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todo terreno 39 AVENTURA NO DESERTO MAIS ÁRIDO DO MUNDO [ 6075 KM ATRAVÉS DOS ANDES EM KIA SORENTO 4WD ] 38 todo terreno A SEGUNDA EDIÇÃO SUL-AMERICANA DO “DAKAR” EXPLOROU O DESERTO MAIS ÁRIDO DO MUNDO, CONFRONTANDO AS EQUIPAS COM TRAÇADOS INCRÍVEIS E TÃO BELOS QUANTO DUROS QUE, UMA VEZ MAIS, FOMOS DESCOBRIR NUMA EXPEDIÇÃO POR CONTA PRÓPRIA. DURANTE DUAS SEMANAS ATRAVESSÁMOS VÁRIAS VEZES OS ANDES PARA IR AO ENCONTRO DAS ESCALAS DO RALI, NUMA VIAGEM QUE PERMITIU AINDA CONHECER OUTRAS PARAGENS, COMO AS QUE NOS LEVARAM A PERCORRER PISTAS SALPICADAS PELAS ONDAS DO PACÍFICO, NO CHILE, OU ENVOLTAS NO MAIOR SILÊNCIO, ACIMA DOS QUATRO MIL METROS DE ALTITUDE, NO NORTE DA ARGENTINA, POR ONDE O RALI VAI PASSAR EM 2011... [Texto: Alexandre Correia Fotos: Paulo Calisto]

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AVENTURA NO DESERTOMAIS ÁRIDO DO MUNDO

[ 6075 KM ATRAVÉS DOS ANDES EM KIA SORENTO 4WD ]

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A segundA edição sul-AmericAnA do “dAkAr” explorou o deserto mAis árido do mundo, confrontAndo As equipAs com trAçAdos incríveis e tão belos quAnto duros que, umA vez mAis, fomos descobrir numA expedição por contA própriA. durAnte duAs semAnAs AtrAvessámos váriAs vezes os Andes pArA ir Ao encontro dAs escAlAs do rAli, numA viAgem que permitiu AindA conhecer outrAs pArAgens, como As que nos levArAm A percorrer pistAs sAlpicAdAs pelAs ondAs do pAcífico, no chile, ou envoltAs no mAior silêncio, AcimA dos quAtro mil metros de Altitude, no norte dA ArgentinA, por onde o rAli vAi pAssAr em 2011...

[Texto: Alexandre correia Fotos: paulo calisto]

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Com duas edições já cumpridas na Argentina e no Chile que conheceram enorme sucesso e uma terceira em prepara-ção, os dois países que ocupam a ponta da América do Sul parece terem conquistado definitivamente o Rali Dakar, en-trando na rota dos aventureiros que têm o todo-o-terreno

como meio ideal para os seus desafios e viagens. Para quem já estava um tanto cansado de repetir os mesmos percursos e lugares através de Marrocos, da Mauritânia e do Senegal, esta renovação não podia ter sido mais aliciante. E ao ir ao encontro das paragens por onde agora se orienta a caravana do “Dakar”, confirmámos que a prova não perdeu com a troca. Apenas se tornou diferente, o que não significa que seja menos interes-sante, menos competitiva, ou até bonita do que era enquanto se arrastava durante 15 dias desde Lisboa até Dakar. Bem pelo contrário, arriscamo-nos a dizer que até se tornou mais interessante...A discussão quanto ao interesse do Rali Dakar nos seus novos cenários é sobretudo alimentada pela ignorância dos defensores da tese de que a prova apenas tem cabimento em África. Sem queremos ofender nin-guém — de modo algum! — essa é uma tese defendida com paixão, mas que não é sustentada pela razão. Simplesmente porque na Argentina e no Chile é possível encontrar traçados tão desafiantes, tão belos, tão duros e tão exigentes do ponto de vista de condução e de navegação quanto aqueles que caracterizavam as rotas pelo norte de África, fosse o traçado mais tradicional por Marrocos, Mauritânia e Senegal, ou a alter-nativa algumas vezes repetida pela Tunísia, Líbia e Egipto. Comparando a via mais usual do “Dakar”, que descia desde o norte de África pelos países junto à costa atlântica, os cenários que encontramos na Argen-tina e no Chile não ficam atrás. Algumas pistas nas pampas argentinas são similares às da savana do Sahel, no sul da Mauritânia, no Mali e no Senegal, na zona onde termina o Sahara e começa verdadeiramente a África negra, faltando-lhes os característicos embondeiros, mas não as picadas poeirentas e rápidas, onde ensaiar uma ultrapassagem é quase

Ao lado, a enorme falésia de rocha avermelhada que estabelece uma fronteira natural entre o Vale da Lua e as terras que se estendem para lá do Parque Natural de Ischigualasto, nos limites da província de San Juan, norte da Argentina. Em cima, o “submarino”, uma formação rochosa no mesmo parque que lembra o célebre “Yellow Submarine” dos Beatles. O rali passou bem perto…

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que uma tentativa de suicídio, já que até as motos deixam no ar um rastro de poeira que fica longamente em suspensão, quanto mais os carros e os camiões... As pistas pedregosas e demolidoras de Marrocos, que sem-pre foram o terror dos concorrentes amadores, pois era onde ocorria o maior número de abandonos entre este tipo de equipas, rivalizam com muitas das pistas andinas, seja do lado argentino ou chileno da cordilhei-ra. Também neste caso, a maior diferença reside na paisagem e, mesmo assim, as diferenças não são tão acentuadas quanto no caso anterior. Finalmente, as dunas mauritanas não são mais traiçoeiras do que as de Fiambalá, La Rioja e San Rafael, na Argentina, ou as de Copiapó, Antofa-gasta e Iquique, no Chile. Ambas constituem o obstáculo mais temível de desertos emblemáticos, o Sahara e o Atacama, que são igualmente ras-gados por cadeias montanhosas, traiçoeiros lagos secos salgados — os chamados chotts do Sahara e os salares do Atacama — e estendem-se até oceanos: o Atlântico e o Pacífico.Quem conhece bem os traçados norte-africanos e sul-americanos não du-vida que as condições do terreno são assim tão semelhantes mas, mesmo perante esta conclusão, quem não conhece os cenários perguntará, natu-ralmente, o que faz a diferença? A resposta não podia ser mais simples e parte dela explica porque o Rali Dakar faz todo o sentido nestas terras da América do Sul: as paisagens estabelecem uma diferenciação, mais acen-tuada numas zonas do que noutras, mas são sobretudo as pessoas que fazem a diferença. As pessoas e os lugares onde vivem, desde as grandes metrópoles como Buenos Aires e Santiago do Chile a pequenas cidades como Fiambala e Copiapó.Seja onde for que passemos na Argentina e no Chile, o entusiasmo pelo Rali Dakar é incrível, contrastando com a indiferença que na maior parte das vezes marcava a passagem da prova nas suas rotas africanas, onde normalmente o interesse que despertava prendia-se com as oportunida-des de negócio especulativo — à excepção de Marrocos, todos os preços

Num recanto do nordeste do Chile encaixado entre a Argentina e a Bolívia, a meio caminho de San Pedro de Atacama para o Paso Jama, cada vale esconde uma lagoa ou um salar; algumas, como a da imagem, são as duas coisas em simultâneo. Estamos acima dos quatro mil metros de altitude e os ventos fortes dos cumes andinos esculpem formas estranhas nas rochas, como nestas, a quem chamam as Pedras dos Monges, por criarem a ilusão de um grupo de monges com os seus capuzes.

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subiam à passagem da caravana, por vezes de forma absurda e sem a mínima justificação senão a de obter um lucro fácil — e não, como agora sucede, com a emoção que a própria corrida desperta junto das pessoas. Tanto no ano passado, como neste ano, isso foi, aliás, bem visível duran-te a realização do “Dakar”, mas sentimo-lo imenso também enquanto andámos sozinhos a percorrer a Argentina e o Chile, das Pampas ao Atacama, nas duas expedições que empreendemos antes de cada uma das provas. Não queremos dizer que não se faça negócio com o rali na América do Sul. Claro que se faz, mas não da mesma maneira. Infeliz-mente, em África, durante o “Dakar” até uma simples informação pode custar dinheiro, quanto mais a ajuda para resolver qualquer precalço, como um atolanço na areia; pelo contrário, a nossa experiência de seis viagens na Argentina e três no Chile em 16 anos, onde acumulámos lar-gos milhares de quilómetros em todo-o-terreno, sempre nos mostrou esse entusiasmo pelos desportos motorizados, coleccionando bastante mais boas experiências do que más.O factor segurança foi o elemento determinante para tornar absolutamente incontornável a opção sul-americana como novo território do Rali Dakar pois entre cenários que oferecem condições similares, só a falta de bom senso não escolhe aquele que garante maior segurança.Por muito que gostemos de África — e que ninguém duvide de que gos-tamos imenso! — os encantos de uma viagem pela Argentina e Chile, como esta última que fizémos para melhor conhecer os novos lugares que a organização escolheu para renovar a prova, não são inferiores,

mesmo jornadas em que percorremos pistas de manhã à noite sem en-contrar vivalma. Se as coisas corressem mal, teriam corrido mesmo mal...

rumo Ao nortePara não variar, iniciámos esta viagem na Praça da República, junto ao célebre obelisco construído em 1936 para comemorar o quarto centenário da capital argentina e que interrompe a não menos famosa Avenida 9 de Julho, tida como a mais larga do mundo. É neste local emblemático de Buenos Aires que decorre a cerimónia oficial de partida do Rali Dakar, que em 2009 juntou meio milhão de assistentes, enquanto que este ano os nú-meros revelados pelas autoridades da Capital Federal — como localmente designam Buenos Aires, para diferenciar do Estado com o mesmo nome — foram ainda mais impressionantes, estimando-se que tenham estado presentes cerca de 800 milhares de espectadores.Perante estes números, a nossa partida rumo ao norte não podia ter sido mais anónima, pois somente captámos o olhar curioso de alguns turistas que fotografavam naquele instânte o obelisco e de dois sem abrigo que se encharcavam de vinho enquanto se preparavam para dormir uma sesta no relvado do canteiro diante do monumento e que, pela forma como nos olharam repetidamente, talvez tenham achado estranho ver o nosso Kia Sorento 4WD decorado com os logotipos da Total, da Pneuvita e, claro, da Todo Terreno, dar várias voltas seguidas à rotunda do obelisco, pois o Pau-lo Calisto insistia que tinha de enquadrar numa foto do monumento a enor-me bandeira argentina içada mesmo ao lado completamente desfraldada.Quando finalmente partimos, o conta-quilómetros do Sorento marcava um

A Praça da República e o Obelisco de

Buenos Aires. Na capital argentina não há lugar mais central

e tal como o Rali Dakar por duas vezes

partiu deste ponto, também nós voltámos

a arrancar daí para mais uma expedição

sul-americana.

