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A pesca na cidade de São Paulo, 1890-1940
Janes Jorge
Professor de História do Brasil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel, mestre e
doutor em História pela Universidade de São Paulo. Contato: [email protected]
Uma passagem divertida ocorrida na várzea do rio Tietê no início do século XX,
permite entrever a importância da pesca na vida dos moradores da cidade de São Paulo
entre 1890 e 1940. Ao invés de usarem vara e anzol, o menino Jacob Penteado e seus
vizinhos preferiam “esgotar lagoas que se formavam depois das enchentes nas várzeas”,
formando uma “espécie de dique em sua volta, e todos, armados de latas e latões”, atiravam
a água para fora até que a lagoa secasse. Então, “era só vasculhar, com um peneira ou com
uma pá, o leito escuro e lamacento e o peixe vinha aos montes”. Em uma dessas pescarias
coletivas realizadas no proletário bairro do Belenzinho, um italiano chamado Clemente
“rejubilou-se todo, ao apanhar uma cobra d’água, bicho inofensivo, muito encontradiço nos
lagos e brejos”:
- Ho trovato un’anguilla! – gritou orgulhoso, julgando haver encontrado uma
enguia.
Quando lhe disseram que era uma cobra d’água, atirou-a para longe. Não
ganhou para o susto, nem falou mais, naquele dia. (PENTEADO, 1962, p. 164)
Como certas cobra d’águas, embora inofensivas, excretam fezes e outras substâncias
quando em perigo, talvez o susto do italiano não se devesse apenas ao desapontamento por
não se tratar de uma enguia. Porém isso é impossível descobrir pelo relato de Jacob, que faz
parte de Belènzinho 1910, livro de memórias publicado pela primeira vez em 1962. Mas, o
importante é notar como Clemente, quem sabe recém-chegado ao Brasil, aprendia a
conhecer comunitariamente as espécies da bacia do Alto Tietê e as maneiras de apanhá-las -
o que era importantíssimo em uma cidade em que a maioria da população era pobre e
dependia, muitas vezes, da pesca, da caça e da coleta para sobreviver.
Outra forma de pescaria praticada na época das cheias dos rios paulistanos foi
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registrada por um dos fundadores da cidade, o padre José de Anchieta, em meados do
século XVI. Em uma de suas cartas, ele contava que, com as chuvas da primavera e
especialmente do verão, os rios cresciam e inundavam os campos. Por “essa ocasião sai
do leito do rio uma grande multidão de peixes, e se deixam apanhar com muita
facilidade”, fosse em redes ou mesmo com as mãos, quando aprisionados em poças
pouco profundas (Centenário da Descoberta do Brasil, 1900, p. 10). Os que não eram
recolhidos pelos pescadores, mas tampouco conseguiam voltar ao leito dos rios quando as
águas refluíam, ficavam expostos ao sol a secar. Daí a denominação Piratininga - na
língua dos antigos habitantes tupis, “peixe-seco” - ser empregada outrora para designar
São Paulo.
Após vários dias de chuva prolongada na cidade, o naturalista Rodolpho Ihering
presenciou a mesma modalidade de pesca relatada por Anchieta, mas cerca de 350 anos
depois do jesuíta! Na década de 1910, moradores das “várzeas alagadas do rio
Tamanduateí, entre as estações de Ipiranga e São Caetano”, cercavam os peixes que
haviam saído do rio para os campos alagados para desovar. “Esbarrando contra as redes e
tapumes, não podiam as tabaranas voltar ao leito do rio e assim a pescaria rendeu
algumas centenas de quilos de peixe” (IHERING, p.76-7).
Aparentemente a pesca das tabaranas nas várzeas, depois que elas desovavam,
garantia que uma nova geração de peixes repovoasse o rio, substituindo as que fossem
capturadas. Mas como saber se não se apanhavam os peixes antes da desova? As tabaranas
eram os maiores peixes da bacia do Alto Tietê: podiam alcançar 45 cm de comprimento e o
peso de 400 gramas. O Tietê e seus afluentes em São Paulo não eram habitat de peixes
grandes. Estes apareciam no Tietê, mas depois de Salto de Itu, onde se podia pescar o
pintado, o jaú e o dourado, cujo peso podia se contar em quilos.
A expansão dos cafezais no interior paulista, que se intensificou no final do século
XIX, fez com que São Paulo iniciasse um processo de crescimento econômico e
demográfico ao mesmo tempo surpreendente e atemorizante para os contemporâneos.
Assim, integrou-se ao complexo agro-exportador cafeeiro como centro financeiro,
mercantil e ferroviário, o que desencadeou um intenso processo de urbanização e
crescimento demográfico. A cidade, que em 1872 possuía 31 mil habitantes, passou a
contar 239 mil em 1900. No ano de 1920, quando São Paulo já se consolidara como
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importante pólo industrial do país, eram 579 mil os moradores da capital paulista, número
que em 1940 atingiria a marca de 1.326.261 pessoas. São Paulo se transformou numa das
maiores aglomerações urbanas do mundo e esse processo inexoravelmente afetaria os rios e
córregos da região, sua fauna e flora.
Contudo, nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, o
desenvolvimento da economia citadina era incapaz de propiciar os postos de trabalho
necessários para uma população que crescia em ritmo acelerado, vinda de todas as partes do
Brasil e do mundo. Os trabalhadores com emprego fixo eram minoritários e o nível salarial,
em média, era baixo. O temor de perder o emprego estava sempre à espreita, pois a
demissão podia se dar a qualquer momento e ocorrer em massa diante de certas
conjunturas. Os operários das fábricas, entre eles numerosas mulheres e crianças, recebiam,
em geral, vencimentos baixos, que mal davam para alimentar uma família, em jornadas de
trabalho de 10 horas, seis dias por semana. Havia sazonalidade de muitas atividades
econômicas e a taxa de desemprego era alta. Recorria-se a todo tipo de expedientes para
sobreviver. A repressão sistemática imposta por patrões e pelo governo aos trabalhadores,
às suas associações de ajuda mútua e sindicatos, dificultava a luta por aumentos salariais e
melhores condições de trabalho, o que, somado a um sistema político oligárquico, fechado
à participação dos cidadãos, impedia uma distribuição de renda mais justa, mesmo que a
longo prazo. A economia do país, submetida ao mercado mundial do café e seus agentes
brasileiros, era sacudida por crises que assombravam os moradores, assim como a alta do
custo de vida e a falta de moradias, que elevava o preço do aluguel fortemente (PINTO,
1994, p. 35-8, 50).
Foi nas várzeas e terras baixas, em meio a fábricas e ferrovias, que grande parte das
classes populares de São Paulo foi morar, embora fossem alocados igualmente em
loteamentos distantes; em ambos os casos, em terras de menor valor no mercado
imobiliário, com mínima infra-estrutura (PRADO JR, 1966, p. 41, 130). Assim, havia uma
grande população pobre e crescente, que morava junto a rios e incontáveis córregos,
combinação que ajuda a entender porque se pescava tanto em São Paulo. Na verdade, como
as áreas urbanizadas da cidade se mesclavam não só com rios e córregos, mas também com
lagoas, várzeas, campos, matas, zonas agrícolas e pastoris ou gigantescos terrenos baldios e
barrancos, não só a pesca era comum, como igualmente a caça, a coleta de frutos e de
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plantas alimentares ou medicinais, o corte e a cata de lenha.
