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PRÁTICAS EDUCATIVAS CÍVICAS EM INSTITUIÇÃO CONFESSIONAL:
HISTÓRIAS DE VIDA DE EX-ALUNOS NA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA
ÉTNICA
Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira (UFPI)
Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI)
INTRODUÇÃO
Este estudo parte do campo investigativo da educação integrada, inter-
relacionada à História, realçando as práticas educativas desenvolvidas/socializadas
em instituições confessionais, no contexto da vivência de discentes, no processo de
reconstituição de suas memórias a partir da história oral de vida desses sujeitos e de
depoimentos orais.
Integradas as práticas educativas à história desses protagonistas que
vivenciaram essas práticas nas instituições escolares, nos leva a reconhecer, nas
considerações de Magalhães (2004, p.106), que a prática educativa “[...] desafia a
uma interdisciplinaridade [...]”, tendo em vista que frequentemente “[...] a informação
sobre essas práticas apresenta-se de forma exclusivamente discursiva e
memorialística, de maneira que a sua intelecção constitui-se em um desafio”.
Portanto, consideramos de fundamental importância a escolha do
procedimento teórico-metodológico de abordagem para este estudo – as histórias de
vida desses sujeitos, que possibilitaram a construção do conhecimento sobre as
práticas educativas do Instituto Batista Correntino (IBC), instituição confessional da
cidade de Corrente, que na época revelada pelas memórias de ex-estudantes, essa
instituição era denominada de Instituto Batista Industrial (IBI). A relação da
materialidade/funcionalidade dessa instituição, por suas condições materiais e
orgânicas possibilitou/oportunizou práticas educativas diferenciadas, entre essas,
destacamos as práticas cívicas, representadas por uma festividade de
comemoração da abolição dos escravos, realizada por meio de um teatro musical.
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Assim, a representação dessa instituição integra a análise dos planos
pedagógicos e práticas educativas (práticas pedagógicas, didáticas, religiosas,
cívicas, entre outras), integradas com a apropriação de aspectos que constituem a
identidade, o ideário, a formação dos sujeitos.
As práticas educativas se inter-relacionam com os elementos básicos que
constituem a instituição educativa – IBI, que são a materialidade – o instituído, a
representação – a institucionalização e a apropriação – a instituição propriamente
dita (MAGALHÃES, 2004).
Segundo Saviani (2007, p.25), a materialidade ou instituição instalada que
representa o instituído, que se apresentam nas condições físicas da escola
arquitetura, espaços, prédios e equipamentos, materiais didáticos e outros, com a
estrutura organizacional, “constituem o suporte físico das práticas educativas”.
Assim, as práticas cívicas se desenvolvem na materialidade da escola em que se
praticavam os ensaios e cânticos.
Portanto, integrando história e educação, na concepção mais corrente de
educação, em que educar representa um conjunto de ações que busca adaptar
comportamentos pessoais e de grupos às exigências sociais, para definições que
surgem das diversas correntes de pensamento ou concepções pedagógicas, sendo
algumas destas ideias apresentadas por Libâneo (1999), Magalhães (2004), entre
outros.
Neste contexto, o estudo analisa a prática educativa na instituição citada. De
forma específica, destacamos a festa da abolição dos escravos, por ser rememorada
pelos protagonistas investigados – uma aluna afrodescendente que narra, com
saudosismo e demonstrando a importância dessas comemorações; destacamos
também um ex-aluno, que em sua história oral de vida narra esse momento e canta
a música principal da festa, descrevendo a prática como algo que marcava a vida
escolar dos estudantes. Assim, partimos do problema: que revelações sobre as
práticas educativas estão presentes nas memórias dos protagonistas? Em relação
ao questionamento proposto, objetivamos analisar as memórias dos protagonistas
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acerca das práticas educativas vivenciadas por eles e expressas em suas histórias
de vida.