Os Jesuítas marcaram fortemente Córdoba, a segunda cidade argentina, que é também a segunda escala do rali,

que desenvolve nas serras em redor uma das etapas com maior participação do público.

mas a descontracção com que vivemos cada dia é incomparavelmente superior. E isso sim, acredite, faz toda a diferença!

no pAsA nAdA...O que realmente cria a ideia de que a aventura parece bem maior em África do que na América do Sul é a dose do risco, incomparavelmente mais elevada em terras africanas do que nestes novos territórios sul-ame-ricanos, onde temos a confortável sensação de que “no pasa nada”, como dizem os locais. Porém, que ninguém se iluda, porque santos e pecadores há em todo o mundo e nenhum país está livre disso. Muito embora a fama de África ser um continente onde os assaltos aos estrangeiros espreitam após cada esquina das cidades, após cada curva das estradas, a verdade é que em dezenas de viagens por África a única vez que sofremos um roubo foi no mais luxuoso hotel de Windhoeck, capital da Namíbia, onde cinco mil Dólares voaram de uma bolsa inadvertidamente deixada fora do cofre de segurança, pela pressa de sair para um jantar de cerimónia com o ministro namibiano que tutelava o turismo. Uma das coisas que sempre tememos acontecer, o roubo de uma roda sobressalente — por ser quase que uma tentação, de tão fácil que é retirá-la de qualquer carro onde não esteja guardada no interior — jamais nos aconteceu em África. Mas deu-nos imensas dores de cabeça nesta última viagem, quando após termos sofrido um furo no meio do nada, a quase cinco mil metros de altitude, descobrimos que a roda de socorro tinha sido roubada...Um dos segredos para o sucesso de qualquer viagem consiste em

anteciparmo-nos aos sarilhos e evitar metermo-nos na cabeça do lobo, ou seja, fugir de situações que possam degenerar em conflito e não entrar sequer nos lugares que aparentem ser inseguros. Ir ao encontro destas coisas não é aventura, é irresponsabilidade e ingenuidade.Quando se trata de todo-o-terreno, aventura é traçar o nosso caminho, enfrentar o desconhecido, desafiarmo-nos para superar tarefas como um percurso longo, isolado e difícil, mas sobretudo ficarmos entregues a nós próprios. Neste caso, quanto mais dos aspectos anteriores juntarmos num só momento, maior será o aventura: assim o sentimos durante os 12 dias que passámos na Argentina e no Chile a procurar conhecer melhor quer os traçados e as escalas do Rali Dakar, quer ainda toda uma série de rotas alternativas, válidas para uma expedição a solo, mas inacessíveis a uma ca-ravana, especialmente com a dimensão e os objectivos desta competição. É esse o caso dos inúmeros parques naturais que tanto num país como no outro podemos encontrar em inúmeras zonas mesmo ao lado dos percur-sos incluídos no rali, cujo itinerário vai fazendo alguns zigue-zagues para se desviar das áreas protegidas e mais sensíveis a uma invasão massiva como a que ocorre com esta prova, seja pela passagem de centenas de veículos das equipas concorrentes, seja ainda pela enorme quantidade de espectadores que chegam a todo o lado.Sem exagero, praticamente não vimos ninguém nem nos cruzámos com outros veículos durante mais de metade dos 6075 quilómetros que per-corremos desde que saímos até que regressámos a Buenos Aires. Foi o que sucedeu sempre que trocámos o asfalto por pistas de terra. Sobretudo na costa chilena, no Atacama e nas cordilheiras dos Andes, onde houve

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Desfiladeiros apertados e falésias impressionantes contrastam com

vales amplos onde a natureza desenhou rochedos como esta

esfinge egípcia. É assim no Parque Natural de Ischigualasto, entre San Juan e La Rioja, no norte da Argentina, onde outra das

curiosidades é um campo semeado de esferas de pedra! Continuando

mais para norte, a caminho de Chilecito a pista, rodeada por

cactus, leva-nos acima das nuvens.

total de 1516 quilómetros. Ainda cheirava a novo pelo que decidimos não exagerar na velocidade durante os primeiros dias, tanto mais que o calor apertava. Atestámos de gasóleo num posto ainda na Avenida 9 de Julho e tomámos rumo ao norte por uma estrada já bem conhecida de viagens anteriores: a Ruta 9, uma das principais vias da Argentina, que liga a Capital Federal quase até à fronteira com a Bolívia, cerca de 1800 quilómetros mais acima. Nesta primeira jornada, o objectivo era alcançar Córdoba, a segunda maior cidade do país, e uma das mais ricas do ponto de vista histórico e cultural. Lá, a presença secular dos jesuítas foi marcante e deixou uma herança tão presente no património construído — o quarteirão jesuíta no centro da cidade é notável, como também o são as diversas estâncias jesuítas dispersas nas serras em redor — quanto nos costumes, pois ao ter acolhido uma das primeiras universidades da América do Sul e a primeira da Argentina, precisamente instalada pelos padres da Compa-nhia de Jesus, em 1621, desde então Córdoba não mais deixou de ser uma cidade de estudantes e a sua numerosa população jovem criou hábitos e tradições que lhe dão uma grande vida. Pelas 20 horas, quando entrámos em Córdoba, o dia estava a desaparecer, mas as ruas pareciam encher-se cada vez mais de gente, sobretudo jovens. Porém, não os seguimos nas suas tradições nocturnas e optámos por um programa bem mais conser-vador — a que não será errado dizer saudável, embora pareça conversa de velhos... — que se resumiu a um jantar tranquilo, uma caminhada para ajudar à digestão e “caminha”, porque as seis horas e meia de condução tinham sido bem cansativas.

De facto, desde que saímos de Buenos Aires até alcançarmos Córdoba, somente fizémos uma paragem: detivémo-nos em Armstrong, pequena ci-dade tipicamente provinciana, bem no meio das Pampas, ligeiramente des-viada da Ruta 9, que passaria totalmente despercebida sem as placas que indicam o desvio até lá. Em Armstrong não existem edifícios com mais de dois pisos, todas as ruas foram traçadas em esquadria perfeita e no centro não há uma esquina que não tenha uma gelataria, embora sejam raros os cafés. Depois de descobrirmos o café Central, em frente da moderna igreja local, onde nos serviram um suculento hamburger que tinha carne para uma dúzia deles no McDonalds, fomos investigar o porquê de tantas casas de gelados e rendemo-nos a uma taça cheia de calorias. Tudo isto não nos demorou mais de meia hora, mas foi um intervalo bem merecido e retemperador. Nessa altura, já tinha ficado para trás o troço mais movi-mentado da estrada, até à cidade de Rosário, e avançavamos quase que no meio de um deserto verde, rodeado por pastos a perder de vista, divididos por quilómetros e quilómetros de cercas, pontualmente interrompidas por portões de madeira pintados de branco e ladeados por alamedas de enor-mes eucaliptos, que traçavam o caminho até às casas destas fazendas, que imaginamos preencherem uma imensidão de hectares. Por vezes, as ve-dações são interrompidas por estradões de terra, onde espreitamos rectas intermináveis que conduzem a aldeias dispersas pela planície. A primeira e a última etapas do rali não conseguem escapar destes caminhos, bem poeirentos quando o tempo está seco, mas infernais quando chove, pois transformam-se em autênticos atoleiros de lama onde, por vezes, há que

esperar que a lama seque para conseguir libertar um veículo atascado. Como no ano anterior já tínhamos percorrido longos quilómetros nestes caminhos poeirentos das Pampas, desta vez dispensámo-los.

descobrir o vAle dA luAEm contrapartida, no dia seguinte, ao deixarmos Córdoba, não dispensá-mos um atalho igualmente já conhecido da expedição anterior, seguin-do até à pequena cidade de Jesus Maria, atravessando depois as Sierras Chicas e o Vale de Ongamira pelo admirável estra-dão de terra que passa pela não menos monumental Estância de Santa Catalina. Trata-se da única antiga Estância Jesu-íta que é privada, mantendo-se na posse da mesma família desde 1767, quando os espanhóis decidiram expulsar os jesuítas e expropriaram todos os seus bens. Com uma linda igreja de estilo barroco, fachada de duas torres e uma única nave, o conjunto de Santa Catalina integra den-tro dos seus muros o antigo cemitério, a residência — que continua a uso —, o noviciado e dois outros edifícios térreos que se articulam entre si por claustros e corredores. Não foi à toa que a Unesco atribuíu a esta estância a distinção de Património da Humanidade; passar na região sem ir visitá-la seria, para nós, imperdoável.Em Jesus Maria, pouco antes de nos embrenharmos nos caminhos de terra das Sierras Chicas, despedimo-nos da Ruta 9, que seguíamos desde Buenos Aires. Esta estrada dá alguma importância à povoação, que se or-gulha de ter contado entre os seus visitantes mais ilustres com um jovem norte-americano chamado Jonh Fitzgerald Kennedy, que ali passou uns dias numa estância termal, em 1941, onde mais de duas décadas depois se refugiaram também por alguns dias Jacqueline Kennedy e os dois filhos, já o Presidente dos EUA que ficou conhecido por JFK tinha sido assassi-nado. Verdade seja dita, Jesus Maria parece inspirar a remissão de todos os pecados, pois além das Estâncias Jesuítas e das termas, tem também diversas “estâncias” vinícolas...

Antes dos padres jesuítas e dos colonizadores espanhóis terem chegado, estas terras eram os domínios de duas tribos de índios: os comechigones e os sanavirones. Os primeiros tinham nas Sierras Chicas diversos luga-res sagrados, como o vale de Ongamira, que na língua indígena significa “Deus da energia criada”. Quem nos explicou isso e muito mais foi Marce-lo Perez Unamuno, um engenheiro de sistemas informáticos que trocou um emprego confortável na IBM e a vida “infernal” da Cidade do México por uma fazenda neste vale, onde juntamente com a sua mulher, Sol, estabeleceu um pequeno restaurante e algumas cabanas para alojamento turístico: o Parador Raíces, que nos despertou a curiosidade e a fome, ao passar junto ao desvio para esta fazenda, onde Marcelo e Sol anunciam boa gastronomia. Não tivémos tempo para experimentar as promissoras ementas deste casal, mas entre dois dedos de conversa deliciosa — Mar-celo contou-nos que “perdemos dinheiro, mas ganhámos uma fortuna em qualidade de vida e isso não tem preço” — ficámos bem satisfeitos com um pão caseiro humedecido com azeite e guarnecido com presunto e

... cruzámo-nos com (...) numerosos Guanacos, “primo” do Lama, com pescoço comprido e cabeça que lembra imenso o Camelo...

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azeitonas, que acompanhámos com a primeira de uma numerosa colecção de garrafas de Salta Negra, óptima cerveja preta. O café, esse foi tomado já em Villa Soto, a primeira povoação que encontrámos depois de deixar os es-tradões serranos e tomar o asfalto da Ruta 38, direcção norte, para La Rioja.Após ultrapassarmos Villa Soto, saímos das serras de Córdoba — cenário do Rali da Argentina, pontuável para o WRC, bem como da primeira etapa competitiva do último “Dakar” — e entrámos de novo em grandes planí-cies polvilhadas de cactus, rolando por uma estrada com rectas enormes, quase sempre com mais de 10 quilómetros de comprimento. Por outras palavras, desde a paragem para o café até nos desviarmos da Ruta 38, em Patquia, não descrevemos muito mais de duas dezenas de curvas.Inicialmente tínhamos pensado rolar até La Rioja, mas Marcelo indicou-nos um hotel mais próximo do Vale da Lua, o parque natural que pretendíamos visitar no dia seguinte. Isso fez-nos mudar de destino e, claro, de rota. Como não imaginávamos o que poderíamos encontrar em Villa Unión, de-cidimos jogar pelo seguro e jantámos em Patquia, num restaurante bem modesto no cruzamento da estrada principal. Era tão modesto que nem sequer tinham stock de bebidas: quando pedimos uma Salta Negra — a terceira da viagem, empatando com o número de garrafas de tinto Malbec de Mendoza entretanto saboreadas... — o dono saíu discretamente e foi comprá-la à loja da bomba de gasolina, mesmo em frente, onde logo a se-guir fomos alimentar o Kia Sorento — que nos estava a surpreender pelos consumos bem modestos, apesar de dispor de transmissão automática — e tomar um café expresso. Quando pedimos a conta, até deu vontade de rir: dois bifes panados com batatas fritas e ovo a cavalo, uma cerveja grande e pão custaram-nos 30 pesos, o equivalente a seis euros.Os 202 quilómetros desde Patquia até Villa Unión, através da Ruta 150, foram cumpridos totalmente de noite e ainda bem, porque se não tives-semos perdido tanto tempo com as sucessivas paragens desta jornada, jamais teríamos tido oportunidade de contemplar o céu, como vimos nessa noite, enquanto conduzíamos. O céu estava incrivelmente estrelado e com uma frequência impressionante era rasgado por estrelas cadentes, que deixavam atrás de si um rastro de luz que perdurava durante segundos e segundos. Na manhã seguinte, ao voltar para trás mais de metade deste caminho para irmos conhecer o Vale da Lua, consolámo-nos com a pai-sagem, mas ficámos ainda mais satisfeitos por termos sido presenteados com aquela noite estrelada.Chegámos até a pensar que iríamos acabar por dormir a olhar para o céu, pois o hotel onde tínhamos feito reserva estava encerrado. Foi um mistério que demorou a ser desvendado, mas tudo acabou bem: ligámos para um hotel, mas atenderam-nos de outro, pertencente ao mesmo grupo, onde registaram a reserva sem nunca nos dizerem o nome dessa unidade. Só por acaso descobrimos o equívoco, mas sempre nos livrámos de uma noite desconfortável, a dormir dentro do carro.

