoas estão divididas em classes sociais, do ponto de vista político estão em diferentes partidos, e do ponto de vista cultural estão em diferentes estamentos.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

1 Descreva os conceitos a seguir a partir das definições apresentadas por Max Weber na Teoria Sociológica Compreensiva:

a) Ação Social:

b) Tipo Ideal:

c) Relação Social:

d) Poder:

e) Dominação:

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TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DA

SOCIOLOGIA DE MAX WEBER

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOEste tópico finalizador trará para você diretrizes básicas para o estudo

sobre os desdobramentos da teoria sociológica de Weber. O próprio Weber aplicou esta teoria e seu arcabouço intelectual em diferentes temas em vida, portanto, deixou muitos estudos sobre os temas mais diversos.

Cabe ressaltar a distinção que Weber realizou entre a figura do cientista e a do político, que culminou na obra Ciência e Política: duas vocações. Para ele, as duas esferas são diferentes, cabendo ao cientista manter seu rigor metodológico, o que não impediria a análise de problemas teóricos sobre a política ou debates políticos. Ele mesmo desenvolveu alguns escritos considerados militantes.

Do ponto de vista sociológico, Weber estuda a dimensão política com afinco, analisando o Estado moderno, as relações de poder, a burocracia, a democracia, a profissão de político, a ética no campo político, entre outros.

Neste tópico, para finalizar este caderno de estudos, entenderemos os aspectos fundamentais da sociologia da religião de Weber. O fenômeno religioso é outra dimensão social estudada exaustivamente por ele. É a sociologia da religião que gera suas análises sobre a racionalização da vida social — sendo que a ideia de racionalização permeia as investigações sobre a modernidade.

A relação da racionalização com o desenvolvimento do capitalismo passa também pelo estudo das religiões, tais como a ética protestante, tema bastante famoso de suas produções. Por último, temos a aplicabilidade da noção de dominação, especialmente quando falamos de dominação carismática, no estudo sobre o carisma e o processo de desencantamento do mundo.

Todos estes estudos lançam um olhar diferenciado para a modernidade, a partir de sua perspectiva fundante da teoria sociológica compreensiva, baseado no individualismo metodológico. Desta maneira encerramos este tópico e o livro de estudos, com o último dos autores clássicos da teoria sociológica. Boa leitura!

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UNIDADE 3 | A SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER

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2 SOCIOLOGIA DA RELIGIÃOA sociologia da religião, em Weber, não se restringe ao estudo da religião

em si, mas sim ao estudo da modernidade, seu nascimento e desenvolvimento. A modernidade, para ele, é caracterizada pelo processo de racionalização social, e consequente perda de espaço por parte dos fenômenos religiosos. Assim, a razão teria trazido o chamado processo de desencantamento do mundo, acompanhada da perda de sentido e de liberdade.

Para este caminho de estudos, Weber buscou entender a relação entre o protestantismo e a conduta econômica capitalista, depois as relações entre economia e religião na Índia e na China. Com todos estes exemplos ele busca compreender o Ocidente, e conclui que o processo de racionalização existe em todas as culturas e nas mais diferentes formas, e o essencial é buscar analisar a peculiaridade do racionalismo ocidental (SELL, 2002). Neste sentido:

Em toda religião que descansa numa técnica de salvação (como o êxtase, a embriaguez, a possessão etc.) o renascimento sob o ponto de vista religioso só parece acessível à aristocracia dos religiosamente qualificados por meio de uma luta pessoal contra os apetites ou afetos da rude natureza humana, apoiada em uma ética de virtuosos. Mas a religião pode também fomentar o racionalismo prático. Em outras palavras, estimular uma intensificação da racionalidade metódica, sistemática, do modo de levar a vida, e uma objetivação e socialização racional dos ordenamentos terrenos. Isto foi o que ocorreu com os mosteiros católicos cujas práticas cotidianas somadas à frugalidade dos internos tiveram como consequência inesperada um acúmulo considerável de riqueza (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 126).

Weber destaca, portanto, nas religiões que reconhecem a salvação como uma parte importante de seus dogmas e ritos, uma diferenciação entre as orientais e as ocidentais. Nas religiões orientais a contemplação é uma atitude salvacionista, enquanto nas religiões ocidentais o ascetismo, o que podemos entender como a abstenção dos prazeres e do conforto material, prevalece como modo de acesso à salvação.

As religiões orientais baseiam-se na ideia de fuga do mundo, de que os humanos devem sair do mundo terreno para unirem-se aos deuses, promovendo uma atitude contemplativa, na ideia de um recipiente — defendendo-se das distrações mundanas.

No entanto, as religiões ocidentais defendem o oposto: o envolvimento com o mundo, atividade diante da necessidade de organizar o mundo de acordo com sua doutrina, defendendo um domínio racional do universo. “A atitude religiosa ascética conduz o virtuoso a submeter seus impulsos naturais ao modo sistematizado de levar a vida, o que pode provocar uma reorientação da vida social da comunidade num sentido ético religioso, um domínio racional do universo” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 126). Detalhando este processo:

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Entregar-se aos bens mundanos põe em perigo a concentração sobre os bens de salvação: é preciso, então, negá-los. Atuar sobre as esferas seculares e submeter seus próprios impulsos naturais convertem-se, para o asceta, numa vocação que ele tem que cumprir racionalmente. Para compreender em linhas gerais a evolução e direções que tomam as doutrinas ascéticas, é necessário que se analise a natureza da organização das comunidades religiosas à luz dos processos de racionalização, especialmente aqueles que se dão após a renovação da ordem tradicional provocada pelo aparecimento de lideranças carismáticas (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 126).

Desta maneira, Weber explica a diferenciação entre as doutrinas salvacionistas orientais e ocidentais, e os motivos pelos quais o Ocidente sofre influências dos processos de racionalização a partir da religião. O autor também estudou as instituições: Igrejas.

“Igreja é definida por Weber como uma associação de dominação que se utiliza de bens de salvação por meio da coação hierocrática exercida através de um quadro administrativo que pretende ter o monopólio legítimo dessa coação” (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 127). A hierocracia é uma organização que se mantém por meio da coerção psíquica que se utiliza das concepções religiosas do indivíduo. Neste sentido, a Igreja submete seus membros de maneira racional. Ele diferencia de congregação, que comporta auxiliares permanentes unidos em torno de um profeta carismático, pois os sacerdotes constituem hierarquia administrativa e, assim, representam a burocracia.

