Presidente da SBNp Jovem. -...

42

Transcript of Presidente da SBNp Jovem. -...

2

Caros leitores,

Inauguramos um novo momento na SBNp em que teremos a oportunidade única de imple-

mentar novos projetos e de enfrentar desafios. Estaremos juntos pelos próximos dois anos

aqui no Boletim e nosso foco será em levar a melhor informação com objetividade e lingua-

gem acessível, além, é claro, de um consistente e constante embasamento teórico guiado pe-

las melhores evidências científicas disponíveis sobre temas ou áreas da Neuropsicologia.

Consideramos que se basear em evidências, seja oferecendo informações, realizando atendi-

mentos clínicos ou ministrando aulas é um dever ético. Sendo assim, não poderíamos nos

furtar e nem abandonar essa prática já consagrada em todas as edições dos boletins da

SBNp: só podemos reforçá-la e ampliá-la.

Ademais, vamos mudar nosso site, colocar novas informações sobre Neuropsicologia, enfim,

atualizá-lo em forma e conteúdo. Nosso Facebook será mais ativo e mais próximo de você!

Também continuaremos a aprimorar nossa comunicação externa (com sócios, interessados,

sociedade geral), abriremos espaço para nossos associados escreverem em uma sessão es-

pecial de nosso Boletim e organizar mais e melhores eventos.

Todas essas ações são reflexos de duas metas mais amplas que esperamos alcançar:

1- aproximar nossos sócios, discutir tópicos de interesse da área e representá-los nos espa-

ços de nossa competência sempre que formos demandados;

2- ampliar a divulgação da Neuropsicologia também para aqueles que não são da área

(profissionais de áreas relacionadas, usuários de serviços de Neuropsicologia, sociedade ge-

ral).

Assim, cientes de nossa responsabilidade social e do nosso compromisso com o aperfeiçoa-

mento da prestação dos nossos serviços vamos inovar e trabalhar diariamente para uma

SBNp cada vez mais representativa, ativa, eficiente e que faça jus ao pioneirismo daqueles

que fundaram esta sociedade como nossa querida presidente, a Dra. Deborah Azambuja.

Desejamos, ainda nesse primeiro mês de 2018, que cada um de vocês tenha um excelente

ano de muita aprendizagem, trabalho e saúde. Que a Neuropsicologia esteja sempre com vo-

cês!

Seguimos juntos em 2018!

Cordialmente,

Victor Polignano Godoy

Presidente da SBNp Jovem.

3

4

Quando falamos em tecnologia, o que

você pensa? Provavelmente no seu

celular, naquela TV 4k linda, ou em um

notebook sensacional. E isso está...

tecnicamente certo. Estas coisas são

de fato tecnologias, mas não são a tec-

nologia. A cadeira em que você senta,

a cama em que dorme, o prato que usa

para comer também são tecnologias.

Em linhas gerais, podemos definir tec-

nologia como a nossa capacidade de

utilizar os recursos disponíveis no nos-

so ambiente para solucionar problemas

específicos. Por exemplo: preciso de

alguma coisa que facilite meu conforto

na hora de descansar, então junto al-

gumas madeiras, alguns pregos e, de

acordo com um determinado conheci-

mento, eu consigo montar uma cadei-

ra.

Daí podemos compreender melhor a

tecnologia. Utilizar o que está disponí-

vel no ambiente, somado aos conheci-

mentos prévios adquiridos pelo indiví-

duo, permite que problemas e deman-

das sejam solucionados. Portanto,

quando formos tratar aqui sobre tecno-

logia, é muito importante deixarmos

claro sobre qual tecnologia estamos

nos referindo. Em neuropsicologia po-

demos, por exemplo, utilizar de tecno-

logias simples - como uma mera bola

de borracha - até tecnologias de ponta

- como computadores.

A tecnologia tem revolucionado diver-

sos campos do conhecimento, como a

Medicina, a Engenharia, a Geografia...

Mas o que tem ocorrido com a neu-

ropsicologia? Veremos aqui quais são

as contribuições da tecnologia para

nosso campo do conhecimento, quais

são as barreiras que devemos enfren-

tar, quais são as vantagens, e princi-

palmente, como nós mesmos somos

responsáveis por frear o avanço cientí-

fico da neuropsicologia.

Pensando nisso, precisamos primeiro

entender a tecnologia e a neuropsicolo-

gia a partir de uma perspectiva históri-

ca e didática. Uma boa definição foi

feita por Parsons (2018). Podemos

considerar essa relação em três mo-

mentos, a Neuropsicologia 1.0, aquela

caracterizada pelo uso de lápis e pa-

pel, e alguns instrumentos analógicos.

A Neuropsicologia 2.0, caracterizada

pelo uso de computadores, tablets e

outros instrumentos em “displays” e,

por fim, a Neuropsicologia 3.0 caracte-

rizada pelo uso de realidade virtual ou

realidade ampliada.

Então, antes de começarmos, preciso

deixar claro uma coisa. A 3.0 não ex-

clui a 2.0, da mesma forma que esta

5

não exclui a 1.0. Não teremos uma ex-

clusão do lápis e papel, dos objetos de

madeira e dos brinquedos. Teremos

cada vez uma neuropsicologia mista,

em que o profissional terá em mãos um

arsenal de ferramentas que utilizará de

acordo com a sua necessidade e seus

conhecimentos.

A Neuropsicologia 1.0

Esta é a neuropsicologia criada pelos

autores clássicos. Luria utilizava apara-

tos de madeira e palavras para avaliar

“funções psíquicas superio-

res” (Hanfmann 1968). Brenda Milner a

frente do clássico caso HM, utilizou es-

pelhos, papéis e lápis para avaliar a

aquisição da memória procedural pelo

paciente (o famoso experimento da es-

trela no espelho). Importante compre-

ender que neste período inicial da neu-

ropsicologia consolidava-se a noção de

“normalidade”, onde o profissional seria

capaz de compreender se a performan-

ce abaixo de determinado limiar pode-

ria ser caracterizada como patológica

ou não, mesmo que dados normativos

não tenham sido completamente esta-

belecidos para muitos dos testes.

Aqui podemos compreender bem como

as tecnologias podem revolucionar os

campos do conhecimento. Muitas das

avaliações neuropsicológicas eram re-

alizadas a partir de demandas de neu-

rologistas que – a com base na noção

do localizacionismo – necessitavam

localizar as lesões cerebrais de seus

pacientes a partir de testes neuropsico-

lógicos. Com o avanço da eletroence-

falografia e de outras técnicas de exa-

me este tipo de avaliação foi sendo

aprimorado, o que levou à segunda on-

da do desenvolvimento de instrumen-

tos de avaliação neuropsicológica.

Os esforços da segunda onda do de-

senvolvimento de instrumentos de ava-

liação neuropsicológica 1.0 eram volta-

dos ao objetivo de descrever os dados

normativos de forma quantitativa. Alfed

Binet, David Wechsler, Ward Halstead

são exemplos de autores que desen-

volveram testes de lápis e papel, po-

rém a partir de uma perspectiva quanti-

tativa. Podemos destacar aqui testes

clássicos como o teste de cartas de

Wisconsin, as escalas Wechsler de In-

teligência, Figura Complexa de Rey,

RAVLT, Torres de Hanoi e Londres, e

muitos outros. É importante frisar tam-

bém que muitos destes testes que sur-

giram nesta época perduram até hoje,

mesmo aqueles baseados na perspec-

tiva localizacionista (Ruff, 2003).

Podemos então perceber como a avali-

ação de lápis e papel continua sendo

utilizada mesmo com o desenvolvimen-

to de técnicas de neuroimagem, tendo

6

tornado a avaliação localizacionista

completamente obsoleta. Esta obsoles-

cência não acabou com o os testes de

lápis e papel; pelo contrário, mudou

seu enfoque para identificar o impacto

das habilidades e comprometimentos

neurocognitivos do indivíduo sobre a

sua vida diária, permitindo predições

como válidas ecologicamente

(Parsons, 2017, p. 46) .

A Neuropsicologia 2.0

Foi na década de 80 que o avanço da

computação começou a atrair a aten-

ção dos neuropsicólogos sobre como

isso poderia beneficiar o processo de

avaliação. As principais características

que chamaram a atenção dos pesqui-

sadores foram a facilidade de adminis-

tração, a automatização, precisão de

registro, capacidade de registro de da-

dos, apresentação de estímulos com-

plexos, e em alguns casos até mesmo

a interpretação informatizada dos re-

sultados de um teste. Claro que com

essas vantagens surgiram discussões

sobre como podemos utilizar da melhor

maneira este tipo de avaliação. Erros

de software eram comuns, muitos dos

pacientes não eram familiarizados com

computadores, e havia as diferenças

entre populações (autistas por exemplo

poderiam ter mais facilidade em testes

administrados por computadores do

que por um humano).

A Tabela 1 descreve algumas das prin-

cipais vantagens e desvantagens da

Neuropsicologia 2.0; principalmente no

que tange ao uso da avaliação neu-

ropsicológica computadorizada, como

reportado por Feldstein e colaborado-

res (1999).

Perceba que, se observarmos uma li-

nha geral, as vantagens apresentadas

pela Neuropsicologia 2.0 complemen-

tam as desvantagens da 1.0. Por outro

lado, as desvantagens são praticamen-

te complementadas pela prática da

neuropsicologia 1.0. Portanto, pode se

dizer que um tipo de prática comple-

menta a outra! A neuropsicologia cami-

nha para uma prática híbrida, onde o

computador complementa o lápis e pa-

pel, e vice-versa.

Porém, pensando mais focalmente no

Brasil, possuímos poucos instrumentos

computadorizados disponíveis comerci-

almente. E muitos destes são versões

antigas, que não são atualizadas há

anos. Devemos considerar que os tes-

tes computadorizados são como os

testes de lápis e papel, também preci-

sam passar por uma atualização teóri-

ca (e também de usabilidade).

Nosso grupo de pesquisa tem desen-

volvido uma bateria de avaliação de

Funções Cognitivas totalmente compu-

tadorizada e adaptada ao contexto bra-

sileiro. O “NeuroToolkit”, como chama-

7

mos internamente, já está em fase de

pesquisa, e em um futuro próximo es-

tará disponível comercialmente para

neuropsicólogos de todo o Brasil. De-

senvolver um instrumento computadori-

zado envolve pensar principalmente

nas desvantagens do seu uso, quais

públicos alvos requerem maior atenção

(ex.: Os textos são legíveis por ido-

sos?), e assim por diante.

A grande vantagem da neuropsicologia

2.0 é a possibilidade de integrar os

exames neuropsicológicos com aque-

les de neuroimagem e genéticos. Digi-

talizar os dados e analisá-los a partir

de um grande conjunto poderá trazer

insights valiosos no futuro da neuropsi-

cologia, tanto da perspectiva clínica

quanto da de pesquisa. Este é o mun-

do do “Big Data”, a compilação de um

conjunto de dados massivos e específi-

cos gerados em determinado contexto.