A pesca é presença constante nas lembranças dos moradores da São Paulo da
primeira metade do século XX. É claro que nem todos pescavam por necessidade, alguns o
faziam por lazer, mas a maioria por ambos os motivos. Imagem marcante, para os lados do
bairro da Penha, na confluência do Tietê com o córrego Aricanduva, era a de mulheres
negras de saias sungadas, com uma bolsa de pano pendurada e peneira na mão, mariscando
pela vegetação ribeirinha. Na vazante, apanhava-se camarões no Tietê, empurrando-se uma
peneira relva acima, no leito do rio, para depois levantá-la rapidamente. Debaixo de pedras,
sapatos, pedaços de paus e outras tranqueiras abandonadas às margens do rio, capturavam-
se caranguejos. As traíras eram pegas de preferência nas lagoas que se formavam depois
das enchentes. Mas podiam ser apanhadas com um arpão, na alvorada, em meio à
vegetação ribeirinha.
Muitos pescadores improvisavam suas varas com galhos arrancados à beira do rio e
faziam de alfinetes retorcidos os anzóis. Usavam como isca minhocas ou miolo de pão.
Podiam simplesmente utilizar linhadas, que dispensavam o uso de vara, ainda mais se
fossem jogadas a partir de barcos, então numerosos nos rios paulistanos. Apanhava-se
lambaris, guarus, traguiras, piabas, tabaranas, trairões, bagres, mandis e cascudos. Até a
década de 40 não era raro homens vararem a noite às margens do Tietê pescando, de
preferência longe das regiões mais densamente ocupadas.
No rio Pinheiros e seus afluentes também havia fartura de peixe. Algumas pessoas
chegavam à tarde e permaneciam pescando até ao anoitecer, utilizando varas de bambu.
Nos anos 1920, jovens com enxada, a lembrar tamanduás, atacavam os numerosos
cupinzeiros em busca de iscas e procuravam capturar siriris, as fêmeas aladas do cupim,
consideradas ideais para se fisgar lambaris. O córrego do Pirajuçara era tido por um bom
lugar para se pegar bagres.1 No rio Grande, um dos formadores do Pinheiros, a construção
da barragem, iniciada em 1927, não alterou os costumes pesqueiros da população
ribeirinha, já que algumas espécies se adaptaram à represa. Ali, dentre outras técnicas,
utilizava-se a pesca com facão ou fisga, isso nas partes onde a água era rasa. Um antigo
morador da região conta que, em meados dos anos de 1930, pegava-se principalmente
1 “Eles juram que pescaram no Pinheiros”. Disponível em <www.jt.com.br>; 20/02/2000.
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traíras e carás Mussolini – assim chamados devido a uma suposta semelhança entre a
fisionomia do peixe e a do ditador fascista italiano.
Nos primeiros anos do século XX, principalmente em pontos ermos no Tietê, a
montante de São Miguel e de “Conceição dos Garulhos” e a jusante da Lapa, praticava-se a
destruidora pesca com dinamite, que, embora proibida pelas autoridades, era difícil de ser
coibida. No período, além da dinamite, era vedada a captura de peixes com raiz de timbó e
outras drogas venenosas, forma de pescar que também remontava aos tempos coloniais.
Sérgio Buarque de Holanda assinala que, já em 1591, a Câmara de São Paulo proibira em
todo o curso do Tamanduateí pescarias com tingui, uma das plantas ictiotóxicas então
usadas. Tal proibição, em 1598, estendeu-se a todos os “ribeiros e rios caudais existentes
dentro da vila”, para evitar a destruição inútil de peixes. Acreditava-se que o acúmulo de
peixes arruinados corrompia a atmosfera e causava epidemias. Na época, boa parte dos
peixes apanhados, após ficarem atordoados pelo despejo das drogas na água, era
abandonada nas margens dos rios - desperdício que os indígenas não cometiam. Isso porque
portugueses e mamelucos não conseguiam consumir todo o pescado no local e comumente
desprezavam os processos de conservação tradicionalmente empregados pelos nativos,
como o moquém e a farinha de peixe ou piracuí. Por outro lado, não podiam adotar os
métodos de conservação utilizados em Portugal, baseados no uso do sal, em razão de sua
escassez na colônia.2
Na primeira metade do século XX, nem todo peixe capturado ia parar no prato do
pescador ou de sua família, mas não só devido ao desperdício. Drauzio Varella conta que
na década de 1940, no bairro do Brás, ele e seus amigos de infância caminhavam até o leito
do Tietê onde, pendurados nos barrancos, apanhavam com peneiras peixinhos que nadavam
próximos à superfície para depois levá-los vivos para casa (VARELLA, 2000). O mesmo
faziam os meninos no rio Pinheiros. Por outro lado, quem tivesse sorte em sua pescaria nos
rios, córregos, lagoas ou represas, podia vender o pequeno excedente conseguido no
movimentado comércio da cidade. Alguns pescavam mesmo com vistas a esse mercado e
possuíam barcos de pesca registrados na prefeitura, mas outros recorriam a ele
eventualmente. No centro de São Paulo era possível encontrar caipiras vendendo bagres,
2 Relatório de 1904 apresentado a Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden & CO., 1905, p. 25. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 71.
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enfiados pela guelra num cipó. A culinária paulistana sabia aproveitar bem o que podia ser
apanhado em rios, córregos e lagoas. Em meados do século XIX, quitutes como empanadas
de farinha de milho com piquiras ou cuscuz de bagre e camarão de água doce eram
vendidos por mulheres negras e brancas nas ruas ou em pequenos estabelecimentos
comerciais (MARINS, 1999, p. 211-2).
Ao mesmo tempo em que a urbanização ampliava o número de pescadores em São
Paulo, contribuía para a extinção da pesca. Havia a captura excessiva, praticada por uma
população crescente e o emprego de métodos destruidores como a dinamite. Além disso,
grandes transformações ambientais na bacia do Alto Tietê, provocadas pelo avanço da
urbanização predatória, devastavam a ictiofauna. A implantação do sistema hidrelétrico, o
corte das matas ciliares e a ocupação das várzeas afetavam a alimentação, o deslocamento e
a reprodução de muitas espécies. O esgoto doméstico e industrial contaminava as águas e
consumia seu oxigênio. A partir dos anos 1940, era evidente que os peixes desapareciam
dos rios da cidade. Na verdade, nos mananciais destinados ao abastecimento público, as
grandes represas, ainda hoje se realizam pescarias, mas sem a fartura e diversidade de
antes. Mas como esses mananciais se encontram em processo de degradação, não é possível
saber se as pescarias paulistanas, que atravessaram séculos, terão futuro nesse nosso século
XXI, para além do caricatural “pesque e pague”.