Esta racionalização burocrática que ocorre na própria comunidade religiosa reflete na própria concepção de mundo que é apresentada aos fiéis, bem como em explicações para desigualdades entre seus membros, por exemplo:

O processo de racionalização que ocorre na organização da comunidade religiosa reflete-se em suas concepções de mundo e nas razões que são apresentadas para explicar aos fiéis por que alguns são mais afortunados do que outros - ou seja, o sofrimento individual visto como imerecido - e por que nem sempre são os homens bons, mas os maus, os que vencem... De modo geral, as religiões mais antigas proporcionavam a teodiceia dos mais bem aquinhoados - os “homens dominantes, os proprietários, os vitoriosos e os sadios”, os dotados de “honras, poder, posses e prazer” - que viam, assim, legitimada a sua boa sorte. Mas é necessário dar respostas aos mais carentes, os oprimidos, que precisam de conforto e de esperança na redenção, fornecendo-lhes uma teodiceia do seu sofrimento, uma interpretação ética sobre “a incongruência entre o destino e o mérito”. A teodiceia tinha que dar respostas também à injustiça e à imperfeição da ordem social (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 127).

Cada religião de alguma maneira interfere na ordem social, portanto, seja por meio do conjunto ideológico sobre as desigualdades — diferenças —, seja por meio do estímulo a ações concretas de modificação ou manutenção da ordem. Esta relação entre as formas apresentadas pelas religiões e a atuação de seus membros no mundo é explicada por Barbosa, Oliveira e Quintaneiro:

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Embora os virtuosos tenham procurado ser exemplares na sua prática religiosa, as exigências da vida cotidiana e de incorporação da massa dos não virtuosos, os não qualificados religiosamente, reclamam certos ajustes. As concessões que daí se originaram tiveram grande significado para a vida cotidiana, especialmente do ponto de vista do estabelecimento de uma ética racional voltada para o trabalho e para a prática econômica, tradicionais fontes de atrito com a moralidade religiosa. “Em quase todas as religiões orientais, os religiosos permitiram que as massas permanecessem mergulhadas na tradição”, mas dá-se uma grande diferença quando os virtuosos se organizam numa seita ascética “lutando para modelar a vida nesse mundo segundo a vontade de um deus”. Com isso, propunham-se regras de conduta para os crentes, e sua própria vida individual passava a ser orientada por princípios racionalizadores. Para escapar à relação tensa que sempre existira entre o mundo econômico e uma ética de fraternidade, colocam-se duas alternativas: a ética puritana da vocação ou o misticismo. Se este último é uma fuga do mundano por meio “de uma dedicação sem objeto a todos”, unicamente pela devoção, o puritano “renunciou ao universalismo do amor e rotinizou racionalmente todo o trabalho neste mundo, como sendo um serviço à vontade de Deus e uma comprovação de seu estado de graça”. De acordo com suas características, cada ética religiosa penetra diferentemente na ordem social (por exemplo, nas relações familiares, com o vizinho, os pobres e os mais débeis), na punição do infrator, na ordem jurídica e na econômica (como no caso da usura), no mundo da ação política, na esfera sexual (inclusive a atitude a respeito da mulher) e na da arte. Ao produzirem um desencantamento do mundo e bloquearem a possibilidade de salvação por meio da fuga contemplativa, as seitas protestantes ocidentais - que trilharam a via do ascetismo secular e romperam a dupla ética que distinguia monges e laicos - fomentaram uma racionalização metódica da conduta... que teve intensos reflexos na esfera econômica! Na tentativa de combater as interpretações economicistas ou psicologizantes das religiões e de sua evolução, Weber abordou “os motivos que determinaram as diferentes formas de racionalização ética da conduta da vida per se, e procurou explicações internas à própria esfera religiosa”. Nossa tese não é de que a natureza específica da religião constitui uma simples função da camada que surge como sua adepta característica, ou que ela represente a ideologia de tal camada, ou que seja um reflexo da situação de interesse material ou ideal.O que Weber faz aqui é uma referência à necessidade de se questionar a unilateralidade da tese materialista, complementando-a com outras vias de interpretação, nesse caso, a relação entre uma ética religiosa e os fenômenos econômicos e sociais, ou melhor, os tipos de conduta ou de modos de agir que possam ser mais favoráveis a certas formas de organização da esfera econômica e a uma ética econômica. E conclui: “Sempre que a direção da totalidade do modo de vida foi racionalizada metodicamente, ela foi profundamente determinada por valores últimos” religiosamente condicionados.Através da análise de uma das direções em que evolui a esfera religiosa no sentido de uma racionalização crescente, Weber encontrará a base para explicar o predomínio de concepções e práticas econômicas racionalizadas nas sociedades ocidentais. A autonomia da instância religiosa é o pressuposto para que se considere o desenvolvimento das doutrinas e dos sistemas de explicação religiosos a partir da lógica de funcionamento do seu próprio campo. Não há elementos materiais

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ou psicológicos que sejam determinantes desse processo: as relações entre os diversos agentes religiosos são o fundamento principal de toda causalidade nessa área. No caso de algumas seitas protestantes, as tensões entre os campos econômico e religioso são superadas, e podemos dizer que a afinidade eletiva entre os elementos dominantes em cada um deles reforça o desenvolvimento da ética ascética e do capitalismo enquanto uma forma de orientar a ação econômica (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 128).

Desta maneira, Weber conduz suas análises sobre a esfera religiosa, buscando articular seus pressupostos doutrinários e a prática que é originada a partir destes — já que ela pode modificar a atuação do indivíduo na esfera social. Articulada a isso está a análise sobre a racionalização presente na modernidade, especialmente no mundo ocidental, conforme veremos na seção a seguir.

DICAS

Este texto do livro de estudos apresenta as diretrizes gerais da Sociologia da Religião de Weber, já que suas interpretações influenciam as análises sobre tal tema até a atualidade. No entanto, recomenda-se um aprofundamento sobre o tema, e uma das sugestões é a obra Sociologia das Religiões, do próprio Max Weber, que pode ser encontrada em edição brasileira de 2015 pela Editora Ícone.

Outro material interessante na perspectiva da Sociologia da Religião é o artigo disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2018/03/14-2-2.pdf. Ele trata sobre a religião na perspectiva dos três autores clássicos que estudamos neste livro, portanto, auxilia enquanto síntese de conteúdo. A referência completa é: COSTA, W. S. R. Religião na perspectiva sociológica clássica: considerações sobre Durkheim, Marx e Weber. Sacrilegens: Revista dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião. Juiz de Fora, v. 14. n. 2. p. 03-24, jul. – dez. 2017.