Estamos caminhando para a era dos

“diagnósticos precisos”, onde compilar

uma quantidade grande de dados e

compará-los a partir de diversas bases

de forma automática e rápida trará uma

eficiência muito maior para a avaliação

Tabela 1

Vantagens Desvantagens

Maior controle durante a administração e re-

gistro de pontuação

Softwares podem apresentar erros de progra-

mação ou travar

Maior precisão no registro do tempo Muitos apresentam “rigidez” no processo de

avaliação, reduzindo a versatilidade

Aleatorização dos estímulos automaticamente Pode não apresentar encorajamento a partir

de um bom rapport

Testes Adaptativos

Podem mascarar déficits que não seriam per-

ceptíveis em determinadas populações (ex.:

autistas podem desempenhar melhor em tes-

tes computadorizados, jogadores de videoga-

me apresentam melhor performance em tes-

tes computadorizados como o CPT)

Capacidade de avaliar indivíduos à distância Alguns não apresentam correspondência com

seu teste lápis e papel

Portabilidade Ansiedade a computadores ainda é prevalen-

te em determinadas populações, como idosos

Implementação de algoritmos baseados em

regras estatísticas (ex.: Teoria de Resposta

ao item)

Avaliar processos subjetivos como a motiva-

ção do paciente durante a avaliação pode ser

um desafio.

Possibilidade de registro do tempo de reação

em milisegundos

Pode aumentar a acessibilidade dos instru-

mentos

Redução na influência do avaliador no proces-

so de avaliação

8

neuropsicológica e, como consequên-

cia, um processo de intervenção mais

focado e eficiente.

Mas não paramos por aqui. A Neu-

ropsicologia caminha para um proces-

so maior ainda de integração tecnológi-

ca, dessa vez preocupada cada vez

mais com a validade ecológica de uma

avaliação. O quão será que resultados

de um determinado teste podem predi-

zer o funcionamento de um indivíduo

em sua vida diária? São dois principais

fatores que são procurados em uma

avaliação ecologicamente válida: a ve-

rissimilitude, onde a demanda de um

teste e suas condições devem lembrar

as condições da vida diária que estão

sendo avaliadas, e a veridicalidade,

onde a performance em um teste pre-

diz algum aspecto do funcionamento

diário do paciente.

A Neuropsicologia 3.0

Por um lado a neuropsicologia 1.0 utili-

za lápis e papel e aparatos físicos para

avaliar a cognição do indivíduo inserido

num mundo físico, por outro, a 2.0 utili-

za um ambiente “pseudovirtual” para

fazer esta avaliação. Digo

“pseudovirtual” porque, apesar de você

estar observando uma tela de compu-

tador, basta movimentar seus olhos

(Amostra da nossa versão computadorizada do teste da Torre de Londres que faz parte da nossa

bateria de avaliação cognitiva computadorizada, desenvolvida por Emanuel Querino; Carlos Gui-

lherme Scholttfeldt; Alberto Timóteo e Leandro Malloy-Diniz)

9

que você verá que ainda está presente

no mundo real, perdendo facilmente o

foco atencional ali.

A neuropsicologia 3.0 é caracterizada

justamente pelo uso de realidade virtu-

al para complementar o processo de

avaliação ou reabilitação neuropsicoló-

gica. Sua grande vantagem está no fa-

to de que o indivíduo é imerso comple-

tamente em um ambiente virtual, remo-

vendo toda a possibilidade dele de

desviar a atenção dali. Deixa eu expli-

car como funciona.

Um óculos de realidade virtual é com-

posto basicamente por uma caixa com

duas telas esféricas dentro dela (uma

para cada olho). Isso implica que você

não tem como desviar seu olhar dali.

Mais ainda, há uma sensação de imer-

são em 360 graus, pois se você movi-

menta a sua cabeça para um lado, o

seu campo visual também movimenta-

rá dentro do ambiente que você está

inserido. Essencialmente você tem a

impressão de estar completamente

imerso naquele ambiente. Existem di-

versos óculos de realidade virtual dis-

poníveis no mercado.

Apesar do enorme potencial da realida-

de virtual para a avaliação neuropsico-

lógica, muitos dos testes desenvolvidos

meramente replicam algum teste da

neuropsicologia 2.0 em um ambiente

virtual. O teste de cartas de Wisconsin

(WCST) é um bom exemplo de um tes-

te que existe, ao mesmo tempo, nas

três versões da neuropsicologia: você

possui a versão em cartas físicas, a

versão computadorizada, e uma versão

em realidade virtual, que na verdade é

idêntica a anterior, porém possível de

ser utilizada em realidade virtual.

Bom, a proposta da realidade virtual é

simular ambientes de vida diária. Por-

tanto, a tendência maior é dos instru-

mentos de avaliação passarem a simu-

lar contexto da vida diária destes indiví-

duos e suas demandas cognitivas. Por

exemplo, em vez da mera aplicação do

teste, podemos criar um ambiente vir-

tual de uma cozinha onde o paciente

deve preparar um bolo, porém pode-

mos simular ali situações onde a flexi-

bilidade cognitiva é exigida (os ingredi-

entes não estão no local apropriado, o

paciente deve improvisar a forma de

bater a massa, assim por diante).

10

Simular ambientes reais proporciona

um controle maior das variáveis a se-

rem expostas ao paciente. O profissio-

nal poderá comparar pessoas passan-

do pela exata mesma situação e como

elas lidam com ela - algo que é inviável

em uma avaliação presencial no ambi-

ente escolar. O ambiente virtual AULA

Nesplora (Diaz-Orueta et al., 2013)

apresenta resultados promissores. A

performance de crianças com TDAH

neste teste é similar aos testes padrão

ouro de atenção, ao mesmo tempo em

que proporciona diversas informações

tais como quantidade de movimentos

da cabeça, foco visual, etc..

Apesar da aparente novidade da reali-

dade virtual (popularizou-se mundial-

mente a partir de 2015), ela tem sido

utilizada já há quase 20 anos para in-

tervenções terapêuticas. Por exemplo,

o sistema CAVE (Strickland, 1996) foi

um dos pioneiros ao introduzir a reali-

dade virtual para o tratamento de fobi-

as específicas (por exemplo, aracnofo-

bia e acrofobia). Esses sistemas pio-

neirneiros chamam a atenção por con-

ta do tamanho da sala e da quantidade

enorme de sensores necessários para

seu funcionamento. Hoje é possível

utilizar realidade virtual com uma caixa

de papelão e um smartphone (saiba

mais sobre o Google CardBoard).

Pensando no processo de intervenção,

existem diversos ambientes virtuais

disponíveis no mercado. A Walk

Through Dementia ajuda familiares de

pacientes com Alzheimer a se

“colocarem nos olhos” dos pacientes e

viverem como se tivessem lapsos de

memória. Limbix é uma plataforma de

realidade virtual que apresenta diver-

sos programas de intervenção que vão

desde o treino de habilidades específi-

cas, terapia de exposição e até mesmo

para mindfulness. Psious permite ao

terapeuta a possibilidade de inserir

seus pacientes em ambientes virtuais

aversivos de forma gradativa e intervir

sobre fobias a partir da perspectiva da

dessensibilização sistemática.

Ambientes de realidade virtual são mui-

to promissores. Porém, ainda há uma

escassez de produtos desenvolvidos

especificamente para este contexto.

Mais ainda, aqueles disponíveis focam

na avaliação de constructos cognitivos

de forma similar aos testes computado-

rizados tradicionais, sem aproveitar o

real potencial destes ambientes de rea-

lizar uma avaliação ecológica. Um ou-

tro problema que encontramos hoje se

dá pelo fato de que ambientes virtuais

são fragmentados.

11

Diversas empresas disputam este mer-

cado e cada qual possui seu ecossiste-

ma de realidade virtual (ver tabela 2).

Com isso, se desenvolvo um programa

de intervenção em realidade virtual pa-

ra um deles, preciso adaptar para os

outros, o que é uma tarefa onerosa em

termos de tempo e dinheiro. Pense co-

mo se eu estivesse desenvolvendo um

aplicativo e tivesse de publicá-lo tanto

para Android quanto para iOS (o que já

é custoso). A diferença é que aqui pre-

ciso fazer o mesmo processo para 5

ambientes, ou mais.

É importante ficarmos atentos ao que

está por vir. A Realidade Virtual tem

todo potencial para se tornar uma das

principais ferramentas disponíveis para

um neuropsicólogo realizar uma avalia-

ção mais precisa ou intervenção mais

eficiente. Este é um cenário futuro, que

requer uma adesão em massa de ócu-

los de realidade virtual (hoje no Brasil

um bom óculos pode sair por R$ 3500).

Por outro lado, existe um aparelho que

possui um enorme potencial para con-

tribuição para a neuropsicologia: o

smartphone.

Dicas de alguns aplicativos para se-

rem utilizados

Segundo dados da Google, cerca de

62% dos brasileiros já possuem um

smartphone. Cada vez mais temos dis-

poníveis aplicativos que podem auxiliar

a nossa prática clínica de diferentes

maneiras, seja poupando nosso próprio

tempo, minimizando erros, ou até mes-

mo para auxiliar diretamente na reabili-

tação neuropsicológica.

1) Automate /IFTTT / Zapier:

Imagine a situação: quantas vezes vo-

cê já esqueceu de levar o lixo para fora

de casa? Agora imagine que você che-

ga em casa, seu celular registra esse

evento através do GPS, e exatamente

às 20:00 ele dispara um alarme te lem-

brando de levar o lixo para fora?

Tabela 2

Empresa Nome do Produto Facebook Oculus Rift

Google Google DayDream

Valve e HTC HTC Vive

Samsung Samsung Gear VR

Sony Playstation VR

12

O IFTTT e o Zapier fazem exatamente

isso. Ele registra pequenas condições,

e de acordo com elas faz alguma ação

(ou seja: seguindo um script). Você po-

de utilizar este app para você mesmo

gerenciar algumas coisas no seu dia a

dia ou até mesmo para ajudar algum

paciente! As possibilidades são limita-

das somente pela sua criatividade

(vamos lá, você é criativo, vai). Imagine

que você está auxiliando um paciente

que frequenta diversas reuniões no seu

dia a dia. Você poderá configurar o ce-

lular dele para entrar no modo silencio-

so sempre que ele chegar em um de-

terminado local. E para ele não perder

ligações importantes, assim que ele

sair da reunião terá o smartphone de

volta no modo normal. Quer ajudar

uma criança a ficar mais tempo longe

do Smartphone? Configure o aplicativo

para lembrar o usuário de que ele está

usando o telefone demais.

Em questão de simplificação ou dispo-

nibilidade de recursos, o Automate ge-

ralmente dá mais liberdade ao usuário

em suas ações. O IFTTT possui uma

interface muito simples. Já o Zapier é

bem robusto, porém só funciona do na-

vegador do computador.

Em qualquer um dos casos, sugiro que

você experimente consigo e tente es-

tratégias diferenciadas na sua prática.

Boa sorte!

IFTTT para Android:

https://play.google.com/store/apps/

details?id=com.ifttt.ifttt

IFTTT para iOS:

https://itunes.apple.com/us/app/ifttt/

id660944635?mt=8

Automate (somente para Android):

https://play.google.com/store/apps/

details?id=com.llamalab.automate

2) Calculadora de Escore-Z do Ilumi-

na (somente para Windows)

Você sabe a importância de se utilizar

o escore-z? Ele traz uma medida preci-

sa e muito importante do quanto o es-

core de um indivíduo se distancia da

média populacional. Nós desenvolve-

mos uma calculadora para isso. Basta

inserir o escore obtido, a média popula-

cional e o desvio padrão que ela irá

operar sua mágica.