um diA nA terrA de nAdAO amplo Vale da Lua fica bem nos limites das províncias de La Rioja e de San Juan. Na área do primeiro situa-se o Parque Nacional de Talampaya, impressionante com os seus desfiladeiros de paredes quase planas de pedra, que se erguem a cerca de 100 metros. Visitá-lo implica seguir numa excursão guiada a bordo do mini-bus do parque, que faz paragens

nalguns pontos. Claro que preferíamos ter a independência de levar o nosso Kia Sorento e dispor do tempo necessário para fotografar com calma tudo o que nos interessasse. Quando fizémos este desabafo no escritório da administração do parque, tudo mudou de figura. Imediata-mente nos disseram que não seríamos autorizados a captar fotografias, a menos que pagassemos primeiro uma licença. A conversa ficou por ali quando o funcionário, ele próprio meio constrangido com a situação, nos mostrou o decreto-lei federal que regulamentava o registo de imagens por profissionais no interiores dos parques nacionais. A sessão mais acessível, só para fazer algumas fotos, implicava pagar uma taxa de 8650 pesos — cerca de 1700 euros...Perante a nossa desistência, o funcionário confidenciou-nos uma dica preciosa, recomendando que avançassemos um pouco mais a sul e que fossemos antes visitar o Parque Natural de Ischigualasto, cujas atracções são similares, mas que tem um estatuto provincial, no qual não se aplica a regra federal. Na verdade, este parque fica quase em frente, já nos do-mínios da província de San Juan, mas tem apenas um portão de acesso, que implicou percorrer mais uma dezenas de quilómetros para voltarmos quase ao mesmo sítio. Foi, todavia, uma deslocação bem recompensada!No dialecto dos índios, Ischigualasto quer dizer “terra de nada”, numa alu-são ao facto destas terras não terem vida. O nome aplica-se mais num sentido figurado que real, pois embora a região seja semi-desértica, o que por ali não falta é vida, inclusivé vida selvagem. Ainda antes de transpor-mos o portão do parque, cruzámo-nos com vários bandos numerosos de guanacos — “primo” do lama, com pescoço comprido e cabeça que lembra imenso o camelo, que também dobra os joelhos para se baixar e que resis-te bastante à sede, embora não passe mais de quatro dias sem beber água.

Outrora bastante numerosos nas planícies, desde a Patagónia às Pampas, os guanacos foram fugindo para as terras altas dos Andes para escapar à caça desenfreada e acabaram por se adaptar aos ambientes montanhosos, povoando as serras e planaltos até cerca de quatro mil metros de altitude. A título de curiosidade, podemos ainda adiantar que os guanacos vivem ora em bandos de quatro a dez fêmeas, comandadas por um macho que não permite a aproximação de outro e que explulsa as crias machos quando atingem a idade juvenil, ora em bandos de dez a 50 machos, de todas as idades. A sensação de ver o primeiro bando de guanacos, um harém de fêmeas com o seu macho, foi semelhante à que temos em África quando avistamos as primeiras cabras de leque, ou as primeiras zebras: toda a gente fica excitadíssima por ver os primeiros animais selvagens, mas pou-co depois percebe que são tão frequentes que começa a nem ligar. Tal e qual se passou connosco, pois ainda comentávamos como eram bonitos e já estávamos de novo a travar para não atropelar outro bando idêntico, que se atravessava na estrada mesmo à frente. Já depois de entrar na área vedada do parque, ficámos supresos, literalmente, a olhar para as lebres maiores que alguma vez vimos: sem exagero, do tamanho de um cão, pe-sando, no mínimo, uns bons dez quilos! E tão dóceis que ficámos ali para-dos a olhar uns para os outros. Deu para perceber que a caça é proíbida dentro do parque e que pelo menos ali não têm o homem como predador. Têm os pumas!... Mais tarde, enquanto percorríamos as dezenas de quiló-metros de pistas de terra dentro do parque, o guarda que nos acompanhou explicou-nos que não se tratavam de lebres, mas sim de um parente raro, o Cavi da Patagónia, bastante maior e com uma carne deliciosa pois, como se justificou, têm de abater uns quantos de volta e meia para que não se reproduzam em demasia e se tornem numa praga.

Há mais 200 milhões de anos, no chamado período Triássico, esta Terra de Nada era uma terra de grande fartura, povoada por uma im-pressionante variedade de dinossáurios. Alguns deixaram pegadas tão vincadas no solo que mesmo passado todo este tempo continuam per-ceptíveis, enquanto outros enterraram ovos que os arqueólogos trata-ram de encontrar, descobrindo ainda imensos esqueletos de espéci-mes raros, de todas as classes, desde répteis carnívoros a herbívoros e mamiferoides.O passeio pelos estradões do parque de Ischigualasto ocupou-nos toda a manhã. Apesar de apenas termos rodado cerca de 40 quilómetros, as paragens foram tantas que o tempo passou sem dar conta. Pelo contrário, ficaram bem registadas as inúmeras atracções, particularmente as formas esquisitas que a erosão desenhou nas rochas — como uma esfinge egíp-cia digna de figurar no Vale dos Reis, ou outra que lembra o submarino amarelo imaginado pelos Beatles, ou até um amplo terreiro onde parece nascerem bolas de pedra, imensas e bem redondas! A parte final deste itinerário decorre ao longo de uma imensa parede de rocha avermelhada, impressionante, que nos faz sentir como se estivessemos ali presos, iso-lados do resto do mundo. Na verdade, o que estámos era a viajar já pela imaginação, rumo ao passado e ao tempo dos dinossáurios que domina-vam a região. Mesmo imaginando-os, não dispensámos a visita ao museu de história natural junto da sede do parque, que para além de muita in-formação detalhada do lugar, exibe inúmeras reproduções de exemplares ali encontrados em escavações arqueológicas, assim como algumas das ossadas descobertas.Quando reparámos nas horas, era tão tarde que percebemos que esta visita nos tinha custado o almoço. Retomámos a estrada e apenas pará-

As dunas de Fiambalá e o Paso de San Francisco são já dois clássicos do “Dakar” sul-americano.

As duas edições já realizadas passaram por lá e a próxima também o fará, cruzando esta passagem

no regresso do Chile, o que promete deixar para o final as terríveis dunas que envolvem Fiambalá.

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mos para comer uma empanada em Villa Unión, num pequeno café ao lado da estranha igreja, na Praça Central, prosseguindo minutos depois rumo a Fiambalá, 316 quilómetros mais a norte.O ponto alto desta rota foi mesmo o mais alto: atravessar a Cuesta Miranda subindo até ao Passo Ordo, a 2040 metros de altitude, para depois descer até Chilecito. Traçada entre 1918 e 1928, esta estrada de montanha tem di-versas passagens que tiveram de ser rasgadas na rocha e oferece belas vistas panorâmicas, mas é sobretudo divertida para conduzir, pois mesmo as curvas cegas não o são se estivermos atentos e olharmos bem mais adiante, para perceber se vem algum veículo em sentido contrário. Durante dezenas de quilómetros, guiámos perfeitamente à vontade, pois só voltámos a ver outros veículos depois de retomarmos o asfalto, já a caminho de Chilecito.Pequena cidade mineira, Chilecito deve o seu nome ao facto de ter sido densamente povoada por emigrantes chilenos, no período áureo da exploração mineira. Passámos por lá ao final da tarde e tivémos de atravessar a cidade pelo centro, onde nos encantámos com o movimento e ambiente da praça central, grande e rodeada por árvores frondosas, intervaladas por ban-cos onde jovens namoravam, enquanto à volta crianças brinca-vam ruidosamente, entretendo-se a dar voltas num daqueles velhos carrocéis que pensávamos já não existir, sob o olhar atento das mães, que conversavam em pequenos grupos. As esplanadas dos cafés em frente também estavam cheias e ficou bem claro que por ali o dia de trabalho já tinha chegado ao fim e que era tempo para descontrair.Mais descontraídos não podíamos estar, mas ainda tínhamos algumas horas de “trabalho” pela frente até darmos esta jorna-da por terminada. Por isso, apesar de apetecer imenso tomar pelo menos um café e sentir por momentos aquele ambiente que exalava felicidade por todos os lados, nem sequer parámos. Eram 20 horas em ponto e ainda es-távamos longe do destino...Anoiteceu pouco depois, sensivelmente no momento em que optámos por nos afastar da Ruta 40 e experimentar um atalho, voltando a conduzir em piso de terra. Seguiram-se 25 quilómetros absolutamente aluciantes num estradão onde nos 10 km iniciais apenas descrevemos três curvas, mas contámos mais de 200 lombas, grande parte delas suficientemente pro-nunciadas para fazer qualquer veículo levantar voo, se passasse um pouco mais depressa. Depois, as curvas começaram a suceder-se umas às outras, alternando com mais lombas, num desafio à condução, pedindo mesmo um ritmo “de corrida”. Contámos precisamente 90 curvas nos últimos 15 km, assim como mais de 300 lombas!Este troço de terra foi um óptimo entretenimento para o resto do percurso, sem muito para contar, pois de noite não há paisagens para olhar e, de resto, já tínhamos conhecido esta parte final no ano anterior... de dia.Se não tivessemos tomado o atalho, provavelmente teríamos ficado sem jantar, pois foi por uma unha negra que conseguimos que nos servissem no primeiro restaurante que encontrámos após entrarmos em Tinogas-ta. Eram 22 horas e ao chegarmos começou um espectáculo de fogo de artíficio que se prolongou por uns minutos. Em abono da verdade, con-vém explicar que não estava um comité de recepção à nossa espera, pois

O quilómetro 0 da “costanera” para Antofagasta é em Chañaral, pequena cidade costeira que tornou-se célebre por ter sido a primeira a ganhar um processo contra uma sociedade mineira, movido por causas ambientais, conseguindo recuperar a sua magnífica praia. Nesta rota costeira rumo ao norte, a baía de Taltal é uma paragem obrigatória a meio caminho.

tratou-se apenas de uma coincidência — que nos divertiu imenso. O fogo de artíficio era o sinal para o momento mais forte da festa que animava toda a cidade em direcção à praça central. Seguimos essa corrente de gente e de veículos e conseguimos lugar na esplanada de uma esquina da praça central, com vista panorâmica para a festa. As lojas estavam todas abertas — até o talho — e na igreja, a meio da praça, a missa que estava a começar tinha tanta assistência que as portas do templo foram abertas e improvisou-se uma plateia no adro, com filas e filas de cadeiras que, mesmo assim, não chegaram para todos os fieis. Mandámos vir um bife de “chorizo” com “papas fritas” e mais uma Salta Negra enquanto no sistema de som da praça os irmãos Gibbs, dos Beegees, perguntavam em coro: “How deep is your love?”. Dava para perceber que se preparava o ambiente para uma noite romântica em Tinogasta. Ao provarmos o bife, arrependemo-nos de não ter ido comprar uma peça de carne ao talho em frente, pois pelo menos teríamos ficado melhor servidos, porque o que nos trouxeram nem de “linguíça” merecia ser chamado, quanto mais de “chourizo”. Não ficámos a falar sala e levantámo-nos ao mesmo tempo que na igreja ouvimos o padre dizer ao seu rebanho “Vão em paz e que Deus vos acompanhe”. Fomos, apesar dos suplícios de Enrique Iglesias, que dominava agora o som ambiente da praça, repetindo com voz rouca e angustiadas “No te vas!”.Meia hora depois, quando entrámos em Fiambalá, o contraste com Ti-nogasta era total: não se via ninguém nas ruas e parecia que toda a gente já se tinha recolhido há muito. Todos menos o guarda da estân-cia termal no meio da montanha junto à cidade, já a 2000 metros de altitude, que nos esperava para dar a chave do “chalet VIP”, bem como

... preferimos não abandonar a “costanera” e prosseguimos junto ao mar, (...) por um caminho de terra. Este percurso revelou-se o mais bonito da jornada, mas de longe o mais duro...de toda a viagem!

