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MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro AMERICANAS Machado de Assis ...filha melhor do Eterno, América! G. Dias, Timb., c. III. POTIRA *** ...Os Tamoios, entre outras presas que fizeram, levaram esta índia, a qual pretendeu o capitão da empresa violar: resistiu valorosamente dizendo em língua brasílica: “Eu sou cristã e casada; não hei de fazer traição a Deus e a meu marido; bem podes matar-me e fazer de mim o que quiserdes.” Deu-se por afrontado o bárbaro, e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade. Vasc. Chr. da Companhia de Jesus, liv 3º

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MINISTÉRIO DA CULTURAFundação Biblioteca NacionalDepartamento Nacional do Livro

AMERICANASMachado de Assis

...filha melhor do Eterno, América! G. Dias, Timb., c. III.

POTIRA

***

...Os Tamoios, entre outras presas que fizeram, levaram esta índia, a qual pretendeu ocapitão da empresa violar: resistiu valorosamente dizendo em língua brasílica: “Eu soucristã e casada; não hei de fazer traição a Deus e a meu marido; bem podes matar-me efazer de mim o que quiserdes.” Deu-se por afrontado o bárbaro, e em vingança lheacabou a vida com grande crueldade.

Vasc. Chr. da Companhia de Jesus, liv 3º

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POTIRA 1

Se, poi ch’a morte il corpo le percosse,Desse almen vita alla memoria d’ella.ARIOSTO, Orl. Fur., c. XXIX, est. XXXI

I

Moça cristã das solidões antigas,Em que áurea folha reviveu teu nome?Nem o eco das matas seculares,Nem a voz das sonoras cachoeiras,O transmitiu aos séculos futuros.Assim da tarde estiva às auras frouxasTênue fumo do colmo no ar se perde;Nem de outra sorte em moribundos lábiosA humana voz expira. O horror e o sangueDa miseranda cena em que, de envoltaCo’os longos, magoadíssimos suspiros,Cristã Lucrécia, abriu tua alma o vôoPara subir às regiões celestes,Mal deixada memória aos homens lembra.Isso apenas; não mais; teu nome obscuro,Nem tua campa o brasileiro os sabe.

II

Já da férvida luta os ais e os gritosExtintos eram. Nos baixéis ligeirosOs tamoios incólumes embarcam;Ferem co’os remos as serenas ondasAté surgirem na remota aldeia.Atrás ficava, lutuosa e triste,A nascente cidade brasileira,2

Do inopinado assalto espavorida,Ao céu mandando em coro inúteis vozes.Vinha já perto rareando a noite,Alva aurora, que à vida acorda as selvas,Quando a aldeia surgiu aos olhos torvosDa expedição noturna. À praia saltamOs vencedores em tropel; transportamÀs cabanas despojos e vencidos,E, da vigília fatigados, buscamNa curva leve rede amigo sono,Exceto o chefe. Oh! esse não dormiraLongas noites, se a troco da vitóriaPrecisas fossem. Traz consigo o prêmio,O desejado prêmio. DesmaiadaConduz nos braços trêmulos a moçaQue renegou Tupã,3e as velhas crençasLavou nas águas do batismo santo.Na rede ornada de amarelas penasBrandamente a depõe. Leve tecidoDa cativa gentil as formas cobre;Veste-as de mais a sombra do crepúsculo,Sombra que a tíbia luz da alva nascente

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De todo não rompeu. Inquieto sangueNas veias ferve do índio. Os olhos luzemDe concentrada raiva triunfante.Amor talvez lhes lança um leve toqueDe ternura, ou já sôfrego desejo;Amor, como ele, aspérrimo e selvagem,Que outro não sente o herói.

III

Herói lhe chamamQuantos o hão visto no fervor da guerraMedo e morte espalhar entre os contráriosE avantajar-se nos certeiros golpesAos mais fortes da tribo. O arco e a flechaDesde a infância os meneia ousado e afoito;Cedo aprendeu nas solitárias brenhasA pleitear às feras o caminho.A força opõe à força, a astúcia à astúcia.Qual se da onça e da serpente houveraColhido as armas. Traz ao colo os dentesDos contrários vencidos. Nem dos anosO número supera o das vitórias;Tem no espaçoso rosto a flor da vida,A juventude, e goza entre os mais belosDe real primazia. A cinta e a fronteAzuis, vermelhas plumas alardeiam,Ingênuas galas do gentio inculto.

IV

Da cativa gentil cerrados olhosNão se entreabrem à luz. Morta parece.Uma só contração lhe não perturbaA paz serena do mimoso rosto.Junto dela, cruzados sobre o peitoOs braços, Anagê contempla e espera;Sôfrego espera, enquanto idéias negrasEstão a revoar-lhe em torno e a encher-lheA mente de projetos tenebrosos.Tal no cimo do velho CorcovadoPróxima tempestade engloba as nuvens.Súbito ao seio túrgido e macioAnsiosas mãos estende; inda palpitaO coração, com desusada força,Como se a vida toda ali buscasseRefúgio certo e último. ImpetuosoO vestido cristão lhe despedaça,E à luz já viva da manhã recenteContempla as nuas formas. Era acasoA síncope chegada ao termo próprio,Ou, no pejo ofendida, às mãos entranhasA desmaiada moça despertara.Potira acorda, os olhos lança em torno,Fita, vê, compreende, e inquieta buscaFugir do vencedor às mãos e ao crime...Mísera! opõe-se-lhe o irritado gesto

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Do aspérrimo guerreiro; um ai lhe sobeAngustioso e triste aos lábios trêmulos,Sobe, murmura e sufocado expira.Na rede envolve o corpo, e, desviandoDo terrível tamoio os lindos olhos,Entrecortada prece aos céus envia,E as faces banha de serenas lágrimas.

V

Longo tempo correra. Amplo silêncioReinou entre ambos. Do tamoio a frontePouco a pouco despira o torvo aspecto.Ao trabalhado espírito, revoltoDe mil sinistros pensamentos, volveBenigna calma. Tal de um rio engrossaO volume extensíssimo das águasQue vão enchendo de pavor os ecos,Vencendo no arruído o vento e o raio,E pouco a pouco atenuando as vozes,Adelgaçando as ondas, tornam mansasAo primitivo leito. Ei-lo se inclina,Para tomar nos braços a formosaPor cujo amor incendiara a aldeiaDaquelas gentes pálidas de Europa.Sente-lhe a moça as mãos, e erguendo o rosto,O rosto inda de lágrimas molhado,Do coração estas palavras solta:“— Lá entre os meus, suave e amiga morte,Ah! porque me não deste? Houvera ao menosQuem escutasse de meus lábios friosA prece derradeira; e a santa bênçãoLevaria minha alma aos pés do Eterno...Não, não te peço a vida; é tua, extingue-a;Um só alívio imploro. Não receiesEmbeber no meu sangue a ervada seta;Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possaTer em sagrado leito o último sono!”Disse, e fitando no índio ávidos olhos,Esperou. Anagê sacode a fronte,Como se lhe pesara idéia triste;Crava os olhos no chão; lentas lhe saemEstas vozes do peito.

“Oh! nunca os padresPisado houvessem estas plagas virgens!Nunca de um deus estranho as leis ignotasViessem perturbar as tribos, comoPerturba o vento as águas! Rosto a rostoOs guerreiros pelejam; matam, morrem.Ante o fulgor das armas inimigasNão descora o tamoio. Assaz lhe pulsaValor nativo e raro em peito livre.Armas, deu-lhas Tupã novas e eternasNestas matas vastíssimas. De sangueEstranhos rios hão de, ao mar correndo,Tristes novas levar à pátria deles,Primeiro que o tamoio a frente incline

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Aos inimigos peitos. Outra força,Outra e maior nos move a guerra crua;São eles, são os padres. Esses mostramCheia de riso a boca e o mel nas vozes,Sereno o rosto e as brancas mãos inermes;Ordens não trazem de cacique estranho,Tudo nos levam, tudo. Uma por umaAs filhas de Tupã correm trás eles,Com elas os guerreiros, e com todosA nossa antiga fé. Vem perto o diaEm que, na imensidão destes desertos,Há de ao frio luar das longas noitesO pajé suspirar sozinho e tristeSem povo nem Tupã!”

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VI

Silenciosas Lágrimas lhe espremeu dos olhos negros

Esta lembrança de futuros males.“— Escuta!” diz Potira. O índio estendeimperioso as mãos e assim prossegue:“— Também com eles foste, e foi contigoDa minha vida a flor! Teu pai mandara,E com ele mandou Tupã que eu fosseTeu esposo; vedou-mo a voz dos padres,Que me perdeu, levando-te consigo.Não morri; vivi só para esta afronta;Vivi para esta insólita tristezaDe maldizer teu nome e as graças tuas,Chorar-te a vida e desejar-te a morte.Ai! nos rudes combates em que a triboRega de sangue o chão da virgem terraOu tinge a flor do mar, nunca a meu ladoTeu nobre vulto esteve. A aldeia toda,Mais que o teu coração, ficou deserta.Duas vezes, mimosas rebentaramDo lacrimoso cajueiro as flores,Desde o dia funesto em que deixasteA cabana paterna. O extremo lumeExpirou de teu pai nos olhos tristes;Piedosa chama consumiu seus restosE a aldeia toda o lastimou com prantos.Não de todo se foi da nossa vida;Parte ficou para sentir teus males.Antes que o último sol à melindrosaFlor do maracujá cerrasse as folhasUm sonho tive. Merencório vulto,Triste como uma fronte de vencido,Cor da lua os cabelos venerandos,O vulto de teu pai”: ‘Guerreiro’ (disse),‘corre à vizinha habitação dos brancos,Vai, arranca Potira à lei funestaDos pálidos pajés; Tupã to ordena;Nos braços traze a fugitiva corça;Vincula o teu destino ao dela; é tua* .’“— Impossível! Que vale um vago sonho?Sou esposa e cristã. Ímpio, respeitaO amor que Deus protege e santifica:Mata-me; a minha vida te pertence:Ou, se te pesa derramar o sangueDaquela a quem amaste, e por quem fosteLançar entre os cristãos a dor e o susto,Faze-me escrava; servirei contenteEnquanto a vida alumiar meus olhos.Toma, entrego-te o sangue e a liberdade;Ordena ou fere. Tua esposa, nunca!”Calou-se, e reclinada sobre a rede,Potira murmurava ignota prece,Olhos fitos no próximo arvoredo,Olhos não ermos de profunda mágoa.

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VII

Ó Cristo, em que alma penetrou teu nomeQue lhe não desse o bálsamo da vida?Pelo vento dos séculos levado,Vidente e cego, o máximo dos seres,Que fora do homem nesta escassa terra,Se ao mistério da vida lhe não desses,Ó Cristo, a eterna chave da esperança?Filosofia estóica, árdua virtude,Criação de homem, tudo passa e expira.Tu só, filha de Deus, palavra amiga,Tu, suavíssima voz da eternidade,Tu perduras, tu vales, tu confortas.Nesta sonho iriado de outros sonhos,Vários como as feições da natureza,Neste confusa agitação da vida,Que alma transpõe a derradeira idadeFarta de algumas passageiras glórias?Torvo é o ar do sepulcro; ali não viçamEssas cansadas rosas da existênciaQue às vezes tantas lágrimas nos custam,E tantas mais antes do ocaso expiram.Flor do Evangelho, núncia de alvos dias,Esperança cristã, não te há murchadoO vento árido e seco; és tu viçosaQuando as da terra lânguidas inclinamO seio, e a vida lentamente exalam.Esta a consolação última e doceDa esposa indiana foi. Cativa ou morta,Antevia a celeste recompensaQue aos humildes reserva a mão do Eterno.Naquele rude coração das brenhasA semente evangélica brotara.

VIII

Das duas condições deu-lhe o guerreiroA pior — fê-la escrava; e ei-la apareceDa sua aldeia aos olhos espantadosQual fora em dias de melhor ventura.Despida vem das roupas que lhe há postoSobre as polidas formas uso estranho,Não sabido jamais daqueles povosQue a natureza ingênua doutrinara.Vence na gentileza às mais da tribo,E tem de sobra um sentimento novo,Pudor de esposa e de cristã — realceQue ao índio acende a natural volúpia.Simulada alegria lhe descerraOs lábios; riso à flor, escasso e dúbio,Que mal lhe encobre as vergonhosas mágoas.À voz de seu senhor acorre humilde;Não a assusta o labor; nem dos perigosConhece os medos. Nas ruidosas festas,Quando ferve o cauim,4 e o ar atroaPocema de alegria ou de combate,

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Como que se lhe fecha a flor do rosto.Já lhe descai então no seio opressoA graciosa fronte; os olhos fecha,E ao céu voltando o pensamento puro,Menos por si, que pelos outros, pede.Nem só o ardor da fé lhe abrasa o peito;Lacera-lho também agra saudade;Chora a separação do amado esposo,Que, ou cedo a esquece, ou solitário geme.Se, alguma vez, fugindo a estranhos olhos,Não já cruéis, mas cobiçosos dela,Entra desatinada o bosque antigo,Co’o doce nome acorda ao longe os ecos,E a dor expande em lôbregos soluços,Farta de amor e pródiga de vida,Ouve-as a selva, e não lhe entende as mágoas.Outras vezes pisando a ruiva areiaDas praias, ou galgando a penediaCujos pés orla o mar de nívea espuma,As ondas murmurantes interroga:Conta ao vento da noite as dores suas;Mas... fiéis ao destino e à lei que as rege,As preguiçosas ondas vão caminho,Crespas do vento que sussurra e passa.