O escore z indica quantos desvio pa-

drão um determinado escore está em

relação a média. Em outras palavras,

quão mais distante de zero for o resul-

tado obtido, mais desviante da média

será aquele resultado. Por exemplo,

um escore z de 0,9 pode indicar que

aquela pontuação do seu paciente não

13

foge tanto da média populacional. Po-

rém, um escore z de 2,5 indica uma

pontuação significativamente acima da

média (pense em 2 desvios padrão e

meio)! O mesmo raciocínio pode ser

aplicado com escores abaixo de zero.

Pontuações negativas aqui geralmente

indicam uma performance significativa-

mente abaixo da média.

Baixe a calculadora de escore Z clican-

do aqui.

3) Age Calculator

Muitos instrumentos de avaliação pos-

suem normas segmentadas por idade

em meses e anos. Por exemplo, uma

criança pode ter 6 anos e 8 meses de

idade, e dependendo da situação isso

pode ser bem chato de se calcular. Um

aplicativo aumenta a precisão e reduz

a chance de você cometer erros duran-

te a correção destes testes.

Para Android: https://play.google.com/

store/apps/details?

id=nilesh.agecalculator

Para iOS: https://itunes.apple.com/br/

app/calculadora-idade/id899851109?

mt=8

4) TRELLO / monday.com

Gerenciamento e sequenciamento de

tarefas podem ser dificuldades comuns

em quadros onde há um déficit em

Funções Executivas. Aplicativos como

o Trello e o monday.com permitirão a

pessoa criar uma sequência de ações

que deverão ser feitas a partir de um

objetivo.

Por exemplo, eu posso criar um quadro

(assim são chamadas as categorias no

aplicativo) focado somente na “lista do

que fazer após sair da Faculdade” e

nele incluir por exemplo a lista de com-

pras, verificar se não deixou alguma

tarefa acumular, etc... Essencialmente

esses aplicativos funcionam como uma

“lista de afazeres” mais fácil de se

usar, mas que permite que a pessoa

possa inclusive se organizar a partir de

objetivos de curto, médio e longo pra-

zo. Preciso me preparar para uma via-

gem de final de ano, então tenho de a

cada 15 dias depositar 50 reais na mi-

nha conta bancária. Cada vez que eu

deposito ele marca como “concluído”, e

isso vai se acumulando e me dando

uma sensação de progresso ali no pró-

prio app.

Mas em se tratando de déficits executi-

vos, pode ser que a pessoa se esque-

ça de usar a lista. Daí entram, por

exemplo, os primeiros aplicativos que

descrevi aqui. Que tal lembrar sempre

em determinado horário, quando che-

gar em casa, de revisar sua lista de

afazeres no dia seguinte?

14

Para Android: https://play.google.com/

store/apps/details?id=com.trello

Para iOS: https://itunes.apple.com/br/

app/trello/id1278508951?mt=12

5) Google Photos

Sim, se você utiliza alguma conta goo-

gle deve saber que sua vida é total-

mente rastreada pela gigante da tecno-

logia. Eles sabem tudo sobre você,

mas muitas dessas informações po-

dem ser usadas em benefício próprio!

Eu sempre tiro fotos de coisas que de-

vo lembrar. Costumo chamar isso de

meu “HD externo” cerebral. Por exem-

plo, costumo tirar fotos de todas as lis-

tas de chamada das aulas que dou.

Como o Google Photos armazena as

minhas fotos de forma online, me certi-

fico que, caso perca a lista em papel,

eu tenha uma cópia armazenada em

algum lugar.

Até ai tudo bem. Mas aqui que entra o

avanço da inteligência artificial aplicada

ao nosso dia a dia. O Google Photos

sabe identificar as suas fotos! Se eu

digitar no campo de busca a palavra

“cachorro”, ele irá me mostrar todas as

fotos e vídeos em que um cachorro

aparece. Se eu digitar “papel”, lá está

minha lista de chamada! Dessa forma

fica muito fácil rastrear coisas que eu

possa ter feito no passado, e que – ge-

ralmente – não me lembro.

Para Android: https://play.google.com/

store/apps/details?

id=com.google.android.apps.photos

Para iOS: https://itunes.apple.com/us/

app/google-photos/id962194608?mt=8

6) Cogni

Se você trabalha com terapia cognitivo

comportamental deve usar bastante o

bom e velho “registro das emoções”.

Que tal automatizar e digitalizar este

registro?

O Cogni serve justamente para tornar

este processo fácil. Hoje todos nós an-

damos com o celular por perto. Com

alguns poucos toques na tela podemos

registrar as emoções de forma imedia-

ta. E isso poderá ser compartilhado

com o psicólogo depois!

Uma das grandes vantagens de se uti-

lizar aplicativos no processo clínico es-

tá justamente na disponibilidade dele

no nosso dia a dia. Hoje, a maior parte

da população possui um smartphone

disponível. É mais fácil inclusive pen-

sar no registro de sua vida diária atra-

vés de fotos ou aplicativos do que no -

cada vez mais raro - lápis e papel.

Para Android: https://play.google.com/

store/apps/details?

id=com.spotwish.cogni&hl=en

Para iOS: https://itunes.apple.com/br/app/cogni/id902479424?mt=8

15

Como podemos avançar mais? -

Uma crítica amigável

Quando consideramos avanços tecno-

lógicos, existe uma grande discrepân-

cia entre aquele que ocorreu por meio

de instrumentos de avaliação como as

escalas Wechsler (e vários outros) e,

por exemplo, a medicina

(sequenciamento genético, exames de

tomografia, e etc ). A nível de compara-

ção, televisores ainda eram capaz de

transmitir imagens somente em preto e

branco quando o WAIS original foi pu-

blicado em 1955, porém, o processo de

avaliação do instrumento permanece

praticamente o mesmo até hoje... Pode

-se argumentar que “o WAIS-III é dife-

rente do I porque tem itens mais espe-

cíficos e sensíveis” ou a “aplicação ho-

je é mais fácil do que a do WAIS-I” e

eu concordo plenamente com você.

Mas…

Com testes informatizados é possível

aplicar uma teoria de resposta ao item

que ocorre automaticamente a partir do

poder de processamento do computa-

dor, reduzindo assim o tempo de apli-

cação do teste. Podemos também ter

maior precisão no registro do tempo de

reação do paciente (lembre-se que cal-

culamos sempre o tempo de reação

deles e do nosso ao ter de apertar o

cronômetro).

Podemos ter estímulos adaptados ao

vivo para populações com déficits visu-

ais (como por exemplo cada tipo de

daltonismo ao mudar a paleta de cores

dos estímulos). E muito mais vanta-

gens.

A aplicação é um processo longo e

cansativo tanto para o cliente quanto

para o neuropsicólogo, com margens

a erros humanos (por favor levante a

mão quem nunca errou ao aplicar algu-

ma escala Wechsler), e com uma cor-

reção que envolve um lápis, uma cal-

culadora, ficar somando um monte de

números aqui e ali para depois ficar

olhando um monte de tabela enorme

para converter escores... Isso NÃO é

neuropsicologia.

Isso é corrigir uma prova escolar com-

plexa. Não envolve raciocínio clínico, é

algo procedural. De fato, possuímos a

correção informatizada. Mas, que tal

uma folha de registro digital em que

você anota os escores e eles são so-

mados automaticamente para você?

Daí ao vivo, durante a aplicação, você

passa a ter conclusões objetivas do

que está sendo feito e se as dificulda-

des são discrepantes ali.

Uma analogia: imagine que o médico,

ao fazer uma mera aferição da pressão

arterial, tenha de colocar o esfigmoma-

nômetro no pulso do indivíduo, calcular

16

a pressão atmosférica num aparelho,

anotar a pressão, calcular a diferença

da pressão com a pressão do indiví-

duo, depois disso ele precisa registrar

essa diferença para então começar a

bombear o ar. O esfigmomanômetro

então dará um resultado que o médico

deverá olhar numa tabela qual é a con-

versão correta para os padrões interna-

cionais de pressão arterial, e ver se es-

sa pressão está de acordo com o que é

esperado para aquele indivíduo.

Parece absurdo, não? Mas agora leia o

parágrafo anterior sobre as escalas

Wechsler e você entenderá o que es-

tou dizendo sobre como o processo de

avaliação neuropsicológica é burocráti-

co, lento e ineficiente, sem necessida-

de. Podemos economizar tempo, fazer

uma avaliação com uma probabilidade

de erro humano muito menor, ter da-

dos registrados para eu acessá-los de

onde eu estiver e muito mais. Mas...

por quê não existem essas tecnologias

disponíveis para nós? Por que não há

demanda.

Como demonstrado por Miller (2017),

neuropsicólogos são tecnofóbicos.

Tendemos a focar muito nos proble-

mas inerentes do uso da tecnologia na

prática clínica do que em suas vanta-

gens. Um dos focos mais comuns é a

preocupação com a diferença entre os

aparelhos “Ah, mas o brilho da tela do

meu computador é diferente da do

seu”; “mas e se a bateria acabar?”;

“mas e o lúdico?”. Bom, o brilho da luz

da minha sala de atendimento é dife-

rente do da sua, para a bateria não

acabar você deixa ela carregando toda

noite, e quanto ao lúdico… celular e

computador não são lúdicos para as

pessoas hoje em dia? Toda tecnologia

tem prós e contras, o problema é que

muitos profissionais são tão focados

nos contras que os prós deixam de

existir.

Isso leva a falta de demanda. Se nin-

guém quer comprar testes computado-

rizados, por que vou produzi-los? Boa

parte da receita vem da venda de pro-

tocolos de avaliação, aquele papel que

você compra todo mês, e que fica acu-

mulando no seu armário por cinco

anos. Não seria melhor ter todos os

dados do seu paciente seguramente

guardados num servidor na nuvem,

que poderei acessar de qualquer dis-

positivo a hora que eu quiser, sem cus-

tos?

Essa lentidão em adotar novidades

prejudica o avanço da neuropsicologia

como campo do conhecimento. Primei-

ro que a lentidão de adesão desestimu-

la a inovação, pois não há demanda.

Segundo que, ainda hoje, o processo

17

de criação e adaptação de um instru-

mento de avaliação neuropsicológica é

o mesmo de muitos anos atrás. Você

possui um grupo de pesquisadores

que, com sua equipe, organizam uma

coleta de dados, pegam os resultados

dessa coleta em papel e passam para

o computador (quem já fez isso sabe o

tempo que isso toma...), depois anali-

sam os dados, passam pela burocracia

da publicação, e então alguns meses

(ou anos) depois estão na mão dos

neuropsicólogos para serem utilizados.

Os instrumentos de avaliação neu-

ropsicológica já chegam na sua mão

desatualizados.

Informatizar todo o processo de avalia-

ção implicaria que todo neuropsicólogo

que fizesse uma avaliação neuropsico-

lógica participaria de uma produção

sistemática e objetiva do banco de da-

dos daquele teste, pois os resultados

são calculados e transferidos automati-

camente aos dados normativos daque-

le instrumento. Isso implica que temos

agora normas sempre atualizadas e

confiáveis daquele instrumento.

Conclusão

Quantos testes computadorizados, ins-

trumentos de intervenção ou tecnologia

foram expostos a você durante a sua

graduação e/ou especialização ? Creio

que você poderá contá-los nos dedos,

e usando somente uma mão. Nossa

formação ainda é tradicional, pois nós

não ainda acordamos para as vanta-

gens que a tecnologia pode trazer à

nossa prática clínica. Por mais que

muito do que vocês leram aqui possa

ser visto com aversão por alguns, pre-

cisamos entender a neuropsicologia

como ciência. Campos científicos pos-

suem avanços tecnológicos que andam

sempre juntos. Fechar os olhos para

esta realidade corresponde a negar o

avanço da neuropsicologia como um

campo científico. Portanto, devemos

abraçar a tecnologia como o que ela é:

um conjunto de ferramentas e técnicas

a serviço de nós, profissionais.