Bibliografia
“Eles juram que pescaram no Pinheiros”. Disponível em <www.jt.com.br>. Acesso em: 20
fev. 2000.
Centenário da Descoberta do Brasil. “Carta fazendo a descripção das inúmeras coisas
naturaes, que se encontram na provincia de São Vicente hoje São Paulo seguida de outras
cartas inéditas escritas da Bahia pelo venerável Padre José de Anchieta. Copiadas do
Arquivo da Companhia de Jesus”. Traduzidas do Latim pelo professor João Vieria de
Almeida com um prefácio de pelo Dr. Augusto Cesar de Miranda Azevedo. São Paulo:
Casa Eclectica, 1900.
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Bertrand, 1991.
7
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em S. Paulo no século XIX,
Brasiliense, 1984.
DICK, Maria Vicentina P. A. A dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo 1554-1897.
São Paulo: AnnaBlume, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
IHERING, Rodolpho Von. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo:
Melhoramentos de São Paulo, s/d.
MARINS, Paulo César Garcez. “Através da Rótula Sociedade e Arquitetura Urbana no
Brasil Secs. XVII-XX”. São Paulo: Tese de Doutorado, Depto. de História, FFLCH-USP,
1999.
PENTEADO, Jacob. Belènzinho 1910 (Retrato de uma época). São Paulo: Martins Fontes,
1962.
PINTO, Mario Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador
pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1994.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de
São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997.
PRADO JR, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Brasiliense,
1966.
Relatório de 1904 apresentado a Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr.
Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden & CO., 1905.
SMITH, Welber Senteio. Os peixes do rio Sorocaba. Sorocaba: TCM-Comunicação, 2003.
VARELLA, Drauzio. Nas ruas do Brás. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2000.
8
Represa do Ipiranga. (APESP/ICO – SRAE 001.P.08.02)
Passagem de canos sobre o rio Tietê. (APESP/ICO – SRAE 001.P.10.06)
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Planta cadastral planimétrica da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos no ano de
1881. (APESP/ICO - Mapoteca 06.01.09)
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A Ditadura das Imagens
Adilson José Gonçalves
Assistente Doutor do Departamento do Programa de Pós-graduação de História na PUC-SP, professor de Teoria da História e
História das Américas, Diretor de arte e conteúdo em mídias digitais, responsável pelo site da Revista Projeto História e
integra ainda o Centro de Estudos de História da América Latina.
Este artigo tem como objetivo problematizar a utilização de fontes imagéticas gestadas
no processo de comunicação da Ditadura Militar e nas formas variadas de resistência como
registros para a investigação histórica, apresentando alguns temas para o seu
dimensionamento.
Silêncio e iconografia
Vasto o campo que se abre para o historiador ou o estudioso da Ditadura que se
debruça sobre as fontes imagéticas. O período de ação dos militares é extremamente rico em
imagens, apesar da ação deletéria da Ditadura Militar na destruição sistemática dos nossos
acervos documentais.
Como todo processo da longa trajetória da Ditadura foi marcado pelo discurso do
desenvolvimento e modernização com segurança e controle, a iconografia representou, na
construção de seu ideário e disseminação, um dos elementos fundadores das estratégias de
manipulação e controle, além de ser um dos índices da própria modernização e
desenvolvimento que os militares apregoavam para o propagar o mito do Brasil Grande.
A produção de imagens quer na cinematografia, na profusão do fotojornalismo, na
disseminação da TV, no volume de cartazes, na construção das cidades e seus ícones, torna-se
emblemática da modernização autoritária. Essas mesmas variedades de canais de
comunicação e multiplicidade de registros sob a égide da propaganda/censura são fontes
primorosas para o historiador atento e para os demais estudiosos sequiosos de compreender,
retratar, inventariar e denunciar as atrocidades do período.
Podemos usar uma figura de retórica ou parodiar os paradoxos da Ditadura Militar e
dizer que nos deixou um legado significativo de registros que dizem da ditadura das imagens,
tal o seu significado numérico e sua representatividade enquanto inventário de uma época e os
seus atributos nos próprios desígnios da ação militar e da resistência a estes. Temos um rico
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mosaico de interpretações que nos permitem enfoques dos intrincados processos de repressão
e resistência, além dos mecanismos de tomada de posição face ao instituído, apontando para
as inúmeras modalidades de resistência possíveis e historicamente configuradas.
Podemos aquilatar a diversidade de grupos envolvidos na resistência, as estratégias de
ação, sedução, envolvimento e os procedimentos utilizados pelos ditadores e seus aliados e
agenciadores.
De forma paradoxal, a profusão de registros iconográficos diz de um Brasil que fica
longe do cotidiano das experiências sociais mais significativas do momento, mas que,
interpretados sob a égide da crítica historiográfica, tornam-se extremamente elucidativos da
própria trajetória da Ditadura e de seu grande paradoxo: informar para envolver e
camuflar/negar, mas também para evidenciar, anunciar e propagar.
Fator de fundamental importância para se pensar a produção visual e suas expressões e
presença na dinâmica social é a questão da censura/repressão. Os aparatos repressivos tiveram
sistemáticas muito próximas, tanto os nacionais e estaduais, bem como os municipais. Apesar
do controle rígido exercido pelo poder central, a relativa autonomia das facções locais foi uma
realidade. Também deve ser levada em conta a especificidade das conjunturas ou correlação
de forças entre os grupos sociais, facções de classe e grupos de interesse envolvidos em
situações particulares, definindo, assim, a abrangência, amplitude e intensidade da repressão e
possibilidades de expressão da resistência na produção intelectual, estética e na comunicação
social.
As imagens trazem o registro do vivenciado, flagrado com o intuito de veiculação de
informações a partir de uma ótica de visão, aquela vincada pelos interesses de quem as
produziu. Analisá-las, portanto, tem o objetivo primeiro de identificar interesses em jogo nas
articulações políticas, indicando, perspectivas, possibilidades e intenções de se lidar com a
memória e história. Para tal, se faz imprescindível a identificação dos mecanismos técnicos,
os instrumentos de produção de mensagens, as formas de organização da linguagem imagética
e as possibilidades de exposição e acesso público do material produzido no período em que
foram produzidas as imagens. Quando o produtor é oficial, isto é, articulada a estrutura de
controle, sua produção tem canais específicos de exposição, buscando atingir contingentes
significativos da população, ou se direciona para interlocutores específicos, face às demandas
dos acordos internacionais, dos interesses dos grupos políticos e sociais envolvidos, bem
como dos pressupostos ideológicos a serem propagados.
