PRÁTICAS ESCOLARES ALTERNATIVAS NO ENSINO BÁSICO ... · da década de 1930 e do início dos anos...

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PRÁTICAS ESCOLARES ALTERNATIVAS NO ENSINO BÁSICO: PRODUZINDO SIGNIFICADOS SOBRE IDENTIDADES E DIFERENÇA NO ESTUDO DOS POVOS INDÍGENAS Isabel Cristina Fraga Dier 1 Instituto de Educação Olívia Lham Hirt Laura Nelly Mansur Serres 2 Colégio de Aplicação/UFRGS Tanise Müller Ramos 3 Colégio de Aplicação/UFRGS A partir dos documentos legais que orientam o Ensino Básico, somados aos aportes teóricos oriundos do campo dos Estudos Culturais, este artigo pretende ser uma contribuição para refletir acerca do modo como o estudo dos povos indígenas vem sendo desenvolvido durante décadas na escola moderna ocidental centrado na reprodução de estereótipos e preconceitos. Pretendemos mostrar que atualmente existem, no âmbito da educação, tentativas de tratar esse assunto de um modo alternativo, diferenciando-se desses enfoques anteriores. A análise é feita à luz dos aportes teóricos que visam ao respeito das diferenças culturais, num intento para contribuir com um mundo mais harmônico e solidário. Para isso, apresentamos, de modo sucinto, possíveis estratégias que possibilitem contextos mais significativos de aprendizagem, contribuindo para a quebra de estereótipos e preconceitos, tarefa essa que parece começar a tomar força no âmbito educativo atual com o apoio de diferentes aportes teóricos, estudos e pesquisas de campo. Introdução 1 Pedagoga no Instituto Estadual de Educação Olivia Lham Hirt – Igrejinha /RS. Professora da Sala de Recursos das Escolas Municipais de Igrejinha. Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica. Especialização em Atendimento Educacional Especializado AEE. E-mail: [email protected] 2 Professora de Espanhol do CAp/UFRGS. Mestre. em Letras, na área da Literatura Infanto-Juvenil pela PUCRGS. Especialista em Integração e Mercosul pela UFRGS. Licenciada em Comunicação Social pela Universidad Nacional de Córdoba – UNC. E-mail: [email protected] 3 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected]

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PRÁTICAS ESCOLARES ALTERNATIVAS NO ENSINO BÁSICO: PRODUZINDO

SIGNIFICADOS SOBRE IDENTIDADES E DIFERENÇA NO ESTUDO DOS POVOS

INDÍGENAS

Isabel Cristina Fraga Dier1

Instituto de Educação Olívia Lham Hirt

Laura Nelly Mansur Serres2

Colégio de Aplicação/UFRGS

Tanise Müller Ramos3

Colégio de Aplicação/UFRGS

A partir dos documentos legais que orientam o Ensino Básico, somados aos aportes

teóricos oriundos do campo dos Estudos Culturais, este artigo pretende ser uma contribuição

para refletir acerca do modo como o estudo dos povos indígenas vem sendo desenvolvido

durante décadas na escola moderna ocidental centrado na reprodução de estereótipos e

preconceitos. Pretendemos mostrar que atualmente existem, no âmbito da educação, tentativas

de tratar esse assunto de um modo alternativo, diferenciando-se desses enfoques anteriores. A

análise é feita à luz dos aportes teóricos que visam ao respeito das diferenças culturais, num

intento para contribuir com um mundo mais harmônico e solidário. Para isso, apresentamos,

de modo sucinto, possíveis estratégias que possibilitem contextos mais significativos de

aprendizagem, contribuindo para a quebra de estereótipos e preconceitos, tarefa essa que

parece começar a tomar força no âmbito educativo atual com o apoio de diferentes aportes

teóricos, estudos e pesquisas de campo.