18

Hanfmann, E. (1968). Goldstein and

Vygotsky. In M. Simmel (Ed.), The

reach of mind. New York: Springer.

Ruff, R. M. (2003). A friendly critique of

neuropsychology: Facing the challeng-

es of our fu-ture. Archives of Clinical

Neuropsychology, 18, 847–864

Strickland, D., Virtual reality and mental

disorders (panel). In: Proceedings of

the 23rd annual conference on Com-

puter graphics and interactive tech-

niques (CGI ’96) (New Orleans, Louisi-

ana, USA, August 4-9, 1996). ACM

Press, New York, NY, USA, 1996,

p.509-510.

Kane, R. L., & Parsons, T. D. (Eds.).

(2017). The role of technology in clini-

cal neuropsychology. Oxford University

Press.

Feldstein, S. N., Keller, F. R., Portman,

R. E., Durham, R. L., Klebe, K. J., &

Davis, H. P. (1999). A comparison of

computerized and standard versions of

the Wisconsin Card Sorting Test. The

Clinical Neuropsychologist, 13, 303–

313

Diaz-Orueta, U., Garcia-Lopez, C.,

Crespo-Eguilaz, N., Sanchez-

Carpintero, R., Climent, G., & Narbona,

J. (2014). AULA virtual reality test as

an attention measure: Convergent va-

lidity with Conners’ continuous perfor-

mance test. Child Neuropsychology,

20, 328–342

Rothbaum, B. O., & Hodges, L. F.

(1999). The use of virtual reality expo-

sure in the treatment of anxiety disor-

ders. Behavior Modification, 23(4), 507-

525.

Miller, J. B., & Barr, W. B. (2017). The

Technology Crisis in Neuropsychology.

Archives of Clinical Neuropsychology, 1

-14.

Psicólogo. Mestre em Medicina Molecular (UFMG). Foi professor do curso de graduação

em Psicologia no Instituto de Ensino Superior de Manhuaçu e da Pós-graduação em Neu-

ropsicologia (CMMG, Uninorte, Faculdade do Futuro, IPOG, INTCC). É sócio e diretor de

Inovação no Ilumina Neurociências. Coordenador geral do Ensino à distância da mesma

instituição. Atua como desenvolvedor de inovações tecnológicas aplicadas à psicologia e

neuropsicologia. Tem como foco de pesquisa novas tecnologias para estimulação cognitiva

para Funções Executivas e do impacto de videogames na cognição.

Referências

19

Marina Nery e Priscila Covre são nomes de referência no cenário nacional quando

tratamos de Reabilitação Cognitiva. Para nosso imenso prazer e gratidão, as duas

profissionais aceitaram o convite da SBNp e se dispuseram a compartilhar conosco

um pouco de suas experiências e conhecimento na área.

Priscila Covre é psicóloga pela Universidade Mackenzie, mestre e doutora em Psicobiologia pela

UNIFESP. Realizou doutorado sanduíche na University of York sob supervisão dos professores

Alan Baddeley e Graham Hitch e participou do programa de psicóloga visitante no Centro de Rea-

bilitação Neuropsicológica Oliver Zangwill em Ely na Inglaterra. Ministra aulas como convidada em

cursos de especialização em Neuropsicologia, Reabilitação Neuropsicológica e Psicopedagogia.

Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Neuropsicologia e Terapia Cognitivo-

Comportamental.

Marina é Mestre em Neurociências pela UNB, Psicóloga pela PUC de Goiás. É especialista em

Neuropsicologia pelo CFP, Reabilitação Cognitiva pelo NEPNEURO e Docência Superior.

Atualmente é neuropsicóloga clínica, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Reabilitação

Cognitiva e do curso de Especialização em Neuropsicologia do NEPNEURO. Diretora técnico-

científica do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Neurociência. Membro da Society for Cognitive Re-

habilitation.

Sabemos que o processo de Reabilitação Cognitiva é longo e que alcançar o

estado pré-mórbido é muito improvável. Para além das expectativas do pa-

ciente e familiares, como você acha que as expectativas do reabilitador, so-

bretudo iniciante, podem influenciar nos resultados e o andamento do pro-

cesso?

Marina Nery: O programa de reabilitação tem algumas etapas a serem cum-

pridas. A proposta atual é que o foco seja centrado no paciente e em seus famili-

ares, sendo que eles devem trazer suas principais demandas funcionais. Um dos

erros mais frequentes que observamos é a definição de metas com foco nos ob-

jetivos dos terapeutas e não nas demandas dos familiares. Quando o paciente traz

suas queixas, elas comumente chegam aos profissionais bastante distorcidas, pois

nem sempre ele tem a percepção das suas dificuldades e possibilidades, o que

contribui para metas irreais e improváveis de serem alcançadas, o que gera sofri-

mento, conflitos e aumenta a probabilidade de abandono do programa de reabili-

tação. O Reabilitador precisa compreender o processo patológico que ocasionou a

20

lesão e sua repercussão funcional, ter conhecimento do provável prognóstico, dos

mecanismos de recuperação e ter experiência clínica para não tirar a esperança

de que ele possa realizar algo ainda que dependa de bastante treino, ou de ali-

mentar expectativas inatingíveis naquele momento de vida do paciente.

O que você considera essencial para que o trabalho de Reabilitação Neurop-

sicológica seja bem sucedido?

Marina Nery: Um programa de reabilitação bem sucedido, como citado anteri-

ormente, deve ser centrado no paciente e na família. O sucesso nesse contexto

perpassa obrigatoriamente pela percepção do indivíduo sobre suas limitações para

que, com isso, consiga se beneficiar de técnicas e estratégias que minimizem suas

dificuldades no dia-a-dia e desempenhe suas funções de acordo com suas possi-

bilidades.

A Reabilitação Neuropsicológica depende da ação em conjunto dos terapeutas,

paciente, familiares e sociedade. São vários fatores que interferem direta ou indi-

retamente no sucesso do programa. A relação terapeuta-paciente, a definição de

metas específicas, realistas e concretas, a participação dos familiares e a atuação

do paciente como papel ativo no processo, são alguns exemplos de aspectos fun-

damentais da reabilitação. No entanto, percebo que uma variável em especial tem

uma importância enorme nos casos bem sucedidos. Trata-se da consciência dos

familiares e principalmente do paciente, com relação às suas limitações e ha-

bilidades. A consciência da qual me refiro tem a ver com a percepção e reestru-

turação do self e a sua capacidade metacognitiva, ou seja, a percepção que o indi-

víduo tem do seu próprio funcionamento cognitivo e de suas dificuldades, bem co-

mo o conhecimento sobre as estratégias mais eficazes para minimizá-las. Por ex-

emplo, uma pessoa que tem como sintoma a procrastinação, quando toma con-

sciência de seu comportamento e das estratégias a serem utilizadas para evitar

que isso ocorra, consegue, de forma autônoma minimizar os efeitos deletérios des-

se comportamento no dia-a-dia. Precisamos pensar nos 3 tipos de consciência da

dificuldade que cada um precisa ter. A primeira é a consciência do próprio sintoma,

ou seja, saber que ele está presente (perceber a tendência à procrastinação, por

exemplo); a segunda é a consciência emergencial, que compreende à identificação

21

do sintoma no momento em que ele está ocorrendo ( p. ex.: identificar que está

buscando atividades extras como uma esquiva à algo que procura evitar, e que

neste momento está adiando uma tarefa importante - procrastinação). E a terceira

trata-se do que chamamos de consciência antecipatória, quando a pessoa já iden-

tifica uma situação em que há uma grande probabilidade do sintoma aparecer e a

partir disso pode criar estratégias que previnam a ocorrência do sintoma.

Sabemos que as duas sempre prezam pelo bom diálogo em equipes transdis-

ciplinares. O que você acha mais enriquecedor no trabalho conjunto com

profissionais de outras formações para além da Psicologia?

Priscila Covre: É muito importante que a reabilitação neuropsicológica seja

compreendida como uma intervenção transdisciplinar, uma vez que os déficits cog-

nitivos podem afetar diversos âmbitos da vida dos pacientes e não há um único

especialista que dê conta de todos os problemas que podem decorrer desse im-

pacto.

Os diferentes profissionais de reabilitação compartilham entre si os conhecimentos

sobre o cérebro e sua relação com as funções mentais, ao mesmo tempo em que

acrescentam os conhecimentos específicos pertinentes a cada especialidade. O

diálogo entre esses profissionais permite compreender a forma como cada um

pode contribuir para o tratamento. Assim sendo, essas trocas permitem avaliar as

demandas de cada caso, chegando a intervenções mais eficazes e eficientes.

Priscila, você teve a oportunidade de observar de perto o trabalho maravil-

hoso do instituto Oliver Zangwill, na Inglaterra, que é referência mundial em

Reabilitação Cognitiva. Quais foram as práticas mais relevantes que você

pôde perceber lá e que podem ser adaptadas para a realidade do Brasil?

Priscila Covre: O olhar humanizado dos profissionais e o enfoque holístico

da intervenção foram os aspectos que mais me encantaram nessa experiência e

tiveram um grande impacto sobre a minha forma de pensar em reabilitação. A prin-

cipal lição que aprendi é a de que, para uma boa Reabilitação Neuropsicológica, é

imprescindível que se tenha bons reabilitadores. Por isso, devemos nos preocupar

22

primeiramente com a boa formação dos profissionais, mais do que com qualquer

recurso externo ou técnicas de intervenção. Quando digo isso, não estou falando

somente dos conhecimentos básicos das diversas especialidades, sobre o fun-

cionamento cerebral e sobre as técnicas e estratégias de intervenção existentes,

mas também da disponibilidade do profissional em se manter atualizado, buscando

novos conhecimentos – uma vez que esta é uma área em constante crescimento.

Além disso, esse profissional deve ser humanizado, investir na habilidade de olhar

para as possibilidades da situação e para os potenciais do paciente em meio aos

déficits e dificuldades que se apresentam em cada caso.

Com relação aos aspectos específicos da intervenção realizada lá, dois pontos rel-

evantes e que podem ser adaptados facilmente para a nossa realidade são o es-

tabelecimento de metas significativas e funcionais e a ênfase na psicoeducação.

As metas permitem que cada caso tenha um direcionamento único atendendo

suas necessidades específicas e possibilitam uma mensuração da eficácia do

tratamento. A psicoeducação permite que o próprio paciente seja ativo na escolha

das estratégias para lidar com os problemas do dia-a-dia.

Na sua percepção, quais são os maiores desafios para a Reabilitação Neu-

ropsicológica no contexto nacional?

Priscila Covre: O principal desafio está na formação dos profissionais, pois

como comentei na resposta anterior, acho que o recurso humano é o recurso mais

importante para que a reabilitação seja realizada. Um bom reabilitador investe na

sua formação e na sua habilidade de adquirir conhecimentos na área. Precisamos

lembrar que, para isso, não basta saber pesquisar, ler e interpretar o que se lê,

mas desenvolver a habilidade de julgar quais informações são científica e clini-

camente relevantes dentro da imensidão de informações a que temos acesso hoje

em dia. Além disso, um bom reabilitador investe no desenvolvimento de suas com-

petências pessoais e no olhar humanizado para o paciente, uma vez que lidará

com pessoas que enfrentam uma situação de vulnerabilidade e sofrimento.

