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A sua biografia intelectual confunde- -se, a partir de Abril de 1974, coma historiada sociologia em Portugal. Entrevista com Manuel Villaverde Cabral

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A suabiografiaintelectualconfunde--se, a partirde Abril de1974, comahistoriadasociologiaem Portugal.Entrevistacom ManuelVillaverdeCabral

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MANUEL VILLAVERDE CABRAL

O ENCANTOia Qnn n nr aJn uUu ULUU M

Profissão: sociólogo. Atravessou formações e disci-

plinas, manifestou sempre uma enorme atracçãopelas zonas de cruzamento e indefinição dos sa-beres, mas o apelo da sociologia determinou aparte mais importante do percurso intelectual euniversitário deste professor do Instituto de Ciên-cias Sociais, que foi também director da BibliotecaNacional e vice-reitor da Universidade de Lisboa

ANTÓNIO GUERREIRO TEXTO NUNO FERREIRA SANTOS FOTOGRAFIA

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anuel Villaverde Cabralé uma figura de primei-ro plano na história da

sociologia em Portugal,quer pela sua produçãonessa disciplina cientí-fica, quer pelo papelque desempenhou nafixação e autonomiza-ção, em termos institu-cionais e profissionais,do campo das ciências

sociais. Não foi o único, é certo. E teve antesde si, como pioneiro, a figura de um fundador,12 anos mais velho: Adérito Sedas Nunes, "pai"do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) -começou a funcionar em 1962 e foi extinto em1982, precisamente para dar lugar ao Institutode Ciências Sociais (ICS) -, onde VillaverdeCabral fez grande parte da sua carreira inte-lectual, de cientista social e professor.

Quem hoje, numa posição distante e de lei-

go, acompanha a forte, importante e numero-sa produção nesta área do saber e da investiga-

ção não consegue adivinhar como se deu umaconsolidação muito rápida, já que a sociologia,em Portugal, só muito tardiamente ganhou umestatuto académico e profissional.

A biografia intelectual de Villaverde Cabralconfunde-se, a partir de Abril de 1974, comessa história, que pode ser narrada em tomjubilante. Ingressou, como assistente, na uni-versidade, mais propriamente no ISCTE, em1974, quando tinha regressado de Paris, e des-cobriu aí, como uma "revelação" (são palavrasdele) a sua vocação de professor. Quase aomesmo tempo (e podemos suspeitar que osdois factos estão ligados) sofreu um desen-canto da vocação política

Sigamos, então, em traços largos, o seu

percurso biográfico até ao apelo vocacional.Nasceu nos Açores em 1940, mas foi em Lisboa

que concluiu o Curso Geral dos Liceus, em1957. Chegou a inscrever-se, no ano seguinte,em Arquitectura, na Faculdade de Belas-Artes,mas foi uma falsa partida, e abandonou poucodepois para começar a trabalhar nas Publica-

ções Europa-América.Que a sua estreia, enquanto estudante uni-

versitário, se tenha feito em Arquitectura;que em 1968, cinco anos depois de ter che-

gado a Paris, se tenha licenciado em Letras(Lettres Modernes); que 11 anos depois, em1979, se tenha doutorado em História pelaÉcole des Hautes Études en Sciences Socia-les - mostra bem que estamos perante umespírito ecléctico e com uma grande vocação(a palavra impôs-se desde o início e não nosvai abandonar até ao fim da entrevista) paraatravessar saberes e fronteiras disciplinares,

movendo-se com tanto fascínio pela ciênciacomo pela arte.

A Paris, não chegou Villaverde Cabral porvontade de diletante ou de cosmopolita, nempor razões de trabalho ou de estudo. Chegou,em 1963, para fugir de Portugal, como grandeparte da sua geração, com um currículo demilitância política no PCP, iniciada em 1958.Em Paris, ligou-se a ambientes políticos daesquerda radical e, em 1967, criou os Cadernosde Circunstância, uma revista de resistência ao

fascismo, de teor marxista-lenininista, edita-da entre 1967 e 1970, em Paris, e distribuídaclandestinamente em Portugal.