Introdução

1 Pedagoga no Instituto Estadual de Educação Olivia Lham Hirt – Igrejinha /RS. Professora da Sala de Recursos das Escolas Municipais de Igrejinha. Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica. Especialização em Atendimento Educacional Especializado AEE. E-mail: [email protected] 2 Professora de Espanhol do CAp/UFRGS. Mestre. em Letras, na área da Literatura Infanto-Juvenil pela PUCRGS. Especialista em Integração e Mercosul pela UFRGS. Licenciada em Comunicação Social pela Universidad Nacional de Córdoba – UNC. E-mail: [email protected] 3 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected]

No contexto educacional brasileiro decorrente da lei 11.645/2008, a qual tornou

obrigatório o ensino de história e cultura indígena nas escolas, constatamos que um assunto

que hoje deve compor o currículo do Ensino Básico é o estudo dos povos indígenas,

despertando uma ampla gama de interrogantes sobre como abordar esse estudo em sala de

aula, além do questionamento acerca de quais recursos pedagógicos utilizar, dentre os quais

estariam os livros didáticos e outros materiais impressos e de relevância social.

Citando como exemplo, uma possibilidade para este trabalho seria o uso de textos

provenientes de revistas, mas é possível perceber, com base nos aportes teóricos de Bonin e

Ripoll (2015), que embora essas publicações tenham adquirido status de material adequado

para o trabalho em sala de aula, o professor precisa atentar para os conteúdos divulgados

nesses veículos massivos, já que contamos com estudos que demonstram que há

intencionalidade no tratamento das informações, influenciando modos de pensar o “outro” e o

“diferente”. As representações presentes nesses materiais, muitas vezes tomando como

referência o espaço social e cultural em que estamos inseridos, apresentam modos de vida

únicos e fixos como verdades, dificultando a possibilidade de pensar as diferenças culturais.

Este artigo pretende, então, motivado por essas e outras questões acerca da inclusão do

estudo dos povos indígenas no currículo, constatar que os alunos vem construindo alguns

estereótipos e preconceitos na escola, ou seja, algumas ideias pré-concebidas sobre aquele que

é diferente quanto ao seu pertencimento cultural.

Assim, pretendemos focar nas práticas pedagógicas que o docente poderia desenvolver

ao incluir o estudo dos povos indígenas em suas aulas, delineando ações que tendam a

contribuir para a quebra dos estereótipos e preconceitos já arraigados ao cotidiano escolar.

Desse modo, pensando que o professor dispõe de diferentes materiais impressos para o seu

trabalho, dentre eles revistas que trazem representações acerca dos povos indígenas, alertamos

para o fato de que muitos desses materiais podem ser tendenciosos, reforçando os estereótipos

e sedimentando a discriminação. Como alternativa, valorizaremos estratégias que permitam

aproximar o aluno dos contextos vividos pelos povos indígenas, de modo que ao aluno seja

possível vivenciar realidades alheias ao seu cotidiano, como é, por exemplo, a visita a uma

aldeia indígena, que permitiria ao aluno por ele mesmo construir algumas conclusões,

contrapondo a interferência dos discursos prévios que reforçam imagens estereotipadas e

preconceitos.

Objetivamos mostrar que esse tipo de estratégia consiste em práticas pedagógicas

alternativas para aquelas que historicamente caracterizam a escola tradicional, constituindo

assim um aporte à consecução de um mundo mais plural e solidário, com base no respeito às

identidades e diferenças culturais. Apresentaremos também uma breve sondagem feita a

professores e alunos acerca de suas representações sobre o enfoque dado aos povos indígenas

na escola, corroborando com os depoimentos contidos nos trabalhos de Bonin (2008), ao

demonstrar que existe uma responsabilidade docente no tratamento dado aos povos indígenas

na escola, traçando possibilidades e dificuldades para a implementação da lei 11.645/2008.

A interculturalidade e o respeito às diferenças na escola: uma tarefa que vem se

construindo

Para desenvolver a reflexão que propomos, é conveniente lembrar que o nacionalismo

da década de 1930 e do início dos anos 1940 contribuiu tanto para a expansão do sistema de

ensino básico no Brasil e em outros países, como para uma reapropriação da figura dos índios

pelos Estados nacionais, em particular do continente americano (FUNARI, 2011). Um dado

importante para ser resgatado é que em abril de 1940, reuniu-se em Patzcuaro, no México, o

Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, tendo sido o dia 19 de abril sugerido por

representantes indígenas como data comemorativa do índio para todo continente americano.

Essa data coincidia com festividades ligadas à primavera no Hemisfério Norte e sugeria, de

alguma maneira, o renascimento da temática indígena em todo o continente.