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Ao ser o produtor de imagens integrante dos grupos de resistência contra os ditames
do regime ditatorial, as formas de registro, armazenamento e disseminação dos registros
impulsionam outra dinâmica de análise, pois a própria dificuldade enfrentada pela produção
no calor da hora, na historicidade da repressão e luta, impõe modalidades de produção
totalmente diferenciadas daquelas encontradas pelos donos do poder. Assim, muitas vezes as
técnicas utilizadas são menos sofisticadas, principalmente nos momentos de maior controle,
quando foi se perdendo a possibilidade de produção em grandes estúdios, laboratórios de
jornais bem equipados ou de instituições de defesa dos direitos civis. Apesar das dificuldades,
foi produzido farto material extremamente rico e esteticamente valioso. O caráter efêmero dos
materiais de contestação denuncia/impõe o ritmo na produção e sistematização dos registros
feitos, que os diferencia muito dos oficiais, não só pelos interessem em jogo, mas
principalmente pelo caráter emergencial que marcam sua trajetória enquanto documentos
históricos.
A questão da comunicação na trajetória da Ditadura
O Golpe Militar foi gestado durante longo período. Há versões distintas na
historiografia, mas fica evidente que os interesses americanos e imperialistas foram uma
presença significativa na sua concretização. Tal se objetivou no apoio logístico e financeiro na
consolidação do Golpe e da própria manutenção da Ditadura Militar.
A articulação do Golpe Militar expressou a sistemática oposição ao nacional
desenvolvimentismo e as chamadas reformas de base preconizadas pelo governo Jango. Os
prestistas difundiam a perspectiva de uma situação de fácil transição para o comunismo,
apresentavam o período pré-64 como revolucionário, acirrando as contradições e tomada de
posição dos golpistas.
Muitos, na verdade quase toda a esquerda brasileira, interpretaram aquele período malfadado como de
ascenso e avanço revolucionário. Mas de fato ele nada mais serviu que para preparar o golpe de abril e o
encastelamento no poder das mais retrógradas forças de reação. (PRADO JR., 1981, p. 23)
Os olhares americanos estavam voltados para o Brasil face ao papel que o país poderia
desempenhar na configuração da posição da América Latina frente ao próprio imperialismo e
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dentro do rol das questões apontadas pela Guerra Fria que se acentuaram face à vitoriosa
Revolução Cubana de 1959.
Os movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais, estavam em efervescência. A
produção intelectual, artística e a ação dos grupos da sociedade civil estavam articulados no
sentido de buscarem alternativas ao modelo de desenvolvimento capitalista dentro dos marcos
do populismo com nítidas orientações nacionalistas, não descartadas as perspectivas de luta
pela instauração de práticas socialistas. No entanto, as condições concretas não apontavam
para o amadurecimento de uma luta anticapitalista de fato.
Contudo, apesar daquelas circunstâncias altamente favoráveis à maturação do processo revolucionário
brasileiro, o que se tem visto, afora agitação superficial, por vezes aparatosa, mas sem nenhuma
profundidade ou penetração nos sentimentos e na vida da população, afora isso, o que há de real é a
estagnação daquele processo revolucionário. Ou, pior ainda, a sua degenerescência para as piores
formas de oportunismo demagógico, explorando as aspirações populares por reformas. Foi esse
espetáculo que proporcionou ao país o convulsionado governo deposto a 1.º de abril. (idem, p.22-3)
Na realidade, confunde-se o processo de instauração de um verdadeiro processo
democrático burguês com as perspectivas revolucionárias. A elite mais retrógrada sente-se
ameaçada com a perspectiva da democratização com a concretização das reformas de base e o
atendimento das necessidades mínimas dos segmentos operários do campo e da cidade.
Assustava-os a possibilidade da democracia social de Brizola – considerado pela direita como a
extrema-esquerda do leque político, mais radical do que os prestistas – e da gestação de um “getulismo
de massas” a gerar a instabilidade do próprio sistema do capital. (LABAKI, 1986, p. 148)
Os militares passam a justificar a necessidade de uma intervenção para controlar os
descalabros da anarquia da chamada república sindicalista, apontando para necessidade da
manutenção da ordem, da luta pela moralização e contra a corrupção. A presença da CIA foi
marcante, bem como o fomento à produção de materiais de divulgação e aos de grupos de
estudos para promover a disseminação da ideologia da segurança nacional, dos princípios da
Guerra Fria e das necessárias articulações para a contenção do chamado “perigo vermelho”.
Todos os grupos que assumiam as premissas da preocupação com os direitos da cidadania,
com os interesses do mundo do trabalho, com as questões relacionadas à posse da terra e do
popular em qualquer uma de suas esferas de abrangência, apresentavam-se como elementos
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perigosos e tornavam vulneráveis os interesses do capitalismo atrófico e do imperialismo, ou
de outra maneira, eram inimigos confessos na dinâmica da Guerra Fria.
Os investimentos americanos em comunicação foram ostensivos. A sistemática da
comunicação de massas para a elite - a burguesia, os militares, intelectuais que se tornaram
orgânicos do militarismo - e para os segmentos formadores da opinião pública envolveu a
montagem de institutos de pesquisa, a penetração nas instituições de ensino, a presença na
formação ideológica e logística do exército, a produção massiva de cartazes, folders, folhetos,
bibliografia, bem como a montagem de seus locais de produção com tecnologia arrojada.
A Igreja foi forte aliada na propagação dos princípios da propalada democracia
burguesa e cristã, posição que foi radicalmente transformada nos chamados anos de chumbo.
Portanto, um elo fundamental nas estratégias de comunicação dos golpistas. Foram utilizados
os púlpitos como lócus para a divulgação das estratégias, princípios e objetivos da Guerra
Fria/santa contra a ameaça do comunismo. Além dos púlpitos, os espaços das igrejas, tanto
internos quanto externos nas regiões privilegiadas das cidades, mas principalmente nas
periferias, foram utilizados para a projeção de filmes produzidos nos tais institutos de
pesquisa, apontando sistematicamente para o papel da família na manutenção e defesa da
ordem cristã, que poderia ser lida como capitalista ocidental, dentro dos parâmetros da
ideologia da segurança.
Os ânimos se acirram. A ideologização dos movimentos sociais e da ação política
tornou-se mais contundente. A produção estética estava rompendo com os cânones instituídos,
buscando temas, abordagens e engajamento com as questões sociais e políticas mais
candentes frente à historicidade das lutas sociais.
Às conjunturas específicas corresponderam formas particulares de se lidar com os
canais de comunicação e estratégias de divulgação dos propósitos, atos e paradigmas da ação
militar. A comunicação de massa foi amplamente utilizada durante toda sua trajetória como
instrumento de propagação da ideologia da segurança nacional, do desenvolvimentismo, do
crescimento econômico, da modernização do parque industrial, da desenvoltura agrícola, da
produção de bens de consumo duráveis e imediatos, da circulação de mercadorias, dos
avanços tecnológicos, das questões associadas à produção de energia elétrica e nuclear, da
proeminência dos militares na projeção internacional do Brasil e das necessárias escaramuças
e ações de repressão aos movimentos da chamada subversão. Os órgãos de imprensa e a
indústria cultural foram totalmente silenciados quando hostis aos interesses da Ditadura,
sendo alinhados aos seus ditames, apesar da resistência expressiva de alguns setores.