IX

Quando, ao sol da manhã, partem às vezes,Com seus arcos, os destros caçadores,E alguns da rija estaca desatandoOs nós de embira às rápidas igaras,À pesca vão pelas ribeiras próximas,Das esposas, das mães que os lares velam,Grata alegria os corações inunda,Menos o dela, que suspira e geme,E não aguarda doce esposo ou filho.Triste os vê na partida e no regresso,E nessa melancólica postura,Semelha a acácia langue e esmorecida,Que já de orvalho ou sol não pede os beijos.As outras... — Raro em lábios de felizesAlheias mágoas travam. Não se pejamDe seus olhos azuis e alegres penasOs saís sobre as árvores pousados,Se ao perto voa na campina verdeDe anuns lutuoso bando; nem os trilosDas andorinhas interrompe a notaQue a juriti suspira. — As outras folgamPelo arraial dispersas; vão-se à terraArrancar as raízes nutritivas,E fazem os preparos do banqueteA que hão de vir mais tarde os destemidosSenhores do arco, alegres vencedoresDe quanto vive na água e na floresta.Da cativa nenhuma inquire as mágoas.Contudo, algumas vezes, curiosasVirgens lhe dizem, apiedando o gesto:

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— “Pois que à taba voltaste, em que teus olhosPrimeiro viram luz, que mágoa fundaLhes destila tão longo e amargo pranto,Amargo mais do que esse que não buscaRecatado silêncio?” — E às doces vozesA cristã desterrada assim responde:— “Potira é como aquela flor que choraLágrimas de alvo leite, se do galhoMão cruel a cortou. Oh! não permitaO céu que ímpia fortuna vos separeDaquele que escolherdes. Dor é essaMaior que um pobre coração de esposa.Esperanças... Deixei-as nessas águasQue me trouxeram, cúmplices do crime,À taba de Tupã, não alumiadaDa palavra celeste. Algumas vezes,Raras, alveja em minha noite escuraNão sei que tíbia aurora, e penso: AcasoO sol que vem me guarda um raio amigo,Que há de acender nestes cansados olhosVentura que já foi. As asas colheGuanumbi, e o aguçado bico embebeNo tronco, onde repousa adormecidoAté que volte uma estação de flores..5

Ventura imita o guanumbi dos campos:Acordará co’as flores de outros dias.Doce ilusão que rápido se escoa,Como o pingo de orvalho mal fechadoNuma folha que o vento agita e entorna.”E as virgens dizem, apiedando o gesto:— “Potira é como aquela flor que choraLágrimas de alvo leite, se do galhoMão cruel a cortou!”

X

Era chegadoO fatal prazo, o desenlace triste.Tudo morre — a tristeza como o gozo;Rosas de amor ou lírios de saudade,Tarde ou cedo os esfolha a mão do tempo.Costeando as longas praias, ou transpondoExtensos vales e montanhas, corremMensageiros que às tabas mais vizinhasVão convidar à festa as gentes todas.Era a festa da morte. Índio guerreiro,Três luas há cativo, o instante aguardaEm que às mãos de inimigos vencedores,Caia expirante, e os vínculos rompendoDa vida, a alma remonte além dos Andes.Corre de boca em boca e de eco em ecoA alegre nova. Vem descendo os montes,Ou abicando às povoadas praiasGente da raça ilustre. A onda imensaPelo arraial se estende pressurosa.De quantas cores natureza fértilTinge as próprias feições, copiam eles

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Engraçadas, vistosas louçanias.Vários na idade são, vários no aspecto,Todos iguais e irmãos no herdado brio.Dado o amplexo de amigo, acompanhadoDe suspiros e pêsames sincerosPelas fadigas da viagem longa,Rompem ruidosas danças. Ao tamoioDeu o Ibaque os segredos da poesia;Cantos festivos, moduladas vozes,Enchem os ares, celebrando a festaDo sacrifício próximo. Ah! não cubraVéu de nojo ou tristeza o rosto aos filhosDestes polidos tempos! Rudes eramAqueles homens de ásperos costumes,Que ante o sangue de irmãos folgavam livres,E nós, soberbos filhos de outra idade,Que a voz falamos da razão severaE na luz nos banhamos do Calvário,Que somos nós mais que eles? Raça tristeDe Cains, raça eterna...

XI

Os cantos cessam.Calou-se o maracá. As roucas vozesDos férvidos guerreiros já reclamamO brutal sacrifício. Às mãos das servasA taça do cauim passara exausta.Inquieto aguarda o prisioneiro a morte.Da nação guaianás nos rudes camposNasceu. Nos campos da saudosa pátriaIndustriosa mão não sabe aindaAlevantar as tabas. Cova fundaDa terra, mãe comum6, no seio aberta,Os acolhe e protege. O chão lhes forraA pele do tapir; contínua chamaLhes supre a luz do sol. É uso antigoDo guaianás que chega a extrema idade,Ou de mortal doença acometido,Não expirar aos olhos de outros homens;Vivo o guardam no bojo da igaçaba,E à fria terra o dão, como se foraPasto melhor (melhor!) aos frios vermes.Do almo, doce licor que extrai das floresMãe do mel, iramaia, larga cópiaPelos robustos membros lhe coaramSeis anciãs da tribo. Rubras penasNa vasta fronte e nos nervosos braçosGarridamente o enfeitam. Longa e forteA muçurana os rins lhe cinge e aperta.Entra na praça o fúnebre cortejo.Olhar tranqüilo, inda que fero, espalhaO indomado cativo. Em pé, defronte,Grave, silencioso, ao sol mostrandoDe feias cores e vistosas plumasSingular harmonia, aguarda a vítima

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O executor. Nas mãos lhe pende a enormeTagapema enfeitada, arma certeira,Arma triunfal de morte e de extermínio.Medem-se rosto a rosto os dois contráriosC’um sorriso feroz. Confusas vozesEnchem súbito o espaço. Não lhe é dadoAo vencido guerreiro haver a morteSilenciosa e triste em que se passaDa curva rede à fria sepultura.Meigas aves que vão de um clima a outroAbrem placidamente as asas leves,Não tu, guerreiro, que encaraste a morte,Tu combate! Vencido e vencedoresDerradeiros escárnios se arremessam;Gritos, injúrias, convulsões de raiva,Vivo clamor acorda os longos ecosDas penedias próximas. A clavaDo executor girou no ar três vezesE de leve caiu na grossa espáduaDo arquejante cativo. Já na boca,Que o desprezo e o furor num riso entreabrem,Orla de espuma alveja. Avança, corre,Estaca... Não lhe dá mais amplo espaçoA muçurana, cujas pontas tiramDois mancebos robustos. Nas cavernasDo longo peito lhe murmura o ódio,Surdo, como o rumor da terra inquieta,Pejada de vulcões. Os lábios morde,E, como derradeira injúria, à faceDo executor lhe cospe espuma e sangue.Não vibra o arco mais veloz o tiro,Nem mais segura no aterrado cervoFeroz sucuriúba os nós enrosca,Do que a pesada, enorme tagapemaA cabeça de um golpe lhe esmigalha.Cai fulminada a vítima na terra,E alegre o povo longamente aplaude.

XII

Na voz universal perdeu-se um gritoDe piedade e terror: tão fundo entraraNaquela alma roubada à noite escuraRaio de sol cristão! Potira foge,Pelos bosques atônita se entranhaE pára à margem de um pequeno rio;Pousa na relva os trêmulos joelhosE nas mimosas mãos esconde o rosto.Não de lágrimas era aquele sítioOu só de doces lágrimas choradasDe olhos que amor venceu: — macia relva,Leito de sesta a amores fugitivos.Da verde, rara abóbada de folhasTépida e doce a luz coava a frouxoDo sol, que além das árvores tranqüilo,Metade da jornada ia transpondo.Longe era ainda a hora melancólica

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Em que a jurema cerra a miúda folha,E o lume azul o pirilampo acende.De pé, a um velho tronco descoroadoDa copada ramagem, resto apenas,Vestígio do tufão, a indiana moçaLanguidamente encosta o esbelto corpo.Neste ameno recesso tudo é triste,Porque é alegre tudo. Não mui longeUm desfolhado ipê conserva e guardaFlores que lhe ficaram de outro estio,Como esperança de folhagem nova,Flores que a desventura lhe há negado,A ela, alma esquecida nesta terra,Que nada espera da estação vindoura.Olha, e de inveja o coração lhe estala;Pelo tronco das árvores se enroscamParasitas, esposas do arvoredo,Mais fiéis não, mais venturosas que ela.Morrer? Descanso fora as mágoas suas,Mais que descanso, perdurável gozo,Que a nossa eterna pátria aos infelizesDeste desterro, guarda alvas capelasDe não-murchandas e cheirosas flores.Tal lhe falava no íntimo do peitoDesespero cruel. Alguns instantesPela cansada mente lhe vagaramDe voluntária, abreviada morteLutuosas idéias. Mal compreendeEsses desmaios da criatura humanaQuem não sentiu no coração rasgadoAbatimento e enojo; ou, do mais que isto,Esse contraste imenso e irreparávelDo amor interno e a solidão da vida.Rápido espaço foi. Pronto lhe volveDoce resignação, cristã virtude,Que desafia e que assoberba os males.As débeis mãos levanta. Já dos lábiosSolta nas asas de oração singelaLástimas suas... Na folhagem secaOuve de cautos pés rumor sumidoVolve a cabeça...

XIII

Trêmulo, calado,Anagê crava nela os olhos turvosDos vapores da festa. As mãos inermesLhe pendem; mas o peito — ó mísera! — esse,Esse de mal contido amor transborda.Longo instante passou. Ao fim: “DeixasteA festa nossa (o bárbaro murmura);Misteriosa vieste. Dos guerreirosNenhum te viu; mas eu senti teus passos,E vim contigo ao ermo. Ave mesquinha,Inútil foges; gavião te espreita7 ,Minha te fez Tupã.” Em pé, sorrindoEscutava Potira a voz severa

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De Anagê. Breve espaço abria entre ambosAlcatifado chão. A fatal horaChegara ao fim? Não o prescruta a moça;Tudo aceita das mãos do seu destino,Tudo, exceto... No próximo arvoredoOuve de uma ave o pio melancólico;Era a voz de seu pai? a voz do esposo?De ambos talvez. No ânimo da escravaRestos havia dessa crença antigaAntiga e sempre nova: o peito humanoRaro de obscuros elos se liberta.

XIV

— “ Nasceste para ser senhora e dona:Anagê não te veda a liberdade;Quebra tu mesma os nós do cativeiro.Faze-te esposa. Vem coroar meus dias;Vem, tudo esqueço. A fronte do guerreiro,Adornada por ti, será mais nobre;Mais forte o braço em que pousar teu rosto.Sou menos belo que esse esposo ausente?Rudes feições compensa amor sobejo.Vem, ser-me-ás companheira nos combates,E, se inimiga frecha entrar meu seio,Morrerei a teus pés. Tens medo aos padres?Outro destino escolhe. Cauteloso,Tece o japu nos elevados ramosDas elevadas árvores o ninho,Onde o inimigo lhe não roube a prole.Ninho há na serra ao nosso amor propício;Viveremos ali. Troveje em baixoA inúbia convidando à guerra os povos;Leva de arcos transforme estas aldeiasEm campos de combate — ou já dispersasAs fugitivas tribos vão buscandoLonges sertões para chorar seus males,Viveremos ali. Talvez um diaQuando eu passar à misteriosa estânciaDas delícias eternas, me pergunteMeu velho pai: — ‘Teu arco de guerreiroEm que deserta praia o abandonaste?’*Salvar-me-á teu amor do eterno pejo.”

XV

Doce era a voz e triste. Rasos d’águaOs olhos. Foi desmaio de tristezaQue o gesto dissipou da esquiva moça.Volve ao Tamoio vingativa idéia.— “Minha” (diz ele) “ou morres!” EstremecePotira, como quando a brisa passaAo de leve na folha da palmeira,E logo fria ao bárbaro responde:— “Jaz esquecida em nossas velhas tabasO respeito da esposa? Acaso é dignaDo sangue do Tamoio esta ameaça?

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Que desvalia aos olhos teus me coube,Se a outro me ligaram natureza,Religião, destino? A liberdadeNas tuas mãos depus; com ela a vida.É tudo, quase tudo. Honra de esposa,Oh! essa deves respeitá-la! Vai-te!Ceva teu ódio nas sangrentas carnesDo prostrado cativo. Aqui chorando,Na soidão destes bosques mal fechados,Às maviosas brisas meus suspirosEntregarei; levá-los-ão nas asasLá onde geme solitário o esposo.Vai-te!” E as mimosas mãos colhendo ao rosto,Alçou a Deus o pensamento amante,Como a centelha viva que a fogueiraExtinta aos ares sobe. Imóvel, muda,Longo tempo ficou. Diante dela,Como ela imóvel, o tamoio estava.Amor, ódio, ciúme, orgulho, pena,Opostos sentimentos se combatemNo atribulado peito. GenerosoEra, mas não domado amor lhe davaInspiração de crimes. Não mais prontoCai sobre a triste corça fugitivaJaguar de longa fome esporeado,Do que ele as mãos lançou ao colo e à fronteDa mísera Potira. Ai! não, não digaA minha voz o lamentoso instanteEm que ela, ao seu algoz volvendo ansiosaTurvos olhos: “Perdôo-te!” murmura,Os lábios cerra e imaculada expira!

XVI

Estro maior teu nome obscuro cante,Moça cristã das solidões antigas,E eterno o cinja de virentes flores,Que as mereces. De não sabido bardoEstes gemidos são8 . Lânguidas brisasNo taquaral à noite sussurrando,Ou enrugando o mole dorso às vagas,Não tem a voz com que domina os ecosDespenhada cachoeira. São, contudo,Mas que débeis e tristes, no concertoDa orquestra universal cabidas notas.Alveja a nebulosa entre as estrelas,E abre ao pé do rosal a flor da murta.

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NIANI

(HISTÓRIA GUAICURU)

Desde então cobriu-se Nanine de uma mortal melancolia, sendo seus olhossempre chorosos. Assim se passaram três meses, quando um dia, estando deitada na suarústica cama, lhe deram a notícia que seu desleal marido se tinha casado com uma raparigade menor esfera. Senta-se então Nanine na cama, como arrebatada, chama para junto desi um pequeno índio que era seu cativo, e diz-lhe na presença de vários antecris: “Ésmeu cativo; dou-te a liberdade, com a condição de que te chamarás toda* a vidaPanenioxe.” Então seus olhos deixaram correr dilúvios de lágrimas pelas suas tristesfaces, que ela de envergonhada quis ocultar, mas o amor ofendido não o permitia. Pareceque esta violenta contenda de duas poderosas paixões lhe motivou uma febre ardente,com a qual ao outro dia perdeu a vida.F. RODRIGUES PRADO, Hist. dos Índios Cavaleiros.

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NIANI......que piagneVedova, sola. DANTE, Purgat. VI.

I

Contam-se histórias antigasPelas terras de além-mar,

De moças e de princesas,Que amor fazia matar.

Mas amor que entranha n’almaE a vida soe acabar,

Amor é de todo o clima,Bem como a luz, como o ar.

Morrem dele nas florestasAonde habita o jaguar,

Nas margens dos grandes riosQue levam troncos ao mar.

Agora direi um casoDe muito penalizar,

Tão triste como os que contamPelas terras de além-mar.

II

Cabana que esteira cobreDe junco trançado a mão,

Que agitação vai por ela!Que ledas horas lhe vão!