Foi por tais motivações que, em plena ditadura do Estado Novo no Brasil (1937-1945),

o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei nº5540/1943, declarando o dia 19 de abril

como Dia do Índio. Com isso, a temática indígena, antes quase ausente, foi introduzida no

calendário escolar brasileiro. A partir de então, e até hoje, a data é comemorada nas escolas

com diversas atividades, gerando discussões teóricas sobre as implicações pedagógicas que o

tratamento do tema no espaço escolar gera e a repercussão desse trabalho na representação

social do índio.

Considerando as ideias já expostas, pensamos que discutir esses assuntos requer não

apenas problematizar o que se consolidou na escola e na sociedade acerca dos povos

indígenas, mas também propor novas maneiras de representar esse segmento social.

Nesse sentido, um trabalho pedagógico alternativo que aborde a questão indígena

precisa, em primeiro lugar, considerar a interculturalidade como um processo real da vida,

uma tomada de posição ética a favor da convivência com as diferenças, permitindo um

enriquecimento mútuo das culturas em diálogo. Pensadores latino-americanos, como Fornet-

Betancourt (2010) e Paulo Freire (1967), ao valorizarem o diálogo como forma de interação

entre os povos, nos auxiliam a pensar a interculturalidade e o respeito às diferenças como um

caminho de esperança.

Para Santos (2007), temos o direito de sermos iguais quando a nossa diferença nos

inferioriza, e temos o direito de ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza.

Enfim, temos o direito de ser diferentes na igualdade. Por isso, é preciso encontrar um diálogo

que respeite as diferenças, tal como expressa Santos: “É preciso encontrar outro tipo de

diálogo entre as diferentes filosofias, e também aqui aparece o desafio. É preciso conversar

muito mais, dialogar muito mais, buscar outra metodologia de saber, de ensinar, de aprender.”

(SANTOS, 2007, p. 57).

Nesse sentido, para construirmos uma prática pedagógica que seja capaz de incluir o

estudo da história e cultura indígena, problematizando estereótipos e preconceitos, é preciso

haver uma nova relação entre o reconhecimento das identidades e das diferenças e o combate

à desigualdade. Assim, a Educação pode ser vista como uma busca incessante e sem prazo

pela emancipação dos povos indígenas que ainda são invisibilizados na sociedade, numa luta

pelo reconhecimento da diferença e também pela igualdade dos sujeitos. Em outras palavras,

em uma luta pelo direito às identidades culturais dos diferentes povos indígenas.

Acreditamos, pois, que os encontros interculturais fortalecem os laços entre as

culturas, cooperando assim para a consecução de um mundo plural e solidário. Nesse

contexto, é importante incentivar o aluno a se aproximar das práticas de outras culturas,

vivenciando, por exemplo, a língua do outro, os costumes do outro, o modo de ser e de pensar

do outro, em um ambiente de imersão real, promovendo que o diálogo entre povos seja

possível, estabelecendo vínculos duradouros.

Pensamos que uma experiência dessa natureza, ou seja, do encontro entre culturas,

pode permitir ao aluno reconhecer os diferentes pontos de vista, concepções de mundo e

perspectivas, o que pode ser potencializado quando o aluno expressar suas vivências de modo

escrito, produzindo textos significativos para ele. Desse modo, o estudante pode construir um

retrato da diversidade vivenciada, permitindo que faça reflexões significativas para o

estabelecimento de relações humanas baseadas no respeito, compreensão e aceitação das

diferenças. As apreciações dos alunos, suas impressões e dúvidas podem ser representadas em

trabalhos escolares que permitam exercitar a oralidade e a escrita de modo contextualizado,

isto é, a partir de um assunto em estudo que seja significativo para ele.

Portanto, valorizamos a necessidade de se construir um olhar pedagógico focado

numa educação para a interculturalidade, reconhecendo a responsabilidade docente implicada

nesse processo e o papel da escola no combate aos estereótipos e à discriminação. Parece-nos

que o estudo dos povos indígenas, nesse sentido, colabora para essa mudança de paradigmas,

ao colocar como uma demanda pedagógica a valorização das identidades e diferenças no

espaço escolar.