Portanto, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, que se utiliza de histórias
orais de vida de ex-alunos da instituição pesquisada, que se constituíram em fontes
para a produção da Tese de doutorado. A pesquisa foi realizada por meio de
documentação indireta e direta, que tem por metodologia a história oral desses dois
ex-alunos, aqui tratados pelos nomes de Manoel e Milta. Nas histórias de vida, ao
serem retratadas/rememoradas as práticas educativas voltadas para as datas
comemorativas (cívicas – teatro musical), os protagonistas demonstram que essas
práticas oportunizaram o desenvolvimento/reconhecimento da consciência da etnia e
da importância de refletir/vivenciar os momentos da liberdade dos escravos negros
na construção da identidade pessoal dos alunos, para a convivência e o respeito
entre os pares de diferentes raças e credos.
Assim sendo, para o desenvolvimento desta pesquisa, em busca de
reconstituir os cenários educativos no período de 1960, dividimos o estudo em
seções que seguem.
A HISTÓRIA ORAL DE VIDA: REVELANDO AS PRÁTICAS EDUCATIVAS NA
ESCOLA
A história oral é aqui apresentada como técnica/método/metodologia que
possibilita desvendar, interpretar e explicar experiências vivenciadas pelos
protagonistas de suas histórias, em seus contextos. Aparecem, segundo Meihy;
Holanda (2007, p.70-71), não apenas como “[...] mais um apêndice formalizado [...]”,
constituindo-se mais que uma simples ‘ferramenta’ para coleta de dados empíricos,
mas para comprovar o andamento do que se pretende na pesquisa. Observamos
que as histórias orais de vida “[...] não são apenas exemplos, pois ganham condição
privilegiada de formulação de diálogos entre outras fontes”. A história oral, nessa
compreensão, tramita entre técnica e método, que apesar de não invalidar a
utilização de outras fontes como documentos escritos, a utilizamos como “[...] um
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recurso que indica um procedimento organizado e rígido de investigação, capaz de
garantir a obtenção de resultados válidos para propostas desenhadas”, o que
possibilitou desenvolver este estudo, a partir dessas fontes, reconhecendo não ser
necessário o uso de documentações que comprovem essas práticas.
Consideramos relevante a valorização da diversidade de fontes e métodos,
mas tendo em vista a ausência de documentações escritas, desenvolvemos nosso
objeto de estudo a partir da história oral, por possibilitar aguçar o olhar sobre as
diferentes realidades que envolvem as práticas educativas mediatizadas pelos
professores, tendo como principais protagonistas alunos da escola. Reconhecemos
nas histórias orais de vida uma concepção do passado como algo que tem
continuidade no presente e que se apresenta como um processo inacabado,
constituindo-se em “história viva” (MEIHY, 2002). Neste sentido, a história oral
possibilita perceber “[...] o sentido da história, o olhar para trás, ir em busca da
apreensão do tempo, com as vivências do presente, e poder tomar conhecimento de
que o passado se recria pela memória, única forma de retê-lo, de apreendê-lo”
(FÉLIX, 1998, p.33). Por não encontrarmos documentos escritos, utilizamos fonte
oral e iconográfica, considerando a história oral como uma das formas de reconstituir
as práticas vivenciadas pelos ex-alunos.
A pesquisa, qualitativa, apresenta algumas características tal como
necessariamente não seguir uma sequência rígida de etapas, possibilitando o uso
de outras técnicas como, por exemplo, a história oral de vida, que pode apresentar-
se como técnica e/ou metodologia de pesquisa, possibilitando ao pesquisador e aos
sujeitos envolvidos nesta pesquisa, reflexões sobre as práticas educativas e sua
relação com a construção da identidade e etnia dos sujeitos.
As memórias dos protagonistas, reveladas em suas histórias de vida e de
formação, destacam vários aspectos da instituição, como o rigor disciplinar, as
práticas religiosas, de maneira que as memórias surgem “[...] como documentos
localizados na cabeça das pessoas e não nos arquivos públicos [constituindo-se de]
experiências vividas interiormente [...]” (PIMENTEL; LEAL, 2003, p.13).