Panenioxe é guerreiroDa velha, dura nação,9 ,

Caiavaba há já sentidoA sua lança e facão10.

Vem de longe, chega à portaDo afamado capitão;

Deixa a lança e o cavalo,Entra com seu coração.

A noiva que ele lhe guardaMoça é de nobre feição,

Airosa como ágil corçaQue corre pelo sertão.

Amores eram nascidosNaquela tenra estação,

Em que a flor que há de ser florInda se fecha em botão.

Muitos agora lhe querem,

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E muitos que fortes são;Niani ao melhor deles

Não dera o seu coração.11

Casá-los agora, é tempo;Casá-los, nobre ancião!

Limpo sangue tem o noivo,Que é filho de capitão.12

III

“— Traze a minha lança, escravo,Que tanto peito abateu;

Traze aqui o meu cavaloQue largos campos correu.”

“— Lança tens e tens cavaloQue meu velho pai te deu;

Mas aonde te vais agoraOnde vais* , esposo meu?”

“— Vou-me à caça, junto à covaOnde a onça se meteu...”

“ — Montada no meu cavaloVou contido, esposo meu.”

“— Vou-me às ribas do Escopil,Que a minha lança varreu...”

“— Irei pelejar na guerra,A teu lado, esposo meu.”

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“— Fica-te aí na cabanaOnde o meu amor nasceu.”

“— Melhor não haver nascidoSe já de todo morreu.”

E uma lágrima — a primeiraDe muitas que ela verteu —

Pela face cobreadaLenta, lenta lhe correu.

Enxugá-la, não a enxugaO esposo que já perdeu,

Que ele no chão fita os olhos,Como que a voz lhe morreu.

Traz o escravo o seu cavaloQue o velho sogro lhe deu;

Traz-lhe mais a sua lançaQue tanto peito abateu.

Então, recobrando a alma,Que o remorso esmoreceu,

Com esta dura palavraÀ esposa lhe respondeu:

“— A bocaiúva três vezesNo tronco amadureceu,13

Desde o dia em que o guerreiroSua esposa recebeu.”

Três vezes! Amor sobejoNossa vida toda encheu.

Fastio me entrou no seio,Fastio que me perdeu.”

E pulando no cavalo,Sumiu-se... despareceu...

Pobre moça sem marido,Chora o amor que lhe morreu!

IV

Leva o Paraguai as águas,Leva-as no mesmo correr,

E as aves descem ao campoComo usavam de descer.

Tenras flores, que outro tempoCostumavam de nascer,

Nascem; vivem de igual vida;Morrem do mesmo morrer.

Niani, pobre viúva,Viúva sem bem o ser,

Tanta lágrima chorada

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Já te não pode valer.

Olhos que amor desmaiaraDe um desmaiar que é viver,

O choro empana-os agora,Como que vão fenecer.

Corpo que fora robustoNo seu cavalo a correr,

De contínua dor quebradoMal se pode já suster.

Colar de prata não usa,Como usava de trazer;

Pulseiras de finas contasTodas as veio a romper.14

Que ela, se nada há mudadoDaquele eterno viver,

Com que a natureza sabeRenascer, permanecer.

Toda é outra; a alma lhe morre,Mas de um contínuo morrer,

E não há mágoa mais tristeDe quantas podem doer.

Os que outrora a desejavam,Antes dela mal haver,

Vendo que chora e padece,Rindo, se põem a dizer:

“— Remador vai na canoa,Canoa vai a descer...

Piranha espiou do fundoPiranha, que o vai comer.

Ninguém se fie da brasaQue os olhos vêem arder,

Sereno que cai de noiteHá de fazê-la morrer.

Panenioxe, Panenioxe,Não lhe sabias querer.

Quem te pagara esse golpeQue lhe vieste fazer!”

V

Um dia — era sobre tarde,Ia-se o sol a afundar;

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Calumbi cerrava as folhasPara melhor as guardar.

Vem cavaleiro de longeE à porta vai apear.

Traz o rosto carregado,Como a noite sem luar.

Chega-se à pobre da moçaE assim começa a falar:

“— Guaicuru doe-lhe no peitotristeza de envergonhar.

Esposo que te há fugidoHoje se vai casar;

Noiva não é de alto sangue,Porém de sangue vulgar.”

Ergue-se a moça de um pulo,Arrebatada, e no olhar

Rebenta-lhe uma faíscaComo de luz a expirar.

Menino escravo que tinhaAcerta de ali passar;

Niani atentando neleChama-o para o seu lugar.

“— Cativo és tu: serás livre,Mas vais o nome trocar;

Nome avesso te puseram...Panenioxe hás de ficar.”

Pela face cobreadaDesce, desce com vagar

Uma lágrima: era a últimaQue lhe restava chorar.

Longo tempo ali ficara,Sem se mover nem falar;

Os que a vêem naquela mágoaNem ousam de a consolar.

Depois um longo suspiro,E ia a moça a expirar...

O sol de todo morria E enegrecia-se o ar.

Pintam-na de vivas cores,E lhe lançam um colar;15

Em fina esteira de juncoLogo a vão amortalhar.

O triste pai suspirandoNos braços a vai tomar,

Deita-a sobre o seu cavaloE a leva para enterrar.

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Na terra em que dorme agoraJusto lhe era descansar,

Que pagou fora da vidaCom muito e muito penar.

Que assim se morre de amoresAonde habita o jaguar,

Como as princesas morriamPelas terras de além-mar.

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A CRISTÃ-NOVA

...essa mesma foi levadacativa para uma terra estranha.

NAHUM, cap. III, v. 10

PARTE I

I

Olhos fitos no céu, sentado à porta,O velho pai estava. Um luar frouxoVinha beijar-lhe a veneranda barbaAlva e longa, que o peito lhe cobria,Como a névoa na encosta da montanhaAo destoucar da aurora. Alta ia a noite,E silenciosa: a praia era deserta,Ouvia-se o bater pausado e longoDa sonolenta vaga — único e tristeSom que a mudez quebrava à natureza.

II

Assim talvez nas solidões sombriasDa velha Palestina

Um profeta no espírito volveraAs desgraças da pátria. Quão remotaAquela de seus pais sagrada terra,Quão diferente desta em que há vividoOs seus dias melhores! Vago e doce,Este luar não alumia os serrosEstéreis, nem as últimas ruínas,Nem as ermas planícies, nem aqueleMorno silêncio da região que foraE que a história de todo amortalhara.Ó torrentes antigas! águas santasDe Cédron! Já talvez o sol que passa,E vê nascer e vê morrer as flores,Todas no leito vos secou,16 enquantoEstas murmuram plácidas e cheias,E vão contando às deleitosas praiasEsperanças futuras. Longo e longo

O devolver dos séculosSerá, primeiro que a memória do homem

Teça a mortalha friaDa região que inda tinge o albor da aurora.

III

Talvez, talvez no espírito fechadoDo ancião vagueavam lentamenteEstas idéias tristes. Junto à praiaEra a austera mansão, donde se viaDesenrolarem-se as serenas vagas

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Do nosso golfo azul. Não a enfeitavamAs galas da opulência, nem os olhosEntristecia co’o medonho aspectoDa miséria; não pródiga nem surdaA fortuna lhe fora, mas aquelaMediana sóbria, que os desejosContenta do filósofo, lhe haviaDourado os tetos. Guanabara ainda

Não era a flor abertaDa nossa idade, era botão apenas,Que rompia do hastil, nascido à beiraDe suas ondas mansas. Simple e rude,Ia brotando a juvenil cidade,Nestas incultas terras, que a lembrançaRecordava talvez do antigo povo,E o guau alegre, e as ríspidas pelejas,Toda essa vida que morreu.

IV

SentadaAos pés do velho estava a amada filha,Bela como a açucena dos Cantares,Como a rosa dos campos. A cabeçaNos joelhos do pai reclina a moça,E deixa resvalar o pensamentoRio abaixo das longas esperançasE namorados sonhos. Negros olhos

Por entre os mal fechadosCílios estende à serra que recortaAo longe o céu. Morena é a face lindaE levemente pálida. Mais bela,Nem mais suave era a formosa RuthAnte o rico Boaz, do que essa virgem,Flor que Israel brotou do antigo tronco,Corada ao sol da juvenil América.

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V

Mudos viam correr aquelas horasDa noite, os dois: ele voltando o rostoAo passado, ela os olhos ao futuro.Cansam-lhe enfim ao pensamento as asasDe ir voando, através da espessa treva,Frouxas as colhe, e desce ao campo exíguoDa realidade. A delicada virgemPrimeiro volve a si; os lindos dedosCorre-lhe ao longo da nevada barba,E — “Pai amigo, que pensar vos levaTão longe a alma?” Estemecendo o velho:— “Curiosa! — lhe disse —, o pensamentoE como as aves passageiras: voaA buscar melhor clima. — Oposto rumoIas tu, alma em flor, aberta apenas,Tão longe ainda do calor da sesta,Tão remota da noite... Uma esperançaTe sorria talvez? Talvez, quem sabe,Uns namorados olhos que me roubem,Que te levem... Não córes* , filha minha!Esquecimento, não; lembrança ao menosFicar-te-á do paterno afeto; e um dia,Quando eu na terra descansar meus ossos,Haverás doce bálsamo no seioDa afeição juvenil... Sim; não te acuso;Ama: é a lei da natureza, eterna!Ama: um homem será da nossa raça...”

VI

Estas palavras tais ouvindo a moça,Turbada os olhos descaiu na terra,E algum tempo ficou calada e triste,Como no azul do céu o astro da noite,Se uma nuvem lhe empana a meio a face.Súbito a voz e o rosto alevantando,Com dissimulação — pecado embora,Mas inocente: — “Olhai, a noite é linda!O vento encrespa molemente as ondas,E o céu é todo azul e todo estrelas!Formosa, oh! quão formosa a terra minha!Dizei: além desses compridos serros,Além daquele mar, à orla de outros,Outras como esta vivem?”

VII

Fresca e puraEra-lhe a voz, voz d’alma que sabiaEntrar no coração paterno. A fronteInclina o velho sobre o rosto amadoDe Ângela. — Na cabeça ósculo santoImprime à filha; e suspirando, os olhos

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Melancolicamente ao ar levanta,Desce-os e assim murmura:

“Vaso é digno de ti, lírio dos vales,Terra solene e bela. A naturezaAqui pomposa, compassiva e grande,No regaço recebe a alma que choraE o coração que túmido suspira.Contudo, a sombra pesarosa e erranteDo povo que acabou pranteia ainda

Ao longo das areias,Onde o mar bate, ou no cerrado bosqueInda povoado das relíquias suas,Que o nome de Tupã confessar podemNo próprio templo augusto. Última e forteConsolação é esta do vencidoQue viu tudo perder-se no passado,E único salva do naufrágio imensoO seu Deus. Pátria não. Uma há na terraQue eu nunca vi... Hoje é ruína tudo,E viuvez e morte. Um tempo, entanto,Bela e forte ela foi; mas longe, longeOs dias vão de fortaleza e glóriaEscoados de todo como as águasQue não volvem jamais. Óleo que a unge,Finas telas que a vestem, ataviosDe ouro e prata que o colo e os braços lhe ornam,E a flor de trigo e mel de que se nutre,Sonhos, são sonhos do profeta.17 É mortaJerusalém! Oh! quem lhe dera os diasDa passada grandeza, quando a plantaDa senhora das gentes sobre o peitoPousava dos vencidos, quando o nomeDo que há salvo Israel, Moisés...”

“— Não! Cristo,Filho de Deus! Só ele há salvo os homens!”Isto dizendo, a delicada virgemAs mãos postas ergueu. Uma palavraNão disse mais; no coração, entanto,Murmurava uma prece silenciosa,Ardente e viva, como a fé que a anima

Ou como a luz da alâmpadaA que não faltou óleo.

VIII

TaciturnoEsteve longo tempo o ancião. AquelaAlma infeliz nem toda era de CristoNem toda de Moisés; ouvia atentoA palavra da Lei, como nos diasDo eleito povo; mas a doce notaDo Evangelho não raro lhe batiaNo alvoroçado peitoSoleníssima e pura... DescambavaNo entanto a lua. A noite era mais linda,E mais augusta a solidão. Na alcova

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Entre a pálida moça. Da paredeUm Cristo pende; ela os joelhos dobraOs dedos cruza e reza — não serena,Nem alegre também, como costuma,Mas a tremer-lhe nos formosos olhosUma lágrima.

IX

A lâmpada acendidaSobre a mesa do velho, as largas folhasAlumia de um livro. O máximo eraDos livros todos. A escolhida laudaEra a do canto dos cativos que iamPela ribas do Eufrates, relembrandoAs desgraças da pátria. A sós, com eles,Suspira o velho aquele salmo antigo:

Junto os rios da terra amaldiçoadaDe Babilônia, um dia nos sentamos,Com saudades de Sião amada.

As harpas nos salgueiros penduramos,E ao relembrarmos os extintos diasAs lágrimas dos olhos desatamos.

Os que nos davam cruas agoniasDe cativeiro, ali nos perguntavamPelas nossas antigas harmonias.

E dizíamos nós aos que falavam:Como em terra de exílio amargo e duroCantar os hinos que ao Senhor louvavam?...

Jerusalém, se inda num sol futuro,Eu desviar de ti meu pensamentoE teu nome entregar a olvido escuro,

A minha destra a frio esquecimentoVotada seja; apegue-se à gargantaEsta língua infiel, se um só momento

Me não lembrar de ti, se a grande e santaJerusalém não for minha alegriaMelhor no meio de miséria tanta.

Oh! lembra-lhes, Senhor, aquele diaDa abatida Sião, lembra-lhos aos durosFilhos de Edom, e à voz que ali dizia:*

Arruinai-a, arruinai-a; os murosArrasemo-los todos; só lhe basteUm montão de destroços mal-seguros.

Filha de Babilônia, que pecaste,Abençoado o que se houver contigoCom a mesma opressão que nos mostraste!

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Abençoado o bárbaro inimigoQue os tenros filhos teus às mãos tomando,Os for, por teu justíssimo castigo,Contra um duro penedo esmigalhando!