FONTE:<https:/ / images. l ivrar iasaraiva.com.br/ imagemnet/ imagem.aspx/?pro_id=3096496&qld=90&l=430&a=-1>. Acesso em: 14 fev. 2019.

3 CAPITALISMO E RACIONALIZAÇÃO SOCIALAs análises classificadas na sociologia da religião weberiana buscam, de

alguma maneira, entender o processo de racionalização que gera as sociedades modernas, a começar pelo seu famoso estudo sobre a ética protestante e sua relação com o capitalismo, sobre o qual passamos a tratar.

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DICAS

A obra A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo possui publicação no Brasil pela Editora Companhia das Letras, com tradução de José Marcos Mariani Macedo, publicada em 2004. Há também versões de outras editoras publicadas no país.

FONTE:<https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51efgedw-DL.jpg>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Sell (2002) destaca que existem dois grandes objetivos que o autor pretende atingir com esta obra: desvendar as origens do capitalismo — já que este é uma marca da civilização ocidental —, verificando a influência da religião na origem do sistema capitalista industrial; e entender como avançou o processo de racionalização no Ocidente, que não aconteceu no Oriente — e do qual o capitalismo é a maior expressão.

Sobre a origem do capitalismo, Weber reconhece que foi um processo complexo, com inúmeras causas e que não pode ser reduzido a uma delas, e não defende que a religião luterana foi a única geradora deste comportamento econômico, mas sim, a ética luterana favoreceu. Foi uma alavanca para o estímulo do espírito capitalista.

O espírito do capitalismo é materializado por Weber por meio do destaque de um conjunto de máximas do autor Benjamin Franklin, que são:

• lembra-te de que tempo é dinheiro;• lembra-te de que o crédito é dinheiro;• lembra-te de que dinheiro gera mais dinheiro;• lembra-te de que o bom pagador é o dono da bolsa alheia.[...]O que estas máximas nos mostram é que o espírito do capitalismo é uma ética de vida, um modo de ver e encarar a existência. Ser capitalista não é ser uma pessoa avara, mas ter uma vida disciplinada, ou ascética, de tal forma que as ações praticadas sempre revertam em lucro (SELL, 2002, p. 119).

O modo de vida ascético diz respeito ao comportamento similar aos monges, com uma vida dedicada à oração e à penitência.

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Assim gera-se a comparação do comportamento ascético ao comportamento do capitalista: rigor e disciplina dedicados ao trabalho. Dito isto, Weber se pergunta como este modo de vida se generalizou no Ocidente, identificando que a primeira contribuição ocorreu a partir do pensamento de Martinho Lutero com a propagação da ideia de vocação. Para Lutero, “quanto mais as pessoas aceitassem suas tarefas profissionais como um chamado de Deus (vocação) e as cumprissem com disciplina, mais aptas estariam para ser salvas” (SELL, 2002, p. 119).

As seitas protestantes como calvinismo, pietismo, metodismo, batistas, levariam este processo ainda mais longe. Para Weber, a que melhor explica a relação entre a ética protestante e a origem do capitalismo é o calvinismo. Nesta doutrina, os homens seriam predestinados por Deus para a salvação ou para a condenação — nenhum esforço próprio faria diferença, pois tudo dependeria do divino (predestinação). Mas, e qual seria a relação deste comportamento com o capitalismo? Vejamos:

Naturalmente, uma concepção desta causa grande angústia para as pessoas. Como saber se eu vou ser salvo? Apesar de só Deus possuir esta resposta, os calvinistas acreditavam que havia uma forma de obter indícios para esta questão: trata-se do sucesso no trabalho. O cristão está no mundo para glorificar a Deus, e deve fazê-lo trabalhando. Ora, acontece que o cristão que estiver reservado para ser salvo, vai levar uma vida disciplinada e cristã: o resultado só pode ser um enriquecimento de seus bens materiais. Mas, como bom cristão, ele não vai esbanjá-los em prazeres e em outras condutas consideradas desonestas. Pelo contrário, ele vai continuar trabalhando e aplicando seus recursos para obter mais lucratividade. O resultado é que, com o tempo, esta pessoa tornar-se-á muito rica. Tudo o que ela ganha é gasto somente com o necessário, sendo o resto aplicado na própria produção (SELL, 2002, p. 120).

Segundo Weber, este comportamento acabou sendo o suporte para o comportamento desejado pelo capitalismo: a busca pelo lucro por meio do trabalho metódico e racional. Mesmo com a redução da vida religiosa na sociedade, esta ética do trabalho se expandiu e a busca pelo lucro gradativamente se desligou da religião (SELL, 2002). Vejamos este processo de desligamento:

Deve-se lembrar que a doutrina católica, dominante naquela época, condenava a ambição do lucro e a usura. Para os calvinistas, no entanto, desejar ser pobre era algo que soava tão absurdo como desejar ser doente; “a prosperidade era o prêmio de uma vida santa”. O mal não se encontrava na posse da riqueza, mas no seu uso para o prazer, o luxo, o gozo espontâneo e a preguiça. Essa moralidade levou a que alguns milionários norte-americanos preferissem não legar sua fortuna aos próprios filhos como meio de temperá-los no esforço produtivo. “Para os calvinistas, o deus inescrutável tem seus bons motivos para repartir desigualmente os bens de fortuna, e o homem se prova exclusivamente no trabalho profissional.” Segundo Weber, a adoção dessa nova perspectiva trazida pelo protestantismo permite aos primeiros empresários reverter sua condição de baixo prestígio social e se transformarem nos heróis da nova sociedade que se instalava.

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Essa ética teve consequências marcantes sobre a vida econômica e, ao combinar a “restrição do consumo com essa liberação da procura da riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação capitalista através da compulsão ascética da poupança”. Mas este foi apenas um impulso inicial. A partir dele, o capitalismo libertou-se do abrigo de um espírito religioso e a busca de riquezas passou a associar-se a paixões puramente mundanas. O capitalismo moderno já não necessita mais do suporte de qualquer força religiosa e sente que a influência da religião sobre a vida econômica é tão prejudicial quanto a regulamentação pelo Estado (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 135).

IMPORTANTE

Em síntese, a relação estabelecida entre a ética protestante e o capitalismo é, essencialmente, o comportamento estimulado pelas doutrinas protestantes que tratam de vocação e do estímulo ao trabalho. Sendo assim, a busca pelo lucro torna-se uma consequência, e que gradativamente desliga-se da religião.