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Nesse conjunto, as práticas educativas na instituição confessional
pesquisada, por meio das memórias reveladas nas histórias de vida, possibilitam ao
pesquisador apreender “[...] a realidade educativa como uma totalidade, em
organização e em construção” (MAGALHÃES, 2004, p.115). Nesse sentido, a
História Oral representa, neste estudo, um documento essencial para o registro e a
análise da fala. Segundo Meihy (2002, p.13), a História Oral se apresenta como:
[...] um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamentos e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva. [...] é uma prática de apreensão de narrativas feitas por meio do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio imediato
Portanto, utilizamos a história oral de vida como metodologia de pesquisa que
oportuniza a compreensão da complexidade, dos sentimentos e valores que
envolvem o objeto estudado, tornando possível ao leitor construir histórias próprias
daqueles sujeitos investigados, que apesar de serem individuais/pessoais, em seu
conjunto e consensos, confirmam práticas desenvolvidas nessa escola,
possibilitando um olhar coletivo. Logo, buscamos trabalhar sistematicamente a
análise dessas histórias, por meio de um criterioso rigor científico, desenvolvendo
uma análise crítica das falas, levando em conta a subjetividade que permeia a
narrativa, reconhecendo que é indispensável “o juízo crítico com compromissos
teóricos [que] extrai a vivência da história oral do limite da aventura despretensiosa,
do mero registro de grupos preocupados apenas com a coleta [de dados]” (MEIHY;
LANG, 2004, p.13). Os autores colocam que a história oral vai além, possibilitando
perceber/compreender as dimensões em que o objeto está inserido.
É por sua complexidade e usos que a história oral vem desafiando
historiadores, sociólogos e antropólogos, pois ao propor a reconstituição de histórias
de vida, ou outro testemunho, utiliza a fala como fonte, buscando o reconhecimento
da subjetividade e a possibilidade não só de uma história registrada nos
documentos, mas de histórias vivenciadas, interpretadas, pelos verdadeiros
protagonistas. Nesse sentido, é compreendida nesta pesquisa como:
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[...] um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da história de vida, mas, sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida (DELGADO, 2010, p.15).
Compreendemos, também, na visão de Meihy e Lang (2004), que a história
oral se apresenta como um proceder do pesquisador de forma premeditada, para a
produção/construção de conhecimento sobre o objeto pesquisado; exige
envolvimento e participação de um entrevistador (o pesquisador), o entrevistado
(sujeitos da pesquisa) e a aparelhagem de gravação.
Assim, procedemos, neste estudo, partindo de um roteiro no qual buscamos
certo direcionamento em relação ao objeto, pedimos para que os protagonistas
falassem sobre as práticas educativas da instituição, de forma livre, sendo
realizadas as gravações durante os encontros. Desta forma, tivemos uma
amostragem de ex-alunos e ex-professores, destacando, neste estudo, uma amostra
de dois protagonistas que vivenciaram as práticas educativas no IBI. Para análise
das histórias de vida destacamos na seção seguinte a compreensão que tivemos
dessas práticas inter-relacionadas à formação da identidade étnica desses
protagonistas que compõem nossa amostra, escolhida por se tratar de pessoas que
representam a etnia em suas histórias e relatam sobre a prática educativa sobre a
“abolição dos escravos”, uma festividade realizada por meio de teatros cantados,
através dos quais a escola buscava discutir o momento cívico, a partir da disciplina
Educação Moral e Cívica. Porém, mesmo com as ideologias dominantes que
perpassam essas histórias, segundo os protagonistas, essa atividade era
considerada de fundamental importância, pois desenvolvia sentimento e consciência
do respeito ao próximo, às diferenças e à concepção da necessidade de serem
tratados como irmãos. Procuramos, na seção que segue, apresentar as revelações
dos sentimentos presentes nas memórias desses sujeitos.
HISTÓRIAS DE VIDAS – REMEMORANDO MOMENTOS DE PRÁTICAS
EDUCATIVAS – O TEATRO MUSICAL
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A pesquisa possibilitou a produção de uma narrativa histórico-pedagógica
sobre as práticas educativas vivenciadas/socializadas no Instituto Batista Industrial –
instituição confessional onde os sujeitos desse estudo (ex-alunos) estudaram, na
década de 1960.
