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FACULDADE MERIDIONAL - IMED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO POR UMA FUNDAMENTAÇÃO DEMOCRÁTICA: A DIFERENÇA ENTRE DECIDIR E ESCOLHER. MURIELE DE CONTO BOSCATTO Passo Fundo, outubro de 2015.

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FACULDADE MERIDIONAL - IMED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

POR UMA FUNDAMENTAÇÃO DEMOCRÁTICA: A DIFERENÇA ENTRE DECIDIR E ESCOLHER.

MURIELE DE CONTO BOSCATTO  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Passo Fundo, outubro de 2015.

 

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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL - IMED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

POR UMA FUNDAMENTAÇÃO DEMOCRÁTICA: A DIFERENÇA ENTRE DECIDIR E ESCOLHER.

MURIELE DE CONTO BOSCATTO  

 

Dissertação submetida ao Curso

de Mestrado em Direito do

Complexo de Ensino Superior

Meridional – IMED, como

requisito parcial à obtenção do

Título de Mestre em Direito.

 

 

 

Orientador: Professor Doutor André Karam Trindade.  

Passo Fundo, outubro de 2015.

 

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CIP – Catalogação na Publicação

B741p Boscatto, Muriele de Conto

Por uma fundamentação democrática : a diferença entre decidir e escolher / Muriele de Conto Boscatto. – 2015.

218 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Meridional – IMED,

Passo Fundo, 2015. Orientador: Professor Doutor André Karam Trindade.

1. Teoria do Estado. 2. Democracia. 3. Hermenêutica. I.

Trindade, André Karam, orientador. II. Título.

CDU: 342.7

Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

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DEDICATÓRIA

Dedico a presente Dissertação de Mestrado, com todo o meu amor e

gratidão, a minha filha Clara e ao meu marido Kleryston Boscatto.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus.

Agradeço também a minha filha e ao meu marido que são a razão de todo o meu

esforço.

Agradeço aos meus pais; sem eles nada disso seria possível.

Agradeço ao meu Amigo, Márcio Moraes dos Santos, também peça fundamental

para realização deste projeto, por todos os seus incentivos.

Agradeço ao meu Professor Orientador, Dr. André Karam Trindade, pelos

conhecimentos passados e, sobretudo, pela paciência com as todas as

“interpéries” que o “estar-aí-no-mundo” pode provocar.

Agradeço aos demais Professores e Colegas do Programa de Pós-Graduação

Stricto Senso da Imed, especialmente, aos Colegas Igor Tusset, Mariana Martini

Motta, Maurício Mosena, Taline Vieira e Renato Lemos.

Agradeço ao pessoal da De Conto Boscatto Advogados Associados, em especial,

a Colega Elis pela direção dos trabalhos na minha ausência.

Agradeço ao pessoal da Visoncure, especialmente, a Colega Letícia.

Agradeço também aos demais Colegas Professores da Imed e os nossos alunos.

 

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“A menos que modifiquemos a nossa maneira de pensar, não seremos

capazes de resolver os problemas causados pela firma como nos

acostumamos a ver o mundo”. (Albert Einstein)

 

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RESUMO

A presente Dissertação de Mestrado se insere na Linha de Pesquisa 2, do Progra-

ma de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito da Imed, nos mecanismo de efeti-

vação de uma democracia sustentável. A problemática central se insere na distin-

ção entre decidir e escolher, o que é feito a partir de anamnese destes conceitos,

que leva em conta o processo para a obtenção de respostas em cada qual deles,

se estreitando a decisão ao processo de produção do sentido da fenomenologia

da hermenêutica-ontológica heideggeriana, da qual se inspirou a hermenêutica fi-

losófica gadameriana que referenciou a Crítica Hermenêutica do Direito, da qual

se pautou a fundamentação democrática, também acrescida da integridade dwor-

kiana. Já o escolher está a pressupor a existência de múltiplas vias cujo resultado

desse processo se resume a mera eleição subjetiva-axiológica de um dos cami-

nhos aparentemente possíveis. A democracia exige decisão judicial referendada

pela fundamentação democrática que considere o referido processo interpretativo

produtivo do sentido autêntico. Essa é a única forma de se legitimar a intervenção

jurisidicional, no Estado Democrático de Direito, sendo certo que a Constituição é

o locus privilegiado da produção do sentido, representando o sentido do limite e o

limite do sentido do Direito, possibilitando a obtenção de respostas constitucional-

mente adequadas. Tanto o modelo positivista decisional, representado pela inter-

pretação voluntarista kelseniana, pela discricionariedade judicial hartiana e pela

ponderação procedural alexyana, quanto o modelo pragmatista de decisão, exa-

minado a partir do realismo americano, sucumbem à fundamentação democrática,

não partindo suas respostas de um processo completo de construção do sentido,

mas cindido, que ignora a viragem linguística e recai nos entraves metafísicos, se

resumindo a escolhas apofânticas. Evidenciadas estas posturas, o prejuízo é para

democracia, que falece na concretização do seu escopo maior de satisfação dos

direitos fundamentais e na produção democrática do Direito, por vezes, retirando

do povo, através de sua representatividade, grandes discussões que caberiam ao

seu alvedrio, em prol de um “governo dos juízes”.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Democracia. Fundamentação. Decisão. Escolha. Hermenêutica.

 

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ABSTRACT

This Master's Thesis is included in the Research Line 2, the Graduate Program in

Law Stricto Sensu Imed, the effective mechanism of a sustainable democracy.

The central problem is inserted in distinguishing decide and select, which is made

from anamnesis of these concepts, which takes into account the process for

obtaining answers in each of them, narrowing the decision to the production

process of the meaning of phenomenology of Heidegger's hermeneutic-

ontological, which was inspired by Gadamer's philosophical hermeneutics that

referenced the Hermeneutics of the Law Review, which was based democratic

foundation also increased the dworkiana integrity. But the pick is to presuppose

the existence of multiple pathways the result of this process comes down to mere

subjective axiological-election of the apparently possible paths. Democracy

requires judicial decision ratified by democratic basis that considers the said

productive interpretation of the true meaning process. This is the only way to

legitimize jurisidicional intervention in the democratic rule of law, given that the

Constitution is the privileged locus of the production of meaning, representing the

sense of limit and the right sense of limit, making it possible to obtain answers

constitutionally appropriate. Both the positivist decisional model, represented by

the interpretation proactive kelseniana by hartiana judicial discretion and the

alexyana procedural consideration, as the pragmatist model of decision, examined

from American realism, succumb to democratic basis, not leaving their responses

to a full process construction of meaning, but split, which ignores the linguistic turn

and lies in metaphysical barriers if summarizing the apofânticas choices.

Highlighted these postures, the damage is for democracy, which dies in achieving

its broader scope of enjoyment of basic rights and democratic production of law,

sometimes removing the people, through their representative, great discussions

that would fit at its discretion, in favor of a "government of judges".

Keywords: Democratic State. Democracy. Rationale. Decision. Choice.

Hermeneutics.

 

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1

OS DESAFIOS DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL ........................ 15

1.1 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: EVIDÊNCIAS DO PROBLEMA ........................................... 15

1.2 FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL PELO VIÉS DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO ............................................................................... 36

1.2.1 ENTRAVE À FUNDAMENTAÇÃO DEMOCRÁTICA E A PROPOSTA DE SUA SUPERAÇÃO PELA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO .............................. 36

1.2.2 BASES TEÓRICAS DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO ................. 45

1.2.2.1 Virada linguística ou giro ontológico linguístico e a sua importância para o Direito ........................................................................................................... 46

1.2.2.2 Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer ................................. 57

1.2.2.3 Teoria Integrativa de Ronald Dworkin ....................................................... 69

1.2.3 RESPOSTA CORRETA PARA A CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO: DECISÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA COMO RESULTADO DO PROCESSO INTERPRETATIVO CONSTRUTIVO/PRODUTIVO ............................ 78  

CAPÍTULO 2  

INTERPRETAÇÃO E DECISÃO JUDICIAIS PELOS MODELOS POSITIVISTA E PRAGMATISTA ........................................................................................................ 88

2.1. ANAMNESE ENTRE DECIDIR E ESCOLHER: DISTINÇÃO FUNDAMENTAL 89

2.2. "DECISÃO JUDICIAL" E O POSITIVISMO JURÍDICO .................................... 95

2.2.1 Teoria interpretativa kelseniana: "decisão judicial" como ato de vontade. ................................................................................................................................ 100

2.2.2 Debate entre Hebert Hart e Ronald Dworkin: o problema dos hard cases. ................................................................................................................................ 110

2.2.3 Teorias Argumentativas: o problema (metafísico) da ponderação alexyana. ................................................................................................................ 121

2.3. "DECISÃO JUDICIAL" E O PRAGMATISMO ................................................ 130

 

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2.3.1 JURISPRUDÊNCIA PRAGMÁTICA, JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES, MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE; E SOCIOLOGIA DO DIREITO: "PANO DE FUNDO" DE CONSTRUÇÕES PRAGMATISTAS .................................................. 130

2.3.2 REALISMO JURÍDICO DE OLIVER WENDELL HOLMES JUNIOR .............. 136

2.3.3 CRÍTICAS À “DECISÃO JUDICIAL" PRAGMATISTA .................................... 141

CAPÍTULO 3

OS MODELOS DECISIONAIS POSITIVISTA E PRAGMATISTA NA PRÁTICA JURÍDICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: RELEVÂNCIA PRÁTICA DA DISTINÇÃO PROPOSTA ....................................................................................... 146

3.1 AS "ESCOLHAS TRÁGICAS" E O MODELO POSITIVISTA .......................... 147

3.2 A "MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL" E O MODELO PRAGMATISTA ............ 161

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 200  

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 208  

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INTRODUÇÃO

A presente Dissertação de Mestrado tem por objetivo, a partir da análise

da fundamentação judicial, por distintos ângulos, evidenciar a existência de distinção

entre decidir e escolher.

A distinção proposta partiu de questionamento levantando pelo Dr. Rafael

Tomaz de Oliveira, nas intermediações das discussões sobre a obra “Verdade e

Consenso”, de Lenio Luiz Streck, principal mentor da Crítica Hermenêutica do Direi-

to, adotada como marco teórico para as discussões travadas. Também, o incentivo à

pesquisa do assunto por parte do Orientador, Dr. André Karam Trindade, que, junto

aos demais, representa importante expoente da linhagem teórica aqui prestigiada.

Neste contexto, pelo fato de a Crítica Hermenêutica do Direito ter sugerido

a distinção, mas não se imiscuído, especialmente, nos seus contornos, mesmo à

vista dos seus pressupostos e referenciais de fundo, pretendeu-se fazer tal enfrenta-

mento.

A eleição da problemática também se insere numa perspectiva de prática

profissional da Mestranda que a elabora. Isso, especialmente, pelo fato de, na condi-

ção de Advogada, se deparar, diariamente, com julgados que não se coadunam à

Constituição Federal de 1988 ou que estabelecem prestações jurisdicionais absoluta

mente díspares umas das outras, mesmo em sendo a matéria de fundo equivalente,

de modo a se perguntar sobre ser fundamentalmente uma decisão jurídica ou a sua

vertente distorcida da escolha.

Tudo isso e, certamente os conteúdos ministrados nas Disciplinas do Pro-

grama de Mestrado a que se vincula, justificaram a eleição da temática e a aborda-

gem da distinção entre os atos de decisão e de escolha, como mecanismo de efeti-

vação de uma democracia sustentável, fazendo “justiça” à linha de pesquisa a qual

se insere a Dissertação.

Existem, assim, sérias e fundamentais diferenças entre decidir e escolher.

A decisão pressupõe fundamentação democrática que longe está de situar-se na

motivação inspirada no livre convencimento da processualística pátria. Reclama um

processo compreensivo-interpretativo-produtivo, próprio de posturas hermenêuticos-

ontológicas, que permitam, nesse curso, fazer revelar o sentido mais autêntico do

texto através dele mesmo, ou seja, pela relação circular que se coloca do todo para

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a parte e da parte para o todo, considerando a irrenunciável existência de uma pré-

compreensão desse sentido, pela tradição que representa “modo-de-ser-no-mundo”,

ou a faticidade e a historicidade.

O processo construtivo compreensivo-interpretativo culmina com a norma-

tividade constitucional, a qual ainda recebe a integridade do Direito, por sua coerên-

cia a um sistema de princípios constitucionais, fechando a interpretação, permitindo,

portanto, “a” resposta constitucionalmente adequada como resultado de tudo isso.

Esse processo decisional como construção da autêntica compreensão é,

fundamentalmente, diferente do contexto de uma escolha, que, por qualquer via que

se apresenta, pressupõe a eleição entre variadas possibilidades que se apresentam,

tendo tal opção carga eminentemente subjetiva e axiológica.

A democracia exige a fundamentação democrática. Isso é decorrência do

regime constitucional adotado pela Constituição Federal de 1988, onde consta o limi-

te para a produção do sentido do Direito, ou seja, para própria intervenção jurisdicio-

nal, bem como o limite deste sentido, inserido na parametricidade constitucional, des

velada pelo referido processo interpretativo produtivo consistente na fundamentação

democrática, que redunda na resposta constitucionalmente adequada. À obviedade,

equivalente à decisão, e não à escolha que ignora isso tudo.

É só, pela fundamentação democrática, que se legitima, portanto, a deci-

são judicial, no Estado Democrático de Direito. Esse é o preço de se viver numa de-

mocracia. Logo, o comportamento jurisdicional que passar por cima disso causa séri-

os riscos à democracia, primeiro, não realizando o seu escopo maior de satisfação

dos direitos fundamentais – inclusive, por ser a fundamentação democrática um direi

to e dever fundamental –, segundo, por que deslegitima a produção democrática do

Direito, neste quadrante histórico, dando abertura a um “governo dos juízes”, inclusi-

ve, retirando do povo e da sua representatividade decisões cuja alçada lhe compete.

A histórica de luta contra o arbítrio, que motivou o regime constitucional vi-

gente, corre sério risco de ceder-se a ele. Por isso, a distinção proposta aqui ganha

destaque como mecanismo de efetivação de uma democracia sustentável, lembran-

do que sustentável só pode ser aquilo que é democrático, assim como a fundamenta

ção com tal característica.

Assim é que, à evidência do desafio proposto, a Dissertação de Mestrado

epigrafada partirá, no Capítulo 1, de “Os desafios da fundamentação da decisão

judicial”, onde se imiscuirá acerca da jurisdição constitucional em tempos de

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Constitucionalismo Contemporâneo, trazendo à tona a grande discussão por de traz

do papel outorgado ao Poder Judiciário para a satisfação dos direitos fundamentais:

a fundamentação exigida pelo referido paradigma.

Depois, seguirá no caminho para a construção desta fundamentação que

se qualifica por democrática e que, antes de mais nada, é paradigmática, na medida

em que recebe a virada ontológica-linguística, marcado a interpretação do Direito a

partir de uma relação intersubjetiva, e não dualística/metafísica sujeito e objeto. Tal

construção obedecerá aos contornos da Crítica Hermenêutica do Direito, inclusive, a

partir do entrave que esta levanta à satisfação deste direito/dever de fundamentação

que é fundamental, bem como trazendo as suas bases teóricas: viragem linguística;

hermenêutica gadameriana; e teoria integrativa de Dworkin. Isso tudo a culminar,

num último debate deste Capítulo 1, na questão envolta da resposta constitucional-

mente adequada como resultado desse processo todo.

No Capítulo 2, é que se fará a anamnese entre decisão e escolha,

estabelecendo a distinção fundamental entre estes conceitos, especialmente, no to-

cante ao processo de alcance das respostas por uma ou por outra dessas vias. Essa

apresentação permitirá entrelaçar os atos decisionais à construção fenomenológica-

hermenêutica de produção do sentido da hermenêutica-ontológica de Heidegger, da

qual parte, depois, o processo de produção da compreensão autêntica de Gadamer,

que, por sua vez, estende seus tentáculos para a fundamentação da fundamentação

da Crítica Hermenêutica do Direito e que finaliza com a fundamentação democrática

desenvolvida nesta Dissertação.

Por outro lado, se perceberá que os atos de escolha não completam esse

processo compreensivo, ficando no primeiro plano da antecipação do sentido, plano

apofântico, portanto, se resumindo a opção de uma ou outra via à evidência das pos

sibilidades que, neste momento, se apresentam. Multiplicidade de respostas é a ca-

racterística dos atos de escolha, representando a opção a eleição subjetivista e axio-

lógica de uma delas.

Na sequência, neste mesmo Capítulo 2, serão analisadas propostas teóri-

cas para a decisão, sempre em cotejo com a distinção estabelecida. Nesta ocasião,

assumirá a cena o modelo positivista para a decisão judicial, entrando em debate: a

teoria interpretativa kelseniana, que, através da sua interpretação afeita à moldura,

abriu o decisionismo, sustentando tal atividade no ato de vontade; a discricionarieda-

de hartiana, como meio de se resolver os chamados casos difíceis; e a argumenta-

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ção alexyana, que, através da sua ponderação, faz ressurgir a discricionariedade har

tiana, para as insuficiências do direito.

Também, ganhará a cena a proposta decisional pragmatista, começando

esta abordagem de suas influências dos movimentos europeus que pregavam a livre

criação-interpretação do direito, passando para o exame do fenômeno que ficou co-

nhecido como realismo jurídico, pelo lente do seu principal expoente, o juiz da Supre

ma Corte Americana Oliver Wendell Holmes Júnior, chegando, então, à crítica da res

posta do modelo decisional pragmático.

No Capítulo 3, a analítica se dirigirá ao cenário da prática jurídica do Su-

premo Tribunal Federal, quando se evidenciará, em julgamentos paradigmáticos as-

sentados numa ou outra proposta (positivista ou pragmatista), como se coloca a dis-

tinção entre decidir e escolher no campo da casuística. Para a análise, se trabalhará

com julgados rotulados de “escolhas trágicas”, onde envolvida a chamada judicializa-

ção política, como decorrência de uma postura positivista normativista; e com ares-

tos em que discutida suposta “mutação constitucional”, como decorrência de atitude

pragmatista.

Ao fim e ao cabo, tudo no escopo de evidenciar e elucidar a distinção pro-

posta, no Estado Democrático de Direito, de modo a exigir-se o desenvolvimento de

uma Teoria da Decisão Judicial Democrática que a leve a sério, sob pena de flagran-

te fragilização do direito e da democracia neste quadrante histórico ou, se assim se

queira, como forma de implementar um democracia sustentável.

A metodologia empregada para o desenvolvimento da Dissertação epigra-

fada, inclusive, em função dos marcos teóricos sobre os quais parte as discussões

propostas, é a fenomenologia-hermenêutica.

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CAPÍTULO 1

OS DESAFIOS DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL.  

O desenvolvimento do estudo, como se verificará, se enveredará para o lado

da Crítica Hermenêutica do Direito, para contextualizar a fundamentação da decisão

judicial, no âmbito do Constitucionalismo Contemporâneo1, cuidando de traçar as

tentativas de teorizar a decisão judicial, por diferentes vieses, estabelecendo, a partir

da pontual distinção entre decisão e escolha, qual das proposta se afina à decisão

judicial democrática própria – e exigida pelo – do paradigma constitucional.

Nada obstante, para se chegar ao fim proposto e se debruçar sobre a

temática do fundo envolta do decidir e do escolher – distinção levantada2, mas ainda

não enfrentada, especificadamente, pelo referencial teórico que se adota –, primeira-

mente, é preciso ancorar à fundamentação aos alicerces do Constitucionalismo

Contemporâneo, para, depois, abordá-la pelo viés proposto, inclusive, avançando

por suas bases teóricas, para, só então, a partir disto tudo, se posicionar pela

concepção da fundamentação democrática que redunda na resposta constitucional-

mente adequada, equivalente à decisão judicial democrática que ultima o processo

interpretativo judicial.

Esse caminho permitirá caracterizar e dar significado ao direito e dever funda-

mental de fundamentação democrática da decisão judicial e a determinar sua obser-

vância como pressuposto de legitimidade do ato no ordenamento jurídico vigente.

1.1 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: AS EVIDÊNCIAS DO PROBLEMA

Parte-se, então, do viés constitucional da matéria. Todavia, para assim

adentrar-se na temática da fundamentação democrática, relevante, de pronto, já se

perceber o problema para o qual se está chamando atenção e que diz com a

                                                                                                                         1 Também, adotando-se referencial teórico streckiano 2 Conforme consta da obra “O que é isto? Decido conforme minha consciência”, de Streck, a distinção foi levantada por Rafael Tomaz de Oliveira, em discussão ao prefácio de outra obra do mesmo autor, Verdade e Consenso, em Seminário realizado em 2009, perante a Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

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fundamentação da decisão e os seus correlatos dever e direitos fundamentais que

terminam com a resposta correta ou constitucionalmente adequada.

Para tanto, interessantes os exemplos ofertados por Lorenzetti3, Ministro da

Corte Suprema de Justiça da Argentina, em adiantamento da discussão. Num

primeiro, avança no caso do credor desalmado, que executa a dívida de um devedor

que assim não conseguiu honrar seu compromisso por circunstâncias alheias a sua

vontade. À vista do caso, enxerga três posições, conforme se posicione o juiz como

formalista, piedoso ou consequencialista. O formalista, aliado à justiça formal, diria

apenas que o contrato faz lei entre as partes. O piedoso, mais estreito à justiça

material, relativizaria a regra em função de questões de princípios. O consequen-

cialista, preocupado com os resultados, colocaria em pauta os efeitos da decisão.

Num segundo, traz Lorenzetti caso que se tornou conhecido e que trata de

questão envolta do estado de necessidade de exploradores de cavernas que foram

soterrados. Tais pessoas, há dias sob escombros, teriam optado por sacrificar

integrante do grupo para fins de alimento. Quando retirados, teriam defendido o

sacrifício em função de acordo entre todos, em espécie de sorteio, com anuência da

vítima. Submetidos a julgamento, vieram as distintas posições:

[...] juiz Truepenni entendeu pela condenação à morte dos

sobreviventes [...]. É uma decisão baseada na justiça formal, que se

fundamenta em regras, não reconhecendo nenhum grau de

discricionariedade ao juiz. [...] ministro Foster defendeu que a

conclusão pela condenação seria monstruosa, e que se deveria

aplicar o direito natural [...]. O segundo fundamento era de que a

interpretação da lei deve ser razoável [...]. É uma decisão baseada

na justiça material, que admite corrigir as regras, substituindo-as por

princípios [...]. o ministro Tatting [...] renunciava a participar da

decisão. O ministro Keen sustentou que a clemência é matéria que

deve que ser decidida pelo Poder Executivo, e avaliar se o

julgamento foi justo, injusto, mau ou bom, não diz respeito ao

Tribunal, que não deve aplicar suas concepções de moralidade, mas

apenas a lei. É uma decisão baseada na justiça formal,

procedimental, e consequencialista [...]. O ministro Handy sustentou

                                                                                                                         3 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Cláudia Lima Marques. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 30-31.

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que se deve resolver a questão com base na sabedoria prática, em

harmonia com o modelo do bom administrador que trabalha com

eficiência e senso comum [...]. É uma posição argumentativa, que

leva em conta o senso comum, entendido este como a opinião da

maioria4.

Em ambos exemplos, em cada qual das posições defendidas pelos intérpre-

tes, estão inseridas propostas teóricas sobre a decisão judicial e a sua interpretação.

Uma positivista formalista; outra mais principiológica; e outra ainda de viés argumen-

tativo. Cada qual delas apresenta problemas teóricos-práticos, que se evidenciam,

com maior clareza, na distinção entre escolher e decidir, a qual será desenvolvida

por ocasião do Segundo Capítulo da Dissertação.

O excessivo apego às regras, por exemplo, pode levar à injustiças graves, o

que aconselha se transcenda a elas, todavia, com dificuldades para se estabelecer

os limites, bem como se trabalhar com os princípios e com os valores. Também, um

sistema exclusivamente de princípios, muito mais quando mal utilizados – como

standards interpretativos5, por exemplo –, pode dar causa a “decisões” embasadas

em valorações pessoais. Sem critérios, também qualquer argumento ou meta-regra

podem ser utilizados, para justificar uma posição, seja ela subjetiva, seja ela ideoló-

gica, e não, própria e juridicamente, correta, por parte do aplicador do direito.

De acordo com Larenz, fala-se de perdas de certeza no pensamento jurídico,

aceitando-se como satisfatórias não as soluções reconhecidamente adequadas,

conformando-se com as plausíveis ou suscetíveis de consenso ou ainda aquelas

buscadas das ciências sociais, como aquelas que poderiam se esperar. “A isso

subjaz a constatação de que na apreciação jurídica [...] se insinuam sempre e

permanentemente valorações”6.

Nessa medida, a atividade judicial vem marcando-se de ponderações de bens

ou interesses em confronto, o que sempre subjaz valorações. Nada obstante, juízos

de valor não são suscetíveis de confirmação científica, e, nos termos de Larenz, “[...]

                                                                                                                         4 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Cláudia Lima Marques. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 32-33. 5 Conceito que se trabalhará melhor no decorrer da Dissertação. 6 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 2.

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18

apenas possibilitam conferir a expressão à convicção pessoal de quem emite o

juízo”7.

A busca da fundamentação, nesse contexto, pode não ter fim: um jurista pode

sustentar sua interpretação na lei, outro na Constituição, outro no direito natural, um

seguinte em princípios morais, e algum outro em suas concepções políticas. Se não

há um limite e um critério de validade à determinar o que consiste a fundamentação

democrática, pode estabelecer-se qualquer tipo de cadeia de argumentação suposta

mente apta a amparar uma escolha, e não uma fundamentação legítima deste para-

digma constitucional.

A discricionariedade, aplaudida pela interpretação kelseniana, nunca deveria

ter sido defendida e nem assim deverá ser impulsionada no futuro, numa sociedade

que se pretenda democrática e num Estado ao qual se atribui o status de

Democrático de Direito. Outrossim, o cumprimento da lei, que não é igual ao simples

dedutivismo da norma legal, e a clareza das razões da decisão judicial são pontos

bastante caros para o Direito hoje e sempre.

Dizendo de outro modo, a questão aqui discutida é complexa e pretende se

imiscuir, de uma forma ou de outra, nos entraves que fragilizam a fundamentação

democrática da decisão judicial, determinando, ao fim e ao cabo, se o resultado do

processo interpretativo equivale à decisão judicial própria deste paradigma ou, ao

contrário, se identifica-se com escolha subjetiva de uma das vias possíveis, o que

vai de encontro ao dever e direito fundamentais correlatos à fundamentação, notada-

mente, da resposta correta ou constitucionalmente adequada.

Lorenzetti8 vai apontar que o problema não estaria apenas na disputa cientí-

fica entre racionalistas e seus críticos, senão como um direito dos cidadãos à funda-

mentação razoável das sentenças. Prefere-se substituir o adjetivo “razoável”, pelo

“democrático”, na linha do referencial teórico que se adota e da posição absoluta-

mente contrária a qualquer tipo de discricionariedade judicial, o que é aceito – bem

como criticável – pela doutrina citada.

                                                                                                                         7 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 2. 8 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Cláudia Lima Marques. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 33-38.

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19

Traz-se à evidência, neste debate, o texto de Ost, quem traça distinção entre

os modelos de juízes – e por que não de “decisão” ou mesmo de propostas para

teorizá-la – Júpiter, Hércules e Hermes. O primeiro se respaldaria tão-só na lei; o

segundo9, estreito às correntes do realismo americano e da sociological jurispruden-

ce, se caracterizaria como o “juez semidiós que se somete a los trabajos agotadores

de juzgar y acaba por llevar el mundo sobre sus brazos extendidos, reproduciendo

así fielmente la imagen del embudo”10; e o terceiro11 seria uma espécie de mediador

universal, que adotaria uma estrutura de rede que sintetizaria o Direito como um

conjunto de infinitas informações disponíveis instantaneamente.

Segundo Streck, para se compreender o papel do intérprete do Direito, nesta

quadra histórica, faz-se necessário a desconstrução desses modelos de Direito e de

juiz, o que tem levado a diferentes equívocos. Streck traça dez objeções a Ost, mais

direcionadamente à equivocada interpretação sobre o “Juiz Hércules”, oriunda de lei-

tura distorcida da teoria dworkiana12.

A primeira objeção deriva do esforço de enquadrar o “Juiz Hércules”, no mode

delo do Estado Social, colocando-o como uma antítese do juiz que caracterizaria o

modelo do Estado Liberal, o “Juiz Júpiter”, como se aquela primeira proposta, de juiz

assistencialista, viesse em substituição desta última afeita ao exegetismo13.

                                                                                                                         9 A designação “Hércules” segue inspiração dworkiana, todavia, não se equivale ao “Juiz Hércules” deste referencial, pelo não direcionamento do Jurista Belga à responsabilidade política com a integridade e coerência do direito, reclamados por aquele referencial inglês. Simplesmente, aproveita o nome “Hércules”, para designar seu Juiz mais estreito às correntes realistas, com as quais não se pode reduzir a teoria de Ronald Dworkin. Com efeito, o “Juiz Hércules” de Dworkin é o juiz racional, que “leva a sério os direitos fundamentais”, que domina o “império do Direito”, que se pauta em toda ocasião e, particularmente, nos casos difíceis, a encontrar a “resposta correta”. A fundamentação democrática adotada por esta Dissertação de Mestrado, seguindo o referencial teórico eleito, se estreita ao “Juiz Hércules” dworkiano, tendo servido o texto de Ost para aventar os distintos modelos de juízes, jurisdição e propostas teóricas que se pretende nela discutir e, inclusive, seus entraves. 10 OST, François. Júpter, Hércules e Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre el enseñanza del Derecho. Año 4. n. 8. 2007, p. 101-130. Disponível em: <http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/rev_academia/revistas/08/jupiter-hercules-hermes-tres-modelos-de-juez.pdf>. Acesso em jul. 2015. 11 Agora, é o “Juiz Hermes” de Ost que é diferente do “Juiz Hermes” de Dworkin. Para Dworkin, este modelo de juiz é aquele que se preocupa em buscar a vontade do legislador. Para Ost, “[...] Hermes representa todo actor jurídico, todo locutor que se expresa en el discurso jurídico, aunque sea un simple particular, a condición de que adote la actitude ‘hermenéutica’ que representamos como la propria del ‘modelo de Hermes’”. Ibidem, p. 104. 12 STRECK, Lenio Luiz. O (Pós) Positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) – dois decálogos necessários. Revista de Direito e Garantias Fundamentais. n. 7, Vitória/ES, p. 15-45, jan./jun. 2010. 13  Ibidem, p. 15-45.  

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As segunda, terceira e nona objeções decorrem do fato de Ost ter confundido

o “Juiz Hércules” de Dworkin, que se coloca contra o juiz discricionário, buscando na

integridade com a coerência de um sistema principiológico a blindagem contra aquilo

que Ost acredita ser a característica do juiz herculano. Na verdade o “Juiz Hermes”

de Ost, que respeitaria o caráter hermenêutico ou reflexivo do raciocínio jurídico, aca

ba se aproximando do “Juiz Hércules” de Dworkin, naquela leitura distorcida que é

feita por Ost14.

As outras seis objeções, estão relacionadas à ignorância de Ost frente ao pa-

pel e limite do Poder Judiciário, no paradigma do Estado Democrático de Direito, se-

ja por que não se preocupa com a intervenção jurisdicional à realização dos direitos

fundamentais, seja por que restringe a atuação do seu “Juiz Hércules” ao velho mo-

delo de regras, ignorando o papel da moral no regime constitucional, através dos

princípios, seja por que seus modelos se reduzem ao exegeta e ao assistencialista,

não alcançando os principais entraves neoconstitucionalistas, através das figuras do

juiz ponderador, analítico e procedimental15.

A contraposição destes modelos apenas comprova o grande dilema da meto-

dologia contemporânea, ou seja, como se interpreta e aplica o Direito e quais as con

dições que tem o juiz ou tribunal para proferir as respostas aos casos em julgamen-

to. Certamente, essa discussão não parte apenas do confronte entre o modelo decisi

onal do Estado Liberal versus o modelo do Estado Social. Isso equivaleria a ignorar

os dois pilares sobre os quais está assentando o Estado Democrático de Direito: a

proteção dos direitos fundamentais e o respeito à democracia.

Nas palavras de Streck,

[...] se é inexorável que, a partir do segundo pós-guerra, diminui o

espaço de liberdade de conformação do legislador em favor do

controle contramajoritário feito a partir da jurisdição constitucional, é

exatamente por isso que devem ser construídas as condições de

possibilidade para evitar discricionariedades, arbitrariedades e

decisionismos, ou seja, o constitucionalismo destes tempos pós-

positivistas assenta seus pilares no novo paradigma linguístico-                                                                                                                          14  STRECK, Lenio Luiz. O (Pós) Positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) – dois decálogos necessários. Revista de Direito e Garantias Fundamentais. n. 7, Vitória/ES, p. 15-45, jan./jun. 2010. 15 Ibidem, p. 15-45.  

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filosófico, superando quaisquer possibilidades de modelos

interpretativos (se quiser, hermenêuticos) sustentados no esquema

sujeito-objeto.

Por isso, a relevância da temática aqui travada, consistente na definição do di

reito e dever fundamental de fundamentação democrática e de resposta correta, que

pressupõe o estabelecimento da distinção fundamental proposta. É, tão-somente, da

fundamentação democrática que se resolve o problema de como se interpreta e apli-

ca o Direito, bem como se limita a atuação jurisdicional, no paradigma atual.

Feita essa breve contextualização da discussão de fundo, que se desenvol-

verá, nos demais Capítulos, mais preocupada com analítica das propostas teóricas

da decisão, passa-se ao exame das premissas constitucionais da discussão (ou da

fundamentação democrática).

Tratar da decisão judicial, conforme se objetiva, requer-se, em primeira mão,

investir-se para o campo da jurisdição constitucional.

Isso significa pensar a decisão judicial não apenas como a resposta da

contenda jurídica trazida aos palcos do Judiciário e que coloca fim ao litígio proposto

pelas partes. Significa, sim, pensar a decisão judicial como apta à concretização dos

direitos fundamentais exarados na Constituição, representando, portanto, não ape-

nas uma alternativa à solução do conflito, mas uma (ou “a”) via à satisfação da or-

dem social, econômica e política constitucional do país.

Há, diante do regime constitucional imposto pelo Estado Democrático de

Direito e sua vertente transformadora da sociedade, a qual vêm acrescer esta tarefa

entre as já conhecidas proteção das liberdades e dos direitos sociais, a preocupação

com a efetividade de tudo que se prometeu e que não se cumpriu (as chamadas

“promessas descumpridas da modernidade”16), ou seja, em dar efetividade às garan-

tias que a Constituição oferece, com o fito de melhorar a sociedade em que se vive.

Chevallier17 aponta que a supremacia constitucional e a possibilidade de se

invocar as regras constitucionais para todos os três poderes teve uma garantia

efetiva, em 1949, na Alemanha, quando a Corte Constitucional, dispondo de poderes

                                                                                                                         16 Seguindo uma leitura streckiana. 17 CHEVALLIER, Jaques. O Estado de direito. Trad. Antonio Arnaldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Forum, 2013, p. 61.

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de controle e de decisão muito mais amplos, apareceu como a pedra angular do

sistema político alemão.

Com especial relevância, se colocou o juiz – ou o Judiciário –, vindo a assumir

a postura de protagonista na concretização dos direitos fundamentais e na resposta

às citadas promessas descumpridas da modernidade. E, aqui, começa o problema a

ser respondido neste estudo. Tal preocupação, obviamente, não se inicia aqui. To-

davia, vem sendo debatida, de há muito, no campo da jurisdição constitucional, ten-

do representado, inclusive, direção no debate sobre o guardião da Constituição entre

Carl Schimitt e Hans Kelsen.

Nada obstante, se é certo que a razão não está com Schimitt e o seu

Reichspräsident, por razões que a história responde com toda a propriedade – as

quais serão, de uma forma ou de outra, aqui resgatadas –, também não se pode

afirmar que ao Poder Judiciário é conferida abertura à discricionariedade, para “dizer

qualquer coisa sobre qualquer coisa”18, sob pretexto de dar efetividade aos direitos

fundamentais.

Apesar da adoção do regime constitucional da separação dos poderes, no arti

go 2 da Constituição Federal de 198819, não sendo permitido ao Poder Judiciário

legislar, nem complementar o texto legal ou constitucional, e, em que pese o exercí-

cio da jurisdição dever ficar adstrito aos casos concretos, o que se tem apontado,

por exemplo, aqui no Brasil, é a interpretação judicial como fonte criadora do direito,

bem como ainda como instrumento de mutação legal e constitucional, à vista de sua

reiteração jurisprudencial, por vezes, através de Súmulas vinculantes.

Na processualística do Brasil e do mundo, encontram-se autores que chegam

ao ponto de lecionar que, pelo caráter incompleto, equívoco e antinômico dos enun-

ciados legislativos, qualquer que seja o corpus juris, por mais aperfeiçoado, não tem

condições de eliminar as margens de liberdade inventiva, escolha pessoal e criativi-

dade do intérprete, reputando indispensáveis à síntese dinâmica entre a natureza

                                                                                                                         18 Expressão tipicamente streckiana. 19 “Art. 2. São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 11 dez 2014).

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abstrata da norma e o caráter concreto da situação histórica a ser juridicamente qua-

lificada20.

Assim se põe, por exemplo, Cappelletti, em defesa do protagonismo judicial,

num substancialismo sem limites21, apostando na criatividade judicial, afirmando que

“o bom juiz bem pode ser criativo, dinâmico e ‘ativista’ [...]; no entanto, apenas o juiz

ruim agiria com as formas e as modalidades de legislador [...], se assim agisse dei-

xaria de ser juiz”22.

Ora, exercendo o poder nacional em nome do Estado, o juiz dita decisões que

são revestidas de imperatividade e que, por mais de um modo, podem influir no

conteúdo e significado das leis, inclusive, da Constituição ou mesmo das diretrizes

políticas do Estado. A principal razão da influência do juiz, no conteúdo da norma,

está justamente ante ao reconhecimento de ser ele, no Estado Democrático de Direi-

to, o “guardião da Constituição”, ou seja, um intérprete qualificado e legitimado a

buscar o sentido e o significado dos textos, a partir da Constituição, e a julgar os ca-

sos concretos em conformidade com este resultado.

Conforme Garapon, “um Estado moderno, um poder executivo de credibilida-

de – assim como uma economia forte – precisam de uma justiça respeitada”. Segun-

do o autor, o protagonismo judicial só pode ser compreendido se relacionado a um

movimento profundo, do qual ele é mera manifestação. Não se trata de uma transfe-

rência de soberania ao juiz, mas de uma transformação da democracia23.

Em um sistema provedor, o Estado é o todo-poderoso e pode tudo preencher,

corrigir, suprir. Diante das possíveis falhas, a esperança paira na justiça, sendo nela

que se busca a consagração da ação política. O juiz é chamado a socorrer, portanto,

de acordo com Garapon,

                                                                                                                         20 Exemplo disso é visualizado na obra de Cândido Rangel Dinamarco, intitulada “A instrumentalidade do processo” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 45). 21 O substancialismo equivale a corrente teórica que defende o intervencionismo do Poder Judiciário no papel de intérprete da vontade geral explícita no direito positivo, em especial, na Constituição Federal. Segundo Streck, faz parte do constitucionalismo-dirigente que veio a se inserir nas constituintes do pós-guerra, no escopo de fazer-se cumprir as promessas descumpridas da modernidade. (Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 162-164) 22 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 74. 23 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 33-53.    

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uma democracia na qual um legislativo e um executivo

enfraquecidos, obcecados por fracassos eleitorais contínuos,

ocupados apenas com questões de curto prazo, reféns do receio e

seduzidos pela mídia, esforçam-se em governar, no dia-a-dia,

cidadãos indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas

particulares, mas esperando do político aquilo que ele não sabe dar:

uma moral, um grande projeto24.

A promoção da jurisdição parece ínsita ao próprio desenvolvimento das socie-

dades democráticas, residindo na evolução da ideia de democracia as raízes da as-

censão do juiz. O controle jurídico, mais casuístico, torna-se mais propício aos regu-

lamentos sofisticados exigidos pelas sociedades complexas. Com Garapon, “é preci-

so que o direito reencontre a sua elegância”, o que se dá a partir de sua compreen-

são não apenas como um conjunto de regras, mas também como um conjunto de pri

cípios. Tal compreensão, considerando o locus privilegiado da Constituição, estabe

lece uma relação estreita, um “par legítimo”, entre juiz e texto constitucional25.

Se repugna, nesse contexto, a inércia do juiz espectador. O juiz há de ter a

consciência do papel ao qual foi incumbido perante a sociedade. Não se há de

afirmar que os juízes devem ficar adstritos à argumentação dos advogados, que

servem aos interesses de seus clientes, apenas preocupados com a decisão do seu

caso, e não com o desenvolvimento do direito.

No embate entre procedimentalismo26 e substancialismo, a última corrente

representa melhor a proposta transformadora da sociedade do Estado Democrático

de Direito, aplaudindo a relevância do papel do Judiciário para o implemento daquilo

que, no constitucionalismo do pós-guerra, chamou-se de Constituição compromis-

sária e dirigente.

Agora isso não quer significar que esteja institucionalizada uma possível “juris

tocracia” ou o “governo dos juízes”, em desprestígio à produção democrática do Di-

                                                                                                                         24 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 48. 25 Conforme as palavras de Garapon (Ibidem, p. 40-41). 26 Considerando em nota acima já explicado o contexto da corrente substancialista, cabe exprimir, brevemente, no que se funda o procedimentalismo. Conforme Streck, “o paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da distinção entre política e direito à luz da teoria do discurso. (Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 157)

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reito. Segundo Tassinari, as razões para a ascensão do Judiciário gravitam em dois

pilares: na configuração de um ambiente de tensão entre os poderes do Estado e,

por consequência, uma crise de democracia. Esse ponto se evidencia do descom-

passo pelo qual passa a esfera estatal, que tenta conjugar uma política de inclusão e

uma economia de exclusão. O resultado disso é o desconforto que se estabelece

pela ausência de satisfação das promessas constitucionais, por parte do Executivo,

em especial, conduzindo um apelo à jurisdição27.