Mas o seu percurso político é, pelo menosno nosso contexto, muito singular (diríamosmesmo, único) porque entrou em contactocom algo que teve pouquíssimos ecos por cá:

o obreirismo italiano, o operaismo, nomeada-mente com a sua organização mais represen-tativa, o Potere Operaio, criado em 1969 porToni Negri. As portas da fábrica da Fiat, emTurim, Porto Marghera, em Veneza, e Bolo-nha são lugares bem conhecidos das andançaspolíticas de Villaverde Cabral, nessa época.Tal como figuras importantes como MassimoCacciari, Mário Tronti e Toni Negri. Deste úl-timo, continua amigo e pôde contar com umtexto seu num livro de homenagem editado e

apresentado no mês passado, no auditório do

ICS, por dois investigadores de uma geraçãomais nova, José Machado Pais e Pedro Maga-lhães, que deram assim testemunho públicoda sua dívida para com um dos protagonistasda sociologia em Portugal. O livro chama-seCiências Sociais: Vocação e Profissão. Home-

nagem a Manuel Villaverde Cabral (ICS, 2013,632 páginas) e nele participam 30 pessoas,algumas delas de outras disciplinas fora dasciências sociais, o que mostra bem que Villa-verde Cabral atravessa territórios vários eheteróclitos. Dai que um dos colaboradoresno volume, o francês Yann Moulier Boutang(também ele uma figura muito significativa davida intelectual e política de Paris), lhe chame

"lepasseur intranquille" .

Para além de uma introdução biográfica,o livro contém uma grande entrevista, ondese traça de maneira muito exaustiva o per-curso biográfico e intelectual do sociólogo,desde a sua juventude. A circunstância dessa

homenagem plasmada em livro e a extremaactualidade, no momento que estamos a vi-

ver, em Portugal, das questões da investigaçãocientífica e das condições pragmáticas e po-líticas que a condicionam são as razões destaentrevista.

Importa dizer ainda que ele foi vice-reitor daUniversidade de Lisboa, entre 1998 e 2002, e

em 2009 e 2010; e que foi director da Bibliote-

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ca Nacional de 1985 a 1990; e que nos últimosanos dirigiu o Instituto do Envelhecimento daUniversidade de Lisboa (o envelhecimento da

população é uma das linhas de investigaçãoque tem seguido). Talvez menos necessário,para o que aqui nos interessa, seja dizer queVillaverde Cabral foi um dos fundadores (comJosé Pacheco Pereira e João Carlos Espada) doClube da Esquerda Liberal, em 1984. Menosnecessário porque menos representativo, jáque a regra que, em geral, seguiu, depois de

1974, foi o afastamento em relação a activi-dades e militâncias políticas (mas com inter-

venções cívicas frequentes, na esfera pública)e a imersão no ensino e na investigação. Dequalquer modo, as intervenções de carácterpolítico de Villaverde Cabral, as suas decla-rações e entrevistas, tiveram quase sempre,nos últimos anos, um lado heterodoxo, muitasvezes polémico e provocatório, difícil de situarnum lugar ideológico fixo, podendo oscilarescandalosamente no mostrador do espectroideológico.Comecemos pela história da sociologiaem Portugal e da sua institucionalizaçãouniversitária, já que está numa óptimaposição para a contar.A sociologia acabou por se fazer graças ao 25de Abril, até aí era basicamente professoral,sem investigação nem crítica. Há estudos aeste respeito, por exemplo de Manuel Bragada Cruz. Há um mais recente sobre o próprioaparecimento do antepassado do Instituto deCiências Sociais, o Gabinete de InvestigaçõesSociais, dirigido pelo Adérito Sedas Nunes des-

de final dos anos 60, que vem de grupos cató-licos corporativos que se começam a desligardo salazarismo, quando Salazar é substituído

