PRÁTICAS EDUCATIVAS CÍVICAS EM INSTITUIÇÃO ... · As percepções do social não são, de forma...

16
PRÁTICAS EDUCATIVAS CÍVICAS EM INSTITUIÇÃO CONFESSIONAL: HISTÓRIAS DE VIDA DE EX-ALUNOS NA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA ÉTNICA Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira (UFPI) [email protected] Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI) [email protected] INTRODUÇÃO Este estudo parte do campo investigativo da educação integrada, inter- relacionada à História, realçando as práticas educativas desenvolvidas/socializadas em instituições confessionais, no contexto da vivência de discentes, no processo de reconstituição de suas memórias a partir da história oral de vida desses sujeitos e de depoimentos orais. Integradas as práticas educativas à história desses protagonistas que vivenciaram essas práticas nas instituições escolares, nos leva a reconhecer, nas considerações de Magalhães (2004, p.106), que a prática educativa “[...] desafia a uma interdisciplinaridade [...], tendo em vista que frequentemente “[...] a informação sobre essas práticas apresenta-se de forma exclusivamente discursiva e memorialística, de maneira que a sua intelecção constitui-se em um desafio. Portanto, consideramos de fundamental importância a escolha do procedimento teórico-metodológico de abordagem para este estudo as histórias de vida desses sujeitos, que possibilitaram a construção do conhecimento sobre as práticas educativas do Instituto Batista Correntino (IBC), instituição confessional da cidade de Corrente, que na época revelada pelas memórias de ex-estudantes, essa instituição era denominada de Instituto Batista Industrial (IBI). A relação da materialidade/funcionalidade dessa instituição, por suas condições materiais e orgânicas possibilitou/oportunizou práticas educativas diferenciadas, entre essas, destacamos as práticas cívicas, representadas por uma festividade de comemoração da abolição dos escravos, realizada por meio de um teatro musical.

Transcript of PRÁTICAS EDUCATIVAS CÍVICAS EM INSTITUIÇÃO ... · As percepções do social não são, de forma...

PRÁTICAS EDUCATIVAS CÍVICAS EM INSTITUIÇÃO CONFESSIONAL:

HISTÓRIAS DE VIDA DE EX-ALUNOS NA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA

ÉTNICA

Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira (UFPI)

[email protected]

Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI)

[email protected]

INTRODUÇÃO

Este estudo parte do campo investigativo da educação integrada, inter-

relacionada à História, realçando as práticas educativas desenvolvidas/socializadas

em instituições confessionais, no contexto da vivência de discentes, no processo de

reconstituição de suas memórias a partir da história oral de vida desses sujeitos e de

depoimentos orais.

Integradas as práticas educativas à história desses protagonistas que

vivenciaram essas práticas nas instituições escolares, nos leva a reconhecer, nas

considerações de Magalhães (2004, p.106), que a prática educativa “[...] desafia a

uma interdisciplinaridade [...]”, tendo em vista que frequentemente “[...] a informação

sobre essas práticas apresenta-se de forma exclusivamente discursiva e

memorialística, de maneira que a sua intelecção constitui-se em um desafio”.

Portanto, consideramos de fundamental importância a escolha do

procedimento teórico-metodológico de abordagem para este estudo – as histórias de

vida desses sujeitos, que possibilitaram a construção do conhecimento sobre as

práticas educativas do Instituto Batista Correntino (IBC), instituição confessional da

cidade de Corrente, que na época revelada pelas memórias de ex-estudantes, essa

instituição era denominada de Instituto Batista Industrial (IBI). A relação da

materialidade/funcionalidade dessa instituição, por suas condições materiais e

orgânicas possibilitou/oportunizou práticas educativas diferenciadas, entre essas,

destacamos as práticas cívicas, representadas por uma festividade de

comemoração da abolição dos escravos, realizada por meio de um teatro musical.

2

Assim, a representação dessa instituição integra a análise dos planos

pedagógicos e práticas educativas (práticas pedagógicas, didáticas, religiosas,

cívicas, entre outras), integradas com a apropriação de aspectos que constituem a

identidade, o ideário, a formação dos sujeitos.