Estereótipos e discriminação: o papel da escola

Segundo Babo (2007), através da socialização o indivíduo está em contato permanente

com estereótipos e preconceitos. Salienta que os estereótipos chegam por meio da publicidade,

cinema, televisão, internet, imprensa escrita e literatura. A autora reflete sobre a importância da

desmontagem ou desconstrução deles, ou seja, diz que se faz necessário desfazer pela análise o

que se encontra estruturado.

Babo afirma ainda que estereótipo e preconceito são dois conceitos distintos, mas que

se confundem frequentemente. Assim, no conceito de estereótipo, segundo a

autora, predomina a dimensão de classificação, sendo um juízo redutor falseado ou mesmo

contraditório. Salienta também que quase sempre possui uma carga depreciativa, feita com

desconhecimento de causa e referente a um determinado grupo e seus elementos. Já o

preconceito é apresentado como o elemento afetivo mais intenso, encerrando uma implicação

avaliativa quase sempre negativa e se referindo a um objeto ou a um grupo social.

Decorrente destes processos, temos ainda a discriminação, que é descrita

como comportamentos lesivos das capacidades e dos direitos do outro e é representada por

um ou vários indivíduos pertencentes a um grupo étnico, nacional, sexual, religioso ou etário.

Desse modo, podemos deduzir que no ambiente escolar, tanto professores como

alunos convivem com certos estereótipos e isso não significa que existam necessariamente

preconceitos e, em consequência, discriminação. Mas é importante que o docente saiba

detectar esses elementos para conseguir delinear caminhos que ajudem o aluno a respeitar as

identidades e diferenças, valorizando as particularidades das culturas que convivem no mundo

atual. Ou seja, um trabalho possível, nesse sentido, no Ensino Básico, poderia consistir em

analisar estereótipos que os alunos possuem em relação a uma outra cultura, como pode ser a

cultura de um povo indígena, e observar se eles (os estereótipos) vem carregados de

preconceitos e discriminação. A partir desses dados, pensamos que o docente poderá fazer

uma leitura que aporte subsídios para delinear as estratégias necessárias, em vistas de um

trabalho que aponte à integração e respeito às identidades e diferenças culturais.

A opção de usar revistas como material didático: algumas problematizações

Considerando que existem várias revistas ao alcance dos alunos do Ensino Básico, é

possível que em alguns momentos o professor escolha matérias desses meios de comunicação

massivos para tratar em aula e decida usá-las como material didático.

A partir disso, pensamos que é importante lembrar as ideias de Bonin (2008) em

relação a esses materiais de ampla difusão, antes de levá-los para a sala de aula. A autora faz

referência às representações que esses materiais constituem sobre os povos indígenas. Analisa

diversas reportagens sobre as comunidades indígenas e o modo como o jornalismo trata esse

assunto, afirmando que a revista, muitas vezes, constrói e coloca em circulação representações

que servem para corroborar com as ideias de “atraso”, “barbárie” e de “manipulação” dos

povos indígenas. Salienta que determinadas revistas conferem destaque à representação do

“índio que dá certo”, justamente quando em articulação com o agronegócio (ibidem, p .167).

A autora prossegue dizendo que, “[...] a noção de “progresso”, aplicada ao plano econômico,

funde-se ao social quando a revista defende, por exemplo, que os índios bem-sucedidos

seriam aqueles alinhados ao modo de produção agrícola mecanizado em larga escala.” (Bonin,

2008, p. 167).

A pesquisadora refere em suas análises que observa uma “ênfase no entendimento da

terra como um recurso importante, seja para a manutenção dos estilos de vida indígena [...],

seja para a expansão das fronteiras agrícolas e ampliação da lucratividade” (Bonin, 2008, p.

170 - 171). E ainda complementa, afirmando que

Os conflitos de terra descritos nas reportagens analisadas são representativos de

diferentes modelos em disputa [...] constroem uma espécie de transição entre as

práticas indígenas e as práticas de agronegócio, na qual as primeiras figuram como

ultrapassadas, como algo indesejável, a superar, e as do agronegócio seriam “o ponto

de chegada”, o desejável “progresso”, que permitiria aos índios escapar de seu suposto

destino trágico. (ibidem, p.171)

Bonin e Ripoll (2015) salientam que os embates dos povos indígenas pela posse e

destinação das terras também são temas frequentes nas revistas, onde a imagem de um índio

“invasor”, “ganancioso” e “insatisfeito” com as terras que já possui é construída e perpetuada.