Esse distanciamento entre a sociedade e os demais Poderes, acabou repercu

tindo numa afastamento da democracia, assim concebida como a participação políti-

ca dos cidadãos na tomada de decisões, e a construção do Direito, de certo modo,

passou a ser confiada ao Judiciário, por vezes, a partir de decisões pautadas em ou-

tros critérios, que não jurídicos.

A centralidade atribuída ao âmbito da jurisdição constitucional acaba gerando

fissuras no pacto democrático. Isso porque, levado às últimas consequências, este

processo de apatia cívica do ambiente democrático em face de uma crescente judici-

alização, também abriu espaço para outras alternativas de decidir os litígios.

Sinale-se que o próprio Garapon assume esse risco, quando afirma que, para

a prevenção da democracia, devem ser analisados os paradoxos com os quais ela é

confrontada, “vindo em primeiro lugar, naturalmente, o poder inédito atribuído aos juí

zes”28.

Resgatando os antecedentes históricos, é importante lembrar que o positivis-

mo foi discutido por teorias (i)racionalistas que pregavam a liberdade e a criatividade

judicial, a exemplo, da jurisprudência dos interesses29.

Com a queda das ditaduras, se impuseram teorias que melhor representas-

sem uma democracia constitucional. O resgate, na Alemanha, por exemplo, foi à ju-

risprudência dos interesses, porém, no pós-guerra, com uma nova roupagem: ao in-

vés de interesses; uma proposta mais aberta a valores, inclusive, os espirituais, po-

dendo influenciar o julgador.                                                                                                                          27   TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da autuação do judiciário. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 49-54. 28 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 53.  29 Essa evolução do pensamento jurídico será resgatada por conta do Segundo Capítulo, introduzindo a discussão sobre as correntes pragmáticas.

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26

De acordo com Losano,

A linha evolutiva do pensamento jurídico do século XX parte,

portanto, da reação anti-sistemática do segundo Jhering e do

antiformalismo do Movimento do Direito Livre e da jurisprudência

dos interesses [...]; sofre distorsão nacional-socialista, que ‘libera’ o

juiz da norma, mas o sujeita ao poder político [...]; retoma no pós-

guerra à jurisprudência dos interesses com teorias que, de várias

formas, levam em conta os valores [...].30

Os teóricos do Direito se remeteram às doutrinas inspiradas no positivismo

sociológico de matriz comtiana31, restabelecendo a ligação entre o direito e os valo-

res. Tal processo ainda se incrementou pela inspiração do modelo anglo-americano

do judge made law, construindo a perspectiva de muitas teorias atuais do Direito que

defendem a busca de soluções práticas para as lacunas do direito positivo, confian-

do ao juiz a tarefa de preencher este vazio, se exaltando a sua função criadora.

Será que a aposta na criatividade judicial está correta? Será que a completu-

de das lacunas abertas na lei por jargões ainda menos fechados conseguem se des-

prender da subjetividade de quem interpreta? Ou será que o direito é invadido pelas

concepções pessoais ou ainda é instrumentalizado a serviço de algo ou alguém?

Seria isso legítimo? Principalmente, a decisão judicial assim tomada responderia à

fundamentação democrática exigida pelo paradigma atual? Ou tal processo interpre-

tativo representaria mais uma escolha ou opção axiológica do intérprete dentre vias

aparentemente possíveis?

Com efeito, por este tipo de enfrentamento, a discussão constitucional envolta

da fundamentação democrática precisa perpassar, para projetar seu real conteúdo e

significado no Constitucionalismo Contemporâneo, irradiando seus efeitos para a dis

tinção entre decidir e escolher.

É certo que é preciso limite na atuação do Poder Judiciário, quando é chama-

do a exercer o principal papel para o qual foi incumbido pelo regime constitucional

vigente. Este limite se outorga pela própria normatividade da Constituição e, no que                                                                                                                          30 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 244. 31 O positivismo sociológico ou clássico deve sua difusão e seu nome ao Curso de filosofia positiva de Auguste Comte (1798-1857). Essa doutrina não é indiferente aos juízos de valor, apenas os transferem para esfera do irracional ou do não cientificamente cognoscível. (Ibidem, p. 28-29)

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27

toca especialmente ao ato próprio do juiz, qual seja, a decisão judicial32, objeto do

exame proposto, esse controle – de constitucionalidade – só pode ser exercido a

partir da atenção ao dever fundamental de fundamentação da decisão judicial, que

emerge no direito fundamental à resposta correta ou constitucionalmente adequada

ou ainda hermeneuticamente desvelada.

Dizendo de outro modo, é da fundamentação própria do paradigma constituci-

onal vigente, que se confere o limite ao Estado-Juiz, na jurisdição constitucional.

Destarte, não havendo problema maior e nem podendo, o Poder Judiciário se

afastar de questões sócio-políticas33, sobretudo, quando a discricionariedade política

– ou a do Legislador – tiver excedido os limites do pacto social. Não se pode, com

efeito, neste quadrante histórico, negar a estreita imbricação entre Direito, política e

economia, tudo isso está inserido no conteúdo jurídico-constitucional. Nada obstan-

te, devendo haver sempre a preocupação com a fundamentação da postura que

definir, sendo esta a correlata à normatividade do texto constitucional, aplaudindo a

expressão dworkiana de que leva a sério o Direito34.

A tese da existência do sistema de valores inseridos na Constituição, aos

quais caberia o julgador se valer, para necessária interpretação sistemática, vai na

contramão da força normativa do direito produzido democraticamente. Coloca aos

juízes e tribunais tal tarefa subjetivista desta descoberta, enfraquecendo a força nor-

mativa do texto constitucional. Perceba-se, bem, os valores elegidos pelo intérprete

se sobreporiam à própria Carta Constitucional (?).

De acordo com Streck,

A pretensão é que os mecanismos constitucionais postos à

disposição do cidadão e das instituições sejam utilizados,

eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderes

                                                                                                                         32 Utilizada a expressão em sentido amplo, para albergar tanto sentença, acordão ou decisão que julgue material incidente no curso do processo (interlocutória). 33 Nas palavras de Streck, “O Constitucionalismo Contemporâneo, nascido da revolução copernicana do direito publico, traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à margem da discussão pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem feitas no e a partir do direito. Afinal, direito constitucional é direito politico”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 440) 34 Chevallier, “[…] é do exercício do controle jurisdicional que depende, no final das contas, a efetividade do Estado de Direito”. (CHEVALLIER, Jaques. O Estado de direito. Trad. Antonio Arnaldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Forum, 2013, p. 66)

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28

públicos disponham livremente da Constituição. A Constituição não é

simples ferramenta; não é terceira coisa que se interpõe entre Estado

e a sociedade35.

Isso quer dizer que, resgatando os ensinamentos de Larenz, as leis continu-

am a desempenhar um papel importante na vida jurídica: os juízes seguem obriga-

dos a elas recorrer, sempre que se adequem a uma situação de fato. Se assim não

fosse, negada estaria a sua cogência e função na sociedade. Todavia, carecem de

interpretação e convalidação com o seu escopo, não podendo o intérprete, nesse

mister, proceder de modo arbitrário ou discricionário36.

As decisões, portanto, requerem confirmação, no sentido de se verificar se

são compatíveis com outras decisões e com os princípios reconhecidamente cons-

titucionais e, assim, se são materialmente adequadas. Isso está a exigir uma inter-

pretação do Direito, que jamais se indentificará à mera dedução lógica ou à busca

da solução aparentemente mais justa (o que é e para quem é mais justo?)37. Outros-

sim, reclamará aproximação com a filosofia do Direito, encontrando na hermenêutica

jurídica, como doutrina da compreensão, a maior importância para esse domínio da

atividade judicial38.

Equivocou-se Savigny ao defender a atividade interpretativa, especialmente,

do Direito, como aquela que busca o sentido que pretendeu ser dado pelo Legislador

ao texto; por outro lado, desde a Escola Histórica do Direito que ajudou a fundar, no

início do século XIX, já se revelava acertada sua convicção de que não cabe ao juiz

aperfeiçoar a lei, de modo criador, o que é possível, mas jamais pela atividade jurisdi

cional39.

Assim, os louvores à interpretação evolutiva não podem chegar a algo que se

pareça com as ideias de Escola do Direito Livre. Esse movimento – que será melhor

                                                                                                                         35 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 437. 36 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 3. 37 De acordo com Losano, “[…] a lógica garante a certeza do direito, mas não a equidade no caso-limite; por outro lado, a abertura ao valor garante a equidade, mas não a certeza”. (LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 25-26) 38 Op. Cit, p. 4. 39 SAVIGNY, citado por LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 12.

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desenvolvido no próximo Capítulo – defende a plena liberdade do juiz no momento

de decidir os litígios, aplaudindo um poder legiferante, para ele – o juiz – dizer aquilo

que entende justo, para o caso, mesmo que contra-legem.

Se vale deste movimento como mero exemplo, porquanto se poderia estender

a crítica a quaisquer posturas que apostam na livre interpretação-criação do Direito.

Levantando bandeira à frase strekiana: “uma Constituição democrática espanta vo-

luntarismos e ativismos [...], não se faz justiça a ‘golpe’ de caneta”40.

Streck e Oliveira, com toda a propriedade, dizem que, acerca de democracia-

constitucionalismo-contramajoritarismo, se deve ter em mente que, antes de uma pre

tensa e subjetiva reserva de juízo (Urteilsvorbehalt), há uma reserva de lei

(Gezetzvorbehalt), que se trada de reserva constitucional (Verfassungsvorbehalt)41.

Nada obstante, sob a bandeira (neo)constitucionalista42, surgiram teorias que

pretenderam racionalizar ou funcionalizar a decisão judicial, para a direção das finali-

dades sociais, políticas e econômicas eleitas pela maioria. É o exemplo das teorias

que apostam na argumentação jurídica, que também, de alguma forma, a partir da

proposta alexyana, são colocadas à prova pela analítica aqui pretendida, a fim de

aferir seu conteúdo de escolha ou de decisão.

Streck destaca que, sob tal perspectiva, se prega, ao mesmo tempo, um Direi-

to constitucional de efetividade; um Direito assombrado pela ponderação de valores;

uma concretização ad hoc da Constituição; e uma pretensa constitucionalização do

ordenamento, a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo

                                                                                                                         40 Frase extraídas de crítica de Streck, intitulada “O Brasil revive a Escola do Direito Livre! E dá-lhe pedalada na lei!”, publicada pelo site http://www.conjur.com.br/2015-jun-25/senso-incomum-brasil-revive-escola-direito-livre-lhe-pedalada-lei?imprimir=1, em 25 de junho de 2015. 41 STRECK, Lenio Luiz; e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o Estado, a Economia e a autonomia do Direito em tempos de crise. In, STRECK, Lenio Luiz; e TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 162-185. 42 Momento histórico do constitucionalismo do segundo pós-guerra, que abre espaço à transformação dos direitos fundamentais em valores ou princípios morais, dando ensejo à ponderação. Segundo Streck, o termo neoconstitucionalismo, “no Brasil, acabou por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da jurisprudência dos valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy [...] e do ativismo judicial norte-americano”. (STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In FERRAJOLI, Luigi, STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 62).

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neo. Tudo isso, porque se acreditou, equivocadamente, na jurisdição como a respon

sável pela incorporação dos verdadeiros valores que definem o direito justo43.

É, nessa direção, que proliferaram institutos em defesa da “verdade real”; da

“instrumentalidade das formas”; do “livre convencimento-motivado”; ou em busca da

aclamada “paz social” ou do “bem comum”. Todas estas ferramentas ou argumentos

posteriores, ou mesmo ainda “meta-normas”, a propiciarem ao juiz maior campo

para, supostamente, fazer cumprir o distorcido “mister” de trazer à decisão o conteú-

do axiológico majoritariamente inserido no contexto da sociedade.

No cenário atual, em que o Poder Judiciário se vê impulsionado a dar tal con-

teúdo – como se o conteúdo deontológico dos princípios pudesse se equivaler ao

axiológico –, não se pode deixar de trazer à evidência o fenômeno dos princípios ou

da era dos princípios. Os princípios constitucionais estão sendo usados, por muitos

juízes, como sucedâneo dos princípios gerais do direito, “com nítida pretensão retó-

rica-corretiva”44.

Criam-se tantos “princípios” quantos são necessários para solução dos casos

difíceis e para a correção das incertezas de linguagem. Citam-se, nesse contexto, os

“princípios” da simetria, da precaução, da não-surpresa, da afetividade, da humani-

dade, da felicidade, para destacar alguns. Quando falham ou quando não dão a res-

posta que já se antecipava no “imaginário do jurista”, resgata-se outro “princípio”45, o

da proporcionalidade. Pronto: aí se está diante do fenômeno chamado por Streck de

“panprincipiologismo”46, e que vem vulnerando a fundamentação democrática e a res

posta correta no Direito, no Estado Democrático de Direito.

O “pan-principiologismo” vem no mesmo caminho de abertura descompromis-

sada da jurisdição constitucional. A diversidade de “standards interpretativos” e a

absoluta falta de critérios para a definição do seu conteúdo, dá mostra ao problema

que a temática envolta da fundamentação democrática tem a enfrentar. Na verdade,

                                                                                                                         43 STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In FERRAJOLI, Luigi, STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 62. 44 Ibidem, p. 67. 45 Como se a proporcionalidade, sobretudo, alexyana, tivesse característica de princípio, ignorando-se o seu conteúdo de regra, quando decorre da norma de direito fundamental atribuída, surgida do resultado da colisão de princípios. 46 Ibidem, p. 62

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como estão sendo apresentados e utilizados por boa parte do Poder Judiciário, tais

standards são originários de construções nitidamente pragamaticistas, alcançando,

num segundo momento, foros de universalização, pela sua reiteração.

Dizendo de outro modo, Streck destaca que o que se tem visto é, incentivado

pelo protagonismo judicial, “o crescimento ‘criativo’ de um conjunto de álibis teóricos

que vem recebendo ‘convenientemente’ o nome de ‘princípios’, os quais [...] possu-

em nítidas pretensões de meta regra”. Isso, ao invés de reforçar o Direito nesta

quadra da história, representa a sua própria fragilização47.

Na linha do referencial teórico adotado, os princípios constitucionais, que não

se confundem com o emaranhado de standards interpretativos a que se fez referên-

cia, não permitem abertura ao intérprete, para solver a questão posta ao seu conhe-

cimento48. Outrossim, a normatividade assumida pelos princípios – na medida em

que são estes que instituem as bases para a normatividade do direito – possibilita o

fechamento interpretativo próprio da blindagem hermenêutica contra o voluntarismo.

Alpa, na teoria italiana, também chama a atenção à atividade da jurisprudên-

cia constitucional, na criação de meta-normas, que levam o nome de princípios, in-

clusive, enfatizando a “contribuição” – que vai entre parênteses – do juiz nesse mis-

ter, por várias passagens da obra “I Principi Generali”: “[...] el ruolo dell’interprete, il

quale è abile nel creare in principi e [...] alle norme”49.

No direito anglo-saxão foi desenvolvida a ideia de policies, o que, no direito

italiano, se chama “princípios ocultos”, os quais se caracterizam por representarem a

mentalidade do intérprete. O exercício da margem de discricionariedade dos juízes é

o campo no qual aparecem suas convicções pessoais, onde surgem argumentos de

                                                                                                                         47 STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In FERRAJOLI, Luigi, STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 67. 48 A doutrina apresenta-se tanto quanto coincidente quanto à natureza dos princípios essencialmente dinâmica e aberta, o que, com efeito, tem impulsionado a identificação produtiva de princípios pela jurisprudência, que são caracterizados como: sistemáticos ou responsáveis pela organização institucional da sociedade; dogmáticos ou deduzidos do ordenamento jurídico; e problemáticos, mais estreitos à ideias básicas em sentido retórico, que surgem a partir da conexão de problemas. (LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Cláudia Lima Marques. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 128-129) 49 ALPA, Guido. Trattato di diritto privato a cura di Giovanni Iudica e Paolo Zatti: I principi generali. 2 ed. Milano: Giuffrè, 2006, p. 298.

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política social, legislativa, econômica ou, simplesmente, consequencialistas, nas de-

cisões.

Num sistema aberto tudo é possível, qualquer argumentação parece legítima,

na medida em que a atividade interpretativa se sustenta tão-somente na subjetivi-

dade do intérprete, sendo as referências ao texto meramente instrumentais, para

justificar tendência que já foi tomada antes mesmo da sua leitura. Na falta da funda-

mentação democrática, decorrente de um processo interpretativo completo da com-

preensão autêntico, reprodutor da parametricidade constitucional, do qual se falará a

seguir, o sentido surge pela revelação de um “princípio oculto”, sem critério ou limite

algum. Daí o alerta para a necessidade de se reconstruir uma matriz estratégica que

ordene a interpretação judicial.

Por uma vertente mais sociológica, poder-se-ia dizer que o Direito está inse-

rido no contexto da “epistemologia da complexidade”, não havendo relação mecâ-

nica entre o ser humano e o mundo. Portanto, não resultando as soluções dos pro-

blemas do racionalismo, do determinismo ou do cientificismo. A ciência não conse-

gue explicar todos os fenômenos, a começar pelo próprio ser humano e as suas

complexas relações com o universo, exigindo a sua reaproximação da filosofia.

A complexidade “pós-moderna” estaria ligada a Era da Descodificação, a par-

tir da doutrina italiana de Natalino Irti50. São tempos em que os princípios jurídicos

adquirem especial relevância, onde há proliferação de microssistemas normativos

autônomos, inflação legislativa de múltiplas espécies normativas, isso ainda somado

à utilização de técnicas legislativas com emprego de formulações vagas, equivocas

e ambíguas.

São tempos em que a tarefa do intérprete tornou-se decisiva, tendo a lingua-

gem jurídica sido contaminada de genética, economia, moral, tecnologia, compu-

tação, etc. Tempos, portanto, em que o respaldo para o raciocínio jurídico está num

sistema que vai além do Código e que deve ser desvelado pelo intérprete mediante

um processo de identificação de fontes e de normas fundamentais. Noutras pala-

vras, na referenciada normatividade constitucional.

                                                                                                                         50 IRTI, Natalino. La edad de la descodifición. Barcelona: Bosch, 1992. apud LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Cláudia Lima Marques. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 39-69.

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Conforme Streck e Oliveira, em estudo de Direito e Literatura, passa a ser im-

portante discutir o sentido e as condições de possibilidade para a autonomia do

Direito frente aquilo que chamam de “discursos predadores”51. Ditos discursos são

perceptíveis sob o ponto de vista interno e externo. Interno, por conta do trabalho

que vem sendo desenvolvido pela dogmática jurídica, que segue enraizada a teorias

que apostam, por exemplo, no imaginário dos juristas. Externos, por discursos em-

prestados de outros campos, mas que influenciam teses que acabam por relativizar

as garantias construídas sob o pálio do direito. Os predadores externos são de três

espécie: morais; políticos; e econômicos52.

Os predadores morais são aqueles que estabelecem um nível fora do campo

jurídico, para a pretensa “correção” das decisões jurídicas. Partem da ideia de que,

se o Direito não responde a melhor solução do caso, a moral deve ser chamada à

correção das insuficiências do ordenamento jurídico. Trata-se de posição teórica que

ignora a co-originariedade entre o direito e a moral. É exemplo a Teoria da Argumen-

tação Jurídica defendida por Robert Alexy53.

Os predadores políticos se apresentam a partir de discursos que defendem

uma identidade entre o Direito e a política, o que pode ser flagrado das posturas

pragmáticas como o realismo jurídico, que prega que o Direito é aquilo que os juízes

e tribunais dizem ser54.

Por último, os predadores econômicos que se apresentam através de postu-

ras sofisticadas como a Law and Economics ou pragmatismo das políticas neolibe-

rais55.

Nessa medida, e para o resguardo da autonomia do Direito, aposta-se - e isso

é de suma importância para se dar roupagem à fundamentação democrática da

decisão – no Constitucionalismo Contemporâneo, muito longe do resgate de suposto

conteúdo axiológico da Constituição, num redimensionamento na práxis político-

jurídico em dois níveis: da Teoria do Estado e da Constituição, pela ideia de Estado                                                                                                                          51 Ou os “princípios ocultos”. 52 STRECK, Lenio Luiz; e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o Estado, a Economia e a autonomia do Direito em tempos de crise. In, STRECK, Lenio Luiz; e TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 162-185. 53 Ibidem, p. 162-185. 54 Ibidem, p. 162-185. 55 Ibidem, p. 162-185.

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Democrático de Direito e o seu caráter transformador da sociedade; e da Teoria do

Direito, no interior da qual se exige uma reformulação da Teoria das Fontes (a

supremacia da lei cede à onipresença da Constituição), bem como da Teoria da

Norma (em face da normatividade dos princípios), e, em especial, para o que inte-

ressa diretamente a presente Dissertação, da Teoria da Interpretação jurídica (o que

reclama blindagem contra subjetivismos).

Essas características provocam profundas alterações no Direito, proporcio-

nando a superação do paradigma positivista, que “pode ser compreendido no Brasil

como produto de uma simbiose entre formalismo e a Escola do Direito

Livre/realismo/Jurisprudência dos Interesses”56.

Tratar de jurisdição, pelo Constitucionalismo Contemporâneo, significa traba-

lhar com limitação do poder. A atividade jurisdicional segue relacionada diretamente

seja com a satisfação dos direitos fundamentais seja com a garantia da democracia,

que são faces de uma mesma moeda.

A democracia não pode se resumir ao governo da maioria, mas sim se rela-

cionar à satisfação dos direitos fundamentais. Dessa maneira, os direitos fundamen-

tais se colocam acima das decisões da maioria, contemplando critério último de

validade de todo o ordenamento jurídico, em especial, da decisão judicial.

As Constituições modernas, como expressão do contrato social, representam,

portanto, a grande metáfora da democracia constitucional, buscando conciliar a

democracia política ou formal, decorrente do princípio da maioria, e a democracia

substancial, atrelada à satisfação dos direitos fundamentais, representando os pró-

prios limites e vínculos impostos à maioria.

Com feito, o fator mais importante da legitimidade da decisão judicial é a sua

compatibilidade com o texto constitucional, o que, tão-só e unicamente, se pode afe-

rir a partir da fundamentação democrática, motivação esta que venha redundar na

                                                                                                                         56 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 440.

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35

resposta constitucionalmente adequada, que se desenvolve pelo viés da Crítica Her-

menêutica do Direito57.

Sendo assim, se enveredando para o desfecho deste tópico e já dando rele-

vância ao próximo, importa dizer que a fundamentação democrática e a resposta

constitucionalmente adequada delineadas nos moldes do citado referencial ganham

nota constitucional de fundamentalidade58, possuindo status de dever e de direito

fundamental e, assim, caracterizando a sua exigência a própria exigência de demo-

cracia, bem como ainda representando a sua satisfação critério de validade para o

ato judicial, na ótica da teoria dos direitos e deveres fundamentais59.

Ainda, assiste especial razão à fundamentação democrática, na pena de

Cappelletti, “enquanto tentativa de assegurar ao público que as decisões dos

tribunais não resultem de capricho ou idiossincrasias e predileções subjetivas dos

juízes”. Mediante essa atenção, os tribunais superiores sujeitam-se a um grau de

exposição ao público e de controle por parte da coletividade, que também os torna,

mesmo que indiretamente, mais responsáveis perante a comunidade que outras

instâncias administrativas não sujeitas a esse controle60.

Portanto, evidenciada a problemática da fundamentação da decisão judicial

em sua perspectiva evolutivo-constitucional, para qual é fundamental a distinção

entre verdadeiras decisões e meras escolhas, inclusive, como forma de efetivação

da democracia e satisfação de direitos fundamentais, segue-se a abordagem com a

apresentação do conteúdo e alcance desta fundamentação, através dos elementos

que integram a Crítica Hermenêutica do Direito.

                                                                                                                         57 Streck, em artigo publicado pela Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, lembrando antes que a Crítica Hermenêutica do Direito que encabeça traz como referenciais a teoria integrativa dworkiana e a hermenêutica filosófica gadameriana: “Insista-se: a teoria dworkiniana, assim como a hermenêutica, por serem teorias preocupadas fundamentalmente com a applicatio, não desoneram o aplicador (juiz) dos “Begründungsdiskurs” (discursos de fundamentação). E isso faz a diferença.” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e ausência de uma teoria da decisão. Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso XLI. Valparaíso/Chile, 2013, 2 semestre, p. 577-601. p. 587) 58 Mesmo formal, além de material, em função do seu conteúdo, pela redação do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. 59 Lembrando da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cuja doutrina nacional pode ser exemplificada a partir da obra de Sarlet, “A eficácia dos Direitos Fundamentais”, citada nas referências desta Dissertação. No direito lusitano, Queiroz também trata dessa abordagem, tendo a sua obra sido referenciadas nas referências deste texto. 60 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 98.

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36

1.2 FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL PELO VIÉS DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO

 

Evidenciada a raiz do problema atual envolta da fundamentação da decisão

judicial e de cuja preocupação se apresenta o exame proposto, cumpre, por ocasião

deste item e da vertente fundamental da problemática travada, apresentar o modelo

interpretativo da Crítica Hermenêutica do Direito, formulada por Lenio Luiz Streck.

Para o desenvolver desta temática, se partirá daquilo que tal teoria considera

como determinante à fragilização da fundamentação democrática, para, depois, se

apresentar as suas bases filosóficas. Se começará da virada linguística, passando

pela hermenêutica filosófica de Hans Georg Gadamer, até a teoria integrativa de

Ronald Dworkin. Como resultado final deste processo, será apresentada a resposta

correta ou constitucionalmente adequada, caracterizando, em última análise, a deci-

são judicial própria do paradigma atual, em contraponto à sua distorcida escolha.

1.2.1 ENTRAVE À FUNDAMENTAÇÃO DEMOCRÁTICA E A PROPOSTA DE

SUPERAÇÃO PELA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO

O entrave, segundo a Crítica Hermenêutica do Direito, nesta quadra da histó-

ria, considerando a concepção de Estado Democrático de Direito e o papel transfor-

mador assumido pelo Direito e de cujo “protagonismo” se outorga ao Judiciário, atra-

vés da figura do juiz, fica por conta da questão envolta do subjetivismo – ou da manu

tenção do esquema sujeito-objeto –, no ato de proferir a decisão judicial.

Segundo Streck,

[...] o ponto fulcral não está nem no exegetismo, nem no positivismo

fático [...] e tampouco nas teorias que apostam na argumentação

jurídica como um passo para além da retórica e como um modo de

corrigir as insuficiências do direito legislado. Na verdade, o problema,

em qualquer das teses que procuram resolver o problema de como

se interpreta e como se aplica, localiza-se no sujeito da

modernidade, isto é, no sujeito da subjetividade assujeitadora, objeto

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37

da ruptura ocorrida no campo da filosofia pelo giro linguístico-

ontológico e que não foi recepcionado pelo direito61.

De cariz filosófico, a Crítica Hermenêutica do Direito se preocupa com a

evolução ocorrida no campo da filosofia, a partir do que o sentido deixou de ser rele-

gado à subjetividade de quem interpreta. À frente da virada linguística ou do giro

ontológico linguístico, que serão abordados a seguir, já não é mais possível falar-se

em relação sujeito-objeto. Com efeito, o sentido das coisas é aferido pela linguagem,

que representa a tradição hermenêutica, o “ser-aí-no-mundo” heideggeriano, coloca-

dos à prova através do círculo-hermenêutico. O sentido, portanto, se dá numa rela-

ção de intersubjetividade, ou sujeito-sujeito.

Tal perspectiva filosófica pretende afastar da decisão judicial qualquer forma

de subjetividade, remetendo a sua ocorrência ao paradigma vigente na modernida-

de, qual seja, justamente, a filosofia da consciência, na medida em que o intérprete

que assim se coloca diante do objeto, estaria decidindo conforme a sua consciência,

não se livrando das amarras da vontade kelseniana.

Disso resulta a crítica do referencial em questão quanto ao eterno retorno ao

positivismo jurídico, em suas reiteradas tentativas de superação que seguiram na

insistência ao voluntarismo judicial. É sempre bom lembrar que o subjetivismo fez

parte da concepção professada na Alemanha, pelo nacional-socialismo, a partir do

respaldo de teses de juristas partidários de Escola do Direito Livre, que pregava a

total liberdade de criação judicial, em desapego ao formalismo jurídico vigente na

Europa62. Se a vontade do Führer estivesse na lei, aplicava-se a letra fria; se o seu

conteúdo normativo espelhasse algo que fosse contrário ao regime, o aplicador de-

veria se pautar em uma norma de supra-direito, na vontade do poder, quer dizer, no

voluntarismo puro.

As posições teóricas que se adotam, na verdade, refletem um processo bem

mais complexo. Acabam por espelhar um conjunto de elementos que evidenciam o

modo de se organizar e determinar o pensamento, no interior de uma certa época.

Esse é resultado da dimensão filosófica, a que se chama de paradigma filosófico.

                                                                                                                         61 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e ausência de uma teoria da decisão. Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso XLI. Valparaíso/Chile, 2013, 2 semestre, p. 577-601. p. 595. 62 Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 413.

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Streck vai afirmar que o problema da fundamentação da decisão judicial está ligado

aos paradigmas filosóficos que comandam a interpretação e sobre isso vai assentar

a sua construção teórica crítica63.

Trata de dois paradigmas filosóficos que assim merecem relevância: o da filo-

sofia clássica, que impulsionou a interpretação objetivista, defendida pela escola da

exegese, Jurisprudência dos Conceitos ou Jurisprudência Analítica, ou seja, fundada

nos objetos e naquilo que é dado; e o da filosofia da consciência, que parte da inter-

pretação subjetivista, inspirando o movimento do direito livre, o realismo jurídico e a

jurisprudência dos interesses. Para o último paradigma, o conhecimento não é algo

dado, mas construído por um sujeito solipsista que assujeita o sentido as coisas64.

Nessa medida, as propostas desenvolvidas sob a perspectiva neoconstitucio-

nalista ou pelo positivismo normativista, que surgiram no escopo de superar o positi-

vismo exegético e a sua interpretação literal, mas, em seu lugar, apostaram na

criatividade judicial, “permanecem estagnadas no último estágio pré-filosofia da lin-

guagem, isto é, a subjetividade dona dos sentidos”65.

Essa subjetividade, que caracteriza o paradigma da filosofia da consciência,

tem o seu principal fundamento na filosofia de Nietzsche, baseada na vontade do

poder. A passagem de Descartes a Nietzsche, é a transição entre a razão e a von-

tade66, sendo, portanto, a interpretação voluntarista que hoje se prega sob a bandei-

ra da discricionariedade presa à subjetividade inspirada neste paradigma filosófico.

Segundo Streck,

[...] as posturas subjetivistas são aquelas que desprendem o

intérprete desse invólucro legal e o apresenta como um verdadeiro

criador de sentidos. Nesse caso, o sentido originário da lei e a

autoridade de quem a emite cede lugar para a sensibilidade do

intérprete que deverá interpretá-la segundo, por exemplo, as

                                                                                                                         63 Streck, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 100. 64 Ibidem, p. 101-104. 65 Ibidem, p. 102. 66 Ibidem, p. 102.

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finalidades para as quais ela fora criada; os interesses sociais que

levaram à sua edição, entre outras coisas67.

Com efeito, no campo da interpretação do direito, não houve ainda a invasão

da filosofia pela linguagem. O jurista ainda opera com as conformações da herme-

nêutica clássica, vista como pura técnica de interpretação, na qual a linguagem é

entendida como uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito cognoscente (o

jurista) e o objeto (o direito) a ser conhecido. Nas palavras de Streck,

Sempre sobra, pois, a realidade! E o modo-de-ser encobre o

acontecer propriamente dito do agir humano, objetificando-o na

linguagem e impedindo que se dê na sua originariedade, enfim, na

sua concreta faticidade e historicidade68.

No ser-aí-no-mundo heideggeriano, que resgata a faticidade e a historicida-

de69, está a superação do paradigma epistemológico pelo ontológico; e a responsá-

vel por esse processo é a hermenêutica filosófica. Para ela, a pré-compreensão, na

qual se insere a linguagem, é condição de possibilidade para a interpretação. Isso já

permite verificar que compreender, interpretar e aplicar não são etapas distintas,

mas sim perfazem um todo no caminho da compreensão autêntica70.

Tudo isso serve para dizer que os textos – e texto e norma são conceitos

distintos, de modo que texto é evento71 e a norma a interpretação do texto, portanto,

condição de possibilidade do texto – não aparecem “desnudos” para receberem uma

“capa” de sentido, como se estivessem à disposição daquele que interpreta.

Hoje, não tem mais sentido a dicotomia que se trava entre os paradigmas filo-

sóficos objetivista ou subjetivista. Não interessa se o sentido está na lei ou no sujei-

                                                                                                                         67 Streck, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 103. 68 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 449. 69 Conceitos desenvolvidos por Heidegger, em Ser e Tempo. 70 Op. Cit., p. 450. 71 A expressão texto é evento decorre da construção streckiana sob a afirmação de que levemos a sério o texto. “Texto é evento, textos não produzem ‘realidades virtuais’; textos não são meros enunciados linguísticos; textos não são palavras ao vento, conceitos metafísicos que não digam respeito a algo (algo como algo). Eis a especificidade do direito: textos são importantes; textos nos importam; não há norma sem texto; mas nem eles são ‘plenipotenciários’, carregando seu próprio sentido […] nem são desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignorados pelas posturas pragmatistas-subjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou, simplesmente, o inventa)”. (Op. Cit., p. 227).

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to. Tanto num, quanto noutro caso, se resgata a relação sujeito-objeto. Assim como

se privilegia o plano apofântico da construção do sentido, na medida em que se

ignora a diferença ontológica produzida no jogo entre a manifestação do ente e o

desvelamento fenomenológico do ser. O resultado é a objetificação do sentido do

texto, sem a preocupação com a sua concreta historicidade e faticidade.

Daí é que, com Streck, há uma diferença marcante entre aquilo que se tem

chamado de ativismo judicial (às avessas72) e jurisprudência dos valores com a Críti-

ca Hermenêutica do Direito que desenvolve. A tese que constrói deve ser entendida

como processo de desconstrução da metafísica que vigora na dogmática jurídica

tradicional, no escopo de desvelar aquilo que tendencialmente se encobre.

A metafísica equipara ser e ente, entificando o ser, por um pensamento

objetificador. Noutras palavras, a metafísica – que, na modernidade, recebeu o no-

me de teoria do conhecimento alicerçada no paradigma filosófico da filosofia da

consciência – nega a diferença ontológica, ou seja, cinde o ser e ente73.

Tal negação, no pensamento jurídico, coloca em cheque a interpretação,

preferindo o ser (ou sentido) do Direito, e acabando por objetificá-lo. O resultado

disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnicização e da especialização,

o que acabou impulsionando a criação duma dogmática jurídica estandardizada, que

encobre o acontecer do Direito74.

Segundo Streck, deve-se dirigir a crítica ao pensamento jurídico objetificador,

enraizado no dedutivismo e subsuntivismo, rompendo-se com o paradigma

metafísico-objetificante (aristotélico-tomista e da subjetividade), que impede o

aparecer do Direito naquilo que ele deve ter de transformador75.

Por isso que incursiona a sua crítica para:

                                                                                                                         72 Conforme destacado por Karam, em ensaio referenciado neste texto. (TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. In In ROSA, Alexandre Morais da Rosa et all. Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Luigi Ferrajoli, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 95-131). 73 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 223. 74 Ibidem, p. 223-224. 75 Ibidem, p. 224.

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[...] o desvelamento (Unverborgenheit) daquilo que, no

comportamento cotidiano, ocultamos de nós mesmos (Heidegger): o

exercício da transcendência, no qual não apenas somos, mas

percebemos que somos (Daisen) e que somos aquilo que nos

tornamos pela tradição (pré-juízos que abarcam a faticidade e

historicidade de nosso ser-no-mundo, no interior do qual não se

separa o direito da sociedade, porque o ser é sempre o ser de um

ente, e o ente só é no seu ser, sendo o direito entendido como a

sociedade em movimento), em que o sentido já vem antecipado

(círculo hermenêutico). Afinal, conforme ensina Heidegger, ‘o ente

somente pode ser descoberto seja pelo caminho da percepção, seja

por qualquer outro caminho de acesso, quando o ser do ente já está

revelado’”76.

A Crítica Hermenêutica do Direito representa, portanto, uma proposta antime-

tafísica, porque, a partir da virada linguística (abaixo apresentada) e do rompimento

que promove com os paradigmas metafísicos aristotélico-tomista e da filosofia da

consciência (objetivista e subjetivista), a linguagem deixa de ser terceira coisa que

se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade

(o que será melhor abordado a seguir).

O processo interpretativo, por sua vez, deixa de ser reprodutivo e passa a ser

produtivo, sendo impossível o intérprete se desprender da circularidade da compre-

ensão. Isso quer dizer que o texto sempre antecipa algum sentido, eis que sempre

diz algo sobre a faticidade77, sentido esse que é colocado à prova pela circularidade

hermenêutica. Daí é que é, na hermenêutica filosófica, que radicam as condições de

possibilidade para a crítica ao pensamento objetificador da dogmática jurídica tradici-

onal.

Nas palavras de Streck, “a ontologia fundamental rompe com o processo de

entificação do ser próprio do pensamento dogmático jurídico”, situando-se, na her-

menêutica, o melhor caminho para encontrar as respostas corretas no direito78.

                                                                                                                         76 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 225. 77 Ou, se assim se queria, entre “nós e o mundo”, através da linguagem. 78 Op. Cit., p. 226.

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Assim sendo, e tendo por bases tais fundamentos, o que passa a ser rele-

vante é a superação das estruturas que, de uma forma ou de outra, se pautam na

discricionariedade judicial, incentivando o voluntarismo do Poder Judiciário.

Nesse sentido, a importância de que se leve o texto (evento, revestido de pré-

compreensão oriunda do modo-de-ser-no-mundo, pela linguagem) a sério, gan-

hando destaque, à sua compreensão autêntica (circularidade da compreensão), os

limites semânticos da Constituição ou a normatividade constitucional, longe esta de

significar um retorno ao positivismo exegético. Todavia, como forma de, no paradig-

ma intersubjetivo, onde a linguagem aparece como condição de possibilidade da

compreensão, blindar a decisão judicial (e, assim, a interpretação/aplicação do

Direito) do voluntarismo, que a fragiliza.

Nisso se revela a especialidade da diferença ontológica entre texto e norma,

exatamente, representando a ruptura paradigmática, para superação dos dualismos

que caracterizaram o pensamento metafísico. “O ser é – e somente pode ser – o ser

de um ente, e o ente só é – e somente pode ser – no seu ser [...]”. Quer dizer, não

há espaço para um sujeito separado de um objeto, ou um sujeito “assujeitando” um

objeto. Ou seja, é o fim de qualquer pretensão objetivista (pela qual a norma estaria

contida no texto) e subjetivista (pela qual o texto não teria importância, sendo-lhe

atribuída a norma que o intérprete escolhesse de acordo com um conjunto de valo-

res).79

Mais do que motivar uma decisão, é necessário explicitar as razões do

compreendido. Pelo caráter não procedural da hermenêutica e pela sua análise que

propõe entre todo e parte e parte e todo, na tomada de decisões práticas, faz com

que o intérprete, na fundamentação, não possa impor um conteúdo moral descom-

promissado com a faticidade e a historicidade, ou seja, desconexo da tradição-

hermenêutica. Isso porque o caso concreto representa a síntese do fenômeno

hermenêutico-interpretativo80.

Nas palavras de Streck,

                                                                                                                         79 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 228. 80 Ibidem, p. 452.

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A Constituição do Brasil, ao estabelecer a obrigatoriedade da

fundamentação da decisão judicial, não o fez no plano de uma

‘repetição’ dogmático-histórica do conceito, mas, sim, fê-lo sob a

égide das duas grandes revoluções copernicanas que atravessaram

o século XX: o constitucionalismo, que traz para dentro do direito os

conflitos sociais e tudo aquilo que era território ‘exclusivo’ do

normativismo-privatístico, e a invasão da filosofia pela linguagem,

que redundou na derrocada do esquema sujeito-objeto (nas versões

das duas metafísicas)81.

Afastou, assim, a possibilidade de qualquer subjetividade assujeitadora, que

se esconde através de posturas axiologistas no âmbito do Direito. Erigiu a fun-

damentação democrática, construída a partir de uma intersubjetividade que traduza

legitimamente a tradição do Estado Democrático de Direito, a categoria de direito

fundamental do cidadão e dever fundamental do Estado-Juiz, como dito alhures.

Assim é que, para a Crítica Hermenêutica do Direito, a derrota do positivismo

não se dará apenas pela superação da regra pelo princípio, nem pela desmitificação

da discricionariedade do intérprete à solução dos hard cases, mas “dar-se-á,

fundamentalmente, pela suplantação do paradigma da filosofia da consciência”82.

A fundamentação da fundamentação – que se caracteriza pela explicitação do

compreendido através de consistente justificação que contenha a reconstrução do

direito, doutrinária e jurisprudencialmente, em confronto com a tradição, desvelando

o sentido da interpretação do direito ao caso concreto –, é que legitimará a decisão

no plano do que se entende por responsabilidade política do intérprete no paradigma

constitucional vigente.

Nesta explicitação, fundamentada, do compreendido é que reside, portanto, a

fundamentação democrática da decisão judicial digna de blindar o direito do volunta-

rismo que substituiu a razão nos séculos passados e que representa, ainda hoje, a

fragilidade do direito, escondendo-se por posturas teóricas que não conseguiram,

pela aposta na discricionariedade – arbitrariedade – desorientada de limites normati-

                                                                                                                         81 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 453. 82 Ibidem, p. 453.

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vos, superar o dualismo entre o sujeito e o objeto (ou o sujeito que assujeita o obje-

to).

Nos moldes acima apresentados, perpassada pelo subjetivismo característico

da filosofia da consciência, a “decisão” não consegue escapar de uma “escolha”

subjetiva do intérprete, distanciando-se a sua construção da fundamentação demo-

crática sustentada, como também da resposta constitucionalmente adequada, que

segue sendo desenvolvidas, pelo viés do referencial teórico adotado.