As práticas educativas se inter-relacionam com os elementos básicos que

constituem a instituição educativa – IBI, que são a materialidade – o instituído, a

representação – a institucionalização e a apropriação – a instituição propriamente

dita (MAGALHÃES, 2004).

Segundo Saviani (2007, p.25), a materialidade ou instituição instalada que

representa o instituído, que se apresentam nas condições físicas da escola

arquitetura, espaços, prédios e equipamentos, materiais didáticos e outros, com a

estrutura organizacional, “constituem o suporte físico das práticas educativas”.

Assim, as práticas cívicas se desenvolvem na materialidade da escola em que se

praticavam os ensaios e cânticos.

Portanto, integrando história e educação, na concepção mais corrente de

educação, em que educar representa um conjunto de ações que busca adaptar

comportamentos pessoais e de grupos às exigências sociais, para definições que

surgem das diversas correntes de pensamento ou concepções pedagógicas, sendo

algumas destas ideias apresentadas por Libâneo (1999), Magalhães (2004), entre

outros.

Neste contexto, o estudo analisa a prática educativa na instituição citada. De

forma específica, destacamos a festa da abolição dos escravos, por ser rememorada

pelos protagonistas investigados – uma aluna afrodescendente que narra, com

saudosismo e demonstrando a importância dessas comemorações; destacamos

também um ex-aluno, que em sua história oral de vida narra esse momento e canta

a música principal da festa, descrevendo a prática como algo que marcava a vida

escolar dos estudantes. Assim, partimos do problema: que revelações sobre as

práticas educativas estão presentes nas memórias dos protagonistas? Em relação

ao questionamento proposto, objetivamos analisar as memórias dos protagonistas

3

acerca das práticas educativas vivenciadas por eles e expressas em suas histórias

de vida.

Portanto, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, que se utiliza de histórias

orais de vida de ex-alunos da instituição pesquisada, que se constituíram em fontes

para a produção da Tese de doutorado. A pesquisa foi realizada por meio de

documentação indireta e direta, que tem por metodologia a história oral desses dois

ex-alunos, aqui tratados pelos nomes de Manoel e Milta. Nas histórias de vida, ao

serem retratadas/rememoradas as práticas educativas voltadas para as datas

comemorativas (cívicas – teatro musical), os protagonistas demonstram que essas

práticas oportunizaram o desenvolvimento/reconhecimento da consciência da etnia e

da importância de refletir/vivenciar os momentos da liberdade dos escravos negros

na construção da identidade pessoal dos alunos, para a convivência e o respeito

entre os pares de diferentes raças e credos.

Assim sendo, para o desenvolvimento desta pesquisa, em busca de

reconstituir os cenários educativos no período de 1960, dividimos o estudo em

seções que seguem.

A HISTÓRIA ORAL DE VIDA: REVELANDO AS PRÁTICAS EDUCATIVAS NA

ESCOLA

A história oral é aqui apresentada como técnica/método/metodologia que

possibilita desvendar, interpretar e explicar experiências vivenciadas pelos

protagonistas de suas histórias, em seus contextos. Aparecem, segundo Meihy;

Holanda (2007, p.70-71), não apenas como “[...] mais um apêndice formalizado [...]”,

constituindo-se mais que uma simples ‘ferramenta’ para coleta de dados empíricos,

mas para comprovar o andamento do que se pretende na pesquisa. Observamos

que as histórias orais de vida “[...] não são apenas exemplos, pois ganham condição

privilegiada de formulação de diálogos entre outras fontes”. A história oral, nessa

compreensão, tramita entre técnica e método, que apesar de não invalidar a

utilização de outras fontes como documentos escritos, a utilizamos como “[...] um

4

recurso que indica um procedimento organizado e rígido de investigação, capaz de

garantir a obtenção de resultados válidos para propostas desenhadas”, o que

possibilitou desenvolver este estudo, a partir dessas fontes, reconhecendo não ser

necessário o uso de documentações que comprovem essas práticas.