PARTE II

I

Era naquela doce e amável horaEm que vem branqueando a alva celeste,Quando parece que remoça a vidaE toda se espreguiça a natureza.Alva neblina que espalhara a noiteFrouxamente nos ares se dissolve,

Como de uns olhos tristesFoge co’o tempo a já ligeira sombraDe consoladas mágoas. Vida é tudo,E pompa e graça natural da terra,

Mas que não seja no ermo,Onde seus olhos rútilos espraiaLivres a aurora, sem tocar vestígiosDe obras caducas do homem, onde as águasDo rio bebe a fugitiva corça,Vivo aroma nos ares se difunde,E aves, e aves de infinitas coresVoando vão e revoando tornam,Inda senhoras da amplidão que é sua,Donde as há de fugir o homem um diaQuando a agreste soidão entrar o passoCriador que derruba. Já de todoNado era o sol; e à viva luz que inundaEstes meus pátrios morros e estas praias,

Sorrindo a terra moçaNoiva parece que o virgíneo seioEntrega ao beijo nupcial do amado.E há de os fúnebres véus lançar a morteNa verdura do campo? A naturezaA nota vibrará da extrema angústiaNeste festivo cântico de graçasAo sol que nasce, ao Criador que o envia,Como renovação de juventude?

II

Coava o sol pela miúda e finaGelosia da alcova em que se aprestaA recente cristã. Singelas roupasTraja da ingênua cor que a naturezaPintou nas plumas que primeiro brotaO seu pátrio guará. Vínculo frouxoMal lhe segura a luzidia trança,

Como ao desdém lançadaSobre a espádua gentil. Jóia nenhuma,

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Mais que seus olhos meigos, e essa doceModéstia natural, encanto, enlevo,Casta flor que aborrece os mimos do horto,E ama livre nascer no campo, à larga,Rústica, mas formosa. Não lhe ensombramAs tristezas da véspera o semblante,Nem da secreta lágrima na faceFicou vestígio. — Descuidosa e alegre,Ri-se, murmura uma cantiga, ou pensa,E repete baixinho um nome... Oh! se eleEspreitá-la pudesse ali risonha,A sós consigo, entre o seu Cristo e as floresColhidas ao tombar da extinta noite,E vicejantes inda!

III

De repente,Aos ouvidos da moça enamoradaChega um surdo rumor de soltas vozes,Que ora crescendo vai, ora se apaga,Estranho, desusado. Eram... São eles,Os franceses, que vêm de longes praiasA cobiçar a pérola mimosa,Niterói, na alva-azul concha nascidaDe suas águas recatadas. RegeO atrevido Duclerc a flor dos nobres,Cuja tez branca requeimara o fogoQue o vivo sol dos trópicos dardeja,E as lufadas dos ventos do oceano.Cobiçam-te eles, minha terra amada,Como quando nas faixas sempre-verdesEras envolta; e rude, inda que belo,O aspecto havias que poliu mais tardeA clara mão do tempo. Inda repetemOs ecos do recôncavo os suspirosDos que vieram a buscar a morte,E a receberam dos varões possantesCompanheiros de Estácio. A todos eles,Prole de Luso ou geração da Gália,Cativara-os a naiade escondida,E o sol os viu travados nessa longaE sangrenta porfia, cujo prêmioEra teu verde, cândido regaço.Triunfara o trabuco lusitanoNaquele extinto século. Vencido,O pavilhão francês volvera à pátria,Pela água arrastando o longo crepeDe suas tristes, mortas esperanças,Que vento novo o desfraldou nos ares?

IV

Ângela ouvira as vozes da cidade,As vozes do furor. Já receosa,Trêmula, foge à alcova e se encaminha

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À câmara paterna. Ia transpondoA franqueada porta... e pára. O peitoRompe-lho quase o coração — tamanhoÉ o palpitar, um palpitar de gosto,De surpresa e de susto. Aqueles olhos,Aquela graça máscula do gesto,Graça e olhos são dele, o amado noivo,Que entre os mais homens elegeu sua almaPara o vínculo eterno... Sim, que a mortePode arrancar ao seio humano o alentoÚltimo e derradeiro; os que deverasUnidos foram, volverão unidosA mergulhar na eternidade. EstavaJunto do velho pai o gentil moço,Ele todo agitado, o ancião sombrio,Calados ambos. A atitude de ambos,O misterioso, gélido silêncio,Mais que tudo, a presença nunca usadaDaquele homem ali, que mal a espreitaDe longe e a furto, nos instantes brevesEm que lhe é dado vê-la, tudo à moçaO ânimo abala e o coração enfia.

V

Mas o tropel de fora avulta e cresceE os três acorda. A virgem, lentamente,Rosto inclinado ao chão, transpõe o espaçoQue dos dois a separa. O tenro coloCurva ante o pai, e na enrugada destraO ósculo imprime, herdada usança nossaDe filial respeito. As mãos lhe tomaEnternecido o velho; olhos com olhosAlguns instantes rápidos ficaram,Até que ele, voltando o rosto ao moço:“— Perdoai — disse — se paterno afetoMe atou a língua. Vacilar é justoQuando à pobre ruína a flor lhe pedemQue única lhe nasceu — única adornaA aridez melancólica do extremo,Pálido sol... Não protesteis! Roubá-la,Arrancá-la aos meus últimos instantes,Não o fareis de certo. Pouco importaDês que a metade lhe levais da vida,Dês que seu coração, convosco parteAfeições minhas. — Ao demais, o sangueQue lhe corre nas veias condenado,Nuno, será dos vossos...” Longo e frioOlhar estas palavras acompanha,Como a arrancar-lhe o pensamento interno.A donzela estremece. Nuno o alentoRecobra e fala: — “Puro sangue é ele,Se lhe corre nas veias. Tão mimosa,Cândida criatura, alma tão casta,Inda nascida entre os incréus da Arábia,Deus a votara à conversão e à vida

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Dos eleitos do céu. Águas sagradasQue a lavaram no berço, já nas veiasO sangue velho e impuro lhe trocaramPelo sangue de Cristo...”

VII

Neste instanteCresce o tumulto exterior. A virgemMedrosa toda se conchega ao coloDo velho pai. “Ouvis? Falai! é tempo!”Nuno prossegue. — “Este comum perigoChama os varões à ríspida batalha;Com eles vou. Se um galardão, entanto,Merecer de meus feitos, não à pátriaIrei pedi-lo; só de vós espero,Não o melhor, mas o único na terra,Que a minha vida...” Rematar não pôdeEsta palavra. Ao escutar-lhe a nova

Da iminente pelejaE a decisão de combater por ela,Luteiras sente as forças esvair-lheA donzela, e bem como ao rijo vento

Inclina o colo o arbustoNos braços desmaiou do pai. VolvidaA si, na palidez do rosto o velhoAtenta um pouco, e suspirando: “As armasEmpunhai; combatei; Ângela é vossa.Não de mim a havereis: ela a si mesmaToda nas vossas mãos se entrega. MortaOu feliz é a escolha; não vacilo:Seja feliz, e folgarei com ela...”

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VIII

Sobre a fronte dos dois, as mãos impondoAo seio os conchegou, bem como a tendaDo patriarca santo agasalhavaO moço Isaac e a delicada virgemQue entre os rios nasceu18. DeliciosoE solene era o quadro; mas soleneE delicioso embora, ia esvair-seQual celeste visão, que acende a espaçosO ânimo do infeliz. A guerra, a duraNecessidade de imolar os homens,Por salvar homens, a terrível guerraCorta o amoroso vínculo que os prendeE à moça o riso lhe converte em lágrimas.Mísera és tu, pálida flor; mas sofreQue o calor deste sol te acurve o cálice,Morta, não; nem já murcha — mas apenasComo cansada de queimor do estio.Sofre; a tarde virá serena e brandaA reviver-te o alento; a fresca noiteChoverá sobre ti piedoso orvalhoE mais risonha surgirás à aurora.

IX

Foge à estância da paz o ardido moço;Esperança, fortuna, amor e pátriaA guerrear o levam. Já nas veiasO vivo sangue irrequieto pulsa,Como ansioso de correr por ambas,A bela terra e a suspirada noiva.Triste quadro a seus olhos se apresenta;Nos femininos rostos vê pintadosIncerteza e terror; lamentos, gritosSoam de entorno. Voam pelas ruasHomens de guerra; homens de paz se aprestamPara a crua peleja; e, ou nobre estância,Ou choupana rasteira, armado é tudoContra a forte invasão. Nem lá se deixaQuieto, a sós com Deus, na estreita cela,O solitário monge que às batalhasFugiu da vida. O patrimônio santoCumpre salvá-lo. Cruz e espada empunha,Deixa a serena região da preceE voa ao torvelinho do combate.

X

Entre os fortes alunos que dirigeO ardido Bento19, a perfilar-se correNuno. Estes são os que o primeiro golpeDescarregam no atônito inimigo.Do militar ofício ignoram tudo,De armas não sabem; mas o brio e a honraE a lembrança da terra em que primeiroViram a luz, e onde o perdê-la é doce,

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Essa a escola lhes foi. Pasma o inimigoDo nobre esforço e galhardia rara,Com que inda nos umbrais da vida que ornaTanta esperança, tanto sonho de ouro,Resolutos a morte encaram, prestes

A retalhar nas dobrasDa vestidura fúnebre da pátriaO piedoso lençol que os leve à campa,Ou com ela cingir o eterno louro.

XI

Ó mocidade, ó baluarte vivoDa cara pátria! Já perdida é ela,Quando em teu peito entusiasmo santoE puro amor se extingue, e àquele nobre,Generoso despejo e ardor antigoSucede o frio calcular, e o torpeEgoísmo, e quanto há aí no humano peito,Que a natureza não criou nem ama,Que é fruto nosso e podre... Muitos caemMortos ali. Que importa? Vão seguindoAvante os bravos, que a invasão caminhaImplacável e dura, como a morte,A pelejar e a destruir. Tingidas

Ruas de estranho sangueE sangue nosso, lacerados membros,Corpos de que há fugido a alma cansada,E o denso fumo e os fúnebres lamentos,Quem nessa confusão, miséria e glóriaConhecerá da juvenil cidadeO aspecto, a vida? Aqui da infância os diasNuno vivera, à vicejante sombraDo seu pátrio arvoredo, ao som das vagasQue inda batendo vão na amada areia;Risos, jogos da verde meninice,Esta praia lhe lembra, aquela pedra,A mangueira do campo, a tosca cercaDe espinheiro e de flores enlaçadas,A ave que voa, a brisa que suspira,Que suspira como ele há suspirado,Quando rompendo o coração do peitoIa-lhe empós dessa visão divina,Realidade agora... E há de perdê-lasPátria e noiva? Esta idéia lhe esvoaçaTorva e surda no cérebro do moço,E ao contraído espírito redobra

Ímpeto e forças. RompePor entre a multidão dos seus, e investeContra o duro inimigo; e as balas voam,E com elas a morte, que não sabeDos escolhidos seus a terra e o sangue,E indistintos os toma; ele, no meioDaquele horrível turbilhão, pareceQue a faísca do gênio o leva e anima,Que a fortuna o votara à glória.

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XII

SoamEnfim os gritos de triunfo; e o peitoDo povo que lutou respira à larga,Como ao que, após árdua subida, chegaAo cimo da montanha, e ao longe os olhosEstende pelo azul dos céus, e a vidaBebe nesse ar mais puro. Farto sangueA vitória custara; mas, se em meioDe tanta glória há lágrimas, soluços,Gemidos de viuvez, quem os escuta,Quem as vê essas lágrimas choradasNa multidão da praça que trovejaE folga e ri? O sacro bronze que usaOs fiéis convidar à prece, e a morteDo homem pranteia lúgubre e solene,

Ora festivo cantaO comum regozijo; e pela abertaPorta dos templos entra a frouxo o povoA agradecer com lágrimas e vozesO triunfo — piedoso instinto da alma,Que a Deus levanta o pensamento e as graças.

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XIII

Tu, mancebo feliz, tu bravo e amado,Voa nas asas rútilas e levesDa fortuna e do amor. Como ao indiano,Que, ao regressar das porfiadas lutas,Por estas mesmas regiões entrava,A encontrá-lo saía a meiga esposa,— A recente cristã, entre assustadaE jubilosa coroará teus feitosCo’a melhor das capelas que hão pousadoEm fronte de varão — um doce e longoOlhar que inteiro encerra a alma que choraDe gosto e vida! Voa o moço à estânciaDo ancião; e ao pôr na suspirada portaOlhos que traz famintos de encontrá-la,Frio terror lhe empece os membros. FrouxoIa o sol transmontando; lenta a vagaMelancolicamente ali gemia,E todo o ar parecia arfar de morte.Qual se pálida a vira, já cerrados

Os desmaiados olhos,Frios os doces lábios

Cansados de pedir aos céus por ele,Nuno estacara; e pelo rosto em fioO suor lhe caiu da extrema angústia;

Longo tempo vacila;Vence-se enfim, e entra a mansão da esposa.

XIV

Quatro vultos na câmara paternaEram. O pai sentado,

Calado e triste. Reclinada a fronteNo espaldar da cadeira, a filha os olhosE o rosto esconde, mas tremor contínuoDe um abafado soluçar o esbeltoCorpo lhe agita. Nuno aos dois se chega;Ia a falar, quando a formosa virgem,Os lacrimosos olhos levantando,Um grito solta do íntimo do peitoE se lhe prostra aos pés: “Oh! vivo, és vivo!Inda bem... Mas o céu, que por nós vela,Aqui te envia... Salva-o tu, se podes,Salva meu pobre pai!” EstremecendoNela e no velho fita Nuno os olhos,E agitado pergunta: “Qual ousadoBraço lhe ameaça a vida?” CavernosaUma voz lhe responde: “O santo ofício!”

Volve o mancebo o rostoE o merencório aspecto

De dois familiares todo o sangueNas veias lhe gelou.

XV

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Solene o velhoCom a voz, não frouxa, mas pausada, fala:“— Vês? Todo o brio, todo o amor no peitoTe emudeceu. Só lastimar-me podes,Salvar-me, nunca. O cárcere me aguarda,E a fogueira talvez; cumpri-la, é tempo,A vontade de Deus. Tu, pai e esposoDa desvalida filha que aí deixo,Nuno, serás. A relembrar com elaMeu pobre nome, aplacareis a imensaCólera do Senhor...” Sorrindo irônico,Estas palavras últimas lhe caemDos lábios tristes. Ergue-se: “Partamos!Adeus! Negou-me Aquele que no campoDeixa a árvore anciã perder as folhasNo mesmo ponto em que as nutriu viçosas,Negou-me ver por estas longas serrasIr-se-me o último sol. Brando regaçoA filial piedade me dariaEm que eu dormisse o derradeiro sono,E em braços de meu sangue transportadoFora em horas de paz e de silêncioLevado ao leito extremo e eterno. ViveAo menos tu...”