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um par de toalhas e lençóis. Fora informado tão tarde da nossa vinda que nem tinha tido tempo de preparar as camas. Pelo menos foi o que ele disse...

As fAmosAs dunAs de fiAmbAláDe manhã, ao descer de novo para Fiambalá, a cidade mal se via sob o verde do oásis onde foi implantada, no meio de um amplo vale rodeado por montanhas. Do outro lado, estendia-se a cordilheira dos Andes, mas antes de avançarmos para lá fomos tomar o pequeno-almoço na Hosteria Municipal, bem no centro, passámos pela padaria na esquina junto à policia para comprar algumas provisões para o caminho e seguimos até às dunas de Talón, cerca de 60 quilómetros mais adiante, no fim de um caminho sem saída, grande parte cumprido em piso de terra. Sem saída para nós, comuns mortais, porque para os concorrentes ao “Dakar” o estradão que nos levou até lá era precisamente o inverso, ou seja, a saída de um infernal mar de dunas, todas elas bastante encadeadas, onde a mínima hesitação significa ficar enterrado na areia. E, conforme se provou no rali — onde fi-caram pelo caminho quase quatro dezenas de equipas, o maior número de abandonos numa só etapa — foram poucos os que escaparam ilesos a este traçado, que fez esquentar os motores de muitos veículos e deixou outros tantos parados sem combustível, de tal modo aumentaram os consumos.Não nos armámos em heróis e limitámos ao essencial a passagem em areia onde, apesar dos cuidados, só por um triz não tivémos de pedir aju-da, pois a meio da manhã a areia quente já se “derretia” como manteiga por baixo das rodas e mesmo com a tracção integral e as redutoras inseridas, o Sorento teve alguma dificuldade em chegar a terra firme.

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Quando voltámos a passar por Fiambalá, aproveitámos para almoçar. Afi-nal, o lanche para o caminho já tinha ficado pelo caminho e não podía-mos entrar com comida no Chile, pois não é permitido. Como diz o ditado, “quem vai ao mar avia-se em terra” e assim fizémos, duplamente: almoçá-mos cedo para que quando chegássemos aos planaltos no cimo dos Andes já tívessemos feito a digestão, da mesma forma que atestámos o depósito do Kia Sorento até não caber nem mais uma gota de gasóleo. Não podí-amos correr o risco de ficar parados sem combustível e esperavam-nos cerca de 600 km complicados, dos quais dois terços a cumprir em piso de terra. Ao tomar a estrada em direcção à fronteira, no famoso Paso de San Francisco, reparámos na placa que indicava precisamente 200 km até ao limite da fronteira, 486 km para Copiapó, e 538 para Chañaral. Ao contrário do rali, que ligou Fiambalá a Copiapó, decidimos adiantarmo-nos e seguir para Chañaral. Esta opção fez com que numa única jornada tivéssemos passado por pontos do percurso de três etapas do rali e quando finalmente estacionámos no parque do hotel em Chañaral, sentiamo-nos de tal modo cansados que nem nos lembrámos de ir jantar. Só queríamos tomar um duche e estendermo-nos na cama.Para trás tinham ficado 588 quilómetros extenuantes e incrivelmente lindos, que nos levaram de um planalto a perto de 1500 metros de altitude quase aos 5000 metros, para terminarmos ao nível do mar. Tudo isto passando por temperaturas que foram dos 35 graus em Fiambalá aos 3 graus junto à admirável Laguna Verde, pouco depois do Paso de San Francisco — na verdade deviam estar pelo menos 3 graus negativos, se contassemos com o efeito do vento que soprava forte — e aos 12 graus registados em Chañaral à noite. Nem imaginam a dor de cabeça que tínhamos quando finalmente nos encostámos na cama, passava bem da meia-noite...Na verdade, para cumprir esta longa travessia dos Andes gastámos ligei-ramente mais de dez horas, das quais não mais de duas foram perdidas com paragens, nomeadamente nos postos fronteiriços: primeiro no Posto de Las Grutas, do lado argentino, onde bastou um quarto de hora para cumprirmos os trâmites de saída do país. Isto num dia em que éramos os primeiros a passar em direcção ao Chile; o relógio marcava 16h.47 e o posto encerrava pelas 19h.00. Ao devolver-nos os passaportes, Gimenez, o funcionário da alfândega, comentou que “a partir desta hora já não deve passar mais ninguém para lá, até porque para chegar ao posto chileno an-tes de fechar, vão ter de andar bem. E o pior do caminho é precisamente o que vão ter de cumprir...” — bem sabíamos o que nos esperava, pois até ao Posto de Maricunga, onde se fazem os procedimentos de entrada no Chile, faltava percorrer 132 km, dos quais apenas os primeiros 21 em asfalto. A estrada pavimentada termina no Paso de San Francisco, sob o pórtico que assinala a linha que divide os dois países, onde se encontra também a última cabana de abrigo a que podíamos recorrer se algo nos corresse mal, pois sempre tínhamos lenha para nos aquecermos e podíamos pedir socorro às autoridades, accionando o sistema de alarme, via satélite. Do lado chileno, estávamos absolutamente entregues a nós próprios!Mesmo limitando as paragens a uma sessão de fotografia junto da Laguna Verde e outra no planalto que ladeia o Ojos del Salado, um vulcão com ne-ves eternas que atinge 6891 metros e é o mais alto do mundo — rasgando o céu juntamente com os cerros Incahuasi (6638 m.a.) e San Francisco (6016 m.a.), ali bem próximos — chegámos a Maricunga pelas 19h.40. A cancela

Conquistada à Bolívia na sequência da Guerra do Pacífico, Antofagasta é actualmente a quinta

cidade do Chile. Bastante bem preservado, o centro histórico merece uma visita tranquila, tal como a baía de El Portillo, onde o “Dakar”

acampou, na saída norte da cidade.

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… no Atacama, onde o piso é incrivelmente traiçoeiro, escondendo frequentemente areia mole por baixo de uma crosta de terra seca e aparentemente bastante firme, o risco de ficarmos atascados é bastante elevado. (…)

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e recomendou: “Vão visitar o Pão de Açúcar”. Faltou foi explicar de que se tratava, mas isso nós conseguimos desvendar sozinhos.Entalada entre as montanhas e o oceano Pacífico, Chañaral é uma pequena cidade com as casas dispostas em anfi-teatro, como se fosse para que de todas as janelas se pudesse contemplar a enorme praia e baía em frente. O Pão de Açúcar é a grande atracção local: um parque natural, que pre-enche uma área de 43.769 hectares junto à costa, um pouco mais a norte da cidade, devendo este nome à semelhança entre o famoso morro Pão de Açúcar do Rio de Janeiro e uma ilha mesmo em frente. Partimos para lá seguindo a “costanera” desde o Km 0, junto à praia de Chañaral. Esta estrada, em terra compactada com sal, para além do excelente piso tem uma vista soberba, acompanhando quase sempre o oceano Pacífico, que naquela tarde estava realmente no estado que o seu nome sugere, muito calmo, sem ondas. O parque, e a ilha em particular, é um santuário para a avifauna, com especial destaque para o Pinguim de Humbolt, que aí ocor-re aos milhares durante o Inverno Austral. Como estávamos a entrar no Verão, não vimos senão os vestígios dos pinguíns e da imensa passarada que ali passa temporadas, deixando as rochas completamente brancas de tantos excrementos!Volvidos 55 quilómetros, a pista de terra foi ao encontro do asfalto da Ruta 5, a estrada que segue para Antofagasta, um pouco mais distante da costa. Somente percorrermos a Ruta 5 durante um quarto de hora, pois entretan-to alcançámos o desvio que nos remeteu de volta à “costanera”, seguindo para Cinfuncho e Taltal por uma larga estrada de terra com sal. Este iti-nerário leva-nos até perto do mar e é sempre a rolar junto à costa que chegamos a Taltal, depois de serpentear baías e calhetas cheias de ilhotas e rochedos, sempre cobertos de branco.Se o nome já por si é engraçado, a cidade ainda o é mais. Com cerca de 11 mil habitantes, Taltal é enquadrada por uma larga baía, que a tornou numa importante base da frota pesqueira chilena. Quando chegamos pela “costanera”, temos uma visão panorâmica de toda a baía com a cidade por

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... na extremidade sudeste do Salar de Atacama, a pista chega a ser assustadora, pois rolamos claramente em cima de placas de sal que foram compactadas — e não terra com sal — e à volta há água por todo o lado.

fechada junto ao posto fronteiriço era esclarecedora, mas não tardou a aparecer um funcionário, que começou por nos “torturar” dizendo que teríamos de passar a noite ali à espera, pois o posto só abria às 09h.00. Depois veio outro e mais outro, até que conseguímos apelar ao seu sen-tido de humanismo e depois de alguma conversa, decidiram ser nossos amigos e reabriram a fronteira. Valeu-nos o entusiasmo pelo Rali Dakar e a associação que fizeram à nossa expedição. Tal como num aeroporto, tivémos de passar as bagagens todas por um aparelho de raio X, depois passámos pelo controlo da alfândega, da policia e do Ministério da Agricul-tura — onde declaramos não ter comida — e, finalmente, o Sorento foi re-vistado por dentro e por fora, para verificar se estava tudo de acordo com o que declarámos. Entre lá chegarmos e apertarmos as mãos para nos despedirmos, passaram-se apenas 36 minutos, que começaram por ser de alguma tensão e acabaram em grande descontracção. Grande é uma forma de expressão, porque quando passámos a cancela ainda nos fizeram um último aviso: “Não tarda é de noite e ainda se perdem por aí!...” — mal eles sabiam como tinham razão. Ai se tinham...Assim que deixámos a fronteira chilena, tomámos um estradão largo à direita e rolámos cerca de uma centena de quilómetros por um planalto sempre num nível de altitude entre os 3900 e os 3700 metros, para depois entrarmos no meio das montanhas, começando a descer acentuadamente por pistas largas. Foi nessa altura que se “apagou a luz” e não tardou a que tudo se complicasse. Enganámo-nos num cruzamento e só alguns quilómetros depois, quando reparámos que seguíamos insistentemente na direcção oposta, decidimos voltar atrás. Mais adiante, noutro cruzamen-to, voltámos a ter a sensação de ter feito a escolha errada e já tínhamos invertido a marcha quando nos cruzámos pela primeira vez com um ve-ículo desde a entrada no Chile: um enorme auto-tanque que rolava mais depressa do que nós e que só alcançámos porque o seu motorista era extraordinariamente cumpridor, pois imobilizava completamente o camião cada vez que encontrava um sinal de stop nos inúmeros cruzamentos com

o caminho de ferro, muito embora fosse bem visível à distância que não vinha nenhum comboio. Então, o motorista confirmou que estávamos no bom caminho e convidou-nos a seguí-lo até à entrada em Chañaral, para prevenir mais enganos. Acreditem que não foi uma corrida justa, mas ali-viámos a consciência desculpando-nos que para além de estarmos mortos de cansaço, o homem do camião conhecia as curvas de olhos fechados. Se não fosse isso, não teria de esperar por nós nos cruzamentos, como esperou pacientemente.