Consideramos relevante a valorização da diversidade de fontes e métodos,

mas tendo em vista a ausência de documentações escritas, desenvolvemos nosso

objeto de estudo a partir da história oral, por possibilitar aguçar o olhar sobre as

diferentes realidades que envolvem as práticas educativas mediatizadas pelos

professores, tendo como principais protagonistas alunos da escola. Reconhecemos

nas histórias orais de vida uma concepção do passado como algo que tem

continuidade no presente e que se apresenta como um processo inacabado,

constituindo-se em “história viva” (MEIHY, 2002). Neste sentido, a história oral

possibilita perceber “[...] o sentido da história, o olhar para trás, ir em busca da

apreensão do tempo, com as vivências do presente, e poder tomar conhecimento de

que o passado se recria pela memória, única forma de retê-lo, de apreendê-lo”

(FÉLIX, 1998, p.33). Por não encontrarmos documentos escritos, utilizamos fonte

oral e iconográfica, considerando a história oral como uma das formas de reconstituir

as práticas vivenciadas pelos ex-alunos.

A pesquisa, qualitativa, apresenta algumas características tal como

necessariamente não seguir uma sequência rígida de etapas, possibilitando o uso

de outras técnicas como, por exemplo, a história oral de vida, que pode apresentar-

se como técnica e/ou metodologia de pesquisa, possibilitando ao pesquisador e aos

sujeitos envolvidos nesta pesquisa, reflexões sobre as práticas educativas e sua

relação com a construção da identidade e etnia dos sujeitos.

As memórias dos protagonistas, reveladas em suas histórias de vida e de

formação, destacam vários aspectos da instituição, como o rigor disciplinar, as

práticas religiosas, de maneira que as memórias surgem “[...] como documentos

localizados na cabeça das pessoas e não nos arquivos públicos [constituindo-se de]

experiências vividas interiormente [...]” (PIMENTEL; LEAL, 2003, p.13).

5

Nesse conjunto, as práticas educativas na instituição confessional

pesquisada, por meio das memórias reveladas nas histórias de vida, possibilitam ao

pesquisador apreender “[...] a realidade educativa como uma totalidade, em

organização e em construção” (MAGALHÃES, 2004, p.115). Nesse sentido, a

História Oral representa, neste estudo, um documento essencial para o registro e a

análise da fala. Segundo Meihy (2002, p.13), a História Oral se apresenta como:

[...] um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamentos e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva. [...] é uma prática de apreensão de narrativas feitas por meio do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio imediato

Portanto, utilizamos a história oral de vida como metodologia de pesquisa que

oportuniza a compreensão da complexidade, dos sentimentos e valores que

envolvem o objeto estudado, tornando possível ao leitor construir histórias próprias

daqueles sujeitos investigados, que apesar de serem individuais/pessoais, em seu

conjunto e consensos, confirmam práticas desenvolvidas nessa escola,

possibilitando um olhar coletivo. Logo, buscamos trabalhar sistematicamente a

análise dessas histórias, por meio de um criterioso rigor científico, desenvolvendo

uma análise crítica das falas, levando em conta a subjetividade que permeia a

narrativa, reconhecendo que é indispensável “o juízo crítico com compromissos

teóricos [que] extrai a vivência da história oral do limite da aventura despretensiosa,

do mero registro de grupos preocupados apenas com a coleta [de dados]” (MEIHY;

LANG, 2004, p.13). Os autores colocam que a história oral vai além, possibilitando

perceber/compreender as dimensões em que o objeto está inserido.

É por sua complexidade e usos que a história oral vem desafiando

historiadores, sociólogos e antropólogos, pois ao propor a reconstituição de histórias

de vida, ou outro testemunho, utiliza a fala como fonte, buscando o reconhecimento

da subjetividade e a possibilidade não só de uma história registrada nos

documentos, mas de histórias vivenciadas, interpretadas, pelos verdadeiros

protagonistas. Nesse sentido, é compreendida nesta pesquisa como:

6

[...] um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da história de vida, mas, sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida (DELGADO, 2010, p.15).