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Papel de destaque na comunicação de massas foi exercido pela mídia televisiva e
radiofônica que se enquadrara totalmente na divulgação da ideologia que embasava a
Ditadura. A constituição e utilização dos horários ditos nobres de audiência foram uma
sistemática nos pronunciamentos e divulgação das propagandas do estabelecido e do que se
objetivava instituir. Manteve-se a Hora do Brasil como programa da radiodifusão dos atos e
preceitos do Estado e valeu-se amplamente dos recursos inovadores e incisivos da Rede
Globo.
Claro está que os ideólogos da Ditadura e seus agentes estavam presentes em
territórios privilegiados para controlarem a produção cultural e aquela voltada para a
comunicação de massa, apontando diretrizes, cerceando ações e iniciativas e incentivando
verdadeiras campanhas de convencimento e formação da opinião pública favoráveis aos seus
interesses. As manifestações de rua, as chamadas ações terroristas, a panfletagem, o
aprisionamento de lideranças tradicionais, as reuniões de grupos de resistência, a destruição
de locais de reuniões para produção cultural associados à esquerda e aos movimentos
populares, os seqüestros, os assaltos aos bancos na conjuntura do recrudescimento da
Ditadura no pós-AI-5, pontuaram os noticiários, bem como as propagandas oficiais nas
diversas mídias.
Com a maior violência da repressão a partir da decretação do AI-5, da instauração
oficial da Segurança Nacional com um maior número de atos institucionais e com a presença
ostensiva dos aparatos de repressão, a situação dos movimentos de oposição e resistência
encontravam-se em circunstâncias mais complexas, sendo a censura e o controle muito mais
rígido e ferrenho. A contrapartida da repressão foi o chamado milagre, que buscou
sustentação social nos grupos favorecidos pela conjuntura econômica, tentando envolver os
segmentos populares, através da mídia, principalmente via TV e rádio. Campanhas associadas
ao desenvolvimento, ao futebol como subterfúgio com a Copa de 1970 sugerem a campanha
de banimento e expulsão de opositores, além do estímulo às denúncias. Inaugura-se um
procedimento peculiar na Ditadura, que se traduziu no processo de envolver segmentos
expressivos da população no convencimento de que aqueles que não estejam contentes ou
sejam favoráveis aos destinos do país que o deixem.
Amplamente divulgados foram os slogans “Brasil. Ame-o ou Deixe-o” e “Ninguém
Mais Segura Esse País”. As cores da bandeira eram associadas às palavras de ordem, bem
como o uso da própria bandeira.
7
A Ditadura se valia de quaisquer meios para atingir seus objetivos que apontavam na
propaganda como sendo os da nação como representação máxima das necessidades e
potencialidades da brasilidade, de sua segurança e perspectivas de desenvolvimento
harmônico. O intruso, o desleal, o contrário, aquele que representava o fator de desagregação
deveria ser extirpado e aniquilado. Assim, estar contrário ao regime era ser de antemão
antipatriota, entreguista, a favor de ideologias e paradigmas que não diziam respeito à
trajetória histórica e aos interesses do país. Portanto, deveriam estar fora do cenário político e
social, não eram cidadãos, mas sim criminosos, os tão propalados subversivos, que mereciam
todas as formas discricionárias de tratamento. A bandeira do banimento/abandono do solo
pátrio foi uma justificativa para o assassinato e perpetuação dos aparatos repressivos e da
ostensiva ação militar no controle dos movimentos sociais populares e de resistência.
Outro canal de comunicação muito utilizado pela Ditadura no recrudescimento foi a
produção de cartazes com os procurados, com os chamados inimigos da ordem. Inúmeros
foram esses cartazes e vários os locais de sua ostentação. Os aeroportos eram lugares
privilegiados para a sua exibição, apontando as portas de saída do país como elementos
expressivos no controle dos movimentos internos.
Locais da Memória ou Centros de Pesquisa
Inúmeros e diversificados são os locais da memória ou os centros de armazenamento
dos registros iconográficos produzidos durante o período da Ditadura Militar, podendo ser
classificados pelos tipos de registro e fonte, pela forma de organização e sistematização dos
acervos, pelo estatuto jurídico, como a partir das finalidades políticas, ideológicas e em
termos de formação de opinião a que se destinam ou os princípios e objetivos para os quais
foram constituídos.
Sem dúvida que os acervos mais ricos e abrangentes são aqueles constituídos pelos
próprios aparatos de repressão que tudo flagrou, registrou e inventariou, não só como forma
de controle, mas também para divulgação das estratégias de ação, dos procedimentos de
coação e de propagação das realizações com intuitos ideológicos face ao cenário internacional
e o enfrentamento das diferenciadas formas de resistência. Arquivos de peso foram
constituídos pela CIA no seu afã de controlar, manipular e ampliar sua esfera de ação na
América Latina, lastreando os próprios princípios e práticas da Guerra Fria. Cópias de
documentos oficiais que expressam a dinâmica do poder, as suas relações internacionais, bem
8
como as mais diferentes formas de resistência ao regime devem e podem ser inventariados por
meio dos acervos constituídos pela agência norte-americana.
Fragmentos da Memória Iconográfica
Um aspecto importante a ser salientado na análise iconográfica sobre a Ditadura
Militar é que a sua produção e divulgação não se restringem ao período classicamente
definido como o dos militares no poder. Devemos atentar para a produção de imagens que
precederam e sucederam o período, pois são registros de divulgação, estratégias de sedução e
formas de perpetuação dos interesses dos grupos envolvidos. Nesse sentido temos uma vasta
produção iconográfica nas diversas mídias e linguagens durante todo o período de gestação do
Golpe que pode ser definido de maneiras distintas conforme o recorte historiográfico ou os
elementos salientados na configuração de seu percurso.
Algumas imagens são marcantes da trajetória da Ditadura. Optamos por identificar
algumas que ao nosso ver marcam de maneira indelével sua trajetória.
Imagens da cidade e do cotidiano
A repressão e a presença ostensiva do exército nas ruas explicita a construção de uma
identidade urbana, onde as botas, o uniforme, os fuzis e os capacetes passam a ser símbolos da
ordem e dos territórios controlados. As cidades que foram cenários para expressão de
manifestação de massas no período que antecede o Golpe Militar e durante os primeiros anos
da Ditadura passam a ser sistematicamente ocupadas pelas milícias. Se fosse local de
subversão deveria ser representado e constituído como lócus da ordem, da circulação de
mercadorias, da expressão do progresso e da construção da modernidade autoritária.
Gradativamente as imagens do fotojornalismo, as vicissitudes da correlação de forças
e das conjunturas políticas que marcam cada temporalidade, apontam para a cidade da luta,
onde o cenário urbano é esvaziado das manifestações e apontado como local da presença
ostensiva do exército e das milícias vitoriosas.
O cotidiano flagrado através das imagens é altamente policiado, apontando para os
constantes atos de repressão e a convivência com a ostentação do poder nas ruas, nas fábricas,
nas residências, escolas, universidades, entidades de classe e todos os territórios possíveis da
repressão.