Corroborando com tais afirmações, Oliveira (2008) refere-se também a algumas

revistas e livros didáticos, estudando como esses materiais constroem a identidade dos povos

indígenas. Explica que os livros deixaram de ser o único recurso didático disponível nas

escolas e que as revistas tem sido utilizadas até receberem um status de material de consulta

para a elaboração de trabalhos escolares. A autora entende que

[...] os discursos que circulam nas revistas devem ser tomados como um “dispositivo

pedagógico”, pois ensinam a olhar e a dizer como somos e como são os outros, além

de pretenderem ensinar a solução a “problemas” financeiros, sentimentais, escolares,

familiares, religiosos, enfim, para todas as questões (OLIVEIRA, 2008, pág. 28, grifos

do autor).

A citada autora observa que “várias são as representações de identidade indígena, que

se distribuem diferentemente entre livros didáticos e revistas” (OLIVEIRA, 2008, página 28).

A autora, no seu trabalho, procura destacar alguns discursos que se articulam e mostram os

indígenas como selvagens e ameaçadores. Dá exemplos do tratamento informativo que mostra

um índio atual “comprometido” com práticas “monstruosas” do passado, ensinando assim, a

olhar o índio como irracional e desprovido de sensibilidade humana.

Desse modo, as fotos, por exemplo, mostrando o índio esticando um arco, como se

fosse atirar uma flecha, assim como uma oca, fixam um modo de vida como único, reforçando

estereótipos presentes também em outros textos, como os livros didáticos. Muito

esclarecedora é a apreciação da citada autora quando diz:

Relembramos que mostrar a casa constitui uma das formas através das quais os livros

narram os “diferentes”, os que “fogem à normalidade”. Além disso, a “oca” tem sido

um dos ícones para marcar a singularidade indígena [ ] mas também outros discursos

apontam para formas de comportamento dito selvagem, como a vida na mata, o

“estilo” das habitações, os instrumentos de trabalho, as vestimentas, a forma como

obtém e utilizam os recursos, etc. Eles tendem a universalizar associações do tipo:

índios usam arco e flecha, moram em ocas, furam o corpo para colocar objetos

“estranhos” como ossos e pedaços de madeira considerados enfeites, andam nus (ou

seminus), enfim, são diferentes e… assustadores. (OLIVEIRA, 2008, página 30).

Novos caminhos e algumas mudanças

Depois das reflexões realizadas, consideramos interessante apresentar brevemente

algumas experiências práticas já efetivadas. Destacamos o projeto pedagógico realizado nos

Anos Iniciais do Colégio de Aplicação da UFRGS e alguns depoimentos sobre o estudo dos

povos indígenas de alunos e professores do Instituto de Educação Olívia Lham Hirt de

Igrejinha/RS. Ambas as experiências nos levam à reflexão sobre a presença de estereótipos,

preconceitos e discriminação na escola, o que leva à consideração da responsabilidade

docente na desconstrução desses elementos historicamente presentes no ambiente escolar.

No ano de 2016, o Colégio de Aplicação da UFRGS desenvolveu um projeto

pedagógico com as crianças dos Anos Iniciais, envolvendo o estudo dos povos indígenas. O

trabalho fez parte dos estudos de Iniciação Científica das crianças e tinha como objetivo, além

do estudo dos povos indígenas, a introdução no pensamento científico, ajudando as crianças a

formular perguntas e elaborar hipóteses sobre diferentes temáticas relacionadas aos povos

originários. Contrapondo o uso já tradicional de revistas e livros didáticos nas escolas, nesse

projeto foi feita a escolha de visitar com os alunos a aldeia indígena guarani Pindó Mirim,

localizada na cidade de Viamão (RS). A descrição dessa saída de campo, preparação dos

alunos, recepção na aldeia, impressões dos alunos, assim como os questionamentos deles

encontram-se registrados em material audiovisual e foi enviado para a aldeia visitada, a fim de

estabelecer um diálogo com a comunidade guarani. Não temos como objetivo detalhar todo o

trabalho realizado aqui neste espaço, pois somente citaremos alguns elementos que ajudam a

dar suporte e ilustrar as reflexões teóricas contidas no presente artigo, corroborando-as.