Essas lembranças fazem “[...] emergir a educação como construção histórica
[...]” e a instituição educativa como principal processo de educação (MAGALHÃES,
2004, p.119). Consideramos que estudo envolvendo a escola, em geral busca
relações que, segundo o autor, desenvolvem-se entre “[...] culturas gerais e locais,
sua simbolização, normalização, transmissão; quadros, normas e atitudes nos
planos social, grupal, individual, institucional, [...] ação/práticas didático-
pedagógicas, representação, apropriação”. Nesse sentido, a história oral dos
protagonistas possibilita a percepção do social, e como afirma Chartier (1990, p.17):
As percepções do social não são, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
Analisando as ideias do autor, as comemorações realizadas no IBI, momento
em que a sociedade de Corrente(PI) estava presente, também não se apresentavam
de forma neutra, há um conjunto de intenções em relação à festa da abolição dos
escravos proposta pela instituição, que como toda instituição confessional,
principalmente em se tratando de épocas anteriores, havia todo um conjunto de
regras de conduta (rígida disciplina), nos momentos de festividades todos
participavam e as festas, segundo depoimentos, envolviam toda a escola, havia a
participação dos alunos e algumas professoras responsáveis pelas programações;
em geral, na elaboração das peças os alunos destacam a professora Carmem
Alayde, que escrevia as peças que eram interpretadas pelas turmas; no caso da
festa da abolição da escravidão – representando o ano de 1888, período em que a
escravidão foi “abolida”, através da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel no dia
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13 de maio daquele ano. Essas festividades representavam o que denominamos de
práticas educativas, classificadas e conceituadas por Nogueira (2014, p. 162) como:
Prática educativa é um processo de ação histórico-social, intencional de hominização e humanização, em espaço escolar e não escolar, para reprodução/transformação da realidade [...]; Prática educativa escolar é um processo histórico-social intencional, com objetivos de ensino-aprendizagem, desenvolvido por meio da práxis (ações criadora, reflexiva e crítica). Tem-se, neste sentido, a prática que se deseja; Prática educativa cristã é um processo histórico-social, intencional, com propósito de hominização e humanização mediado pelo habitus religioso na formação de valores éticos cristãos.
Portanto, essas práticas são rememoradas pelos sujeitos, demonstrando
apenas seu lado positivo, como uma medida que beneficiou uma grande quantidade
de escravos que ainda existia no país, sem preocupar-se com o fato de a Lei Áurea
libertar os negros, sem dar condições de vida para eles, após serem libertos.
Destacamos alguns detalhes da festa do dia 13 de maio, considerada por uma ex-
aluna, que estudou no instituto trabalhando na copa para pagar seus estudos.
Segundos os depoimentos os alunos que não podiam pagar prestavam serviços nas
horas livres. A escola funcionava com internato masculino e feminino e, em geral,
nas atividades eles eram separados, mas nos momentos das festas todos
participavam. Assim, conta Dona Milta:
Estudei no IBI e até hoje tenho tristeza porque tive de voltar para a roça e não terminei os meus estudos. Estudava e nas horas que não tinha atividade no colégio trabalhava na copa, mas na hora da escola eram todos juntos, brincávamos juntos e nas festividades todos participavam. Tinha uma que eu até hoje me emociono quando lembro – era a do dia 13 de maio, havia uma peça de teatro em que todos participava, quem era negro se pintava de branco e quem era branco se pintava de preto. E depois da representação era cantada a música... e terminava com todos de mão dadas cantando...
E a protagonista canta emocionada um trecho da música ...
Hoje senhores e escravos dão-se as mãos Pretos e brancos todos são irmãos
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São revelados na memória, sentimentos construídos de que todos são
irmãos, valores que podemos perceber nas questões morais e na própria questão
religiosa, tendo em vista que a instituição confessional prega a ética cristã
representada pelo lema do colégio: “verdade, beleza e bondade”. Segundo os
depoentes, aqueles momentos levavam a refletir sobre a situação da escravidão,
rememoravam cenas entre feitores e escravos e despertavam um sentimento de
solidariedade, levando a perceber sua condição étnica com respeito mútuo e
aceitação; segundo eles, as relações no IBI eram de uma irmandade.