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Como territórios privilegiados para a ostentação do poder e expressão dos sinais
emblemáticos do status quo, enaltecimento do civismo e importância dos militares, tornou-se
lugar de constantes manifestações das comemorações das datas ditas cívicas, com amplos
festejos e paradas das datas da Pátria, como Tiradentes, Sete de Setembro, Proclamação da
República, Dia do Soldado, a data comemorativa da chamada Revolução de 64 – eufemismo
para o dia do Golpe.
A miséria, a mendicância, a ação de transeuntes que suscitavam suspeitas de subversão
à ordem ou ligação com grupos que estavam na clandestinidade apontavam para uma ameaça
eminente, devendo, sistematicamente, ser reprimidos, investigados e sumariamente impedidos
de circulação.
Tais situações quando vindas a lume na imprensa poderiam apontar para formas de
resistência ou denúncia, mas, na conjuntura do AI-5, estavam mais direcionadas à
demonstração do controle que o Estado e o Exército exerciam. Em outros termos evidenciava-
se que não haveria como resistir, pois os tentáculos da ordem estavam presentes em todos os
lugares e deles era impossível escapar.
Em contrapartida, muitas são as fotos e testemunhos da resistência e das ações
coletivas contra a Ditadura, porém foram veiculadas em momentos de ação menos
contundente da censura e em épocas em que as manifestações eram ostensivamente difundias
e massivas. As três grandes temporalidades nas quais encontraremos registros e sua
divulgação na mídia sobre a oposição aparecem logo após o golpe, em 1968, e a partir do
movimento de distensão, mais explicitamente quando da emergência da luta pela anistia e
redemocratização.
Resistência no mundo das artes – a charge
Segundo os registros históricos, a resistência do meio artístico e da intelectualidade se
fez sentir logo à impetração do Golpe. No entanto, apesar de atuações pontuais, os artistas
plásticos não se colocaram de imediato enquanto categoria contrária ao Golpe com
manifestações expressivas. Os artistas que se articularam de imediato foram os ligados aos
CPCS da UNE ou que nele tiveram sua trajetória, aqueles vinculados aos movimentos de
construção de uma nova ordem política, social e estética de longa data envolvidos com a
historicidade das lutas sociais associados à produção do teatro, do cinema, da literatura e
muitos ligados às atividades plásticas de caráter mais pragmático, como a produção de
10
charges e cartum, que tiveram uma expressão significativa na resistência e na exposição de
críticas ao sistema, apesar de todo o peso da censura.
Na continuidade de suas atividades e em alguns casos numa franca repugnância ao
militarismo ditatorial imposto, artistas, músicos, escritores e intelectuais foram ardilosos,
criativos e ousados para driblarem a censura na exibição de suas obras, e os cartunistas
tiveram o desafio de denunciar com humor e ironia os fatos mais cotidianos desse cenário
nacionalista ufano e repressor em que seus atores sociais arfavam de medo, alerta e
resistência. No cartum e na charge as expressões se espalharam por todo o país, tendo alguns
centros se sobressaído, como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco.
Estavam presentes na imprensa diária, quando possível, durante os primeiros tempos
da Ditadura até mais ou menos a promulgação do AI-5, e posteriormente ao chamado
processo da abertura, notadamente a partir de meados dos anos 70.
Uma charge de uma família frente à TV apareceu na imprensa diária, apresentando
uma consciência nítida e clara do próprio papel desempenhado pela mídia no cotidiano de
contingentes expressivos da população, principalmente a urbana. A imagem aponta a família
em torno da mesa, que está posta para uma refeição, e seus integrantes com as colheres nas
mãos, os pratos vazios, os olhos voltados para a tela da TV que estava sintonizada na Globo.
A TV ocupava o espaço de um integrante ausente, o pai, o chamado chefe da família, que
deveria estar ocupado com outras atividades, mas que tranqüilamente poderia ser substituído
no momento da conversa, troca de confidências e orientação do dia-a-dia da família pelas
informações veiculadas pela mídia. Esta substituía as confabulações, as trocas de experiências
e apontava para a ausência do diálogo como uma prática salutar aos desígnios da manutenção
da ordem e do bom tom nas tramas da sociabilidade.
A alegoria do pão e circo é evidente na estandardização do aparelho de TV e na sua
sintonia e na ausência da consciência e da nutrição em detrimento da massificação, da
penetração da mídia e o grande investimento na aquisição do aparelho de recepção em
detrimento do alimento. Essa substituição do alimento pelo entretenimento causa a
adulteração da consciência e da cultura, sintomas de uma situação de exceção e da própria
construção da indústria cultural e da cultura de massas. Associa-se a TV à manutenção da
ordem, aos destinos da família e dos movimentos sociais urbanos, apontando para a
articulação entre os interesses nacionais e internacionais pelo próprio processo de gestação da
tecnologia utilizada pela rede de TV em tela.
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A expressão maior da charge, no entanto, teve sua maior evidência com a emergência
da chamada imprensa alternativa, tendo no Pasquim seu canal de expressão privilegiado, além
de outros, é claro.
Questões emergentes ou problemas a serem enfrentados
História e iconografia são vasos comunicantes, caminhos que se cruzam, fragmentam e
determinam-se mutuamente, apresentado-se como indissociáveis na produção, gênese e
interpretação. Assim, o fazer história, no sentido do vivenciado, e o produzir conhecimento
histórico, no sentido da ciência, encontram-se indissolúveis quando utilizamos imagens como
registros. Trabalhar com iconografia em história tem o sentido de resgatar aspectos de uma
totalidade parcial que não se torna factível pela análise de outros registros.
A veiculação das informações mais expressivas no cotidiano de contingente
significativo da população se faz por meio das imagens. No entanto, não somos familiarizados
com a desconstrução de imagens, sendo que a realidade é apresentada como um todo caótico e
confuso, mascarado com a cultura da simulação e do espetáculo. Ou ainda, não possuímos um
instrumental que nos permita desconstruir textos imagéticos enquanto realidades documentais
do exercício da profissão e das práticas de comunicação na dinâmica dos movimentos sociais,
apesar da predominância do imagético na comunicação de massa, na veiculação das
ideologias e na construção das mídias oficiais e alternativas.
Assim, faz-se necessário um esforço hercúleo para se definirem parâmetros,
paradigmas e procedimentos para alcançar tais objetivos. Ou seja, vivemos em um mundo
imagético e temos poucos elementos para vivenciá-lo na sua plenitude com atitudes críticas e
criteriosas para selecionarmos, armazenarmos e decodificarmos informações. Na
contemporaneidade encontramos nas mídias digitais um forte aliado na produção estética e na
estetização do mundo, bem como na politização da arte e na estetização da política.
Cada vez mais nos assombramos e ao mesmo tempo ficamos empolgados com a
quantidade de estudiosos que utilizam a iconografia em seus trabalhos, tanto como fontes ou
elemento de composição dos textos. Porém, está se configurando um modismo no uso da
imagem, que muitas vezes aparece nos trabalhos meramente como ilustração, perdendo todo o
seu significado de texto/documento/registro. Assim, a produção imagética na sua diversidade
perde todo o seu significado e riqueza, distanciando-se da análise imanente das fontes, da sua
12
historicidade e de seu potencial enquanto documento. Além, é claro, de se perder sua própria
gênese e função no momento em que foi produzida.