por Marcello Caetano. Há interesse até do fu-turo bispo Manuel Falcão pela sociologia dareligião. Portanto, em Portugal, a sociologiafez-se depois do 25 de Abril, com pessoas no-vas que vieram de outras áreas: o Direito, aHistória, a Economia, etc.A hostilidade do salazarismo em relaçãoà sociologia deve-se à suspeita de queela estava comprometida com visões

progressistas e até marxistas?Basicamente, sim. Mas há também um cor-porativismo profissional. E sentimos isso, de-

pois do 25 de Abril, quando transformámosde facto o ISCTE, destinado à formação nagestão de empresas e do pessoal, numa escolade sociologia. Criámos aí uma licenciatura de

sociologia que levou anos a ser reconhecidapelos próprios regimes democráticos.

E durante décadas os licenciados em So-

ciologia não tiveram qualquer preferência nahabilitação para serem professores de Socio-

logia no secundário; tinham de competir com

os licenciados em História, em Direito, etc.A sociologia que dominava nas Faculdadesde Direito era completamente escolar. Exis-tem manuais, mas não há estudos senão forada própria Academia, desde o século XIX até

praticamente ao 25 de Abril. A grande maio-ria dos cientistas sociais, em sentido lato, nãotinha formação específica. Alguns dos mais

importantes nem tinham formação académica(Alexandre Herculano e Oliveira Martins porexemplo), alguns tinham formação académicaem Direito mas não nas ciências sociais emque se distinguiram.

Uma ciência, antes de ser ciência, começapor ser vocação, como explicou Max Weber.Nesse sentido, há uma matriz comum de cha-

mamento, de apelo. Robert Merton estudouna linha de Weber o surgimento da ciênciano século XVII, com figuras como Newton e

Kepler, cujo apelo pela ciência possui uma di-mensão de transcendência, mas rapidamentea ciência vai-se distinguir da religião e tambémda arte, com a qual partilha, digamos assim,uma dimensão vocacional originária, para se

profissionalizar. Temos um exemplo curiosocom Álvaro Cunhal, que escreveu na prisão A

Questão Agrária em Portugal, que é uma tesede doutoramento tão boa ou melhor comoaquelas que ainda hoje se fazem nas nossasuniversidades. Mas foi a polícia política que,paradoxalmente, pagou o famoso ócio, de

que falava Marx, necessário à arte e à ciên-cia; Cunhal, sem a prisão, possivelmente nãoteria feito a investigação que fez.Em Portugal, é muito fácil identificaros pais fundadores da sociologia: Sedas

Nunes, evidentemente, mas a si tambémlhe é reconhecido um papel importante.É uma questão geracional. Eu venho da His-tória, e Sedas Nunes era economista, nuncaestudou as ciências sociais modernas na uni-versidade, até porque elas não existiam emPortugal.

Os primeiros sociólogos portugueses for-mam-se no estrangeiro. É o caso de HermínioMartins, com uma licenciatura pluridiscipli-nar, como é típico de Inglaterra. Digamos queos fundadores da sociologia em Portugal sãobastantes mais do que aquela lista habitual emque o meu nome também aparece.

Mas não esqueçamos que até ao 25 de Abrilnão há nas Faculdades de Letras, em História,uma única tese de doutoramento sobre o sécu-lo XIX, para já não falar do século XX. Nesse

aspecto, está bem marcada a longa vigênciade um fascismo caseiro que poderá ter sidomenos brutal do que outros, mas foi tão sis-temático ou ainda mais do que a maioria dosoutros. A censura vigorou sem falhas desde o

primeiro ao último dia. Os artigos eram vistos

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êêDurante décadas, oslicenciados em Sociologianão tiveram qualquerpreferência na habilitaçãopara serem professores de

Sociologia no secundário;tinham de competir com os

licenciados em História, emDireito, etc.e revistos, assim como as disciplinas e os pro-gramas, e os professores eram vigiados.