Toda esta situação, chamada de protestantismo ascético, favoreceu também um segundo aspecto investigado por Weber nas doutrinas já mencionadas: a racionalização da vida. A vida metódica, disciplinada e ordenada dos membros do protestantismo era uma forma racionalizada de vida.

Mesmo com a secularização, ou seja, redução da influência religiosa na vida das pessoas, a continuidade da forma de vida ordenada gerou o chamado desencantamento do mundo, que iremos estudar no próximo tópico.

No entanto, como vimos, este processo de uma cultura racionalizada não ocorreu no Oriente, ou seja, as religiões deste espaço geográfico não exerceram a mesma influência em sua realidade. Para buscar fundamentos de análise, Weber estudou o hinduísmo e budismo na Índia e o confucionismo e taoísmo na China (SELL, 2002).

Ele percebeu que precisaria diferenciar alguns aspectos para compreender a influência da religião sobre a economia, já que estes aspectos condicionariam o comportamento das pessoas — sua prática de vida. Estes aspectos seriam a imagem de Deus e do mundo, pois eles direcionariam as ações do indivíduo para a obtenção da salvação e, por consequência, seu modo de vida.

A primeira diferença — que parte da imagem de Deus — consiste na distinção de dois tipos de religião: teocêntricas e cosmocêntricas. As religiões teocêntricas, ocidentais, concebem um Deus criador que existe fora do mundo e acima dele. Nas religiões cosmocêntricas, orientais, Deus e o mundo são a mesma realidade (se confundem).

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A segunda diferença — quanto à imagem do mundo — diz respeito a promover a afirmação do mundo ou a negação do mundo. As religiões ocidentais afirmam a vida mundana, não apresentam tensões quanto ao usufruto desta. No entanto, as religiões orientais negam o mundo indicando dois possíveis caminhos para a salvação: ou a vida em retiro espiritual ou a dedicação da vida ao engajamento no mundo.

A partir disso, Weber classifica as religiões e percebe que as religiões ocidentais combinam a imagem de um Deus que está fora do mundo com uma visão negativa do mundo (lugar de pecado); enquanto as religiões orientais combinam o Deus intramundano com duas visões: positiva e negativa do mundo. Sendo assim, chega-se aos comportamentos individuais que são originados por estas formas, já que a prática religiosa para a salvação vai ser determinada por elas:

Nas religiões teocêntricas (deus está fora do mundo) existem dois caminhos de salvação. Se houver uma imagem negativa da realidade mundana, as religiões apresentam o caminho da dominação ascética do mundo (como é caso da religião protestante). Quanto a religiões teocêntricas como uma imagem positiva do mundo, Weber não encontrou nenhum exemplo real deste tipo de religião. O importante é perceber que as religiões teocêntricas com uma visão negativa do mundo favorecem uma atitude “ativa” diante da realidade mundana. Nas religiões cosmocêntricas (deus é o mundo), existem duas possibilidades. Se há uma imagem negativa da realidade mundana, o único caminho da salvação é a fuga do mundo (é o caso das religiões da Índia, o hinduísmo e o budismo). Mas, se houver uma imagem positiva do mundo, o caminho da salvação será uma acomodação diante do mundo. Todavia, em ambos os casos, tratam-se de caminhos de salvação que levam o homem a uma atitude “passiva” diante da realidade mundana (SELL, 2002, p. 126).

Sell (2002, p. 127) sistematiza estas ideias em forma de quadro:

FIGURA 8 – QUADRO COMPARATIVO

FONTE: Sell (2002, p. 127)

TEORIA RELIGIOSA PRÁTICA RELIGIOSA

IMAGEM DE DEUS IMAGEM DO MUNDO SALVAÇÃO

Religião Teocêntrica Visão positiva do mundo – – – – – –

Religião Teocêntrica Visão negativa do mundo Dominação do mundo

Religião Cosmocêntrica Visão positiva do mundo Acomodação do mundo

Religião Cosmocêntrica Visão negativa do mundo Fuga mística do mundo

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As religiões orientais, portanto, levavam seus membros a atitudes contemplativas diante do mundo, enquanto as religiões ocidentais levavam a atitudes de engajamento no mundo. Portanto, a ética protestante favoreceu a origem do capitalismo, enquanto isso não ocorreu nas religiões orientais.

Após a análise relativa às religiões como estímulo ou não ao modo de vida capitalista, Weber observa também um fenômeno de redução das concepções religiosas na vida social, o que é mais um aspecto que contribui para a racionalização da sociedade. Vamos estudar o chamado desencantamento do mundo a seguir.

4 CARISMA E DESENCANTAMENTO DO MUNDOWeber buscou, em suas análises comparativas sobre as religiões, desenhar

o quadro da evolução cultural do Ocidente. Ele chega, assim, à conclusão de que o processo de desencantamento do mundo — originado pela redução da esfera religiosa na sociedade — provocou a racionalização do mundo e a perda de aspectos culturais, conforme veremos adiante.

IMPORTANTE

Pode-se afirmar, resumidamente, que o desencantamento do mundo é o processo de substituição de concepções mágicas e religiosas sobre o mundo por concepções racionalizadas da existência. A interpretação predominante de uma vida dominada por forças divinas é substituída pela ideia de uma sociedade passível de completo domínio humano.

Este processo de desencantamento destitui um universo habitado pelo sagrado, mágico e coloca em seu lugar o domínio da ciência e da técnica, e as formas de organização racionais e burocratizadas. E Weber tinha uma posição crítica com relação a isso:

O aumento do grau de racionalidade do mundo moderno não leva necessariamente a um estágio superior de vida social. Weber sabia que o processo de racionalização do mundo, da qual a organização capitalista e a organização burocrática do Estado eram as maiores expressões, tinha também o seu lado negativo. É neste sentido que ele apresenta o seu diagnóstico da modernidade: a perda de sentido e a perda de liberdade (SELL, 2002, p. 128).

Quanto à perda de sentido, Weber afirmava que isto ocorreria porque a religião conferia sentido à realidade, indicando respostas sobre o porquê da existência humana — de onde viemos e para onde vamos. No entanto, a ciência

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não ocuparia este lugar — a partir da razão —, já que não procura dar sentido à existência do mundo. A solução para ele também não seria retornar à religião, mas sim permitir que no mundo moderno cada um escolhesse sua concepção.