Há imagens que são emblemáticas da performance da Ditadura Militar, bem como da
articulação do Golpe e dos principais períodos que marcam seu percurso histórico da gênese à
derrocada. Compete aos estudiosos definir a perspectiva de sua análise conforme a
historicidade de sua produção, bem como a particularidade da linguagem e canal de
comunicação a que pertence.
Bibliografia
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___________. História da Arte Como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
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VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é a violência: movimento estudantil e ditadura
militar no Brasil. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2000.
13
Médici ergue a taça Jules Rimet. (Arquivo em imagens; acervo Última Hora. Série política; nº1. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999, p. 65).
14
A seleção brasileira de futebol junto de Médici.(Arquivo em imagens; acervo Última Hora. Série política; nº 4. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999, p. 140).
15
Menino em comemorações do Dia da Independência. (Arquivo em imagens; acervo Última
Hora. Série política; nº 4. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado,
1999, p. 143).
A imprensa negra em São Paulo no início do século XX
Pedro de Souza Santos
Mestrando em Educação pela Universidade São Francisco Itatiba/SP e professor da rede pública estadual. Em sua
pesquisa, investiga o processo de educação dos negros em São Paulo, tendo como fonte principal os jornais da imprensa
negra. Contato: [email protected]
Tendo como ponto de partida os jornais da imprensa negra,1 produzidos em São
Paulo no período de 1915 a 1937, pretende-se, neste artigo, refletir sobre algumas questões
decorrentes da sua interpretação enquanto fonte histórica na configuração do campo da
história da educação, particularmente da população negra.
A imprensa negra, embora criada e produzida para um público segmentado,
propagou-se para leitores diversos e, no período posterior à abolição, destacou-se tanto no
sentido de combater o preconceito racial em suas múltiplas manifestações quanto para
tentar afirmar socialmente os negros, seja pela instrução, seja pela luta contra o que, para
alguns, era tido como apatia. Neste sentido, os periódicos da imprensa negra foram um
instrumento para a maior integração deste grupo na sociedade republicana das primeiras
décadas do século XX.
Alguns desses jornais refletiam as inquietações de parte da população negra e, num
sentido mais amplo, tinham um caráter pedagógico e instrutivo, pois, além do forte apelo
político para a tomada de uma certa consciência considerada adequada por seus editores,
apresentavam em suas páginas matérias relacionadas ao cotidiano de parte dessa população,
o que pode ter contribuído para o processo de formação de sua subjetividade. Além disso, a
divulgação de eventos do cotidiano – tais como festas, bailes, concursos de poesia e beleza,
que raramente apareciam nos periódicos da grande imprensa - pode também ter contribuído
para um processo de auto-reconhecimento e construção da identidade por meio da
observação e identificação do seu patrimônio cultural.
A preocupação com a educação é constante nesses jornais, assim como a missão de
combate ao analfabetismo:
1 Segundo Marinalda Garcia, a imprensa negra paulistana foi a continuidade dos antigos jornais e publicações
de entidades que funcionaram na época do processo abolicionista.
Aos leitores
[...] o combate ao analphabetismo, essa praga que nos fazem mais escravos do que quando o
Brazil era uma feitoria; [...]. Vamos, meus amigos um pouco de boa vontade, porque
combater o analphabetismo é dever de honra de todo brazileiro.
Nós, homens de côr, conscientes dos nossos deveres, para com a nossa muito amada patria,
desejamos que os homens, mulheres e crianças da nossa raça aprendam a ler para obterem um
lugar digno no seio da sociedade brazileira. (O Alfinete, 1919, p. 1)
Ao lado da preocupação com o combate ao analfabetismo estava a necessidade de
lutar contra tudo aquilo que era considerado imoral para o negro. Nessa perspectiva,
inúmeras matérias de diversos jornais criaram um código moral e divulgaram uma série de
comportamentos que consideravam modelares para o negro, e, ao mesmo tempo,
condenavam aqueles outros tidos como potencialmente perniciosos:
A preguiça
Segundo uma antiga máxima em que está contida uma verdade profunda, é a preguiça a mãe
de todos os vicios. [...].
O homem que trabalha, é uma verdade corriqueira não tem tempo disponível para engendrar
cousas que prejudiquem a outrem. [...].
Onde se encontram os preguiçosos?
Nos botequins, nas esquinas, pelas ruas, a esmo ou junto nas mesas de jogo, completamente
esquecido de tudo. (FREITAS, O Progresso, 1932, p. 2).
A crítica à preguiça e a outros comportamentos considerados inadequados não deve
ser entendida como sinônimo de uma visão negativa dos próprios periódicos em relação à
população negra. Tampouco deve ser dela deduzida uma suposta vida desregrada por parte
dos negros. Considerando que esta população estava inserida em uma sociedade
preconceituosa que, a todo momento associava ao negro características negativas, é
possível pensar que tais mensagens se constituíam, antes, numa forma de combate ao
preconceito e de integração social, tomando para si valores socialmente valorizados
também por outros grupos sociais. Cabe aqui retomar as palavras de Robert Slenes: “A
afirmação de que os escravos viviam em geral na licenciosidade, na promiscuidade ou na
prostituição conduz facilmente ao argumento de que eles foram profundamente marcados
por essa experiência” (1989, p. 190).
Nesse sentido pode-se entender que a valorização de certos padrões morais vinculada
nesses jornais funcionou naquele contexto como uma estratégia de afirmação do negro
enquanto sujeito que lutava por espaços na sociedade.
As matérias, em geral, não estavam ordenadas em uma seqüência; encontravam-se
dispostas arbitrariamente pelas páginas e, ao que parece, a preocupação dos redatores era a
de ocupar todos os espaços do jornal. Os anúncios eram colocados geralmente na última
página e, pela leitura dos mesmos, pode-se perceber que muitos deles eram de comerciantes
brancos, embora os jornais não façam nenhuma menção ou diferenciação sobre isso. A
respeito dos anúncios, Miriam Nicolau Ferrara observou que: “Os anúncios publicados
eram pagos, contribuindo para manutenção do jornal” (1981, p. 55).
O fator econômico dificultava o acesso e a circulação destes jornais entre grande
parte da população negra, embora não os impedisse de modo definitivo. Correia Leite,
fundador e colaborador do jornal O Clarim da Alvorada, esclarece que “ninguém comprava
e nós dávamos os jornais gratuitamente. Pagávamos o papel com nosso dinheiro e sempre
tínhamos prejuízo”. (apud FERRARA, 1981, p. 50).
Uma característica comum em grande parte desses jornais era a prescrição de
condutas e o incentivo a determinadas ações:
Carta sem cor
Devemos nos preocupar menos com o passado da raça, tratando agora de educal-a,
preparando-a para as formidaveis lutas de amanhã.
O passado foi horrivel e o presente pessimo; que devemos esperar do futuro?