Compreendemos, também, na visão de Meihy e Lang (2004), que a história

oral se apresenta como um proceder do pesquisador de forma premeditada, para a

produção/construção de conhecimento sobre o objeto pesquisado; exige

envolvimento e participação de um entrevistador (o pesquisador), o entrevistado

(sujeitos da pesquisa) e a aparelhagem de gravação.

Assim, procedemos, neste estudo, partindo de um roteiro no qual buscamos

certo direcionamento em relação ao objeto, pedimos para que os protagonistas

falassem sobre as práticas educativas da instituição, de forma livre, sendo

realizadas as gravações durante os encontros. Desta forma, tivemos uma

amostragem de ex-alunos e ex-professores, destacando, neste estudo, uma amostra

de dois protagonistas que vivenciaram as práticas educativas no IBI. Para análise

das histórias de vida destacamos na seção seguinte a compreensão que tivemos

dessas práticas inter-relacionadas à formação da identidade étnica desses

protagonistas que compõem nossa amostra, escolhida por se tratar de pessoas que

representam a etnia em suas histórias e relatam sobre a prática educativa sobre a

“abolição dos escravos”, uma festividade realizada por meio de teatros cantados,

através dos quais a escola buscava discutir o momento cívico, a partir da disciplina

Educação Moral e Cívica. Porém, mesmo com as ideologias dominantes que

perpassam essas histórias, segundo os protagonistas, essa atividade era

considerada de fundamental importância, pois desenvolvia sentimento e consciência

do respeito ao próximo, às diferenças e à concepção da necessidade de serem

tratados como irmãos. Procuramos, na seção que segue, apresentar as revelações

dos sentimentos presentes nas memórias desses sujeitos.

HISTÓRIAS DE VIDAS – REMEMORANDO MOMENTOS DE PRÁTICAS

EDUCATIVAS – O TEATRO MUSICAL

7

A pesquisa possibilitou a produção de uma narrativa histórico-pedagógica

sobre as práticas educativas vivenciadas/socializadas no Instituto Batista Industrial –

instituição confessional onde os sujeitos desse estudo (ex-alunos) estudaram, na

década de 1960.

Essas lembranças fazem “[...] emergir a educação como construção histórica

[...]” e a instituição educativa como principal processo de educação (MAGALHÃES,

2004, p.119). Consideramos que estudo envolvendo a escola, em geral busca

relações que, segundo o autor, desenvolvem-se entre “[...] culturas gerais e locais,

sua simbolização, normalização, transmissão; quadros, normas e atitudes nos

planos social, grupal, individual, institucional, [...] ação/práticas didático-

pedagógicas, representação, apropriação”. Nesse sentido, a história oral dos

protagonistas possibilita a percepção do social, e como afirma Chartier (1990, p.17):

As percepções do social não são, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

Analisando as ideias do autor, as comemorações realizadas no IBI, momento

em que a sociedade de Corrente(PI) estava presente, também não se apresentavam

de forma neutra, há um conjunto de intenções em relação à festa da abolição dos

escravos proposta pela instituição, que como toda instituição confessional,

principalmente em se tratando de épocas anteriores, havia todo um conjunto de

regras de conduta (rígida disciplina), nos momentos de festividades todos

participavam e as festas, segundo depoimentos, envolviam toda a escola, havia a

participação dos alunos e algumas professoras responsáveis pelas programações;

em geral, na elaboração das peças os alunos destacam a professora Carmem

Alayde, que escrevia as peças que eram interpretadas pelas turmas; no caso da

festa da abolição da escravidão – representando o ano de 1888, período em que a

escravidão foi “abolida”, através da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel no dia

8

13 de maio daquele ano. Essas festividades representavam o que denominamos de

práticas educativas, classificadas e conceituadas por Nogueira (2014, p. 162) como:

Prática educativa é um processo de ação histórico-social, intencional de hominização e humanização, em espaço escolar e não escolar, para reprodução/transformação da realidade [...]; Prática educativa escolar é um processo histórico-social intencional, com objetivos de ensino-aprendizagem, desenvolvido por meio da práxis (ações criadora, reflexiva e crítica). Tem-se, neste sentido, a prática que se deseja; Prática educativa cristã é um processo histórico-social, intencional, com propósito de hominização e humanização mediado pelo habitus religioso na formação de valores éticos cristãos.