AcordAr no pAcíficoSempre que acordamos antes do despertador tocar é sinal de que dor-mimos a nossa conta. Pois foi o que aconteceu quando amanheceu em Chañaral, mas embora nos tenhamos levantado pelas sete e meia da manhã, só deixámos a cidade às 14h30, depois de termos almoçado numa cantina da rua principal, enquanto esperávamos que levantasse a “camanchaca”, que é como aí chamam à neblina que praticamente todas as manhãs chega do mar e invade a faixa costeira, até esbarrar nas montanhas. Tínhamos começado a manhã a discutir com o dono do Portal Atacama, o hotel onde pernoitámos, pois vimo-lo repreender ferozmente a recepcionista por não nos ter feito pagar antecipadamente os quartos. Felizmente que o mundo aceita Visa e numa questão de minutos a ansiedade dele estava ultrapassa-da e acabou até por se tornar agradável conversarmos. Uma hora depois, quando saímos para ir ao banco trocar pesos chilenos, Hernán Silva já era um amigo e embora não soubessemos tudo da vida dele, tinha-nos confi-denciado boa parte, nomeadamente as suas ambições políticas: “Sou social democrata e nestas eleições vi a ameaça que a esquerda está a preparar para daqui a quatro anos, tendo por trás o apoio de Hugo Chávez, da Ve-nezuela”, contou-nos, acrescentando que “vou propor ao meu partido que começe já a investir numa coligação de centro, para nas próximas eleições vencer a direita fascista dos seguidores de Pinochet, e a esquerda marxis-ta-leninista!” Quando saímos do hotel, Hérnan despediu-se amigavelmente

trás, como se fosse um presépio harmoniosamente disposto numa suave encosta que desce até ao mar, formando uma mancha urbana onde não sobressaem edifícios volumosos, nem altos. Muitas das casas são em ma-deira e pintadas de cor garridas, que tornam a cidade ainda mais agradável a quem a descobre pela primeira vez.Ao atravessar vagarosamente Taltal apeteceu parar numa das esplanadas da praça central, ou da rua marginal, junto ao molhe onde os barcos des-carregavam o pescado abundante de mais uma faina no mar, sob o olhar atento de um bando de pelicanos que esperava pacientemente por qual-quer momento de distracção para fazer um voo repentino sobre as caixas que se íam empilhando no cais e pegar um peixe, que logo desaparecia no enorme bico e que víamos descer garganta abaixo.Um intervalo de meia-hora bastou para apreciar tudo isto e sentir o ambiente de Taltal. Retomámos a marcha pela Ruta 1, ainda a “costa-nera”, mas que daqui para cima é uma ampla estrada de asfalto. Meia centena de quilómetros mais adiante, em Paposo, a Ruta 1 inflecte para dentro e trepa as montanhas que separam a costa do interior, entre elas o monte Vicuña Mackenna, o mais alto de todos os que chegam até à beira do Pacífico, com 3114 metros de altitude, e o Cerro Paranal, que se ergue a 2644 metros. Este último tem uma localização que assegura em média 350 noites perfeitamente límpidas por ano, que conjugadas com um ar extremamente seco fazem do cume o sítio mais perfeito para instalar um observatório astronómico. Isso mesmo entenderam os cientistas do Observatório Europeu Austral, organização que re-úne onze países, pois ali instalaram em 1998 um primeiro telescópio, seguindo-se outro no ano seguinte e mais dois em 2000. Foi lá, bem como no Atacama, que se rodaram muitas das cenas do último filme da série 007 — Quantum of Solace.Seguir para o interior e continuar pela Ruta 1 teria sido a forma mais rápida de chegar a Antofagasta, mas preferimos não abandonar a “costanera” e prosseguimos junto ao mar, de novo por um caminho de terra. Este

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percurso revelou-se o mais bonito da jornada, mas de longe o mais duro...de toda a viagem! Para percorrer os 97 quilómetros desde Paposo até à Calheta El Cobre, sempre ao longo da costa, precisámos de três horas! O caminho tanto vai ao nível do mar como sobe bem alto até meio das montanhas — entre elas uma duna gigante, que cruzamos por um patamar bem alto. Neste trajecto, as mudanças mais usadas foram a segunda e a terceira, embora muito frequentemente tenhamos recorrido à primeira para transpor obstáculos que implicavam parar; jamais usámos a quarta velocidade nestas três horas bem dolorosas para as costas, mas inesque-cíveis para os olhos.Tinha acabado de anoitecer completamente quando chegámos à Calheta Blanco Encalada e encontrámos finalmente gente. Eram pescadores, que nos explicaram que pouco mais adiante, na Calheta El Cobre — que deve o nome a uma mina de cobre descoberta em 1853, que continua em explo-ração — a estrada costeira terminava e que assim que virássemos para o interior o piso mudava radicalmente. Dito e feito! Assim que atingimos as instalações da mina, o caminho junto ao mar passou a ter acesso restrito e subimos por um estradão mais largo, que se afastou da costa. O piso realmente melhorou, mas não tanto quanto os pescadores nos tinham feito crer pois, na verdade, os 43 quilómetros desde que saímos da costa até chegarmos ao asfalto demoraram uma hora a percorrer, sem qualquer paragem. Após retomarmos a Ruta 5, bastou meia hora para completar os

derradeiros 47 quilómetros até Antofagasta, onde chegámos pelas 23h.30, ainda com a cidade bem acordada.Esta foi, aliás, a primeira das várias surpresas que Antofagasta nos reser-vou. Não se tratava da primeira visita, pois estivémos lá em 1994 integrando o Camel Trophy Transandino, mas então saímos directamente do Atacama para o aeroporto, na ponta norte da cidade, pelo que não chegamos re-almente a conhecê-la. Uns dias antes, ao pesquisar informações sobre Antofagasta na internet, reparámos na crónica de uma jovem portuguesa, publicada num blog sobre viagens, onde a autora dava conta do choque que teve ao chegar à cidade, que descrevia como um enorme e horrível centro industrial, onde a primeira coisa que lhe ocorreu fazer foi partir ime-diatamente. Este relato era desanimador, mas como Antofagasta era uma escala importante no itinerário do rali, pois a organização tinha decidido fazer ali a paragem de 24 horas a meio, não desistimos de visitá-la. E ainda bem que o fizémos, pois de outro modo nunca teríamos percebido como estava errada, tão profundamente errada, a nossa compatriota...

Aquele que esconde o cobreAs maiores reservas mundiais de cobre encontram-se no Atacama e An-tofagasta, a maior cidade entre as diversas que se situam na região deste deserto — que é ainda a quinta mais populosa do Chile, com cerca de 300 mil habitantes —, deve a sua importância precisamente à exploração

Cobrindo uma área de 300 mil hectares, que se estendem para sul de San Pedro do Atacama, o Salar de Atacama é a mais reserva salitreira do Chile, de onde se extraí 80 por cento do lítio que a indústria consome. Esta região integra parques naturais, áreas protegidas e alguns dos mais importantes achados arqueológicos chilenos.

mineira, quer do cobre, quer ainda do salitre, a partir do qual se obtém o componente mais precioso para as baterias: o lítio. Quando o Chile foi constituído, em 1822, a fronteira norte do seu território foi vagamente de-finida no deserto do Atacama, mas em 1825, quando se criou a República da Bolívia, Simón Bolivar não abdicou de estender o seu país até ao oce-ano Pacífico e reclamou para si o sector norte do Atacama, que passou a confinar com a província de Potosi, no Altiplano andino. Todavia, foram sobretudo as companhias chilenas, quase sempre com os britânicos ou norte-americanos associados, que começaram a explorar os ricos recur-sos minerais deste enorme deserto, que é um dos mais áridos do mundo devido às altas pressões que aí se concentram impedirem que as nuvens vindas de leste transponham a cordilheira andina e façam cair chuva. Ora Antofagasta, cujo nome significa “aquele que esconde o cobre” no dialecto dos índios do Atacama, nasce precisamente de um desses negócios, quan-do em meados do século XIX um chileno comprou 30 hectares na baía de Antofagasta e iniciou a exploração salitreira. Num ápice o lugar tornou-se num importante entreposto, para onde confluiam as vias férreas que tra-ziam minério do interior do deserto e o descarregavam directamente para os navios de carga, que atracavam num molhe construído na pequena baía em redor da qual se foi desenvolvendo a cidade.A riqueza destas terras criou inúmeras disputas territoriais entre a Bolí-via, que inicialmente as detinha, o Chile, que as explorava, e até o Perú e a

Argentina, que como vizinhos não escondiam a sua vontade de conquis-tar um pedaço desses recursos. Apesar de terem sido firmados entre a Bolívia e o Chile diversos acordos, inclusivé tributários, e tratados para desenhar a linha de fronteira, nunca os dois lados ficaram plenamente satisfeitos e entre avanços e recuos destes acordos, a situação chegou a um ponto de ruptura quando o Governo boliviano decidiu aumentar os impostos sobre a Companhia de Salitre y Ferrocarril de Antofagasta, uma empresa chilena que se recusou a pagar os novos impostos, tendo sido alvo de uma penhora. Na véspera de ser accionada a penhora, a 14 de Fevereiro de 1879, as tropas chilenas desembarcaram de surpresa em Antofagasta e tomaram conta da cidade. Começou aí a Guerra do Pacífico, que inicialmente opôs o Chile à Bolívia e que terminou com o isolamento deste último, que perdeu o acesso ao mar. Recuperar um corredor até ao Pacífico é desde então a maior ambição boliviana, que há mais de um século tenta sem sucesso convencer o Chile, assim como o Perú, das suas pretensões. O Perú também saíu a perder na Guerra do Pacífico quando o Chile desco-briu um pacto com a Bolívia e lhe declarou guerra, conquistando al-gum território, que permitiu es-tender ainda mais a norte as suas fronteiras. Como vingança, a Bolí-via entregou então à Argentina um vasto território andino que estava nos domínios do Chile, a Puna de Atacama, onde se incluem os picos de Licancabur, Zapareli, Socompa e Paso de San Francisco, que so-mente viriam a ser recuperados em 1899, com a intervenção negocial dos Estados Unidos da América. A paz com a Bolívia só foi assinada em 1904, enquanto que com o Perú esse acordo tardou até 1929!Quando foi conquistada pelo Chile, Antofagasta já tinha importância, mas a cidade desenvolveu-se ainda mais daí em diante, crescendo a partir do velho molhe de madeira que, curiosamente, foi recentemente recupera-do, para preservar a memória histórica. O mesmo sucede com alguns dos edifícios mais antigos, como o velho terminal da linha de caminho de ferro, junto ao molhe, e a alfândega, também na mesma zona, ao lado da antiga Capitania Marítima, construída em 1910 num estilo neo-clássico, como grande parte dos prédios do centro histórico. A alfândega, onde hoje funciona o Museu de Antofagasta, é o edifício mais antigo de todos e tem a particularidade de ter sido construído inicialmente em Valparaíso, depois foi transportado de barco até Mejillones, ainda mais a norte, até que em 1888 foi desmontado da sua localização e remontando onde ainda se encontra. A dois passos deste museu, a Plaza Colón é hoje o centro social da cidade, exibindo uma torre de relógio no centro do jardim que é uma réplica em ponto pequeno no célebre Big-Ben de Londres, que foi oferecido pela comunidade britânica. Esta praça, onde se encontra a Catedral de San José, a mais importante igreja da cidade, é cruzada pelas principais artérias comerciais, uma das quais tem três quarteirões sem

... Mesmo que constantemente invadida por turistas, San Pedro do Atacama não perdeu a sua graça, pois a cidade preservou o estilo colonial herdado dos tempos do Império Espanhol — quando a povoação era uma paróquia do Alto Perú.