Tudo, se tivermos o livro por escopo; nada se continuarmos o culto das tabernas!
(FLORENCIO, O Alfinete, 1921, p. 2-3).
Outros artigos procuravam lembrar da contribuição dos negros na formação do Brasil.
Assim, pretendiam (re)afirmar a sua brasilidade e o seu nacionalismo, o reconhecimento do
seu trabalho para o desenvolvimento do país e do seu exemplo de luta:
O negro no Brasil não só devastou florestas; andou a cata do ouro e de outros mineraes,
plantou os primeiros pés da rubeacea que nos deu toda riqueza, tudo quanto temos, elle, além
de ser um factor da formação da grandeza primitiva, - é o brasileiro que se não cança de luctar
com devotado amor, em todas as actividades humanas é o hercules das forças que se
enquadram a engrandecer os incontaveis factores da nossa nacionalidade porque, é um
brasileiro luctador e forte. (AGUIAR, O Clarim da Alvorada, 1928, p. 1)
Este artigo foi publicado como parte das comemorações do 13 de maio que, há pouco
havia se passado. Pode-se interpretar que Jayme de Aguiar, ao lembrar da importância do
trabalho escravo para o crescimento da economia brasileira e da participação do negro no
engrandecimento da nação, pretendeu dentre outras coisas, reforçar no leitor uma idéia de
nacionalidade que estava atrelada a sua luta cotidiana. De outra maneira, ser brasileiro
estava relacionado a sua luta por espaços naquela sociedade.
Algumas matérias apresentavam histórias de vida de negros que traziam em suas
trajetórias, embora distintas, aspectos comuns como a origem, a determinação e o lugar
social alcançado. Essas matérias procuravam, através dos exemplos, mostrar aos leitores
negros a possibilidade de ascensão social. Em outros termos, apresentavam biografias de
negros que, mesmo diante de todas as dificuldades advindas do passado escravista,
conseguiram superar a sentença de submissão social a qual estavam condenados.
ENGº ANTONIO MARTINS DOS SANTOS
Em 2 de setembro de 1911 em Bom Sucesso, estado de Minas, nasceu Antonio Martins dos
Santos. De condição humilde, sempre sentiu necessidade de trabalhar para vencer. [...]
Antonio conseguiu formar uma base sólida para seus estudos vindo, em 3 de fevereiro de
1928, continuar sua instrução no meio mackenzista. [...]. Como estudante, soube também
vencer. Abraçou por ideal, o estudo da engenharia; especializou-se em eletricidade,
terminando o curso e defendendo tese em 19 de março de 1936. [...] Antonio adormeceu aqui,
na madrugada do dia 24 de abril de 1937, para acordar na região da vida eterna, onde recebeu
a corôa de gloria do Senhor, justo juiz. [...] lembramo-nos também do belo exemplo de
mansuetude e luta, de humildade e renuncia, que Antonio Martins dos Santos nos deixou.
(ANDERS, A Voz da Raça, 1937, p. 4).
Segundo este jornal, Antonio Martins alistou-se na Frente Negra em 1932. “Em 1935,
juntamente com outros elementos, fundou o curso de formação social, e aí foi um dos mais
brilhantes professores” (SOUZA, A Voz da Raça, 1937, p. 4). Foi membro do conselho da
Frente Negra e redator chefe deste jornal.
Antonio Martins provavelmente não era conhecido de grande parte dos leitores. No
entanto, ao descreverem nesta matéria a sua trajetória de vida e sua lição de luta, os editores
deste jornal possivelmente contribuíram para a formação de um espírito mais combativo e
de busca por espaços naquela sociedade.
O jornal A Liberdade, em suas duas primeiras edições no ano de 1919, traz uma
matéria relatando a história de vida de Luiz Gama:
Este era natural da Bahia, foi vendido com outros escravos para o Rio de Janeiro, ahi foi elle
comprado pelo mercador de escravos da cidade de Lorena, Antonio P. Cardoso. Remettido a
cidade de Campinas, onde não encontrou quem o comprasse por ser bahiano, e tendo
aprendido a ler escrever e contar, dotado de rara intelligencia, em breve tempo poude adquirir
sua liberdade. (DOMINGUES, A liberdade, 1919, p. 1)
Compreender esta história implica lembrar a fama de parte dos escravos baianos,
tidos como revoltosos e “fujões”, o que se deve principalmente aos desdobramentos e
repercussão da Revolta dos Malês, ocorrida no ano de 1835 em Salvador.
O jornal A Liberdade teve o seu primeiro número publicado no dia 14 de julho de
1919, numa clara alusão à Revolução Francesa, especificamente ao 14 de julho de 1789,
com a Queda da Bastilha. Assim, o seu título é uma menção a um dos preceitos desse
movimento: a liberdade. Neste sentido, os redatores deste jornal procuraram publicar nos
seus primeiros números matérias que pudessem contribuir para o esclarecimento e
alargamento do conceito de liberdade.
O texto configura-se como tal na relação com o leitor. Neste sentido o leitor não é
passivo e a atividade de leitura não significa a transposição literal de conteúdos. “Supõe-se
que assimilar significa necessariamente tornar-se semelhante àquilo que se absorve, e não
torná-lo semelhante ao que se é, fazê-lo próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele”.(DE
CERTEAU, 1994, p. 261).
Partindo da premissa de que o ato de ler não é um processo de passividade, e sim de
interação, provavelmente a leitura dos diversos artigos publicados nesses jornais para além
da idéia de moldar segundo os modelos e idéias que eram apresentados e/ou incentivados,
sinalizam para a possibilidade do reconhecimento de que era possível ao negro almejar
outros espaços naquela sociedade do que os comumente.
Alguns autores, como Clovis Moura e Roger Bastide, dentre outros, que estudaram a
imprensa negra, evidenciaram e afirmaram que esses jornais tinham uma circulação restrita
e que eram dirigidos a uma elite negra letrada. Desta maneira ignoraram em suas análises
outras possibilidades de acesso e leitura desses jornais. Antunes Cunha, militante negro que
escreveu diversas matérias no jornal O Clarim da Alvorada, explica que, a princípio, a
circulação era restrita a um público letrado, fato depois superado, pois “junto a muitos
desses reunia-se gente sem estudo para ouvir as notícias. Avó, pai sem leitura, comprava o
jornal, para que os netos, os filhos lessem para eles” (CUNHA apud GONÇALVES &
SILVA, 2000). Assim, a leitura poderia ser ampliada para além dos segmentos
alfabetizados.
Palavras-chave: imprensa, história da educação, cidadania, integração, instrução.
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Jornal A Voz da Raça, também presente no acervo do Arquivo Público do Estado de São
Paulo e no CEDIC PUC-SP. (APESP 05.02.13)
Jornal O Clarim da Alvorada, existente no acervo do Arquivo Público do Estado de São
Paulo e no CEDIC PUC-SP. (APESP 05.02.13)
Jornal O Alfinete, parte do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo e do CEDIC
PUC-SP. (APESP 05.02.13)