Quanto à perda de liberdade, Weber apresenta o ingresso do racionalismo na organização política e na economia, gerando a burocratização ou racionalização social. Este movimento faz com que a humanidade tenha se libertado das forças divinas e naturais, e tenha ficado presa em suas próprias criações, refém do trabalho e das suas burocracias.

É neste ínterim que Weber traz a imagem de um agente de ruptura, o líder, herói, profeta carismático.

A qualidade, que passa por extraordinária (cuja origem é condicionada magicamente, quer se trate de profetas, feiticeiros, árbitros, chefes de caçadas ou comandantes militares), de uma personalidade, graças à qual esta é considerada possuidora de forças sobrenaturais, sobre-humanas — ou pelo menos especificamente extracotidianas, não acessíveis a qualquer pessoa — ou, então, tida como enviada de Deus, ou ainda como exemplar e, em consequência, como chefe, caudilho, guia ou líder (WEBER, 1999a, p. 193).

Weber reconhece um tipo de liderança possível na situação de racionalidade, seja na esfera política ou religiosa, a partir de uma dominação tradicional ou burocrática. Baseado em seu carisma pessoal e se posicionando contra a dominação tradicional, estes líderes conseguem utilizar o poder racional a seu favor.

Weber considerava que, no mais das vezes, as burocracias dominantes, como a confuciana, caracterizavam-se pelo desprezo a toda religiosidade irracional, respeitando-a apenas no interesse da domesticação das massas. As classes e estamentos (os camponeses, os artesãos, os comerciantes, os industriais etc.) relacionam-se de distintas formas com a religiosidade. O proletariado moderno e as amplas camadas da burguesia moderna, se é que tomam uma atitude religiosa unilinear, costumam sentir indiferença ou aversão pelo religioso. A consciência de depender do próprio rendimento, diz ele, é enfocada ou completada pela da dependência a respeito das puras constelações sociais, conjunturas econômicas e relações de poder sancionadas pela lei (BARBOSA; OLIVEIRA; QUINTANEIRO, 2002, p. 124).

Sendo assim, nas camadas mais baixas das classes desfavorecidas, que possuem dificuldade no acesso às concepções racionais, encontra-se um terreno fértil para que a dominação carismática ocupe seu espaço — na medida em que concepções religiosas e mágicas conseguem acesso facilitado. As explicações e interpretações emotivas, neste caso, superam as explicações racionais.

Neste contexto surgem com frequência as lideranças carismáticas, os salvadores — sejam religiosos ou políticos. Estes, muitas vezes, após atingirem a dominação perante os grupos, são corrompidos pelas instituições.

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Desta maneira, Weber busca explicações para este tipo de dominação específica, que ele nota presente com frequência nas sociedades modernas — fruto do processo de desencantamento do mundo. Os líderes carismáticos aparecem ainda na esfera religiosa muitas vezes, e depois se descolam desta ou passam a representar outros interesses. Ainda sobre esta dominação, vejamos a análise do próprio Weber:

A criação de uma dominação carismática, no sentido "puro" aqui exposto, é sempre resultado de situações extraordinárias externas, especialmente políticas ou econômicas, ou internas, psíquicas, particularmente religiosas, ou de ambas em conjunto. Nasce da excitação comum a um grupo de pessoas, provocada pelo extraordinário, e da entrega ao heroísmo, seja qual for o seu conteúdo. Só disso já resulta que somente in statu nascendi tanto a fé do próprio portador e de seus discípulos em seu carisma - seja este de conteúdo profético ou de outro qualquer - quanto a entrega fiel a ele e à sua missão por parte daqueles para os quais ele se sente enviado atuam com pleno poder, unidade e força. Quando reflui o movimento que arrancou o grupo carismaticamente dirigido do circuito da vida cotidiana, no mínimo a dominação pura do carisma vê-se rompida, transferida ao "institucional" e aí refratada. É então como que mecanizada, ou é imperceptivelmente substituída por outros princípios estruturais ou se confunde e se entrelaça com eles nas formas mais variadas, de modo que chega a representar, dentro da formação histórica empírica, um componente de fato inseparavelmente ligado a eles, muitas vezes irreconhecivelmente desfigurado e somente depurável analiticamente para a consideração teórica. Portanto, a dominação carismática "pura" é instável num sentido muito específico, e todas as suas alterações têm, em última instância, uma única fonte. Na maioria das vezes, o desejo do próprio senhor, mas sempre o de seus discípulos e mais ainda o dos adeptos carismaticamente dominados, é de transformar o carisma e a felicidade carismática de uma agraciação livre, única, externamente transitória de épocas e pessoas extraordinárias em uma propriedade permanente da vida cotidiana. Mas com isto transforma-se, inexoravelmente, o caráter interno da estrutura. Seja que do séquito carismático de um herói guerreiro nasça um Estado, ou que da comunidade carismática de um profeta, artista, filósofo ou inovador ético ou científico nasçam uma igreja, seita, academia, escola, ou então que de um grupo carismaticamente dirigido, que persegue uma ideia cultural, nasça um partido ou apenas um aparato de jornais e revistas - em todos estes casos, a forma de existência do carisma acaba exposta às condições da vida cotidiana e aos poderes que a dominam, sobretudo aos interesses econômicos. E sempre é este o momento de mudança em que os sequazes e discípulos carismáticos começam a transformar-se, primeiro - como na trustis do rei franco - em comensais do senhor, privilegiados por direitos especiais, e depois em feudatários, sacerdotes, funcionários do Estado, funcionários de partido, oficiais, secretários, redatores e editores, que pretendem viver do movimento carismático, ou empregados, professores ou outras pessoas com interesses profissionais, prebendados, detentores de cargos patrimoniais ou algo semelhante. Os carismaticamente dominados, por outro lado, tornam-se "súditos" regularmente tributários, membros contribuintes de igrejas, seitas, partidos ou associações, soldados treinados e disciplinados, forçados ao serviço, segundo determinadas regras e ordens, ou "cidadãos" fiéis à lei.