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trânsito, só para peões, que até as lojas fecharem, à noite, enchem de movimento o centro desta cidade que, afinal, foi bem agradável de visitar!

reAbrir memóriAs nAs pistAs“tropicAis” do AtAcAmAUma manhã inteira apenas deu para apreciar o ambiente e para ficarmos a conhecer a parte histórica de Antofagasta, mas não tivémos tempo para, por exemplo, visitar os seus museus, que retratam o passado da região. Os nossos objectivos continuavam a ser ir ao encontro dos traçados do Rali Dakar e explorar itinerários alternativos, sobretudo aqueles onde a com-petição não terá nunca acesso, devido à sensibilidade do meio ambiente.Ao deixarmos Antofagasta, o nosso rumo cruzava estes dois objectivos: antes de mais, avançámos apenas uns quilómetros em direcção a norte para ir até El Portillo — local emblemático onde foi montado o acampa-mento da caravana, que aí se instalou no final da quinta e da sétima eta-pas, neutralizando por um dia aí mesmo depois desta última. El Portillo é o nome de um rochedo dentro de água, na ponta de uma pequena baía rodeada de escarpas, onde a força do mar abriu um enorme vão, criando um arco natural que se tornou uma atracções turísticas. Um par de quiló-metros mais a norte, em frente ao aeroporto, fica outra dessas atracções:

o monumento que assinala a linha imaginária do Trópico de Capricórnio, que foi desenhado de forma a projectar no solo uma sombra que trace, precisamente, essa linha...Só nesta jornada, em que percorremos 490 quilómetros desde Antofa-gasta a San Pedro de Atacama, bem mais a norte e no interior do deserto, voltámos a cruzar o Trópico de Capricórnio outras duas vezes, mas em lugares que não estavam assinalados por placa alguma, talvez até porque, ao contrário do monumento na berma da movimentada Ruta 1 — que segue até ao Perú pela costa — estes pontos em pleno Atacama ficam bem mais distantes das rotas turísticas.Entre várias possibilidades para alcançar San Pedro de Atacama, preferi-mos aquela que nos levaria por pistas de terra que recortam o deserto e servem essencialmente para dar acesso às inúmeras explorações minei-ras. Isso implicou desviarmo-nos da Ruta 1 e tomar um atalho até à Ruta 5. Esta estrada tem um traçado paralelo ao da Ruta 1, mas que decorre pelo interior do Atacama. Entre as duas grandes estradas, percorremos alguns quilómetros por pistas onde rolaram os concorrentes do Rali Dakar, com piso enganador, tal como os próprios trilhos, que ora estavam bem visíveis, ora pura e simplesmente desapareciam. Lembrámo-nos outra vez do Ca-mel Trophy Transandino, que usou estes mesmos cenários para promover

os primeiros desafios com GPS, em 1994, quando o uso deste equipamento ainda não estava vulgarizado. Ian Chapman, antigo oficial das forças espe-ciais do exército britânico que até essa altura comandava o Camel Trophy, tinha uma excelente capacidade para criar os maiores e mais difíceis de-safios aos participantes nesta aventura ímpar e a escolha do Atacama para introduzir o uso do GPS não fora por acaso. Passados 16 anos, a dificulda-de não é utilizar um aparelho de GPS, mas se estivermos no Atacama isso somente reduz ligeiramente as dificuldades de navegação: valas e mais va-las por entre as colinas e planícies obrigam a constantes ziguezagues para encontrar pontos de passagem, que podem dilatar imenso as distâncias. No Camel Trophy, havia apenas um tempo limite para cumprir estes desa-fios e ganhava quem conseguisse ter passado por maior número de pontos intermédios percorrendo a menor distância. No Rali Dakar, para além de pontos intermédios secretos, que penalizam gravemente quem não os al-cançar, há igualmente um tempo limite para cada etapa, mas o cronómetro nunca pára de contar. E no caso do Atacama, onde o piso é incrivelmente traiçoeiro, escondendo frequentemente areia mole por baixo de uma crosta de terra seca e aparentemente bastante firme, o risco de ficarmos atasca-dos é elevado. Aliás, foi por pouco que, mais do que uma vez, não tivémos de escavar por baixo do Kia Sorento para o libertar da areia.O segredo para minimizar as possibilidades de atascanso era observar as regras da condução em areia: rolar solto e depressa, vasculhando com os olhos o terreno que vamos pisar imediatamente e bem mais adiante, por forma a reduzir as hesitações que impliquem uma quebra de ritmo. A receita é fácil, mas concretizá-la é outra conversa e sempre que não nos antecipámos na decisão quanto ao rumo a tomar, sentimos as rodas do Sorento a ser travadas pela areia. Então, só havia uma solução: acelerar não interessa para onde, desde que fossemos por terreno limpo até um ponto alto, para então pararmos e daí tranquilamente observar tudo à volta; após descobrirmos a direcção a seguir, voltávamos a acelerar, deixando atrás de nós um risco de poeira no ar que demorava a assentar. Lembrava até o traço que os aviões desenham ao rasgar o céu, que se dissipa em segundos quando há pouca humidade, mas que fica bem vincado durante minutos sempre que a humidade é mais elevada.Quando apanhámos a Ruta 5, estávamos bem próximos de Baquedano, pequena povoação que vive em redor de uma estação ferroviária, onde em 1994 fomos reabastecer de água os dois tanques que a organização do Camel Trophy dispunha para dar de beber a toda a caravana, com mais

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de duas centenas de elementos. Tudo porque pela calada da noite muitos dos companheiros, nomeadamente algumas jornalistas francesas e turcas que conquistaram o coração de metade dos homens, esgueiravam-se até aos tanques e tomavam reconfortantes duches, deixando no ar um odor perfumado que contrastava com o cheiro nauseabundo de todos os outros, que para respeitar as instruções se sujeitaram a uma dúzia de dias sem um banho. Quando a água acabou, Chapman reuniu toda a gente e explicou que teríamos de fazer um desvio de rota para encontrar água, mas nunca chegaríamos lá antes de dois dias. Foi um sofrimento enorme, que nem todos aguentaram. A organização teve mesmo de requisitar helicópteros para evacuar aqueles que se recusaram a prosseguir nessas condições extremas, depois de uma quase revolta na caravana. Mas quando chegá-mos a Baquedano, foi como se tivessemos alcançado um oásis e ao desco-brimos que a estação tinha um bar, parecia que víamos uma miragem! Era bem real, mas as cervejas sim, tornaram-se uma miragem para quase toda a gente, pois os alemães entraram e anunciaram bem alto que compravam todo o stock. E compraram.Nessa altura, Baquedano não passava mesmo de um enorme entronca-mento ferroviário no meio do deserto, com um grande hangar onde esta-vam recolhidas mais de uma dezena de potentes locomotivas a vapor, que já não eram usadas. Ao passar pelo posto de rádio-telegrafia da estação, o funcionário informou-nos que acabara de receber uma comunicação tris-te: o piloto brasileiro Ayrton Senna tinha sofrido um acidente fatal em Itália. E nem podémos beber umas cervejas para esquecer aquele momento...Passados estes anos todos, Baquedano estava irreconhecível. Onde antes não havia mais nada senão comboios e deserto, chegou o asfalto e cresceu uma povoação, toda ela virada para servir quem passa por lá... de carro.

O voo solitário de uma Tagua Cornuda sobre a Laguna

Miñiques, a 4200 metros de altitude, e o nosso Kia Sorento

a rolar no salar da Laguna de Tuyajto, próxima do posto

fronteiro de El Laco, onde deixámos o território chileno

em direcção ao Paso Sico e à velha linha férrea Salta/

Antofasfasta, semanalmente percorrida por um comboio

de carga, que sobe acima dos 5000 metros para atravessar

os Andes.

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ainda fazemos um desvio da pista, para ir assistir ao pôr do sol na Laguna Chaxa, um dos vários santuários de flamingos que encontramos nesta re-gião andina, onde ocorrem três das cinco espécies desta ave: o flamingo Andino, o maior de todos e com plumagem mais esbranquiçada, o flamingo de James, com pernas mais curtas, e o flamingo Austral, com penas rosa salmão e uma espessa faixa negra nas asas.Assistir ao pôr do sol algures no salar é um dos programas imperdíveis para quem visita San Pedro de Atacama. Por isso mesmo, quando chegá-mos à Laguna Chaxa tivémos a sensação de regressar à civilização, tantos que eram os minibus ali estacionados. Momentos depois, junto à lagoa, a sensação era a de uma missa campal, num daqueles momentos sem sermão, em que os fieis se recolhem no silêncio para meditar. A maio-ria dos turistas que estavam ali eram norte-americanos, para quem até o ruído do disparar da máquina fotográfica era intolerável. Vingámo-nos pouco depois, quando ultrapassámos a fundo a caravana dos minibus, que regressavam à vila. Não fizémos de propósito para os deixarmos todos empoeirados, pois não adivinhávamos que seguiam de janelas abertas, mas lá que ficaram cheios de pó, ficaram!

A cApitAl ArqueológicA do chileImplantada num oásis junto às margens do maior rio que desagua no Salar de Atacama, o San Pedro, a cidade que hoje é conhecida como a capital arqueológica do Chile deve o seu nome ao cruzamento entre a designação do rio e do salar. Com uma população de residente de cerca de seis mil almas, San Pedro de Atacama tem, no entanto, uma popula-ção flutuante que dilata significativamente este número: a cidade é um dos três lugares de visita “obrigatória” para quem pretenda conhecer as maiores preciosidades naturais do Chile, juntamente com o Parque Na-cional das Torres Del Paine, na Patagónia, e da Ilha de Páscoa, no meio do oceano Pacífico. Por isso não é de estranhar que sejam hotéis, lojas, cafés, bares e restaurantes uma boa parte das casas no centro da cidade, onde não há sequer ruas pavimentadas.Mesmo que constantemente invadida por turistas, San Pedro de Atacama não perdeu a sua graça, pois a cidade preservou o estilo colonial herdado dos tempos do Império Espanhol — quando a povoação era uma paróquia do Alto Perú —, não havendo construções em altura e mesmo as casas mais recentes se não o são realmente, pelo menos aparentam ter sido fei-tas de adobe, como antigamente. Esta técnica, que em Portugal permanece

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Se há lugar onde se consegue ter uma sensação de isolamento, San António de Los Cobres é um deles. A

3775 metros de altitude, esta vila na cordilheira andina argentina vive do pequeno negócio gerado pelas

minas vizinhas e pelos aventureiros que passam. Turistas, geralmente só chegam aos sábados, nos

meses em que circula um comboio de passageiros…

Não faltam restaurantes, nem oficinas, nem postos de abastecimento de combustível. Verificamos o nível do tanque do Sorento e prosseguimos confiantes: a autonomia que o computador de bordo indicava era bem su-perior aos 361 km que nos restava cumprir até San Pedro de Atacama. Desta distância, somente os derradeiros 40 km eram em asfalto, pois as-sim que desviámos da Ruta 5, logo depois da estação ferroviária, passá-mos a rolar novamente numa pista de rípio, como chamam aos estradões compactados com sal, ou com gravilha.

mAr de sAl no desertoA partir de Baquedano tomámos a pista principal que conduz às instala-ções da Sociedad Química y Minera de Chile bem no meio da parte sul do Salar de Atacama, um autêntico mar de sal em pleno deserto, a 2305 me-tros de altitude. Compreendendo uma área de cerca de 300 mil hectares, este salar é o maior depósito salino chileno e enquanto na parte norte, mais próxima de San Pedro de Atacama, a sua protecção é assegurada por um regime de área natural, do lado contrário é intensamente explorado por duas mineradoras, que daí extraem 80 por cento do lítio que actualmente é colocado no mercado.Chegamos ao amplo vale do Salar de Atacama descendo uma longa e íngre-me ladeira, onde mais vale parar para apreciar a vista panorâmica do que fa-zer isso e conduzir ao mesmo tempo, pois o piso é escorregadio e as curvas, embora largas são fechadas, não perdoando distracções. Felizmente, o sis-tema ABS do Sorento é bastante eficaz, mas não nos livrámos de um susto, daqueles que nos deixam durante alguns momentos mudos e cheios de calor.Do alto conseguimos ver praticamente todo o salar, mas assim que o

abordamos, a pista que o atravessa só não parece realmente interminá-vel porque lá ao fundo está a parede formada pela cordilheira andina. De um lado e do outro da pista, o cenário é impressionante. O sal sujo com terra dá a impressão de estarmos no meio de um terreno que acabou de ser lavrado. No entanto, quando paramos para observar com atenção, percebemos que é melhor nem pisar aqueles torrões de sal acastanha-dos, pois por baixo vemos que há água e não queremos experimentar se nos afundamos ou não. Já bem próximo de Peine, uma aldeia na extre-midade sudeste do salar, a pista chega a ser assustadora, pois rolamos claramente em cima de placas de sal que foram compactadas — e não terra com sal — e à volta há água por todo o lado. Neste recanto do salar impera o branco do sal e mesmo depois de termos visto uma placa a interditar o trânsito a veículos com peso superior a 10 toneladas, quase cinco vezes o peso do Kia Sorento, nem por isso nos sentimos descan-sados enquanto não mudamos de pista: mais do que uma vez reparamos que as placas de sal que dão corpo à estrada estalam à nossa passagem!No cruzamento de Peine mudamos de rumo, tomando uma pista de piso mais firme que nos orienta para norte, contornando a margem leste do salar. O caminho afasta-se da água e logo começa a aparecer vegeta-ção rasteira. A tarde aproxima-se do fim e mesmo ali no deserto sente-se a “hora de ponta”: depois de horas sem passarmos praticamente por nenhum veículo, começamos a cruzar-nos com imensas pick-up’s 4x4 e vários autocarros, que transportam pessoal das minas de volta para os alojamentos, numa espécie de condomínio privado, completamente vedado e de acesso restrito, que foi implantado num oásis a meio caminho entre Peine e Toconao, a vila onde retomamos o asfalto. Antes disso, todavia,