Desta mesma forma, temos a história oral de outro ex-aluno que até hoje
trabalha no atual IBC, como diretor. Ele confirma as práticas educativas e, também,
destaca entre as práticas cívicas o 7 de setembro e, em especial, essa sobre a festa
em comemoração à libertação dos escravos. Segundo ele:
Era uma festa linda, todos se emocionavam e havia participação dos alunos e professores do instituto, todos se envolviam nas festas e a comunidade de Corrente vinha toda para assistir no salão nobre. Os brancos se pintavam com óleo e carvão, fazia um pó com o carvão e pintavam as partes visíveis do corpo. Era uma festa muito linda e cantávamos duas músicas ... era um teatro lindo e toda a peça era escrita pela professora Carmem Alayde.
O depoente cantou as duas músicas apresentadas na festividade.
Destacamos a transcrição, a seguir, da música relembrada e cantada pelos dois
depoentes que vivenciaram seus estudos na instituição, trabalhando para pagar as
mensalidades. Manoel na época cursava a disciplina Cântico Orfeônico na
instituição, e até hoje faz parte do coral da igreja batista da cidade, sendo
atualmente o diretor administrativo da escola.
Assim, no sentimento de rememoração ele canta durante sua história oral os
dois hinos que eram representados pelos alunos. Destacamos o hino presente nas
duas histórias de vida, exposto abaixo:
HINO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
No mundo inteiro foi celebrado O nobre gesto da nossa princesa
Que por piedade dos pobres negros Sacrificou do pai a realeza
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Muitos pregaram a abolição
Zé Patrocínio, Nabuco e outros mais E a redentora Izabel Santa
Concretizou seus nobres ideais Já foi extinta no Brasil a escravidão
Que retardava nossa civilização Hoje senhores e escravos dão-se as mãos
Pretos e brancos todos são irmãos
Em nossa terra reina a igualdade Aqui não há preconceito de cor
Pretos ou brancos são brasileiros E do Brasil seu sangue seu amor.
A letra da música revela o que alerta Chartier (1990) quanto à questão de não
tratar-se de um discurso neutro. Reconhecemos as ideologias de trechos como “Que
por piedade dos pobres negros”, entre outros, que retratam a falta de reflexões
críticas sobre essas questões, em que as causas que levaram ao empobrecimento
dos escravos e as verdadeiras causas da abolição, não são colocadas/discutidas.
Mas, o que se percebe é que há nas pessoas investigadas um sentimento de que
essas experiências eram positivas, que essas práticas enriqueciam de
conhecimentos, de sentimentos de valorização do próximo, de se sentirem irmãos.
Assim, independente das diferenças étnicas, culturais e de classes sociais, havia no
cantar e no falar dos depoentes, lembranças felizes dessas épocas. Acreditamos na
sinceridade dos depoimentos, reconhecendo que a história oral é “[...] um recurso
que indica um procedimento organizado e rígido de investigação, capaz de garantir a
obtenção de resultados válidos [...]” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p.72).
Para eles, esses momentos levavam a compreender questões voltadas para
valores como o respeito, o amor ao próximo, a solidariedade e a amizade. Muitos
alunos eram internos e moravam no sítio do IBI. Neste colégio moravam os norte-
americanos – missionários com suas famílias, que implantaram em 1904 o primeiro
jardim da infância do Piauí; alguns professores e os internos.
Esses relacionamentos podem ser melhores compreendidos a partir do
depoimento de uma ex-aluna, filha da zeladora do colégio, que cresceu no instituto e
ocupou diversos cargos de coordenação e direção, após ter saído para estudar e
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retornado quando concluiu o curso de graduação. Em suas memórias, narra sobre o
viver no IBI:
Ao amanhecer o dia [...] juntamente com os filhos dos missionários norte-americanos, da Professora [...] do vaqueiro [todos juntos] tomavam leite saído da vaca. Faziam bigodes brancos e se deliciavam naquela confraternização matutina. Todas essas crianças moravam no sítio do instituto.