Neste sentido, cabe destacar algumas cenas significativas. Antes da saída de campo,

foi proposto para os alunos (em fase de alfabetização) que desenhassem o que eles achavam

que encontrariam no lugar que visitariam. O objetivo dessa etapa do trabalho era observar

quais estereótipos estariam presentes nos desenhos para depois, na volta da visita, analisar

com as crianças sobre se essas representações coincidiram ou não com o que fora vivenciado

na comunidade visitada. Esses desenhos dariam subsídios para saber por quais caminhos

realizar o estudo dos povos indígenas, partindo dos estereótipos presentes que precisariam ser

desconstruídos, sempre apontando à consecução de um trabalho intercultural que ajudasse as

crianças a olhar as diferenças com respeito.

Para tal fim, foi entregue para cada criança uma folha de papel A4 com a seguinte

consigna: “Faça um desenho sobre o que você espera encontrar na aldeia indígena que

visitaremos. Por exemplo: As roupas que os indígenas usam; o almoço deles; as brincadeiras

das crianças; como é a sua escola; como são as suas festas; outros costumes que você acha

que eles tem”.

A partir dessa proposta, alguns elementos que apareceram nos desenhos e escritas

foram: arco, flecha, oca, penas na cabeça, natureza, animais, vida ao ar livre, partes do corpo

nuas. Os desenhos permitiram interpretar que os alunos possuíam ideias pré-concebidas em

relação aos povos indígenas que muito tem a ver com as imagens difundidas por alguns livros

didáticos e revistas (Figura 1). Nesse sentido, citaram conteúdos midiáticos, como desenhos

animados, além de cenas escolares que estavam embasando suas hipóteses, o que reforça a

nossa tese de que os estereótipos e preconceitos são também ensinados na escola.

Figura 1- Desenhos das crianças antes da visita à aldeia indígena

Na volta da saída de campo à aldeia, foi solicitado para as crianças que desenhassem o

que viram lá e os resultados indicaram a presença de outros elementos: pessoas reunidas em

grupos ou em torno de uma mesa, muitas pessoas parecidas com as próprias crianças do

Colégio, trajando roupas “como as nossas”, sem a presença de penas como adornos para o

corpo, pessoas brincando, pessoas conversando com sorriso no rosto, vida ao ar livre,

corações vermelhos em volta de pessoas felizes, algumas palavras em guarani (Figura 2).

Figura 2 – Desenhos das crianças depois da visita à aldeia indígena

A comparação dos desenhos permitiu observar que vários dos elementos desenhados

antes da visita à aldeia não foram recorrentes nos desenhos realizados posteriormente à visita.

Isso permitiu iniciar uma conversa com os alunos sobre como, em alguns casos, temos ideias

sobre pessoas e lugares que na verdade não correspondem quando temos oportunidade de ter

vivências pessoais (e não somente por meio de livros e revistas).

Nossa intenção com essa proposta foi reconhecer alguns dos estereótipos dos alunos,

tentando problematizá-los por meio de um contato real com uma comunidade indígena,

realizando atividades que não se esgotaram na simples visita. Pudemos observar a surpresa de

muitas crianças, ao se depararem pela primeira vez com uma comunidade indígena real,

despojada das representações sociais comumente apresentadas nos veículos midiáticos e

escolares. Afirmamos, assim, a necessidade de uma proposta pedagógica intercultural,

baseada no diálogo e na desconstrução dos estereótipos e preconceitos para o respeito das

diferenças culturais.

Outra experiência que selecionamos para destacar foi desenvolvida no Instituto de

Educação Olívia Lham Hirt, situado em Igrejinha/RS, onde foi solicitado para alguns

professores e alunos que relatassem alguma lembrança sobre atividades e/ou materiais usados

no estudo dos povos indígenas, na ocasião em que foram alunos da Educação Básica. A

proposta partia de algumas perguntas orientadoras: “O que você lembra sobre como era

festejado o dia do índio há alguns anos atrás? Como é festejada e trabalhada atualmente essa

data nas escolas?”.

De modo geral, as respostas dos professores a respeito de suas lembranças escolares

incluíram: uso de cocares de penas, indumentária indígena, pintura no rosto com tinta verde e

amarela, confecção de colares, trabalhinhos e musiquinhas, confecção de utensílios indígenas.