23

Para finalizar, eu gostaria que você falasse um pouco sobre como concebe o

uso de diferentes ferramentas no processo da Reabilitação?

Marina Nery: Do ponto de vista operacional, os programas de reabilitação po-

dem ser divididos em etapas para orientar o terapeuta no processo decisório e

maximizar as oportunidades de sucesso. Barbara Wilson propôs uma abordagem

com 10 passos: 1) Identificar os problemas do cotidiano; 2) Formular e testar as

hipóteses que explicam o problema; 3) Definir metas; 4) Mensurar o comportamen-

to alvo; 5) Identificar reforçadores 6) Elaborar as estratégias de intervenção; 7) Ini-

ciar a intervenção; 8) Monitorar o progresso; 9) Mudar de estratégia se necessário

e 10) Planejar a generalização.

As ferramentas do processo de reabilitação são técnicas que utilizamos em todos

os passos do programa. A própria identificação dos problemas não é algo tão sim-

ples e natural como parece. Na grande maioria das vezes os pacientes têm

dificuldades de identificar concretamente os comportamentos que eles desempen-

ham no dia-a-dia que eles gostariam de modificar. Por vezes eles acabam sendo

generalistas e se queixam, por exemplo, de dificuldades de memória ao invés de

apresentarem queixas específicas como esquecer os compromissos da semana,

não tomar o medicamento no horário definido, dentre outros. Desta forma o reabil-

itador precisa utilizar algumas técnicas para facilitar a identificação destes prob-

lemas, bem como na testagem e definição de metas além das estratégias específi-

cas de intervenção. Um ponto importante a ser destacado é a escolha das técnicas

para as estratégias de intervenção. É fundamental que a escolha destas técnicas

seja fundamentada por evidências científicas e amparada nas hipóteses e na

avaliação desse paciente. Por exemplo, a queixa acima citada sobre a dificuldade

de tomar o medicamento no horário definido pode ter como hipótese um compro-

metimento da memória de armazenamento, que justifica o esquecimento, ou pode

ser sustentada por um comprometimento da função executiva, na qual o paciente

sabe que tem que tomar o remédio, mas fica adiando e procrastinando o compor-

tamento até passar muito do horário.

24

Nestas duas situações expostas, embora a meta: tomar o medicamento no horário, se mantenha para as duas situações, as técnicas utilizadas para a execução ade-quada do comportamento irá se diferenciar. A tomada de decisão com relação a onde o terapeuta irá focar (se irá compensar, utilizar auxílio externo ou alguma es-tratégia interna, ou adaptar o ambiente) também vai depender da gravidade dos sintomas e do perfil neuropsicológico de forças e fraquezas. Desta forma, o pro-cesso decisório da escolha das ferramentas, de como iremos utilizá-las e onde iremos atuar deve ser sustentado pela avaliação cognitiva e comportamental bem como pela compreensão do processo patológico e sua repercussão funcional, so-cial e pessoal.

Foi um prazer entrevistar profissionais tão simpáticas e queridas. Essa entre-vista será de grande incentivo e utilidade aos profissionais e estudantes leit-

ores de nosso boletim. Muito obrigada.

Entrevista realizada por:

Psicóloga pela Universidade Federal de Goiás, Especializanda em Neuropsicologia e

Reabilitação Cognitiva na Instituição Nepneuro e aluna de formação continuada do

Instituto ILUMINA. Tem interesse em Reabilitação Integrativa e Mindfulness como técnica

de intervenção em funções executivas.

25

Dificuldades persistentes na aprendizagem da matemática (que não podem ser me-

lhor explicadas por causas primárias) acometem cerca de 3 a 6% da população em

idade escolar e são denominadas como Transtorno de Aprendizagem Específico da

Matemática (ou Discalculia do Desenvolvimento – DD) (Reigosa-Crespo, 2012; Devi-

ne, Soltész, Nobes, Goswami & Szűcs, 2013). Dada a persistência da DD e o impacto

negativo no desempenho acadêmico e adaptação social, as crianças com DD neces-

sitam de intervenções que visem melhorar suas habilidades matemáticas (Auerbach,

Gross-Tsur, Manor, & Shalev, 2008; Parsons & Bynner, 1997, Parsons & Bynner,

2005).

Um fator complicador para o diagnóstico e tratamento é que a DD é um fenômeno he-

terogêneo, uma vez que, envolve prejuízos numa variedade de processos cognitivos

subjacentes ao processamento aritmético (Geary, 1993; Wilson & Dehaene, 2007).

Tal característica destaca a necessidade de uma avaliação neuropsicológica que in-

vestigue não só os aspectos específicos da aprendizagem da matemática (resolução

de cálculos aritméticos e problemas verbalmente formulados, por exemplo), mas tam-

bém os domínios cognitivos mais gerais (memória operacional, funções executivas,

etc.). Do ponto de vista da intervenção, destaca-se a necessidade de intervenções

que sejam personalizadas de acordo com o perfil de dificuldade de cada criança.

Apesar de uma série de estudos evidenciarem que a matemática é influenciada por

domínios cognitivos gerais, não existem evidências de que treinos nessas habilidades

(por exemplo, atenção) melhoram o processamento numérico e habilidades de cálcu-

los nas crianças com DD (Kaufmann & Pixner, 2012). Em contrapartida, as crianças

com DD tipicamente apresentam dificuldades em habilidades numéricas básicas (por

exemplo, estimação), para aprender o conhecimento conceitual (“por que fazer”) e

procedimental (“como fazer”) dos cálculos aritméticos, compreender a reciprocidade

entre as operações aritméticas e para automatizar os fatos aritméticos. Crianças com

tais dificuldades se beneficiam mais de intervenções focadas em domínios cognitivos

específicos da aprendizagem da matemática.

Evidências acerca do tratamento das crianças com DD, sugerem que as crianças com

DD se beneficiam de programas compostos por diferentes módulos abrangendo as

competências numéricas e aritméticas básicas (Kaufmann et al, 2003; Moeller et al,

.2012). Além disso, esses módulos necessitam ser aplicáveis de forma independente

de acordo com as necessidades de cada criança, destacando a importância de

26

Intervenções personalizadas. Nesse sentido, treinos redundantes de habilidades que

a criança já domina devem ser evitados. Tais premissas justificam-se dado que a

aprendizagem da matemática acontece de forma hierárquica e modular, além da pró-

pria heterogeneidade do transtorno, já mencionada acima.

Kroesbergen e Van Luit (2003) realizaram uma meta-análise e encontraram 58 estu-

dos sobre intervenções com alunos do ensino primário com dificuldades de aprendi-

zagem da matemática. A maior parte dos estudos encontrados refere-se a interven-

ções para as habilidades aritméticas básicas (cálculos aritméticos básicos). Essas in-

tervenções mostraram-se mais eficazes do que as intervenções para promover as ha-

bilidades numéricas básicas (entendimento de quantidades, contagem e reconheci-

mento dos numerais arábicos) e estratégias de resolução de problemas matemáticos.

As intervenções mais curtas foram mais eficazes do que as mais longas. Uma possí-

vel explicação para esse resultado é que as intervenções mais curtas focaram-se no

treino de um domínio específico do conhecimento (por exemplo, memorização de fa-

tos da adição com resultado até 10) sendo ensinados e aprendidos mais profunda-

mente. Ademais, as intervenções para as habilidades aritméticas básicas realizadas

pessoalmente por um tutor foram mais eficazes do que as computadorizadas. Apesar

de favorecerem a motivação, as intervenções computadorizadas não foram suficien-

tes para melhorar as dificuldades das crianças. Esse achado reforça a necessidade

de uma instrução explícita por parte de um tutor.

Nosso grupo de pesquisa (LND-UFMG/Ambulatório NÚMERO) possui um pro-

jeto de extensão com a finalidade de desenvolver um programa de intervenção neu-

ropsicológica para as dificuldades de aprendizagem da matemática. O programa con-

siste em cinco módulos independentes e semi-hierarquicamente estruturados, basea-

dos no Programa de Intervenção Numérico (Numeracy Intervention Program;

Kaufmann et al., 2003): ((1) senso numérico e contagem, (2) transcodificação numéri-

ca e valor posicional, cálculos de (3) adição, (4) subtração e (5) multiplicação; ver em

Antunes et al., 2012; Gomides et al., 2014).

Os módulos utilizam duas estratégias principais: treino conceitual e prática extensiva.

O primeiro envolve o ensino do conhecimento procedural (“como fazer”) e conceitual

(“por que fazer”) e busca promover uma melhor compreensão dos princípios, assim

como, execução dos algoritmos e estratégias das operações aritméticas (Domahs &

Delazer, 2005). Por outro lado, a prática por meio de exercícios está associada a uma

27

melhora da automatização (Lochy et al, 2005). Além dos aspectos cognitivos e peda-

gógicos, são trabalhados aspectos terapêuticos a partir dos princípios da terapia cog-

nitivo comportamental consistindo em treinamentos em resolução de problemas, auto

avaliação, auto-reforçamento, economia de fichas, aprendizagem sem erro, entre ou-

tros.

Em um estudo, em fase de finalização, nós testamos a eficácia do módulo de multipli-

cação em duas crianças com DD, mas perfis de dificuldades distintos. O primeiro ca-

so, H.V., sexo feminino, 9 anos, apresentava dificuldades na multiplicação associadas

a um prejuízo no Sistema Numérico Aproximado (ANS ou senso numérico), persisten-

tes mesmo após intervenção (Júlio-Costa et al., 2015). Já o segundo caso, G.A., sexo

masculino, 11 anos, apresentava dificuldades associadas a um déficit no processa-

mento fonológico (para ver uma descrição mais detalhada dos casos, Haase et al.,

2014). Ambos os pacientes receberam acompanhamento semanal ao longo de um

semestre. A acurácia e velocidade de resolução de H.V. melhoraram de forma consis-

tente nas medidas de desfecho. Por outro lado, G.A., melhorou em termos de acurá-

cia, mas apresentou uma piora na velocidade de resolução dos cálculos. Apesar dis-

so, a análise dos tipos de erro evidenciou que ambos os pacientes cometeram erros

mais sistemáticos após o final da intervenção, sugerindo uma reorganização dos fatos

na memória e melhora das estratégias de resolução.

As contribuições trazidas por esse estudo sugerem que indivíduos com diferentes difi-

culdades na matemática respondem de modo distinto às intervenções específicas, o

que evidencia o envolvimento de mecanismos cognitivos distintos nas dificuldade de

aprendizagem da matemática e, desse modo, corrobora a existência dos subtipos de

DD. Além disso, observa-se que intervenções focadas em estratégias verbais para a

automatização dos fatos podem não ser tão eficazes para crianças com comprometi-

mentos verbais, como o descrito caso G.A. Por outro lado, o programa da pesquisa

aqui relatada foi eficaz em um caso com comprometimento no senso numérico (a ga-

rota H.V). Por último, porém não menos importante, à atenção dos pesquisadores e

clínicos, observa-se que os erros na multiplicação são altamente sistemáticos e devi-

do a isso podem ser fornecedores de pistas importantes sobre como os fatos aritméti-

cos são organizados na memória de longo prazo (Campbell & Graham, 1985; Butter-

worth, Marchesi & Girelli, 2003) e quais estratégias de resolução estão sendo utiliza-

das pela criança.