em uso no Alentejo e no Algarve, consiste em usar barro compactado com gravilha e palha para a construção das paredes, que normalmente são bastante grossas e não têm senão pequenas janelas. As paredes de adobe garantem um elevado isolamento térmico, que permite manter o interior das casas fresco durante o Verão, e quente no Inverno.Instalamo-nos no Tulor, um hotel muito peculiar, que procurou reprodu-zir a vizinha aldeia de Tulor, a povoação mais antiga que se conhece nas imediações do salar. Ana Maria Barón, a dona do hotel, é uma reputada arqueóloga, cujo trabalho está intimamente ligado à descoberta de Tulor, que estava enterrada por pelo menos mil e quinhentos anos de sedimentos e que remonta há três milénios. As riquezas arqueológicas desta região andina, encaixada entre as fronteiras com a Bolívia e a Argentina, levaram Ana Maria a fixar-se em San Pedro de Atacama, onde se desdobra entre as pesquizas e escavações, e a gestão do seu pequeno hotel, que abriu em 1989 e que se caracteriza por dez quartos construídos à semelhança das casas circulares de adobe de Tulor, enquanto outros nove recriam as an-tigas moradias de San Pedro de Atacama. Isto, claro, com todo o conforto dos nossos dias e um padrão de qualidade elevado, que chega inclusive à cozinha, conforme comprovámos ao experimentar um menú de degusta-ção logo ao jantar, momentos após a nossa chegada.O cansaço da viagem fez-nos permanecer por duas noites neste hotel, determinados a descansar no ambiente quase único de San Pedro de Atacama, cujas ruas parece ganharem ainda mais vida depois do sol de-saparecer, quando os turistas regressam das suas excursões e enchem de movimento o centro; toda esta animação e o ambiente natural muito controlado da povoação, que para além do estilo arquitectónico e das ruas sem pavimento, não permite a exibição de neons nas fachadas, nem se-quer a circulação de veículos motorizados nas artérias centrais. Tudo isso lembra-nos muito o espírito de Jericoacoara, na costa nordeste do Brasil — no extremo norte do Estado do Ceará —, e embora aqui estejamos muito longe da praia, há diversas lagoas onde é possível tomar banho e também não faltam locais de culto para assistir ao pôr do sol. A partir do meio da tarde, partem da cidade pequenas romarias de turistas ao encontro de cada um desses lugares, como a Laguna Chaxa, que visitámos nessa hora “mágica” antes de chegarmos à cidade, ou a Laguna Tebenquiche, uma imensidão branca no meio do salar, onde no dia seguinte fomos verificar se era mesmo imperdível ver o dia terminar com os pés dentro daquela água densamente salgada, a olhar para o imponente cone do vulcão Licancabur,

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que se ergue mesmo em frente, a 5950 metros de altitude. Era mesmo!...Este dia de folga foi tudo menos isso: durante a manhã, entretivemo-nos a passear pelas ruas de San Pedro de Atacama, cruzando-as uma após outra até percebermos que já estávamos a repetir os itinerários. A dada altura, não resistimos ao cheiro de umas empanadas de carne acabadas de sair do forno, que nos fizeram entrar num modesto estabelecimento; após provar e repetir essas empanadas, ainda para mais rematadas por um óptimo café expresso, sentimo-nos bem almoçados. Mas depois, ao invés de seguirmos a tradição local, trocámos a “siesta” por um passeio nos arredores.A ideia era essa, mas quando no final do dia, ao regressarmos a San Pedro de Atacama, reparámos que gastámos mais de meio depósito de combus-tível, fizémos as contas à distância percorrida nesse passeio pelos “arredo-res” e percebemos que tínhamos ido longe: foram 391 quilómetros a rodar, boa parte dos quais de novo os Andes, acima dos 4000 metros de altitude.Trepámos até ao Paso Jama, a fronteira com a Argentina situada mais a norte, descrevendo um vai-vem por uma estrada de asfalto muito pouco movimentada, mas repleta de pontos de in-teresse, como os salares de Pujsa, de Águas Calientes e de Quisquiro, ou os Monjes de La Pacana — que são um conjunto de rochas al-tas e ponteagudas que a erosão deixou com uma forma que sugere a figura de monges, com o capuz na cabeça, ou, para as mentes mais perversas, símbolos fálicos. Durante al-guns quilómetros, esta estrada segue ao lon-go da fronteira com a Bolívia, para onde parte uma pista que se perde entre as montanhas e um salar que, visto de longe, parece ainda maior e mais encantador que os três por onde passámos na rota em direcção à Argentina. Foi nesta parte da estrada que encontrámos sempre patrulhas dos Carabineros do Chile emboscados em pontos estratégicos, de onde dominavam todo o caminho e o movimento. Embora esta região seja bastante pacífica, deu para perceber que as autoridades chilenas não facilitam a vida aos vizinhos bolivianos...San Pedro de Atacama é uma das portas de acesso entre Chile e Bolívia, pois o posto fronteiriço situa-se à entrada da cidade, onde os visitantes que chegam ou partem quer para o altiplano boliviano, quer ainda para a Argentina, têm de cumprir com as formalidades.

descer o Andes pelo pAso sicoNa manhã seguinte, antes de partimos de San Pedro de Atacama tivémos de fazer duas paragens obrigatórias. A primeira no Hotel San Pedro, pois é den-tro desta unidade que existe o único posto de abastecimento de combustíveis num raio de largos quilómetros. A segunda no posto fronteiriço, para colocar nos passaportes o carimbo de saída do Chile, cumprindo todas as formalida-des sem dificuldade e em menos de 15 minutos, apesar de termos chegado instântes depois de um autocarro cheio de estrangeiros que estavam a entrar no território chileno, tal como um grupo de “motards” britânicos.Saímos em direcção a Toconao e Socaire, devorando 88 quilómetros de asfalto em três quartos de hora, metade no vale junto ao salar, outra metade

já a subir a cordilheira andina. A estrada pavimentada termina em Socaire e daí para a frente segue um estradão de terra, bastante largo e de piso rolante, que estabelece a ligação para Salta, na Argentina, atravessando os Andes pelo Paso Sico, a 4571 metros de altitude. Nos primeiros vinte quiló-metros deste estradão encontramos bastante trânsito — talvez uma dezena de veículos, entre minibus, automóveis, jipes e pick-up’s — e só entendemos porquê quando descobrimos o desvio para as lagoas altiplanicas de Miñiques e de Miscanti. Encaixadas em pequenos vales a cerca de 4200 metros de altitude e uma quase ao lado da outra, estes lagoas estão nove quilómetros desviadas da pista principal e ninguém as encontraria se a sua localização não fosse tão divulgada em todos os guias e prospectos turísticos desta região. Não nos negámos a ir espreitá-las, ficando a saber que é ali o último reduto da Tagua Cornuda, ave aquática que voa pouco e que se alimenta das algas que existem nestas lagunas e em duas outras, situadas na Bolívia e na Argentina. Embora cada fêmea da Tagua Cornuda choque para cima de uma centena de ovos por ano, os estudos indicam que já não há mais de 1500

aves desta espécie. Tudo por culpa da Gaviota Andina, um agressivo predador, que ataca os ninhos e come os ovos e as crias.Faltam vinte minutos para as três da tarde quando retomamos a pista em direcção à Argentina. Por outras palavras, temos pou-co mais de quatro horas para cumprir os cerca de 115 quilómetros até ao posto fron-teiriço argentino, que encerra pelas 19h.00. O estradão, de piso bastante bom, é largo e pouco sinuoso, com curvas abertas ou de grande visibilidade, permitindo rolar em segurança a velocidades na ordem dos 120 km/h.. Como é isso que fazemos, sentimo-nos mais à vontade para parar e gastar al-gum tempo em todos os lugares onde se

observa uma paisagem mais encantadora. Na maioria dos casos, estas paragens não nos tomam mais do que um par de minutos, suficientes para estacionar o Kia Sorento, respirar o ar puro dos Andes e fazer algumas fotografias, que registam para a posteridade todo este itinerário. As excepções foram o Salar de Talar, num vale a 4000 metros de alti-tude, todo rodeado por vulcões, onde na imensa mancha branca de sal se evidenciam algumas lagoas de água límpida, em azul turquesa, bem como a Laguna de Tuyajto, que a pista contorna duas dezenas de quiló-metros após a anterior. Aí conviviam serenamente bandos de Flamingos cor de rosa, de Guanacos e de Vicuñas — este último é considerado o “primo” mais domesticado da rara Alpaca, cuja preciosa lã atinge um preço impressionante, de tão elevado, apenas comparável à lã das ove-lhas da Cachemira, que pastam a altitudes equivalente nos contrafortes dos Himalaias, entre a Índia e o Paquistão. Deve ser tão raro que alguém apareça por ali a espreitar a bicharada que os animais não se espanta-ram com a presença do Paulo Calisto, nem com o ruído da sua máquina fotográfica; apenas se afastaram ligeiramente quando perceberam que o Sorento já rolava sobre as placas de sal — como documenta a capa desta edição da Todo Terreno. No entanto, o que não falta por ali é gente, pois

O que acontece quando um pneu se desfaz numa pista isolada, bem acima da quota dos 4000 metros de altitude? A resposta lógica é “troca-se o pneu”,

mas tudo muda de figura se nessa altura descobrir que lhe roubaram a roda de socorro. Esta foi a maior aventura da nossa viagem, mas conseguimos

resolvê-la no mesmo dia, que até era um domingo.

não muito longe são as Minas de El Laco, a cerca de 4500 metros acima do sol, onde nem imaginamos como deve ser duro trabalhar...Apenas meia dúzia de quilómetros depois do pequeno complexo mineiro, situa-se o posto fronteiriço de El Laco, uma posição avançada dos Ca-ribineiros do Chile, que tem uma guarnição mínima, como existe junto à Laguna Verde, próxima do Paso de San Francisco. Enquanto os guardas registavam os dados dos nossos passaportes num enorme e velho livro, vimos que esta passagem é muito pouco transitada: a tarde já ia longa e o Kia Sorento era o quinto veículo a passar. Reparámos ainda que antes de nós tinham passado três enorme camiões, que nos levavam um par de ho-ras de avanço. Mesmo que fossem a rolar muito devagar, já nem no posto argentino, 39 km mais adiante, os conseguiríamos alcançar. Puro engano! Ultrapassámo-los a todos ainda antes da fronteira, tão devagar que roda-vam para não aquecerem os travões nas descidas. E ainda bem que os ultrapassámos, porque ao chegarmos à Fronteira de Sico, percebemos que o pneu de trás do lado direito do Sorento estava a perder ar, provavel-mente devido a uma pedra ponteaguda, e quando o quisémos trocar pela roda sobressalente descobrimos que não a tínhamos.Ao ler o manual de instruções do Sorento, vimos que algumas versões ab-dicam da roda sobressalente em favor de um kit de reparação de pneus, mas não era o caso desta pelo que, como mais tarde confirmámos, alguém tinha roubado a nossa roda de socorro e agora estávamos em apuros. Não, ainda não estávamos, pois assim que chegou à fronteira o primeiro daque-les camiões, o seu motorista nem hesitou em ajudar-nos, montando logo a mangueira de ar comprimido e enchendo bastante as rodas todas. Tínhamos um furo lento, provavelmente provocado com um prego, e os funcionários

da fronteira recomendaram-nos vivamente um desvio da nossa rota para San António de Los Cobres, indo até uma aldeia próxima, onde o chefe do posto policial tinha uma “gomeria” artesanal. Esses 18 km até Catua foram cumpridos com todas as cautelas e quando entrámos na povoação, pare-cia que estavamos numa aldeia fantasma, apesar da placa que indica 600 habitantes. Ao cruzarmos as ruas desertas, sentimos os olhares que nos espreitavam discretamente por trás dos cortinados das janelas. Deviam ser as mulheres e, eventualmente, as suas filhas, porque os homens, de miúdos a graúdos, fomos encontrar no campo de futebol, na extremidade oposta da aldeia, onde estava a decorrer um “importante desafio” com a equipa de uma aldeia vizinha. E claro, era lá que estava a “autoridade”, que perante a chegada de forasteiros, não tardou a identificar-se, no exercício das suas funções. Tivémos de esperar apenas uns minutos pelo desfecho do jogo — que resultou favorável à equipa da casa — para que Pantaleón Cañari, o chefe do posto da Gendarmeria, nos pudesse reparar o pneu. Assistido pela mulher e enquadrado pelos sete filhos, que não paravam de nos espreitar sem disfarçar a curiosidade, Cañari mostrou os seus dotes de “gomero” e terminou o serviço ainda a tempo de ir controlar os adeptos do clube local, que não se cansaram de festejar o sucesso da jornada, mobilizando-se num ruidoso e surreal cortejo de veículos que percorreu repetidamente as duas ruas da aldeia, num vai-vem a subir uma e descer a outra. “Aqui nunca há problemas”, sossegou-nos o policia, contando que “antes de ser colocado em Catua estava na cidade de Jujuy, onde chegávamos a fazer 30 detenções por dia. Desde que vim para aqui, em 11 anos apenas fiz cinco detenções!”