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A profecia carismática converte-se, apesar da advertência do apóstolo para "não reprimir o espírito", inevitavelmente em dogma, doutrina, teoria, regulamento, disposição jurídica ou conteúdo de uma tradição que vai se petrificando. Precisamente a união dos dois poderes, que em suas raízes são alheios entre si e inimigos, o carisma e a tradição, constitui um fenômeno regular neste processo. Isto é facilmente compreensível: o poder de ambos não se baseia em regras criadas segundo um plano e uma finalidade e no conhecimento destas regras, mas na fé simplesmente válida para o dominado - criança, cliente, discípulo, sequaz ou feudatário - na santidade específica, absoluta ou relativa da autoridade de pessoas concretas e na entrega a relações e deveres de piedade diante destes, aos quais sempre inere, em ambos os casos, alguma solenidade religiosa. Também as formas externas das duas estruturas de dominação são frequentemente muito semelhantes, e até podem chegar a ser idênticas. É difícil decidir pela aparência externa se a comunidade de comensais de um príncipe guerreiro tem caráter "patrimonial" ou "carismático"; isto depende do "espírito" que anima a comunidade, vale dizer, do fundamento em que se apoia a posição do senhor; da autoridade santificada pela tradição ou fé pessoal em um herói. E o caminho que conduz da primeira situação à última tem estações intermédias. Assim que a dominação carismática perde seu caráter emocional de fé, que a distingue da vida cotidiana vinculada à tradição, também sua base puramente pessoal - a aliança com a tradição -, apesar de não ser a única possibilidade, constitui, pelo menos em períodos com uma racionalização pouco desenvolvida da técnica da vida, o passo natural e no mais das vezes inevitável. Neste passo parece definitivamente abandonada e perdida a essência do carisma, o que é realmente o caso, na medida em que se trata de seu caráter eminentemente revolucionário, pois agora apoderam-se dele - e este é o traço fundamental deste desenvolvimento que tipicamente se repete - os interesses de todos os detentores de posições de poder econômicas e sociais na legitimação de sua propriedade, pela referência a uma autoridade e fonte carismática e, portanto, sagrada. O carisma, em vez de atuar conforme seu sentido genuíno, de forma revolucionária, diante de tudo o que seja tradicional ou se fundamente na aquisição "legítima" de direitos, como acontece in statu nascendi, atua exatamente no sentido contrário, como fundamento de "direitos adquiridos". E precisamente nesta função alheia à sua índole torna-se ele um componente da vida cotidiana, pois a necessidade, à qual ele assim atende, é universal (WEBER, 1999a, p. 333).

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LEITURA COMPLEMENTAR

O ASCETISMO E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Max Weber (trecho)

Para compreendermos a ligação entre as ideias religiosas fundamentais do protestantismo ascético e suas máximas sobre a conduta econômica cotidiana, faz se necessário examinar com especial cuidado os escritos que foram evidentemente derivados da prática clerical. Para um tempo em que o além significava tudo, quando a posição social de um cristão dependia de sua admissão à comunhão, os clérigos com seu ministério, a disciplina da Igreja e a pregação exerciam uma influência (que pode ser apreciada nas coleções consilia, casus conscietiae etc.) que nós, homens modernos, somos totalmente incapazes de imaginar. Naquele tempo, as forças religiosas que se expressavam por esses canais eram as influências decisivas na formação do caráter nacional.

Para os propósitos deste capítulo, embora não para as demais finalidades, podemos considerar o protestantismo ascético como um todo. Mas, uma vez que o puritanismo inglês, que deriva do calvinismo, nos dá uma base religiosa mais consistente da ideia de vocação, colocaremos no centro da discussão, de acordo com o método que adotamos, um de seus representantes.

Richard Baxter ocupa posição destacada entre outros autores da ética puritana, tanto pela sua atitude realista e eminentemente prática, como, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento universal do seu trabalho, manifestado pelas contínuas reedições e traduções. Ele foi um presbiteriano e apologista do sínodo de Westminster, mas ao mesmo tempo, como muitos dos melhores espíritos de seu tempo, afastou-se gradualmente dos dogmas do calvinismo ortodoxo. Interiormente se opunha à usurpação de Cromwell, assim como a qualquer revolução. Era desfavorável às seitas e ao entusiasmo fanático dos santos, mas tinha grande abertura quanto às peculiaridades exteriores e grande objetividade com seus opositores.

Dirigiu seu campo de trabalho especificamente para a promoção prática da vida moral por meio da Igreja. Perseguindo suas finalidades, como um dos sacerdotes mais bem-sucedidos da história, colocou seus serviços à disposição do governo parlamentar de Cromwell e da Restauração, até se retirar do ofício sob esta última, antes do dia de São Bartolomeu.

Seu Christian Directory é o mais completo compêndio da ética puritana, inteiramente ajustado à experiência prática de seu próprio ministério. Como termo de comparação, usaremos o Theologische Bedenken de Spener como representante do Pietismo alemão, a Apology de Barclay dos quakers, e alguns outros representantes da ética ascética que, entretanto, por questões de espaço, serão os mais limitados possível.

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Agora, ao examinarmos o Saints Everlasting Rest ou o Christian Directory de Baxter, ou trabalhos semelhantes de outros, chama de imediato a atenção a ênfase colocada na discussão sobre a riqueza e sua aquisição nos elementos ebioníticos do Novo Testamento. A riqueza em si constitui grande perigo; suas tentações não têm fim, e sua busca não é apenas sem sentido, se comparada com a importância superior do Reino de Deus, mas também moralmente suspeita. Aqui o ascetismo parece voltado mais agudamente contra a aquisição de bens terrenos do que em Calvino, que não via na riqueza do clero nenhum empecilho à sua eficiência, mas antes via nisso uma expansão desejável de seu prestígio. E até lhe permitia aplicar seus recursos a juros. Exemplos de condenação da busca de dinheiro e de bens podem ser encontrados em grande quantidade nos escritos puritanos, e comparados com a literatura ética da baixa Idade Média, que era muito mais aberta nesse sentido. Além do mais, essas dúvidas foram consideradas com grande seriedade; basta examiná-las mais de perto para compreender suas implicações e significado ético. A verdadeira objeção moral é quanto ao afrouxamento na segurança da posse, ao gozo da riqueza com o ócio consequente e às tentações da carne e, acima de tudo, ao desvio da busca de uma vida de retidão. De fato, a posse é condenável apenas por envolver tais perigos de relaxamento. Pois o eterno repouso dos santos se encontra no outro mundo; o homem sobre a terra deve, para ter certeza deste estado de graça, “trabalhar naquilo que lhe foi destinado, ao longo de toda sua jornada. Não são o ócio e o prazer, mas só a atividade que serve para aumentar a glória de Deus, conforme a clara manifestação de Sua vontade. A perda de tempo é pois, em princípio, o mais funesto dos pecados. A duração da vida humana é por demais curta e preciosa para garantir a própria escolha. A perda de tempo na vida social, em conversas ociosas, em luxos e mesmo em dormir mais que o necessário para a saúde, de seis até o máximo de oito horas, é merecedora de absoluta condenação moral”. Não se trata, pois, de reafirmar, com Franklin, que tempo é dinheiro, mas a posição é verdadeira em certo sentido espiritual. Ela é infinitamente valiosa, pois que cada hora perdida é perdida para o trabalho de glorificação a Deus”.