28

Estudos propondo intervenções para as dificuldades de aprendizagem da matemática

ainda são escassos, principalmente quando comparados com os estudos sobre inter-

venções na dislexia do desenvolvimento. Nosso estudo destaca a necessidade de in-

tervenções personalizadas de acordo com o perfil de cada criança e de embasamento

teórico sobre o desenvolvimento das habilidades aritméticas, acarretando em um de-

safio para prática clínica. Espero que essa leitura tenha alcançado o propósito de des-

pertar a curiosidade e sanar algumas dúvidas acerca das reabilitações das dificulda-

des matemáticas. Caso tenham dúvidas e/ou comentários, envie para malu15gomi-

[email protected], será um prazer recebê-los.

Referências

Antunes, A. M., Julio-Costa, A., Starling-Alves, I., Paiva, G. M., & Haase, V. G. (2013).

Reabilitação neuropsicológica do transtorno de aprendizagem da matemática na sín-

drome de Turner: um estudo de caso. Neuropsicologia Latinoamericana, 5, 66-75.

Auerbach, J. G., Gross-Tsur, V., Manor, O., & Shalev, R. S. (2008). Emotional and

behavioral characteristics over six-year period in youths with persistent and nonpersis-

tent dyscalculia. Jornal of Learning Disabilities, 41, 263-273.

Butterworth, B., Marchesini, N., & Girelli, L. (2003). Multiplication facts: Passive stora-

ge or dynamic reorganization? In A. J. Baroody &A. Dowker (Eds.), The development

of arithmetical concepts and skills. (pp. 189-202). Mahwah, NJ: Erlbaum.

Campbell, J. I. D., & Graham, D. J. (1985). Mental multiplication skill: Structure, pro-

cess, and acquisition. Canadian Journal of Psychology, 39, 338-366.

Devine, A., Soltész, F., Nobes, A., Goswami, U., & Szűcs, D. (2013). Gender differen-

ces in developmental dyscalculia depend on diagnostic criteria. Learning and Instruc-

tion, 27, 31-39.

Domahs, F. & Delazer, M. (2005). Some assumptions and facts about arithmetic facts.

Psychology Science, 47(1), 96-111.

Geary, D.C. (1993). Mathematical disabilities: cognitive, neuropsychological, and ge-

netic components. Psychological bulletin, 114(2), 345-362.

29

Gomides, M. R. A., Martins, G. A., Barbosa, D. C. B., Haase, V. G., & Júlio-Costa, A.

(2014). Utilização de técnicas de manejo comportamental e neuropsicológicas para

intervenção dos transtornos de aprendizagem. Interação em Psicoogia, 18 (3), 277-

285.

Haase, V. G., Júlio-Costa, A., Lopes-Silva, J. B., Starling-Alves, I., Antunes, A. M., Pi-

nheiro-Chagas, P., & Wood, G. (2014). Contributions from specific and general factors

to unique deficits: two cases of mathematics learning difficulties. Frontiers in Psycho-

logy, 5, 102. doi: 10.3389/fpsyg.2014.00102.

Júlio‐Costa, A., Starling‐Alves, I., Lopes‐Silva, J. B., Wood, G., & Haase, V. G.

(2015). Stable measures of number sense accuracy in math learning disability: Is it

time to proceed from basic science to clinical application?. PsyCh journal, 4(4), 218-

225. doi: 10.1002/pchj.114.

Kaufmann, L, Handl, P, Thoeny, B. (2003). Evaluation of a numeracy intervention pro-

gram focusing on basic numerical knowledge and conceptual knowledge: a pilot study.

Journal of Learning Disabilities, 36, 564–573. doi: 10.1177/00222194030360060701.

Kaufmann, L., & Pixner, S. (2012). New Approaches to Teaching Early Number Skills

and to Remediate Number Fact Dyscalculia. In Breznitz, Z., Rubinsten, O., Molfese,

V.J., Molfese, D.L. (Eds.), Reading, Writing, Mathematics and the Developing Brain:

Listening to Many Voices (pp. 277-294). Netherlands: Springer.

G., & Haase, V. G. (2015). Stable measures of number sense accuracy in math lear-

ning disability: Is it time to proceed from basic science to clinical application?. PsyCh

journal, 4(4), 218-225. doi: 10.1002/pchj.114.

Kaufmann, L, Handl, P, Thoeny, B. (2003). Evaluation of a numeracy intervention pro-

gram focusing on basic numerical knowledge and conceptual knowledge: a pilot study.

Journal of Learning Disabilities, 36, 564–573. doi: 10.1177/00222194030360060701.

Kaufmann, L., & Pixner, S. (2012). New Approaches to Teaching Early Number Skills

and to Remediate Number Fact Dyscalculia. In Breznitz, Z., Rubinsten, O., Molfese,

V.J., Molfese, D.L. (Eds.), Reading, Writing, Mathematics and the Developing Brain:

Listening to Many Voices (pp. 277-294). Netherlands: Springer.

30

Psicóloga e Mestre em Neurociências pela UFMG. É doutoranda do Programa de

Psicologia: Cognição e Comportamento (UFMG). Tem experiência em Avaliação

Neuropsicológica e Reabilitação Cognitiva de Crianças e Adolescentes. Coordenou

Projeto de Reabilitação das Habilidades Numéricas no Ambulatório NÚMERO. Atu-

almente é membro e colaboradora em diferentes pesquisas do Laboratório de Neu-

ropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG).

Kroesbergen, E. H., & Van Luit, J. E. (2003). Mathematics Interventions for Children

with Special Educational Needs a Meta-Analysis. Remedial and Special Education, 24

(2), 97-114.

Lochy, A., Domahs, F., & Delazer, M. (2005). Rehabilitation of acquired calculation

and number processing disorders. In J. I. D. Campbell (Ed.), Handbook of Mathemati-

cal Cognition (pp. 469–485). New York: Psychology Press.

Möller, K., Fischer, U., Cress, U., & Nuerk, H.C. (2012). Diagnostics and intervention

in developmental dyscalculia: Current issues and novel perspectives. In Z. Breznitz, O.

Rubinsten, V. J. Molfese, & D. L. Molfese (Eds.), Reading, writing, mathematics and

the developing brain: Listening to many voices (pp. 233–294). Netherlands: Springer.

Parsons, S. & Bynner, J. (1997). Numeracy and employment. Education + Training

39, 43-51.

Parsons, S., & Bynner, J. (2005) Does numeracy matter more? London: National Re-

search and Development Centre for Adult Literacy.

Reigosa-Crespo, V., Valdés-Sosa, M., Butterworth, B., Estévez, N., Rodríguez, M.,

Santos, E., ... & Lage, A. (2012). Basic numerical capacities and prevalence of deve-

lopmental dyscalculia: The Havana Survey. Developmental Psychology, 48(1), 123.

Wilson, A.J., & Dehaene, S. (2007). Number sense and developmental dyscalculia.

In: D. Coch, K. Fischer & G. Dawson (Eds.), Human behavior and the developing brain

(pp. 212–237). New York: Guilford Press.

31

A Neuropsicologia é uma ciência eminen-

temente do século XX, contudo, as inves-

tigações acerca das inter-relações entre

cérebro e cognição/comportamento ad-

vém ainda dos antigos egípcios (para revi-

são, ver: Luria, 1981; Bruce, 1985; Walsh,

1994; Pinheiro, 2005; Vakil & Hoofien,

2016). Atualmente, poder-se-ia situá-la no

campo de interface entre as neurociências

e as ciências do comportamento (por

exemplo: psicologia do desenvolvimento),

destacando um objetivo comum quanto ao

estudo das modificações comportamen-

tais resultantes de lesão cerebral. Ou se-

ja, compreendendo que o escopo principal

da área reside na compreensão da rela-

ção entre o sistema nervoso, cognição e

comportamento, no esforço sistemático de

avaliar e intervir sobre as capacidades

mentais mais complexas como a lingua-

gem, memória, atenção, dentre outras

funções cognitivas superiores (Cosenza,

Fuentes e Malloy-Diniz, 2008).

Dentre as principais querelas da Neu-

ropsicologia na atualidade, destaca-se a

temática relacionada à reabilitação neu-

ropsicológica, um campo em constante

crescimento nas últimas décadas; respon-

sável pelo avanço nos estudos de inter-

venções significativas para diferentes fa-

ses do desenvolvimento típico e patológi-

co. Apesar do recente crescimento e des-

taque a reabilitação é historicamente tão

antiga quanto às investigações das inter-

relações entre estrutura cerebral e cogni-

ção/comportamento (Neuropsicologia).

Por exemplo, os contextos das duas gran-

des guerras do século XX são descritos

como marcos histórico para o desenvolvi-

mento do processo de reabilitação; o

Zeitgeist em que emergiu a necessidade

de auxiliar na recuperação de lesões ce-

rebrais. Assim surgiram os estudos sobre

a plasticidade na idade adulta, o Psicólo-

go russo Luria (1980) foi quem com desta-

que se dedicou ao estudo de alterações

cognitivas em soldados lesionados, suge-

rindo, em sua teoria, a possibilidade de

intervenções que proporcionariam a reor-

ganização funcional por meio da plastici-

dade.

Sobre este potencial de neuroplasticida-

de, destaca-se que, no final da década de

70, já haviam sido demonstradas as pri-

meiras evidências da capacidade de rege-

neração do sistema nervoso (Haase & La-

cerda, 2004). Esses resultados subsidia-

ram o começo das intervenções para a

recuperação cognitiva, fazendo com que a

reabilitação se tornasse uma realidade

possível. Inicialmente, uma boa definição

de reabilitação foi fornecida por McLellan

(1991). Ele sugere que a reabilitação é

um processo bidirecional e interativo pelo

qual as pessoas com comprometimento

trabalham em conjunto com profissionais,

parentes, cuidadores e membros da co-

munidade para alcançar seu melhor

32

potencial de autonomia, bem-estar físico,

psicológico e social.

A partir da definição de McLellan, pode-

mos definir a reabilitação neuropsicológi-

ca como um processo multifacetado pelo

qual objetiva-se minimizar as funções

cognitivas comprometidas em seus diver-

sos aspectos, por meio da utilização de

diferentes técnicas e estratégias, conside-

rando as características individuais, a

plasticidade neuronal e, essencialmente,

as possibilidades do paciente. Sempre

reunindo o melhor da experiência clínica e

das evidências cientificas mais recentes

na área com o objetivo principal de pro-

mover a readaptação do indivíduo ao seu

meio ambiente (Mowszowski, Batchelor, &

Naismith, 2010; Bahar-Fuchs et al., 2013;

Santos, 2015).

Deste modo, uma preocupação recente

consiste na necessidade de estabelecer

definições operacionais que diferencie os

processos de intervenção, visto que, erro-

neamente, muitas vezes as intervenções

propostas são confundidas no exercício

profissional (Davis, Massman, & Doody,

2000; Da Silva, Coelho, & Alchieri, 2007).

Assim, preocupados com as diversifica-

das taxonomias utilizadas para definir as

intervenções, diversos autores (Clare et

al., 2003; Beleville, 2008; Mowszowski,

Batchelor, & Naismith, 2010; Bahar-

Fuchs, Clare, & Woods, 2013) chegaram

ao consenso de que a estimulação cogni-

tiva, treino cognitivo, reabilitação cognitiva

e a reabilitação neuropsicológica são as

principais abordagens de intervenção utili-

zadas na prática clínica.