XVI

Um familiar lhe cortaO adeus último: “Vamos: é já tempo!”Resignado o infeliz, ao seio apertaA filha, e todo o coração num beijoLhe transmitiu, e a caminhar começa.Ângela os lindos braços sobre os ombrosTrava do austero pai; flores disséreisDe parasita, que enroscou seus ramosPelo cansado tronco, estéril, secoDe árvore antiga: “Nunca! Hão de primeiroA alma arrancar-me! Ou se heis pecado, e a mortePena há de ser da cometida culpa,Convosco descerei à campa fria,Juntos a mergulhar na eternidade.

Israel tem vertidoUma mar de sangue. Embora! à tona deleVerdeja a nossa fé20, a fé que animaO eleito povo, flor suave e belaQue o medo não desfolha, nem já secaAo vento mau da cólera dos homens!”

XVII

Trêmula a voz do peito lhe saía.Das mãos lhe trava um dos algozes. Ela

Entrega-se risonha,Como se o cálix da amargura extremaPelos meles da vida lhe trocassemCeleste e eterna. O coração do moço

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Latejava de espanto e susto. Os olhosPousa na filha o desvairado velho.Que ouviu? — Atenta nela; o lindo rostoO céu não busca jubiloso e livre,Antes, como travado de agra pena,Pende-lhe agora ao chão. Dizia acasoEntre si mesma uma oração, e o nomeDe Jesus repetia, mas tão baixo,Que o coração do pai mal pôde ouvir-lho.Mas ouviu-lho; e tão forte amor, tamanhoSacrifício da vida a alma lhe rasgaE deslumbra. Escoou-se um breve tempoDe silêncio; ele e ela, os triste noivos,Como se a eterna noite os recebera,Gelados eram; levantar não ousamUm para o outro os arrasados olhosDe mal contidas e teimosas lágrimas.

XVIII

Nuno enfim, lentamente e a custo arrancaDo coração estas palavras: “ForaMisericórdia ao menos confessá-loQuando ao fogo do bárbaro inimigoMe era fácil deixar o derradeiroSopro da vida. Prêmio é este acasoDe tamanho lidar? Que mal te hei feito,Porque me dês tão bárbara e medonhaMorte, como esta, em que o cadáver guardaInteiro o pensamento, inteiro o aspectoDa vida que fugiu?” Ângela os olhosMagoados ergue; arfa-lhe o peito aflito,Como o dorso da vaga que intumesceA asa da tempestade. “Adeus!” suspiraE a fronte abriga no paterno seio.

XIX

O rebelde ancião, domado entanto,Afracar-se-lhe sente dentro d’almaO sentimento velho que beberaCom o leite dos seus; e sem que o lábio

Transmita a ouvidos de homemO duvidar do coração, murmuraDentro de si: “Tão poderosa é essaIngênua fé, que inda negando o nomeDo seu Deus, confiada aceita a morte,E guarda puro o sentimento internoCom que o véu rasgará da eternidade?Ó Nazareno, ó filho do mistério,Se é tua lei a única da vidaEscreve-ma no peito; e dá que eu vejaMorrer comigo a filha de meus olhosE unidos irmos, pela porta imensaDo teu perdão, à eternidade tua!”

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XX

Mergulhara de todo o sol no ocaso,E a noite, clara, deliciosa e bela,A cidade cobriu — não sossegada,Como costuma — porém leda e viva,Cheia de luz, de cantos e rumores,Vitoriosa enfim. Eles, calados,Foram por entre a multidão alegre,A penetrar o cárcere sombrio.

Donde ao mar passarão, que os leve às praiasDa ancião Europa. Carregado o rosto,Ia o pai; ela, não. Serena e meiga,Entra afoita o caminho da amargura,A custo sofreando internas mágoasDa amarga vida, breve flor como ela,Que inda mais breve a mente lhe afigura.Anjo, descera da região celesteA pairar sobre o abismo; anjo, subiaDe novo à esfera luminosa e eterna,Pátria sua. Levar-lhe-á Deus em contaO muito amor e o padecer extremo,Quando romper a túnica da vidaE o silêncio imortal fechar seus lábios.

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JOSÉ BONIFÁCIO 21

De tantos olhos que o brilhante lumeViram do sol amortecer no ocaso,Quantos verão nas orlas do horizonte

Resplandecer a aurora?

Inúmeras, no mar da eternidade,As gerações humanas vão caindo;Sobre elas vai lançando o esquecimento

A pesada mortalha.

Da agitação estéril em que as forçasConsumiram da vida, raro apenasUm eco chega aos séculos remotos,

E o mesmo tempo o apaga.

Vivos transmite a popular memóriaO gênio criador e a sã virtude,Os que o pátrio torrão honrar souberam,

E honrar a espécie humana.

Vivo irás tu, egrégio e Nobre Andrada!Tu, cujo nome, entre os que à pátria deramO batismo da amada independência,

Perpetuamente fulge.

O engenho, as forças, o saber, a vidaTudo votaste à liberdade nossa,Que a teus olhos nasceu, e que teus olhos

Inconcussa deixaram.

Nunca interesse vil manchou teu nome,Nem abjectas paixões; teu peito ilustreNa viva chama ardeu que os homens leva

Ao sacrifício honrado.

Se teus restos há muito que repousamNo pó comum das gerações extintas,A pátria livre que legaste aos netos,

E te venera e ama,

Nem a face mortal consente à morteQue te roube, e no bronze redivivoO austero vulto restitui aos olhos

Das vindouras idades.“Vede” (lhes diz) “o cidadão que teveLarga parte no largo monumentoDa liberdade, a cujo seio os povos

Do Brasil te acolheram

Pode o tempo varrer, um dia, ao longe,A fábrica robusta; mas os nomesDos que o fundaram viverão eternos,

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E viverás, Andrada!”

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A VISÃO DE JACIÚCA

Où sont ces âmes guerrières... et ces arcsQu’on ne vit jamais tendus en vain?

BOSSUET: Orais. fun. de la princesse Palatine.

Prestes de novo a batalhar, chegavamOs valentes guerreiros. Mas onde ele,O duro chefe da indomável tribo,O senhor das montanhas? AfirmavaTatupeba que o vira, antes da aurora,Erguer-se, e ao longo do vizinho rio,Por algum tempo caminhar calado,Como se o abafara um pensamentoE lhe impedira o sono. Vão receioDe batalhar? Oh! não! Quase na infância,A torva catadura viu da guerra,Ofício de homens, que aprendeu brincandoCom seu pai, extremado entre os guerreiros,E na bravura e na prudência; a frechaNinguém soubera menear como ele,Nem mais veloz, nem mais certeira nunca.

***

A lentos passos caminhando chega,Enfim, o bravo Jaciúca. TorvoE merencório traz o duro aspecto.“— Vamos (diz ele) a descansar na taba,Entre festas e danças; penduremosAs armas nossas, que sobeja há sidoA glória, e a doce paz nos chama.”

Leve,Surdo rumor entre os guerreiros soa;Vai subindo, é rugido, é já tumulto,Como o grunhir de tajaçus no mato,Que se aproxima e cresce. JaciúcaOlhos quietos pelo campo estende;Seu feio rosto é como a rocha duraQue o raio quebra, mas não lasca o vento.Fecha os lábios e pensativo espera.

***

Tatupeba, que a raiva a custo esconde,Ergue-se então; crava-lhe os fulvos olhos,Como a afiada ponta de uma frecha.Seu porte, entre os irmãos, semelha à vistaJequitibá robusto; mais que todos,Terror inspira e universal respeito.Ergue-se e fala: “— Longos sóis hei visto,Pelejei muitas guerras; a meu ladoVi cair mais valentes do que folhas

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Arranca o furacão; mas nunca o ânimoDos lidadores abalou a palavraComo essa tua; nunca os braços nossosFicar deixaram nos desertos camposOs ossos não vingados dos guerreiros.Que gênio mau te insinuou tal crime?”Assim falando, Tatupeba o soloCom a planta feriu. Os olhos todosPendem da boca do sombrio chefe.Silencioso Jaciúca ouviraAs falas do guerreiro; silenciosoE quieto ficou. Após instantes,A fronte sacudiu, como expelindoIdéias más que o cérebro lhe turvam,E a voz lhe rompe do íntimo do peito.

***

“Ó guerreiros (diz ele), aqui deitadosEstivestes a noite, e toda inteiraA dormistes de certo; eu, não distante,Do rio à marge* a trabalhar comigo,Afiava na mente atra vingança;Até que os frouxos membros descaíramSobre a macia relva, e um tempo largoAssim fiquei entre vigília e sono.Viam meus olhos ondular as águas,Mas no alheado pensamento os ecosSussurravam da infância. Um gênio amigoAos tempos me levava em que no rostoDe meu pai aprendi, com frio pasmo,A rara intrepidez, válida herança,Que tanto custa ao pérfido inimigo.

***

De repente, uma luz pálida e tristeInunda o campo: transparente névoaE luminosa aquilo parecia,Ou baço refletir da branca luaQue nuvens cobrem. Lívido e curvado,Içaíba a meus olhos aparece.Vi-o qual era antes da fria morte;Só a expressão do rosto lhe mudara;Enérgicas não tinha, mas serenasAs feições. “Vem comigo!”* Assim me falaO extinto bravo; e , súbito estreitandoAo peito o corpo do saudoso amigo,Juntos voamos à região das nuvens.“Olha!” disse Içaíba, e o braço alongaPara a terra. Ó guerreiros! largo espaçoEra presa de alheio senhorio.Fitei os olhos mais; e pouco a pouco,Como enche o rio e todo o campo alaga,Umas gentes estranhas se estendiamDe sertão em sertão. Presas do fogo

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As matas vi, abrigo do guerreiro,E ao torvo incêndio e às invasões da morteVi as tribos fugir, ceder a custo,Com lágrimas alguns, todos com sangue,A virgem terra ao bárbaro inimigo.Mau vento os trouxe de remota praiaAqueles homens novos, jamais vistosDe guerreiro ancião, a quem não coubeSequer a glória de morrer contenteE todo reviver na ousada prole.Era o termo da vida que chegaraAo povo de Tupã! Grito de morteÚnico enchia os ares — um suspiroDe tristeza e terror, que reboavaPelos recessos da floresta antigaE talvez ameigava o peito às feras...Surdos manitôs deixado haviamOs seus fortes heróis; surdos se foramEntre os gênios folgar da raça nova,E rir talvez das lágrimas choradasPelo olhos das virgens... Oh! se ao menosFora pranto de livres! Era a morteA menor das angústias; vi curvadaE cativa rojar no pó da terraA fronte do guerreiro, agora altiva,Livre, como o condor que frecha as nuvens;Não canitar a cinge, mas vergonha,Melancólico adorno do vencido.

***

“O rosto desviei do estranho quadro.‘Olha!’ repete o pálido Içaíba.Olhei de novo, e na saudosa taba,Que os nossos arcos defender souberam,Em vez da sombra do piaga santo,Que, ao som do maracá, colhia as vozesDo pensamento eterno, e as infundiaNo seio do guerreiro, como o fumoDo petum lhe dobrava ímpeto e força,Um vulto descobri de vestes negras,Nua quase a cabeça, e cor de espumaAlguns cabelos raros. Tinha o rostoAlvo e quieto. Em suas mãos sustinhaExtenso lenho com dois curtos braços.Ia só; todo o campo era deserto.Nem um guerreiro! um arco! ‘— A tribo?’

‘— Extinta.’

***

“A tal palavra, uma pesada sombra

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A vista me apagou, e pela faceSenti rolar a lágrima primeira.O sinistro espetáculo mudara.Ao dissipar-se a nuvem de meus olhosAchei-me junto do vizinho rio,Reclinado como antes, e defronteA pálida figura de Içaíba.‘— Torna à taba’, me disse o extinto moço;‘Luas e luas volverão no espaçoAntes da morte, mas a morte é certa,E terrível será. Nação bem outra,Sobre as ruínas da valente raçaVirá sentar-se, e brilhará na terraGloriosa e rica. Uma chorada lágrima,Talvez, talvez, no meio dos triunfos*

Há de ser a tardia, escassa pagaDa morte nossa. Poupa ao menos essaDerradeira esperança de guardá-loTodo o valor para o supremo diaE com honra ceder a estranhas hostes;Salva ao menos as últimas relíquiasDesta nação vencida; não se rasguemPeitos que irmãos ao mesmo sol nasceramE Anhangá fez contrários22 ...Todos elesPoucos serão para a tremenda luta,Mas de sobra hão de ser para chorá-la.’*

***

“Assim falara o pálido Içaíba;Alguns instantes contemplou meu rosto,Calado e firme. A cachoeira ao longeInterrompia apenas o silêncio;E eu morto, eu mesmo me sentia morto.Ele um triste suspiro magoadoSoltou do peito; os apagados olhosÀs estrelas ergueu, sereno e triste,E de novo rompendo o vôo aos ares,Como uma frecha penetrou nas nuvens.”

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CANTIGA DO ROSTO BRANCO 23

Rico era o rosto branco; armas trazia,E o licor que devora e as finas telas;Na gentil Tibeima os olhos pousa,

E amou a flor das belas.

“Quero-te!” disse à cortesã da aldeia;“Quando, junto de ti, teus olhos miro,A vista se me turva, as forças perco,

E quase, e quase expiro.”

E responde a morena requebrandoUm olhar doce, de cobiça cheio:“Deixa em teus lábios imprimir meu nome;

Aperta-me em teu seio!”

Uma cabana levantaram ambos,O rosto branco e a amada flor das belas...Mas as riquezas foram-se co’o tempo,

E as ilusões com elas.

Quando ele empobreceu, a amada moçaNoutros lábios pousou seus lábios frios,E foi ouvir de coração estranho

Alheios desvarios.

Desta infidelidade o rosto brancoTriste nova colheu; mas ele amava,Inda infiéis, aqueles lábios doces,

E tudo perdoava.

Perdoava-lhe tudo, e inda corriaA mendigar o grão de porta em porta,Com que a moça nutrisse, em cujo peito

Jazia a afeição morta.

E para si, para afogar a mágoa,Se um pouco havia do licor ardente,A dor que o devorava e renascia

Matava lentamente.

Sempre traído, mas amando sempre,Ele a razão perdeu; foge à cabana,E vai correr na solidão do bosque

Uma carreira insana.

O famoso Sachem, ancião da tribo,Vendo aquela traição e aquela pena,À ingrata filha duramente fala,

E ríspido a condena.

Em vão! É duro o fruto da papaia,Que o lábio do homem acha doce e puro;Coração de mulher que já não ama

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Esse é inda mais duro.