Defender o voluntarismo implica dizer que o direito estaria autorizado a am-

parar soluções divergentes a um mesmo caso, dentre as quais o juiz elegeria a que

lhe parece moralmente mais apropriada – como se a moral corrigisse o direito – ou a

que fosse socialmente mais útil – como se o direito se relacionasse diretamente com

a razão prática83. Isso tudo como se aberta a possibilidade de, primeiro, se “decidir”;

e, depois, se encontrar os supostos “fundamentos” (argumentos) racionais para justi-

ficar essa “escolha”.

Conforme Streck e Oliveira,

No contexto da defesa da autonomia do direito contra seus

predadores [...], é preciso ficar atento para o grande fantasma que a

assombra: a discricionariedade. Isso porque, no fundo, o exercício de

um ato discricionário sempre estará vinculado a uma resposta

econômica, política ou moral para o caso, mas não será uma

resposta jurídica84.

Assim identificado o entrave à fundamentação democrática, bem como a sua

flagrante repercussão na distinção entre o decidir e o escolher, é que se opta por

trabalhar com os alicerces da Crítica Hermenêutica do Direito, em especial, para se

demonstrar como se chega a fundamentação da decisão judicial, no paradigma

                                                                                                                         83 Como se verificará melhor por ocasião do enfrentamento das propostas teóricas à decisão judicial, a fundamentação democrática e constitucional não quer significar a transposição de qualquer conteúdo axiológico, como se a tarefa do intérprete fosse resgatar valores constitucionais, nem muito menos equivalente à resposta consequencialista, evidenciando a mera preocupação do intérprete com a eficácia social cuja diretriz se direciona a algo ou a alguém. 84 STRECK, Lenio Luiz; e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o Estado, a Economia e a autonomia do Direito em tempos de crise. In, STRECK, Lenio Luiz; e TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 162-185.

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constitucional vigente, enfrentando, à obviedade, o seu principal entrave, do sujeito

que “assujeita” o sentido das coisas.

Brevemente apresentado o desafio da interpretação do Direito nesta quadra

da história, o que se vislumbra é que a questão, ao fim e ao cabo, é paradigmática:

significa mantê-la no objetivismo ou subjetivismo que marcaram os paradigmas filosó

ficos passados, ou evoluir para a construção de uma teoria da decisão judicial apta a

responder aos anseios e limites do paradigma intersubjetivo, sempre na direção da

preservação dos direitos fundamentais e da democracia.

1.2.2 ALICERCES TEÓRICOS DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO

A Crítica Hermenêutica do Direito, como visto, trata-se de teoria crítica de

matriz teórica originária da ontologia fundamental cujo principal expoente, bem como

percussor desta linha de pensamento, é Streck, que vem a desenvolvendo, desde a

sua obra “Hermenêutica Jurídica e(em) Crise”, e a partir das contribuições especiais

do Daisen, Núcleo de Estudos Hermenêuticos, ligado ao PPG-Unisinos e ao Instituto

de Hermenêutica Jurídica, donde são, dentre outros, importantes referenciais, André

Karam Trindade, Rafael Tomaz de Oliveira, Maurício Ramires, Fausto Santos de

Morais e Clarissa Tassinari, para citar alguns.

Muito sinteticamente, até por que suas bases teóricas são elementos a seguir

melhor delineados, tendo sido apresentados acima seus pressupostos à fundamen-

tação democrática – os quais precisão ser resgatados para ultimar no seu resultado

da resposta constitucionalmente adequada logo a seguir –, trata-se de construção

teórica que parte da hermenêutica-filosófica, em especial, de abordagem gadame-

riana, recebendo influência de Dworkin, quanto à necessidade da coerência e inte-

gridade do Direito, além da tese da resposta correta, defendidos por este último refe-

rencial.

A assunção dessas bases teóricas e a coerência existente entre elas, no

escopo da superação paradigmática, bem como pela suas incompatibilidades com

as teorias realistas, analíticas e discursivo-procedurais – as quais se colocam em

debate a seguir, a partir da distinção proposta entre decidir e escolher – são pontos

destacados pelo referenciado Autor, em “Verdade e Consenso”:

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[...] entendo que há uma série de aproximações e pontos comuns

entre a teoria interpretativa-integrativa de Dworkin e a hermenêutica

filosófica de Gadamer. Seu caráter não epistemológico, a não cisão

entre interpretação e aplicação (caráter unitário do compreender), a

incorporação da reflexão moral como elemento necessário da

decisão judicial (o aspecto normativo incorpora a reflexão moral,

perceptível em Gadamer na relação entre o geral e o particular), o

rechaço de ambos à arbitrariedade interpretativa, a incompatibilidade

com as teorias da argumentação, por serem procedurais e a

superação do esquema sujeito-objeto, entre outras questões85.

No tocante à decisão judicial e, especialmente, à sua fundamentação, como

visto acima, questiona-se o voluntarismo, estreitando-o ao paradigma filosófico pas-

sado (filosofia da consciência), apostando, para a sua superação, na blindagem

hermenêutica, a ser desenvolvida levando em conta os citados alicerces. O resulta-

do da interpretação assim construída redunda na resposta correta ou, para a Crítica

Hermenêutica do Direito, constitucionalmente adequada, reclamada à decisão judici-

al no paradigma atual, onde a Constituição Federal é o vetor de sentido do Direito.

Passa-se à análise desses alicerces, para, após, dirigir-se à resposta

constitucionalmente adequada, como resultado do processo interpretativo produtivo

evidenciado pela proposta teórica adotada.

1.2.2.1 Da virada linguística ou giro ontológico linguístico e a sua importância para o Direito

Incialmente, antes de se conduzir o estudo para os referenciais de base da

Crítica Hermenêutica do Direito e que, especialmente, importam, dentro dos limites

do estudo, à discussão proposta86, cabe se imiscuir na questão de fundo sob a qual

parte, como premissa básica, a construção da linha teórica adotada, em complemen-

to a muito do que acima foi visto, na apresentação de sua proposta de superação

paradigmática.

                                                                                                                         85 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 427. 86 Bem se sabe que a Crítica Hermenêutica do Direito encontra outros referencias, como, por exemplo, Ernildo Stein e Heidegger, para citar alguns. Todavia, para os limites da exposição dessa Dissertação, se entende adequada a apresentação da circularidade hermenêutica em Gadamer (em que pese essa decorra de construção heideggeriana) e a teoria integrativa de Dworkin.

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Neste tópico, o que se procurará demonstrar é a evolução da filosofia, em

especial, a fim de demonstrar-se o salto para o paradigma filosófico que inspira o

Estado Democrático de Direito e como isso reflete – resgatando os ensinamentos

acima alinhavados – no processo interpretativo produtivo da “fundamentação da

fundamentação”, à condução da resposta correta.

Como visto, o problema de como se interpreta e aplica o direito é uma ques-

tão paradigmática87. A própria cisão entre o compreender, interpretar e aplicar o di-

reito é algo que sugere a vinculação paradigmática (ultrapassada). Se trata, pois, de

se entender a superação dos citados paradigmas objetivistas ou aristotélico-tomista

e subjetivista ou da filosofia da consciência, e que marcaram o pensamento jurídico

tradicional (dogmática clássica), a partir da ruptura ocorrida no campo da filosofia e

que optou-se por chamar linguistc turn ou giro ontológico-linguístico, quando se

reconheceu que os sentidos estão na linguagem, sendo ela não uma terceira coisa

que se interpõe entre um sujeito e um objeto, mas condição de possibilidade à com-

preensão.

Essa evolução pela qual passou a filosofia interessa o Direito. De acordo com

Streck88, o universo jurídico deve ser compreendido como um universo linguístico, se

inferindo daí que o método de sua abordagem deve perpassar pela necessária

análise da linguagem. Noutras palavras, pela análise da linguagem legal, ou seja, a

interpretação jurídica dos dados empíricos que consistem nas proposições

normativas de que se compõe o discurso do legislador, com especial atenção,

portanto, ao texto legal e aos enunciados linguísticos objetivados prescritivamente

nesse texto.

O problema paradigmático da interpretação do Direito, decorre, em boa parte,

daquilo que é classificado por Warat como senso comum teórico dos juristas, que

[...] é um conhecimento constituído, também, por todas as regiões do

saber, embora aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico.

[...] não deixa de ser uma significação extraconceitual no interior de

                                                                                                                         87 Conforme Streck, crise do paradigma liberal-individualista de produção do direito, agregada à crise do Estado e à crise decorrente da não superação, pela dogmática jurídica, do paradigma da prevalência da lógica do sujeito cognoscente. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 64) 88 Ibidem, p. 63.

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um sistema de conceitos, uma ideologia no interior da ciência, uma

doxa no interior da episteme. Trata-se de uma episteme convertida

em doxa, pelo programa político das verdades, executado através da

praxis jurídica.89.

Esse sentido comum radica no imaginário do jurista e decorre de crenças e

práticas que, mascaradas por discursos institucionalizados, propiciam que o intérpre-

te conheça de modo confortável e acrítico o significado das palavras, das categorias

e das próprias atividades jurídicas. Faz com que o operador jurídico seja mecaniza-

do, engessando o seu compreender, julgar e agir em relação aos problemas jurídi-

cos, de modo que a função interpretativa se resume a tarefa habitual de reprodução

de supostos argumentos de autoridade.

Metaforicamente, segundo Warat, se caracteriza como “a voz ‘off’ do direito,

como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças”, pelas quais

se dispensam o seu aprofundamento. Seriam hábitos semiológicos de referência,

constituídos por conceitos separados das teorias das quais subjazem; hipóteses

vagas e, por vezes, contraditórias; opiniões costumeiras; premissas não explicitadas

e vinculadas a valores; metáforas e representações do mundo, ganhando uniformi-

dade em pontos de vista sobre o Direito, nas práticas jurídicas.90

Portanto, se poderia falar em hábitos intelectuais do jurista, consistentes em

crenças ideológicas, decorrentes das visões de mundo que dominam a sua cons-

ciência; opiniões éticas, que conduzem a critérios de decisão estereotipados numa

suposta racionalidade ética; e crenças epistemológicas evidenciadas pela prática

jurídica institucional. Tais hábitos estariam a regular a produção do conhecimento

jurídico e a conduzirem “interpretações vulgarizantes dos conceitos, fruto de suas

desvinculações dos marcos teóricos sistemáticos em que foram produzidos”, como

se os conceitos se explicassem intrinsecamente91.

Por essas razões, é importante, no Direito, o estudo da linguagem e, assim, o

reconhecimento da virada linguística ocorrida no campo da filosofia, como condição

de possibilidade de levar-se o texto de lei a sério, sob pena de culminar-se com as

                                                                                                                         89 WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 48-57, jan. 1982, p. 52. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121>. Acesso em: 25 set. 2015. 90 Ibidem, p. 54. 91 Ibidem, p. 54-57.

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acusadas interpretações vulgarizantes waratianas, o que, de fato, é o que tem se

percebido, merecendo destaque as considerações de Streck, a respeito do não rece-

bimento da virada linguística pelo modelo interpretativo dominante em terrae

brasilis92.

A linguagem sempre esteve presente em diferentes épocas. Conforme Streck,

pode-se colocar como primeira obra de filosofia da linguagem, Crátilo, de Platão, de

388 a.C. Na obra, Platão, através das figuras, de Hermógenes e Crátilo, apresenta a

contraposição de duas teses sobre a semântica: o naturalismo, pela qual cada coisa

tem nome pela natureza; e o convencionalismo, representando a arte da argumen-

tação dos sofistas, pela qual a ligação entre o nome e a coisa é absolutamente

arbitrária e convencional. Não se conforta com nenhuma delas, acusando problemas

sistemáticos na linguagem, preferindo optar pelo pensamento em si mesmo, preten-

dendo superar o poder das palavras93.

Na visão platônica, a palavra é vista como representação da coisa. Há uma

relação de semelhança entre as ideias e as coisas e entre estas e as palavras. O

significado precede o significante e é manifestado na linguagem. Porém, em Platão,

é possível conhecer as coisas sem os nomes, ou seja, sem a linguagem, que apa-

rece, portanto, desde a filosofia clássica, mas com papel secundário, como instru-

mento através do qual a coisa se exterioriza.

Dizendo de outro modo, a linguagem aparece, desde o estudo platônico

referenciado, porém sob um ponto de vista não-construtivo da experiência humana

do real, mas como um instrumento posterior, com a função de “designar com sons o

intelectualmente percebido sem ela”94.

Gadamer pontua que, ainda que se reconheça em Platão uma vinculação à lin

guagem, ela não aparece em seu verdadeiro significado. Não passa de um dos as-

pectos do conhecimento, resultando que o descobrimento das ideias por Platão ocul-

                                                                                                                         92 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 61-75. 93 Ibidem, p. 524-536.  94 Ibidem, p. 121.

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ta a essência da linguagem ainda mais do que fizeram os sofísticos, que desenvolve

ram sua própria arte no uso e abuso da linguagem95.

Em Aristóteles, a linguagem também aparece como instrumento. Na filosofia

aristotélica, as palavras só possuíam um sentido porque as coisas possuíam uma

essência. Há uma unidade objetiva que fundamenta a unidade de significação das

palavras, que consiste na essência das coisas ou o que são.

Com Aristóteles, o pensamento metafísico96 ingressa na história, encontrando

em Heidegger seu maior adversário. Pelo fato de interrogar o ente, enquanto ente,

não se voltando para o ser enquanto ser, a metafísica escondeu o ser. Na medida

em que representa o ente enquanto o ente, despreocupada com o ser do ente, ela

transcende uma “enunciação” sobre o ente, mas não a luz do ser. O objetivismo da

metafísica confundiu o ser com o ente e não pensa o próprio ser, o que só pode ser

feito através da faticidade ou do ser-aí-no-mundo, representado pela transcendental-

dade do Daisen, revelada pela linguagem, com Heidegger, não como um instrumen-

to que se interpõe entre o nome e a coisa, mas como condição de possibilidade do

desvelamento do sentido (ser) de tal coisa (ente)97.

É nisso, como visto acima, que consiste o giro ontológico-linguístico ocorrido

no século XX, no campo da filosofia, do qual é pressuposto a interpretação constru-

tiva do Direito, no paradigma atual, e ao qual está-se a elucidar os caminhos de sua

evolução.

No século XIV, a metafísica clássica - da busca da essência - encontra forte

resistência com o nominalismo98 de Guilherme de Ockham, que ao contrário da

tradição grega de instrumentalização da linguagem, valoriza-a, assumindo postura

antimetafísica99.

                                                                                                                         95 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 566.  96 “[…] a concepção central do pensamento metafísico ocidental pressupõe um conhecimento visto como um processo de adequação do olhar ao objeto, buscando a similitude entre pensamento e coisa, desvendando as essências próprias das coisas”. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 127) 97 Ibidem, p. 122-126. 98 O nominalismo parte da ideia de que não existem entidades abstratas (ideias universais) e que só existem entidades concretas (indivíduos). 99 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 562.  

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Ockham proporciona uma revolução no pensamento metafísico do medievo.

Não há essência, nem tampouco essência geral do justo. Há uma espécie de

subjetividade, um poder natural do indivíduo, que se contrapõe individualmente, com

sua vontade, contra aquilo que é dado no geral. É a subjetividade assujeitadora das

coisas, representando o triunfo da vontade, que vai ter grande repercussão na

evolução da filosofia do direito100.

Conforme Streck,

[...] é relevante ressaltar que as posturas nominalistas [...] trouxeram

relevantíssimas contribuições para a discussão da linguagem. O

lugar privilegiado que deram à linguagem e sua posição contrária à

existência de universais tornam-se importantes instrumentos e/ou

contributos para o rompimento com os dualismos metafísico-

essencialistas. As posturas nominalistas, assim como as

conceitualistas, passaram a dar um tratamento absolutamente

diferenciado à linguagem, é dizer, retiraram-na da obscuridade para

a qual foi relegada pela metafísica clássica. [...] as teses nominalistas

abrem os caminhos para o triunfo da viragem linguística ocorrida no

século XX101.

Com Descartes, dá-se início à metafísica moderna. Então, tudo começa com

o eidos platônico e, na sequência, a ousia aristotélica, acrescida da vontade divina

de Tomás de Aquino, findando, neste último período, a metafísica clássica. A

superação do essencialismo e universalismo, vem com o nominalismo e passa pela

ruptura com o realismo, quando a relação sujeito-objeto sofre profunda transforma-

ção: surge a subjetividade assujeitadora do sentido das coisas. Nasce o sujeito que

dominará a modernidade, atravessando o século XX e chegando ao século XXI

ainda mais fortalecido, sobretudo, no campo do Direito (que insiste em negar a vira-

da linguística)102.

No paradigma da modernidade, o sentido não está na essência das coisas,

mas na mentalidade do intérprete. É a chamada filosofia da consciência, inspirada

pelo princípio cartesiano do cogito; depois, pelo eu transcendental kantiano; o abso-

                                                                                                                         100 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 131. 101 Ibidem, p. 136. 102 Ibidem, p. 136.

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luto hegeliano, culminando com o ápice da metafísica da modernidade: a vontade do

poder de Nietzsche, “onde o traço fundamental da realidade é a vontade do poder,

passando toda a correção a depender da vontade do poder103.

Portanto, pode-se dizer que é em Nietzsche que ocorre a ruptura com o para-

digma aristotélico-tomista ou o metafísico-essencialista vigente desde a antiguidade

grega. Todavia, se esse mérito há de ser reconhecido ao filósofo moderno, também

é necessário lembrar que aquilo que pode ser considerado como o último princípio

epocal da modernidade, a vontade do poder, acabou por influenciar e dar fundamen-

to ao pragmatismo, no campo do Direito, a partir de diversas formas de realismo

jurídico e análises econômicas, que rompem com a autonomia do direito e, conse-

quentemente, estabelecem um grau zero de sentido na interpretação do direito104.

A vontade do poder é, em sua essência, comando. Logo, “uma forma rebus-

cada de positivismo, uma vez que o direito passa a depender de discursos adjudica-

dores e do protagonismo do poder do intérprete”105.

Até aqui, apesar da referência à linguagem em todo o caminho evolutivo,

ainda não aparece em sua perspectiva de superação paradigmática, tão-só, chegan-

do a simples significação.

Atribui-se a Johann Georg Hamann, Johan Gottfried Herder e Wilhelm von

Humboldt um “primeiro” giro linguístico106, chegando ao ponto de alguns autores

defenderem ser estes os precursores do rompimento do paradigma da filosofia da

consciência, que coloca a linguagem como terceira coisa ou instrumento através do

qual o sujeito confere o sentido ao objeto (assujeita-o), em prol do paradigma da

linguagem107.

Nas suas respectivas críticas a Kant, Hamann e Herder evoluem para a

superação da concepção meramente instrumental da linguagem, assumindo a sua

                                                                                                                         103 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 136. 104 Ibidem, p. 142. 105 Ibidem, p. 142. 106   GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 566-571.      107 Exemplo de Cristina Lafont, citada por Streck. LAFONT, Cristina. Lenguage y apertura del mundo. El giro linguístico de la hermenéutica de Heidegger. Madrid, Aliança Editorial, 1997, p. 21 e segs. apud STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 145.

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condição de possibilidade tanto da objetividade da experiência como da intersubje-

tividade da comunicação. Mas, é “com Humboldt [...] que a linguagem aparece como

condição de possibilidade de uma visão da totalidade do mundo”, sendo ela não

apenas um instrumento que o homem possui para estar no mundo, mas representa

o próprio ser-aí-no-mundo como decorrência de sua constituição linguística108.

Isso fez com que Gadamer viesse a reconhecer Humboldt como o criador da

moderna filosofia da linguagem, servindo da tese humboldtiana como ponto de

partida para a sua hermenêutica. O contributo de Humboldt

[...] se encontra [...] em seu descobrimento da concepção da

linguagem como concepção de mundo. Humboldt reconheceu a

essência da linguagem, a energeia da linguagem, como a realização

viva do falar, rompendo assim com o dogmatismo dos gramáticos.109

Nesse caminho evolutivo à filosofia da linguagem, aparecem a semiologia de

Saussure e a semiótica de Peirce, que inauguram a linguística moderna. O mérito de

Saussure está em ter propiciado uma revolução epistemológica, abrindo a reflexão

por outro viés teórico: os diferentes sistemas sígnicos. Já o de Peirce está em que, a

partir de forte crítica ao cartesianismo e a Kant, a sua semiótica ultrapassou os

dualismos metafísicos e, nessa exata medida, a relação sujeito-objeto da filosofia da

consciência, sendo um dos filósofos responsáveis pelo início do processo de inva-

são da filosofia pela linguagem, “linguisticizando o mundo, recolocando a linguagem

no lugar cimeiro, escondida/abafada que estava desde o esquecimento [...] do ser

pela metafísica platônica-aristotélica e da filosofia que se seguiu a estes”110.

As concepções metafísicas herdadas da tradição grega e das filosofias

medieval e da consciência, fazem emergir dualismos próprios dessas abordagens.

Assim é que nasce a própria relação sujeito-objeto. Tais dualismos metafísicos

acabam por colocar a linguagem como uma terceira coisa que se interpõe entre um

sujeito e um objeto, formando uma barreira que acaba impedindo o aparecer dos

fenômenos em si mesmos.

                                                                                                                         108 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 147-149. 109 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 571. 110 Op. Cit., p. 151-162.

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Por isso, a necessidade de se perceber a importância da virada linguística,

como já antecipado, descortinando essa linguagem escondida, trazendo-a à luz,

como condição de possibilidade para o desvelamento do ser do ente. Especialmente

para o Direito, a tarefa cumprirá a uma hermenêutica filosófica de ruptura, como a

proposta construída pela Crítica Hermenêutica do Direito e que aqui serve de

referencial, que parte da abordagem gadameriana cujos alicerces serão tratados a

seguir.

Antes disso ainda, é preciso marcar a virada linguística111.

A virada linguística ocorreu sob três frentes. Uma primeira, pelo neopositivis-

mo lógico ou empirismo lógico, que buscava a construção de linguagens ideais, que

se iniciou ainda na década de 20 e teve como fundamento de sua teoria o Tratactus,

de Wittgenstein. O rigor discursivo passa a ser o paradigma da ciência; sem rigor

linguístico não há ciência; fazer ciência é traduzir numa linguagem rigorosa os dados

do mundo. Assim é que a linguagem aparece como um sistema de sons, de hábitos,

que servem à comunicação entre as pessoas e influencia nos seus atos, decisões e

pensamentos112.

Os resultados do neopositivismo lógico foram fecundos para as ciências

exatas, mas não para as ciência humanas. Identificando a ciência como a linguagem

e subdividindo a atividade sígnica em discursos afirmativos e emotivos, verificáveis e

pseudo-afirmações, comunicação e pura expressão de emoção, acabou por privile-

giar apenas o primeiro polo, obscurecendo o papel transcendental da linguagem.

Essa primeira etapa ainda não conseguiu superar o objetivismo (instrumentalista e

designativista)113, caindo em ilusão metafísica ao pretender exatidão linguística.

Uma segunda fase da virada linguística se deu pela própria filosofia de

Wittgenstein, porém, a partir das construções teóricas da obra Investigações Filosó-

ficas, pelas quais rompeu com o ideal de linguagem perfeita, capaz de reproduzir

com exatidão a estrutura ontológica do mundo, que alicerçou a obra Tratactus.

Nesta segunda fase, Wittgenstein se aproxima de Heidegger, combatendo a filosofia

da consciência e afirmando que não existe o mundo em si, independente da lingua-                                                                                                                          111 A expressão virada linguística é também conhecida como giro-ontológico linguístico, linguistic turn, guinada linguística, reviravolta linguística, para citar algumas. 112 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 167-170. 113 Ibidem, p. 167-170.

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gem. A linguagem deixa de ser um instrumento de comunicação do conhecimento,

passando a ser condição de possibilidade para a constituição do conhecimento.

Não existe, agora, essências, relação de nome e coisa, abandonando-se o

ideal de exatidão da linguagem, na direção à sua indeterminação, em função da

sempre inserção do significado das palavras ao contexto sócio-prático em que são

usadas. Através da metáfora dos “jogos de linguagem”, Wittgenstein desta fase não

separa a linguagem da prática social:

No jogo de linguagem, o homem age, mas não simplesmente como

indivíduo isolado de acordo com o seu próprio arbítrio, e sim de

acordo com regras e normas que ele, juntamente com outros

indivíduos, estabeleceu114.

Nessa segunda fase do giro linguístico, Wittgenstein supera o essencialismo e

a instrumentalidade, portanto, da linguagem percebida até então. No entanto, ainda

não marca o desfecho daquilo que optou-se chamar giro ontológico-linguístico, que

radica o paradigma da linguagem e que recebe a sua completude à superação

paradigmática pelo papel da hermenêutica já chamado atenção no texto e de cuja

reiteração se fará com Gadamer.

Esse fechamento da virada linguística ocorreu numa terceira fase, que se

desenvolveu, a partir de Austin e as suas constatações sobre a linguagem ordinária.

As teses de Austin e Wittgenstein se identificam ao considerar a linguagem ação.

Nada obstante, o incremento significativo de Austin está em que, diferentemente de

Wittgenstein, a linguagem ordinária não pode ser a última palavra, porque pode

revestir-se de inadequações e arbitrariedades, na medida em que os homens podem

não ter a exata percepção da realidade e ainda nem sempre estão isentos de

paixões e preconceitos115.

Dizendo de outro modo, a partir de Austin, a linguagem é condição de

possibilidade do conhecimento, mas pressupõe aperfeiçoamento. Tal aperfeiçoa-

mento da linguagem vem a ser dar num contexto intersubjetivo de produção do

sentido. Ou seja, é lançada à prova da circularidade hermenêutica, de modo a afas-

tar os pré-juízos inautênticos, soçobrando apenas a autenticidade da compreensão.                                                                                                                          114 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 172. 115 Ibidem, p. 173-175.

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É essa tarefa que se atribui a construção heideggeriana, da qual inspira-se Gadamer

e o referencial aqui adotado.

Heidegger faz derivar a estrutura circular da compreensão a partir da tempora

lidade da pre-sença. Pode que a consequência disso seja a necessidade de se corri-

gir a auto-compreensão que se exerce constantemente na compreensão, livrando-a

de adaptações inadequadas. De sua fenomenologia hermenêutica, aponta não ape-

nas para a circularidade hermenêutica, mas para um círculo que possui uma diferen-

ça ontológica, através do qual não se omite o ser, mas se desvela o ser do ente, de

modo que um não existe sem o outro, existindo entre tais uma diferença que é onto-

lógica. Tal é a especialidade de sua contribuição.

Transplantando a virada linguística, sobretudo, fechada nessa terceira fase,

para o Direito, significa: por primeiro, reconhecer o papel da linguagem não como

uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, o que insistiria

numa postura metafísica, mas como condição de possibilidade para compreender o

Direito; por segundo, entender que o locus da compreensão está no modo-de-ser-

no-mundo e na faticidade, inseridas na linguagem, antecipando um sentido (pré-

compreensão) do Direito; por terceiro, que essa antecipação de sentido (pré-

compreensão) requer blindagem hermenêutica, de modo a se afastar pré-juízos

inautênticos, fazendo aparecer o sentido que se esconde através destes, pelo jogo

entre parte e todo e todo e parte, ou seja, pela circularidade hermenêutica.

Esse processo, permite que se salte do fundamentar ou justificar discursos

para o compreender fenomenologicamente, onde o compreender não é mais um

simples agir do sujeito, mas sim um modo-de-ser que se dá em uma intersubjetivi-

dade (sujeito-sujeito). Frente ao texto, a tarefa do intérprete não é introduzir direta e

acriticamente seus hábitos linguísticos. O sujeito da compreensão recebe compulso-

riamente o legado da tradição, que não pode renunciar.

Com efeito, o recebimento da virada linguística pelo Direito também represen-

ta a condição de superação do modelo positivista que ainda impera no pensamento

jurídico atual, todavia, através de propostas teóricas que se mantem enraizadas na

relação sujeito-objeto, ao anuírem com a discricionariedade e o decisionismo para

responder as insuficiências do direito, a exemplo do pragmatismo e da

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argumentação alexyana colocados em debate em próximos tópicos na sequencia ali-

nhavados.

A não recepção do giro ontológico-linguístico pelo Direito, por sua vez, man-

tém o pensamento jurídico inserido nos dualismos metafísicos, negando a interpre-

tação construtiva que alicerça a fundamentação democrática desenvolvida acima,

pelo viés da Crítica Hermenêutica do Direito, culminando esse resultado numa

escolha subjetivista do sentido do Direito, ou seja, num ato de vontade, na contra-

mão do constitucionalismo vigente. Daí a relação necessária entre o paradigma

filosófico da linguagem e o Estado Democrático de Direito.

Apresentada, portanto, a virada linguística e enfatizada a sua importância

central à construção da fundamentação democrática aqui desenvolvida, sempre evi-

denciando a peculiaridade da abordagem frente à distinção proposta (decidir x

escolher), o estudo se direciona às bases para construção de uma hermenêutica de

ruptura, adentrando, portanto, no alicerce gadameriano.

1.2.2.2 Hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer

O primeiro ponto que precisa ser destacado é que a proposta hermenêutica

gadameriana não se confunde com a hermenêutica clássica, que busca a identifi-

cação de uma técnica de interpretação. Ela é filosófica, na medida em que se preo-

cupa em buscar sentido a partir da compreensão.

É pressuposto importantíssimo para a fundamentação democrática desenvol-

vida pelo viés da Crítica Hermenêutica do Direito, merecendo especial relevância as

construções teóricas acerca da ontologia fundamental propostas por Heidegger e

por Gadamer, este último como predecessor das construções do primeiro, no tan-

gente à linguagem vinculada ao desvelamento do ser do ente.

O próprio Gadamer trata da descoberta da estrutura prévia da compreensão

por Heidegger, ressaltando o papel da hermenêutica ontológica desenvolvida por

este, para fazer jus à historicidade da compreensão, enfatizando que as consequên-

cias para a hermenêutica das ciências do espírito são provocadas pelo fato de

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Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da

temporalidade da pre-sença (Ser é Tempo)116.

As consequências disso não precisam ser de uma teoria que se aplica à prá-

xis, nem uma práxis que precisa ser aplicada diferentemente. Mas quer determinar a

possibilidade da correção da autocompreensão que se exerce constantemente na

compreensão (a partir da coisa mesma), livrando-a de adaptações inadequadas117.

Pelo novo e fundamental significado da circularidade hermenêutica heidegge-

riana é que Gadamer empresta tal construção ao desenvolvimento de sua herme-

nêutica filosófica.

Heidegger e, após, Gadamer representam particulares referenciais, na pro-

posta da Crítica Hermenêutica do Direito, justamente, porque é na hermenêutica

filosófica deles (primeiro em Heidegger e depois em Gadamer) que se entende bem

a ideia de que não se parte de um grau zero de sentido. Isso porque o sentido – ou o

ser do ente – é algo que decorre do ser-aí-no-mundo, representado pelo Daisen

heideggeriano ou pela tradição gadameriana, e que caracteriza a faticidade e a

historicidade a que se está inserido no mundo, o que só pode aparecer por força da

linguagem.

A linguagem, portanto, é recebida por essas correntes filosóficas como condi-

ção de possibilidade à antecipação do sentido, recebendo influência da ontologia

hermenêutica - que se transborda na hermenêutica filosófica -,para, através da sua

circularidade, permitir o desvelamento fenomenológico do ser do ente.

Essa construção de origem hedeggeriana e, após, expandida para a herme-

nêutica jurídica, pelos estudos de Gadamer, são pressupostos básicos da Crítica

Hermenêutica do Direito e, portanto, da interpretação construtiva a qual se alicerça a

fundamentação democrática definida neste estudo.

Daí é que, com Gadamer, se diz que:

Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão

logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um

                                                                                                                         116 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 354. 117 Ibidem, p. 354.

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sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta

porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na

perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está

posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto

prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado

com base no que se dá conforme se avança na penetração do

sentido118.

Fazendo justiça a Heidegger, o fato de que a interpretação começa de con-

ceitos prévios que serão substituídos por outros mais adequados, ou seja, o repro-

jetar constante a partir da coisa mesma, que perfaz o movimento do compreender e

do interpretar (e do aplicar), é processo descrito por este filósofo do qual parte a

construção gadameriana.

Na transposição destes pressupostos, Gadamer destaca que o ponto nodal

do processo de compreensão não está em assegurar-se frente à tradição – a qual

resgata a historicidade – que se faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, ao contrário,

trata-se de manter-se afastado tudo o que possa impedir a compreensão a partir do

próprio texto (coisa mesma). Dizendo de outro modo, “são os preconceitos não

percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos

fala a tradição”119.

Recepcionada pela virada linguística, a estrutura prévia da compreensão

heideggeriana, da qual se alicerça Gadamer e, por sua vez, a Crítica Hermenêutica

do Direito, ultrapassa a metafísica moderna, porém não de modo arbitrário e aleató-

rio, “mas a partir de uma posição prévia que realmente permite compreender essa

tradição ao pôr a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetivida-

de”120.

Assim é que somente pelo reconhecimento do caráter essencialmente pre-

conceituoso (pré-compreensão) de toda compreensão que se pode levar a questão

hermenêutica na sua aguda clareza; e só a fundamentação, a garantia do método,

que confere ao juízo sua dignidade.

                                                                                                                         118 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 356. 119 Ibidem, p. 359. 120 Ibidem, p. 359.

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Para Gadamer, a epistemologia deve ser colocada de modo totalmente dife-

rente. A proposta teórica de Dilthey chegou a perceber o impasse, mas não conse-

guiu superar os liames que a fixavam à teoria do conhecimento. As auto-reflexão e

autobiografia, que são pontos de partida para Dilthey, não são fatos primários e não

bastam como base para o problema hermenêutico, porque, nelas, a história está

reprivatizada.

De acordo com Gadamer, e isso é importante para a exata compreensão da

tradição gadameriana, em resgate à historicidade e sempre seguindo a vertente

heideggeriana, não é a história que pertence ao homem; é ele que está inserido nela

(na “pre-sença” – no “ser-aí-no-mundo”). Muito antes de se compreender na reflexão

sobre o passado, já se compreende, naturalmente, na família, na sociedade, no

Estado em que se vive. “A lente da subjetividade é um espelho deformante”121.

Na interiorização das vivências, é que Dilthey peca na transcendência da

historicidade, subjetivando-a. No entanto, os pré-conceitos, muito mais do que juízos

subjetivos, constituem a realidade histórica do ser. Daí exigindo-se a superação

epistemológica, a partir do estreitamento entre ontologia e filosofia, dando ensejo à

construções hermenêutico-ontológicas, para o desvelando fenomenológico do ser do

ente e a superação das metafísicas.

A tarefa dessas construções hermenêuticas será de ensinar a usar correta-

mente a razão na compreensão da tradição, defendendo, portanto, o sentido razoá-

vel do texto contra toda e qualquer imposição precipitada ou de autoridade122.

De acordo com Gadamer, a teoria da compreensão teve o seu apogeu com

Schleiermacher sobre o ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se transporta

inteiramente no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é desconhecido e estranho

no texto. No entanto, foi com Heidegger que alcançou sua realização mais autentica.

O movimento circular da compreensão, portanto, vai constantemente do todo para a

parte e desta para o todo, sendo a tarefa da hermenêutica a ampliação da unidade

                                                                                                                         121 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 367-368. 122 Ibidem, p. 368-369.

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do compreendido nessa relação cíclica, até a concordância de cada particularidade

com o todo123.

Dessa forma, o círculo hermenêutico não é de natureza formal, nem é objetivo

e nem subjetivo. Descreve, porém, a compreensão “como o jogo no qual se dá o

intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete”. Assim, a

antecipação de sentido, da qual parte a compreensão de um texto, não é um ato de

subjetividade (de escolha), já que se determina a partir da comunhão que une o

sujeito com a tradição, num processo de contínua formação124.

Dizendo de outro modo, não é uma mera pressuposição sobre a qual o sujeito

sempre esteve, mas onde o sujeito vai se colocando na medida em que compreen-

de, em que participa do acontecer da tradição e em que continua se determinando a

partir de si próprio. Daí é que o círculo da compreensão deixa de ter caráter metodol-

ógico, para descrever-se antes num momento estrutural ontológico da compreen-

são125.

O sentido da pertença, o momento da tradição no comportamento histórico-

hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e

sustentadores. A tarefa da hermenêutica se desenrola entre a estranheza e a

familiaridade que a tradição ocupa no intérprete; entre a objetividade da distância

pensada historicamente e a pertença a uma tradição. Em sentido hermenêutico, “em

referência a algo que foi dito (gesagtes), a linguagem em que nos fala a tradição, a

saga (Sage) que ela nos conta (sagt)”126.

Nesse entremeio é o lugar da hermenêutica, e não com a finalidade de consti-

tuir um método ou procedimento para guiar a compreensão, mas com o objetivo de

elucidar as condições sobre as quais a compreensão surge.

Nesse contexto, o sentido de um texto não supera ocasionalmente seu autor,

mas supera sempre, de modo que a compreensão não poderá se identificar a um

comportamento meramente reprodutivo; será sempre produtivo.

                                                                                                                         123 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 388. 124 Ibidem, p. 388 125 Ibidem, p. 389. 126 Ibidem, p. 391.

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A distância temporal em sua produtividade hermenêutica só pode ser pensa-

da a partir da ruptura ontológica heideggeriana, quando se deu a compreensão um

sentido existencial, trazendo à interpretação a temporalidade do modo de ser da pre-

sença.

Essa distância temporal representa a possibilidade positiva e produtiva do

compreender, sendo a única capaz, na sua dimensão infinita, de ensejar o verda-

deiro sentido que há numa coisa. Trata-se da “genuína produtividade do acontecer”,

permitindo, além da eliminação dos preconceitos de natureza particular, o surgimen-

to daqueles que levam à compreensão correta127.

Portanto, um conhecimento objetivo só pode ser alcançado através de uma

certa distância histórica, onde a possibilidade de se adquirir certa visão panorâmica,

o caráter relativamente (in)concluído de um processo histórico, o seu distanciamento

com relação às opiniões objetivas que dominam o tempo presente, aparecem como

condições positivas da compreensão histórica128.

Nos ensinamentos de Gadamer, muitas vezes, a distancia temporal é a res-

ponsável por resolver a verdadeira questão crítica da hermenêutica: “[...] distinguir os

verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos

que produzem os mal-entendidos”. É assim que uma consciência hermenêutica é

sempre uma consciência histórica, tomando consciência dos próprios preconceitos

que guiam a compreensão, para que a tradição, fazendo o confronto com tais, se

faça destacar, ganhando validade como opinião distinta129.

Daí é que, com Gadamer, a compreensão começa onde se inicia a interpela-

ção, sendo esta a condição suprema da hermenêutica, para a qual se exige a sus-

pensão completa dos preconceitos. Isso não quer dizer, simplesmente, que, diante

de um texto, ele seja deixado de lado e outro venha em sua substituição. Na

verdade, o preconceito entra em cena na exata medida em que ele já está inserido

nela. É só assim que pode aprender a pretensão de verdade do texto original,

                                                                                                                         127 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 393-395. 128 Ibidem, p. 394. 129 Ibidem, p. 395.

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respeitando a sua própria alteridade e desvelando o sentido mais autêntico da

compreensão, por conhecer a ambos130.

Em síntese, Gadamer caracteriza a atividade hermenêutica como uma

reconstrução do caminho da fenomenologia do espírito de Hegel, até o ponto em

que, em toda a sua subjetividade, se mostre a substancialidade que a determina.

Significa a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que

se colocam frente à tradição131.

Perceba-se, aqui, a proposta hermenêutica-ontológica da Crítica adotada,

assim embasada como referencial à blindagem que reclama a decisão judicial, no

paradigma atual, contra o subjetivismo, e na direção do horizonte de sentido às res-

postas corretas no direito.

Outra questão que decorre de toda construção da hermenêutica filosófica

gadameriana acima brevemente apresentada, e que muito se empresta à teoria

sobre a qual se alicerça a fundamentação democrática definida neste texto é a jun-

ção das subtilitas.

Na velha tradição hermenêutica, se distinguiam: subtilitas intelligendi, que é a

compreensão; subtilitas explicandi, que é a interpretação; e subtilitas applicandi, que

é a aplicação. Todavia, desde o romantismo, a hermenêutica recebeu significado

sistemático, reconhecendo a unidade interna das subtilitas intelligendi e explicandi.

Ou seja, a interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complementar à

compreensão. Compreender é sempre interpretar e, nessa medida, a interpretação é

forma explícita de compreensão.

Esse caminho é impulsionado pelo reconhecimento do papel da linguagem,

na interpretação pós-virada linguística, reconhecendo nela um momento estrutural

interno da compreensão.

A íntima fusão entre compreensão e interpretação acabou expulsando total-

mente do contexto da hermenêutica a terceira subtilitas, da aplicação. De acordo

com a construção gadameriana, na compreensão, sempre ocorre algo como uma

aplicação de um texto a ser compreendido à situação atual do intérprete. Nesse                                                                                                                          130 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 395-396. 131 Ibidem, p. 399-340.

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sentido, a hermenêutica gadameriana representa um avanço em relação à herme-

nêutica clássica (bettiana)132, vista como uma metódica da interpretação, e do ro-

mantismo que uniu a compreensão à interpretação, perfazendo um todo unitário.

Para Gadamer, portanto, a compreensão, interpretação e a aplicação subja-

zem o modo de realizar-se a compreensão, sendo a subtilitas applicandi tão essen-

cial e integrante do processo hermenêutico quanto as duas anteriores (intelligendi e

explicandi)133.

Essa evolução da hermenêutica teve a sua origem na união da hermenêutica

filológica com a hermenêutica jurídica, sendo que esta apoiava-se no reconhecimen-

to da aplicação como momento integrante de toda a compreensão. Para a herme-

nêutica jurídica, portanto, compreender é sempre um aplicar134.

Trata-se, portanto, de resgatar estes ensinamentos, sendo certo que a inter-

pretação proposta pela hermenêutica romântica, com a coroação na interpretação

psicológica, isto é, a partir do deciframento e fundamentação da individualidade do

outro, aborda apenas parcialmente o problema da compreensão. As considerações

de Gadamer não permitem dividir a colocação do problema da hermenêutica segun-

do a subjetividade do intérprete ou a objetividade do texto.