Os campos de prática e pesquisa em in-

tervenção Psicológica e Neuropsicológica

permanecem sofrendo com uma confusão

no uso dos termos comumente utilizados

para definir as intervenções, de tal modo,

segue uma breve apresentação das prin-

cipais características dos métodos de in-

tervenção:

Estimulação Cognitiva

Em síntese, os programas de Estimulação

Cognitiva são voltados ao exercício men-

tal geral para melhorar o funcionamento

cognitivo e social dos indivíduos a partir

de uma série de atividades individuais ou

em grupo (Clare & Woods, 2004). Segun-

do uma revisão sistemática realizada por

Kelly e colaboradores (2014) a estimula-

ção cognitiva consiste no nível mais bási-

co e menos estruturado de intervenção

dentre as principais relatadas na literatu-

ra. O uso de intervenções do tipo estimu-

lação cognitiva está amplamente associa-

do aos estudos realizados com idosos

saudáveis, com o objetivo de promover a

manutenção das habilidades cognitivas

que declinam com a idade.

A estimulação cognitiva, também conheci-

da como estimulação mental ou brain trai-

ning, incide na realização repetida de

33

tarefas, sendo muito comum no formato

de jogos (Basak, Boot, Voss, & Kramer,

2008). Uma das principais características

das intervenções do tipo brain training é a

ausência do ensino de estratégias, ou de

uma situação de aprendizagem estrutura-

da e direcionada, já que o escopo deste

tipo de intervenção é manter o indivíduo

em uma situação de esforço mental, atra-

vés da prática e repetição de tarefas. No

entanto, a principal limitação das interven-

ções de estimulação consiste justamente

na falta de padronização das tarefas pro-

postas, o que inviabiliza os estudos de

meta análise para comparação de efeitos

de eficácia, bem como efeitos de durabili-

dade e transferências dos possíveis ga-

nhos da intervenção.

Treino cognitivo

Os programas de treinamento cognitivo

envolvem um conjunto de tarefas repeti-

das e padronizadas com o foco no ensino

e aprendizagem de funções cognitivas es-

pecíficas (Bahar-Fuchs et al., 2013). Os

treinos cognitivos centralizam-se na con-

dução de um conjunto de tarefas padroni-

zadas criadas para melhoramento de fun-

ções cognitivas pré-estabelecidas, por

exemplo, memória, atenção, resolução de

problemas, raciocínio, velocidade de pro-

cessamento, dentre outras. Deste modo,

os programas de intervenção podem ser

de caráter unimodal – quando direcionado

ao treinamento de uma habilidade especí-

fica, por exemplo, o treino de atenção se-

letiva; ou ainda multimodal – destinado ao

treinamento de várias habilidades cogniti-

vas (Jones et al., 2013). As tarefas tam-

bém podem assumir o formato do tipo lá-

pis e papel ou computadorizados (Neely

2009). A construção e condução das tare-

fas propostas por um treino podem assu-

mir a modalidade individual ou coletiva

(Loewenstein, Acevedo, Czaja, & Duara,

2004).

Destacam-se duas tendências principais

na criação de protocolos de treinamento

cognitivo na literatura. 1) Treino cognitivo

adaptativo: desenvolvidos para ajustar-se

ao nível de habilidades do participante, as

tarefas são apresentadas com base no

desempenho de cada indivíduo; esse for-

mato tem ganhado forças e está sendo

cada vez mais incorporado aos treinos

informatizados, principalmente para crian-

ças e adolescentes. 2) Ensino de estraté-

gias: a definição de treino cognitivo foi

ampliada quando alguns autores passa-

ram a incluir o ensino de estratégias e téc-

nicas cognitivas, por exemplo, instruções

e etapas de prática para reduzir o prejuízo

cognitivo. Inclusive, esta vem sendo en-

tendida como uma das principais diferen-

ciações entre treino e estimulação cogniti-

va (Peretz et al, 2011).

Uma hipótese amplamente associada ao

treino cognitivo é que a prática guiada em

um conjunto padrão de tarefas cognitivas,

34

visando melhorar o desempenho em um

ou mais domínios cognitivos apresenta o

potencial de melhorar e/ou manter fun-

ções cognitivas que declinam com a ida-

de. Além da premissa de que os efeitos

observados com a prática podem ser no-

tados para além das tarefas treinadas

(generalização). Todavia, os desafios são

grandes e ainda existem querelas que

permanecem sem evidências robustas ou

consenso entre os pesquisadores. O pri-

meiro grande desafio a ser superado con-

siste na escassez de investigações acer-

ca dos efeitos de transferência dos ga-

nhos para os domínios cognitivos não trei-

nados diretamente. O segundo desafio

também mantém relação com os estudos

acerca dos efeitos das intervenções cog-

nitivas; ainda são inconclusivas as evidên-

cias de efeitos de generalização dos ga-

nhos obtidas durante a intervenção. A ter-

ceira grande limitação no campo do trei-

namento cognitivo perpassa pelo pequeno

número de estudos de avaliação da dura-

bilidade dos ganhos alcançados – escas-

samente investigado devido ao reduzido

número de estudos de follow-up (Noack,

et al., 2014; Ji, et al., 2016).

É importante ressaltar que, principalmente

no cenário brasileiro, são quase inexisten-

tes os estudos acerca dos efeitos produzi-

dos pelos treinamentos cognitivos. Assim

como, são escassos os estudos de valida-

de de conteúdo dos treinamentos cogniti-

vos desenvolvidos (Santos & Flores-

Mendoza, 2017). As mesmas lacunas po-

dem ser observadas em menor proporção

na literatura internacional, devido ao mai-

or número de estudos encontrados que

reportam os efeitos das intervenções cog-

nitivas (Rebok et al., 2014; Noack et al.,

2014). No entanto, assim como descrito

por Kelly et al. (2014), quase a totalidade

dos estudos de investigação dos efeitos

de treino cognitivo encontrados na litera-

tura internacional foram baseados no mo-

delo de intervenção coletiva, e não apre-

sentam estudos de validade de conteúdo

das tarefas do treino.

Reabilitação Cognitiva

A reabilitação cognitiva consiste em uma

abordagem individualizada, direcionada à

compensação dos déficits cognitivos exis-

tentes, além do ensino de estratégias e

manejos voltados para os cuidadores e/ou

familiares, ou seja, o objetivo principal não

é aumentar o desempenho em tarefas

cognitivas específicas, mas, sim auxiliar

no processo de adaptação do paciente

(Wilson, 2002; Clare & Woods, 2008). A

reabilitação destina-se unicamente a gru-

pos clínicos e caracteriza-se por proporci-

onar ao paciente desde atividades gerais

que podem incluir estimulação cognitiva,

até a prática de treinamento cognitivo

(Parente, 2006). A reabilitação tem como

escopo principal auxiliar o paciente com

comprometimento cognitivo a aproveitar

35

ao máximo as suas habilidades preserva-

das, apesar das dificuldades enfrentadas.

Este tipo de intervenção destina-se a aju-

dar o paciente a alcançar e/ou manter um

nível ótimo de autonomia cognitiva, física,

psicológico e social no contexto dos preju-

ízos específicos decorrentes da perda

cognitiva. O processo de reabilitação cog-

nitiva concentra-se de forma singularizada

nas necessidades de cada paciente, exi-

gindo estratégias e métodos compensató-

rios como a utilização de auxílios externos

ou dicas de memória (Wilson et al, 2007).

Portanto, a intervenção acaba por envol-

ver a família do paciente e outros profissi-

onais de saúde, em prol da melhor estra-

tégia para lidar com o comprometimento e

proporcionar o aumento da qualidade de

vida do paciente e dos familiares.

Destaca-se ainda que as intervenções do

tipo reabilitação cognitiva são implemen-

tadas no contexto cotidiano do paciente,

porque não existem evidências que sus-

tentem que as mudanças instituídas em

um dado ambiente a partir de uma inter-

venção específica necessariamente seri-

am generalizadas para outro ambiente.

Assim, os objetivos para a reabilitação

são selecionados de forma contextual e

colaborativa. Woods, Aguirre, Spector e

Orrell (2012) realizaram uma revisão e

concluíram que incorporar atividades de

estimulação cognitiva com técnicas da

abordagem de orientação para a realida-

de produziram de forma consistente me-

lhorias na cognição geral, especialmente

para pacientes com comprometimento

cognitivo leve e moderado. A Tabela 1,

adaptada de Santos (2015), resume as

principais diferenças entre as característi-

cas de estimulação, treino e reabilitação

cognitiva.

Reabilitação neuropsicológica

Na Reabilitação Neuropsicológica (RN) se

faz necessário o conhecimento dos meca-

nismos de plasticidade e de recuperação

funcional, bem como o domínio dos princi-

pais modelos de intervenção disponíveis.

A convergência de tais saberes proporcio-

na e orienta a construção dos princípios

fundamentais para o processo de reabili-

tação neuropsicológica: restituição, substi-

tuição e compensação. Tais processos

fazem com que o principal objetivo da

neuropsicologia nessa área seja capacitar

pacientes, familiares e cuidadores a con-

viver, contornar ou superar as insuficiên-

cias cognitivas, emocionais e sociais, pro-

porcionando uma melhora significativa na

autonomia e qualidade de vida dos envol-

vidos.

Alguns princípios gerais podem ser desta-

cados como eminentes ao processo de

diferenciação entre a reabilitação neu-

ropsicológica e os demais modelos de in-

tervenção apresentados.

36

Características Estimulação cognitiva Treino Cognitivo Reabilitação Cognitiva

Habilidade Alvo

Habilidades cognitivas

que não apresentam

comprometimento.

Habilidades cognitivas

que apresentam ou não

declínio.

Habilidades funcionais

e, em casos menos gra-

ves, habilidades cogniti-

Contexto Tarefas e ambiente pou-

co estruturado.

Tarefas e ambientes es-

truturados,

Contexto do mundo real/

cotidiano.

Foco de Inter-

venção

Estimulação geral do

máximo de processos

cognitivos possível.

Habilidades e processos

cognitivos isolados.

Grupos de habilidades e

processos requeridos

para desempenho de ta-

Formato Predominantemente em

grupo. Individual ou em grupo. Individual.

Mecanismos de

ação propostos

Abordagem de manuten-

ção, a partir da prática e

repetição de tarefas sem

psicoeducação e treino

de estratégias.

Principalmente restaura-

tivos (estimulação cog-

nitiva), sendo tipicamen-

te combinados com psi-

coeducação e treino de

estratégias.

Uma combinação de

abordagens restaurativas

e compensatórias combi-

nadas com psicoeduca-

ção e treino de estraté-

gias

Objetivos

Manter e estimular o

funcionamento cognitivo

geral.

Melhorar ou manter ha-

bilidades em domínios

cognitivos específicos.

Desempenho e funciona-

mento em relação às me-

tas colaborativamente

Tabela 1. Diferenças entre as características de estimulação, treino e reabilitação cognitiva.

37

Primeiro, destaca-se a importância da ca-

pacitação dos profissionais, pois todas as

etapas anteriores, bem como a RN devem

estar baseadas na compreensão científica

dos mecanismos do sistema nervoso cen-

tral, das funções cerebrais superiores en-

volvidas, assim como à natureza das pa-

tologias; uma vez que modelos teorica-

mente embasados fundamentam o pro-

cesso da reabilitação neuropsicológica.