Portanto, essas práticas são rememoradas pelos sujeitos, demonstrando

apenas seu lado positivo, como uma medida que beneficiou uma grande quantidade

de escravos que ainda existia no país, sem preocupar-se com o fato de a Lei Áurea

libertar os negros, sem dar condições de vida para eles, após serem libertos.

Destacamos alguns detalhes da festa do dia 13 de maio, considerada por uma ex-

aluna, que estudou no instituto trabalhando na copa para pagar seus estudos.

Segundos os depoimentos os alunos que não podiam pagar prestavam serviços nas

horas livres. A escola funcionava com internato masculino e feminino e, em geral,

nas atividades eles eram separados, mas nos momentos das festas todos

participavam. Assim, conta Dona Milta:

Estudei no IBI e até hoje tenho tristeza porque tive de voltar para a roça e não terminei os meus estudos. Estudava e nas horas que não tinha atividade no colégio trabalhava na copa, mas na hora da escola eram todos juntos, brincávamos juntos e nas festividades todos participavam. Tinha uma que eu até hoje me emociono quando lembro – era a do dia 13 de maio, havia uma peça de teatro em que todos participava, quem era negro se pintava de branco e quem era branco se pintava de preto. E depois da representação era cantada a música... e terminava com todos de mão dadas cantando...

E a protagonista canta emocionada um trecho da música ...

Hoje senhores e escravos dão-se as mãos Pretos e brancos todos são irmãos

9

São revelados na memória, sentimentos construídos de que todos são

irmãos, valores que podemos perceber nas questões morais e na própria questão

religiosa, tendo em vista que a instituição confessional prega a ética cristã

representada pelo lema do colégio: “verdade, beleza e bondade”. Segundo os

depoentes, aqueles momentos levavam a refletir sobre a situação da escravidão,

rememoravam cenas entre feitores e escravos e despertavam um sentimento de

solidariedade, levando a perceber sua condição étnica com respeito mútuo e

aceitação; segundo eles, as relações no IBI eram de uma irmandade.

Desta mesma forma, temos a história oral de outro ex-aluno que até hoje

trabalha no atual IBC, como diretor. Ele confirma as práticas educativas e, também,

destaca entre as práticas cívicas o 7 de setembro e, em especial, essa sobre a festa

em comemoração à libertação dos escravos. Segundo ele:

Era uma festa linda, todos se emocionavam e havia participação dos alunos e professores do instituto, todos se envolviam nas festas e a comunidade de Corrente vinha toda para assistir no salão nobre. Os brancos se pintavam com óleo e carvão, fazia um pó com o carvão e pintavam as partes visíveis do corpo. Era uma festa muito linda e cantávamos duas músicas ... era um teatro lindo e toda a peça era escrita pela professora Carmem Alayde.

O depoente cantou as duas músicas apresentadas na festividade.

Destacamos a transcrição, a seguir, da música relembrada e cantada pelos dois

depoentes que vivenciaram seus estudos na instituição, trabalhando para pagar as

mensalidades. Manoel na época cursava a disciplina Cântico Orfeônico na

instituição, e até hoje faz parte do coral da igreja batista da cidade, sendo

atualmente o diretor administrativo da escola.

Assim, no sentimento de rememoração ele canta durante sua história oral os

dois hinos que eram representados pelos alunos. Destacamos o hino presente nas

duas histórias de vida, exposto abaixo:

HINO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

No mundo inteiro foi celebrado O nobre gesto da nossa princesa

Que por piedade dos pobres negros Sacrificou do pai a realeza

10

Muitos pregaram a abolição

Zé Patrocínio, Nabuco e outros mais E a redentora Izabel Santa

Concretizou seus nobres ideais Já foi extinta no Brasil a escravidão

Que retardava nossa civilização Hoje senhores e escravos dão-se as mãos

Pretos e brancos todos são irmãos

Em nossa terra reina a igualdade Aqui não há preconceito de cor

Pretos ou brancos são brasileiros E do Brasil seu sangue seu amor.