A dimensão política da vocação para as ci-

ências sociais é justamente uma coisa que co-

nheço muito bem porque a vivi, como explicono livro colectivo com que os meus colegasquiseram homenagear-me, numa entrevista

que me fez uma antiga doutoranda italiana,Guya Accornero, autora de uma tese muitointeressante sobre o movimento estudantilantes do 25 de Abril.Nunca houve da parte do Estado Novoa tentativa de fazer da sociologia umaciência legitimadora da sua ideologia edas suas práticas?Isso aconteceu em Espanha e em Itália, ondehavia uma tradição das ciências sociais muitomais antiga e muito mais forte, misturada coma filosofia, a história, a ciência política. O pen-samento elitista italiano anterior ao fascismonão desapareceu. Essas disciplinas continua-ram a funcionar academicamente dentro dos

regimes espanhol e italiano.Há uma questão inegável: o elemento po-

lítico e ideológico faz parte quase natural da

vocação para as ciências sociais. Costumodizer a brincar: uma pessoa indiferente aoordenamento social pode ser um grande mé-dico ou um grande engenheiro, mas é difícilque possa ser um grande sociólogo. Porquea vocação para as ciências sociais começano momento em que se entra numa relaçãode estranheza, dúvida e interrogação acercada realidade social. Se essa realidade parecenatural e dada de uma vez por todas, nãohá vocação. Mas levanta-se o problema deessa inquietação e de essa vizinhança comas ideologias políticas poder contaminar - e

acontece muitas vezes - o próprio trabalhoque se pretende científico.Falou do gesto fundador da sociologia

que é o olhar de interrogação dasociedade. Um olhar interrogador étambém um olhar que dá origem a umpensamento crítico.Claro que sim. Essa discussão, em Portugal,foi muito protagonizada por Boaventura deSousa Santos, que nos interpelava frequen-temente em conferências a partir daquilo a

que ele chamava uma "sociologia crítica". E

eu respondia-lhe: sociologias críticas são to-das, a minha é crítica da tua e a tua é críticada minha. Ninguém faz sociologia para legi-timar o que existe. Terá talvez acontecido em

Espanha e em Itália, mas nunca foi nem irálonge. Uma sociologia amarrada à política tem

sempre os dias contados do ponto de vista dacriatividade e da produtividade científicas.Mas isso passa-se não apenas com asociologia, mas com todas as ciências.Evidentemente. Só que as outras ciências,como não têm uma dimensão política e detransformação do mundo quase co-natural,não suscitam tão imediatamente a questão.As ciências sociais não podem deixar de serrevisionistas, quem chega revê os erros e os

equívocos de quem o precedeu. Quando co-mecei, fiz isso relativamente à problemáticado desenvolvimento, defendida por MiriamHalpern e Magalhães Godinho. Parecia-me queeles tinham uma perspectiva social-democratado desenvolvimento, enquanto eu tinha umaperspectiva mais marxista, do tipo da que Le-nine tinha do desenvolvimento do capitalismona Rússia. E por isso escrevi e publiquei o meulivro sobre o desenvolvimento do capitalismoem Portugal no século XIX, que ao mesmotempo lidava com a problemática do atrasoeconómico no país.A oposição entre Geselschaft eGemeinschaft, estabelecida pelo grandesociólogo alemão Ferdinand Tõnnies,recobre de algum modo a diferençaentre um pensamento sociológico deesquerda e um pensamento sociológicode direita?Não esqueçamos que há uma direita revolu-cionária que também quer mudar o mundo,nem que seja para trás. O fascismo, na sua

pureza, tanto o italiano como o nazi, nãopretendia conservar, pretendia mudar. Emcontrapartida, [Émile] Durkheim era um con-servador que tinha uma posição de centro-esquerda, como o próprio Talcott Parsons,nos Estados Unidos, que era contra a guerrado Vietname.

A politização, ideologização e até partidari-zação das ciências sociais são uma tentação e

um inconveniente permanentes. Poderia aquievocar [Niklas] Luhmann, que é um sociólogoconservador, um sociólogo de "o que tem de

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ser tem muita força". O ter muita força nãosignifica que seja bom, mas também não sig-nifica que seja mau. E faz parte da nossa pro-fissão compreender esses mecanismos.