Segundo, a Avaliação Neuropsicológica

deve fornecer informações relevantes e

contribuir para a construção do processo

de RN. Ou seja, as habilidades cognitivas

comprometidas e as potencialidades do

paciente devem ser previamente identifi-

cadas na etapa de avaliação neuropsico-

lógica. Terceiro, as tarefas selecionadas

para o processo de RN podem incluir esti-

mulação cognitiva, treinamento cognitivo,

bem como estratégias compensatórias; e

são exercitadas repetitivamente. Por fim,

destaca-se que os objetivos da RN são

organizados de maneira hierárquica, po-

dendo incluir exercícios para serem reali-

zados no ambiente domiciliar do paciente

a partir do treinamento dos cuidadores e

familiares, o que permite monitorar o

prognóstico através de informações acer-

ca da generalização das intervenções pa-

ra o desempenho cotidiano do paciente.

É possível perceber na literatura científica

da área, diferentes modelos de interven-

ções, que apresentam diferenças sutis,

mas que carregam fundamentações teóri-

cas e aplicabilidades distintas; o que pos-

sibilita ao profissional capacitado uma am-

pla gama de possibilidades na construção

de um protocolo de reabilitação neuropsi-

cológica, de modo que a cada novo caso

o profissional poderá utiliza procedimen-

tos específicos de acordo com o tipo de

problema e recursos dos pacientes. Se-

gundo Abrisqueta-Gomes (2016) isso

ocorre devida a falta de protocolos de Re-

abilitação Neuropsicológica padronizados.

Assim, a RN segue reunindo e incorpo-

rando diferentes modelos de intervenção,

como os apresentados, desde que o mo-

delo contenha fundamentação teórica que

respeite os princípios gerais da Neuropsi-

cológica. O que atualmente pode variar

desde estimulação cognitiva em formato

de jogos de tabuleiro ou grupos de discus-

sões, até programas de treinamentos cog-

nitivo computadorizados.

Contudo, deve-se ressaltar que a prática

indiscriminada por parte de alguns profis-

sionais ao utilizarem levianamente o ter-

mo "reabilitação neuropsicológica" em

processo que não são embasados nos

pressupostos da neuropsicologia tem por

consequência atraso nos avanços para

construção de modelos e protocolos con-

sistentes de reabilitação neuropsicológica.

Por este motivo, muitos pesquisadores

38

persistem no desenvolvimento de méto-

dos e programas de intervenções emba-

sados nos conceitos da Neuropsicologia,

buscando amenizar as dificuldades en-

contradas no campo de desenvolvimento

de intervenção e reabilitação.

Através da análise dos diferentes concei-

tos anteriormente apresentados, pode-se

afirmar que a complexidade do processo

de reabilitação neuropsicológica ocorre na

dinâmica que perpassa aspectos biológi-

cos, ambientais, motivacionais e emocio-

nais. Enfatizando o desenvolvimento

constante da área através da persistência

em alcançar novas descobertas, a fim de

garantir uma prática comprometida, efeti-

va e ética.

Reabilitação neuropsicológica – principais

pontos resumidos:

O processo de reabilitação neuropsi-

cológica (RN) preocupa-se com a

melhora dos déficits cognitivos, emo-

cionais, psicossociais e comporta-

mentais causados por acometimen-

tos ao cérebro (SNC).

O objetivo principal da RN é propor-

cionar que os pacientes retornem as

suas atividades de vida diária com

mais autonomia; por esta razão, me-

tas significativas devem ser definidas

nas áreas educação, recreação, re-

lacionamentos sociais e vida inde-

pendente.

Embora o comprometimento cogniti-

vo seja talvez o principal foco de RN,

as consequências emocionais e psi-

cossociais das lesões cerebrais pre-

cisam ser abordadas em programas

de reabilitação.

A construção e condução de um processo

de reabilitação neuropsicológica demanda

uma ampla base teórica.

39

Referências:

Abrisqueta-Gomez, J., & Santos, F. H. (2006). Reabilitação neuropsicológica: da teo-

ria à pratica. ABRISQUETA-GOMES, Jacqueline e cols. Reabilitação Neuropsicológi-

ca: abordagem interdisciplinar e modelos conceituais na prática clínica. ANDRADE,

Vivian Maria.

Amodeo, M. T., Netto, T. M., & Fonseca, R. P. (2010). Desenvolvimento de programas

de estimulação cognitiva para adultos jovens: modalidades da literatura e da neu-

ropsicologia. Letras de Hoje, 45(3), 54-64.

Bahar-Fuchs, A; Clare, L; & Woods, B (2013). Cognitive training and cognitive rehabili-

tation for mild to moderate Alzheimer’s disease and vascular dementia. The Cochrane

Library, vol 6: http://www.thecochranelibrary.com

Basak, C., Boot, W.R., Voss, M.W., & Kramer, A.F., 2008. Can training in a real-time

strategy video game attenuate cognitive decline in older adults? Psychology and Ag-

ing, 23, 765–777.

Bruce, D. (1985). On the origin of the term neuropsychology Neuropsychologia, 23(6),

813-814.

Clare, L., & Woods, R. T. (2004). Cognitive training and cognitive rehabilitation for

people with early-stage Alzheimer's disease: A review. Neuropsychological rehabilita-

tion, 14(4), 385-401. http://dx.doi.org/10.1080/09602010443000074

Cosenza, R. M., Fuentes, D., & Malloy-Diniz, L. F. (2008). A evolução das ideias so-

bre a relação entre cérebro, comportamento e cognição. Neuropsicologia: Teoria e

prática, 15-19.

Davis, R. N., Massman, P. J., & Doody, R. S. (2000). Cognitive intervention in Alz-

heimer Disease: a randomized placebo controlled-study. Alzheimer Disease and As-

sociated isorders, 15(1), 1-9.

Da Silva, S.L., Coelho, D. S., & Alchieri, J. C. (2007). Plasticidade cerebral, meio am-

biente, comportamento e cognição: bases aliadas às neurociências para o estudo da

reabilitação neuropsicológica da memória. Em Ladeira-Fernandez, J. & Silva, M T A

(Orgs). Intersecções entre Psicologia e Neurociências (p 149-73). Rio de Janeiro,

MedBook

40

Haase, Vitor Geraldi, & Lacerda, Shirley Silva. (2004). Neuroplasticidade, variação in-

terindividual e recuperação funcional em neuropsicologia. Temas em Psicologia, 12

(1), 28-42. Recuperado em 09 de janeiro de 2018, de http://pepsic.bvsalud.org/

scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2004000100004&lng=pt&tlng=pt.

Ji, Y., Wang, J., Chen, T., Du, X., & Zhan, Y. (2016). Plasticity of inhibitory processes

and associated far-transfer effects in older adults. Psychology and aging, 31(5), 415.

http://dx.doi.org/10.1037/pag0000102.

Kelly, M. E., Loughrey, D., Lawlor, B. A., Robertson, I. H., Walsh, C., & Brennan, S.

(2014). The impact of cognitive training and mental stimulation on cognitive and every-

day functioning of healthy older adults: a systematic review and meta-analysis. Ageing

Research Reviews, 15, 28-46. http://dx.doi.org/10.1016/j.arr.2014.02.004.

Luria, A. R. Fundamentos de Neuropsicologia (J. A. Ricardo, Trad.). São Paulo:

Edusp, 1981.

McLellan, D. L. (1991). Functional recovery and the principles of disability medicine.

In Clinical Neurology, ed. M Swash, J Oxbury, pp. 768–90.

Mowszowski, L., Batchelor, J., & Naismith, S. L. (2010). Early intervention for cognitive

decline: can cognitive training be used as a selective prevention tech-

nique?. International Psychogeriatrics, 22(4), 537-548. doi:10.1017/

S1041610209991748.

Parente, M. A. M. P. et al (2006). Cognição e Envelhecimento. Porto Alegre: Artmed

Peretz, C., Korczyn, A.D., Shatil, E., Aharonson, V., Birnboim, S., & Giladi, N. (2011).

Computer-based, personalized cognitive training versus classical computer games: a

randomized double-blind prospective trial of cognitive stimulation. Neuroepidemiology,

36(2), 91–9

Pinheiro, M. (2005). Aspectos históricos da neuropsicologia: subsídios para a forma-

ção de educadores. Educar em Revista, Curitiba, n. 25, p. 175-196, Editora UFPR.

Rebok, G. W., Ball, K., Guey, L. T., Jones, R. N., Kim, H. Y., King, J. W., ... & Willis, S.

L. (2014). Ten‐year effects of the advanced cognitive training for independent and

vital elderly cognitive training trial on cognition and everyday functioning in older

adults. Journal of the American Geriatrics Society, 62(1), 16-24. doi: 10.1111/

jgs.12607.

41

Santos, M. T. (2015). Desenvolvimento de um Programa de Intervenção Cognitiva pa-

ra Idosos. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal de Minas

Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Minas Gerais.

Santos, M. T. & Flores-Mendoza, C. E. (2016). Desenvolvimento de um programa de

treino cognitivo para idosos. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, 19(5), 769-

785. http://dx.doi.org/10.1590/1809-98232016019.150144

Vakil, E., & Hoofien, D. (2016). Clinical neuropsychology in Israel: history, training,

practice and future challenges. The Clinical Neuropsychologist, 30(8), 1267-1277.

Walsh, K. (1994). Neuropsychology: A clinical approach. (3rd.ed.) London, U.K:

Churchill Livingstone.

Wilson, B. (2011). Compreendendo a memória e as dificuldades mnemôni-

cas. Reabilitação da memória: integrando teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 22-3.

Psicólogo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando bolsista (CAPES)

em Psicologia: Cognição e Comportamento pela Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG). É pesquisador membro do Laboratório de Estudos do Comportamento, Cogni-

ção e Aprendizagem (LECCA/UFMG) e membro coordenador do Grupo de Estudo em

Treinamento Cognitivo para Idosos (2017 - 2018). Atualmente é colaborador na Comis-

são Jovem da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp Jovem, 2018 - 2019).

Tem interesse em construção de programas de intervenção; adaptação, validação e nor-

matização de instrumentos psicológicos; princípios de psicometria; avaliação e interven-

ção psicológica e neuropsicológica; e Terapia Cognitivo-Comportamental baseada em

evidências.

42

Presidente: Victor Polignano Godoy

Vice-presidente: Lucas Matias Félix

Secretária Geral: Thais Dell'Oro de Oliveira

Editora-Chefe do Boletim: Giulia Moreira Paiva

Gerente de relacionamento com o cliente: Ana Luíza Costa Alves

Gerente de mídias: Breno Marques

Editoração do boletim e design: Beatriz Campos Codo

Consultores técnicos:

Isabela Sallum

Emanuel Gonçalves Querino

Camila Bernardes

Alina Teldeschi

Colaboradores:

Alberto Timóteo (MG)

Alexandre Marcelino (MG)

Ana Paula Toome Wauke (RS)

Breno Bezerra de Andrade (SP)

Emanuelle Oliveira (MG)

Helen Oliveira (RO)

Júlia Scalco (RS)

Mariana Cabral (MG)

Nathália Cheib (MG)

Priscila Corção (RJ)

Ricardo França (BA)

Roberta Garcia (MG)

Waleska Sakib (GO)