Nas reflexões gadamerianas, a distinção entre as funções normativa e cogniti-

va acaba cindindo o que definitivamente é uno. É completamente equivocado fundar

a possibilidade de compreensão dos textos a partir da congenialidade que uniria o

seu criador e o intérprete. Segundo Gadamer,

O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que para

reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido

originário de uma tradição não precisamos de congenialidade. Ao

contrário, nós somos capazes de nos abrir à pretensão excelsa de

um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o

qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência

                                                                                                                         132 Foi Betti, em sua Allgemeine Theorie Interpretation, que cindiu a interpretação em cognitiva, normativa e reprodutiva, impulsionando a divisão das subtilitas da compreensão, da interpretação e da aplicação, como se fossem coisas distintas, e não representassem um todo unitário na compreensão autêntica dos fenômenos (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 409). 133 Ibidem, p. 406-407. 134 Ibidem, p. 408.

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espiritual da história, não é um saber ‘dominador’, isto é, apropriação

por apoderamento; antes, ele se submete à pretensão dominante do

texto135.

Essas considerações gadamerianas acerca da interpretação construtiva, que

integra e une os atos de compreende, interpretar e aplicar, são extremamente

significativas à consideração da Crítica Hermenêutica do Direito, no tocante a que se

leve o texto a sério, deixando o seu sentido fenomenológico acontecer, no resgate à

historicidade e à coerência dworkianas que abaixo serão melhor alinhadas pelo

referencial teórico que promove esse fechamento. Mas, isso tudo como um processo

único de produção do sentido do direito nesta quadra histórica.

Ainda antes de passar à próxima discussão, sobretudo, sobre a teoria integra-

tiva de Dworkin, que respalda a construção teórica sobre a resposta constitucional-

mente adequada, a qual é o resultado da interpretação construtiva própria da

fundamentação democrática desenvolvida nesta Dissertação, é preciso, também em

complemento ao que já foi dito alhures, situar a linguagem como horizonte de uma

ontologia hermenêutica, seguindo os contornos gadamerianos adotados pela Crítica

Hermenêutica do Direito e a sua ontologia fundamental.

A linguagem, segundo Gadamer, não é somente um dentre tantos atributos

que os homens possuem no mundo. Com efeito, a linguagem serve de base para

que os homens tenham o mundo; representa estar-aí-no-mundo136.

Da relação entre linguagem e mundo, decorre o “vir-se à fala” pela própria

coisa ou pela coisa em si. O fato de a coisa comportar-se de um ou outro modo

constitui-se na sua alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante um

distanciamento em relação à coisa. Essa distância dá espaço para que algo possa

destacar-se como um estado de coisas próprio e converter-se em conteúdo de um

enunciado, passível de ser compreensível também pelos outros. Logo, o que deter-

mina todo e qualquer ente consiste em ser tal coisa e não outra137.

Nas palavras de Gadamer,

                                                                                                                         135 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 410-411. 136 Ibidem, p. 571. 137 Ibidem, p. 574-575.

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o universo linguístico próprio em que vivemos não é uma barreira

que impede o conhecimento do ser em si (Ansichsein), mas abarca

basicamente tudo aquilo que a nossa percepção pode expandir-se e

elevar-se138.

A linguagem como representação de mundo é absoluta, ultrapassando todas

as relatividades referentes ao “pôr-o-ser” a descoberto, porque abrange o ser em si.

O caráter da linguagem de que se vale Gadamer abrange, assim, tudo quanto pode

ser reconhecido e interpelado como ente. Nada obstante, a relação fundamental de

linguagem e mundo não significa que o mundo se torne objeto da linguagem. Antes,

tudo aquilo que é objeto de conhecimento ou que possa ser considerado como ente

já se encontra contido no horizonte da linguagem139.

Mas, o mais importante de tudo, conforme a hermenêutica gadameriana, não

está na linguagem enquanto linguagem, enquanto gramática, nem enquanto léxico,

mas em que ela constitui o verdadeiro acontecer hermenêutico no vir-à-fala do que

foi dito na tradição. O acontecer se revela, ao mesmo tempo, em apropriação e

interpretação, onde o desvelar não equivale a ação do sujeito sobre a coisa, mas a

ação da própria coisa, que se revela por si mesma.

Assim é que, em Gadamer, a linguagem é um meio (mitte) em que se reúnem

o eu e o mundo, representando tais uma unidade originária. A linguagem possui

estrutura especulativa, que não consiste em ser cópia de algo já dado de modo fixo,

mas num vir-á-fala, onde se anuncia um todo de sentido. Isso aproximou a herme-

nêutica gadameriana à dialética antiga, uma vez que nesta também não se dava

uma atividade metodológica do sujeito. Dava-se, antes, um fazer da própria coisa,

que representa o próprio movimento especulativo que capta o falante140.

Rastreado o reflexo subjetivo no falar, a hermenêutica filosófica proposta por

Gadamer está em condições de compreender que a estrutura especulativa do fazer

da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta para uma estrutura ontológica

universal, ou seja, para constituição fundamental de tudo aquilo a que a compre-

ensão pode se voltar.

                                                                                                                         138 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 577. 139 Ibidem, p. 581. 140 Ibidem, p. 612.

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Segundo Gadamer,

O ser que pode ser compreendido é linguagem. De certo modo, o

fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à

constituição ontológica do compreendido, na medida em que a

determina, num sentido universal, como linguagem, e determina a

sua própria referência ao ente como interpretação141.

Em conclusão, Gadamer diz que a hermenêutica é um aspecto universal da

filosofia, e não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito.

Resgatando a metáfora dos “jogos de linguagem”, diz que a compreensão é um

jogo, onde o comportamento do jogador não deve ser entendido como um compor-

tamento da subjetividade. Jogo que não admite jogadores reservas, porque a nin-

guém é dada a liberdade de possuir a si mesmo, já que se está sempre inserido num

acontecimento pelo qual aquilo que possui sentido acaba se impondo142.

Para a hermenêutica gadameriana, não existe nenhuma compreensão total-

mente livre de preconceitos, em que pese o escopo da interpretação seja livrar-se de

todos os preconceitos inautênticos. A pretensa certeza dos métodos científicos, em

especial, às ciências do espírito, não foi suficiente para tal tarefa. O fato de que o ser

próprio daquele que conhece também entra em jogo no ato de conhecer marca a

ruptura com o método, mas não com a cientificidade das ciências do espírito. O que

o instrumental do método não consegue alcançar deve e pode ser alcançando pela

hermenêutica ontológico-filosófica.

Aqui, portanto, fecha a correlação entre as construções teóricas gadameria-

nas e a sua utilização pela Crítica Hermenêutica do Direito, pela qual se alicerça a

fundamentação da decisão judicial deste paradigma constitucional.

Streck acentua que, com o giro hermenêutico proposto por Gadamer, a her-

menêutica transplantada para o Direito (hermenêutica jurídica) deverá ser entendida

não mais como um conjunto de métodos ou critérios aptos ao descobrimento da

verdade e das certezas jurídicas. Rompendo com o método, e apostando na filoso-

fia, o processo interpretativo passa a não depender da linguagem como terceira

coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto. Linguagem não é instrumento,                                                                                                                          141 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 612. 142 Ibidem, p. 631.

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mas condição de possibilidade da compreensão, representando o ser-aí-no-mundo,

inserido que o intérprete está na faticidade, historicidade, ou seja na tradição

hermenêutica143.

Para a hermenêutica jurídica de cariz ontológico-existencial, como se apre-

senta a Crítica Hermenêutica do Direito, toda a construção gadameriana importa à

concepção de comprometimento do intérprete. As verdades jurídicas não dependem,

no paradigma atual da linguagem (nem o objetivismo, nem subjetivismo, mas a

aposta na linguagem como condição de possibilidade à compreensão), de métodos,

entendidos como momentos sublimes da subjetividade do intérprete.

Nas palavras de Streck,

[...] só é possível interpretar se existe a compreensão. E esta

depende da pré-compreensão do intérprete. Por isso a compreensão

necessariamente será um existencial. O intérprete não se pergunta

porque compreende, porque ao compreender, já compreendeu. Daí a

importância da tradição, lugar de inserção do homem, como ser-no-

mundo e ser-com-os-outros. Impossível negar a faticidade. Ao tentar

negá-la, esta já atuou no modo compreender-interpretar o mundo144.

Partindo desses pressupostos gadamerianos é que Streck, na sua Crítica

aplicada ao direito, vai defender que não é mais possível a entificação do sentido do

texto. Querer compreender o ente a partir do ente é próprio do pensamento metafí-

sico. O ente só existe no seu ser; e o ser é sempre o ser de um ente. Transplan-

tando isso para a hermenêutica jurídica, a teoria streckiana vai pontuar a diferença

ontológica entre texto e norma, conforme antes visto. É importante reiterar texto não

é norma. No entanto, a norma será sempre a interpretação do texto, ou seja, o

sentido que o texto vem a assumir no processo da compreensão. A norma, portanto,

é o sentido do ser do ente (texto)145.

Tudo isso serve para dizer que, quando se fala da norma que ex-surge do

texto, não se está a falar num processo interpretativo cindido, que a norma é a capa

de sentido que existiria apartada do texto. Ao contrário, quando se depara com o

                                                                                                                         143 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 222. 144 Ibidem, p. 225. 145 Ibidem, p. 226.

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texto, ele já ex-surge normado, a partir da condição do ser-no-mundo, o que ocorre

graças a diferença ontológica existente entre o ser (sentido) e o ente (texto). Por

isso, lembra Streck, “é impossível negar a tradição, a faticidade e a historicidade, em

que a fusão de horizontes é a condição de possibilidade dessa ‘normação’”146.

De acordo com Streck,

Gadamer [...] faz uma ruptura com o método a partir da superação do

esquema sujeito-objeto, confrontando-se, abertamente, com o sujeito

solipsista (‘Selbstsüchtiger’) da modernidade. [...] coloca a autoridade

da tradição, a aferição da verdade hermenêutica a partir dos pré-

juízos legítimos e ilegítimos, circunstância que reforça a relação da

hermenêutica para com o direito, mormente pelo locus privilegiado

representado pela Constituição147.

A hermenêutica, inspirada em Gadamer e que confere as diretrizes à funda-

mentação democrática aqui apresentada, ao fim e ao cabo, não vai abrir mão do su-

jeito da relação, enfim, do sujeito que lida com objetos. O que ela supera é o esque-

ma sujeito-objeto, responsável pelo sujeito solipsista que sustenta as posturas

subjetivistas-axiológicas da maioria das teorias do Direito que se desenvolveram

mesmo neste século. Esse reconhecimento favorece ainda em Dworkin a utilização

da integridade e da coerência como modos de controlar/amarrar o intérprete,

evitando discricionariedades e arbitrariedades, problemática que perpassa tanto a

construção gadameriana, quanto a Crítica Hermenêutica do Direito, sobre a qual se

alicerça.

Por isso, a direção do estudo para o fechamento do processo interpretativo

construtivo/produtivo a partir das construções dworkianas, destacando também que

é da hermenêutica filosófica de cariz ontológico que se permite chegar a resposta

correta no direito, metáfora também que se outorga a Dworkin.

1.2.2.3 Teoria Integrativa de Ronald Dworkin

                                                                                                                         146 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 226. 147 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e ausência de uma teoria da decisão. Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso XLI. Valparaíso/Chile, 2013, 2 semestre, p. 577-601. p. 591.

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70

Tendo deixado claro, por meio da correlação das construções teóricas de

Gadamer e da Crítica Hermenêutica do Direito, que a fundamentação das decisões

judiciais deste paradigma pressupõe um processo interpretativo produtivo/constru-

tivo, a não depender da mera reprodução de enunciados assertóricos ou de escol-

has subjetivistas, é preciso demonstrar ainda como fechar o processo e garantir que

venha representar a melhor interpretação, redundando na resposta correta, no

direito. Para isso, vem à tona a questão da integridade como ideal político distinto da

justiça e da equidade, reclamado por uma comunidade de princípios.

A construção desse respaldo teórico de fechamento do processo interpretati-

vo é originária da teoria integrativa desenvolvida por Ronald Dworkin, da qual tam-

bém se pauta a Crítica Hermenêutica do Direito, para defender a resposta adequada

constitucionalmente, representando o resultado da fundamentação democrática aqui

apresentada.

Dworkin não parte da integridade como chave do processo interpretativo do

direito, como o modus para os juízes decidirem os casos difíceis. Parte da integrida-

de como ideal político para as práticas políticas em geral.

Sempre que se fala em conflito sob ideais, o que é comum na política, as

concepções de equidade e de justiça não seriam suficientes para responder essas

questões, por que, não raras vezes, se colocariam em conflito direto, exigindo,

portanto, o reconhecimento da integridade, como outra virtude política que se coloca

junto à equidade e à justiça, como forma de eliminar a incoerência de princípios

entre os atos do Estado, sacrificando uma ou outra.

A integridade, portanto, para Dworkin, é uma virtude política. Não uma virtude

especial da política porque o Estado ou a comunidade sejam uma entidade distinta,

mas por que devem ser vistos como um agente moral distinto, na medida em que as

suas práticas políticas devem ser protegidas148.

Para afirmar-se que a integridade corresponde a uma virtude política que, por

vezes, sacrifica os ideais de equidade e de justiça, ou seja, que se trata de virtude

autônoma a ser estendida às práticas políticas, é preciso aumentar a amplitude do

argumento político. A sugestão de Dworkin está na defesa da integridade nas ime-                                                                                                                          148 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 227-228.

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71

diações do ideal político da Revolução Francesa, qual seja, a fraternidade, na teoria

dworkiana, trabalhada como sinônimo de comunidade149.

Desse modo, uma sociedade política que aceita a integridade como virtude

política se transforma numa forma especial de comunidade, que promove sua auto-

ridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva. A integridade

assim reconhecida protege contra a parcialidade, a fraude e outras formas de

corrupção, bem como contribui para a eficiência do direito, representando uma

“veículo para a transformação orgânica” da comunidade.

Essa última consequência se dá por que as pessoas, ao reconhecerem que

não são governadas apenas por regras explícitas fruto de decisões políticas do

passado, mas antes o são por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios

que tais decisões subjazem,

[...] então, o conjunto de normas públicas pode expandir-se e

contrair-se organizadamente, na medida em que as pessoas se

tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses

princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de

um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos

possíveis pontos de conflito150.

Com efeito, a integridade como virtude política promove a união da vida moral

e política dos cidadãos; reúne as instâncias públicas e privadas, interpenetrando-as

para o interesse de ambas. A obrigação política, assim, deixa de ser uma questão

de apenas obedecer a decisão política, e passa a ser uma questão de fidelidade a

um sistema de princípios que cada cidadão tem a responsabilidade de identificar, em

última instância para si mesmo, como o sistema da comunidade à qual pertence151.

Para a exata noção da integridade nas imediações da fraternidade ou da co-

munidade política, Dworkin, esclarecendo as construções acima, cuida de apresen-

tar três modelos de comunidade política, enaltecendo aquele que faz aparecer o

compromisso da responsabilidade política a que se chamou a atenção.

                                                                                                                         149 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 228. 150 Ibidem, p. 229. 151 Ibidem, p. 230-231.

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O primeiro modelo supõe que os membros de uma comunidade política se

agruparam por mera circunstância de fato, por exemplo, da história ou da geografia.

O segundo modelo pressupõe que os membros de uma comunidade política aceitam

o compromisso geral de obedecer as regras estabelecidas pelo modo específico da

comunidade; obedecem as regras que aceitaram ou negociaram por obrigação, e

não aceitam princípios que as subjazem. Estes dois modelos estariam por negar a

integridade dworkiana de que a comunidade deve respeitar princípios necessários

às suas práticas políticas152.

O terceiro modelo de comunidade é o modelo do princípio, onde as pessoas

são membros de uma comunidade política genuína, que as liga por reconhecerem

que, além das regras do acordo político, existem princípios comuns que as orientam.

Reconhecem que as práticas políticas pressupõem o debate sobre quais princípios a

comunidade deve adotar como sistema, que concepção se deve formar de justiça,

equidade e devido processo legal. Em resumo, segundo Dworkin, nesse modelo de

comunidade de princípios:

[...] cada um aceita a integridade política como ideal político distinto,

e trata a aceitação geral desse ideal, mesmo entre pessoas que de

outra forma estariam em desacordo sobre a moral política, como um

dos componentes da comunidade política153.

O primeiro modelo não acrescenta nada à noção de integridade como ideal

político nas imediações da fraternidade, eis que a comunidade se forma por pessoas

que não se interessam umas pelas outras, a não ser como meio de alcançarem

objetivos egoísticos. O segundo modelo, embora melhor que o primeiro, “parece

falso enquanto expressão de fraternidade”. Os seus membros apresentam interesse

pelos demais, só que esse interesse tem natureza individualizada, revelando-se

superficial demais, para ser considerado como genuíno. É quase tão egoísta quanto

o primeiro modelo, chegando tarde no processo político de tomada de decisão,

permitindo que uma pessoa nele atue sem senso de responsabilidade ou interesse

por aqueles que finge considerar como membros de uma mesmo comunidade154.

                                                                                                                         152 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 252-254. 153 Ibidem, p. 254-255. 154 Ibidem, p. 256-257.

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Para uma sociedade moralmente pluralista, onde as pessoas divergem sobre

as virtudes da justiça e da equidade, é o terceiro modelo que melhor satisfaz as

condições de comunidade reclamadas pela integridade nas intermediações da

fraternidade. O modelo que se pauta num sistema de princípios torna específicas as

responsabilidades da cidadania; faz com que sejam elas pessoais, exigindo que nin-

guém seja excluído. Nele o interesse não se revela superficial, sendo verdadeiro e

constante, manifestando-se quando a política se inicia, perdurando pela legislação

que rege a prestação jurisdicional e sua aplicação. A sua base racional tende para a

igualdade, sendo pressuposto da integridade que todos sejam tratados com o mes-

mo interesse, de acordo com uma concepção coerente do que isso significa155.

Portanto, é numa comunidade de princípios, como verdadeira comunidade as-

sociativa, que se pode reivindicar a autoridade moral da política, de forma que as

decisões coletivas são questão de obrigação e responsabilidade, e não de poder,

em nome da fraternidade. É onde a integridade como ideal político se coloca para

permear os atos políticos como uma questão de responsabilidade para com um sis-

tema de princípios.

Transplantando para o Direito as construções da integridade como virtude

política a remediar as práticas políticas em geral, Dworkin trabalha com dois princí-

pios: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. O estreita-

mento da Crítica Hermenêutica do Direito e do qual se resgata o fechamento do

processo construtivo da interpretação, que caracteriza a fundamentação demo-

crática da decisão judicial, está neste último princípio.

Nada obstante, importa registrar que a integridade na legislação quer signifi-

car que o legislador e outros partícipes da criação do Direito ficam restritos ao expan

dir ou alterar as normas públicas. Mas a integridade que interessa à problemática

aqui debruçada quer dizer que, até onde seja possível, os juízes devem tratar o

sistema de normas públicas como se expressasse e respeitasse um conjunto coe-

rente de princípios, e, a partir disso, interpretassem tais normas de modo a descobrir

normas implícitas entre e sob as normas explícitas.

                                                                                                                         155 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 256-257.

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O princípio da integridade na decisão judicial, portanto, trata-se de princípio

decisivo para aquilo que um juiz reconhece como Direito. O juiz que aceitar a integri-

dade pensará que o Direito que esta define estabelece os direitos genuínos que os

litigantes têm a uma decisão dele. Dizendo de outro modo, os litigantes têm o Direito

de ter seus atos e assuntos julgados de acordo com a melhor concepção daquilo

que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época dos fatos, e

a integridade exige que estas normas sejam consideradas coerentes, como se o

Estado tivesse um única voz156.

Mas, no que consiste exatamente a integridade como coerência na proposta

de Dworkin? Seria ela apenas coerência sob nome mais grandioso? A resposta é

negativa e, para essa conclusão, é preciso entender que a coerência nessa concep-

ção é algo a mais que a repetição de decisões anteriores.

A integridade exige que as normas públicas sejam criadas e vistas, na medida

do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equida-

de, na correta proporção. Mutatis mutandis, isso quer dizer que uma instituição que

adote a virtude da integridade política, por vezes e em função dela, irá afastar-se

das decisões anteriores, em coerência aos princípios concebidos como fundamen-

tais ao sistema como um todo157.

Entendida a diferença entre integridade e coerência em sentido formal, o

contraste entre elas vai ficando mais complexo. A integridade é uma norma mais

dinâmica e radical do que parecia, porque incentiva um juiz a ser mais abrangente e

imaginativo em busca de coerência com o princípio fundamental. Por outro lado,

uma concepção de Direito erigida sobre o princípio interpretativo da integridade,

deixa muito menos espaço para argumentos práticos ao estabelecer direitos consti-

tucionais substantivos, ou seja, por dizer respeito a princípios158.

É relevante se perceber a correlação entre as teorias da integridade de

Dworkin e a Crítica Hermenêutica do Direito, para os quais os princípios não abrem

a interpretação à discricionariedade, mas sim a fecham num todo coerente com a

prescrições constitucionais. Mas, desse assunto, se tratará com melhor afinco por

                                                                                                                         156 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 262-263. 157 Ibidem, p. 263-264. 158 Ibidem, p. 265-266.

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conta da resposta correta ou constitucionalmente adequada como resultado do

processo interpretativo construtivo a que se fez referência como fundamentação

democrática.

A integridade dworkiana se preocupa com questões de princípio, de tal sorte

que o governo deve ter uma única só voz ao se manifestar sobre os direitos cons-

titucionais substantivos. Existe uma diferença entre questões de princípio, para as

quais a integridade exige que o governo persiga tal concepção coerente daquilo que

significa tratar as pessoas como iguais, e questões de política, quando não se exige

uma coerência limitada, ou seja, onde não se exige que os programas governamen-

tais tratem todos da mesma maneira.

Essa distinção entre política e princípio e a relação direta entre integridade e

princípio é de suma importância para a fundamentação da decisão judicial, especial-

mente, nesta quadra histórica, em que se coloca em debate a chamada “judicializa-

ção política” e os limites jurisdicionais. Tais pressupostos da teoria integrativa dwor-

kiana também serviram de alicerce à Crítica em que se embasa a fundamentação

democrática, para demonstrar que o limite da intervenção está justamente na garan-

tia da proporção entre aquilo que representa excesso ou insuficiência do Estado

quanto às garantia constitucionais, ou seja, frente à discussão sobre questão de

princípio envolta da normatividade constitucional.

Interessa essa questão, portanto, também para demonstrar que, na teoria

dworkiana, é pressuposto da integridade a situação distinta em que se colocam juí-

zes e legisladores. Os juízes devem tomar suas decisões com base em princípios, e

não em política.

O princípio judiciário da integridade, portanto, quer significar que os juízes

decidem os casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de

princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da

estrutura política e da doutrina jurídica da comunidade. Isso inclui convicções sobre

adequação e justificação, de modo que o sistema de princípios deve justificar tanto o

status quanto o conteúdo das decisões anteriores.

As convicções sobre adequação vão exigir um limiar de aproximação a inter-

pretação de alguma parte do direito para tornar-se aceitável. O teste de adequação

será o responsável por eliminar as interpretações que, de algum modo, os juízes

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poderiam preferir, de tal modo que os fatos brutos da história jurídica limitarão o

papel que podem desempenhar, nas decisões, as convicções de justiça de um juiz.

Diferentes juízes vão estabelecer esse limiar de maneira distinta. Todavia, o juiz que

aceite a integridade irá admitir que a verdadeira história política de sua comunidade

irá restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral.

Se o seu limiar de adequação derivar, por outro lado, de suas convicções

pessoais de justiça e tais convicções permitam uma interpretação aceitável ao

Direito, mesmo assim não poderá dizer estar de boa-fé na interpretação da prática

jurídica. É, como o romancista em cadeia159, que, se os juízos sobre a adequação se

ajustam automaticamente às suas opiniões literárias, estaria agindo de má-fé ou

enganando a si próprio.160.

Dizendo de outro modo, os casos difíceis, de acordo com Dworkin, são

aqueles que, da sua análise preliminar, não se extrai uma entre duas ou mais inter-

pretações de uma lei ou de um julgado. Nessas situações, o juiz decide sobre as

interpretações aceitáveis, perguntando-se sobre qual delas apresenta a melhor luz,

do ponto de vista da moral política, da estrutura das instituições e das decisões da

comunidade. A decisão que toma não vai refletir apenas as suas convicções sobre

justiça e equidade, mas vai, sobretudo, trazer as suas convicções de ordem superior

sobre a possibilidade de acordo entre tais ideias, quando eles concorrem entre si161.

Ainda, não nega que um juiz, em sua trajetória jurídica, desenvolverá uma

concepção que chama funcional do Direito, na qual ele se baseará, por vezes, até

inconscientemente, para alcançar suas decisões. Todavia, mesmo essa estrutura

funcional é restringida pela integridade dworkiana. Isso ocorre, especialmente,

nessas questões de princípio, em cujos casos conflitem a justiça e a equidade,

quando as concepções funcionais dos juízes cedem espaço à inclusão de princípios

de ordem mais elevada para resolver a questão. O exemplo trazido por Dworkin é de

                                                                                                                         159 Para Dworkin, é possível se comparar o juiz que decide sobre o que é direito numa situação jurídica que lhe é apresentada com um romancista em cadeia. No gênero literário em questão, “um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil do direito como integridade”. (DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 276). 160 Ibidem, p. 306. 161 Ibidem, p. 306.

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um juiz que adotaria o princípio da maioria para apoiar as decisões políticas, porém,

relativizando esse juízo, por vezes, o afastando, se estão em jogo sérios direitos

constitucionais162.

Enfim, as convicções que entram em cena na adequação expressam o com-

promisso do juiz, assim inserido na sua comunidade, com a integridade. Uma inter-

pretação aquém do limiar da adequação não revela o histórico certo da comunidade,

e, mais que isso, demonstra que ela tem por característica desonrar seus próprios

princípios. Dentro do limiar da adequação, outras faltas são supríveis com a coerên-

cia do sistema de princípios, que promovem espécie de restrição estrutural.

É possível que um juiz enfrente sempre novos e desafiadores problemas de

questões de princípio, forçando-o a desenvolver, lado a lado, a sua concepção do

Direito e a sua moral política, de modo que ambas se dêem sustentação mútua.

Preferir uma interpretação, significa optar por uma direção, devendo ser esta a corre-

ta em matéria de princípios políticos, e não a aparentemente mais atraente ao caso

presente.

Assim é como

[...] num romance em cadeia, a interpretação representa para cada

intérprete um delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes

literárias e artísticas, em direito é um delicado equilíbrio entre

convicções políticas de diversos tipos; tanto no direito quanto na

literatura, estas deves ser suficientemente afins, ainda que distintas,

para permitirem um juízo geral que troque o sucesso de uma

interpretação sobre um tipo de critério por seu fracasso sobre o

outro163.

Antes de seguirmos à resposta correta, equivalente à constitucionalmente ade

quada, alcançada pela fundamentação democrática alicerçada na Crítica Hermenêu-

tica do Direito, cujo alcance se outorga também à teoria dworkiana, é preciso des-

tacar que Dworkin atribui esta tarefa da complexa estrutura da interpretação judicial

ao seu “Juiz Hércules” cuja dignidade de suas características foi aventada por Streck

                                                                                                                         162 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 306-307. 163 Ibidem, p. 287.

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ao desconstituir os modelos de juiz de Ost, as quais foram citadas em tópico anterior

deste trabalho.

Nada obstante, importa reiterar a característica hermenêutica da prática her-

culana de Dworkin, quando assevera que as opiniões do jurista sobre a adequação

“se irradiam a partir do caso que tem diante de si em uma série de círculos concên-

tricos”164. Aqui, portanto, o estreitamento final que evidencia a afinidade e compatibili

dade entre as teses da hermenêutica filosófica de Gadamer e a integridade de

Dworkin, na forma em que reunidas pela Crítica que respalda à hipótese do proble

ma a ser aqui respondido, bem como responde ao subjetivismo que alguns críticos

de Dworkin impõe ao seu Hércules.

Ora, como a hermenêutica filosófica representa uma blindagem contra o sub-

jetivismo, a tarefa da decisão sobre a melhor luz do Direito, ainda que leve em conta

a moral política – para aqueles que entendem ser isso subjetivismo – estaria prote-

gida desse entrave. De mais a mais, é nos princípios constitucionais que se insere

essa moral, os quais integram a normatividade constitucional, se inserindo na discus

são sobre questões de princípio.

Portanto, a teoria integrativa de Dworkin lida em conjunto com a hermenêutica

filosófica de Gadamer. Ambas completam o processo interpretativo construtivo que

reclama a fundamentação democrática, representando as bases, conforme reiterada

mente afirmado, da Crítica Hermenêutica do Direito que respalda a sua formação.

Ato contínuo, a preocupação é com o resultado desse processo produtivo e que

constitui a decisão democrática, ou seja, com a resposta correta no Direito, inclusive,

como forma de se estabelecer a distinção proposta (decidir x escolher).

1.2.3 RESPOSTA CORRETA PARA A CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO:

DECISÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA COMO RESULTADO DO

PROCESSO INTERPRETATIVO CONSTRUTIVO/PRODUTIVO

Antes de adentrarmos na resposta constitucionalmente adequada apresenta-

da pela Crítica Hermenêutica do Direito e que finaliza o processo produtivo da inter-

pretação, resultando a decisão judicial democrática, é preciso trazer a tese de

Dworkin que permite afirmar a existência de respostas corretas no Direito.                                                                                                                          164 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fortes, 1999, p. 300.

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Na obra “Uma Questão de Princípio”, Dworkin cuida de demonstrar tal possibi

lidade, antes disso refutando duas versões que negariam a possibilidade. Uma pri-

meira versão sustentada a partir de que a conduta linguística dos juristas seria enga-

nosa, porque sugeriria que não há um espaço lógico entre, por exemplo, a proposi-

ção de que um contrato é válido e a proposição de que não é válido, ou seja, porque

não admitiria que uma das proposições fosse falsa. Uma segunda versão baseada

na impossibilidade, no mesmo exemplo, de se dizer qual proposição jurídica seria

verdadeira, em razão de argumentos do tipo imprecisão dos conteúdos linguísticos,

estrutura oculta do positivismo e a controvérsia no exercício literário165.

Tanto numa versão, quanto noutra, Dworkin entende presente a discricionari-

edade, sendo a primeira mais consequencial e a segunda, na medida em que a lei

não estipularia nada, autorizado estaria o juiz a fazer o que puder por sua própria

conta. Dizendo de outro modo, para Dworkin, a tese que nega a resposta correta é

parcimoniosa à discricionariedade judicial, o que fragiliza o processo interpretativo

construtivo/produtivo que foi apresentado acima.

Abrindo parênteses nesta abordagem, é preciso destacar o contexto de dicrici

onariedade judicial alinhavado por Dworkin. Para tanto, se dirige o estudo, para sua

obra “Levando os Direitos a sério”, na qual trata da discricionariedade judicial dos mo

delos positivistas.

Os positivistas, na aposta que fazem à discricionariedade para resolver os ca-

sos difíceis, se valem do conceito de poder discricionário buscado na linguagem ordi

nária. Contudo, para a exata compreensão desse fenômeno, é preciso colocá-la de

volta ao seu habitat. O conceito do poder discricionário só está perfeitamente à

vontade em apenas um tipo de contexto: quando alguém é em geral encarregado de

tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autori-

dade. Tal como o espaço vazio, no centro de uma rosca, explica Dworkin, o poder

discricionário não existe a não ser como um espaço vazio, circundado por uma faixa

de restrições166.

                                                                                                                         165 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fortes, 2000, p. 175-216. 166 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeria. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 50-51.

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Dworkin fala de um sentido fraco e de um sentido forte do poder discricioná-

rio. Quando usado para dizer que um funcionário público deve usar seu discernimen-

to na aplicação dos padrões que foram estabelecidos para ele pela autoridade ou pa

ra afirmar que ninguém irá rever aquele juízo, apresenta-se em sentido fraco. Quan-

do usado para dizer que a decisão não está limitada por padrões formulados pela

autoridade particular, se tem um sentido forte167.

O poder discricionário aberto pela doutrina positivista difere do adotado por al-

guns nominalistas, porque, para a primeira, nem sempre o juiz tem o poder discricio-

nário, quando, por exemplo, uma regra é clara, o que, para os últimos, sempre assim

existiria, pelo fato de consistirem os juízes nessa ideia a posição de árbitros da lei.

Há razões para estreitar a concepção de poder discricionário a um sentido fra-

co, quando a doutrina positivista assevera que, as vezes, os juízes devem formar o

seu próprio juízo ao aplicar padrões jurídicos, considerando a vagueza das normas

nalguns casos e a sua suficiência noutros.

Para Dworkin, “é tautológica a proposição segundo a qual, quando não há re-

gra clara disponível, deve-se usar o poder discricionário para julgar”. Tal proposição

não tem relevância alguma para o problema de como se explicar um modelo de prin-

cípios jurídicos168.

Dá o exemplo de Hart, para quem, quando entra em cena a discricionariedade

do juiz, não se fala mais em vinculação a padrões. Isso a revelar que, por vezes, os

positivistas também assumem direção forte da discricionariedade. Nesse sentido, a

proposição tem relevância na análise dos princípios, mas tal relevância se resume a

uma reformulação dum sentido fraco. É o mesmo que dizer: esgotadas as regras à

sua disposição, abre-se a discricionariedade judicial, liberando o juiz dos padrões de

rivados da autoridade da lei. Dizendo de outro modo, os padrões jurídicos que não

são regras e são citados pelos juízes não lhe impõem obrigações169.

Se a teoria positivista a respeito do poder discricionário judicial é ou trivial, por

que o emprega em sentido fraco, ou sem sustentação, porque os vários argumentos

que o apoiam são insuficientes, porque então se segue o adotando no pensamento                                                                                                                          167 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeria. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 50-54. 168 Ibidem, p. 55. 169 Ibidem, p. 55.

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jurídico? Parte da explicação, diz Dworkin, encontra-se na tendência natural de um

jurista associar leis e regras e pensar o Direito como um sistema de regras, e não de

princípios e regras170.

Destarte, se um jurista pensa o Direito como um sistema de regras e ainda

assim reconhece que os juízes mudam regras antigas e introduzem novas, ele che-

gará naturalmente à teoria do poder discricionário em seu sentido forte. Se um árbi-

tro puder modificar uma regra, ele tem poder discricionário e quaisquer princípios

que possa mencionar para tanto representam apenas suas preferências típicas. Os

princípios se encaixariam como “padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de

acordo com as suas próprias luzes, no exercício de seu poder discricionário [...]”171.

Daí, parafraseando Dworkin, há séria contestação à abertura discricionária à

suposta correção das incertezas do Direito, abrindo ainda a brecha para a arbitrarie-

dade, não sendo suficiente a sua introdução em uma comunidade jurídica composta

por princípios e regras. Os juízes que assim se colocam legislam novos direitos e,

em seguida, os aplicam retroativamente ao caso em questão, em prejuízo último da

democracia.

Resgatando as versões acima examinadas, para Dworkin, a primeira versão é

facilmente refutada, na medida em que nega uma terceira possibilidade entre as pro-

posições jurídicas, o que, em qualquer sistema jurídico, se admite, só não na aposta

à discricionariedade judicial para a sua elucidação. A segunda, mais sofisticada

quanto ao último tipo de argumento, pressupõe, para seu afastamento e a conclusão

pela admissão da tese da resposta correta, o próprio resgate da teoria integrativa

tratada anteriormente.

De acordo com Dworkin, uma proposição de Direito, como exemplo, a de que

o contrato de Tom é válido, é verdadeira, se corresponder a melhor justificativa que

se possa fornecer para o conjunto de proposições jurídicas, representando o melhor

argumento a favor dessa proposição do que da proposição contrária (de que o

                                                                                                                         170 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeria. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 61. 171 Ibidem, p. 62-63.

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contrato de Tom é inválido). Todavia, se a justificativa contrária, de que o contrato de

Tom é inválido, fornecer o melhor argumento, é ela que será verdadeira172.

Há distinções relevantes entre a ideia de coerência empregada nessa descri-

ção do raciocínio jurídico e a ideia de coerência narrativa utilizada no exercício literá-

rio. O raciocínio jurídico faz uso da coerência normativa, que é claramente mais

complexa, que a coerência narrativa. Daí a relevância, já se imiscuindo na questão

da resposta constitucionalmente adequada, para o papel dos princípios constitucio-

nais, representando a normatividade constitucional como o horizonte do sentido do

qual exsurge a resposta correta. A normatividade ou a coerência normativa afasta a

subjetividade de uma coerência meramente narrativa, que poderia admitir múltiplas

respostas.

Sobre o questionamento de que se seria possível questões, dentro de um

sistema jurídico, que não teriam uma resposta correta, Dworkin responde que essa

solução pressupõe que se esclareça bem o que se entende por sistema jurídico e

que uma proposição é bem fundada se faz parte da melhor justificativa que se pode

oferecer ao conjunto de proposições jurídicas tidas como estabelecidas. Dois argu-

mentos voltam à cena, a adequação e a moralidade política.

A adequação resolve o tese inicial sobre a melhor justificativa. Porém, podem,

ainda assim, mas em sistemas jurídicos imaturos, com poucas regras estabelecidas,

duas teorias fornecerem justificativas igualmente boas nesta dimensão. Isso já não

ocorrerá ou será “exótico” de ocorrer em sistemas jurídicos modernos, desenvolvidos

e complexos, ou seja, dificilmente os juristas de tais sistemas concordaram que

nenhuma proposição é mais adequada que a outra, discutirão qual delas é melhor,

mas não que uma delas se sobrepõe a outra.

Nada obstante, na segunda dimensão, da moralidade política, portanto, diante

de eventuais proposições jurídicas aceitáveis igualmente boas, uma sempre será su-

perior que a outra enquanto teoria política ou melhor, ou seja, uma refletirá melhor

os direitos que as pessoas têm. Portanto, é a integridade acima vista, em coerência

com um sistema de princípios, que conduzirá a resposta correta.

                                                                                                                         172 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fortes, 2000, p. 211.

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Sendo assim, a questão de que se existe ou não a resposta correta no Direito

não é um embate empírico comum. Deve conseguir superar a construção dworkiana

de sistema jurídico complexo e abrangente, que admite respostas distintas num ca-

so, porém, mesmo assim, prefere uma mais adequada ao conteúdo jurídico relevan-

te. Nos termos de Dworkin, só poderia defender algum ceticismo ou indeterminação

na teoria moral, o que deve ser negado nesta fase do Direito. Caso contrário, não se

pode negar que uma teoria pode ser preferida em detrimento da outra, com base na

moralidade política173.

A Crítica Hermenêutica do Direito adota a tese da resposta correta e afirma

que não se trata simplesmente de aderir à tese da única resposta certa ou de várias

possíveis, mas sim significa dizer que, no direito, existe “a” resposta correta, que

consiste na constitucionalmente adequada, para determinada situação jurídica.

Segundo Streck,

Trata-se de uma resposta cuja perspectiva é conteudística, fundada

no mundo prático e na diferença ontológica. A tese fundamentada na

hermenêutica, porque lastreada na diferença ontológica entre texto e

norma, admite que se encontre sempre a resposta: nem a única, nem

uma entre várias possíveis. Apenas “a resposta”, que exsurge como

síntese hermenêutica, ponto de estofo em que se manifesta a coisa

mesma (die Sache selbst)174.

Mais que isso, o reconhecimento da resposta correta no direito, nos termos

em que ensina a doutrina streckiana e antes visto, significa apostar no preenchimen-

to de uma lacuna na teoria do Direito do pós-guerra: a construção de uma teoria da

decisão175.

A conclusão assim chegada decorre de todo o processo interpretativo produti-

vo que perfaz a fundamentação democrática. Ou seja, depende da consideração da

proposta hermenêutica ontológica desenvolvida, a qual é a responsável por fazer

aparecer o sentido (ser/norma) do ente (texto). É do reconhecimento dessa diferença

ontológica que exsurge a resposta correta, onde a tradição que antecipa o sentido é                                                                                                                          173 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fortes, 2000, p. 216. 174 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 316. 175 Ibidem, p. 321.

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colocada à prova na circularidade hermenêutica, fazendo aparecer o verdadeiro ser

do ente, ou seja, o verdadeiro sentido do texto.

Transplantando esse raciocínio para o Direito, inspirada em Gadamer, a Críti-

ca Hermenêutica do Direito vai dizer que o texto da Constituição só pode ser enten-

dido na sua aplicação. Não há cisão nos atos de compreender, interpretar e de apli-

car, mas se interpreta porque se compreende, sendo a compreensão integrante e

peça chave desse complexo processo interpretativo, no qual adquire especial rele-

vância a estrutura prévia da compreensão, representada pela autoridade da tradi-

ção, a qual é lançada à circularidade hermenêutica.

Noutras palavras, é, desta relação intersubjetiva – onde a pré-compreensão

se antecipa pelo “ser-aí-no-mundo”, colocando-se numa relação circular do todo

para parte e da parte para o todo –, que a Constituição é o resultado de sua interpre-

tação. Daí insistir-se na normatividade constitucional, destacando a advertência de

que se leve o texto a sério, sendo este evento distinto, mas integrante, da norma

(sentido que vem à luz).

Por ser a hermenêutica ontológica, e não procedimental, é que é possível se

sustentar sempre respostas condizentes com a Constituição. Esta resposta, como se

adiantou, será a constitucionalmente adequada ou correta para o caso determinado,

partindo, portanto, da ideia de que a hermenêutica é sempre applicatio (destaque-se

a ruptura com as cisões das subtilitas que faz a hermenêutica gadameriana).

Nesse caminho, a hermenêutica, nos moldes propostos por Streck, afasta o

dualismo sujeito-objeto, visto fazer acontecer a normatividade constitucional, não

ignorando nem o texto e nem a norma, mais que isso, permitindo que esta última

seja desvelada a partir daquele primeiro, numa relação intersubjetiva, em que o su-

jeito já está inserido pela linguagem, sendo esta não mais uma terceira coisa entre

um sujeito e um objeto, mas condição de possibilidade da própria interpretação/

compreensão.

Assim, a Crítica Hermenêutica do Direito afasta a redução da interpretação às

escolhas subjetivas do intérprete, permitindo o desvelamento fenomenológico do ser

do ente, ou seja, da resposta adequada à Constituição, traduzindo essa diferença

ontológica para a leitura do Direito. Mais, categoricamente, se retira as respostas da

disposição do intérprete, que as manipularia conforme fossem seus interesses.