A consumação da divisão entre sociedade e

comunidade, por um lado, é teórica, foi con-cluída por Max Weber. Por isso é que Weber é

mais importante para mim do que Durkheim.Porque Durkheim é o rei da simultaneidade,da co-presença das comunidades dentro das

sociedades, e talvez por isso muitos dos seus

principais descendentes estejam na antropolo-gia, que é mais a ciência das comunidades do

que das sociedades. O que é que as distingue?As sociedades são livres, eu posso entrar e sair,emigrar para outra sociedade; em comunida-de, no sentido da antropologia clássica, eufaço parte de um grupo fechado. Em suma: a

separação entre Geselschaft e Gemeinschaft, na

minha opinião, está consumada pelo desen-volvimento das sociedades ocidentais. Talveznão possamos aqui incluir o Japão, que é ummistério sociológico.Os nossos conceitos e categorias não seaplicam a ele?A sociologia continua a ser muito ocidental,o que mostra que o nosso grau de cientifici-dade é bastante mais limitado do que, porexemplo, o da bioquímica. Quando falamosdo papel dos BRIC, e em particular da Chinae da índia, temos de ter em conta que as suasestruturas mentais, para falar à maneira deDurkheim, são suficientemente diferentes pa-ra nos perguntarmos se os mecanismos ditos

capitalistas, pretensamente universais, vãofuncionar tal e qual.Evoquemos uma figura exterior à

universidade, como é Georges Bataille,e o Collège de Sociologie. Há aí umpensamento "sociológico" que vem deestranhas regiões, inabitáveis para aciência sociológica.Isso já existe num antropólogo como MareeiMauss, no famoso Essai sur leDon. Casos comoos de Bataille e Mauss situam-se nas frontei-ras interdisciplinares, borderline, existiramsempre e continuarão a existir porque fazem

parte da evolução das ciências sociais. Eu direi

que figuras como Bataille trabalham onde as

ciências sociais, pela sua profissionalização,tenderão a trabalhar cada vez menos. E pode-mos mencionar outros nomes, como [Giorgio]Agamben e [Slavoj] Zizek, que trabalham tam-bém nessa zona, na zona do porquê. Como oJosé Gil, em Portugal, no seu Medo de Existir,ou um Toni Negri no seu Império e na suaMultitudine.

A profissionalização sociológica, pelo con-

trário, responde ao como, ao quem, ao onde,

mas tem de ser muito cuidadosa acerca do por-quê. Gosto de ler os livros borderline porqueaí se encontram frequentemente metáforas

que nos ajudam a sair dos impasses empíri-cos e, como dizia o meu querido FernandoGil, "mais vale uma boa metáfora do que ummau conceito".Aceitamos com naturalidade adesignação de "ciências sociais", masinstaura-se uma hesitação quando sefala em "cientista social"...Tem toda a razão. Mas não posso deixar dereconhecer e até de reivindicar que sou muitoum "cientista social". Digo isso pensando naminha experiência inglesa, depois da experi-ência francesa.

Em França, onde estive até ao 25 de Abril,era historiador e procurei interpretar o papelde historiador aplicado a Portugal no séculoXIX e no início do século XX. Em contrapar-tida, em Oxford, onde estive a seguir ao 25 deAbril durante três anos, não havia licenciaturaem sociologia nem sequer em antropologia.Havia doutoramentos nessas áreas, mas aformação originária era em Social Sciences,tipicamente um curso chamado PPE, isto é,Philosophy, Politics and Economics. O meu é

um caso limite, o de alguém que passou a cer-ta altura da história para a sociologia. Nuncafiz antropologia, mas fiz trabalho de campoe foi muito interessante. Só que, talvez porinfluência originária do marxismo, coloquei-me sempre mais do lado da Geselschaft, dasociedade, do que da Gemeinschaft, da co-munidade.Quando passou de França paraInglaterra mudou tambémcompletamente de latitude cultural?Mudei bastante, mas ao contrário de muitos