Assim, mesmo a contemplação inativa seria também sem valor, “ou até diretamente repreensível, se ocorrer às expensas do trabalho diuturno do indivíduo”. Por isso, seria menos agradável para Deus que a ativa execução de Sua vontade dentro da vocação.

De mais a mais, o domingo foi feito para isso e, de acordo com Baxter, “são sempre aqueles que não cumprem com sua missão que não têm tempo para Deus, mesmo quando o momento o requer”.

Consoante isso, no trabalho principal de Baxter predomina uma pregação constante, frequentemente quase apaixonada, de um trabalho físico ou mental duro e constante.

E isto devido a dois motivos distintos. De um lado, o trabalho é uma técnica ascética comprovada, como sempre tem sido na Igreja do Ocidente, em forte contraste não só com o Oriente, mas também com quase todas as regras

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monásticas do mundo. Em particular, apresenta-se como defesa específica contra todas as tentações que o puritanismo agrupou sob o nome de vida impura, cujo papel nunca foi insignificante.

O ascetismo sexual do puritanismo difere apenas no grau daquele monástico, mas não no princípio; e de acordo com a concepção puritana do casamento, sua influência prática é de muito maior alcance do que este. Por isso as relações sexuais, mesmo no casamento, só são permitidas apenas como meio desejado por Deus para aumentar Sua glória, de acordo com o mandamento “Crescei e multiplicai-vos”. Ao lado de uma dieta vegetariana e de banhos frios, contra todas as tentações sexuais é usada a mesma prescrição adotada contra as dúvidas religiosas e o sentido de indignidade moral: “Trabalhe com vigor na tua vocação”. Mas a coisa mais importante é que, acima de tudo, o trabalho veio a ser considerado em si, como a própria finalidade da vida, ordenada por Deus. As palavras de S. Paulo, “quem não trabalha não deve comer”, valem incondicionalmente para todos. “A falta de vontade de trabalhar é sintoma da falta de graça”.

Aqui, a diferença do ponto de vista medieval torna-se evidente. Tomás de Aquino também deu esta interpretação às palavras de Paulo. Mas para ele o trabalho era necessário só para a manutenção do indivíduo e da comunidade. Quando tal finalidade fosse atingida, o preceito deixaria de ter qualquer significado. De mais a mais, aquele só se referia à espécie humana, e não se aplicaria ao indivíduo isoladamente que pudesse viver sem trabalho, de suas posses; naturalmente, a contemplação, como forma de ação espiritual no reino de Deus, torna-se preponderante sobre o sentido literal da injunção. Além disso, para a teologia popular da época, a mais alta forma de produtividade monástica consistia no aumento do Thesaurus ecclesiae por meio da oração e do canto. Tais objeções ao dever de trabalhar não só deixam de ter importância para Baxter, como ele frisa enfaticamente que a riqueza não exime quem quer que seja do mandamento incondicional. Mesmo o rico não deve comer sem trabalhar, pois, mesmo que não precise disso para sustentar suas próprias necessidades, há o mandamento de Deus a que, tanto ele quanto o pobre devem obedecer.

Para todos, sem exceção, a providência divina reservou uma vocação, que deve ser reconhecida e exercida. E esta vocação não é, como para os luteranos, um destino ao qual deva se submeter e sair-se o melhor possível, mas um mandamento de Deus ao indivíduo para que trabalhe para a glória divina. Esta diferença, aparentemente sutil, teve consequências psicológicas profundas em relação com o maior desenvolvimento desta interpretação providencial da ordem econômica que começara com a Escolástica.

O fenômeno da divisão do trabalho e das ocupações na sociedade fora abordado, entre outros, por Tomás de Aquino, ao qual nos referimos oportunamente como uma consequência direta dos planos divinos. Porém o lugar designado para cada homem nesta ordem segue ex causis naturalibus e é aleatório (ou contingente, na linguagem escolástica). A diferenciação dos homens em classes e ocupações estabelecidas por meio do desenvolvimento histórico

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tornou-se, para Lutero, como vimos, o resultado direto da vontade divina; a permanência do indivíduo no lugar e dentro dos limites demarcados por Deus para ele, era, pois, um dever religioso. Isto foi certamente a consequência, visto que as relações do luteranismo com o século eram geralmente incertas desde o início e assim permaneceram.

[...]

Um dos elementos fundamentais do espírito do capitalismo moderno, e não só dele, mas de toda a cultura moderna, é a conduta racional baseada na ideia de vocação, nascida – como se tentou demonstrar nesta discussão – do espírito do ascetismo cristão. Bastará reler a passagem de Franklin citada no início deste ensaio para vislumbrar que os elementos essenciais daquela atitude que chamamos aqui de espírito do capitalismo, são os mesmos que acabamos de mostrar como conteúdo do ascetismo laico puritano, despidos apenas das bases religiosas, já mortas no tempo de Franklin. A ideia de que o moderno trabalho teria naturalmente um caráter ascético não é nova. O limitar-se ao trabalho especializado, com a faustiana renúncia à universalidade do homem que envolve, é uma condição para qualquer trabalho válido no mundo moderno; daí que a realização e a renúncia, inevitavelmente, são, no mundo de hoje, mutuamente condicionadas. Este traço fundamentalmente ascético da vida da classe média, se é que pode ser considerado um estilo de vida e não apenas a falta de um, foi o que Goethe quis nos ensinar das alturas de sua sabedoria no Wanderjahren e no fim de vida que ele deu ao seu Fausto. Para ele, tal percepção significava a renúncia, a despedida de uma humanidade de plenitude e beleza que não mais poderia se repetir no curso de nosso desenvolvimento cultural, assim como não o pôde o florescer da cultura ateniense da antiguidade.

O puritano quis trabalhar no âmbito da vocação; e todos fomos forçados a segui-lo. Pois quando o ascetismo foi levado para fora das celas monásticas e introduzido na vida quotidiana e começou a dominar a moralidade laica, desempenhou seu papel na construção da tremenda harmonia da moderna ordem econômica. Esta ordem está hoje ligada às condições técnica e econômica da produção pelas máquinas, que determina a vida de todos os indivíduos nascidos sob este regime, com força irresistível, não apenas os envolvidos diretamente com a aquisição econômica. E talvez assim a determine até que seja queimada a última tonelada de carvão fóssil. Na visão de Baxter, o cuidado para com os bens materiais deveria repousar sobre os “ombros do santo como um leve manto, que pode ser atirado de lado a qualquer momento”. Mas o destino quis que o manto se tornasse uma prisão de ferro.