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Conforme Streck, negar a tese da resposta correta é assumir postura, como

adiante se verificará, positivista, por que aposta na discricionariedade judicial, para

resolver os casos difíceis. Múltiplas respostas se afinam, portanto, a tal proposta

teórica, não respondendo à fundamentação democrática que pressupõe a interpreta-

ção construtiva do Direito e que reclama a blindagem contra o voluntarismo. O resul-

tado da interpretação não passa de escolha – tudo o que será melhor desenvolvido

por conta da análise da referida proposta –, permanecendo ela na alçada da vontade

do poder kelseniana.

Ora, se não está a dizer que não podem existir diferentes caminhos em face

das contingências, isso não significa que em todas elas se pode encontrar o elemen-

to da compreensão que se situa em uma unidade. A renúncia dessa unidade signi-

fica que não se foi até o fim no processo interpretativo produtivo que culmina com a

resposta correta ou a mais adequada ao problema jurídico proposto.

De relevo mencionar que

o ato interpretativo – que depende de uma pré-compreensão

antecipadora – não é uma coplagem de um significado a um

significante, ou, para usar a linguagem tipicamente hermenêutica,

não é uma acoplagem de um sentido (ser) a um ente desnudo, que

estaria a espera dessa operação176.

A hermenêutica de cariz ontológico fundamental proporciona, assim, a possi-

bilidade de sempre se encontrar a resposta hermeneuticamente adequada, a qual

exsurge da síntese hermenêutica da applicatio ou do processo interpretativo ou da

compreensão (lembrando que as subtilitas não estão cindidas). Essa resposta, no

entanto, ainda precisa estar justificada, conforme visto, de modo que se explicite as

razões do compreendido. Como dito, que se apresente a fundamentação da funda-

mentação, equivalente à fundamentação democrática que redunda na decisão demo

crática distinta da mera escolha.

Segundo Streck, é a “accountability hermenêutico-processual”177 e que termi-

na com o estreitamento que se evidenciou entre fundamentação democrática e direi-

                                                                                                                         176 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 317. 177 Ibidem, p. 317.

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tos e deveres fundamentais, ganhando, portanto, a nota de fundamentalidade todo

este processo que se reputa construtivo/ produtivo da interpretação.

A fundamentação da fundamentação ou a accountability de Streck longe está

de querer significar que o problema da exigência de fundamentação se resolve no

plano apofântico. “Um vetor de racionalidade de segundo nível – lógico-argumenta-

tivo – não pode substituir ao vetor de racionalidade de primeiro nível, que é a com-

preensão”. A compreensão, reitere-se, é o locus hermenêutico, equivalendo a inter-

pretação a explicitação do compreendido178.

Nada obstante, ao que parece da dogmática clássica e mesmo daquelas

teorias que se constroem sob a bandeira neoconstitucionalista, a aposta se mantém

em que o juiz primeiro decide e depois fundamenta, resumindo a fundamentação a

uma capa de sentido para justificar uma decisão solipsista já tomada.

Seja pelo viés que se quiser dar, o “princípio” eleito para representar a funda-

mentação democrática, qual seja, o “livre convencimento motivado”, jamais conse-

guirá alcançar tal escopo. Ou seja, da condição de verdadeiro princípio constitucio-

nal que recebe a fundamentação democrática, o juiz não tem a opção de se conven-

cer por este ou aquele motivo, como uma espécie de discricionariedade baixa, mas

deve explicitar as razões pelas quais determinada proposição jurídica é melhor que

a outra. E, para chegar a esta decisão, parte de uma relação intersubjetiva da com-

preensão (pré-compreensão, na qual o intérprete já está inserido pela linguagem),

que se dá num contexto histórico-institucional.

A dogmática jurídica processual, ao se contentar com o livre convencimento e

a livre apreciação da prova, acaba por fazer uma leitura superficial do artigo 93, IX,

da Constituição de 1988. Tão-somente poderia estar certa tal leitura se estivesse no

paradigma da filosofia da consciência, e não no paradigma da intersubjetividade,

que veio superar o império da vontade, do sujeito solipsista que atribui livremente o

sentido aos textos. Para tanto, uma coisa é certa: a compreensão e a suspensão

dos seus pré-juízos inautênticos – isto é, no locus hermenêutico – é onde reside a

condição de possibilidade para decisão judicial distante de um produto da vontade.

                                                                                                                         178 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 318.  

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Ao fim e ao cabo, o juiz não deve explicar aquilo que lhe convenceu, e sim

explicitar as razões pelas quais compreendeu, justificando a sua interpretação, na

perspectiva de demonstrar como a interpretação produzida por ele é a melhor – ou a

mais adequada – para o caso determinado, num contexto de unidade, de acordo (e,

aqui, aparecem as contribuições da teoria da integridade de Dworkin, dando o fecha-

mento do qual se apontava acima) com a integridade e a coerência com relação ao

Direito da comunidade política.

Streck insiste na responsabilidade política contemplada pela proposta teórica

de Dworkin, no sentido de que os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões,

porque, com elas, afetam direitos fundamentais e sociais, além da relevante circuns-

tância de que, no Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão

- conforme a Constituição – constitui, reitere-se, direito e dever fundamental. Logo, é

bom relembrar que a fundamentação democrática é condição de possibilidade da

legitimidade da decisão judicial própria do paradigma constitucional179.

Importante ainda, se enveredando para o desfecho deste Capítulo, é a crítica

levantada por Streck em relação ao recurso de Embargos de Declaração cuja manu-

tenção no ordenamento pressupõe o próprio resgate à interpretação positivista. As-

sim faz, dizendo que “decisão carente de adequada fundamentação não enseja em-

bargos de declaração. É, sim, nula. [...] as decisões devem estar justificadas [...] por

razões e argumentos de caráter jurídico”. O limite mais relevante das decisões judi-

ciais reside na necessidade de sua fundamentação democrática, só assim podendo

ser afastado o resultado da interpretação produtiva da sua confundida versão da

escolha180.

Portanto, passa-se, agora, para a análise das propostas positivistas,

pragmáticas e argumentativas, de modo a evidenciar, se a interpretação judicial que

propõem cada qual delas, se identifica ao processo construtivo aqui apresentado, se

caracterizando, em última análise, como fundamentação democrática da qual emerja

a resposta correta no Direito, ou, então, se assume a sua malfadada versão de

escolha, escondendo, sim, posturas axiológicas-subjetivistas que vão de encontro à

interpretação judicial neste quadrante histórico.

                                                                                                                         179 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 321. 180 Ibidem, p. 321.

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CAPÍTULO 2

INTERPRETAÇÃO E DECISÃO JUDICIAIS PELOS MODELOS POSITIVAS E PRAGMATISMAS

 

Apresentada a fundamentação democrática que conduz à resposta correta ou

constitucionalmente adequada, cumpre, agora, discutir as propostas teóricas que se

amoldam ao modelo interpretativo-decisional positivista e pragmatista, avaliando se

consistem em decisão, reflexo da motivação paradigmática delineada anteriormente,

ou na sua distorcida vertente de escolha com carga subjetiva-axiológica.

A trabalho será iniciado com a interpretação da norma afeita à moldura, de

orientação kelseniana, se insistindo nos entraves desta abordagem (positivista), pelo

conhecido debate entre Hebert Hart e Ronald Dworkin, bem como a partir do exame

das teorias argumentativas, em especial, da argumentação alexyana; após, passan-

do a direção às correntes pragmatistas, notadamente, pelo realismo-americano, atra-

vés da lente do seu principal expoente, o Juiz Oliver Wendell Holmes Júnior.

Resgata-se, introdutoriamente, a metáfora da partida de xadrez de Ost, para

dizer que todo jogo comporta uma parte de regras e outra parte de improvisação,

nunca se reduzindo a sua prática ao mero respeito às regras, nem à pura e simples

indeterminação. Mas, sim, ao sentido/espírito do jogo, que se traduz na adesão a

suas metas e apostas mais fundamentais. Assim é a interpretação judicial, que não

se coaduna nem à mera subsunção de regras e nem à criação subjetivista de uma

improvisação ou eleição. Respeita, outrossim, o caráter hermenêutico-ontológico,

através do qual a compreensão mais autêntica é desvelada, por si mesma, a partir

de uma relação de circularidade181.

Por isso mesmo, ainda antes de se imiscuir sobre cada qual das propostas

teóricas que acima se fez referência, se elaborará anamnese entre o decidir e o es-

colher, para que, assim, se consiga flagrar, quando se está frente à decisão judicial

democrática, decorrente da fundamentação constitucional defendida, ou à mera es-

                                                                                                                         181 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. Ano 4. n. 8, 2007, p. 101-130, p. 123. Disponível em: <http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/rev_academia/revistas/08/jupiter-hercules-hermes-tres-modelos-de-juez.pdf>. Acesso em jul. 2015.  

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colha axiológica-subjetiva de uma das vias aparentemente possíveis, fruto de um

solipsismo judicial.

2.1. ANAMNESE ENTRE O DECIDIR E O ESCOLHER: DISTINÇÃO FUNDAMENTAL

Na perspectiva da Crítica Hermenêutica do Direito, existem pontuais e paradig

máticas distinções entre o decidir e o escolher, de modo que o último resgataria con-

cepções subjetivistas, mantendo vivo o sujeito que assujeita (ou escolhe) o sentido

das coisas.

Em razão do que esta teoria levanta e reconhecendo o sujeito solipsita como

o principal entrave da decisão judicial, no Constitucionalismo Contemporâneo, bem

como, nessa mesma medida, como o obstáculo à fundamentação democrática aqui

defendida, soçobra a preocupação com a correta distinção entre os referidos termos,

o que se opta fazer a partir da perspectiva filosófica, onde há evidência da utilização

equivocada dos termos, como se fossem a mesma coisa, quando, ao contrário, reve-

lam distinções essenciais.

Rombach, ao escrever sobre o problema da decisão, no âmbito da filosofia,

em cotejo com a eleição, o que se identifica com a escolha que se trabalha nesta

Dissertação, ressalta as dificuldades terminológicas daquela expressão, no campo

da teoria e da prática, a determinar a insuficiência do conceito no campo dos fenô-

menos182.

Pontua o referido Autor que a principal dificuldade de definição do contexto de

decisão se dá justamente em função da confusão operada com a ideia de eleição.

Sobre o fenômeno da eleição (ou escolha), ensina:

El fenómeno de la elección está caracterizado por el hecho de que se

presentan juntas varias posibilidades que fuerzan a una selección, en

la cual una posibilidad es preferida a otras y se lleva a la práctica. La

selección se hace bajo el aspecto de verdadeiro, bueno, acertado;

sin un principio unificante de verdadeiro, o bueno, o acertado, no es

posible ni una comparación de posibilidades ni una selección. El

                                                                                                                         182 ROMBACH, Heinrich. Decisión. In: Conceptos Fundamentales de Filosofía. Hermann Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder, 1977, Vol. I., pp. 476-490.

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principio de comparación es fundamento constitutivo del fenómeno

de la elección183.

Se, do processo de eleição ou escolha, no qual, à vista um conjunto de possi-

bilidades, há de caminhar-se para extrair uma resposta, esta só poderá ser o resulta-

do de uma opção voluntária no campo dos valores. Dizendo de outro modo, entre as

possibilidades que concorrem no mesmo nível de valor, há uma que, preferencial e

artificialmente, se destaca, em detrimento das demais. A resposta, neste processo

de escolha, portanto, significaria a ponderação subjetiva de valores.

Denuncia Rombach que a esse incremento de valor pela perspectiva subjetiva

se costuma chamar de decisão. Mas isso, por qualquer vértice, se revela equivo-

cado. Escolher ou eleger não significa decidir, em que pese tenham alguma aproxi-

mação, não se identificam184.

Ademais, diante das variadas possibilidades que se abrem no âmbito da

escolha, acrescido este fato do subjetivismo inerente ao ato de eleição, certo é que o

escolher permite aquilo que a Crítica Hermenêutica do Direito questiona, sobretudo,

inspirada na tese dworkiana da resposta correta, das múltiplas respostas.

De acordo com Rombach, o verdadeiro fenômeno da decisão está separado

por um abismo do processo de eleição: “decisión no es eleicción”. Sobretudo, na

decisão real, não se está previamente diante de um horizonte aberto, como um

horizonte de diversas possibilidades. Diversas possibilidades são afins do processo

de escolha, já que permite uma comparação subjetiva dos valores em jogo185.

Se percebe uma estreita vinculação no que consistiria a verdadeira decisão

para Rombach à hermenêutica-ontológica desenvolvida por Heidegger e que,

depois, vem a ser adotada por Gadamer e a Crítica da qual se alicerça a fundamen-

tação democrática aqui construída, à obviedade, com as peculiaridades de cada

referencial teórico.

Rombach inicia afirmando que a decisão não pode se referir retrospectivamen

te a um princípio de eleição, ou seja, a uma diferença de valor. Isso porque a

                                                                                                                         183 Rombach, Heinrich. Decisión. In: Conceptos Fundamentales de Filosofía. Hermann Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder, 1977, Vol. I., p. 476. 184 Ibidem, p. 476-490. 185 Ibidem, p. 478.

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decisão afeta imediatamente “al todo de la existência”186. Segue, apontando que

“con la decisión la existencia determina lo que ella misma es”187. Finaliza, com a

consideração de que respostas de eleição são respostas parciais e respostas de

decisão são respostas totais, porque consideram a existência inteira.

Na medida em que assim faz evidência à existência toda, não há diversas

possibilidades, mas uma única possibilidade, que leva em conta essa existência

mesma.

Para se concluir pela definição do que venha ser a decisão de acordo com o

referencial da filosofia referenciado próxima às construções hermenêuticas, primeiro,

de Heidegger e, depois, de Gadamer, é preciso direcionar o estudo para o que

aquele primeiro filósofo ajusta como decisão fundamental, para o que resgata a

concepção da diferença ontológica proposta pela teoria heideggeriana e aceita pela

teoria gadameriana.

Rombach afirma que a construção da decisão fundamental parte do mesmo

processo de eleição, mas não se resolve pela ponderação subjetivista de

possibilidades valorativas. A análise do autêntico fenômeno da decisão pressupõe

que haja desprendimento das representações próprias da escolha, as quais se

acham tão óbvias, que sequer se percebe que são determinantes das convicções

pessoais. Partindo desse ponto inicial, se remete a decisão ao horizonte de toda

existência, o que se projeta através de um processo que remete a outras decisões

prévias e que o autor em questão chama de “afectibilidad”188.

Por sua vez, a afectibilidad só se forma a partir do exame das decisões anteri-

ores, que se apresentam como “pré-decisões”, em direção de uma nova decisão,

que contemple (ou concentre) a perspectiva de todas as outras. Para o prestigiado

filósofo:

Una decisión nunca es solamente una decisión. Es representante de

una multiplicidad de decisiones, desocultamiento de una historia de

                                                                                                                         186 Rombach, Heinrich. Decisión. In: Conceptos Fundamentales de Filosofía. Hermann Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder, 1977, Vol. I., p 478. 187 Ibidem, p. 478. 188 Ibidem, p. 476-490.

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la decisión y reflexión de todo el destino personal en una fase

singular de la vida189.

Para Heidegger, a ideia de fenomenologia se resume como “uma máxima

evidente por si mesma”, opondo-se às construções soltas no ar, às descobertas

acidentais, às pseudo-questões. Disseca os conceitos que formam a origem etioló-

gica da palavra, fenômeno e logos; para, depois, dar o sentido de sua conjunção,

dando conteúdo à palavra fenomenologia, através da qual desenvolve a sua filoso-

fia190.

Fenômeno é aquilo que se revela, o que se mostra a si mesmo. Heidegger

afirma que seria, assim como a luz, o meio de se trazer a claro o que está obscuro.

Distingue um conceito formal dum conceito vulgar de fenômeno, preferindo o pri-

meiro ao revés de suas modificações originárias das expressões aparência ou mani-

festação, para além de como se revela o ente ou apenas o seu caráter ontológico191.

Por logos, identifica a sua significação como discurso, o que permite ainda a

sua tradução como razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação e propor-

ção. O discurso autêntico, segundo Heidegger, seria aquele que retira o que diz da-

quilo sobre o que discorre, de modo que essa comunicação, que se discorre, seja

acessível aos outros. Como deixar e/ou fazer ver, o logos pode ser verdadeiro ou

falso192.

Da reunião desses conceitos, portanto, Heidegger alcança a sua formulação

de fenomenologia como “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal

como se mostra a partir de si mesmo”. Logo, é diferente das construções teo-logia

ou bio-logia, eis que não evoca o seu objeto de investigação, nem a sua essência,

mas o modo como se demonstra e se trata o ente analisado. A ciência dos fenô-

menos significa “apreender os objetos de tal maneira que se deva tratar de tudo que

está em discussão, numa demonstração e procedimentos diretos”193.

                                                                                                                         189 ROMBACH, Heinrich. Decisión. In: Conceptos Fundamentales de Filosofía. Hermann Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder, 1977, Vol. I., p. 481-482. 190 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte I. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15 ed. Petrópolis: Vozes Editora, 2005, p. 57. 191 Ibidem, p. 57-65. 192 Ibidem, p. 65. 193 Ibidem, p. 65.

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A fenomenologia, assim, se apresenta como o método da filosofia herdeggeri-

ana e que exige a confrontação com a coisa mesma, obrigando o sujeito a discernir

o fenômeno de suas aparências e manifestações. Como, em sentido fenomenoló-

gico ou formal, o fenômeno é o que constitui o ser e o ser é sempre um ente, tem-se

a estreita relação entre fenomenologia e ontologia, de modo que, para Heidegger,

esta última só é possível como fenomenologia.

Nessa perspectiva, para Heidegger, ontologia e fenomenologia não são duas

disciplinas diferentes da filosofia. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu

objeto e em seu modo de tratar. A filosofia seria, assim, uma ontologia fenomenoló-

gica que parte da hermenêutica da presença, sendo, nesta (“pre-sença”194) que se

há de encontrar o horizonte para a compreensão e possível interpretação do ser,

que sempre estará referida a um contexto de historicidade.

Em Heidegger, portanto, não há “ser” sem “ente” e nem “ente” sem “ser”, pois

sempre se estará inserido num pensar na lógica do círculo hermenêutico e da

diferença ontológica. A essência, para o filósofo, é o resultado de uma antecipação

de sentido da compreensão do Daisen, diante de uma parte do fenômeno. Noutros

termos, é uma antecipação de sentido provocada pela facticidade do ser-no-mundo.

O que se antecipa não está no sujeito, ou seja, na consciência, mas sim na lingua-

gem a que o sujeito tem acesso, linguagem esta que é a morada do ser e, nessa

medida, condição de possibilidade da compreensão.

A fenomenologia, em Heidegger, é um “método” que busca o acesso a esta

linguagem que se projeta como ser, o que só pode ocorrer na diferença ontológica,

ou seja, no jogo entre a manifestação do ente e o desvelamento fenomenológico do

ser. A partir do “método” de sua filosofia, a proposta de Heidegger era eliminar dois

supostos erros da metafísica: a entificação do ser ou a sua colocação no ente; e os

erros decorrentes das aparências e manifestações.

É, da diferença ontológica, que se criam os traços para a construção do círcu-

lo hermenêutico, que não é uma inovação trazida por Heidegger, mas se trata de

estrutura própria originária das raízes da hermenêutica, a partir da ideia da compre-

ensão do todo a partir do singular e vice-e-versa.

                                                                                                                         194 Expressão tipicamente heideggeriana.

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A circularidade hermenêutica, na perspectiva de Heidegger, é percebida pelo

caráter existencial que é conferido à compreensão. Sempre compreendemos, mas

esta compreensão antecipada não produz sentido, ela evidencia como ele se dá,

quais são as suas possibilidades e desvios. O modo de ser-no-mundo é a compre-

ensão, cabendo a analítica mostrar como ela ocorre e a fenomenologia potencializá-

la, ou seja, permitir que ela possa se dar na plenitude (quando se fala de interpreta-

ção), não se deixando levar por aparências ou encobrimentos.

Por estas reflexões, se estreita a decisão verdadeira de Rombach – quer

dizer, a que se afasta das concepções subjetivistas – às propostas hermenêuticos-

ontológicas das quais se parte a fundamentação democrática da decisão judicial, ou

seja, das construções, primeiro, heideggerianas; depois, gadamerianas e, por último,

da Crítica Hermenêutica do Direito que nelas se pauta.

Com efeito, o horizonte existencial que contempla a exigida decisão prévia, se

identifica bem à ideia do Daisen ou do ser-aí-no-mundo, como também a da tradição

gadameriana, que antecipam, pela linguagem a que está inserido o intéprete, a pré-

compreensão, onde reside locus privilegiado da hermenêutica, para o desvelamento

do sentido autentico ou o ser do ente, respeitando a diferença ontológica.

Nessa exata medida, a distinção filosófica ou a anamnese de cunho filosófico

entre estes atos guarda consonância com a tese aqui defendida, bem como com os

seus referenciais, no sentido de que a fundamentação que redunda em decisão é de

todo decorrente de um processo interpretativo que leva em conta a estrutura prévia

da compreensão, bem assim a diferença ontológica, para, a partir, da circularidade

hermenêutica, permitir o desvelamento fenomenológico do sentido do texto.

Por outro lado, longe de, nesse complexo processo de produção de sentido,

se situar a escolha ou os atos de escolha, que pressupõe, como visto, a pluralidade

vias das quais a atividade interpretativa se resume a uma eleição subjetivista, pró-

pria do império da vontade, em detrimento do império do Direito ou de que os direi-

tos devem ser levados a sério.

Relevante, portanto, a distinção sugerida pela Crítica Hermenêutica do Direito

sobre a diferença fundamental entre decidir e escolher. Especialmente, em “Verdade

e Consenso” e em “O que é isto: decido conforme minha consciência”, Streck, como

representante máximo desta teoria, acusa que a decisão jurídica não pode ser en-

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tendida como um ato em que o juiz, diante de várias possibilidades para solução de

um caso concreto, escolhe a que lhe parece mais adequada. “Com efeito, decidir

não é sinônimo de escolher”195.

A escolha pressupõe duas ou mais possibilidades, representando a opção por

uma delas sempre uma postura parcial e superficial diante da problemática. Dizendo

de outro modo, a superficialidade discricionária ou discricionariedade baixa que sub-

jaz o ato de escolha, se transborda facilmente em arbitrariedade.

Destarte, esclarecida a pontualidade da distinção entre os referidos atos, bem

como no que consiste exatamente cada qual destas perspectivas, em evidência ao

problema aqui travado, é preciso, agora, se enveredar para a análise das propostas

teóricas interpretativas ou decisionais positivistas e pragmatismas, de modo a

concluir-se pelo seu desfecho (interpretação) como decisão ou escolha, nos moldes

examinados.

2.2. “DECISÃO JUDICIAL” E O POSITIVISMO JURÍDICO

A abordagem parte do positivismo jurídico196. É importante a noção de que, no

século XX, este modelo representou o pensamento sistemático mais rigoroso e a

Teoria Pura do Direito a sua formulação mais completa197.

Em linha introdutória e filosófica, o modelo repousa na ideia da ciência como

único conhecimento verdadeiro, afastado de indagações teológicas ou metafísicas;

no conhecimento científico objetivo, separando o sujeito do objeto e se sustentado

no método descritivo, para afastar concepções pessoais; bem como no método

científico utilizado para as ciências naturais, em especial, a dedução, às ciências

sociais.

São suas características: a) a identificação plena do Direito com a lei; b) a

completude do ordenamento jurídico, não admitindo lacunas; c) o não reconhecimen                                                                                                                          195 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 105. 196 Vale destacar que o positivismo jurídico é uma das formas de positivismo, especialmente, referenciada pela obra kelseniana, existindo outras divisões como o positivismo sociológico ou clássico de Augusto Comte; e o positivismo lógico do Círculo de Viena, todas tendo em comum o combate ao movimento irracionalista que se formou no escopo de discutir o pensamento tradicional da época, assentadas que estão na recusa à metafísica e aceitação da demonstração lógica-matemática como únicos fundamentos ao conhecimento científico. (LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 25-26) 197 Ibidem, p. 25.

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to dos princípios como normas, separando o direito e a moral; d) a dificuldade para

explicar os conceitos indeterminados (hard cases); e) a identificação entre vigência e

validade da lei; f) o formalismo jurídico; g) a não preocupação com a legitimidade do

Direito198.

Na sua versão primitiva-exegética, acreditava num legislador onisciente e oni-

potente, capaz de unificar todo Direito, a partir do racionalismo fundacionista, radica-

do na tradição europeia, sedimentada em Códigos. Defendia-se um Direito Positivo

completo e coerente, ou seja, sem lacunas, sem antinomias e sem ambiguidades.

Na medida em que se foi percebendo as insuficiências do texto legal para os

problemas mais complexos, especialmente, nas teorias jurídicas, a partir de Kelsen,

ocorre uma abertura ao voluntarismo, ensejando uma nova roupagem ao modelo po-

sitivista, que passou a apostar na discricionariedade para resolver o que os positivis-

tas chamam de casos difíceis. Dizendo de outro modo, dá-se ensejo à construção po

sitiva normativista, pelo fato de que o juiz produz norma.

Pula-se, então, de um exegetismo, onde a atividade interpretativa se intrinca-

va na vontade da lei, para um normativismo, onde o juiz produz norma, deslocando a

tarefa interpretativa, para a preocupante vontade do juiz, diante da abertura discricio-

nária, incentivada por tal modelo, na forma acima destacada.

Portanto, conforme antecipado, é a discricionariedade franqueada para solver

aquilo que, com Hebert Hart, se chamou de casos difíceis, que representa a grande

dificuldade das propostas positivistas – normativistas – à fundamentação democráti-

ca ou a decisão judicial própria do paradigma constitucional aqui defendidas.

A discricionariedade, no Estado Liberal, estava na política e assim atravessou

a teoria do Direito e do Estado, nos séculos XIX e XX. A história do Direito se iden-

tifica como uma história de superação do poder arbitrário, de modo que o enfrenta-

mento direto sempre foi onde a decisão privilegiada ou a escolha acontecem. Quer

dizer, a história do Direito se identifica com a história do enfrentamento da discricio-

nariedade199.

                                                                                                                         198 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. 199 STRECK, Lenio Luiz; e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o Estado, a Economia e a autonomia do

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Assim é que a ideia de lei que surgiu com a Revolução Francesa representou

uma tentativa de colocar fim ao modelo de estado jurisdicional presente no regime, à

época, vigente. Por este modelo, o monarca concentrava tanto os poderes do

gubernaculum, quanto da jurisdictio, ou seja, tanto podia declarar a guerra e celebrar

a paz, como também expressava a vontade do rei à solução dos conflitos surgidos

no interior do seu território200.

A moderna ideia de lei veio, então, com o propósito de romper com tal estru-

tura, instituindo um novo espaço institucional, nos qual as decisões são proferidas

em um ambiente parlamentar que expressa a vontade geral. Não mais a personifica-

ção do poder no soberano, mas num corpo legislativo de representantes do povo.

Essa ruptura do Estado Absolutista para o Estado Liberal, fundada na lei, num

primeiro momento, representou um salto no enfrentamento do arbítrio e na afirma-

ção das liberdades. Todavia, num segundo momento, com o incremento de um Esta-

do Legislativo essa conquista declinou. É nesse momento que se concebe a clássica

expressão montesquiana do juiz como boca que pronunciava as palavras da lei

(bouche de la loi), bem como daí que surgem as defesas do silogismo interpretativo;

da cisão entre fato e direito e da proibição dos juízes interpretar.

Com o movimento codificador do século XVIII, isso fica ainda mais radical, à

vista da pretensa possibilidade de se regular todas as relações, em especial, priva-

das (que interessavam), por meio de Códigos. Todavia, é nessa fase que se chega a

primeira constatação importante de que a lei não consegue cobrir tudo, que a fatici-

dade apresenta problemas que nem sempre foram esboçados pelo Legislador. A

opção do próprio sistema – positivo –, para resolução do inconveniente, foi colocar,

“ao lado do legislador racional, um juiz/ intérprete racional”201.

Por essa construção, o Legislador racional criará discricionariamente – discri-

cionariedade política – o conteúdo da lei; ao passo que o juiz/intérprete racional terá

uma delegação para, de forma limitada, preencher as lacunas deixadas pela discri-

cionariedade do Legislador. Segundo Streck e Oliveira, se cria uma espécie de

“discricionariedade de segundo nível”, a qual se estende à interpretação judicial, a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Direito em tempos de crise. In, STRECK, Lenio Luiz; e TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 162-185. 200 Ibidem, p. 162-185. 201 Ibidem, p. 162-185.

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fim de suprir excepcionais lacunas, mediante a aplicação dos chamados “princípios

gerais do direito”, da analogia e dos costumes202.

Na medida em que a lei autoriza a discricionariedade judicial para responder o

vácuo da discricionariedade legislativa, acaba por institucionalizar uma “política judi-

ciária”, que outorga poderes para o juiz determinar a “lei do caso”, a pretexto do

dever de julgamento reclamado pelo ordenamento. Não será por outra razão que

Kelsen se valerá da designação “política dos juízes”, para a atividade jurisdicional,

separando-a em ato de conhecimento, quando emanado do cientista do direito; e em

ato de vontade, quando proveniente de interpretação jurisdicional, inaugurando o

“decisionismo judicial”.

Tal estrutura do Estado legislativo persiste, num primeiro momento, do Estado

Social. A diferença é que, neste quadrante histórico, a especialidade do locus privile-

giado da escolha está no Poder Executivo, tendo propiciado a eclosão de um mode-

lo espúrio de Estado de Direito, que revelou sua pior faceta na radicalização dos

Estados nazifascistas.

Nesse momento, portanto, a grande questão estava em combater a discricio-

nariedade política, agora, do Poder Executivo, a partir da construção de um Estado

Social de Direito, que impusesse um sistema de garantias para a proteção das

minorias da vontade (discricionária) das maiorias eventuais.

Pós-1988, se tem no Brasil este sistema de garantias, exarado no corpo da

Constituinte, seguindo os padrões adotados por Constituições europeias do pós-

guerra. A novidade é que, no momento histórico atual, não se discute mais a discrici-

onariedade política, que recebeu freio do referido sistema de garantias constitucio-

nais. O ponto fulcral, agora, é que o Estado Democrático de Direito veio a incorporar

a tarefa de fazer cumprir essas garantias (ou as “promessas descumpridas da

modernidade”), e, para tanto, a aposta está no Poder Judiciário.

Todavia, se é permitido dizer que há o deslocamento da tensão para a jurisdi-

ção constitucional, no sentido de fazer valer a Constituição compromissária e diri-

gente, para a satisfação dos direitos fundamentais nela inseridos, isso não significa                                                                                                                          202 STRECK, Lenio Luiz; e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o Estado, a Economia e a autonomia do Direito em tempos de crise. In, STRECK, Lenio Luiz; e TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 162-185.

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que estaria autorizado o deslocamento do locus privilegiado da escolha, ou seja,

franqueada a discricionariedade, para o Poder Judiciário cumprir com este mister. Se

assim fosse, se faria política; e não direito ou ainda este estaria sempre a depender

daquela (“direito a reboque do político”).

Portanto, para o Direito, neste quadrante histórico, é fundamental combater o

arbítrio presente na discricionariedade dos juízes, até como forma de se honrar a

sua própria história institucional de reiterado enfrentamento à arbitrariedade oriunda

da discricionariedade.

É interessante perceber que, na França, desde a criação do controle de

constitucionalidade, a doutrina já se preocupava com a discricionariedade no contex-

to decisional, afirmando, a partir da jurisprudência do Conselho constitucional, que

não teria ela se aperfeiçoado, mas sim, “pura e simplesmente ‘destruído’ a teoria do

Estado de Direito”203.

Segundo Chevallier, diante da frouxidão dos princípios, que deixam ao Con-

selho toda a amplitude para a apreciação, as normas constitucionais perdem todo o

caráter de certeza, precisão e estabilidade, se tornando plásticas e adaptáveis, de

acordo com a interpretação soberana da referida Corte. De tal maneira, se arruína a

própria ideia de constitucionalidade e se subverte os fundamentos do Estado de

Direito204.

Não pode se negar, segue o autor, o caráter (des)construtivo da interpretação

assim respaldada, que contribui para uma relativa incerteza quanto ao alcance das

normas constitucionais. À giza das considerações, diz

o juiz somente pode, de fato, ser colocado como uma garantia de

respeito à hierarquia das normas sob a condição de se considerar a

interpretação como um ato de conhecimento e não de vontade205.

O poder discricionário, afora isso tudo, propicia a criação do próprio objeto de

conhecimento, típica problemática que remete a questão ao solipsismo característico

do paradigma da filosofia da consciência. Ou seja, continua-se concebendo a razão

                                                                                                                         203 CHEVALLIER, Jacques. O estado de direito. trad. Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Forum, 2013, p. 70-74. 204 Ibidem, p. 70-74. 205 Ibidem, p. 73-74.

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humana como fonte iluminadora do significado de tudo o que pode ser enunciado

sobre a realidade, em que pese a virada linguística operada no campo da filosofia e

sua importância para o Direito.

Portanto, toda a postura que aposta na discricionariedade judicial para resol-

ver aquilo que a regra legal não responde não supera o positivismo, justamente,

porque fica amarrada no seu principal entrave: o voluntarismo que institucionaliza o

“decisionismo judicial”, simplesmente deslocando o locus privilegiado da escolha –

política – para o Juiz e o Direito, fragilizando a fundamentação da decisão judicial,

no Constitucionalismo Contemporâneo.

2.2.1 TEORIA INTERPRETATIVA KELSENIANA: “DECISÃO JUDICIAL” COMO ATO

DE VONTADE.

Elaborada rápida digressão sobre o modelo positivista e realizada breve con-

textualização da história institucional do Direito em combate à discricionariedade,

considerando a importância para a discussão proposta da teoria interpretativa kelse-

niana, fulcrada no ato de vontade206, passa-se, agora, ao seu direcionado exame, a

fim de aferir-se a condição de “decisão” ou “escolha” da respectiva abordagem, que

ainda muito influencia, direta ou indiretamente, novas teorias para decisão judicial.

Se parte, assim, de Kelsen207. O entrave à fundamentação democrática desta

perspectiva kelseniana nada mais é do que o reflexo desta postura (O Positivismo),

no campo da interpretação do Direito.

Assim, antes de adentrar diretamente na perspectiva da interpretação da lei

afeita à moldura da norma geral, apresentada por Hans Kelsen, o que abre as portas

à discricionariedade judicial e ao decisionismo, relevante apresentar algumas proble-

                                                                                                                         206 De acordo com Losano, a Teoria Pura do Direito é a mais relevante teoria jurídica do século XX, em que pese estar assentada no pensamento jurídico do século passado. (LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, XXIX) 207 A interpretação fundada na vontade não necessariamente é teoria que se prende apenas ao positivismo normativista kelseniano, mas também a outras linhas deste mesmo modelo. A vontade resta presente mesmo no positivismo-legalista de Savigny; no positivismo-racionalista de Windscheid; ou mesmo na teoria objetivista da interpretação de Binding, Wach e Kohler. O primeiro preocupado com a vontade do legislador e os demais com a vontade da lei ou racional da lei, mas todos presos ao ato de vontade (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 9-42)

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máticas ou características do positivismo destacadas por Bobbio208 e que vão respal-

dar – ou, no mínimo, estreitar – a interpretação kelseniana e auxiliar na identificação

do problema de sua proposta, dando dignidade ao enfrentamento principal desta pes

quisa (decidir ou escolher?).

A primeira característica do positivismo que interessa à temática diz respeito

ao modo de se ver o Direito, o que conduz a uma postura científica em relação a ele. O positivismo nasce do esforço de transformar o estudo do Direito numa verdadeira

e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-

matemáticas, naturais e sociais. A característica fundamental da ciência é a avalora-

tividade, ou seja, o estudo dirigido à descoberta do fato, sem se perquirir sobre o seu

conteúdo valorativo.

Segundo Larenz, o Direito, na medida em que se coloca entre os fenômenos

da existência social, eis que direcionado ao comportamento social dos homens,

começou a ser ocupado pela sociologia empírica, a qual influenciou, à época, duas

direções ao fenômeno jurídico. Uma pela teoria psicológica do Direito que assim o

entendia a partir de um conceito de vontade oriundo da psicologia; e outra por uma

teoria predominantemente sociológica, que partia de uma relação entre as causas

socioeconômicas e os efeitos das instituições jurídicas, bem como ainda sobre as

consequências desta relação em atenção ao próprio Direito como meio ao serviço

de finalidades sociais209.

Em que pese, de algum modo, a legitimidade destas perspectivas – as quais,

conforme se verificará no decorrer do trabalho, seguem, sob a bandeira neoconstitu-

cionalista, hoje, ganhando coro – vêm a falhar no tocante à pretensão de validade do

Direito: no “dever ser”210.

Por esta razão, e ainda somado o fato de que a ciência do Direito perdia

espaço para outras ciências, é que Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito, reivindica

                                                                                                                         208 BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Mário Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. 209 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 48. 210 Ibidem, p. 48.

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para a ciência jurídica um objeto puramente ideal, restringindo-a ao simples campo

do racionalmente necessário211.

Assim é que o positivismo jurídico de Kelsen separa o campo da validade do

direito, relacionado à existência da norma no ordenamento jurídico, do campo do

valor, decorrente do juízo de avaliação do mesmo. Ademais,

Quando se intitula Teoria “Pura” do Direito é porque se orienta

apenas para o conhecimento do direito e por que deseja excluir deste

conhecimento tudo o que não pertence a esse exato objeto

jurídico212.

A segunda característica – ou problema, nos moldes de Bobbio213– fica a

cargo da sua teoria das fontes, situando a lei como fonte prevalente sobre todas as

demais, estabelecendo, a partir disso, a noção de ordenamento jurídico complexo e

hierarquizado. Neste ponto da hierarquia, pelo qual uma norma inferior deve ser lida

a partir da interpretação de uma norma superior, se percebe já um começo para o

entendimento da interpretação kelseniana da norma como moldura dentro da qual se

comportam as possibilidades do sentido do direito.

A terceira característica decorre da noção de ordenamento jurídico, a partir do

que se intitula unidade, coerência e completitude. A unidade se refere a uma unida-

de formal, relativa ao modo pelo qual as normas jurídicas são criadas. Todo ordena-

mento deriva de uma única norma fundamental. Conforme ensina Losano, a norma

fundamental é o elemento mais controvertido da doutrina inteira. Ela confere valida-

de a todas as normas jurídicas, porém o seu critério de validade não é mais o

mesmo, eminentemente, formalista (dever-ser/Sollen), mas sim buscado fora do

Direito Posi-tivo, dependente de um ato de vontade fictício, ou seja, de acordo com o

imaginário de quem examina o ordenamento jurídico (ser/Sein)214.

A coerência e a completitude evidenciam os vícios, respectivamente, de ex-

cesso e de falta de normas no ordenamento jurídico.                                                                                                                          211 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 48. 212 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica de Hans Kelsen. Trad. J. Cretella Jr., Agnes Cretella. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 51. 213 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. 214 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 51-54.

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A incoerência é representada pela incompatibilidade de duas normas contradi

tórias ou incompatíveis entre si, o que se resolve pelos critérios para a resolução de

antinomias. A incompletitude que decorre da falta de normas, considerando que o

positivismo não convive com lacunas, autoriza que as normas se completem a partir

do interior do sistema (auto-integração do direito), mediante o recurso à analogia e

aos princípios gerais de direito. Aqui, se evidencia campo fecundo à malfadada aber-

tura à discricionariedade judicial.

Com relação à característica da interpretação do direito, o que cabe à jurisdi-

ção, consiste ela, para o positivismo jurídico, num primeiro momento, atividade pura-

mente declarativa ou reprodutiva de um direito pré-existente, ou seja, de um conheci

mento meramente passivo e contemplativo de um objeto dado. A metódica ficava, de

uma modo geral, sobretudo, em buscar o sentido que o legislador quis dar ao texto.

Num segundo momento, o positivismo jurídico – normativista –, por influência de

Kelsen, abre essa interpretação, porém assim faz apostando no poder de escolha do

juiz.

É, em especial, nesta última característica, da interpretação da norma jurídica,

na forma proposta por Kelsen, que se flagra o entrave da discricionariedade e do de-

cisionismo. Entretanto, como se procurou demonstrar, as citadas características do

modelo auxiliam na evidência do voluntarismo apresentado pela teoria interpretativa

kelseniana, que vai culminar com a interpretação equivalente ao ato de vontade.

A interpretação kelseniana, com efeito, parte do reconhecimento de um orde-

namento jurídico hierarquizado. Nesse sentido, a norma superior (por exemplo, a

Constituição) regula o ato pelo qual é produzida a norma de grau inferior (lei ou

sentença judicial). A norma superior não regula apenas o processo em que se pro-

duz a norma inferior, mas também o seu conteúdo. Essa determinação de conteúdo

nunca é completa, sempre sobra alguma margem de discrição que não pode ser

ligada totalmente pela norma superior. Quer dizer, sempre deve haver um espaço

maior ou menor de livre estimativa. Isso permite que a norma de grau mais alto, em

relação à norma inferior, construa uma “moldura” para enquadramento do ato215.

                                                                                                                         215 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fortes, 2003, p. 387 e ss.

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Não apenas isso, para Kelsen, se obedece o direito porque ele é válido; e a

validade esta a pressupor o fato de a norma fundamental transmitir o dever-ser para

as demais normas de nível mais baixo. No sistema piramidal kelseniano, olhando de

baixo para cima, a sentença do juiz só é válida se remete a uma lei válida; a lei só é

válida se remete a uma norma constitucional válida; e a Constituição só é válida se a

norma fundamental assim declara ser. O ponto nodal é que a norma fundamental

não é uma norma estatuída ou posta pelo Legislador, mas uma norma pressuposta

do ordenamento inteiro, como expressão de ato de vontade de quem o enxerga216.

Kelsen também reconhece a possibilidade de uma indeterminação da norma

que precisa ser complementada e ainda uma diversificada atribuição de sentidos aos

seus conteúdos linguísticos que precisa ser resolvida, sendo que a solução se encon

tra em resgatar a vontade de quem cria a norma (legislador ou juiz).