colegas meus, que quando descobriram omundo anglo-saxónico deitaram fora o bebécom a água do banho francês, eu nunca deiteie considero que é uma asneira fazê-10.E o que é o bebé francês?É um certo estruturalismo, no fundo. E veja-se como os estruturalismos emergiram emlíngua inglesa, prova de que há coisas que não

desaparecem facilmente. Mas acho lamentá-vel estudar [Pierre] Bourdieu ou [Jacques]Derrida sem os ler em francês. Quando leioBourdieu em inglês, reconheço que não es-tou diante do mesmo Bourdieu. As ciênciassociais nunca atingiram, nem têm de atingir,um grau de formalização que nos emancipeda linguagem natural, da língua materna. Fo-ram os anglo-saxónicos que impuseram umadominação que não resolve o problema, pelocontrário, só complica. Algo se perdeu emparte com a anglo-saxonização das ciênciassociais. Não se pode desprezar as sociologias

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de língua não inglesa. Neste momento, os ale-mães dão cartas.A enorme irradiação dos culturalstudies desalojaram aquilo que nos anos1960 e 70 surgiu como uma enormeconstelação, a "Teoria" - a "Theory"- que unia ou criava pontes entre asvárias ciências humanas e sociais...Voltamos um pouco à questão dos discursosde fronteira. A minha reacção pessoal é esta:

quando me confronto com essa produção,isso cria em mim um movimento contráriono sentido de consolidar a minha área. Lem-bro-me de ter lido uma vez no Times LiterarySupplement uma crítica de uma senhora quefazia um grande elogio de uma das obras mo-numentais do [Fernand] Braudel, que tinhasido então traduzida para inglês, dizendo maisou menos isto: é verdade que naquela partedo Oriente que eu conheço, o que ele diz está

66Acho lamentável estudarBourdieu ou Derrida sem os lerem francês (...) Algo se perdeucom a anglo-saxonização dasciências sociais. Não se podedesprezar as sociologias de

língua não inglesa.Neste momento, os alemãesdão cartas

tudo errado, mas o livro é fantástico na mes-ma. A chamada "teoria" é demasiado global,demasiado abusiva dos espaços intersticiais

gigantescos de ignorância e mobiliza conceitos

com um à-vontade que não resiste aos estudosconcretos. É aí que eu prefiro os estudos mais

aplicados, mais definidos disciplinarmente.Prefiro, por exemplo, os estudos dos media,em vez de uma pretensa teoria mediática dasociedade. Neste sentido, aliás, não fomosmuito mais longe do que um Guy Debord, naSociété dv Spectacle.O futuro das humanidades tem sidodiscutido como uma questão queabrange tanto questões teóricas comoquestões pragmáticas e institucionais.As ciências sociais também entramnesta discussão e neste cálculo?A pergunta é muito pertinente. É um truísmodizer que as ciências sociais e as humanida-des, que são diferentes mas ao mesmo tem-

po têm continuidades e contiguidades, estão

permanentemente em crise e sob ameaça,sendo contaminadas pela evolução dos seus

próprios objectos.Mais do que os conteúdos, está em causa a

forma; ou se quiser, são as formas que ditamos conteúdos. Por exemplo, fenómenos sociais

enormes, como o problema demográfico, o en-

velhecimento, afectam as humanidades maisdo que as próprias ciências sociais porque a

diminuição do número de crianças afectará o

ensino e o professorado formado nas humani-dades. Porém, o carácter propedêutico ligadoà própria profissão do ensino é afectado deum modo muito diferente da investigação e

da ciência. É bom não esquecer que o ensinoexiste porque há conhecimento para ensinare este é produzido pelos investigadores, peloscientistas, que podem ser ao mesmo tempoprofessores. Ora, o ensino é ameaçado pelodesaparecimento das crianças, sendo necessá-rio descobrir um autêntico ensino de recicla-

gem permanente. Os professores de profissãonão podem pretender reproduzir-se apenasenquanto tal se os seus objectos físicos, osalunos, desaparecem.Quanto a essa polaridade investigação/ensino: nos últimos anos, em Portugal,o investimento tem incidido muito maissobre a investigação do que sobre oensino universitário.As universidades e a produção de conheci-mento foram marcadíssimas pelo antigo mi-nistro José Mariano Gago. O que ele pretendeufazer foi mudar a universidade a partir do seulado mais inovador e mais criativo que é a pro-dução do conhecimento e não a reprodução,isto é, a ciência enquanto investigação e nãotanto como transmissão escolar.