Nu qual saíra do materno ventre,Olhos cavos, a barba emaranhada,O mísero tornou, e ao próprio teto

Veio pedir pousada.

Volvido se cuidava à flor da infância(Tão escuro trazia o pensamento!)“Mãe!” exclamava contemplando a moça,

“Acolhe-me um momento!”

Vinha faminto. Tibeima, entanto,Que já de outro guerreiro os dons houvera,Sentiu asco daquele que outro tempo

As riquezas lhe dera.

Fora o lançou; e ele expirou gemendoSobre folhas deitado junto à porta;Anos volveram; co’os volvidos anos,

Tibeima era morta.

Quem ali passa, contemplando os restosDa cabana, que a erva toda esconde,Que ruínas são essas, interroga.

E ninguém lhe responde.

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A GONÇALVES DIAS

Ninguém virá, com titubeantes passos,E os olhos lacrimosos, procurandoO meu jazigo...

GONÇALVES DIAS. Últimos Cantos.

Tu vive e goza a luz serena e pura.*

J. BASÍLIO DA GAMA. Uruguai, c. V.

Assim vagou por alongados climas,E do naufrágio os úmidos vestidosAo calor enxugou de estranhos laresO lusitano vate. Acerbas penasCurtiu naquelas regiões; e o Ganges,Se o viu chorar, não viu pousar calada,Como a harpa dos êxules profetas,A heróica tuba. Ele a embocou, vencendoCo’a lembrança do ninho seu paterno,Longas saudades e míseras tantas.Que monta o padecer? Um só momentoAs mágoas lhe pagou da vida; a pátriaReviu, após a suspirar por ela;

E a velha terra suaO despojo mortal cobriu piedosaE de sobejo o compensou de ingratos.

***

Mas tu, cantor da América, roubadoTão cedo ao nosso orgulho, não te coubeNa terra em que primeiro houveste o lumeDo nosso sol, achar o último leito!Não te coube dormir no chão amado,Onde a luz frouxa da serena lua,Por noite silenciosa, entre a folhagemCoasse os raios úmidos e frios,Com que ela chora os mortos... derradeirasLágrimas certas que terá na campaO infeliz que não deixa sobre a terraUm coração ao menos que o pranteie.

***

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Vinha contudo o pálido poetaOs desmaiados olhos estendendoPela azul extensão das grandes águas,A pesquisar ao longe o esquivo fumoDos pátrios tetos. Na abatida fronteAve da morte as asas lhe roçara;A vida não cobrou nos ares novos,A vida, que em vigílias e trabalhos,Em prol dos seus, gastou por longos anos,Co’essa largueza de ânimo fadadoA entornar generoso a vital seiva.Mas, que importava a morte, se era doceMorrê-la à sombra deliciosa e amigaDos coqueiros da terra, ouvindo acaso

No murmurar dos rios,Ou nos suspiros do noturno vento,Um eco melancólico dos cantosQue ele outrora entoara? Traz do exílioUm livro, monumento derradeiroQue à pátria levantou; ali reviveToda a memória do valente povoDos seus Timbiras...

***

Súbito, nas ondasBate os pés, espumante e desabrido,O corcel da tormenta; o horror da morteEnfia o rosto aos nautas... Quem por ele,Um momento hesitou quando na frágilTábua confiou a única esperançaDa existência? Mistério obscuro é esseQue o mar não revelou. Ali, sozinho,Travou naquela solidão das águasO duelo tremendo, em que a alma e corpoAs suas forças últimas despendemPela vida da terra e pela vidaDa eternidade. Quanta imagem torva,Pelo turbado espírito batendoAs fuscas asas, lhe tornou mais tristeAquele instante fúnebre! SuaveÉ o arranco final, quando o já frouxoOlhar contempla as lágrimas do afeto,E a cabeça repousa em seio amigo.Nem afetos nem prantos; mas somenteA noite, o medo, a solidão e a morte.A alma que ali morava, ingênua e meiga,Naquele corpo exíguo, abandonou-o,Sem ouvir os soluços da tristeza,Nem o grave salmear que fecha aos mortosO frio chão. Ela o deixou, bem comoHóspede mal-aceito e maldormido,Que prossegue a jornada, sem que leveO ósculo da partida, sem que deixeNo rosto dos que ficam — rara embora —

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Uma sombra de pálida saudade.

***

Oh! sobre a terra em que pousaste um dia,Alma filha de Deus, ficou teu rastoComo de estrela que perpétua fulge!Não viste as nossas lágrimas; contudoO coração da pátria as há vertido.Tua glória as secou, bem como orvalhoQue a noite amiga derramou nas floresE o raio enxuga da nascente aurora.Na mansão a que foste, em que ora vives,Hás de escutar um eco do concertoDas vozes nossas. Ouvirás, entre elas,Talvez, em lábios de indiana virgem!Esta saudosa e suspirada nênia:

***

“Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!Virgens da mata, suspirai comigo!

A grande água o levou como invejosa.Nenhum pé trilhará seu derradeiroFúnebre leito; ele repousa eternoEm sítio onde nem olhos de valentes,Nem mãos de virgens poderão tocar-lhesOs frios restos. Sabiá-da-praiaDe longe o chamará saudoso e meigo,Sem que ele venha repetir-lhe o canto.Morto, é morto o cantor de meus guerreiros!Virgens da mata, suspirai comigo!

***

Ele houvera do Ibaque o dom supremoDe modular nas vozes a ternura,A cólera, o valor, tristeza e mágoa,E repetir aos namorados ecosQuanto vive e reluz no pensamento.Sobre a margem das águas escondidas,Virgem nenhuma suspirou mais terna,Nem mais válida a voz ergueu na taba,Suas nobres ações cantando aos ventos,O guerreiro tamoio. Doce e forte,Brotava-lhe do peito a alma divina.Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!Virgens da mata, suspirai comigo!

***

Coema, a doce amada de Itajubá,Coema não morreu; a folha agrestePode em ramas ornar-lhe a sepultura,E triste o vento suspirar-lhe em torno;

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Ela perdura a virgem dos Timbiras,Ela vive entre nós. Airosa e linda,Sua nobre figura adorna as festasE enflora os sonhos dos valentes. Ele,O famoso cantor quebrou da morteO eterno jugo; e a filha da florestaHá de a história guardar das velhas tabasInda depois das últimas ruínas.Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!Virgens da mata, suspirai comigo!

***

O piaga, que foge a estranhos olhos,E vive e morre na floresta escura,Repita o nome do cantor; nas águasQue o rio leva ao mar, mande-lhe ao menosUma sentida lágrima, arrancadaDo coração que ele tocara outrora,Quando o ouviu palpitar sereno e puro,E na voz celebrou de eternos carmes.Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!Virgens da mata, suspirai comigo!”

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OS SEMEADORES24

( Século XVI)

Eis aí saiu o que semeia a semear.MATH. XIII, 3

Vós os que hoje colheis, por esses campos largos,O doce fruto e a flor,

Acaso esquecereis os ásperos e amargosTempos do semeador?

Rude era o chão; agreste e longo aquele dia;Contudo, esses heróis

Souberam resistir na afanosa porfiaAos temporais e aos sóis.

Poucos; mas a vontade os poucos multiplica,E a fé, e as orações

Fizeram transformar a terra pobre em ricaE os centos em milhões.

Nem somente o labor, mas o perigo, a fome,O frio, a descalcês,

O morrer cada dia uma morte sem nome,O morrê-la, talvez,

Entre bárbaras mãos, como se fora crime,Como se fora réu

Quem lhe ensinara aquela ação pura e sublimeDe as levantar ao céu!

Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha!Venceste-a; e podeis

Entre as dobras dormir da secular mortalha;Vivereis, vivereis!

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A FLOR DO EMBIRUÇU

Noite, melhor que o dia, quem não te ama?FILINTO ELYSIO.

Quando a noturna sombra envolve a terraE à paz convida o lavrador cansado,À fresca brisa o seio delicadoA branca flor do embiruçu descerra.

E das límpidas lágrimas que choraA noite amiga, ela recolhe alguma;A vida bebe na ligeira bruma,Até que rompe no horizonte a aurora.

Então, à luz nascente, a flor modesta,Quando tudo o que vive alma recobra,Languidamente as suas folhas dobra,E busca o sono quando tudo é festa.

Suave imagem da alma que suspiraE odeia a turba vã! da alma que senteAgitar-se-lhe a asa impacienteE a novos mundos transportar-se aspira!

Também ela ama as horas silenciosas,E quando a vida as lutas interrompe,Ela da carne os duros elos rompe,E entrega o seio às ilusões viçosas.

É tudo seu — tempo, fortuna, espaço,E o céu azul e os seus milhões de estrelas;Abrasada de amor, palpita ao vê-las,E a todas cinge no ideal abraço.

O rosto não encara indiferente,Nem a traidora mão cândida aperta;Das mentiras da vida se libertaE entra no mundo que jamais não mente.

Noite, melhor que o dia; quem não te ama?Labor ingrato, agitação, fadiga,Tudo faz esquecer tua asa amigaQue a alma nos leva onde a ventura a chama.

Ama-te a flor que desabrocha à horaEm que o último olhar o sol lhe estende,Vive, embala-se, orvalha-se, recende,E as folhas cerra quando rompe a aurora.

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LUA NOVA 25

Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaçoEi-la assoma serena e indecisa:Sopro é dela esta lânguida brisaQue sussurra na terra e no mar.Não se mira nas águas do rio,Nem as ervas do campo branqueia;Vaga e incerta ela vem, como a idéiaQue inda apenas começa a espontar.

E iam todos; guerreiros, donzelas,Velhos, moços, as redes deixavam;Rudes gritos na aldeia soavam,Vivos olhos fugiam p’ra o céu:Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,Que, entre um grupo de brancas estrelas,Mal cintila: nem pôde vencê-las,Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.

***

E um guerreiro: “Jaci, doce amada,Retempera-me as forças; não vejaOlho adverso, na dura peleja,Este braço já frouxo cair.Vibre a seta, que ao longe derrubaTajaçu, que roncando caminha;Nem lhe escape serpente daninha,Nem lhe fuja pesado tapir.”

***

E uma virgem: “Jaci, doce amada,Dobra os galhos, carrega esses ramosDo arvoredo co’as frutas* que damosAos valentes guerreiros, que eu vouA buscá-los na mata sombria,Por trazê-los ao moço prudente,Que venceu tanta guerra valente,E estes olhos consigo levou.”

***

E um ancião, que a saudara já muitos,Muitos dias: “Jaci, doce amada,Dá que seja mais longa a jornada,Dá que eu possa saudar-te o nascer,Quando o filho do filho, que hei vistoTriunfar de inimigo execrando,Possa as pontas de um arco dobrandoContra os arcos contrários vencer.”

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***

E eles riam os fortes guerreiros,E as donzelas e esposas cantavam,E eram risos que d’alma brotavam,E eram cantos de paz e de amor.Rude peito criado nas brenhas,— Rude embora — terreno é propício;Que onde o gérmen lançou benefícioBrota, enfolha, verdeja, abre em flor.

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SABINA

Sabina era mucama da fazenda;Vinte anos tinha; e na província todaNão havia mestiça mais à moda,Com suas roupas de cambraia e renda.

Cativa, não entrava na senzala,Nem tinha mãos para trabalho rude;Desbrochava-lhe a sua juventudeEntre carinhos e afeições de sala.

Era cria da casa. A sinhá-moça,Que com ela brincou sendo menina,Sobre todas amava esta Sabina,Com* esse ingênuo e puro amor da roça.

Dizem que à noite, a suspirar na cama,Pensa nela o feitor; dizem que um dia,Um hóspede que ali passado havia,Pôs um cordão no colo da mucama.

Mas que vale uma jóia no pescoço?Não pôde haver o coração da bela.Se alguém lhe acende os olhos de gazela,É pessoa maior: é o senhor moço.

***

Ora, Otávio cursava a Academia.Era um lindo rapaz; a mesma idadeCo’as passageiras flores o adornavaDe cujo extinto aroma inda a memóriaVive na tarde pálida do outono.Oh! vinte anos! Ó pombas fugitivasDa primeira estação, porque tão cedoVoais de nós? Pudesse ao menos a almaGuardar consigo as ilusões primeiras,Virgindade sem preço, que não pagaEssa descolorida, árida e secaExperiência do homem!

***

Vinte anosTinha Otávio, e a beleza e um ar de côrte*

E o gesto nobre, e sedutor o aspecto;Um vero Adônis, como aqui diriaAlgum poeta clássico, daquelaPoesia que foi nobre, airosa e grandeEm tempos idos, que ainda bem se foram...Também eu a adorei, uma hora ao menos,E suspirei destes remotos climasPelas formosas ribas do Escamandro,Onde descia, entre soldados gregos,

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A moça Vênus; frívolo suspiroQue não pode acordar dos seus sepulcrosEsses numes brincões da velha idade,Mortos por seus pecados — que os tiveram,E por sossego nosso. Eram amáveisE belos no seu tempo; hoje fariamIgual papel ao do tardio máscaraQue, ao desdobrar a aurora os panos de ouro,Entre madrugadores se aventura.

***

Cursava a Academia o moço Otávio;Ia no ano terceiro: não remotoVia desenrolar-se o pergaminho,Prêmio de seus labores e fadigas;E uma vez bacharel, via mais longeOs curvos braços da feliz cadeiraDonde o legislador a rédea empunhaDos lépidos frisões do Estado. Entanto,Sobre os livros de estudo, gota a gotaAs horas despendia, e trabalhavaPor meter na cabeça o jus romanoE o pátrio jus. Nas suspiradas fériasVolvia ao lar paterno; ali no dorsoDe brioso corcel corria os campos,Ou, arma ao ombro, polvorinho ao lado,À caça dos veados e cotias,Ia matando o tempo. Algumas vezesCom o padre vigário se entretinhaEm desfiar um ponto de intrincadaFilosofia, que o senhor de engenho,Feliz pai, escutava glorioso,Como a rever-se no brilhante aspectoDo* suas ricas esperanças.