Diante dos vários casos de indeterminação do sentido da norma, que colocam

o intérprete diante de várias possibilidades, Kelsen diz que o ato jurídico de execu-

ção deve corresponder a algum dos significados verbais da norma jurídica ou aquele

que se identifique com a vontade do legislador ou com a expressão escolhida. A

norma a ser executada, em qualquer caso, forma apenas uma moldura dentro da

qual são apresentadas várias possibilidades de execução, de modo que todo ato é

conforme a norma, desde que esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de

algum sentido possível.

Entendendo-se por “interpretação” a verificação do sentido da norma

a ser executada, o resultado desta atividade só pode ser a

verificação da moldura, que apresenta a norma a ser interpretada e,

portanto, o reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro

desta moldura217.

A interpretação kelseniana, portanto, afeita à estrutura de moldura dentro da

qual se inserem as possibilidades de sentido a ser atribuído ao texto, leva à existên-

cia de várias decisões de mesmo valor, negando a tese da resposta correta – ou do

direito fundamental à resposta correta –, ainda que venha defender que apenas uma

delas (a eleita) se tornará Direito Positivo, numa sentença judicial.                                                                                                                          216 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 54. 217 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica de Hans Kelsen. Trad. J. Cretella Jr., Agnes Cretella. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 116.

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Assim é que, para Kelsen,

Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na

verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que

a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas

apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas

dentro da moldura da norma geral218.

Kelsen refere que a doutrina tradicional sempre objetivou que a interpretação

fosse além da moldura, desenvolvendo um método que possibilitasse o seu exato

preenchimento. Para a perspectiva positivista clássica, esse método só poderia estar

na legislação. E isso é criticado pelo principal referencial do positivismo. Kelsen afir-

ma que pensar assim seria o mesmo que acreditar que a interpretação é apenas um

mero ato intelectual pelo qual se esclarece e se compreende, ignorando a vontade

do intérprete sempre presente nesse caminho. Também, afirma que seria o mesmo

que acreditar que a compreensão pura encontraria, dentre as possibilidades de sen-

tido existentes, um que se estreitasse ao Direito Positivo, como “se pudesse encon-

trar uma escolha certa de acordo com o direito positivo”219.

De acordo com Kelsen, a tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única

sentença justa é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros

da Constituição, criar as únicas leis justas. Há entre estes dois casos uma diferença,

que, no entanto, é mais quantitativa do que qualitativa. Consiste em que a vincula-

ção do legislador, sob o aspecto material, é mais reduzida do que a vinculação do ju-

iz, em que aquele é muito mais livre que este na criação do Direito. Mas isso não sig

nifica que o juiz não seja, para Kelsen, um criador do Direito, relativamente livre nes-

ta função. “Justamente por isso, a obtenção da norma individual no processo de apli-

cação da lei é, na medida em que neste processo seja preenchida a moldura da nor-

ma geral, uma função voluntária”220.

Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da

moldura, ainda se tem uma atividade cognoscitiva do intérprete, não se tratará a in-

terpretação de um conhecimento do Direito Positivo, mas de outras normas que apa-

recem nesta criatividade jurisdicional. Podem ter incidência normas morais, de justi-                                                                                                                          218  KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 391.  219 Ibidem, p. 391. 220 Ibidem, p. 393

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ça, juízos valorativos que se costumam designar por bem comum, interesse do Esta-

do, progresso, etc. Relativamente ao Direito Positivo, “a produção do ato jurídico den

tro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre-

apreciação do órgão chamado a produzir o ato”.221

Perceba-se o problema: a interpretação como ato de vontade do intérprete; e

mais a proposta interpretativa kelseniana abrindo a escolha do sentido da norma,

dentre as possibilidades existentes na moldura geral da norma.

Para Kelsen,

[...] a necessidade de uma “interpretação” acontece exatamente

porque a norma a ser aplicada ou o sistema de normas deixa abertas

inúmeras possibilidades, o que quer dizer que não contém nenhuma

resolução sobre qual dos interesses em jogo é o mais alto; essa

decisão, essa determinação de hierarquia dos interesses é muito

mais num ato de produção normativa – permite, por exemplo, uma

sentença judicial justa222.

Mais ainda, conforme os ensinamentos kelsenianos, se pretender caracterizar

a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, deve-se dizer

que, na aplicação do Direito por um jurista, “a interpretação cognoscitiva [...] do Di-

reito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o [...] aplicador [...] efetua

uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela [...] interpretação”223.

Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo ór

gão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação levada a cabo pela ci

ência jurídica. Segundo Kelsen, ela é sempre autêntica; ela cria o Direito novo, ou se

ja, produz norma, mesmo que estreita ao caso concreto.

É imperioso perceber que a Teoria Pura do Direito procura escapar do juízo

valorativo, sustentando que à Ciência do Direito incumbe a sua produção descritiva

e científica. Ao que parece, apresentando contradição com a teoria interpretativa do

seu precursor, que, à obviedade, resgata o discurso político da discricionariedade,

                                                                                                                         221 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 393.  222 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica de Hans Kelsen. Trad. J. Cretella Jr., Agnes Cretella. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 118. 223 Op. Cit., p. 394.  

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ensejando o decisionismo, não consegue, nesse ponto de cientificidade, ficar, ao re-

conhecer a vontade do intérprete (ou o subjetivismo) na escolha de uma das possibi-

lidades contempladas pela moldura da norma.

Na perspectiva kelseniana, a indagação sobre qual das possibilidades na mol-

dura da norma é a mais justa não se trata de uma indagação dirigida ao conheci-

mento do Direito Positivo, não um problema jurídico-teórico, e sim político-jurídico.

Aos juízes é dado, em certos casos, o poder de criar o Direito e isso decorre da fun-

ção da vontade, própria da interpretação da norma.

Ao introduzir a obra kelseniana “O Problema da Justiça”, Losano vai acentuar

que existe uma discrepância entre a Teoria Pura do Direito como teoria descritiva e a

realidade representada no contexto da interpretação da norma jurídica. Se os valo-

res de justiça invadem o sistema jurídico, a teoria interpretativa kelseniana tão-só

poderia propor a constituição de um elenco das possíveis interpretações, correspon-

dente ao elenco dos possíveis valores de justiça propostos como solução do proble-

ma da justiça224.

Sendo assim, o cientista do Direito, pela Teoria Pura, deveria limitar-se a des-

crever todas as possibilidades interpretativas da norma, sem identificar qual delas

seria preferível, pois, se assim agisse, estaria de fato formulando um juízo de valor,

e, portanto, não estaria desempenhando qualquer atividade científica.

Entretanto, nenhum jurista assim se colocou diante da interpretação da norma

jurídica. Nem mesmo Kelsen, nos pareceres jurídicos que lhe foram confiados, não

se deteve a formar lista abstrata de possíveis interpretações, mas indicou/elegeu

uma entre as possíveis soluções. Assim,

Quando o governo de Voralberg lhe pediu que resolvesse os

problemas da distribuição de competências entre Bund e Länder;

quando, em 1924, ele teve de resolver o problema da cidadania

efetiva do príncipe de Thurn und Taxis; quando, em 1927, redigiu o

documento sobre a origem do estado tchecoslovaco e sobre seu

direito de cidadania; quando, em 1929, o Liechtensteinische

Volkspartei lhe pediu que elucidasse alguns problemas

                                                                                                                         224 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 4 ed. São Paulo: Martins Fortes, 2003, VIII-XXXIII.

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constitucionais; quando, em 1933, fixou as competências

constitucionais do Congresso Nacional do Brasil; quando, em 1944,

como conselheiro do governo americano, elucidou a posição da

Áustria sob o domínio nazista, abrindo o caminho para a restauração

de sua independência; quando, em 1950, determinou os direitos do

Estado do Texas perante o governo federal sobre minerais contidos

na zona costeira; quando, em 1950, fixou as exigências do

proprietário do navio italiano Fausto com respeito ao governo

uruguaio; quando, em 1954, enfim, apoiou o governo japonês na

disputa contra o governo australiano sobre o “legal status of the

continental shelf” [...]225

Na verdade, o que se percebe da teoria interpretativa kelseniana é sua espe-

cial influência da filosofia neokantiana. O pensamento kantiano resgata as estruturas

racionais a priori. Essa orientação ressurge pelas duas Escolas do neokantismo: a

de Heidelberg e a de Marburgo. Esta última influenciou diretamente a doutrina do

direito justo, em especial, a partir dos trabalhos de Rudolf Stammler, quem preten-

deu a apresentação de uma teoria formal do direito, mas acabou reintroduzindo a

ideia dos valores absolutos na ciência jurídica226.

Stammler, ao expor sobre a decisão em casos cuja Legislação não responde,

evoca, na busca do direito justo, fórmulas do tipo “boa-fé”, “equidade” e “bons costu-

mes”. Estas fórmulas indicariam qual a solução da situação proposta, devendo “ser

escolhida a norma jurídica que fornece a decisão fundada sobre princípios”227.

Na tentativa de se eliminar qualquer explicação extrajurídica do âmbito do

Direito, Kelsen acaba por cair no extremo oposto, dando uma explicação jurídica

também para fatos extrajurídicos. Na questão da validade da norma fundamental,

Losano apresenta dois posicionamentos extrajurídicos: um primeiro, que consiste em

juízo de valor, que faz antepor a metodologia juspositivista a todas as outras pos-

                                                                                                                         225 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 4 ed. São Paulo: Martins Fortes, 2003, XXVIII. 226 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 35-37. 227 Ibidem, p. 36.

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síveis metodologias jurídicas; e um segundo, que consiste na eleição do neokantis-

mo como instrumental para a construção da sua teoria jurídica positivista228.

Nessa medida, por meio da própria teoria interpretativa kelseniana e das de-

mais teorias jurídicas que nela se pautam ou que, de uma forma ou de outra, se-

guem na aposta do voluntarismo judicial, o neokantismo continua hoje a viver na

filosofia do direito.

Kelsen é consciente de que o problema da origem do Direito é uma problema

extrajurídico. Contudo, recusa-se a enfrentá-lo e opta por criar uma teoria formal-

estruturalista, que foge deste problema. Usando as suas próprias palavras, diz que

“quem levanta o véu e não fecha os olhos é ofuscado pela Górgona do poder”229.

A Teoria Pura do Direito, portanto, dá conta de que existe uma ligação entre

Direito e realidade, porém separa-os e recusa a dar ao Direito um fundamento extra-

jurídico. Essa recusa é de natureza filosófica, a qual não contesta, mas constata e,

para sair de plano, ela é obrigada a não se pronunciar nem a favor, nem contra a

origem do Direito. Só que assim o fazendo, acaba por pronunciar-se a favor, e esse

juízo é ético ou político, e não científico; diz respeito à razão prática, e não a episte-

mologia230.

Por isso, é que tanto se fala no resgate dos entraves da interpretação do

Direito, que não foram resolvidos, pela Teoria Pura do Direito de Kelsen, e que conti-

nuam a imperar nas decisões judiciais mesmo neste paradigma.

Por essas razões, é que se opta por evidenciar o problema da abertura à

discricionariedade e ao decisionismo, dando margem ao solipsismo que coloca em

cheque a fundamentação democrática e, nessa medida, a decisão judicial, em

tempos de Constitucionalismo Contemporâneo.

                                                                                                                         228 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 91-96. 229 “Wer den Schleier hebt und sein Auge nicht schliesst, dem starrt das Gorgonenhaupt der Macht entgegen” (Kelsen, Hans. Gleichheit vor dem Gesetz, Veröffentlichung del Deutschen Staatsrechtslehrer. Heft 3. Walther Gruyter, Berlin-Leipzig, 1927, p. 55, apud LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 121. 230 Op. Cit., p.125.

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Percebe-se, ademais, em Kelsen a opção flagrante do termo “escolha”231, e

não decisão, ao tratar do resultado do processo de eleição da possibilidade mais

adequada de dentro da moldura. Isso é um indicativo de que a distinção aqui disse-

cada, entre o decidir e o escolher, é algo muito mais evidente do que se possa ima-

ginar.

2.2.2 DEBATE ENTRE HEBERT HART E RONALD DWORKIN: O PROBLEMA DOS

HARD CASES.

Seguindo na análise do positivismo jurídico e das vertentes teóricas que

mantém os entraves deste modelo à fundamentação democrática construída, pontu-

al se faz trazer o famoso debate entre Hebert Hart e Ronald Dworkin, que trouxe à

discussão o problema dos assim chamados hard cases, à evidência da suposta tex-

tura aberta do texto da norma.

Segundo Hart, as teorias jurídicas da atualidade já não tem mais tanta clareza

a respeito da incerteza do Direito produzido por ato de autoridade e a certeza do

Direito produzido pelo Legislador. O contraste não se afirma e se revela ingênuo.

Isso porque, para o Jusfilósofo Inglês, na experiência jurídica, existem casos

simples que estão a ocorrer em contextos semelhantes, para os quais as expressões

gerais são facilmente aplicadas, exemplificando com a interpretação (ou falta de) da

frase: “se existir algo qualificável como veículo, um automóvel é-o certamente”. Por

outro lado, existirão casos em que não é claro se as expressões gerais se aplicam

ou não. Utilizando o mesmo exemplo, questiona se na expressão veículo utilizada

em determinado contexto estariam incluídas também bicicletas, aviões ou patins? A

tais casos se dizem difíceis232.

A isso se atribui a textura aberta da norma jurídica de Hebert Hart. Os últimos

casos representam situações de fato, que são continuamente lançadas pela nature-                                                                                                                          231 Isso ocorre também em outros positivistas, como exemplo, em Kohler, quando defende a interpretação teleológica, afirmando que, havendo várias interpretações possíveis, ao juiz cabe escolher “a que melhor corresponda ao fim” (p. 37). KOHLER, apud LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 42. Outro exemplo ocorre em Bierling e a sua Teoria Psicológica do Direito, quando afirma que, na pesquisa da vontade do legislador, não se evidencia uma explicitação direta da letra da lei, mas a uma conclusão que paira em torno da consideração, dentre as múltiplas interpretações possíveis, daquela que corresponde aos fins da Lei. BIERLING, apud LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 53. 232 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 139.

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za ou pela atividade inventiva, que apresentam apenas alguns aspectos dos casos

simples, mas que lhes falta outros que precisam ser preenchidos por uma escolha233

daquele que tem de as resolver.

A subsunção e a extração de uma conclusão silogística já não caracterizam o

cerne do raciocínio, implicando na demonstração da resposta correta a ser adotada.

Entra em cena o poder discricionário, em função da linguagem aberta do texto da

norma, a requerer “na verdade uma escolha”234 entre as várias alternativas possíveis

à interpretação.

Na linha da teoria hartiana, múltiplas respostas são inerentes à abertura da

discricionariedade judicial para resolver os casos difíceis.

Hart reconhece que os legisladores humanos não podem ter o conhecimento

prévio de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode

trazer. “Quando surge o caso não contemplado, confrontamos as soluções em jogo

e podemos resolver a questão através da escolha entre os interesses concorrentes,

pela forma que melhor nos satisfaz”235.

A teoria hartiana parte do pressuposto que todos os sistemas jurídicos – ainda

que queiram ignorar – chegam a um compromisso entre duas necessidades sociais:

a necessidade de certas regras que podem, sobre grandes zonas de condutas, ser

aplicadas com segurança, sem uma orientação oficial nova ou sem ponderar ques-

tões sociais; e a necessidade de deixar em aberto, para resolução ulterior através da

escolha oficial, questões que podem ser adequadamente apreciadas e resolvidas

quando surgem no caso concreto.236

Disso resulta, segundo o autor, a técnica legislativa da utilização de expres-

sões linguísticas de caráter aberto, para adequação à casuística em sua época pró-

pria, por meio da criatividade judicial. Exemplos como “preço justo”; “razoável”; e “pa

drão de diligência” são característicos desse procedimento.

Para Hart,

                                                                                                                         233 E esse é o termo empregado por Hart, no VII Capítulo da 3 Edição do seu Conceito de Direito. (HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 140). 234 Ibidem, p. 140. 235 Ibidem, p. 142. 236 Ibidem, p. 143.

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112

A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de

conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem

desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais

determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses

conflituantes que variam em peso, de caso para caso237.

Diante dessa margem de discrição, a aposta para o preenchimento do vazio é

na função criadora do juiz, que deve agir para mantença do equilíbrio entre os inte-

resses envolvidos. Para doutrina hartiana, desenvolveriam os juízes um poder legife-

rante, na medida em que a sua atividade muito se estreitaria a dos poderes delega-

dos de elaboração de regulamentos. Quer dizer, produziriam a “lei” do caso concre-

to.

Em que pese o reconhecimento deste poder, Hart contesta a substituição dos

juízes em legisladores. Isso porque entende que, para a discricionariedade, existe

um limite outorgado pelas regras, que instituem padrões para o julgamento correto.

Qualquer juiz que assume o seu cargo encontra, junto da discricionariedade para

resolver os casos difíceis, uma regra característica da tradição e que contempla os

padrões à decisão correta em tais casos.

A criatividade judicial, portanto, para Hart, se opera sob estes padrões postos

pelas regras cuja criação não cabe ao juiz, mas mantém-se ínsita ao legislador.

Discutível, sob vários vieses – os quais serão enfrentados aqui pela cátedra

de Dworkin –, a defesa hartiana. À evidência que a criatividade judicial, para resolver

os casos cuja subsunção legal não resolve, transforma, na difundida expressão de

Cappelletti238, os juízes em legisladores, em desprestígio à fundamentação democrá-

tica da decisão. Nada obstante, se volta à crítica na sequência.

Hart, no Capítulo IX do seu Conceito de Direito, ao tratar da interpretação,

assevera que “uma decisão judicial, especialmente em questões de alta importância                                                                                                                          237 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 148. 238 Cita-se apenas a expressão de “juízes legisladores?” do doutrina italiana de Mauro Cappelletti. Isso porque, para tal, a criatividade e a discricionariedade poderiam ser “qualidades” de um juiz, apenas viciando a sua atividade, quando extrapolados os limites da causa e do processo. Se adota a posição streckiana, para quem a discricionariedade judicial transforma os juízes em legisladores, com seríssimas consequências para o direito e a democracia, neste quadrante histórico. (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e ausência de uma teoria da decisão. Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso XLI. Valparaíso/Chile, 2013, 2 semestre, p. 577-601. p. 594)

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constitucional, envolve frequentemente um escolha entre valores morais e não uma

simples aplicação de um princípio moral proeminente”239. A escolha, diz o autor, não

seria nem arbitrária, nem mecânica, mas adotada a partir das virtudes judiciais da

imparcialidade e neutralidade, da consideração aos interesses envolvidos e da

eleição de um princípio geral aceitável como base racional de decisão. Defende a

pluralidade de princípios, a determinar que a decisão pode não ser a única correta,

mas “torna-se aceitável como produto racional de escolha esclarecida e imparcial”.

Finaliza, dizendo que “em tudo isto, temos as atividades de pensar ou de equilibrar,

características do esforço para fazer justiça entre os interesses conflituantes.240

É, no Pós-Escrito da referida obra, que Hart, ciente das críticas à teoria que

desenvolve, avança sobre as contestações dworkianas. Recebe estes argumentos,

destacando a sua coerência e preocupação à vista do curso e influência que vieram

a receber na teoria jurídica dali para frente.

Antes de avançar sobre as críticas dworkianas, tenta Hart justificá-las, pela

distinções entre as construções teóricas em debate, esclarecendo ser a sua uma

teoria, ao mesmo tempo, geral e descritiva. Geral, porque desprendida de qualquer

ordem jurídica concreta; e descritiva, pela pretensão de ser moralmente neutra, sem

propósito de justificação, embora reconheça a importância disso241. Ao passo que a

Teoria do Direito de Dworkin seria concebida, em parte, como teoria de avaliação e

de justificação e ainda dirigida a uma cultura jurídica concreta, a anglo-americana.

Na medida em que Dworkin identifica sua Teoria do Direito como a parte geral

do julgamento, a tarefa central, portanto, para a sua teoria jurídica é a interpretativa,

bem assim a avaliadora desse processo, consistente na identificação dos princípios

que melhor se adequam ao direito estabelecido e as práticas jurídicas ou se mos-

tram em coerência com eles, também fornecendo a melhor justificativa moral para os

mesmos, descortinando a melhor iluminação do direito. Nesse caminho, Dworkin

acresce a preocupação com o sentido do direito, discutindo, portanto, a relação do

direito com as ameaças coercitivas e com as exigências morais, o que faz a partir de

uma teoria interpretativa e parcialmente avaliadora.                                                                                                                          239 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 220. 240 Ibidem, p. 221. 241 Aqui as razões do seu positivismo moderado. Reconhece que há razões morais para que a pessoa se conforme com as exigências do direito e uma justificação moral para o uso da coerção dele. Contudo, não se preocupa diretamente com isso. Apenas aceita.

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Com efeito, esta própria justificativa entre as teorias, na verdade, trata-se de

resposta à crítica de Dworkin quanto às teorias descritivas, por não conseguirem

adequadamente levar em conta a perspectiva interna do Direito, a partir da atividade

do participante interno do sistema jurídico, sempre apostando no ponto de vista do

observador externo (basta ver a construção hartiana sobre regra de reconhecimen-

to242 e a sua validade, passando de uma afirmação interna – no caso, da confirma-

ção da validade das demais regras com a regra de reconhecimento – para a afirma-

ção de fato externa que o observador do sistema poderia fazer).

Nada obstante, não se ater-se-ão, pelos limites do estudo, uma a uma, as crí-

ticas de Dworkin à teoria hartiana243, mas, notadamente, na que se coloca diante da

discricionariedade judicial para a resolução dos hard cases, como ainda numa even-

tual outra observação que, para a evidenciação do problema à fundamentação demo

crática, sejam pertinentes, a exemplo, da total desconsideração hartiana à distinção

entre regras e princípios, deixando tudo à disciplina das regras (regras primárias,

regras secundárias, regra de reconhecimento, regra de alteração, etc).

Para chegar a este debate cuja preocupação aqui é a principal, chama aten-

ção, inicialmente, a discussão acerca do positivismo moderado de Hart. A divergên-

cia se instaura a partir da concepção da “textura aberta” da regra, quando, para Hart,

o Direito é incapaz de determinar uma resposta em quaisquer dos sentidos, provan-

do-se ser não só indeterminado como incompleto.244 Para a decisão, nesses casos,

os tribunais devem exercer a função criadora, que Hart designa por poder discricio-

nário.

Segundo Hart,

Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de,

como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de

jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente

para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu papel

                                                                                                                         242 Regra jurídica última da qual pressupõe a validade das demais, que especifica os critérios para a identificação das leis que os tribunais tem de aplicar. 243 Positivismo hartiano como teoria semântico-factual/“ferrão semântico”; positivismo hartiano equivalente ao que Dworkin chama de “convencionalismo”. 244 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 314.

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discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar

meramente o direito estabelecido preexistente245.

Dworkin rejeita essa ideia de incompletude cujo preenchimento se confere à

criação do Direito pelo aplicador. Para este referencial, Hart confunde a possibilidade

de proposições jurídicas controvertidas, em que podem os juristas discordarem, e

que exigem construções jurídicas sérias como forma de se limitar a interpretação

nesses casos, com o direito incompleto ou indeterminado.

Para teoria dworkiana, o Direito é visto como integridade e coerência, o que

determina que, à evidência de proposições jurídicas controvertidas, para se chegar a

proposição verdadeira, se requer, dentre outras questões, o resgate da história insti-

tucional do direito – preexistente –, em consonância com os princípios melhor aplica-

veis à situação concreta, o que traz consigo a justificação moral da decisão.

No ponto de vista interpretativo, o Direito nunca é incompleto ou indetermina-

do, inclusive, por que existem princípios implícitos que conduzem a direção do senti-

do, e, por isso, o juiz nunca tem oportunidade de sair do Direito e de exercer um po-

der de criação, para proferir a decisão. Isso transforma os juízes, sim, em legislado-

res.

Portanto, flagram-se equívocos na abordagem do positivismo moderado da

teoria hartiana: seja com relação à indeterminação ou incompletude do Direito, que,

na verdade, se confundem com a existência de proposições controvertidas, mas de

Direito preexistente; seja com relação à total falta de consideração ao desenvolvi-

mento de mecanismos de cunho filosóficos para lidar com os juízos morais, que vêm

a interessar à ultimação desse processo decisão sobre a proposição jurídica verda-

deira.

Sem o respaldo de uma teoria filosófica, segundo a crítica dworkiana, um juiz

que recebe diretivas para aplicar um teste moral, só pode tratar isso como um apelo

ao exercício do poder discricionário criador do Direito, para o qual a condução de

sentido é dada pela sua concepção pessoal valorativa246.

                                                                                                                         245 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 335. 246 Tanto que Hart vai dizer que o juiz deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e valores. (Ibidem, p. 315 e 336).

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Hart responde a crítica de forma bastante frágil, dizendo que, para a finalida-

de prática, não interessará se o juiz decidirá em harmonia com a moral – destacando

que a moral invade o direito pelos princípios jurídicos, portanto, se o juiz decidirá em

coerência com tais princípios, ou seja, com critérios objetivos – , ou se assim fará

conforme a sua moral. De acordo com a posição teórica que defende, ou seja, positi-

vista moderada, é preferível deixar a questão em aberto, mantendo a coerência com

tal corrente ainda sobre o poder de os critérios de juízo moral consistirem critérios de

validade247.

Desde este ponto do debate, já se percebe a mantença do paradigma da filo-

sofia da consciência, aplaudindo o solipsismo em tempos de intersubjetivismo.

O debate evolui para a direção de que Hart teria, em toda sua teoria jurídica,

ignorado a existência dos princípios jurídicos, tratando apenas regras e, assim, do

critério de resolução de conflitos “tudo-ou-nada”248. Hart reconhece a procedência da

importante crítica, porém pretende superá-la, negando qualquer prejuízo na separa-

ção de princípios e regras dentro da sua proposta, ao que Dworkin diz só ser possí-

vel abrindo mão dos seus pontos basilares, em especial, a regra de reconhecimento,

a criatividade e a discricionariedade judicial.

Em tentativa de conciliar a crítica à sua teoria, sem o prejuízo por inteiro dela,

Hart parte das diversas formas de distinção entre regras e princípios. Fala da dife-

rença de grau, visto que os últimos são, em comparação com as primeiras, mais

gerais, extensos e não específicos; e de que os princípios são encarados a partir de

um certo ponto de vista, como desejáveis de manter ou de ser objeto de adesão,

não apenas como fundamento das regras, mas enquanto capazes de contribuir para

a justificação delas249.

Mas a diferença principal na qual se assenta a crítica é quanto à forma de

solução de conflitos que se instauram no âmbito das regras e princípios, o que, para

Hart, trata-se de mero problema de grau, enquanto para Dworkin a questão é

decisiva para colocar por terra a teoria jurídica.

                                                                                                                         247 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 316. 248 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeria. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 24-72. 249 Op. Cit., p. 322.

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Por esta distinção, às regras se aplicaria o critério tudo-ou-nada, que significa

dizer que a regra ou é válida ou inválida; ou se aplica ao caso concreto, criando a

obrigação, ou não se aplica. Os princípios seriam diferentes, na medida em que não

obrigariam uma decisão, mas conduziriam/inclinariam a decisão para um determina-

do sentido250, não significando sejam invalidados pela sua não precedência em um

determinado caso.

Hart não aceita este contraste, quanto à colisão, entre regras e princípios.

Para ele, as regras, assim como os princípios, podem ser afastadas numa determi-

nada hipótese concreta, e, noutra seguinte, virem a fazer frente à situação jurídica

distinta. Sua resposta talvez se explique a partir dos pontos centrais de sua teoria,

em especial, o da regra de reconhecimento, como regra última que disciplina, a partir

do ponto de vista dos juízes e tribunais, o direito aplicável. Extirpando essa criticável

construção, talvez, não encontre alicerce para questionar o critério “tudo-ou-nada”,

para o conflito entre regras.

Não se trata, com Dworkin, a distinção de mera questão de grau, de tal forma

que, para suprir a omissão, pressuporia o afastamento dos alicerces da teoria hartia-

na, em especial, sempre, da regra de reconhecimento, que culmina por introduzir a

subjetividade à decisão judicial251.

Com efeito, não se pode relegar a noção de princípios jurídicos aos critérios

alcançados por uma regra de reconhecimento, manifestada na prática dos tribunais.

Os princípios só podem identificar-se através de uma interpretação construtiva, que

leve em conta a integridade e a coerência com a história institucional do direito. Essa

tarefa é a que se atribui ao Juiz Hércules dworkiano.

De acordo com as lições constantes em “O Império do Direito”, regras e práti-

cas jurídicas constituem apenas o ponto de partida da tarefa interpretativa à identifi-

cação de princípios subjacentes ou juridicamente implícitos. São considerados direi-

                                                                                                                         250 De acordo com o referencial teórico adotado, os princípios não podem ser equiparados a mandamentos de optimização a serem realizados na melhor medida das condições fáticas e jurídicas, nos moldes em que proposto pela teoria alexyana cuja crítica se estende no subcapítulo seguinte, já sendo pertinente a observação aqui, diante da difundida utilização de sua distinção entre regras e princípios. (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2012; e STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 229). 251 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeria. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 24-72.

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to pré-interpretativo que se prestam como critério objetivo a partir do qual o julgador

responsável politicamente direciona à decisão.

Resgatando os ensinamentos streckianos a respeito da distinção entre regras

e princípios e a sua importância à fundamentação democrática, tem-se que a dife-

rença consiste em que os últimos (princípios) estão contidos nas primeiras (regras),

atravessando-as e resgatando o mundo prático. Como o mundo prático não pode ser

preestabelecido totalmente – porque sempre sobre algo –, “o princípio traz à tona o

sentido que resulta desse ponto de encontro entre texto e realidade, em que um não

subsiste sem o outro”252.

Acrescenta Streck, a partir disso, que não há uma implicação entre jurisdição

constitucional e discricionariedade judicial. A admissão da discricionariedade e do

decisionismo é justamente o que o constitucionalismo do Estado Democrático de

Direito quer superar, através da “diferença ‘genética’ entre regras e princípios”253.

Os princípios, nessa medida, não abririam a interpretação, de modo a se coa-

dunarem com a existência de múltiplas respostas. Mas, teriam a tarefa primordial de

fechamento da interpretação produtiva.

Logo, razão não se pode dar a Hart, que, ao cindir o Direito em casos fácies e

difíceis, acentua que, nestes últimos, podem apresentar-se princípios que compor-

tam analogias divergentes, sendo tarefa comum do juiz escolher entre um deles,

“confiando, como legislador consciencioso, no seu sentido sobre aquilo que é melhor

[...]”254.

Como visto, Hart (assim também Kelsen) não fala de princípios, e a interpre-

tação discricionária nas zonas de penumbra do Direito também não poderia ser pre-

enchida por supostos princípios. Repare-se que o problema persistiria, na mesma

linha da crítica às teorias argumentativas abaixo desenvolvida, apostando na supos-

ta abertura interpretativa dos princípios, o que seguiria abrindo a discricionariedade

judicial para as insuficiências do direito, o que não se revela democrático.

                                                                                                                         252 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 441. 253 Ibidem, p. 228. 254 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 338.

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Não se coaduna, portanto, a fundamentação democrática que foi construída

com o alicerce em Dworkin com a regra de reconhecimento da teoria hartiana, so-

bretudo, porque, segundo o próprio Hart afirma, é baseada “numa forma convencio-

nal de consenso judicial”255, o que nada mais é do que uma aposta solipsista à

subjetividade do intérprete.

A discricionariedade judicial, amoldada pelo positivismo hartiano, vai contes-

tada pela teoria integrativa de Dworkin, no sentido de que o intérprete não esta livre

para julgar segundo a sua consciência, mas segue amarrado à sua responsabilidade

política para com a história jurídico-institucional construída com as exigências do

presente.

Muito brevemente – porque esse assunto já foi tratado nos pressupostos da

Crítica Hermenêutica do Direito, bem como nas linhas anteriores, mas com a

finalidade conclusiva –, a teoria dworkiana segue a direção de que as partes do pro-

cesso possuem o direito de que a solução jurídica para o caso esteja de acordo com

o ordenamento previamente estabelecido, que seria o fundamento para todos os

casos, sejam fáceis ou difíceis, impedindo tanto a discricionariedade judicial, quanto

o poder criativo dos juízes, defendidos por Hart.

Nada obstante, o ordenamento, como visto, não é apenas composto por

regras, mas, sobretudo, por princípios. Isto porque se reconhece que a sociedade é

formada por pessoas que, além de obedecerem as regras criadas pelo acordo polí-

tico, reconhecem também princípios comuns como norteadores de suas ações. Po-

rém, em Dworkin, assim também em Streck e Ferrajoli256, é importante reiterar estes

princípios não propiciam abertura interpretativa e, nessa exata medida, seu preen-

chimento pela discricionariedade. Eles, sim, fechariam o sistema, vedando-a.

Seria como o romance em cadeia, metáfora citada por Dworkin, pelo qual o

intérprete deve manter a coerência na reconstrução da história. Nesse contexto, se-

                                                                                                                         255 HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3 ed. Tradução A. Ribeiro Mendes. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, p. 329. 256 No mesmo sentido, Streck e Ferrajoli. FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principalista e constitucionalismo garantista. In ROSA, Alexandre Morais da Rosa et all. Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Luigi Ferrajoli, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 55; STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. . In ROSA, Alexandre Morais da Rosa et all. Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Luigi Ferrajoli, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 69.

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guindo concordância com a tese da resposta correta, segundo a qual o Direito sem-

pre teria (uma) resposta correta.

Na linha de Streck, quando se diz que os textos legais são constituídos de

expressões abertas, palavras vagas e ambíguas, isso não significa que há sempre

várias maneiras de compor os seus significados normativos. Quer dizer, isso não

está a aplaudir múltiplas respostas, o que denuncia a existência do voluntarismo

próprio de posturas positivas, mesmo, hoje, quando se busca a sua superação.257

A blindagem hermenêutica reclamada pelo paradigma constitucional é absolu-

tamente contrária às teses que sustentam que o advento dos princípios e das cláu-

sulas gerais possibilitam uma maior abertura/liberdade interpretativa a favor dos juí-

zes. Essa circunstância recoloca a discussão na perspectiva positivista que se quer

superar.

Daí também resulta a acusação dworkiana quanto ao positivismo “factual” de

Hart. A cisão que faz entre casos fáceis e casos difíceis, a qual deveria estar ultra-

passada, assim como os demais dualismos entre teoria e prática ou moral e Direito,

coloca este numa perspectiva de completude, como se tudo pudesse ser respondido

por raciocínio causais-explicativos, ignorando a pré-compreensão necessária à sua

interpretação.

Streck pontua que

Partir de uma pré-elaboração do que seja um caso simples ou

complexo é incorrer no esquema sujeito-objeto, como se fosse

possível ter um ‘grau zero de sentido’, insultando a pré-compreensão

e tudo o que ela representa como condição para compreensão de um

problema. Não esqueçamos jamais que a discricionariedade

interpretativa é fruto (filosófico) do paradigma da filosofia da

consciência e se fortalece na cisão entre interpretar e aplicar, o que

implica a prevalência do dualismo sujeito-objeto. E essa

discricionariedade/arbitrariedade positivista – sob as mais variadas

vestes – ainda domina o modo-de-agir dos juristas258.

                                                                                                                         257 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 428. 258 Ibidem, p. 434

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Já se enveredando para o desfecho desse tópico, e demonstrando a correla-

ção com o próximo, que vem a se preocupar com a teoria da argumentação jurídica

alexyana, é preciso se destacar que o que identifica tal teoria à hartiana e sua crítica

é justamente a distinção/divisão entre os casos fáceis e os difíceis, o que evidencia,

como reiteradamente demonstrado, tanto numa, quanto noutra proposta, a presença

do paradigma da filosofia da consciência, emergente do dualismo metafísico e do

esquema sujeito-objeto259.

Mais outra vez, o resultado da “interpretação” não passa de uma escolha

subjetiva de quem analisa, cabendo destacar, nos moldes como apresentada sua

proposta acima, Hart deixa claro que, nos casos difíceis, os julgadores escolhem

uma das vias possíveis. Escolha, pela anamnese também acima feita, não se equi-

vale à decisão, sobretudo, como resultado da interpretação construtiva decorrente

da fundamentação democrática, pelo viés da hermenêutica de cariz ontológico.

Apenas ainda antes de passar à problemática já anunciada, é importante

destacar, considerando que as propostas teóricas de Kelsen e Hart aqui terminam

por ser con-frontadas com a distinção proposta, fazer justiça a eles.

Ambos foram traídos pelos juristas brasileiros e essa conclusão será melhor

delineada por força da analítica decisional que se deduzirá por conta do Terceiro

Capítulo da Dissertação. Enquanto estes autores sustentaram a discricionariedade

dentre dos limites semânticos do texto, em terrae brasilis, o que se viu foi a consa-

gração de um “ativismo judicial à brasileira”, a partir da recusa dos Tribunais pátrios

em manterem-se dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos pela Constituição

para o exercício do poder. A discricionariedade confundiu-se com arbitrariedade!260

2.2.3 TEORIAS ARGUMENTATIVAS: O PROBLEMA (METAFÍSICO) DA

PONDERAÇÃO ALEXYANA

Examinadas as propostas interpretativas-decisionais de Kelsen e Hart, ainda

dentro da perspectiva positivista, sobretudo, normativista, o estudo se dirige para a

análise da argumentação jurídica, de modo a averiguar-se se aquilo que propõem                                                                                                                          259 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 435. 260 TRINDADE, Andre Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. In In ROSA, Alexandre Morais da Rosa et all. Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Luigi Ferrajoli, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 95-131.

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como fundamentação da decisão consegue superar o pensamento metafísico objeti-

vista e/ou subjetivista, bem assim conduzir a resposta correta – constitucionalmente

adequada – para o Direito, em especial, no paradigma intersubjetivista da lingua-

gem.

Dentro dos limites propostos para o problema central do estudo, o exame das

teorias argumentativas se restringirá à argumentação alexyana.

A estreita relação ao modelo decisional positivista da teoria da argumentação

jurídica desenvolvida por Robert Alexy situa-se no fato de se manter presa à relação

sujeito-objeto, abrindo a subjetividade, na aposta discricionária por de traz do sopo-

samento argumentativo. Ao privilegiar o plano argumentativo, acaba por produzir um

contexto decisional tolhido, como se fosse possível, primeiro se eleger um sentido, e,

depois, justificá-lo, por argumentos com pretenso intuito corretivo do Direito. É, nes-

sa pretensa abertura subjetivista, do mesmo modo que Hart, para resolver as insufici

ências e incertezas do Direito, através de uma moral corretiva, que não se despren-

de das amarras do modelo positivista.

Alexy, assim, parte de alguns pressupostos para a condução da sua teoria da

argumentação jurídica. Um deles – e com especial relevância – é o reconhecimento

do discurso jurídico como caso especial do discurso prático geral. Alicerçada na teo-

ria do discurso, ressalva que, no Direito, existem diferentes tipos de argumentação,

que sofreriam ou não limitações, de acordo com o meio dentro do qual se insurgiri-

am. Assim é que, para Alexy, “na discussão pública de decisões judiciais, é permiti-

do passar em qualquer momento da argumentação jurídica à argumentação prática

em geral”261.

O autor elenca três fundamentos para o reconhecimento do discurso jurídico

como caso especial do discurso prático geral: na referência das discussões jurídicas

às questões práticas; nas discussões dessas questões sobre o prisma da pretensão

                                                                                                                         261 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 209-210.

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de correção; e porque a discussão jurídica se faz sob condições de limitações confor

me antes visto, de acordo com o meio em que se desenvolve o discurso262.

De forma simples, diante do escopo da atividade da argumentação jurídica se

referir à solução de questões práticas, faz o estreitamento entre a discussão jurídica

e as questões práticas.

Também apresenta como pressuposto relevante da sua argumentação jurídi-

ca a concepção de pretensão de correção sob a qual não se pretende que o enuncia

do jurídico afirmado, proposto ou ditado em sentença, seja apenas racional, mas ain-

da que, de acordo com o dever judicial de fundamentação da decisão, seja submeti-

do à pretensão de correção, que, depois, se verificará, fechará com as suas conside-

rações sobre as justificações interna e externa263.

Segundo Alexy,

O núcleo da tese do caso especial consiste [...] em sustentar que a

pretensão de correção também se formula no discurso jurídico; mas

esta pretensão, diferentemente do que pode ocorrer no discurso

prático geral, não se refere à racionalidade das proposições

normativas em questão, mas somente a que, no ordenamento

jurídico vigente, possam ser racionalmente fundamentadas264.

A tese argumentativa alexyana se constrói sob a base da fundamentação raci-

onal da decisão. Para saber o que consiste exatamente essa proposta, é preciso, na

sua esteira, dividir a justificação (discursos jurídicos se tratam de justificações de pro

posições normativas/decisões) em dois aspectos, que chama de justificação interna

e justificação externa265.

Na justificação interna, verifica-se se a decisão se segue logicamente das pre-

missas que se expõe como fundamentação266. Só, aqui, já bastaria para perceber o

problema fulcral da tese alexyana, que nega a diferença ontológica antes tratada, ou

seja, de que a compreensão/interpretação/aplicação do direito perfaz um todo unitá-

                                                                                                                         262 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 211. 263 Ibidem, p. 212. 264 Ibidem, p. 217. 265 Ibidem, p. 217. 266 Ibidem, p. 217-218.

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rio, que parte duma compreensão prévia, pela tradição, se inserindo na circularidade

do todo para a parte e desta para o todo, através do que o sentido último aparece no

seu ente. Ou seja, não se separa a aplicação/decisão das premissas que se prestam

à fundamentação/justificação, sendo, com efeito, pelas posturas hermenêuticas que

se trabalha nesta Dissertação, a fundamentação o próprio desvelamento fenomeno-

lógico do sentido do texto.

Conforme Alexy, o esquema da fundamentação, pela sua representação mais

simples da justificação interna – (J.1.1) .(1) (x) (x à ORx) .(2) Ta (3)ORa (1), (2)267 –,

não resolveria os casos difíceis, ou seja, aqueles em que contém diversas proprieda-

des alternativas do fato hipotético, quando há a necessidade de um complemento de

normas jurídicas explicativas, limitativas ou extensivas, quando não são possíveis di-

versas consequências jurídicas, ou quando, na formulação da norma, aparecem ex-

pressões que admitem diversas interpretações. Quando isso acontece, entra em ce-

na a justificação externa, na qual seriam possíveis todos os argumentos admissíveis

no discurso jurídico.