Uma vez que o ascetismo se encarregou de remodelar o mundo e nele desenvolver seus ideais, os bens materiais adquiriram um poder crescente e, por fim, inexorável, sobre a vida do homem como em nenhum outro período histórico. Hoje, o espírito do ascetismo religioso, quem sabe se definitivamente, fugiu da prisão. Mas o capitalismo vitorioso, uma vez que repousa em fundamentos mecânicos, não mais precisa de seu suporte. Também o róseo colorido do seu risonho herdeiro, o Iluminismo, parece estar desvanecendo irremediavelmente,

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e a ideia de dever no âmbito da vocação ronda nossas vidas como o fantasma de crenças religiosas mortas. Onde a plenificação da vocação não pode ser diretamente relacionada aos mais altos valores espirituais e culturais ou quando, por outro lado, não precisa ser sentida apenas como uma pressão econômica, o indivíduo geralmente abandona qualquer tentativa de justificá-la. “No campo de seu maior desenvolvimento, nos Estados Unidos, a busca da riqueza, despida de seu significado ético e religioso, tende a ser associada a paixões puramente mundanas, que lhe dão com frequência um caráter de esporte”.

Ninguém sabe quem viverá, no futuro, nesta prisão ou se, no final deste tremendo desenvolvimento, surgirão profetas inteiramente novos, ou se haverá um grande ressurgimento de velhas ideias e ideais ou se, no lugar disso tudo, uma petrificação mecanizada ornamentada com um tipo de convulsiva autossignificância. Neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão de fato ser chamados de “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.

Mas isto nos leva ao mundo dos julgamentos de valores e de fé, com os quais não precisamos sobrecarregar esta discussão puramente histórica. A próxima tarefa seria mais a de mostrar o significado do racionalismo ascético, apenas abordado pelo esboço acima, quanto ao seu conteúdo de éticas sociais práticas, ou seja, quanto aos tipos de organização e funções dos grupos sociais, desde os conventículos até o Estado. A seguir, suas relações com o racionalismo humanístico, seus ideais de vida e influência cultural. Depois teria de ser analisado em relação ao desenvolvimento do empirismo filosófico e científico, e de ideais espirituais e desenvolvimento técnico. Terá então de ser traçado, por meio de todos os ramos da religiosidade ascética, o desenvolvimento histórico, desde os primórdios medievais, do ascetismo laico até a sua transformação em puro utilitarismo. Só então poderá ser avaliada a importância quantitativa cultural do protestantismo ascético em suas relações com outros elementos plásticos da cultura moderna.

Aqui, apenas tentamos traçar os fatos e a direção de sua influência a partir de apenas um, embora importante, ponto de vista. Contudo, será também necessário investigar como o ascetismo protestante foi por sua vez influenciado em seu desenvolvimento e caráter pelo conjunto de condições sociais, e especialmente econômicas. O homem moderno, mesmo com a melhor das vontades, é em geral incapaz de atribuir às ideias religiosas a importância que merecem em relação à cultura e ao caráter nacional. Não é, porém, meu intuito substituir uma interpretação causal materialista unilateral por outra interpretação espiritual, igualmente unilateral, da cultura e da história. Ambas são viáveis, mas, se qualquer delas não for adotada como introdução, mas sim como conclusão, de muito pouco serve no interesse da verdade histórica.

FONTE: WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. Disponível em: <http://docplayer.com.br/46155788-A-etica-protestante-e-o-espirito-do-capitalismo.html>. Acesso em: 14 fev. 2019.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A sociologia da religião em Weber não se restringe ao estudo da religião em si, mas sim ao estudo da modernidade, seu nascimento e desenvolvimento.

• Para este caminho de estudos Weber buscou entender a relação entre o protestantismo e a conduta econômica capitalista, depois as relações entre economia e religião na Índia e na China.

• Weber conduz suas análises sobre a esfera religiosa, buscando articular seus pressupostos doutrinários e a prática que é originada a partir destes — já que ela pode modificar a atuação do indivíduo na esfera social.

• A relação estabelecida entre a ética protestante e o capitalismo é, essencialmente, o comportamento estimulado pelas doutrinas protestantes que tratam de vocação e do estímulo ao trabalho.

• O desencantamento do mundo é o processo de substituição de concepções mágicas e religiosas sobre o mundo por concepções racionalizadas da existência.

• Weber reconhece um tipo de liderança possível na situação de racionalidade, seja na esfera política ou religiosa, a partir de uma dominação tradicional ou burocrática. Baseado em seu carisma pessoal e se posicionando contra a dominação tradicional, estes líderes conseguem utilizar o poder racional a seu favor. É o líder carismático.

RESUMO DO TÓPICO 3

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AUTOATIVIDADE

1 O processo de racionalização social é um dos temas centrais das obras de Weber, a partir de suas análises sobre a sociedade moderna. É uma temática constantemente revisitada por seus intérpretes. Acerca das pesquisas e teorias de Weber sobre a racionalização, analise as seguintes sentenças:

I – O trabalho metódico e racional defendido como prática de vida pela ética das religiões protestantes estimulou o desenvolvimento do espírito do capitalismo.II – A religião favoreceu o desenvolvimento de um espírito condizente com as práticas capitalistas, e sua esfera de atuação reduz com a racionalização social.III – A redução do espaço das concepções da religião na sociedade é um aspecto que contribuiu para a racionalização social.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.b) ( ) Somente a afirmativa I está correta.c) ( ) Somente as afirmativas II e III estão corretas.d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

2 Um dos processos que favoreceu a racionalização social, segundo Weber, foi o chamado “desencantamento do mundo”. Sobre este processo, analise as afirmações seguintes:

I – As formas de organização racionais e burocratizadas ganham espaço após o desencantamento do mundo, favorecidas pela ciência e técnica.II – Ele ocorre quando as práticas religiosas são substituídas por práticas racionalizadas, reduzindo o espaço das forças divinas no mundo.III – Ele ocorre quando as pessoas se desencantam com o mundo social e passam a optar por práticas individualistas e isoladas.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.c) ( ) Somente as afirmativas II e III estão corretas.d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

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