Algumas falas exemplificam essas constatações:

No meu tempo de escola, não se trabalhava muito, alguns professores faziam cocar.

Há alguns anos atrás (quando eu estudava), o dia do índio era trabalhado de forma lúdica, com

confecção de colar com sementes, cocares de penas, arco e flecha, etc.

Faziam-se cocares e se pintava a cara com tintas verde e amarela.

Dentre os alunos entrevistados, podemos destacar os seguintes elementos presentes na

abordagem dada ao tema atualmente: trabalhos sobre a cultura indígena, como comem, como

vivem, suas tradições, debates, estudo da sua cultura, explorando diversas áreas do

conhecimento, atividades criativas, uso da tecnologia pelo índio.

Podemos observar que entre as respostas dos professores e as respostas dos alunos

existe uma diferença de enfoque dado ao estudo dos povos indígenas. Parece-nos haver um

deslocamento da abordagem de um indígena aprisionado em estereótipos que o relaciona a

arcos, flechas, pinturas, penas e cocares para um indígena marcado pela diversidade cultural,

apontando várias possibilidades para o enfoque dado ao trabalho. Chamamos a atenção para o

fato de os alunos entrevistados terem tido experiências escolares sobre os povos indígenas que

os relacionavam à sua história e cultura, modo de vida, participação na formação da cultura

brasileira, uso da tecnologia, dentre outros, mostrando que as respostas dos alunos foram

capazes de destacar vivências mais plurais em relação às experiências escolares que seus

professores tiveram quando crianças4.

4 Algumas experiências citadas pelos alunos: debates em torno de documentários, leitura de textos, discussão sobre leis, imagens, pesquisas, músicas, notícias, visitas a aldeias, entrevistas com lideranças indígenas.

Desse modo, podemos observar que existe diferença quanto à abordagem dos povos

indígenas na escola, especificamente na época escolar dos professores que em 2016 estavam

em exercício no Instituto Instituto de Educação Olívia Lham Hirt e o modo como essa questão

é tratada nos dias de hoje na mesma instituição com os alunos do Ensino Médio. Observa-se

que os elementos das respostas dos professores reforçam estereótipos, limitando-se a pintar o

rosto, fazer colares, cantar musiquinhas. Em contrapartida, os alunos foram capazes de citar

outros elementos que incluem estudos da cultura e história dos povos indígenas, numa

abordagem contextualizada e menos estereotipada. Acreditamos que é justamente a

desconstrução desses estereótipos e preconceitos que estaria criando condições para o diálogo

e para uma educação intercultural.

Conclusão

As experiências realizadas tanto no Colégio de Aplicação como no Instituto de

Educação Olívia Lham Hirt constituíram um modo de abordar o estudo dos povos indígenas

de forma alternativa às práticas tradicionais, baseadas na leitura de livros didáticos e revistas.

Sem a intenção de desmerecer a utilidade desses materiais nas atividades pedagógicas, o

estudo permitiu ampliar as possibilidades desse trabalho, não sendo restringido a somente um

dia ou a uma semana do índio. Pelo contrário, foi possível observar que a estratégia de visitar

a aldeia desencadeou um trabalho de diálogo cultural que se estendeu ao longo de um ano

letivo, comprovando que a desconstrução de estereótipos e preconceitos necessita de tempo

pedagógico para acontecer.

Nossa conclusão, portanto, é a de que já podemos visibilizar na escola atual estratégias

pedagógicas que possibilitam contextos mais significativos de aprendizagem, contribuindo para a

quebra de estereótipos e preconceitos e, de forma mais abrangente, viabilizando uma proposta de

educação intercultural, baseada no diálogo e no respeito à diferença.

Podemos afirmar, a partir dessas constatações, que a implementação do estudo dos povos

indígenas na escola necessita da criação de práticas alternativas àquelas tradicionalmente arraigadas ao

espaço escolar, tais como o uso de livros didáticos e outros materiais impressos geralmente

veiculadores de estereótipos e preconceitos. Atividades como saídas de campo à aldeia, entrevistas

com lideranças indígenas, leituras de imagens, uso de vídeos produzidos por indígenas, dentre outras,

tem servido como iniciativas para o estabelecimento do diálogo com vistas à concretização de uma

educação intercultural.

REFERÊNCIAS

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