Na construção acima, mais um problema: se, para Alexy, o discurso jurídico é

um caso especial do discurso prático geral, portanto, argumentações extrajurídicas,

como discursos políticos, para além das questões de princípio de que chama aten-

ção Dworkin, seriam chamadas ao debate, donde não se podem extirpar também as

questões de cunho pessoal e subjetivista de quem interpreta. Sobre isso se voltará a

seguir.

Resgatando a justificação interna nos casos difíceis, Alexy, assevera que, evi-

tando mal-entendidos,

[...] nos casos mais complicados necessita-se, para a fundamentação

das decisões jurídicas, de uma série de premissas [...], que não

podem ser deduzidas de nenhuma lei. Em muitos casos, a norma

com que se começa não é nem sequer uma norma de direito

                                                                                                                         267 Onde “X é uma variável de indivíduo no domínio das pessoas naturais e jurídicas; A, uma constante de um indivíduo […]; T, um predicado que representa a suposição de fato da norma (1) enquanto propriedade das pessoas, e R, um predicado que expressa o que tem de fazer o destinatário da norma”. (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 218)    

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positivo. A exigência da dedução conduz precisamente ao contrário

do ocultamento da parte criativa da aplicação do Direito268.

A partir desses elementos, Alexy ainda ressalta que o objetivo das formas de

justificação interna não é reproduzir o curso das deliberações efetuadas de fato por

parte dos órgãos decisórios. Ora, estendendo a crítica à esta construção nos moldes

em que se embasa a fundamentação democrática apresentada no Primeiro Capítulo

desta Dissertação, a questão não está na reprodução, mas na produção que pressu-

põe, como integrante do processo interpretativo decisório, a compreensão emanada

de tais deliberações. Consequência disso, o processo do “descobrimento” é o mes-

mo da “justificação”269, sendo a fundamentação a explicitação de tudo isso.

A respeito da justificação externa, da qual, segundo Alexy, compete a raciona-

lidade da decisão, consiste a fundamentação das premissas adotadas na justificação

interna, que podem ser regras do direito positivo, enunciados empíricos ou nem um

nem outro. A cada premissa, corresponde um método de interpretação. A fundamen-

tação de uma regra de direito positivo consiste em mostrar sua conformidade com os

critérios de validade do ordenamento jurídico; na fundamentação das premissas em-

píricas, se colocariam critérios que vão desde os métodos das ciências empíricas, as

máximas de presunção racional e até as regras do ônus da prova; à fundamentação

dos enunciados que não são nem uma coisa nem outra, encontrariam espaço a argu

mentação jurídica, que, muito sinteticamente, se resumiria a um critério de precedên-

cia (ou ponderação)270.

As formas de argumentos e as regras de justificação externa podem se classi-

ficar, segundo Alexy, em seis grupos: lei; Ciência do Direito; precedente; razão; empi

ria; e formas especiais de argumentação jurídica. Não são regras, mas se prestam à

indicação do que se deve fazer ou o que se deve alcançar condicionada ou incondi-

cionadamente. São mais que linhas de investigação; são esquemas de argumenta-

ção.

                                                                                                                         268 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 224. 269 Importante perceber que, na argumentação alexyana, esses processos se distinguiriam (Ibidem, p. 225) 270 Ibidem, p. 226.

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Por vezes, contemplam premissas normativas que não constam da lei. Suas

diferentes formas cumprem diferentes funções. Na propostas alexyana, as formas de

argumentação semântica e genética se referem à vinculação dos órgãos decisores à

lei e à vontade do legislador; as históricas e comparativas permitem a incorporação

da experiência do passado e de outras sociedades; a sistemática serve para eliminar

contradições; e a teleológica abrem espaço à argumentação prática do tipo racio-

nal271.

Não há um catálogo de graus entre as formas diferentes de argumentos, sen-

do que a opção de uma ou outra importa soluções divergentes. A contribuição da teo

ria do discurso, segundo Alexy, seria de mostrar quando usar oportunamente uma e

outra. Para tanto, considera vantajosas duas abordagens desta teoria: a dimensão

pragmática da fundamentação; e que ela tem por pretensão apenas aumentar a pro-

babilidade de que numa discussão jurídica se alcance a decisão correta, que, para

tal, é a racional.

Surge, como decorrência do pressuposto básico da teoria do discurso, qual

seja, a racionalidade da fundamentação, o critério de precedência ou de peso dos

argumentos diferentes, a decorrer de regras de ponderação.

Bem, à evidência dessas colocações alexyanas sobre a justificação externa, a

partir da qual se examinariam as premissas sobre as quais se assentam à interpreta-

ção, é importante observar o resgate da metódica interpretativa do direito, que foi ex-

planada pela vertente filosófica gadameriana, de forma a demonstrar o quão supera-

da é essa postura, em vista do fenômeno da compreensão. Todas essas condições

ou argumentos já estão em si inseridos no complexo compreensivo, fazem parte do

ser-aí-no-mundo, que resgata justamente o mundo prático, se ajustando, portanto,

ao processo compreensivo, mas não ficando por aí, sendo colocado em constante

debate na circularidade hermenêutica, a fim de se descortinar a resposta correta que

provém da coisa mesma. Mais outra vez, fica evidente da teoria argumentativa pro-

posta a cisão da interpretação das suas integrantes compreensão e aplicação. Vale

reiterar as palavras de Gadamer, “o fato de que o ser próprio daquele que se conhe-

                                                                                                                         271 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 241.

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ce também entre em jogo no ato de conhecer marca certamente o limite do méto-

do”.272

Já de antemão, também, o problema da ponderação, para solver os casos di-

fíceis, problemática que insere a teoria alexyana dentre as posturas positivistas, pelo

fato de apostar na discricionariedade judicial para tal tarefa, permitindo qualquer tipo

de argumentação possível para justificar escolha subjetiva do intérprete, o que não

se trata de fundamentar, ao menos, nos moldes em que apresentada a fundamenta-

ção democrática.

Segundo Streck,

É problemático, assim, estabelecer standards conceituais “aptos” à

prática de raciocínios subsuntivo-dedutivos, porque isso elimina as

situações concretas, que passam, desse modo, a ser “abarcadas”

pelos referidos conceitos. Ou seja, uma vez “eliminada/abstraída” a

situação concreta, tem-se o terreno fértil para o exercício daquilo que

é o cerne do positivismo: a discricionariedade interpretativa e a

consequente multiplicidade de respostas273.

Resgatando a teoria alexyana, em todas as formas de argumentação jurídica,

há um espaço para o debate da dogmática e dos precedentes, que norteia-se por

critérios de ponderação. O efeito, segundo o próprio Alexy, é o deslocamento parcial

ou total da argumentação jurídica para a argumentação prática, sendo esse proces-

so racional e, portanto, representando a argumentação prática geral fundamento da

argumentação jurídica274.

Alexy legitima as “formas especiais da argumentação jurídica”, como o critério

de precedência que perfaz a sua ponderação, acusando “a necessidade do discurso

jurídico em virtude da natureza do discurso prático”. Noutras palavras, afirma que as

incertezas dos enunciados legislativos – e aí cita: a vagueza da linguagem; a possi-

bilidade de conflitos normativos; a possibilidade de casos que exigem uma regulação

jurídica cuja resposta não esteja na lei; a possibilidade de uma decisão contra-legem                                                                                                                          272 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003, p. 631. 273 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 240.  274 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 273-274.

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–, que se produzem através da argumentação prática geral, só podem ser preenchi-

dos com a institucionalização de formas e regras especiais de argumentação275.

Aí é o ponto da discricionariedade judicial cujos entraves acima já foram apre-

sentados por conta das demais posturas positivistas e, inclusive, como pressuposto

de partida da Crítica Hermenêutica do Direito sobre a qual se funda o problema cen-

tral dessa Dissertação. Alexy, como Kelsen e Hart, em suas respectivas teorias, res-

gatam a discricionariedade judicial para responder os casos difíceis. Os dualismos

característicos das metafísicas objetivista e subjetivista não são superados, e o para-

digma epistemológico da filosofia da consciência, no paradigma da intersubjetivida-

de, segue permeando o ato de julgar. Mais outra vez, é preciso enfatizar: como se

decidir fosse igual a escolher e como se primeiro se decidisse para depois encontrar

as razões racionais à justificação da escolha.

Assim sendo, na linha das construções críticas à argumentação alexyana que

foram se desenvolvendo no contexto deste Subcapítulo, flagram-se três problemas

que colocam em xeque a decisão judicial no Estado Democrático de Direito: o proce-

dimentalismo, para o qual se remete a alguns esclarecimentos e distinções lançados

no Primeiro Capítulo, mas de cujo problema, para os fins do estudo, está na aposta

da interpretação como método, cindida, conforme exibição acima; na discricionarie-

dade judicial, resgatada da alçada política, para responder as insuficiências do direi-

to, mantendo a interpretação, portanto, no voluntarismo kelseniano; e numa pretensa

correção do Direito pela moral.

O resultado da “decisão judicial” fruto da argumentação alexyana, sobretudo,

quando pressupõe o seu “método” da ponderação, se estreita à concepção transves-

tida de decisão, ou seja, à escolha subjetiva axiológica do intérprete.

Segundo o referencial streckiano,

[...] algumas teorias procedurais-argumentativas não levam em conta

a relevante circunstância de que, antes de explicação causal [...], há

algo mais originário e que é condição de possibilidade de qualquer

explicação causal. Trata-se de um acontecer, que se dá no âmbito da

pré-compreensão, da antecipação de sentido, onde o horizonte de                                                                                                                          275 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 275.

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sentido (pré-juízos) limita o processo de atribuição de sentido. E,

veja-se: essa pré-compreensão (Vorverständnis) não é sinônimo de

“visão de mundo”, de “ideologia”, “subjetividade” etc., como

equivocadamente alguns filósofos contemporâneos, ao pretenderem

agregar alguma “pitada hermenêutica” às suas posturas ainda reféns

do esquema sujeito-objeto. A pré-compreensão constitui aquilo que

Schnädelbach chama de “razão hermenêutica”. Trata-se de um

existencial, sobre o qual não temos domínio (e isso especialmente os

adeptos das teorias argumentativas não conseguem entender)276.

Com efeito, a ponderação representa um mecanismo exterior pelo qual se en-

cobre a verdadeira interpretação (ou estrutura da compreensão). Por ela, encobre-se

a questão de que não existe semântica perfeita e de que não é possível a superposi-

ção de significados. Não há semântica perfeita porque não existe a possibilidade de

se extrair, analiticamente, de enunciados qualquer sentido; nos enunciados é preciso

um a priori para extrair sentidos. Assim é que o remédio contra a ponderação é o re-

médio contra um mecanismo de encobrimento de um raciocínio que se faz incomple-

to, porque é sempre o equívoco de duas situações que se decidem por ela, o que se

retoma ao método.

A herança kelseniana do decisionismo não foi superada até hoje e a discricio-

nariedade hartiana foi, de algum modo, reapropriada pelas teorias argumentativas,

porém sob o manto de uma racionalidade argumentativa com a pretensão de dar so-

lução aos casos difíceis de uma pós-metódica277.

Em encerramento, a distinção que se coloca entre as teorias de cariz proce-

dural-argumentativo e as hermenêuticas-ontológicas, das quais exsurge a decisão

democrática, está em que, enquanto as primeiras estabelecem os princípios como

mandamentos de otimização, promovendo, assim, abertura interpretativa e o favore-

cimento do sujeito solipisita; as últimas partem da ideia de que os princípios introdu-

zem o mundo prático no Direito e, portanto, fecham a interpretação, diminuindo as

margens de discricionariedade. A hermenêutica salta na frente, antes, para dizer que

são incindíveis os atos de interpretar e aplicar; e, depois, para demonstrar que não

                                                                                                                         276 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 239. 277 Ibidem, p. 243.  

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há diferença estrutural entre hard cases e easy cases, conforme visto por ocasião da

crítica à teoria hartiana.

Ao fim e ao cabo, as teorias argumentativas, em especial, a alexyana, não

conseguiram superar o pensamento metafísico.

2.3. “DECISÃO JUDICIAL” E PRAGMATISMO

Examinadas as propostas de cunho positivistas, tanto com Kelsen, Hart como

pela argumentação alexyana que se diz “pós-positivista”, para a decisão judicial e a

interpretação do Direito, e observando o quanto não respondem à fundamentação

democrática e o seu complexo decisional de interpretação produtiva. Vislumbrado,

outrossim, a estreita característica de suas respostas à escolha, onde radica o para-

digma epistemológico da filosofia da consciência, não ultrapassando o voluntarismo

da alçada da vontade do poder, tudo por que, de uma forma ou de outra, apostam

na discricionariedade judicial para resolver os casos difíceis. Parte-se, agora, ao fe-

nômeno do pragmatismo cuja influência decorre, especialmente, da cultura anglo-

americana, mas que deita as suas raízes nos movimentos europeus que pregavam a

livre-interpretação-criação do Direito.

2.3.1 JURISPRUDÊNCIA PRAGMÁTICA, JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES,

MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE; E SOCIOLOGIA DO DIREITO: “PANO DE

FUNDO” DE CONSTRUÇÕES PRAGMATISTAS

As mudanças nas relações sociais e econômicas na sociedade industrial

sempre impuseram um crescente número de novas questões à legislação e à prática

jurídica.

A partir de 1848, com os ideais políticos da Revolução Francesa, emergia o

reconhecimento de uma consolidação no plano do Direito, que fizesse abarcar estas

diretrizes, em contestação às forças conservadoras. Tal processo foi muito tímido,

sobretudo, no Direito privado, sendo abarcada, só no final do século, no Direito

alemão, a ideia da função social deste Direito, a partir de quando passam a aflorar

novas construções jurídicas, a exemplo, da teoria sobre o abuso de direito, a

organização de “restrições sociais” sobre a propriedade e os deveres de proteção278.

                                                                                                                         278 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 56-57.

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131

O mérito inicial destas observações coube à Rudolf von Jhering, tendo perce-

bido, antes da maioria dos seus colegas, as insuficiências da pandectística contem-

porânea, chamando a atenção para os problemas do seu tempo. Todavia, o seu

equívoco consistiu, segundo Larenz, em ter mantido a sua crítica, direcionando a

sua, à época, nova fundamentação justeorética, num terreno inadequado para isso:

do positivismo sociológico279.

É importante mencionar a sátira Im juristischen Begriffshimmel (No céu dos

conceitos jurídicos) que restou publicada, em 1884, cuja autoria se atribui a Jhering,

sob o título Scherz und Ernst in der Jurisprudenz (O que é sério e não sério na

Jurisprudência). A partir daí já se tem “uma caricatura da construção jurídica” que

Jhering tanto prezava e cujos resultados já se anunciava280.

As ideias de que as fontes dos conceitos jurídicos romanos tem de se pautar

em razões psicológicas e práticas, éticas e históricas e de que a dialética jurídica

teria se determinado pela adequação prática do resultado, adotados por Jhering,

contemplam um início para a jurisprudência pragmática, que mais se identifica com

um juízo valorativo, do que com um conhecimento profundo do Direito. O problema,

destaca Larez, “está em saber-se em que consiste esse valor [....]. Na adequação

dos resultados às exigências do comércio jurídico, às circunstâncias sociais concre-

tas, ou ao sentimento jurídico?” 281.

Disso surgiu a obra Der Zweck im Recht (O fim no Direito), em 1877, a qual

trazia a ideia de que todo o Direito se prende a fins práticos das proposições

jurídicas singulares. A grande questão é que esses fins obedecem à vontade de um

sujeito, que Jhering vai dizer ser a sociedade. Portanto, a conclusão do autor de que

“todas as proposições jurídicas têm por fim a segurança das condições para existên-

cia da sociedade”282.

Portanto, foi a partir de Jhering que se operou o deslocamento do eixo do pro-

blema do Legislador, como pessoa, para a sociedade, embora ainda permanecesse

                                                                                                                         279 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 57. 280 Ibidem, p. 57. 281 Ibidem, p. 59. 282 JHERING, Rudolf von. apud LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 57.

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132

preso ao positivismo-legalista. O Direito é norma coercitiva do Estado posta a ser-

viço de um fim social.

Foi, conforme Larenz, “o primeiro dos pensadores modernos que relativiza por

completo as pautas do direito”283. A questão é que a reconstrução a que propõe

seguiu enraizada no utilitarismo social, ou seja, naquilo que representa o mais útil à

sociedade em cada época, o que acaba por negar o valor específico do Direito, pas-

sando a imperar a dinâmica do poder, ou seja, do interesse dominante em determi-

nado período, sendo o jurista mero técnico do exercício do poder.

Nada obstante, não se pode negar que a função social é contributo a que se

dedica a esta Escola. Todavia, o problema é que, na jurisprudência pragmática, des-

preocupada com o sentido do Direito hermeneuticamente desvelado, a partir da

normatividade constitucional, sempre acaba a discussão na ponderação rasa de inte

resses, solvido mais pela subjetividade do intérprete do que por qualquer racionali-

dade, no processo de decisão.

A Jurisprudência pragmática de Jhering incentivou a criação da denominada

Jurisprudência dos interesses, da qual são referencias Philipp Heck, Heinrich Stoll e

Rudolf Müller-Erzbach. Saindo da subsunção lógica dos conceito jurídicos

(Jurisprudência dos conceitos), a Jurisprudência dos interesses vai defender o

primado da indagação e valoração da vida, de modo que o escopo da jurisdição é a

satisfação das necessidades da vida, das apetências e tendências apetitivas, que

nada mais são do que os interesses presentes na comunidade jurídica284.

Nessa medida, a Jurisprudência dos interesses se resume a tutela dos

interesses. Para tanto, em primeira mão, requer o conhecimento histórico dos

interesses reais que motivaram o Legislador a tutelá-los na regra legal, o que deve

ser tomado em conta para decisão. O cerne da interpretação se desloca da vontade

psicológica do Legislador para os motivos e causas – interesses – que o motivaram

a legislar.

Com efeito, se evidenciou que essa eleição dos interesses nada mais era do

que um juízo de valoração por parte do Legislador. Assim, a posterior aplicação do

                                                                                                                         283 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 62. 284 Ibidem, p. 63.

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133

Direito, no contexto da Jurisprudência dos interesses, decorreria dum duplo jogo de

interesses: primeiro, do Legislador, que valora o interesse a tutelar; depois, do juiz,

que pondera qual dos interesses lhe parece mais caro, o que faz, de início, resga-

tando a valoração legislativa (do Legislador); e, após, não sendo esta possível, me-

diante sua convicção/valoração pessoal. Nada obstante, sempre no intuito de ampa-

rar supostamente o interesse que melhor atenda os fins.

A Jurisprudência dos interesses teve influência fecunda sobre uma geração

de juristas educada num pensamento formalista e no estrito positivismo-legalista.

Todavia, emerge o problema do voluntarismo, eis que abriu o preenchimento das

lacunas no Direito em harmonia com juízos de valor, seja do Legislador, seja pes-

soal, representando o processo final decisório uma simples ponderação subjetiva-

valorativa, como se o Direito pudesse ser qualificado como investigação de valores.

Tomando por base os processos de decisões, de antes e de hoje, se reconhe-

ce uma peculiaridade que se atribui aos autores da Jurisprudência dos Interesses,

que é precisamente os fins práticos do ato decisional, vindo, de forma progressiva,

cada vez mais abrir-se aos eventos da vida.

Na Europa, ao lado do racionalismo, nos séculos XVIII e XIX, e em sua

oposição, desenvolveu-se a corrente irracionalista, sob a base do voluntarismo.

Seus principais nomes foram Schopenhauer, Nietzsche e Bergson. Na ciência do

Direito, tal corrente inspirou o surgimento do Movimento do Direito Livre cujo marco

inicial se deve a Oskar Bülow, em 1885, pelo texto intitulado Gesetz und Richteramt

(Lei e função judicial).285

O texto pautou-se na ideia central de que a decisão judicial não representaria

apenas a aplicação da norma legal, mas, sobretudo, uma atividade criadora do

Direito. Ao juiz caberia, dentre as diversas significações ocultadas na letra da lei,

escolher a determinação que lhe parecesse ser mais justa. Os critérios da escolha,

se objetivos ou subjetivos, não foram preocupação deste escrito inicial, permitindo a

abertura ao movimento que se designa “Livre”.

A expressão “Teoria do Direito Livre” já é marca que se atribui a Eugen

Ehrlich, em 1903, para quem não há como se anular por completo a individualidade                                                                                                                          285 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 78.

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judicial. Esse tipo de orientação estreita a Teoria Direito Livre ao subjetivismo, que

se trata de referencial de pensamento que adapta a decisão às preferências pesso-

ais do julgador. Portanto, contrariamente a uma solução dedutivamente buscada ou

racionalmente mediada, o que vale é a vontade, o sentimento ou a intuição pes-

soal286.

A formulação mais radical desta corrente doutrinária coube à Hermann

Kantorowicz cujo escrito polêmico veio em 1906 sob título “A luta pela ciência do

direito”, no qual asseverou que, ao lado do direito formal, emanado pelo Legislador,

existe um direito livre, um freies Rech, chegando ao ponto de afirmar que é possível

uma interpretação judicial contra-legem287.

Consolidado, com este escrito, o Movimento do Direito Livre, conhecido por

seus adversários como a “ladainha do direito livre”, entendido como a liberação da

lei e da lógica e como a fábula da soberania do juiz expressada pela sujeição ao

arbítrio e ao humor judicial288.

O ponto é que os partidários desta orientação deixam à disposição do

intérprete a escolha por aquilo que melhor lhe aprouver. O Direito, nesse sentido,

encontra-se na alçada da vontade. A motivação da decisão, por sua vez, se prende

a esta mesma subjetividade, apenas representando o processo de escolha das ra-

zões que permitem justificar uma vontade antecipadamente já presente no “imagi-

nário” do juiz.

A proposta, portanto, do Movimento do Direito Livre é que não é mais a lógica

que conduz a racionalidade da decisão, mas a livre investigação, fundada na vonta-

de, que é o vetor do sentido do Direito. Ao fim e ao cabo, tanto a dedução-lógica,

quanto a vontade, não representam processos de conhecimento, seguindo o proble-

ma da metódica do Direito.

Não é fácil distinguir estas duas correntes doutrinárias. Seus pressupostos

básicos se equiparam na aposta da criação judicial através da crítica ao monopólio

do Estado na produção do direito. A jurisprudência dos interesses é vista como uma

                                                                                                                         286 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997, p. 78. 287  LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 160.  288 Ibidem, p. 160.

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ala mais moderada do Movimento do Direito Livre. Ambas propostas teóricas se

exaurem nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial.

O Movimento do Direito Livre recebeu forte influência do neokantismo, no

sentido de que o juiz executa uma atividade valorativa (talvez, aqui, reafirmando o

entrave da interpretação das correntes mais sociológicas e pragamáticas e a sua co-

relação à interpretação kelseniana, que determina a não superação do modelo posi-

tivista).

Com o advento da socialdemocracia de Weimar, que aceitou os princípios dos

jusliberistas289, o Movimento do Direito Livre venceu. “Das salas do poder os

jusliberistas recomendavam aos juízes interpretar as normas herdadas pelo império,

levando em consideração a nova realidade socialista”290. Porém, o brilho da vitória

foi ofuscado, quando os princípios aceitos politicamente foram ser aplicados pelos

Tribunais. A maioria dos juízes formados na época do império se opuseram ao novo

curso. Na mesma medida, as ideias jusliberistas terminaram por favorecer o desvio

da administração da justiça a serviço do totalitarismo291.

Atingia-se, assim, não o objetivo das correntes jusliberistas mais exarcebado,

a exemplo, da interpretação contra-legem, defendida numa primeira fase do

Movimento do Direito Livre. Todavia, alcançava-se a finalidade do juiz desvinculado

da lei, mas subjugado à ideologia do partido do poder. Racismo e autoritarismo

tornaram-se os eixos do ordenamento jurídico. O racismo culminou com as Leis de

Nüremberg de 1935, instrumento jurídico do Holocausto. O autoritarismo levou a

conceber-se o Estado como regido não pelo direito, mas pelo Führer e por seu

partido único: “para o juiz tais vontades substituíam as leis”. Desapareceu a certeza

do direito292.

A aposta veio na crítica ao modelo positivo, num melhor apego ao jusnatura-

lismo, acreditando na concepção de que existia um direito não escrito superior ao

positivado, no entanto, fulcrado na vontade.

                                                                                                                         289 Nomenclatura adotada por Losano para designar as correntes europeias que se apoiam na sociologia ou na pragmática e que apostam num direito de cunho jurisprudencial, com base na autoridade e criatividade do juiz, em crítica ao monopólio do direito pelo Estado-Legislador. 290 LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 157. 291 Ibidem, p. 157-158. 292 Ibidem, p. 183-190.

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Afirma-se, a partir dos citados referenciais, o primado da vontade, que ocorre

quando a razão é substituída pela vontade, chegando a extremos de alguns juristas

afirmarem que o direito já não seria mais um sistema de normas, mas um conjunto

de sentenças. A decisão do caso concreto já não depende das racionais leis da

lógica, mas da vontade do juiz, a qual segue vias não necessariamente racionais. A

relação entre legislador e juiz resulta não apenas alterada, já que a decisão deste

poderia ser distinta da ratio legislativa, mas invertida, de modo que o juiz poderia

comportar-se como legislador.

Esse respaldo teórico representou uma reviravolta para o mundo europeu

continental, enquanto que essa realidade do judge made law caracterizava o

Common Law. Seu fundamento não era a norma geral e abstrata, mas o precedente

jurisprudencial, a qual se acompanhava uma equity que levava em conta as especifi-

cidades do caso e que variava conforme critérios pessoais do chanceler que era

chamada a aplicá-la.

Nada obstante, todo a alicerce ao primado da vontade e, inclusive, o desen-

volvimento da Sociologia do Direito cuja diretriz inicial parte de Eugen Ehrlich, em

1913, e que marcam linhas de pensamento, sobretudo, dos séculos XVIII, XIX e XX,

fornecem respaldo à construção das correntes pragmáticas – bem assim a própria

jurisprudência atual293 –, em especial, o Movimento do Direito Livre294 e a

jurisprudência dos interesses em relação ao realismo americano de Oliver Wendell

Holmes Júnior295, também inspirando a direção da sua crítica, pelo que se observará

nas linhas a seguir296.

2.3.2 REALISMO JURÍDICO DE OLIVER WENDELL HOLMES JUNIOR

                                                                                                                         293 “Dessa Escola Sociológica do Direito ou jurisprudência dos interesses, vieram os impulsos decisivos para a jurisprudência moderna”. (LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 148). 294 “O Movimento do Direito Livre foi vigoroso sobretudo na Alemanha e na Áustria, mas teve relações com os realistas dos Estados Unidos (Cardozo, Holmes, Pound) e com a Escola Franco-Belga, na qual se distingue François Geny […]”. O Movimento do Direito Livre foi atingido diretamente pela repressão nacional-socialista cuja política estava por aplaudir. Kantorowicz foi afastado da docência e emigrou para os Estado Unidos, quando entrou em contato com o realismo americano, influenciado essa linha de pensamento. (Ibidem, p. 151 e 162). 295 Poderia também dizer o mesmo do realismo escandinavo cuja Escola Uppsala foi fundada por Axel Hägerström (1868-1939), e que prega que o direito não é um conjunto de normas, mas o conjunto de comportamentos práticos e condicionamentos psicológicos que derivam de fatos, mas pelos limites de abordagem desta Dissertação, a preocupação fica com o realismo jurídico americano. 296 Isso não quer levar a identificar o social engeneering norte-americano às correntes jusliberistas europeias.

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Oliver Wendell Holmes Junior é a principal referência do realismo jurídico

norte-americano, tendo levado o pragmatismo jurídico ao seu ápice, como juiz da

Suprema Corte norte-americana, de 1902 a 1932.

Para Godoy297,

É indiscutivelmente o maior nome do pensamento jurídico norte-

americano, ao qual imprimiu percepções e soluções práticas e

pragmáticas, distanciando-se de problemas conceituais e metafísicos

que marcavam (e marcam) o pensamento jurídico europeu298.

Portanto, é o juiz O. W. Holmes que primeiro vai colocar em cheque a relação

tradicional de hierarquia entre regras e decisões, entre a criação e a aplicação do

Direito, definindo, de forma bastante simples, que jurídico são as profecias que

efetivamente tomam os juízes e os tribunais.

A sua trajetória jurídica é marcada por três fases. Uma primeira, com atuação

na advocacia, com pouca influência. Uma segunda, mais dedicada à pesquisa, na

qual escreveu os livros The Common Law e The Path of the Law, onde constam as

bases do realismo jurídico, que há quem prefira, como Posner, chamar simples-

mente de pragmatismo299.

Na essência do realismo jurídico, portanto, incitado por estas obras de

Holmes, está a interpretação do direito à vista de opções que possibilitem a

maximização da riqueza, daí é que o principal expoente do pragmatismo – e esta

linha de pensamento – vem a influenciar outro fenômeno jurídico que é o do law and

economics (ou direito e economia).

A proposta fundamental de Holmes caminha no sentido de que conhece o

Direito quem sabe de antemão como os juízes vão julgar. Logo, a previsibilidade é

pressuposto direto da sua construção teórica. Em razão disso, assevera que a                                                                                                                          297 Mesma posição assumida por Richard Posner, na introdução à obra The Essential Holmes, publicada pela Universidade de Chicago. Disponível em: <http://thehangedman.com/teaching-files/pragmatism/posner-holmes.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2015. 298 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O realism jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr. Brasília a. 43 n. 171. Jul./set. 2006. Disponível em: <www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/92825/Godoy%20Arnaldo.pdf?sequence=1>. Acesso em: 25 de ago. 2015. 299 HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, xi. Disponível em: <http://thehangedman.com/teaching-files/pragmatism/posner-holmes.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2015.

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“advocacia” – para nós, a prática jurídica – não passaria de um ofício prático como

qualquer outro, sem qualquer epistemologia, problematizações metafísicas, cogita-

ções transcendentes, lógica binária ou conjuntos aporéticos300.

Holmes também rejeita a lógica e a história, na medida em que, para ele, vêm

a fornecer meros disfarces retóricos às decisões jurídicas. Insinua que um bom juiz é

aquele que julga de acordo com os padrões médios da sociedade em que se vive, e

não aquele que reproduz precedentes judiciais.

O resgate à historicidade que o autor em questão contesta tem em vista que

os precedentes teriam levado em conta o direito disponível à sua época, a partir do

ponto de vista deste período em que o Direito foi aplicado, o que poderia não

corresponder a exegese do Direito atual.

Na última fase, Holmes já se encontra exercendo a magistratura nas Cortes

Supremas, primeiro, em Massachusetts e, depois, em Washington, redigindo seus

votos com espantosa velocidade e precisão, preferindo redação menos formal sob a

escrita de especialistas, como também dando preferência aos discursos sustentados

oralmente pelos profissionais do Direito ao invés das razões escritas.

Holmes criou e desenvolveu a teoria moderna do federalismo, se afastando

de ideias formalistas que fracionavam o modelo em feições verticais e horizontais.

Segundo Godoy, Holmes percebia que o federalismo deveria ser convergente,

prospectivo e que o regime que alicerça o pacto federativo “centra-se menos na

repartição convencional de competências abstratas e mais em engenharias

constitucionais prenhes de criatividade, na mira do bem comum”  301.

Holmes deste período ficou conhecido como o prolator de votos vencidos, os

quais, com o passar do tempo, foram ganhando força na jurisprudência

estadunidense. Em carta endereçada a Harnold Laski, todavia, Holmes dizia não

gostar da forma como era chamado, esclarecendo que, ao julgar, estaria manifestan-

do suas expressões jurídicas, e não lutando numa rinha.

                                                                                                                         300 HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, xi. Disponível em: <http://thehangedman.com/teaching-files/pragmatism/posner-holmes.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2015. 301 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O realismo jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr. Brasília a. 43 n. 171. Jul./set. 2006. Disponível em: <www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/92825/Godoy%20Arnaldo.pdf?sequence=1>. Acesso em: 25 de ago. 2015.

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É, no mais famoso voto vencido de Holmes, exarado no caso Lochner v. New

York302, que deixa transplantar, sem sombra de dúvidas, que são as suas convicções

pessoais que conduzem à decisão. Chega ao ponto de afirmar que sente muito em

não poder concordar com o julgado que se proferia, mas que a sua obrigação –

pessoal – seria refutá-lo. Era o caso da limitação de horas da jornada diária e

semanal de padeiros, no qual foi reconhecida a liberdade de ajustar esse limite,

considerando invasiva a interferência estatal neste mister.

Nesse caminho, Holmes vai dizer:

A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As

necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e

políticas que prevalecem, as instituições das políticas públicas, claras

ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os

juízes julgam, tem importância muito maior do que silogismos na

determinação das regras pelas quais os homens devem ser

governados303.

Holmes é considerado um opositor dos padrões tradicionais a que estava

assentado o pensamento jurídico de sua época, liderando revolta contra o forma-

lismo jurídico decorrente do modelo positivista-legalista que imperava. Foi o grande

nome do pragmatismo, que acabou dividido em duas correntes: a da teoria da

ferradura, que impulsionou o movimento law and economics; e a da critical legal

                                                                                                                         302 Lochner v. New York, em 1905, foi um marco para a Suprema Corte Norte Americana, inaugurando inclusive a chamada era Lochner. A decisão judicial determinou que a liberdade de contratar era ínsita a cláusula do devido processo legal, prevista na Quarta Emenda da Constituição Americana. A Suprema Corte, cujo voto do Juiz Holmes restou vencido, conjutamente com outros dissidentes, entendeu que seria interferência excessive, desnescessária e arbitrária do Estado do direito do indivíduo contratar, de modo que a quantidade de horas do trabalho dos padeiros não poderia ser limitada, por força do Estado. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Lochner_v._New_York>. Acesso em: 26 de ago. 2015. 303 Texto inglês: “The life of the law has not been logic: it has been experience. The felt necessities of the time, the prevalent moral and political theories, intuitions of public policy, avowed or unconscious, even the prejudices which judges share with their fellow-men, have had a good deal more to do than the syllogism in determining the rules by which men should be governed”. HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Common Law. Editado por Paulo J. S. Pereira e Diego M. Beltran. Toronto: University of Tornoto Law School Typographical Society, 2011, p. 5. (Disponível em: <http://www.general-intelligence.com/library/commonlaw.pdf>. Acesso em 26 de ago. 2015).

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studies, a qual se vincula suas ideias e que parte do entendimento de que o juiz

julga mais ou menos de acordo com as preferencia e os preconceitos pessoais304.

Para Holmes, o Direito não bastava de um corpo de crenças triunfantes na

batalha das ideias, traduzidas em ação. Daí a conhecida passagem na qual frisa que

o Direito não é nada mais, nem pretende ser, que as profecias que os juízes e as

cortes fazem e decidem.

Bem se vê, até aqui, várias dificuldades apresentadas pela proposta

pragmática, em especial, traduzida no realismo jurídico de Holmes, sobretudo,

quando colocada em debate com a fundamentação construída no Primeiro Capítulo

e que se resolve numa decisão propriamente dita, e não numa escolha subjetiva do

intérprete, conceitos dissecados no Subcapítulo anterior.

Assim, mesmo por aqui, já se percebe o problema da sua proposta teórica da

decisão, quando insiste na criatividade judicial, quando nega a relevância da

historicidade à aplicação do Direito, bem como quando coloca o Direito a serviço de

supostas diretrizes políticas, sociais e econômicas, que reputa à consciência do

julgador eleger, ou seja, quando aplaude o já discutido solipsismo judicial.

Não precisaria nem estar expresso – o que, de fato, vem aparecer de forma

clara na introdução de Posner à obra The Essential Holmes –, que se permitiria

deduzir que, para Holmes, os juízes primeiro decidem; e depois encontram a razão e

a justificativa para o julgamento feito e para a decisão tomada305.

Holmes ainda pretendeu fazer da sua opção teórica pragmática uma proposta

filosófica. Assim dizia, também, que, na verdade, a tomada de posição exige sempre

um sopesamento entre os objetivos das leis, os meios que se tem para alcançá-los e

os custos que isso envolve, o que se faz mediante a comparação entre vantagens e

desvantagens da opção. Estes indicativos permitem ao intérprete, segundo o autor,

saber bem o que se escolhe.

                                                                                                                         304 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O realismo jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr. Brasília a. 43 n. 171. Jul./set. 2006. Disponível em: <www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/92825/Godoy%20Arnaldo.pdf?sequence=1>. Acesso em: 25 de ago. 2015. 305 HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, xiii. Disponível em: <http://thehangedman.com/teaching-files/pragmatism/posner-holmes.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2015.

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2.3.3 CRÍTICAS À “DECISÃO JUDICIAL” PRAGMATISTA

Até aqui, sobretudo, em relação à discussão travada neste tópico, se procu-

rou assentar o pragmatismo, dando suas bases referenciais e tratando do seu estu-

do, a partir da perspectiva do seu principal expoente. Neste momento, a condução

do trabalho passa à crítica à proposta teorética da decisão, levando em conta estes

antecedentes que formaram a respectiva matriz pragmática.

Segundo Dworkin, enquanto concepção de direito, o pragmatismo não

responde qual, dentre as diversas opções que representam uma boa comunidade,

seria a melhor para o futuro. Estimula que os juízes decidam conforme os seus

pontos de vista, pressupondo que esta prática, ao invés da coerência com outras

decisões já tomadas por outros juízes ou legislatura, servirá melhor à comunidade,

aproximando-a daquilo que se entende por uma sociedade imparcial, justa e feliz306.

O pragmatismo é uma concepção cética do direito, porque rejeita a ideia de

pretensões juridicamente tuteladas, não estratégicas. Parte do princípio de que, para

decidirem, os juízes podem ser valer de qualquer método que reproduza o melhor

para a comunidade futura. Os juízes pragmáticos possuem, portanto, liberdade

sobre qual teoria responde melhor o bem da comunidade, de modo que uns vão se

inclinar para o utilitarismo; outros para análise econômica do direito; outros ainda

poderiam escolher o bem da comunidade, a partir da qualidade de vida, etc. O

critério está na subjetividade.

Alguns dos seus defensores, simploriamente, asseveram que a comunidade

delegou aos juízes a tarefa de julgar os processos da maneira que, no seu ver,

melhor sirva aos anseios de todos, lhe investindo poderes para inventar “estratégias”

ou “teorias úteis” que sejam necessárias para o mister. Todavia, segundo Dworkin:

não existe [...] uma convicção que permita aos juízes adaptar seus

pontos de vista sobre os direitos das partes a razões puramente

estratégicas. [...] a maioria das pessoas que pensam que os juízes

agem desse modo são usurpadores307.

                                                                                                                         306 Dworkin, Ronald. O império do direito. trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 186. 307 Ibidem, p. 196.

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Portanto, a proposta pragmática reside na falsa ideia de que os juízes estão

imiscuídos na obrigação de sempre fazer o melhor possível para o futuro, desobri-

gados que estão do respeito a qualquer coerência com aquilo que já foi feito por

outras autoridades públicas, também, sob fundamento no bem comum. Falsa ideia,

porque, justamente, resgata a perspectiva eminentemente retórica, incentivada por

Holmes e acima sinalada, de que o Direito, como Teoria do Direito, não existe; ele é

aquilo que se espera que os juízes digam que é.

Pelo viés pragmático, portanto, o Direito deixa de ser tanto um “dever-ser”, ou

seja, um conjunto de regras que orientam o agir, representando um fenômeno

estritamente fático e prático, formado por comportamentos de autoridades judiciais:

[...] mientras que el pensamiento jurídico tradicional coloca las reglas

en el centro del sistema y cree poder deducir mecanicámente las

decisiones particulares, Holmes y el movimento realista colocan las

decisiones judiciales en el corazón del sistema. Las reglas generales

y normativas son configuradas con el rango de papper rules [...],

simples posibilidades jurídicas, correspondendo a los jueces darles

consistencia en sus decisiones particulares – real rules [...]308.

Para o pragmatismo, de cujo realismo norte-americano tem procedência,

portanto, o que interessa é a efetividade, sendo esta a condição necessária e

suficiente para a validade do Direito. A legalidade da regra e, a fortiori, sua

legitimidade não são tomadas em consideração. O Direito se reduz ao feito e a

indiscutível materialidade da decisão. Nada obstante, a ideia de validade e com ela a

de normatividade perdem pertinência.

Nesse sentido, Ost pontua que se assiste, nas correntes pragmatistas, não

apenas uma atomização do jurídico, disperso em uma multiplicidade de decisões,

mas, fundamental e precisamente, “a una disolución de lo normativo que se agota en

una colección dispersa de manifestaciones esporádicas de voluntad” 309.

Por esta mesma vertente, Dworkin afirma que o fato de o pragmatismo rejeitar

as pretensões jurídicas tuteladas não é, por si só, o único argumento contrário a sua

                                                                                                                         308 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. Ano 4. n. 8, 2007, p. 101-130, p. 110. 309 Ibidem, p. 111.

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143

proposta à decisão judicial, senão que é evidente que essa proteção jurídica não

seja atraente, nem mesmo sensata, e sim tola310.

Assim defende, resgatando a dicotomia que já travou com Hebert Hart e que

acima se fez menção, a respeito dos hard cases. Os pragmáticos não teriam dificul-

dades quando as leis são claras ou os precedentes bem definidos (easy cases).

Todavia, quando uma lei for velha ou ultrapassada, ou, por exemplo, quando um

conjunto de precedentes for considerado injusto ou ineficiente (hard cases), se

perdem em face de juízos de valor, ignorando a importância da coerência de princí-

pios311.

Demais disso, não é difícil perceber que os pragmáticos sucumbem no que

pertine à resposta correta, nos casos difíceis. Cada juiz pragmático, à vista da sua

liberdade na eleição da definição do bem comum, e da negação à integridade e a

coerência do Direito, terá a sua maneira de emitir juízos sobre questões polêmicas, a

exemplo, da moral política, proferindo diferentes decisões. A margem de erro, diante

de múltiplas respostas, é evidente. Todavia, os pragmáticos preferem este risco à

resposta correta; preferem afastar a suposta decisão ineficiente ao invés de buscar a

resposta correta; ao fim e ao cabo, se satisfazem com o sopesamento de interesses,

ao invés, da fundamentação construída alhures.