Na verdade, o nosso ar de preocupação não tinha haver com os ânimos dos adeptos de futebol, sobretudo aqueles, mas sim com o percurso que

… como um azar nunca vem só (…), naquela que seria a nossa última grande passagem montanhosa (subindo a La Poma pela Ruta 40), a quase 5000 metros de altitude, não chegámos a cumprir nem meia centena de quilómetros. Já estávamos bem altos e isolados quando o pneu (…) se desfez completamente.

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ainda nos restava cumprir: cerca de uma centena de quilómetros por pis-tas isoladas dos Andes, praticamente sempre acima dos 4000 metros de altitude. Como já eram sete da tarde, não teríamos mais do que uma hora e meia de luz até cair a noite; sem roda sobressalente, não podíamos arriscar novo furo, pelo que já adivinhávamos mais uma noitada nas pistas. Pantale-ón Cañari leu-nos os pensamentos e depois de guardar os 20 pesos cobra-dos pelo serviço, disse que “hoje já não vão ter mais problemas. Santa Rita protege-vos!”. E protegeu mesmo, pois duas horas depois entrámos sem mais sobressaltos em San António de Los Cobres, a vila mais importante destas paragens.

um AzAr nuncA vem só...Mas como um azar nunca vem só, na manhã seguinte, depois de deixarmos San António de Los Cobres em direcção a La Poma, naquela que seria a nossa última grande passagem montanhosa, a quase 5000 metros de altitude, não chegámos a cumprir nem meia centena de quilómetros. Já estávamos bastante altos e isolados quando o pneu que na véspera tinha furado se desfez completamente. Isso não podia ter acontecido num sí-tio pior — um dos trechos mais duros e menos movimentados da célebre Ruta 40. Mas como de nada nos valia desanimarmos, decidimos inverter a marcha e arriscar rolar lentamente sobre a roda. Foi assim que em duas horas percorremos 18 quilómetros, mas já estávamos a ver ao longe a pista principal quando a borracha desfeita se enrolou na suspensão e travou o Sorento. Insistir em prosseguir naquelas condições seria provocar danos desnecessários. Portanto, dividimos as tarefas e os sacrifícios: um ficaria a guardar o carro e todo o equipamento, enquanto o outro iria a pé até à pista principal, onde procuraria apanhar boleia para voltar a San António de Los Cobres e procurar ajuda na vila. Pouco passava das 10 horas quando deixei o Paulo Calisto de guarda ao carro parti a pé. Devagarinho, como impõe a altitude, pois continuávamos acima dos 4000 metros, caminhei durante uns quilómetros até passar um automóvel. Tive a sorte de conseguir parar logo o primeiro carro que apareceu; um velho Renault de três professores, ainda mais velhos do que o carro, que aos domingos, de volta e meia, gostavam de fazer o passeio desde a cidade de Salta, a capital da província com o mesmo nome, até San António de Los Cobres, para apreciar as vistas e desfrutar de um bom almoço. Foram sensíveis ao nosso problema e deram-me boleia. O pior foi quando percebi que na vila não conseguiria nunca a solução, ou seja, encontrar um pneu compatível com o que se rebentou...Já tinha batido à porta de todas as oficinas de automóveis — chamar-lhes oficinas é ser simpático, muito simpático... — e visitado as lojas que vendem

de tudo, até pneus, mas ninguém tinha nada parecido, nem que fosse velho.

Foi então que Eduardo, um sargento do exército que estava ali a gozar a sua folga e que já tinha ouvido falar de um estrangeiro que andava aflito à procura de um pneu, veio propor-me a solução: eu pagava a despesa toda e ainda lhe dava uma margem de lucro e ele levava-me a Salta, para irmos comprar um pneu novo. Achei que depois do castigo matinal Santa Rita tinha voltado a olhar para nós e lá parti no magnífico Renault Mégane sedan do Eduardo; fizémos um desvio para ir buscar a roda com o pneu desfeito, que o Paulo entretanto desmontara, numa tarefa de algumas horas que não teria sido possível sem o alicate-canivete multiusos de fabrico chinês, daqueles que às vezes recebemos de brinde nas bombas de gasolina e que achamos que nunca iremos usar.Para chegar a Salta, era preciso descer as montanhas por uma estrada que ao longo de 120 quilómetros alternava dois troços em terra com ou-tros dois em asfalto. Eduardo conhecia as curvas de olhos fechados, uma a uma, mas a sua condução era lenta e cautelosa. Foram três horas para cada lado e mais um pneu furado, que se desfez quando numa curva mais fechada nos cruzámos de frente com uma pick-up 4x4 que vinha bem depressa, pois assim que o Renault pisou a berma, pedregosa, até se ouviu o pneu a ficar sem ar.Ao longo do caminho, sempre que passavamos diante de uma igreja, ou de uma capela — e foram imensas... —, Eduardo benzia-se. Por vezes, até o fazia duas vezes seguidas, pois esta era já uma regra institiva e ne-nhuma ermida sequer ficava por benzer. Apesar disso, o nosso sargento não tinha fé suficiente, pois repetiu demais que “ao domingo as casas de pneus estão todas fechadas e precisamos de um milagre para encontar os pneus” — o nosso e o dele. Não sei se foi por obra do acaso, ou se

teve a intervenção divina, num regresso tardio da prometida protecção de Santa Rita, mas o certo é que no último supermercado onde fomos, ape-nas por descargo de consciência, demos de caras com uma loja-satélite de pneus e acessórios para automóveis. E o melhor de tudo foi quando o funcionário comunicou que, “o pneu para o Renault não tem problema, mas infelizmente só temos uma unidade desse pneu para jipe”. Também só queríamos um...Quando voltámos para trás passava das seis da tarde. Alcançámos o Kia Sorento já era noite cerrada e o Paulo confirmou as nossas suspeitas: durante o dia todo, passaram por ali apenas mais três veículos. Uma pick-up que prometeu voltar com ajuda e não voltou, dois jovens alemães com um Chevrolet Corsa alugado num rent-a-car que nem tinham noção da aventura em que se tinham metido — mas com sucesso, porque já vinham de La Poma —, e um casal também de alemães com uma carrinha Citroën Dyane, verdadeiros aventureiros e solidários ao ponto de se oferecerem para emprestar a roda sobressalente, apenas para o Paulo poder avançar com eles até San António de Los Cobres. Resolvido o problema do pneu, subsistia o dos travões, que tinham ficado inoperativos, porque um tubo havia sido cortado. Engrenando as redutoras, conduzimos a maior das cautelas até San António de Los Cobres e deixámos para o dia seguinte a reparação dos travões.

Maria, a encarregada do restaurante onde na véspera tínhamos jantado, pa-recia que nos esperava. Afinal, toda a gente na vila sabia o que acontecera aos “gringos”. E também ela foi solidária com os nossos problemas, deci-dindo reforçar o jantar e aliviar o preço. Para ela, já éramos clientes da casa. Portanto, merecíamos um tratamento especial e um desconto. Nem mais!Na Hosteria de Las Nubes é que não foram nesta conversa. A solidariedade

Os últimos quilómetros nas pistas de terra

andinas, quase a chegar a Salta. Daí em diante,

o regresso a Buenos Aires foi uma maratona em asfalto, começando

por atravessar as colinas verdejantes de Salta, para terminar na

imensidão plana das Pampas.

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ficou-se por nos disponibilizarem um quarto, dos onze desta unidade, a única que em toda a vila não nos deixa desconfiados se não vamos acordar com ratos a passear por cima de nós, como nos contou um jovem casal de suíços, que decidiram abrir os cordões à bolsa e mudaram-se da pensão onde estavam, após terem vivido essa experiência inesquecível.Como nesta jornada tivémos tantas “dores de cabeça”, não as sentimos realmente na cabeça, apesar da altitude. Mas outras pairavam no ar, nome-adamente o esforço que teríamos de fazer para recuperar o dia de atraso no programa desta viagem. Antes disso, decidimos procurar o mecânico mais competente da vila. O funcionário da bomba de gasolina disse-nos então que não havia que hesitar: “Sigam até à rua principal e procurem o taller de Don Mário Carral”. Oficina é como quem diz, mas lá que o homem se revelou um mestre, revelou. Isolou os travões de uma roda de trás e sangrou tão bem todo o sistema que pudémos regressar a Buenos Aires sem problemas. Nenhuns!Na verdade, não nos restava senão tempo para voltar a Buenos Aires, cer-ca de 1600 quilómetros mais a sul. Assim, adiámos para outra oportunidade a travessia da Ruta 40 por La Poma e Payogasta, tomando rumo directo a Salta, pela pista do Paso Abra Blanca — a 4080 metros — e pelo vale do rio Toro, cujo leito cruzámos tantas vezes como atravessámos a linha do caminho de ferro por onde circula o comboio que tem o percurso mais alto do mundo. Tornou-se conhecido como Tren a la Nubes e transporta mercadorias desde Salta até Antofagasta, cruzando a fronteira para o Chile

no Paso de Socompa, a 5037 metros. Na temporada turística, todos os sábados há um comboio de passageiros que vai de Salta a San Antonio de Los Cobres — passa a vila para ir a um enorme viaduto de ferro logo a seguir e depois regressa... — usando esse nome sugestivo.Demorámos com o Sorento as mesmas horas que Eduardo leva ha-bitualmente com o seu Renault Mégane, mas ao chegarmos a Salta despedimo-nos dos caminhos de terra e desde logo o ritmo aumentou para uma média a rondar os 100 km/h., que nos permitiu completar esta penúltima jornada quase 800 quilómetros mais a sul, na pequena cidade de Ceres, na província de Santa Fé. Ainda assim, deixámos outros 700 quilómetros para a derradeira jornada, que cumprimos parando apenas para um reabastecimento, por forma a ainda chegarmos a Buenos Aires a meio da tarde e poder desfrutar o fim do dia tranquilamente na capital. Saímos pelas 10h.30 e passámos na última portagem à entrada de Bue-nos Aires pelas 16h.30. A hora de ponta ainda não tinha começado, mas o trânsito já estava um inferno. Demorámos duas horas a percorrer os 48 km finais, já na área metropolitana. E quando finalmente estacionámos o Kia Sorento de novo diante do Hotel Panamericano, na Avenida 9 de Julho, o contador parcial indicava que tínhamos percorrido 6074,7 km. Estava terminada mais uma aventura sul-americana e fomos festejá-la a Puerto Madero, onde acompanhámos um enorme Ojo de Bife com uma boa garrafa de Malbec. E brindámos ao regresso a estas paragens da Argentina e do Chile.

Entrar em Buenos Aires pelo Camino Del Buen Aire, chegando ao ponto de partida já ao anoitecer. O conta-kms do Kia Sorento marcava 6074,7 km e só nos restava

comemorar esta aventura com um merecido jantar, e aguardar pelo voo da TAM que nos trouxe de regresso a casa. Da esquerda para a direita, Alexandre Correia e Paulo

Calisto, os “sacrificados” por este trabalho. Sim, ninguém foi de férias!...