A letra da música revela o que alerta Chartier (1990) quanto à questão de não

tratar-se de um discurso neutro. Reconhecemos as ideologias de trechos como “Que

por piedade dos pobres negros”, entre outros, que retratam a falta de reflexões

críticas sobre essas questões, em que as causas que levaram ao empobrecimento

dos escravos e as verdadeiras causas da abolição, não são colocadas/discutidas.

Mas, o que se percebe é que há nas pessoas investigadas um sentimento de que

essas experiências eram positivas, que essas práticas enriqueciam de

conhecimentos, de sentimentos de valorização do próximo, de se sentirem irmãos.

Assim, independente das diferenças étnicas, culturais e de classes sociais, havia no

cantar e no falar dos depoentes, lembranças felizes dessas épocas. Acreditamos na

sinceridade dos depoimentos, reconhecendo que a história oral é “[...] um recurso

que indica um procedimento organizado e rígido de investigação, capaz de garantir a

obtenção de resultados válidos [...]” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p.72).

Para eles, esses momentos levavam a compreender questões voltadas para

valores como o respeito, o amor ao próximo, a solidariedade e a amizade. Muitos

alunos eram internos e moravam no sítio do IBI. Neste colégio moravam os norte-

americanos – missionários com suas famílias, que implantaram em 1904 o primeiro

jardim da infância do Piauí; alguns professores e os internos.

Esses relacionamentos podem ser melhores compreendidos a partir do

depoimento de uma ex-aluna, filha da zeladora do colégio, que cresceu no instituto e

ocupou diversos cargos de coordenação e direção, após ter saído para estudar e

11

retornado quando concluiu o curso de graduação. Em suas memórias, narra sobre o

viver no IBI:

Ao amanhecer o dia [...] juntamente com os filhos dos missionários norte-americanos, da Professora [...] do vaqueiro [todos juntos] tomavam leite saído da vaca. Faziam bigodes brancos e se deliciavam naquela confraternização matutina. Todas essas crianças moravam no sítio do instituto.

A partir da memória da ex-aluna que apresentamos no trecho acima,

podemos perceber o cotidiano desta instituição e o multiculturalismo que possibilitou

experiências e saberes diversos, pois moravam todos juntos, no mesmo sítio,

brincavam juntas as crianças, independente de etnia ou classe social; lá crianças e

jovens brincavam, trabalhavam e estudavam cânticos, faziam parte do coral, de

disciplinas como latim, inglês, francês, entre outras, que possibilitavam diversificar as

práticas educativas e integrar estudo e lazer, tudo isso regido por regras e normas,

por uma rígida disciplina, conforme confirma Oliveira (2013, p.16, grifo nosso) em

suas memórias:

Cada internato tinha um diretor e a disciplina era extremamente rígida. Os pais, distantes, confiavam plenamente na forma como eram conduzidos os seus filhos. Mudança neles era vista, uma vez que novos valores iam se integrando às suas personalidades.

Observamos nas lembranças de ex-alunos que as crianças e jovens que

viviam no IBI mantinham um sentimento de igualdade, desenvolviam suas

identidades étnicas sem preconceitos, nessa convivência entre missionários norte-

americanos, professores e demais funcionários da instituição (zeladores, vaqueiros,

entre outros, e suas famílias), alunos internos (pagantes e/ou trabalhadores), não se

sentiam inferiores, viviam contentes desenvolvendo seus estudos, suas tarefas.