***

EraManhã de estio; erguera-se do leitoOtávio; em quatro sorvos toda esgotaA taça de café. Chapéu de palha,E arma ao ombro, lá foi terreiro fora,Passarinhar no mato. Ia costeandoO arvoredo que além beirava o rio,A passo curto, e o pensamento à larga,Como leve andorinha que saísseDo ninho, a respirar o hausto primeiroDa manhã. Pela aberta da folhagem,Que inda não doura o sol, uma figuraDeliciosa, um busto sobre as ondasSuspende o caçador. Mãe d’água fora,Talvez , se a cor de seus quebrados olhosImitasse a do céu: se a tez morena,Morena como a esposa dos Cantares,Alva tivesse; e raios de ouro fossemOs cabelos da cor da noite escura,

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Que ali soltos e úmidos lhe caem,Como um véu sobre o colo. Trigueirinha,Cabelo negro, os largos olhos brandosCor de jabuticaba, quem seria,Quem, senão a mucama da fazenda,Sabina, enfim? Logo a conhece Otávio,E nela os olhos espantados fitaQue desejos acendem. — Mal cuidandoDaquele estranho curioso, a virgemCom os ligeiros braços rompe as águas,E ora toda se esconde, ora ergue o busto,Talhado pela mão da naturezaSobre o modelo clássico. Na opostaRiba suspira um passarinho; e o canto,E a meia luz, e o sussurrar das águas,E aquela fada ali, tão doce vidaDavam ao quadro, que o ardente alunoTrocara por aquilo, uma hora ao menos,A Faculdade, o pergaminho e o resto.

***

Súbito erige o corpo a ingênua virgem;Com as mãos, os cabelos sobre a espáduaDeita, e rasgando lentamente as ondas,Para a margem caminha, tão serena,Tão livre como quem de estranhos olhosNão suspeita a cobiça...Véu da noite,Se lhos cobrira, dissipara acasoUma história de lágrimas. Não podeFurtar-se Otávio à comoção que o toma;A clavina que a esquerda mal sustentaNo chão lhe cai; e o baque surdo acordaA descuidada nadadora. Às ondasA virgem torna. Rompe Otávio o espaçoQue os divide; e de pé, na fina areia,Que o mole rio lambe, ereto e firme,Todo se lhe descobre. Um grito apenasUm só grito, mas único, lhe rompeDo coração; terror, vergonha... e acasoPrazer, prazer misterioso e vivoDe cativa que amou silenciosa,E que ama e vê o objeto de seus sonhos,Ali com ela, a suspirar por ela.

***

“Flor da roça nascida ao pé do rio,Otávio começou — talvez mais belaQue essas belezas cultas da cidade,Tão cobertas de jóias e de sedas,Oh! não me negues teu suave aroma!Fez-te cativa o berço; a lei somenteOs grilhões te lançou; no livre peitoDe teus senhores tens a liberdade,A melhor liberdade, o puro afetoQue te elegeu entre as demais cativas,

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E de afagos te cobre! Flor do mato,Mais viçosa do que essas outras floresNas estufas criadas e nas salas,Rosa agreste nascida ao pé do rioOh! não me negues teu suave aroma!”

***

Disse, e da riba os cobiçosos olhosPelas águas estende, enquanto os dela,Cobertos pelas pálpebras medrosasChoram — de gosto e de vergonha a um tempo,Duas únicas lágrimas. O rioNo seio as recebeu; consigo as leva,Como gotas de chuva, indiferenteAo mal ou bem que lhe povoa a margem;Que assim a natureza, ingênua e dócilÀs leis do Criador, perpétua segueEm seu mesmo caminho, e deixa ao homemPadecer e saber que sente e morre.

***

Pela azulada esfera inda três vezesA aurora as flores derramou, e a noiteVezes três a mantilha escura e largaMisteriosa cingiu. Na quarta aurora,Anjo das virgens, anjo de asas brancas,Pudor, onde te foste? A alva capela,Murcha e desfeita pelo chão lançada,Coberta a face do rubor do pejo,Os olhos com as mãos velando, alçastePara a Eterna Pureza o eterno vôo.

***

Quem ao tempo cortar pudera as asasSe deleitoso voa? Quem puderaSuster a hora abençoada e curtaDa ventura que foge, e sobre a terraO gozo transportar da eternidade?Sabina viu correr tecidos de ouroAqueles dias únicos na vidaToda enlevo e paixão, sincera e ardenteNesse primeiro amor d’alma que nasceE os olhos abre ao sol. Tu lhe dormias,Consciência; razão, tu lhe fechavasA vista interior; e ela seguiaAo sabor dessas horas mal furtadasAo cativeiro e à solidão, sem vê-loO fundo abismo tenebroso e largoQue a separa do eleito de seus sonhos,Nem pressentir a brevidade e a morte!

***

E com que olhos de pena e de saudade

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Viu ir-se um dia pela estrada foraOtávio! Aos livros torna o moço aluno,Não cabisbaixo e triste, mas serenoE lépido. Com ela a alma não ficaDe seu jovem senhor. Lágrima pura,Muito embora de escrava, pela faceLentamente lhe rola, e lentamenteToda se esvai num pálido sorrisoDe mãe,

***

Sabina é mãe; o sangue livreGira e palpita no cativo seioE lhe paga de sobra as dores cruasDa longa ausência. Uma por uma, as horasNa solidão do campo há de contá-las,E suspirar pelo remoto diaEm que o veja de novo... Pouco importa,Se o materno sentir compensa os males.

***

Riem-se dela as outras; é seu nomeO assunto do terreiro. Uma invejosaAcha-lhe uns certos modos singularesDe senhora de engenho; um pajem moço,De cobiça e ciúme devorado,Desfaz nas graças que em silêncio adoraE consigo medita uma vingança.Entre os parceiros, desfiando a palhaCom que entrança um chapéu, solenementeUm Caçanje ancião refere aos outrosAlguns casos que viu na mocidadeDe cativas amadas e orgulhosas,Castigadas do céu por seus pecados,Mortas entre os grilhões do cativeiro.

***

Assim falavam eles; tal o arestoDa opinião. Quem evitá-lo podeEntre os seus, por mais baixo que a fortunaHaja tecido o berço? Assim falavamOs cativos do engenho; e porventuraSabina o soube e o perdoou.

***

VolveramApós os dias da saudade os diasDa esperança. Ora, quis fortuna adversaQue o coração do moço, tão volúvelComo a brisa que passa ou como as ondas,Nos cabelos castanhos se prendesseDa donzela gentil, com quem ataraO laço conjugal: uma beleza

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Pura, como o primeiro olhar da vida,Uma flor desbrochada em seus quinze anos,Que o moço viu num dos serões da corteE cativo adorou. Que há de fazer-lhesAgora o pai? Abençoar os noivosE ao regaço trazê-los da família.

***

Oh longa foi, longa e ruidosa a festaDa fazenda, por onde alegre entraraO moço Otávio conduzindo a esposa.Viu-os chegar Sabina, os olhos secosAtônita e pasmada. Breve o instanteDa vista foi. Rápido foge. A noiteA seu trêmulo pé não tolhe a marcha;Voa, não corre ao malfadado rio,Onde a voz escutou do amado moço.Ali chegando: “Morrerá comigoO fruto de meu seio; a luz da terraSeus olhos não verão; nem ar da vidaHá de aspirar...”

***

Ia a cair nas águas,Quando súbito horror lhe toma o corpo;Gelado o sangue e trêmula recua,Vacila e tomba sobre a relva. A morteEm vão a chama e lhe fascina a vista;Vence o instinto de mãe. Erma e caladaAli ficou. Viu-a jazer a luaLargo espaço da noite ao pé das águas,E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros;Nenhum deles, contudo, o disse à aurora.

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ÚLTIMA JORNADA 26

Ils croyent les âmes eternelles, et celles qui ont bien merité des dieuxestre logees à l’endroict du ciel où le soleil se leve; les mauldictes, ducosté de l’occident.

MONTAIGNE, Essais, liv, I c. XXX

I

E ela se foi nesse clarão primeiro,Aquela esposa mísera e ditosa;E ele se foi o pérfido guerreiro.

Ela serena ia subindo e airosa,Ele à força de incógnitos pesaresDobra a cerviz rebelde e lutuosa.

Iam assim, iam cortando os ares,Deixando em baixo as fértiles* campinas,E as florestas, e os rios e os palmares.

Oh! cândidas lembranças infantinas!Oh! vida alegre da primeira taba!Que aurora vos tomou, aves divinas?

Como um tronco do mato que desaba,Tudo caiu; lei bárbara e funesta:O mesmo instante cria e o mesmo acaba.

De esperanças tamanhas o que resta?Uma história, uma lágrima choradaSobre as últimas ramas da floresta.

A flor do ipê a viu brotar magoada,E talvez a guardou no seio amigo,Como lembrança da estação passada.

Agora os dois, deixando o bosque antigo,E as campinas, e os rios e os palmares,Para subir ao derradeiro abrigo,Iam cortando lentamente os ares.

II

E ele clamava à moça que ascendia:“— Oh! tu que a doce luz eterna levas,E vás viver na região do dia,

Vê como rasgam bárbaras e sevasAs tristezas mortais ao que se afundaQuase na fria região das trevas!

Olha esse sol que a criação inunda!

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Oh quanta luz, oh quanta doce vidaDeixar-me vai na escuridão profunda!

Tu ao menos perdoa-me, querida!Suave esposa, que eu ganhei roubando,Perdida agora para mim, perdida!

Ao maldito na morte, ao miserando,Que mais lhe resta em sua noite impura?Sequer alívio ao coração nefando.

Nos olhos trago a tua morte escura.Foi meu ódio cruel que há decepado,Ainda em flor, a tua formosura.

Mensageiro de paz, era enviadoUm dia à taba de teus pais, um diaQue melhor fora se não fora nado.

Ali te vi; ali, entre a alegriaDe teus fortes guerreiros e donzelas,Teu doce rosto para mim sorria.

A mais bela eras tu entre as mais belas,Como no céu a criadora luaVence na luz as vividas estrelas.

Gentil nasceste por desgraça tua;Eu covarde nasci; tu me seguiste;E ardeu a guerra desabrida e crua.

Um dia o rosto carregado e tristeÀ taba de teus pais volveste, o rostoCom que alegre e feliz dali fugiste.

Tinha expirado o passageiro gosto,Ou o sangue dos teus, correndo a fio,Em teu seio outro afeto havia posto.

Mas, ou fosse remorso, ou já fastio,Ias-te agora leve e descuidada,Como folha que o vento entrega ao rio.

Oh! corça minha fugitiva e amada!Anhangá te guiou por mau caminho,E a morte pôs na minha mão fechada.

Feriu-me da vingança agudo espinho;E fiz-te padecer tão cruas penas,Que inda me dói o coração mesquinho.

Ao contemplar aquelas tristes cenas,As aves, de piedosas e sentidas,Chorando foram sacudindo as penas.

Não viu o cedro ali correr perdidas

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Lágrimas de materno amado seio;Viu somente morrer a flor das vidas.

O que mais houve da floresta em meioO sinistro espetáculo, de certoNenhum estranho contemplá-lo veio.

Mas, se alguém penetrasse no desertoVira cair pesadamente a massaDo corpo do guerreiro; e o crânio aberto,

Como se fora derramada taça,Pela terra jazer, ali chamandoO feio grasno do urubu que passa.

Em vão a arma do golpe irão buscando,Nenhuma houve; nem guerreiro ousadoA tua morte ali foi castigando

Talvez, talvez Tupã, desconsolado,A pena contemplou maior do que eraO delito; e de cólera tomado,

Ao mais alto dos Andes estenderaO forte braço, e da árvore mais forteA seta e o arco vingador colhera;

As pontas lhe dobrou, da mesma sorteQue o junco dobra, sussurrando o vento,E de um só tiro lhe enviou a morte.”

Ia assim suspirando este lamento,Quando subitamente a voz lhe cala,Como se a dor lhe sufocara o alento.

No ar se perdera a lastimosa fala,E o infeliz, condenado à noite escura,Os dentes range e treme de encontrá-la.

Leva os olhos na viva aurora puraEm que vê penetrar, já longe, aquelaDoce, mimosa, virginal figura.

Assim no campo a tímida gazelaFoge e se perde; assim no azul dos maresSome-se e morre fugidia vela.

E nada mais se viu flutuar nos ares;Que ele, bebendo as lágrimas que chora,Na noite entrou dos imortais pesares,E ela de todo mergulhou na aurora.

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OS ORIZES27

( FRAGMENTO)

I

Nunca as armas cristãs, nem do EvangelhoO lume criador, nem frecha estranhaO vale penetraram dos guerreirosQue, entre serros altíssimos sentado,Orgulhoso descansa. Único o vento,Quando as asas desprega impetuoso,Os campos varre e as selvas estremece,Um pouco leva, ao recatado asilo,Da poeira da terra. Acaso o raioAlguma vez nos ásperos penedos,Com fogo escreve a assolação e o susto.Mas olhos de homem, não; mas braço afeitoA pleitear na guerra, a abrir ousadoCaminho entre a espessura da floresta,Não afrontara nunca os atrevidosMuros que a natureza a pino ergueraComo eterna atalaia.

II

Um povo indócilNessas brenhas achou ditosa pátria,Livre, como o rebelde pensamentoQue ímpia força não doma, e airoso volveInteiro à eternidade. Guerra longaE porfiosa os adestrou nas armas;Rudes são nos costumes mais que quantosHá criado este sol, quantos na guerraO tacape meneiam vigoroso.Só nas festas de plumas se ataviamOu na pele do tigre o corpo envolvem,Que o sol queimou, que a rispidez do invernoEndureceu como os robustos troncosQue só verga o tufão. Tecer não usamA preguiçosa rede em que se embaleO corpo fatigado do guerreiro,Nem as tabas erguer como outros povos;Mas à sombra das árvores antigas,Ou nas medonhas cavas dos rochedos,No duro chão, sobre mofinas ervas,Acham sono de paz, jamais tolhidoDe ambições, de remorsos. IndomávelEssa terra não é; pronto lhes volveO semeado pão; vicejam floresCom que a rudez tempera a extensa mata,E o fruto pende dos curvados ramos

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Do arvoredo. Harta messe do homem rude,Que tem na ponta da farpada setaO pesado tapir, que lhes não foge,Nhandu, que à flor de terra inquieta voa,Sobejo pasto, e deleitoso e puroDa selvagem nação. Nunca vaidadeDe seu nome souberam, mas a força,Mas a destreza do provado braçoOs foros são do império a que hão sujeitoTodo aquele sertão. Murmuram longe,Contra eles, as gentes debeladasVingança e ódio. Os ecos repetiramMuita vez a pocema de combate;Nuvens e nuvens de afiadas setasTodo o ar cobriram; mas o extremo gritoDa vitória final só deles fora.