A nossa universidade era antiquada porqueo lado da reprodução tinha uma dimensãomuito maior do que a produção. Isso foi vi-

gorosamente corrigido, para melhor, comum grande desenvolvimento da investigaçãocientífica, mas também com algo desagradá-vel e até criticável, talvez inevitável, que foi acrescente imposição dos critérios das ciênciasexactas às ciências sociais e às humanidades.Mas Mariano Gago fez sempre questão de res-

peitar o direito dos praticantes das ciênciassociais e das humanidades ao financiamentoproporcional dos seus campos de pesquisa.

Ainda recentemente, discutimos, na Aca-demia das Ciências, com o presidente daFundação para a Ciência e Tecnologia (FCT),a questão da necessidade de ter critérios deavaliação específicos. Não há dúvida de quehá, aqui, uma grave questão a resolver, queentre outras coisas tem a ver com a dominaçãolinguística do Inglês.

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Mas à medida que a luta pelos recursosse acentuou, as humanidades nãoperderam terreno, não passaram parasegundo plano?Neste momento, sim. As humanidades e asciências sociais, em Portugal, faziam parte deum certo estilo francês. Os franceses tiveramum grande sistema de organização da inves-

tigação científica que era o CNRS, mas entre-tanto entrou em crise e parece que o modeloanglo-saxónico se vai impondo aí também. Em

contrapartida, há uma continuidade institu-cional, organizacional e instrumental, e não é

de ordem metafísica, entre as humanidades,desde as mais gratuitas, aquilo de que se diz

que "não serve para nada", até às ciências so-ciais e até às ciências da vida e da natureza.Essa continuidade existe, não é meramentehistórica e tem uma base organizacional sóli-da através das universidades. A ciência maisexacta continua a ser uma prática organiza-da e continua a ser verdade que os cientistassatisfazem necessidades das humanidades evice-versa.Mas haverá alguma maneira deconvencer as instâncias financiadoras,estatais ou não, de que as humanidadestambém são importantes?Uma coisa que em Portugal tem existido mui-to pouco e há lugar para que haja mais (issoestá discutido no meu artigo sobre vocação e

profissionalização publicado nos Inventáriosdo ICS) é a intervenção de determinadas orga-nizações não estatais, mas com vocação paraa intervenção pública (por exemplo, a Funda-

ção Calouste Gulbenkian), que poderão vir ater um papel mais activo no financiamento adeterminadas linhas de pesquisa nas ciênciassociais e nas humanidades.

Concretamente, faz falta em Portugal nosector público uma distinção crescente entre a

investigação promovida pelo Estado e aquelaque é determinada exclusivamente pelos inte-resses dos investigadores. E assim apresentar-se-iam projectos numa área predeterminadapelos organismos de financiamento públicos(e também privados) como relevante, con-forme acontece com os projectos europeus,a par do financiamento aos projectos espon-tâneos vindos das comunidades científicasespecíficas.E quem é que diz o que é relevante? Nãose coloca aí a questão da autonomia?Nunca nos vamos livrar dessa questão porqueos recursos são finitos por definição. Já discuti-

mos a questão da relevância em público numasessão organizada com a União Europeia peloentão ministro Mariano Gago, cujo conceitoera o de crescimento, no melhor sentido da

expressão.