Podemos perceber esse contentamento na expressão revelada nas memórias da ex-

aluna, citada anteriormente, quando se mudou para o IBI:

A casa parecia uma mansão [...] ficava ao lado do colégio e era enorme. Seis quartos, três salas, uma cozinha, uma despensa e dois banheiros, sendo um com banheira [...] Eu corria ... rolava e gritava: “Agora somos ricos [...]”. E era mesmo. Não só a riqueza material [...] porém a maior

12

riqueza era a espiritual. A convivência com pessoas bem instruídas e o estudo naquele colégio encantador [...].

As casas do IBI foram projetadas pelos missionários americanos e nelas

moravam funcionários, zeladores, professores, diretores, vaqueiros, entre outros.

Assim, descrevemos um pouco sobre o sítio em que se localiza o IBI, atual IBC, cuja

extensão pode imaginar-se pela foto 01, que segue. A área do IBI, atual IBC vai até

o Rio Corrente, principal rio da cidade. Constitui-se em um sítio com uma vasta

extensão de terra, com currais, quadra de futebol, volei, entre outras.

Foto 01- Ginásio IBI – alunos em fila para a entrada.

Fonte: Acervo Profa. Sônia Paranaguá, 2014.

Observa-se a disciplina na formação da fila para a entrada nas salas de aula.

Destacamos, na foto que segue, o auditório retratado nesse período em que

ocorreram o que chamamos de práticas educativas escolares, mediadas pelas

práticas educativas cristãs, essa última representada pelas preleções (reflexões à

luz do evangelho).

Foto 02 – Auditório onde eram realizadas as festas.

13

Fonte: Acervo do IBC, 2014.

A foto destaca a simplicidade do Salão Nobre – construído em 1920 pelo Pr.

Adolf John Terry – espaço das práticas religiosas, denominadas de práticas

educativas cristãs, e das práticas pedagógicas. Esses espaços da instituição se

integravam com os demais espaços educativos, principalmente a igreja.

Voltando às memórias sobre as festas (práticas educativas), os ex-alunos, em

suas histórias, destacam a beleza e a organização delas, que são lembradas até

hoje, não só pelos alunos, mas pela comunidade da época que participou desses

eventos. Segue o depoimento, que narra sobre essas festividades, que se

destacavam por serem momentos de cultura, lazer e muita aprendizagem:

Os professores preparavam tudo com muito esmero e dedicação. Ensaios, ensaios, ensaios e mais ensaios. A cultura norte-americana inspirada nos filmes de Hollywood parecia trazer para aquela pequena comunidade toda a arte cinematográfica [...] Chegava o dia. Como ninguém possuía carros, a não ser os próprios missionários, e ficando o colégio mais ou menos um quilômetro da cidade, podíamos presenciar aquela ‘romaria’ até chegar ao auditório” (OLIVEIRA, 2013, p.19).

Desenvolvemos uma reflexão entre a memória dos protagonistas e suas

histórias, contemplando a história das práticas educativas socializadas nas

instituições confessionais em que as memórias aparecem “[...] como documentos

14

localizados na cabeça das pessoas e não nos arquivos públicos [nas] experiências

vividas interiormente [...]” (PIMENTEL; LEAL, 2003, p.13).

Os espaços das inter-relações entre os públicos – missionários/professores

norte-americanos, professores/alunos do Brasil e comunidade escolar, que

constituem as instituições confessionais de forma intrínseca, relacionam-

se/articulam-se por meio das políticas de administração/normalização entre espaços

nacional e internacional, que constituem o espaço institucional do IBI/IBC e

influenciam o espaço religioso e cultural da cidade de Corrente(PI) (NOGUEIRA,

p.14).

Neste sentido, confirmamos que a educação, “[...] como vêm mostrando

alguns trabalhos realizados nos últimos anos, está profundamente impregnada de

um ethos1 religioso” (GALVÃO; LOPEZ, 2001, p.28); portanto, a educação se

transforma em um poderoso instrumento de manutenção e/ou transformação de

condutas, no caso da educação confessional, mediada pelas práticas educativas

cristãs, observamos a manutenção de condutas com base na ética cristã.

Portanto, entre as narrativas autobiográficas representadas pela história oral,

temos a cultura escolar se apresentando “[...] articulada com os processos sociais,

econômicos e políticos, que a explicariam” (FELGUEIRAS; VIEIRA, 2010, p.19).