III

Despem armas de guerra; a paz os chamaE o seu bárbaro rito. Alveja pertoO dia em que primeiro a voz levanteA ave sagrada, o nume de seus bosques,Que de agouro chamamos, CupuabaMelancólica e feia, mas ditosaE benéfica entre eles.28 Não se curvamAo nome de Tupã, que a noite e o diaNo céu reparte, e ao ríspido guerreiroGuarda os sonhos do Ibaque e eternas danças.Seu deus único é ela, a benfazejaAve amada, que os campos despovoaDas venenosas serpes — viva imagemDo tempo vingador, lento e seguro,Que as calúnias, a inveja e o ódio apagam,E ao conspurcado nome o alvor primeiroRestitui. Uso é deles celebrar-lheCom festas o primeiro e o extremo canto.

IV

Terminara o cruento sacrifício.Ensopa o chão da dilatada selvaSangue de caititus, que o pio intentoLargos meses cevou; bárbara usançaTambém de alheios climas. As donzelas,Mal saídas da infância, inda embebidasNos ledos jogos de primeira idade,Ao brutal sacrifício... Oh! cala, esconde,Lábio cristão, mais bárbaro costume.

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V

Agora a dança, agora alegres vinhos,Três dias há que de inimigos povosEsquecidos os trazem. Sobre um troncoSentado o chefe, carregado o rosto,Inquieto o olhar, o gesto pensativo,Como alheio ao prazer, de quando em quandoÀ multidão dos seus a vista alonga,E um rugido no peito lhe murmura.Quem a fronte enrugara do guerreiro?Inimigo não foi, que o medo nuncaO sangue lhe esfriou, nem vão receioDa batalha futura o desenlaceLhe fez incerto. Intrépidos como elePoucos vira este céu. Seu forte braço,Quando vibra o tacape nas pelejas,De rasgados cadáveres o campoInteiro alastra, e ao peito do inimigo,Como um grito de morte a voz lhe soa.Nem só nas gentes o terror infunde;É fama que em seus olhos cor da noite,Inda criança, um gênio lhe deixaraMisteriosa luz, que as forças quebraDa onça e do jaguar. Certo é que um dia(A tribo o conta, e seus pajés o juram)Um dia em que, do filho acompanhado,Ia costeando a orla da floresta,Um possante jaguar, escancarandoA boca, em frente do famoso chefeEstacara. De longe um grito surdoSolta o jovem guerreiro; logo a setaEmbebe no arco, e o tiro sibilanteIa já disparar, quando de assombroA mão lhe afrouxa a distendida corda.A fera o colo tímida abatera,Sem ousar despregar os fulvos olhosDos olhos do inimigo. Ureth ousadoArco e frechas atira para longe,A massa empunha, e lento, e lento avança;Três vezes volteando a arma terrível,Enfim despede o golpe; um grito apenas.Único atroa o solitário campo,E a fera jaz, e o vencedor sobre ela.

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NOTAS (No original, o autor usou letras e não números, para marcar as notas)

1 Simão de Vasconcelos não declara o nome da índia, cuja ação refere em sua Chronica.Achei que não foi o caso desta tamoia o único em que tão galhardamente se manifestou a fidelidade conjugal e cristã.

O padre Anchieta, na carta escrita ao padre-mestre Lainez, a 16 de abril de 1563, menciona o exemplo de umaíndia, mulher de um colono, a qual, depois de lho matarem os índios, caiu em poder destes, cujo Principal a quis violentar.Ela resistiu e desapareceu. Os índios fizeram correr a voz de que se matara; Anchieta supõe que eles mesmos lhe tiraram avida. Caso análogo é referido pelo padre João Daniel (Tesouro descoberto no Amazonas, p. 2a, cap. III); essa chamava-seEsperança e era da aldeia de Cabu.

2 A vila de S. Vicente.

3 Tinham os índios a religião monoteísta que a tradição lhes atribui? Nega-o positivamente o Sr. Dr. Couto de Magalhães emseu excelente estudo acerca dos selvagens, asseverando nunca ter encontrado a palavra Tupã nas tribos que freqüentou, eser inadmissível a idéia de tal deus, no estado rudimentário dos nossos aborígenes.

O Sr. Dr. Magalhães restitui aos selvagens a teogonia verdadeira. Não integralmente, mas só em relação ao sol e àlua (Coaraci e Jaci), acho notícia dela no Thesouro do padre João Daniel ( citado na nota 1); e o que então faziam os índios,quando aparecia a lua nova, me serviu à composição que vai incluída neste livro (pag. 58)

Sem embargo das razões alegadas pelo Sr. Dr. Magalhães, que todas são de incontestável procedência, conserveiTupã nos versos que ora dou a lume; fi-lo por ir com as tradições literárias que achei, tradições que nada valem no terrenoda investigação científica, mas que têm por si o serem aceitas e haverem adquirido um como direito de cidade.

* Pomos os versos em itálico para facilitar a leitura, embora o autor assim não os tenha colocado.4 É ocioso explicar em notas o sentido desta palavra e de outras, como pocema, muçurana, tangapema, canitar, com asquais todo leitor brasileiro está já familiarizado, graças ao uso que delas têm feito poetas e prosadores. É também desnecessáriofundamentar com trechos das crônicas a cena do sacrifício do prisioneiro, na estância XI; são coisas comezinhas.

5 Simão de Vasconcelos (Not. Do Brasil. Liv 2º ) citando Marcgraff e outros autores, conta, como verdadeira, a fábula a quealudem estes versos. Aproveitou-se dali uma comparação poética: nada mais.

6 Veja G. Dias, Últimos cantos, pág 159:...Quanto o meu corpo

À terra, mãe comum...

7 Anagê, na língua geral, quer dizer gavião.

* Embora não adotados pelo autor, utilizamos na entrefala o itálico e únicas aspas para facilitar a compreensão do texto.8 Não sabido, ainda hoje o digo sem armar à contestação dos benévolos. Mas havia uma razão para mais escrever aquelaspalavras quando compus este pequeno poema; destinava-o à publicação anônima, o que se verificou nas colunas do Jornaldo Commercio em junho e agosto de 1870, tendo por assinatura um simples Y.

* No original está escrito todo, sem correção na errata.9 Tratando de descobrir a significação de Panenioxe, conforme escreve Rodrigues Prado, apenas achei no escasso vocabuláriognaicuru, que vem de Aires do Casal, a palavra nioxe traduzida por jacaré. Não pude acertar com a significação do primeiromembro da palavra, pane; há talvez relação entre ele e o nome do rio Ipané.

10 “Estas duas armas ( lança e facão) têm sido tomadas aos portugueses e espanhóis, e algumas compradas a estes queinadvertidamente lhas têm vendido” (RODRIGUES PRADO, História dos Índios Cavaleiros.)

11 Nanine é o nome transcrito na História dos Índios Cavaleiros. Na língua geral temos niaani, que Martius traduz porinfans. Esta forma pareceu mais graciosa; e não duvidei adotá-la, desde que o meu distinto amigo, Dr. Escragnolle Taunay,me asseverou que, no dialeto guaicuru, de que ele há feito estudos, niani exprime a idéia de moça franzina, delicada, não

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lhe parecendo que exista a forma empregada na monografia de Rodrigues Prado.

12 Os Guaicurus dividem-se em nobres, plebeus ou soldados, e cativos. Do próprio texto que me serviu para esta composiçãose vê até que ponto repugna aos nobres toda a aliança com pessoas de condição inferior.

A este propósito direi a anedota que me foi referida por um distinto oficial de nossa armada, o capitão-de-fragata Sr.Henrique Batista, que em 1857 esteve no Paraguai comandando o Japorá, entre o forte Coimbra e o estabelecimentoSebastopol. Ia muita vez a bordo do Japorá um chefe guaicuru, Capitãozinho, muito amigo da nossa oficialidade. Tinha eleuma irmã, que outro chefe guaicuru, Lapagata, cortejava e desejava receber por esposa. Lapagata recebera o título decapitão das mãos do presidente de Mato-Grosso. Opunha-se com todas as forças ao enlace o Capitãozinho. Um dia,perguntando-lhe o Sr. H. Batista porque motivo não consentia no casamento da irmã com Lapagata, respondeu o altivoGuaicuru:

— Oponho-me, porque eu sou capitão por herança de meu pai, que já o era por herança do pai dele. Lapagata écapitão de papel.

* No original, o autor utilizou-se da forma verbal vas.13 As bocaiúvas servem de alimento aos Guaicurus; nas proximidades de sazonarem os cocos fazem eles grandes festas.(Veja CASAL e PRADO.)

14 Tais eram os adornos das mulheres guaicurus (Veja PRADO, CASAL e D’AZARA.)

15 “As moças ricas vão enfeitadas, como se ornariam para o próprio noivado.” (AIRES DO CASAL, Corog., 280.)

16 Cédron, como se sabe, é o nome da torrente que atravessa o vale de Josafá. Lê-se em Chateaubriand que durante umaparte do ano fica seca; por ocasião de temporais ou nas primaveras chuvosas rola umas águas avermelhadas.

* Manteve-se o acento para preservar o sentido do verso.17 Alude a um trecho do profeta Daniel:

“ 9 – E lavei-te na água, e alimpei-te do teu sangue, e te ungi com óleo.13 – E foste enfeitada de ouro e prata, e vestida de linho e de roupas bordadas, e de diversas cores: nutriste-te da

farinha e de mel e de azeite, e foste mui aformoseada em extremo.”(DANIEL, XV)

* O autor não esclarece, no original, os limites dos diálogos nestes versos, por isso optou-se pelos itálicos, que nos pareceumelhor traduzir a vontade autoral.18 Rebeca, filha da Mesopotâmia.

19 Bento do Amaral Gurgel, que dirigiu a companhia de estudantes por ocasião daquela e da seguinte invasão, em 1711.

20 Ângela pratica o inverso daquele conselho atribuído aos rabinos de Constantinopla, respondendo aos judeus de Espanha,isto é, que batizassem os corpos, conservando as almas firmes na Lei. Ângela conserva o batismo da alma, e entrega o corpoao suplício como se fosse verdadeiramente judeu. Nega a fé com os lábios, confessando-a no coração: maneira de conciliaro sentimento cristão e a piedade filial. Era mais ortodoxo, de certo, confessar publicamente a fé, sem nenhum respeitohumano; cumpre observar, porém, que isto é uma composição poética, não um compêndio de doutrinas morais.

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21 Compus estes versos por ocasião de ser inaugurada a estátua do patriarca da Independência, em 7 de setembro de 1873.Pediu-mos o Sr Comendador J. Norberto de S. S., ilustrado vice-presidente do Instituto Histórico e membro da

comissão que promovera aquele monumento. Não podia haver mais agradável tarefa do que esta de prestar homenagem aohonrado cidadão, cujo nome a história conserva ligado ao do Fundador do Império..* Manteve-se a forma marge em razão da métrica.* Os itálicos são do organizador do texto.* No original consta do triunfos.22 A verdadeira pronúncia desta palavra é an-hangá. É outro caso (veja a nota 3) em que fui antes com a maneira corrente ecomum na poesia.

* Foram utilizados itálicos para facilitar o entendimento do texto.23 Não é original esta composição; o original é propriamente indígena. Pertence à tribo dos Mulcogulges, e foi traduzida dalíngua deles por Chateaubriand (Voy. dans l’Amer). Tinham aqueles selvagens fama de poetas e músicos, como os nossosTamoios. “Na terceira noite da festa do milho, lê-se no livro de Chateaubriand, reúnem-se no lugar do conselho; e disputamo prêmio do canto. O prêmio é conferido pelo chefe e por maioria de votos: é um ramo de carvalho verde. Concorrem asmulheres também, e algumas têm saído vencedoras; uma de suas odes ficou célebre.”

A ode célebre é a composição que trasladei, para a nossa língua. O título na tradução em prosa de Chateaubriand é— Chanson de la chair blanche.

Sobre o talento das mulheres para a poesia, também o tivemos em tribos nossas. Veja FERNÃO CARDIM, Narrativade uma viagem e missão.

* Citação conforme texto original de Machado de Assis.24 Il y aurait une fort grande injustice à juger les jesuites du seizième siècle et leurs travaux, d’après les idèes que peutinspirer le système suivi dans les missions. Là on peut voir des projets ambitieux s’allier à des vues habiles: dans lespremiers travaux executés par les pères de la compagnie, au Brésil, tout fut desinteressé; et au besoin, le récit de leurssouffrances pourrat le prouver. ( F. DÈNIS, Le Brésil.)

25 “...E na verdade tem ocasiões em que festejam muito a lua, como quando aparece nova; porque então saem de suaschoupanas, dão saltos de prazer, saúdam-na e dão-lhe as boas-vindas. (JOÃO DANIEL Thes. Descob. no Amaz., part 2a, capX.)

* No texto original consta co’as frutos, sem errata.* Corrigido pelo autor na errata. No texto consta Como.* Mantivemos a acentuação do autor apenas para caracterizar a pronúncia fechada da vogal.* A forma provável da preposição é de. Manteve-se conforme registra o original.26 Não me recordo de haver lido nos velhos escritos sobre os nossos aborígenes a crença que Montaigne lhes atribui acercadas almas boas e más. Este grande moralista tinha informações geralmente exatas a respeito dos índios; e a crença de quetratamos traz certamente um ar de verossimilhança. Não foi só isso o que me induziu a fazer tais versos; mas também o queachei poético e gracioso na abusão.

* Foi mantida a forma fertiles e não férteis em razão da métrica.27 Tinha planeado uma composição de dimensões maiores, e não levei a cabo, por intervirem outros trabalhos, que de todome divertiram a atenção. Foi o nosso eminente poeta e literato de Porto Alegre, hoje Barão de Santo Ângelo, quem, há cercade 4 anos, me chamou a atenção para a relação de Monterroyo Mascarenhas, Os Orizes Conquistados, que vem na Revistado Instituto Histórico, t. VIII.

A aspereza dos costumes daquele povo, habitante do sertão da Bahia, cerca de duzentas léguas da capital, sua raraenergia, as circunstâncias singulares da conquista e conversão da tribo, eram certamente um quadro excelente para umacomposição poética. Ficou um fragmento, que ainda assim não quis excluir do livro.

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NOTA DO ORGANIZADOR: No original do poema citado o título apresenta a grafia Orises

28 “Lastimosamente cegos de discurso, reconhecem e adoram por deus a coruja, chamada na sua linguagem Oitipô-cupuaaba;e o motivo de sua adoração consiste no benefício que recebeu desta ave, que, naturalmente, inimiga das cobras, numerosíssimasnaquele país, as espia nos matos, e lhes tira a vida.” (J.F. MONTERROYO MASCARENHAS, Os Orizes Conquistados.)