E isso não está a ser postocompletamente em causa?Não é impossível que tenha chegado um mo-vimento de maior selectividade, tanto ao nívelda quantidade como da qualidade. Até porcausa da escassez de recursos que se verificaem Portugal, mas não só. Devido também às

políticas europeias, que têm levado à mudan-

ça de formatos de financiamento na UE.Até recentemente, Portugal contribuía mais

para a ciência europeia do que aquilo que ialá buscar, o que não tem sentido para um pa-ís pobre e em crise económica e financeira.Sempre defendi que as ciências sociais e ashumanidades têm o dever de devolver à so-ciedade portuguesa, em língua portuguesa,os resultados dos investimentos que são feitosem nós. Porque fazemos parte daquilo a queeu chamo um "debate nacional", que aliás até

pode ser em parte comunicado e transferido

para o Brasil e para a África, o que significaque estamos a falar de um destinatário finalconsiderável.

Nos Estados Unidos, onde as ciências sociaise as humanidades estão organizadas separa-damente das ciências, é mais fácil harmoni-zar os interesses das diversas comunidadescientíficas do que, afinal, entre nós, onde hámenos diferenciação de financiadores e decritérios do que lá fora. No caso das humani-dades, os problemas da investigação e do seufinanciamento muitas vezes podem e devemser tratados fora do campo da ciência.Mas em Portugal a filosofia, a literatura,a arte estão dentro da FCT, ou seja,dentro do campo da ciência.Mas também é verdade, pelo menos essa é a

experiência que tenho, que há uma dificul-dade das humanidades em se adaptarem a

regras destinadas a responder à lógica da con-corrência, que em princípio não é uma coisamá. E Portugal, nos últimos anos, em termosde publicações e de orientação geral peloscritérios internacionais, tem-se adaptado econtinua a adaptar-se gradualmente.

Mas é curioso isto: tendo 30% de todos os

meus artigos publicados no estrangeiro, repa-ro que, até na Internet, e fora de Portugal, soumais citado pelas artigos escritos em portu-guês do que por aqueles que foram publicadosem inglês. Não foi por ter publicado em inglêse em francês que ganhei tantos leitores comoisso. Mas ganhei pontos na avaliação, o quemostra que algo aqui está errado. Aconselhariao presidente da FCT, tal como já o fiz, a criarum conselho superior das ciências sociais e

das humanidades equivalente ao das ciências,com o seu funcionamento próprio.

O grande drama de Portugal, que foi enun-ciado por Fernando Pessoa, foi sempre o mes-

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mo: nós temos uma grande cultura secundá-ria. Temos uma cultura de mil anos, temostudo o que os outros têm, umas vezes mais,outras vezes menos, mas fomos sempre se-cundários. E embora o sensacionismo sejatão bom ou melhor do que o futurismo, todaa gente conhece o futurismo e pouca genteconhece o sensacionismo.Depois desse investimento todo,impulsionado por Mariano Gago, o quese está agora a passar com toda essa

gente que andou, ou ainda anda, a fazerinvestigação?0 que de mais optimista posso dizer é quehouve um processo de crescimento e, comoem todos os processos de crescimento, há umafase selectiva, de redefinição dos critérios de

selecção. O dinheiro é o equivalente geral, co-mo já dizia o dr. Marx. Evidentemente, quandohá mais dinheiro, os critérios são mais lassos,quando há menos dinheiro, os critérios sãomais apertados. Os capitais intelectuais queestas pessoas adquiriram permitir-lhes-ão, emrelativamente pouco tempo, readaptar-se aosnovos critérios que em parte são financeiros e

económicos, mas em grande parte são crité-rios gerais, epocais. Trata-se do crescimentoe da complexificação do sistema. Nisto, man-tenho-me completamente luhmaniano. Uma

das coisas que têm faltado em Portugal é a

aplicação, não apenas nas ciências humanase sociais, também nas ciências exactas. Co-mo se estivéssemos todos a trabalhar para oPrémio Nobel. Mas temos de ser optimistas e

possuímos algumas bases para isso.

• Ler mais sobre a ciência em tempos de criseno Destaque de hoje no caderno principal doPÚBLICO

êêFenómenos sociais enormes,como o problema demográfico,o envelhecimento, afectamas humanidades mais do queas próprias ciências sociais,porque a diminuição do númerode crianças afectará o ensinoe o professorado formado nashumanidades

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