Consideramos, neste estudo, cultura segundo Julia (2001, p.9), como “[...] um

conjunto de normas que definem conhecimento a ensinar e condutas a inculcar, e

um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a

incorporação desses comportamentos”.

Portanto, ao analisar a história oral de vida dos sujeitos investigados,

fundamentando-nos em Le Goff (2003), entre outros, considerando que no decorrer

de suas experiências em escolas confessionais, eles construíram suas identidades

com base no multiculturalismo da escola, convivendo com práticas educativas

escolares e práticas educativas cristãs, mediadas/inculcadas pela ética cristã, que

1 Busca-se a origem etimológica da palavra ethos (grego), que significa costume, jeito de ser. Rios (2002) afirma

que o costume remete à criação cultural – não há costume na natureza. O ethos, segundo Vaz, é a casa do

homem, esse espaço enquanto espaço humano, esse espaço não é dado ao homem, mas por ele

construído,reconstruído

15

possibilitou a transmissão/desenvolvimento de condutas com base na moral, na

ética, no respeito e na solidariedade, incorporando comportamentos de igualdade e

aceitação da realidade em que viviam.

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Ao buscarmos analisar as memórias presentes nas histórias de vida dos

protagonistas que vivenciaram/construíram as práticas educativas nas instituições

confessionais, supomos conhecer seus valores, estruturas, crenças, atitudes e sua

forma de agir de modo pessoal, que constitui sua identidade, construída como fruto

da ação pedagógica e das interações sociais nos espaços em que são

desenvolvidas/socializadas as práticas educativas. Essas concepções, valores e

crenças construídas por ex-alunos vão integrar/interagir com sua formação e,

consequentemente, com suas práticas, moldando/transformando suas identidades

pessoais e em coletividade.

Os protagonistas dessas histórias confirmam que as práticas educativas do

Instituto Batista industrial, no conjunto de sua diversidade e, em especial, as

comemorações do dia 13 de maio, oportunizaram o

desenvolvimento/reconhecimento da consciência da etnia e da importância de

refletir/vivenciar os momentos da liberdade dos escravos negros na construção da

identidade pessoal dos alunos para a convivência e respeito entre os pares e suas

diferenças.

REFERÊNCIAS CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: DIEFEL, 1990. DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. FELGUEIRAS, M. L.; VIEIRA, C. E. (Eds.). Cultura escolar, migrações e cidadania. Porto: SPCE, 2010.

16

FÉLIX, L. O. História & Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: EDUFPI, 1998. GALVÃO, A. M. de O.; LOPES, E. M. T. História da Educação. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, SP: Autores Associados, SBHE, n. 1, p. 09-43, jan./jun. 2001. LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. MAGALHÃES, P. J. Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2004. MEIHY, J. C. S. B. Manual de história oral. 4. ed. São Paulo: LOYOLA, 2002. MEIHY, J. C. S. B.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto: 2010. MEIHY, J. C. S. B.; LANG, A. B. da S. G.. Revista História Oral: um auto-olhar. In: História Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral, n. 7, jun. v. 7. São Paulo: Associação Brasileira de História Oral, 2004. NOGUEIRA, T. de J. A. Instituições confessionais em Corrrente/Piauí – história e memória: práticas educativas e formação de professores. 2014. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Piauí, Teresina: EDUFPI, 2014. OLIVEIRA, M. F. de A. O crescer no Instituto Batista Correntino: uma lição de vida. Teresina: EDUFPI 2013. PIMENTEL, M. A. L.; LEAL, M. C. (Org.). História e memória da Escola Nova. São Paulo: LOYOLA, 2003. SAVIANI, D. Instituições escolares no Brasil: conceito e reconstituição histórica. In: NASCIMENTO, I. M. et al. (Orgs.). Instituições escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica. Campinas, São Paulo: Autores Associados; HISTEDBR: Sorocaba, São Paulo: UNISO; Ponta Grossa, PR: UEPG, 2007.