A partir da memória da ex-aluna que apresentamos no trecho acima,
podemos perceber o cotidiano desta instituição e o multiculturalismo que possibilitou
experiências e saberes diversos, pois moravam todos juntos, no mesmo sítio,
brincavam juntas as crianças, independente de etnia ou classe social; lá crianças e
jovens brincavam, trabalhavam e estudavam cânticos, faziam parte do coral, de
disciplinas como latim, inglês, francês, entre outras, que possibilitavam diversificar as
práticas educativas e integrar estudo e lazer, tudo isso regido por regras e normas,
por uma rígida disciplina, conforme confirma Oliveira (2013, p.16, grifo nosso) em
suas memórias:
Cada internato tinha um diretor e a disciplina era extremamente rígida. Os pais, distantes, confiavam plenamente na forma como eram conduzidos os seus filhos. Mudança neles era vista, uma vez que novos valores iam se integrando às suas personalidades.
Observamos nas lembranças de ex-alunos que as crianças e jovens que
viviam no IBI mantinham um sentimento de igualdade, desenvolviam suas
identidades étnicas sem preconceitos, nessa convivência entre missionários norte-
americanos, professores e demais funcionários da instituição (zeladores, vaqueiros,
entre outros, e suas famílias), alunos internos (pagantes e/ou trabalhadores), não se
sentiam inferiores, viviam contentes desenvolvendo seus estudos, suas tarefas.
Podemos perceber esse contentamento na expressão revelada nas memórias da ex-
aluna, citada anteriormente, quando se mudou para o IBI:
A casa parecia uma mansão [...] ficava ao lado do colégio e era enorme. Seis quartos, três salas, uma cozinha, uma despensa e dois banheiros, sendo um com banheira [...] Eu corria ... rolava e gritava: “Agora somos ricos [...]”. E era mesmo. Não só a riqueza material [...] porém a maior
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riqueza era a espiritual. A convivência com pessoas bem instruídas e o estudo naquele colégio encantador [...].
As casas do IBI foram projetadas pelos missionários americanos e nelas
moravam funcionários, zeladores, professores, diretores, vaqueiros, entre outros.
Assim, descrevemos um pouco sobre o sítio em que se localiza o IBI, atual IBC, cuja
extensão pode imaginar-se pela foto 01, que segue. A área do IBI, atual IBC vai até
o Rio Corrente, principal rio da cidade. Constitui-se em um sítio com uma vasta
extensão de terra, com currais, quadra de futebol, volei, entre outras.
Foto 01- Ginásio IBI – alunos em fila para a entrada.
Fonte: Acervo Profa. Sônia Paranaguá, 2014.
Observa-se a disciplina na formação da fila para a entrada nas salas de aula.
Destacamos, na foto que segue, o auditório retratado nesse período em que
ocorreram o que chamamos de práticas educativas escolares, mediadas pelas
práticas educativas cristãs, essa última representada pelas preleções (reflexões à
luz do evangelho).
Foto 02 – Auditório onde eram realizadas as festas.
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Fonte: Acervo do IBC, 2014.
A foto destaca a simplicidade do Salão Nobre – construído em 1920 pelo Pr.
Adolf John Terry – espaço das práticas religiosas, denominadas de práticas
educativas cristãs, e das práticas pedagógicas. Esses espaços da instituição se
integravam com os demais espaços educativos, principalmente a igreja.
Voltando às memórias sobre as festas (práticas educativas), os ex-alunos, em
suas histórias, destacam a beleza e a organização delas, que são lembradas até
hoje, não só pelos alunos, mas pela comunidade da época que participou desses
eventos. Segue o depoimento, que narra sobre essas festividades, que se
destacavam por serem momentos de cultura, lazer e muita aprendizagem:
Os professores preparavam tudo com muito esmero e dedicação. Ensaios, ensaios, ensaios e mais ensaios. A cultura norte-americana inspirada nos filmes de Hollywood parecia trazer para aquela pequena comunidade toda a arte cinematográfica [...] Chegava o dia. Como ninguém possuía carros, a não ser os próprios missionários, e ficando o colégio mais ou menos um quilômetro da cidade, podíamos presenciar aquela ‘romaria’ até chegar ao auditório” (OLIVEIRA, 2013, p.19).
Desenvolvemos uma reflexão entre a memória dos protagonistas e suas
histórias, contemplando a história das práticas educativas socializadas nas
instituições confessionais em que as memórias aparecem “[...] como documentos
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localizados na cabeça das pessoas e não nos arquivos públicos [nas] experiências
vividas interiormente [...]” (PIMENTEL; LEAL, 2003, p.13).
Os espaços das inter-relações entre os públicos – missionários/professores
norte-americanos, professores/alunos do Brasil e comunidade escolar, que
constituem as instituições confessionais de forma intrínseca, relacionam-
se/articulam-se por meio das políticas de administração/normalização entre espaços
nacional e internacional, que constituem o espaço institucional do IBI/IBC e
influenciam o espaço religioso e cultural da cidade de Corrente(PI) (NOGUEIRA,
p.14).
Neste sentido, confirmamos que a educação, “[...] como vêm mostrando
alguns trabalhos realizados nos últimos anos, está profundamente impregnada de
um ethos1 religioso” (GALVÃO; LOPEZ, 2001, p.28); portanto, a educação se
transforma em um poderoso instrumento de manutenção e/ou transformação de
condutas, no caso da educação confessional, mediada pelas práticas educativas
cristãs, observamos a manutenção de condutas com base na ética cristã.
Portanto, entre as narrativas autobiográficas representadas pela história oral,
temos a cultura escolar se apresentando “[...] articulada com os processos sociais,
econômicos e políticos, que a explicariam” (FELGUEIRAS; VIEIRA, 2010, p.19).
Consideramos, neste estudo, cultura segundo Julia (2001, p.9), como “[...] um
conjunto de normas que definem conhecimento a ensinar e condutas a inculcar, e
um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos”.
Portanto, ao analisar a história oral de vida dos sujeitos investigados,
fundamentando-nos em Le Goff (2003), entre outros, considerando que no decorrer
de suas experiências em escolas confessionais, eles construíram suas identidades
com base no multiculturalismo da escola, convivendo com práticas educativas
escolares e práticas educativas cristãs, mediadas/inculcadas pela ética cristã, que
1 Busca-se a origem etimológica da palavra ethos (grego), que significa costume, jeito de ser. Rios (2002) afirma
que o costume remete à criação cultural – não há costume na natureza. O ethos, segundo Vaz, é a casa do
homem, esse espaço enquanto espaço humano, esse espaço não é dado ao homem, mas por ele
construído,reconstruído
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possibilitou a transmissão/desenvolvimento de condutas com base na moral, na
ética, no respeito e na solidariedade, incorporando comportamentos de igualdade e
aceitação da realidade em que viviam.
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Ao buscarmos analisar as memórias presentes nas histórias de vida dos
protagonistas que vivenciaram/construíram as práticas educativas nas instituições
confessionais, supomos conhecer seus valores, estruturas, crenças, atitudes e sua
forma de agir de modo pessoal, que constitui sua identidade, construída como fruto
da ação pedagógica e das interações sociais nos espaços em que são
desenvolvidas/socializadas as práticas educativas. Essas concepções, valores e
crenças construídas por ex-alunos vão integrar/interagir com sua formação e,
consequentemente, com suas práticas, moldando/transformando suas identidades
pessoais e em coletividade.
Os protagonistas dessas histórias confirmam que as práticas educativas do
Instituto Batista industrial, no conjunto de sua diversidade e, em especial, as
comemorações do dia 13 de maio, oportunizaram o
desenvolvimento/reconhecimento da consciência da etnia e da importância de
refletir/vivenciar os momentos da liberdade dos escravos negros na construção da
identidade pessoal dos alunos para a convivência e respeito entre os pares e suas
diferenças.
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