Resgatando a crítica de Dworkin ao pragmatismo, esta doutrina – nos moldes

como já foi apresentada a sua proposta, como referencial da Crítica Hermenêutica

do Direito, utilizada para a construção da fundamentação que se entende adequada,

no Estado Democrático de Direito – vai defender que é a partir das chamadas

virtudes políticas que se alcança o direito desprovido de qualquer conteúdo “estraté-

gico”. As virtudes que elenca são a equidade, a justiça e o devido processo adjetivo,

aos quais inclui, evoluindo sobre o clichê que diz que os casos semelhantes devem

ser tratados de forma parecida, a necessidade da moralidade política, que leva o

nome de virtude da integridade. Noutras palavras, quando exigimos do Estado que

                                                                                                                         310 Dworkin, Ronald. O império do direito. trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 197. 311 Ibidem, p. 197.

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aja de acordo com um conjunto único e coerente de princípios, a integridade torna-

se um ideal político312.

Tal virtude da integridade, por sua vez, se subdivide em dois princípios mais

práticos, como visto acima, da integridade na legislação e da integridade no julga-

mento, os quais respondem porque há de se levar à sério a historicidade do direito,

que é descartada pelo pragmatismo. Explicam também

por que os juízes devem conceber o corpo do direito que

administram como um todo, e não como uma série de decisões

distintas que eles são livres para tomar ou emendar um por uma,

com nada além de um interesse estratégico pelo restante313.

Chega-se, portanto, a conclusão de que o pragmatismo não consegue tam-

bém, assim como o positivismo, inclusive, latente em propostas neoconstitucionalis-

tas ou que se digam “pós-positivistas”, escapar do voluntarismo, resgatando sempre

o dualismo do esquema sujeito-objeto, rechaçado pela viragem linguística e o rompi-

mento que esta produz nas duas metafísicas, determinando que o sentido das

coisas está na linguagem, no “ser-aí-no-mundo”, na tradição hermenêutica, na

intersubjetividade, e não no sujeito solipsista que atribui sentido ao texto: “[...] es en

la teoría del Derecho como circulación del sentido en la que hay que centrarse. Un

sentido sobre el cual nadie, ni el juez ni el legislador, tiene el privilegio”314.

O pragmatismo anda de mãos dadas com o decisionismo, equivalendo a sua

proposta teórica para a decisão judicial, na verdade, a própria escolha subjetiva do

intérprete, o que não se coaduna, mais outra vez, com a fundamentação democrá-

tica abordada e que redunda na decisão própria do paradigma da intersubjetividade:

constitucionalmente adequada.

A partir del momento en que los “sujetos de Derecho” [...]

reconstruyen mentalmente el mensaje que se les dirige y mediatizan

su puesta en práctica con una operación de voluntad [...] el Derecho

se configura como algo necessariamente inacabado, siempre en

                                                                                                                         312 Dworkin, Ronald. O império do direito. trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 200-202. 313 Ibidem, p. 203. 314 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. Ano 4. n. 8, 2007, ISSN 1667-4154, pág. 101-130, p. 115.

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suspenso y siempre relanzado, indefinidamente retomado en la

mediación del cambio315.

Chama atenção o fato de que o principal expoente do pragmatismo, Holmes,

segundo outro seu importante referencial, Posner, em The Essencial Holmes, ter o

indicado como o Nietzsche norte-americano316. Bem se sabe que a tese deste filóso-

fo, relacionada à vontade do poder, registra um marco filosófico da modernidade em

cujo enraizamento se prendem as propostas decisionais ora examinadas.

Pois bem, aí se pode ter mais um indicativo de que a proposta teórica da

decisão levada a efeito pelo pragmatismo, impulsionado por Holmes, seja frágil, não

escapando do mesmo voluntarismo positivista.

De mais a mais, é possível afirmar-se que o jusliberismo, incentivado sob o

rótulo do Movimento do Livre Direito ou da jurisprudência dos interesses do século

passado, segue vivo ainda hoje, sob nomenclaturas diversas317.

A busca de um equilíbrio entre a certeza do Direito e a flexibilização da sua

aplicação será um dos problemas eternos do Direito. Nada obstante, este desafio há

de caminhar em consonância com o regime de Estado que assim levou em conta

todos os citados antecedentes histórico-revolucionários que marcaram o Direito

neste século, qual seja, o Estado Democrático de Direito e o seu paradigma constitu-

cional (ou Constitucionalismo Contemporâneo). Em qualquer caso, afastando-se da

aposta subjetivista-axiológica do intérprete – e da alçada da vontade do poder (da

política judiciária) – o caminho à decisão judicial e a resposta correta no Direito.

 

                                                                                                                         315 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. Ano 4. n. 8, 2007, ISSN 1667-4154, pág. 101-130, p. 117. 316 “I daresay my suggestion, even duly qualified, that Holmes is the American Nietzsche [...]” (HOLMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, xiii. Disponível em: <http://thehangedman.com/teaching-files/pragmatism/posner-holmes.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2015). 317 Conforme Losano, estas correntes européias, sobretudo, o Movimento do Direito Livre e a jurisprudência dos interesses terminaram por institucionalizar o programa do nacional-socialismo alemão. O juiz não estava adstrito ao direito positivo, mas servia de instrumento ao interesse/vontade do Führer. Identifica nas teorias jurídicas deste período três pontos de equivalência: autoritarismo, racismo e neo-hegelianismo. Citando Alexy, enxerga, hoje, no pensamento jurídico, doutrinas que, em que pese não preguem mais o racismo, possuem fortes elementos de autoritarismo e neo-hegelianismo. (LOSANO, Mário G. Sistema e estrutura no direito. vol. 2. trad. Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 203)

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CAPÍTULO 3

OS MODELOS DECISIONAIS POSITIVISTA E PRAGMATISTA NA PRÁTICA JURÍDICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

REVELÂNCIA PRÁTICA DA DISTINÇÃO PROPOSTA  

  O exame proposto se encerra, neste último Capítulo, analisando decisões

judiciais levadas a efeito pelo Supremo Tribunal Federal, aferindo-se, neste plano da

prática, a sua correlação ou identificação ao positivismo ou pragmatismo, e, nessa

exata medida, contrastando o resultado do processo decisional com a distinção fun-

damental, entre decisão democrática e sua confundida versão de escolha, própria de

outro paradigma, que não o intersubjetivo.

Desta feita, passa-se à análise de casos que, reitere-se, pelos limites do estu-

do, se prestam à evidência do problema desta Dissertação, por isso, apenas repre-

sentando exemplos paradigmáticos de como se “decide” (ou decidiu) num ou noutro

caso. Não se tem por escopo responder se o Judiciário brasileiro é positivista, prag-

matista ou se julga de acordo com a blindagem hermenêutica reclamada pela ruptu-

ra paradigmática que tanto se evidenciou neste trabalho. O objetivo deste Capítulo

consiste, portanto, em mostrar, em situações específicas, como se decidiu e se o

processo fundou-se em decisão ou escolha, o que perpassa por admitir sua motiva-

ção sob uma ou outra proposta decisional.

Nada obstante, pelo estado atual da arte, sobretudo, a partir de construções

aprofundadas, por exemplo, de Streck, Trindade e Tassinari318, referenciadas numa

ou outra passagem do texto desta Dissertação, é possível admitir que o que se tem

produzido na jurisprudência brasileira, especialmente, por sua Corte Máxima, se iden

tifica com um “ativismo judicial às avessas”, o que sugere que tudo que se tem feito

neste cenário da prática jurídica é outra coisa que não a fundamentação prestigiada

pelo estudo proposto.

                                                                                                                         318 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da autuação do judiciário. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2013.

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147

Isso não significa, entretanto, que não existam decisões constitucionalmente

adequadas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Elas aparecem em votos prin-

cipais que vêm integrar a ementa do julgado ou em votos dissidentes que também fa

zem parte do acórdão319. Por isso, é importante perceber que o que se analisará

como decisão, na verdade, pela sistemática de julgamento da Corte Suprema de

Justiça brasileira, são os votos dos Ministros que a integram. Com efeito, em cada

julgado do Supremo Tribunal Federal, não haverá, nessa lógica, uma única decisão,

mas tantos votos quantos corresponda o número de Ministros participantes da Ses-

são de julgamento, obedecido o quorum mínimo exigido para sua abertura, previsto

no respectivo Regimento Interno320.

Diante dessa realidade própria do processo decisional, no Supremo Tribunal

Federal, cabe asseverar que o que será analisado aqui, a partir da distinção propôs-

ta, são, na verdade, os votos dos Ministros que perfazem a decisão.

3.1 AS “ESCOLHAS TRÁGICAS” E O MODELO POSITIVISTA

À vista do que foi visto, no mínimo, três formas de positivismo jurídico circun-

dam o pensamento jurídico mesmo na atualidade. Tanto o kelsenianismo, apostando                                                                                                                          319 São exemplos de decisões constitucionalmente adequadas: a Reclamação 10424/SP, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que ficou reconhecida a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.591-1 Distrito Federal. Requerente Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF. Requerido Presidente de República e Congresso Nacional. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 07 de junho de 2006. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266855> Acesso em 20 de setembro de 2015); as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3892/SC e 4270/SC, nas quais se acolheu a inconstitucionalidade da atuação da Ordem dos Advogados do Brasil no lugar da Defensoria Pública, no Estado de Santa Catarina (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.270 Santa Catarina. Requerente Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP e Associação Nacional dos defensores Públicos da União - ANDPU. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 14 de março de 2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2822197>. Acesso em 20 de setembro de 2015); e o voto do Ministro Gilmar Mendes, na presidência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510/DF, em que discutia a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 Distrito Federal. Requerente Procuradoria Geral da República e Congresso Nacional. Relator Ministro Ayres Britto. Brasília, DF, 29 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20ADI%20/%203510>. Acesso em 20 de setembro de 2015). 320 “Art. 2. O Tribunal compõe-se de onze Ministros, tem sede na Capital da República e jurisdição em todo território nacional. Art. 3. São órgãos do Tribunal o Plenário, as Turmas e o Presidente. Art. 4. As Turmas são constituídas de cinco Ministros. Art. 143. O Plenário, que se reúne com a presença minima de seis Ministros, é dirigido pelo Presidente do Tribunal. Parágrafo único. O quorum para votação de matéria constitucional e para a eleição do Presidente e Vice-Presidente, dos membros do Conselho Nacional da Magistratura e do Tribunal Superior Eleitoral é de oito Ministros. Art. 147. As Turmas reúnem-se com a presença de, pelo menos, três Ministros”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Regimento interno: [atualizado até setembro de 2015]. Brasília: STF, 2015).

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na voluntariedade, através do que incentiva o decisionismo, quanto o hartianismo,

também recebendo nova roupagem por propostas argumentativas, como a pondera-

ção alexyana, através dos quais é a discricionariedade o grande canal para resolu-

ção dos problemas jurídicos que não são respondidos pelo modelo subsuntivo-

dedutivo das regras.

Ao fim e ao cabo, o problema do positivismo no pensamento jurídico reside na

voluntariedade ou na subjetividade do intérprete para resolver as insuficiências do di

reito ao que se chama de hard cases. Isso decorre, cristalinamente, como verificado,

da não recepção do direito, em terrae brasilis, da virada ontológica linguística ocorri-

da na filosofia, através do que rompeu-se com os dualismos metafísicos, objetivista

e subjetivista, principalmente, evidenciando o papel da linguagem, não mais como

instrumento que se impõe entre um sujeito e um objeto (ou entre o sentido e texto),

mas como condição de possibilidade, numa relação intersubjetiva, de fazer aparecer

tal sentido nela inserido, propiciando o conhecimento do ente.

Dizendo de outro modo, e comparando a postura positivista, seu problema es-

tá em que, na abertura voluntarista, sob a forma da discricionariedade judicial, pela

qual o sujeito escolhe qual das possibilidades melhor responderia a situação posta,

não escapa do dualismo sujeito-objeto, acabando por privilegiar o plano apofântico

da compreensão, entificando o sentido nele produzido, mediante a repetição daquilo

que Warat designa por senso comum teórico, ou por decidir conforme a consciência

do intérprete.

Temos aí, portanto, nas vestes positivistas corriqueiras do pensamento jurídi-

co, mesmo em tempos de superação paradigmática – intersubjetiva –, o objetivismo

e o subjetivismo. De fundamentação democrática sob tais propostas, nada se vê, e a

decisão judicial e a interpretação do direito se fragilizam, aparecendo aquela primei-

ra sob a sua forma distorcida de escolha.

Dentro dessa discussão, é, no mínimo, instigador o fato de a Corte Máxima de

Justiça brasileira designar certas “decisões” sob a referência de “escolhas trágicas”.

A partir do exame de alguns destes julgados do Supremo Tribunal Federal, se reali-

zará a análise da prática jurídica, para levantar possíveis entrelaçamento entre as

decisões referenciadas com o modelo positivista, nos moldes em que apresentado,

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concluindo a respeito do seu processo decisional entre decisão ou escolha como o

próprio nome sugere.

De tal análise, se pode perceber que, quando o assunto é a chamada “judici-

alização política” – que ocorre quando o Judiciário tem à frente a concretização de

direitos sociais, a partir de julgamentos sobre políticas públicas –, declaradamente, o

Supremo, pelos respectivos Ministros Relatores, inauguram muitos aresto, afirmando

estar-se diante de “escolhas trágicas” ou “escolhas alocativas”.

Primeiramente, para a questão de que se cabe ou não o Judiciário se imiscuir

nesses assuntos, é importante remeter a leitura para a construção desenvolvida no

Primeiro Capítulo, especialmente, com Dworkin, que traça peculiar distinção entre

questão de princípio e política. Fazendo o resgate desta teoria, e respondendo a

questão, a interpretação que se faz é que cabe ao Judiciário o papel de concretizar

os direitos fundamentais, podendo intervir sempre que existir excesso ou insuficiên-

cia no dever de proteção para com tais direitos por parte do legitimado a prestar.

A discussão nesse mister trata-se, portanto, de questão de princípio. Agora, a

política pública em si é mérito administrativo, ou seja, política pura. Daí, porque, se

coloca a expressão “judicialização política” entre aspas, evitando confusão no tocan-

te à matriz teórica que se adota, de acordo com a qual a nomenclatura não parece a

mais adequada.

Voltando aos julgados do Supremo Tribunal Federal sob o rótulo de “escolhas

trágicas”, se observa que a designação é atribuída porque, nos casos de “judicializa-

ção política”, o Judiciário teria de se posicionar diante de um conflito de interesses

entre a satisfação do direito reclamado e o custo de tal implementação. A “decisão”

equivaleria ao sopesamento – para usar a nomenclatura utilizada pela jurisprudência

estudada, a “escolha trágica” ou “alocativa” –, no caso concreto, entre o direito fun-

damental de cunho social e a ideia do mínimo existencial ou da reserva do possível,

construídas em face do custo desses direitos.

O problema central objeto desta pesquisa salta aos olhos, diante de tais julga-

mentos, que, aqui, colocamos em discussão com o positivismo (normativista). São

decisões cuja base é a fundamentação democrática e sua interpretação construtiva/

produtiva? Ou representam – como a designação sugere – escolha, na qual o intér-

prete não consegue se desvincular de sua subjetividade?

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Utilizam-se, para os limitados fins de evidenciação problemática da casuística

prática com a proposta teórica e seu resultado em discussão, três acórdãos da Corte

Suprema, nos quais o debate acima apresentado se insere.

O primeiro foi o proferido por ocasião do pedido de suspensão de liminar n.

47, oriundo do Estado de Pernambuco, o qual foi julgado, pelo Pleno, em março de

2010, tendo relatoria do então Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal,

Gilmar Mendes. A matéria de fundo é a judicialização da saúde, tendo o Ente Esta-

dual pedido para que fosse suspendida a ordem judicial que teria determinado uma

série de diligências ou políticas públicas, como a disposição de médicos de plantão,

para um determinado Hospital, dispondo sobre a responsabilidade solidária dos três

Entes públicos321.

A “decisão” do Tribunal Pleno, por unanimidade, foi no sentido de não suspen

der a ordem, mantendo-a para liminarmente se implantar as políticas públicas, consi-

derando o Relator que, nestes casos, na verdade, não se trata da instituição de políti

cas públicas, mas de garantia do direito contemplado pela Lei Máxima, que, no seu

art. 196, prescreve o direito à saúde como um direito de todos e dever do Estado,

garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

doenças e de outros agravos, regido pelo princípio do acesso universal e igualitário

às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

O Ministro Relator, Gilmar Mendes, asseverou que a problemática da judiciali-

zação do direito à saúde gira em torno da natureza prestacional desse direito e da

necessidade de se compatibilizá-lo com aquilo que se denominou tratar de “mínimo

existencial” e “reserva de possível”. Segundo seu voto – e aqui merece destaque a

lembrança de que o se analisa, para os fins da distinção proposta, são eles: os votos

–, o reconhecimento de que os direitos de caráter social demandam custo fez com

que parte da doutrina passasse a defender que as normas que consagram tais

direitos assumem feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da

formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis.

                                                                                                                         321 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar 47 Pernambuco. Recorrente Estado de Pernambuco. Recorridos União Federal e Município de Petrolínia. Relator Min. Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 17 de mar. de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610254>. Acesso em 28 de jul. 2014.

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A discussão de fundo fez com que se defendesse que a intervenção do Po-

der Judiciário, ante à omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políti-

cas, também poderia violar o princípio da separação dos poderes e o da reserva do

possível.

Colocou o Ministro Relator que essas questões repousam no que se optou

por chamar de “escolhas alocativas”, a depender de critérios de justiça distributiva.

Incumbiria, assim, na sua ótica, ao Poder Judiciário avaliar a política pública eleita, o

número de pessoas atingidas por ela, sua efetividade e eficiência, ou seja, a

“maximização do resultado”322, não ignorando a ponderação entre princípios e diretri-

zes políticas ou entre direitos individuais e o bens coletivos.

De acordo com o voto do Min. Gilmar Mendes,

[...] em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes, para

satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a

formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à

implementação de direitos sociais implicaria, invariavelmente

escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça

distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-

se como típicas opções políticas, as quais pressupõem escolhas

trágicas, pautadas por critérios de macrojustiça323.

A partir destes trechos que integram o inteiro teor do acórdão analisado, se

pode perceber que, se o Supremo vinha no caminho da resposta constitucionalmen-

te adequada quanto à sua intervenção nos limites dos deveres de proteção – e isso

se verifica, inclusive, do resultado da audiência pública realizada no âmbito da celeu-

ma judicial, que teria constatado que as intervenções, na maioria dos casos, não es-

tariam ocorrendo em razão de omissão absoluta em matéria de políticas públicas,

mas em vista de uma necessária determinação para o cumprimento de políticas já

estabelecidas –, ou seja, de modo a se posicionar sobre questões de princípio, bus-

cando a melhor interpretação a partir do sistema de princípios constitucionais, se

                                                                                                                         322 Como se o direito fosse uma espécie de “método” para a produção de resultados artificiais ou como uma ferramenta que estaria a serviço e à disposição dos agentes públicos. 323 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar 47 Pernambuco. Recorrente Estado de Pernambuco. Recorridos União Federal e Município de Petrolínia. Relator Min. Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 17 de mar. de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610254>. Acesso em 28 de jul. 2014.

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152

desvirtuou dessa direção, quando assevera que estaria por fazer uma opção/eleição

política entre dar o que e para quem, mediante uma análise de custo-benefício ou,

se assim se queira, mediante critérios de macrojustiça e que a “pedra filosofal” desta

resposta estaria na ponderação de interesses e valores.

Nesse mesmo sentido, chama atenção trecho do voto do Ministro Celso de

Mello, acerca do tratamento das questões do direito à saúde, como processo de

“ponderação de interesses e valores em conflito, justificando a ‘decisão’ através da

opção, política e discricionária, de um deles, através das denominadas “escolhas

trágicas”324.

Ao que se nota, a questão política e econômica se tornaram o argumento

posterior, para a justificação da eleição desta natureza, ou seja, claro, exercício do

poder discricionário dos juízes e tribunais, para tratar das questões mais complexas

do Direito, no Estado Democrático do Direito.

É importante destacar, na linha do que foi desenvolvido por conta do Primeiro

e Segundo Capítulo desta Dissertação, que não se está, nesta quadra história, discu

tindo a imbricação entre Direito e política. Essa discussão já está inserida no conteú-

do jurídico-constitucional. O que se está a colocar em xeque é a sua utilização, como

espécie de argumento corretivo do Direito, o que fragiliza, na doutrina streckiana, a

autonomia do Direito, através dos seus discursos predadores. Segundo Tassinari, é

por conta dessa utilização do argumento político que se tem confundido os fenôme-

nos do ativismo judicial e da judicialização política325.

Na mesma linha, bem se enquadra a utilização, pelo Ministro Celso Mello, da

cláusula da proibição do retrocesso, através da qual este julgador assevera que não

poderia o Judiciário deixar de satisfazer o direito à saúde, nos moldes reclamados –

se imiscuindo diretamente na política pública por uma análise que reputa-se econô-

mica –, porque isso significaria retroceder à premissa do Estado Democrático de Di-

reito. Ora, a “cláusula do retrocesso”, lançada no voto em questão, diga-se, sem o

acompanhamento de uma cuidadosa blindagem hermenêutica, tão-somente, utiliza-                                                                                                                          324 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar 47 Pernambuco. Recorrente Estado de Pernambuco. Recorridos União Federal e Município de Petrolínia. Relator Min. Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 17 de mar. de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610254>. Acesso em 28 de jul. 2014.  325 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da autuação do judiciário. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 29.

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153

da no escopo do argumento, termina por aquilo que Streck denuncia como standarts

interpretativos, pelos quais se esconde o exercício da discricionariedade judicial.

Também, por esse viés, se afastou a decisão tomada da resposta constitucio-

nalmente adequada, tendo, flagrantemente, sido produzida sob a perspectiva positi-

vista normativista, que aposta na discricionariedade para resolver as questões mais

complicadas do Direito, na atualidade.

Interessante perceber que a construção da tais “escolhas trágicas” ou “alocati-

vas” decorre de doutrina importada da common law326, talvez, também sugerindo mi-

xagem teórica na decisão, chamando atenção possível análise econômica do direito,

em vista do discurso da maximalização dos resultados, através daquilo que se colo-

ca como “macrojustiça”. Porém, aqui, é a ponderação, das teorias argumentativas,

que se faz mais evidente no contexto decisional. Por isso, justificando o estreitamen-

to destas decisões, rotuladas de “escolhas trágicas”, como positivistas.

A esse respeito, revela importante destacar a assunção da argumentação ale-

xyana no julgado, inclusive, com citação do próprio autor da teoria, nos termos do

voto do Min. Gilmar Mendes, onde pontua:

[...] parece sensato concluir que, ao fim e ao cabo, problemas

concretos deverão ser resolvidos levando-se em consideração todas

as perspectivas que a questão dos direitos sociais envolve. Juízos de

ponderação são inevitáveis nesses contexto prenhe de complexas

relações conflituosas entre princípios e diretrizes políticas ou, em

outros termos, entre direitos individuais e bens coletivos327.

Ainda é preciso trazer à discussão a referência equivocada de matizes teóri-

cas em que se alicerçou o voto do Ministro Ayres de Britto, acompanhando a relato-

ria, e o que interessa no tocante à ponderação. O Ministro Ayres de Britto reputa a

Dworkin (conforme o voto “Dorking”) o juízo de ponderação, na linha de mandamen-

                                                                                                                         326 A obra que é sempre feita referência nos julgados que são analisados sob as premissas de escolhas trágicas é: GUIDO, Calabresi e PHILLIP, Bobbitt. Tragic Choices. 1978. Norton e Company. Pelos limites da Dissertação, não se evolui para o exame específico das escolhas trágicas, mas para a sua utilização, como critério de opcão política, portanto, discricionária, por parte do Judiciário, na temática da “judicialização política”. 327  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar 47 Pernambuco. Recorrente Estado de Pernambuco. Recorridos União Federal e Município de Petrolínia. Relator Min. Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 17 de mar. de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610254>. Acesso em 28 de jul. 2014.  

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to de otimização, que é próprio da construção alexyana sobre princípios. Para o pri-

meiro referencial, a integridade à coerência de um sistema de princípios não propõe

a abertura interpretativa sobre a qual se debruçou a exegese da decisão analisada.

Outrossim, exige o fechamento interpretativo, direcionando à melhor luz ou à respos-

ta correta.

Portanto, indiscutivelmente assombrada pelo positivismo normativista, sobre-

tudo, apostando na argumentação jurídica alexyana e a sua ponderação distorcida,

a qual não completa integralmente o processo de compreensão, estabelecendo cris-

talina cisão entre interpretar e aplicar o direito, não respondendo à resposta constitu-

cionalmente adequada para o caso. Mais que isso, representando simples escolha

por parte do Judiciário da via que lhes pareceu valorativa ou subjetivamente melhor

à questão do direito fundamental em discussão. Isso não é decisão democrática.

O segundo acórdão se trata de Agravo Regimental no Recurso Extraordinário

com Agravo n. 745745/AGR/MG, de relatoria do Ministro Celso de Mello, interposto

pelo Município de Belo Horizonte, para atacar decisão proferida em favor do Ministé-

rio Público Estadual, para implantação de políticas públicas, no âmbito da rede muni-

cipal de saúde e assistência à criança e adolescente328.

O voto parte do pressuposto, firmado na Ação Declaratória de Preceito Funda

mental n. 45/DF, na qual o Ministro Relator reconheceu também a necessidade da in

terveção do Judiciário para efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, o

que deve ser feito em atenção aos deveres de proteção, especialmente, na omissão

quanto às prestações positivistas impostas ao Poder Público.

Mais uma vez, até aqui, parecia guiar-se o Ministro Relator no caminho da res

posta constitucionalmente adequada para a matéria:

Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização

concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los

efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de

cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá

em violação negativa do texto constitucional. Desse “non facere” ou                                                                                                                          328 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 745745/AGR/MG, da 2ª Turma. Agravante: Município de Belo Horizonte. Agravado: Ministério Público Estadual de Minas Gerais. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 02 de dezembro de 2014. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7516923 >. Acesso em: 20 mar. 2015.

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“non praestare”, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que

pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial,

quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público329.

No entanto, já começa a sucumbir a esse desiderato quando pretende corrigir

a discricionariedade administrativa omissiva através do processo que chama de “pon

deração de interesses e de valores em conflito”. Salta aos olhos, o problema eviden-

ciado da cisão do processo interpretativo, ganhando preferência suposta “aplicação”

através de ponderações. Ou seja, nítida preocupação com argumentos de valores e

interesses, a posteriori, para justificação de “decisão” anterior.

Ora, assim como o primeiro, é também caso de “judicialização política”, que,

segundo a orientação que vem sendo assumida pelo Supremo Tribunal Federal, es-

taria a pressupor o balanceamento ou a ponderação de interesses: de um lado o di-

reito fundamental social e de outro lado o seu custo. Conforme os fundamentos do

voto do Relator,

“[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde [...] ou

fazer prevalecer [...] um interesse financeiro e secundário do Estado,

entendo [...] que razões de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador,

uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito

indeclinável à vida e à saúde humanas”330.

Na linha do voto, assevera o Relator, acompanhado unanimemente pelos de-

mais Ministros participantes da Sessão de julgamento, que se instaura uma “relação

dilemática”, conduzindo os juízes da Corte Máxima a proferir “decisão” que se proje-

ta no contexto das denominadas “escolhas trágicas”, as quais, na ótica do decisum,

nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal

de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas,

de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos

financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro.

                                                                                                                         329   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 745745/AGR/MG, da 2ª Turma. Agravante: Município de Belo Horizonte. Agravado: Ministério Público Estadual de Minas Gerais. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 02 de dezembro de 2014. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7516923 >. Acesso em: 20 mar. 2015, p. 6. 330 Ibidem.

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Novamente, o voto do Relator reduzido à ponderação de interesses e valores,

permanecendo a fundamentação na vala rasa da argumentação posterior. Isso, ga-

nhando mais força, com a adoção, pelo Ministro Relator, da cláusula da proibição do

retrocesso, com nítida pretensão retórica-corretiva, o que é repelido pelo processo

interpretativo construtivo da compreensão autêntica através do qual se atinge as

respostas corretas no Direito.

As afirmações de ineficiência administrativa, descaso governamental, incapa-

cidade da Administração de gerir seus recursos financeiros, a incompetência na im-

plementação da programação orçamentária em tema de saúde pública, a falta de vi-

são política do administrador sobre o significado social de que se reveste a saúde, a

inoperância funcional dos gestores públicos, não conseguem escapar deste mesmo

plano argumentativo, tão-só, levado em conta para a justificação da opção judicial

eleita. Dito de outro modo, por não chegarem a integrar a construção fenomenoló-

gica da compreensão autêntica, se prestam apenas como standarts interpretativos,

lançados à mão de suposta metódica do Direito, confirmando, em última análise, a

problemática streckiana dos discursos predadores da autonomia do Direito.

Além de se inserir diretamente na discussão proposta, exemplificando caso

prático em que a distinção objetivada se revela, é interessante acusar que o aresto

analisado se direciona também ao dever fundamental de fundamentação das

decisões judiciais, do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. Todavia, não lhe

resguardando a resposta constitucionalmente adequada.

Nada obstante, muito antes de se posicionar em prol da exigência da funda-

mentação democrática, que venha condizer com a resposta correta, deixa claro o en

tendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a “decisão” seja “funda-

mentada”331, o que não quer dizer que precisa ser “correta” – ou, na linha em que de-

senvolvida a temática, constitucionalmente adequada –, na solução das questões de

fato ou de direito da lide. Expressamente: “declinadas no julgado as premissas, cor-

retamente assentadas ou não, mas coerentes com o dispositivo do acórdão, está sa-

tisfeita a exigência constitucional”332.

                                                                                                                         331 Ou “meio” fundamentada”; ou “meramente” fundamentada, conforme o referencial adotado. 332   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 745745/AGR/MG, da 2ª Turma. Agravante: Município de Belo Horizonte. Agravado: Ministério Público

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Bingo! Se dúvidas pudessem surgir – o que não é o caso – sobre a forma que

o Supremo Tribunal Federal tem tratado a “judicialização política” (que vai sempre en

tre aspas porquanto tal nomenclatura parece não ser a mais adequada, sempre dian

te das distinções entre política e direito), nesses casos rotulados de “escolhas trági-

cas”, esse tipo de argumentação rasa de que a fundamentação da decisão consiste

em levantamento das premissas apresentadas, certas ou mesmo equivocadas, dá

cabo de que o processo interpretativo termina mesmo em escolha, despreocupada

com a construção da compreensão autêntica que faz revelar o sentido autêntico do

texto. Parafraseando Streck, o texto não é levado a sério.

A perplexidade não para por aí. No contexto das motivações sobre o que re-

presentaria a exigência da norma inscrita no inciso IX do art. 93 da Constituição Fe-

deral, para a Corte Máxima brasileira, o julgado vai expressar claramente que fica

desautorizada a abordagem hermenêutica, sintetizando a fundamentação nos mol-

des declinados no parágrafo anterior.

Por essas razões, o acórdão analisado não pode ser considerado decisão de-

mocrática, acabando em mera escolha subjetiva e axiológica, conforme deixa assim

evidenciar do que foi visto.

O terceiro acórdão que se traz para exemplificar a discussão da temática fren-

te à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é o do Agravo Regimental no

Recurso Extraordinário com Agravo nº 639337/AgR/SP, de Relatoria do Ministro

Celso de Mello, no qual o Ministério Público de São Paulo saiu vencedor em detri-

mento do Município de São Paulo. No julgado, foi mantida a sentença que condenou

a municipalidade à obrigação de matricular crianças de até 5 (cinco) anos de idade

em unidades de ensino infantil (creches ou pré-escolas) próximas de sua residência

ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária

por criança não atendida333.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Estadual de Minas Gerais. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 02 de dezembro de 2014. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7516923 >. Acesso em: 20 mar. 2015, p. 21. 333 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Ag 639337, da 2ª Turma. Agravante: Município de São Paulo. Agravado: Ministério Público Estadual de São Paulo. Rel.: Min. Celso de Mello. Brasília, 23 ago. de 2011. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428> Acesso 20 mar. 2015.  

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O caso, como os demais, é de “juridicialização política” e, seguindo a linha da

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, leva em conta os recursos públicos, em

situação de conflito, com a execução de políticas públicas definidas no texto consti-

tucional ou com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Carta

Constitucional.

Disso, nos exatos termos do acórdão trazido como paradigma, resultando con

textos de antagonismo que impõem ao Estado o encargo de superá-los mediante

“opções” por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes,

compelindo o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insufi-

ciência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “es-

colhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade

da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existen-

cial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na

própria Lei Fundamental.

Neste acórdão, também o Ministro Celso de Mello coloca a questão da inter-

venção do Judiciário, na discricionariedade administrativa relaciona à temática da im

plementação de políticas públicas, na esfera da deverosidade estatal, a exigir presta

ções positivas, de modo que o não facere configuraria inconstitucionalidade por omis

são. Até aí, tudo bem.

O problema da decisão (voto), quando ela se desnatura para a sua transvesti-

da forma de escolha, aparece ao colocar a teoria dos direitos e deveres fundamen-

tais em cotejo com a teoria dos seus custos destes direitos ou, como vem sendo

importada do Direito alienígena, com a doutrina da “reserva do possível”, acolhida

pelo Supremo Tribunal Federal, na ideia de mínimo existencial, considerando a bali-

sa do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesta guisa de argumentação, o Ministro Relator Celso de Mello assim colo-

ca a questão:

Não se desconhece que a destinação de recursos públicos, sempre

tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito,

quer com a execução de políticas públicas definidas no texto

constitucional, quer, também, com a própria implementação de

direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí

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resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o

encargo de superá-los mediante opções por determinados valores,

em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder

Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência

de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a

verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo

parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em

perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a

conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na

própria Lei Fundamental334.

Transcrevendo citação de Daniel Sarmento, o Ministro Relator aponta que,

diante da relação dilemática instaurada entre a judicialização da educação e o custo

da política pública à satisfação daquele direito social, o Judicário “vê-se forçado a

eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas”, estando a exigir

uma “racionalização” desse processo, através das figuras da reserva do possível e

do mínimo existencial, além da proporcionalidade em sua dupla face, pela proibição

do excesso e da proteção deficiente335.

Tal racionalização perpassaria sob as tais “escolhas trágicas”, em virtude das

quais alguns direitos, interesses e valores seriam priorizados em detrimento de ou-

tros. Ora, essa passagem do voto do Ministro Relator faz flagrar o equívoco que se

vem anunciando. Primeiro, demonstra a aceitação dos princípios como mandamen-

tos de optimização, no contexto da doutrina alexyana, pressupondo uma relação de

precedência, em que um vem a preferir ao outro, de acordo com as circunstâncias fá

ticas e jurídicas que se colocam; depois, vem a pressupor o sopesamento de interes-

ses e de valores, para justificar a opção.

A matriz teórica dworkiana que se adota para o fechamento do processo inter-

pretativo não permite a abertura ao “sopesamento de interesses e de valores”. Ela

guia à melhor luz, através do respeito à integridade com a coerência de um sistema

de princípios que, portanto, relembre-se, não abre a interpretação, mas promove o fe

                                                                                                                         334  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Ag 639337, da 2ª Turma. Agravante: Município de São Paulo. Agravado: Ministério Público Estadual de São Paulo. Rel.: Min. Celso de Mello. Brasília, 23 ago. de 2011. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428> Acesso 20 mar. 2015. p. 22.  335  Ibidem. p. 24.  

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chamento interpretativo na direção da resposta correta. “Sopesamento de interesses

e valores” pressupõe múltiplas respostas, que vão de encontro à decisão construída

sob a base fenomenológica hermenêutica. Outrossim, caracteriza o processo da es-

colha.

Pronto: tudo está valendo de novo. Ou seja, qualquer argumento passa a ser

válido na pretendida correção do Direito, pelo sopesamento de interesses e valores,

sendo a discricionariedade hartinana resgatada para o fechamento da interpretação,

que fica limitada no primeiro plano da produção do sentido, saltando para argumen-

tos fictícios em sua justificativa. Assim, pode-se encaixar a própria proibição do retro-

cesso, de novo, utilizada no voto do Ministro Relator.

Como se disse, os três acórdãos foram apresentados com a finalidade de con

textualizar a discussão travada nesta Dissertação de Mestrado, ou seja, as propos-

tas teoréticas da decisão e seus resultados de decisão ou escolha com a prática jurí-

dica dos Tribunais pátrios. Ao que se vislumbra dessas “decisões” sob rotulagem de

“escolhas trágicas” – tendo sido sua própria designação o que, de início, chamou a

atenção para a analítica –, pseudo-fundamentadas em meta-argumentos de sopesa-

mento, ponderação, eleição, valores, estão assentadas, claramente, no modelo posi-

tivista de produção do direito, por tudo o que foi visto nos Capítulos anteriores e reite

rado nos exames específicos.

Não há uma preocupação, nestes julgados sob “escolhas trágicas”, cujos três

arestos comentados serviram de paradigma, com o texto ou, noutras palavras, com

a normatividade constitucional, traduzida por um processo hermenêutico de ruptura.

Há evidente interpretação incompleta, cindindo o processo compreensivo, de forma

que os argumentos alicerçados para a “decisão” aparecem fragmentados num se-

gundo plano, como que justificando a eleição subjetiva-valorativa adotada conforme

a consciência do julgador. Dizendo de outro modo, a interpretação que embasa ditos

julgados segue amarrada no dualismo metafísico do sujeito que assujeita o objeto.

Evidenciada a repercussão, na prática jurídica, da problemática travada nesta

Dissertação de Mestrado sob a “decisão” cunhada sob a forma positivista, através de

julgados rotulados sob “escolhas trágicas”, a direção dos trabalhos conduz, no Sub-

capítulo seguinte, para os estreitamentos dessa prática às “decisões” pragmatistas.  

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3.2 A “MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL” E O MODELO PRAGMATISTA

Neste tópico, conforme já introduzido, a preocupação é com trazer à evidên-

cia julgados que recebem roupagem da proposta pragmatista, evidenciando, ao fim

e ao cabo, seu resultado como escolha ou decisão, nas situações concretas que

conduzirão o debate.

Sob o pragmatismo, antes de se partir propriamente para a análise dos casos

em que tal modelo se exterioriza nos Tribunais pátrios, é importante registrar sua es-

treita preocupação com o contexto sócio-político atual, autorizando, nas suas diretri-

zes teóricas, que os juízes criem o direito, de modo a fazer tal contextualização práti-

ca, preocupando-se mais com as consequências externas (ou políticas-sociais) dos

atos decisórios, ou seja, partindo sempre de critérios de minimalização dos meios, a

favor da maximização dos resultados, como se a decisão pudesse ser resumida num

consequencialismo da relação de custo e benefício ou meios e fins.

É também relevante perceber que, nos moldes já apresentados, o pragmatis-

mo ignora o plano normativo do “dever-ser”, fulcrado que está em sua origem anglo-

americana (common law),resumindo o direito ao que os juízes e Tribunais dizem ser.

É exemplo, as construções sobre law and economics.

Nessa postura, também o forte enraizando ao subjetivismo do sujeito solipsita

e ainda o problema inarredável dos juízes legisladores, tudo isso a demonstrar a to-

tal dissidência da fundamentação democrática, negando a construção do direito no

Estado Democrático de Direito.

A casuística paradigmática será analisada através de dois julgados do Supre-

mo Tribunal Federal, os quais, em vista do peso das discussões debatidas, faz evi-

denciar as questões aqui pertinentes ao problema da Dissertação quanto à decisão

pragmaticista. A tábua rasa de motivação de ambos se dá sob a justificação de

“mutação constitucional”336.

O primeiro deles trata-se das Arguição de Descumprimento de Preceito Funda

mental (ADPF) n. 132/RJ julgada em conjunto com a ADI n. 4.277/DF, que cuidam

da equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis entre “homem e mul-

                                                                                                                         336 Aqui não se adentrará no que exatamente consiste a teoria alemã que trata da mutação constitucional, apenas se imiscuirá na sua utilização para justificativa da desconsideração do texto constitucional, o que não equivale a mutação, mas rompimento constitucional.

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162

her”, de modo a assistir às primeiras os mesmos direitos estendidos, constitucional-

mente, às últimas337.

A discussão central, portanto, paira sobre a constitucionalidade do art. 1.723

do Código Civil, que reconhece “como entidade familiar a união estável entre homem

e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida

com o objetivo de constituição de família”338. Noutras palavras, sobre a interpretação

do sustentado direito à equiparação, a partir do “conteúdo/carga principiológico da

Constituição”339, especialmente, segundo o acórdão, os princípios da igualdade, li-

berdade, dignidade da pessoa humana, segurança jurídica, razoabilidade e propor-

cionalidade, em cotejo ainda com a disciplina constante do art. 226 e seus parágra-

fos da Constituição Federal340.

Conforme relatado no aresto, a discussão originou-se de Ação de Arguição de

Preceito Fundamental, promovida pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, a

qual foi recebida como Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Presidente, à épo-

ca, do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, determinando o julgamento conjunto com

a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, pela coincidência das matérias, esta

última tendo sido promovida pela Procuradoria-Geral da República com o objetivo de

                                                                                                                         337 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015. 338 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_3/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 04 set. 2015. 339 Expressões do próprio aresto. 340 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /cccvil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.html>. Acesso em: 04 set. 2015).

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que a Corte Suprema declarasse a equiparação mencionada, com eficácia erga om-

nes.

Em decisão proferida em 05 de maio de 2011, os Ministros do Supremo Tribu-

nal Federal julgaram, por unanimidade, procedente estas Ações, com a eficácia pre-

tendida e os efeitos vinculantes, estendendo as mesmas regras e consequências da

união estável heteroafetiva, autorizando ainda aos juízes a quo proferirem decisões

monocráticas a respeito, para as então reconhecidas uniões estáveis homoafetivas,

independentemente da publicação da decisão. A Sessão de julgamento teve a presi-

dência do Ministro Cezar Peluso, sendo interessante colacionar trechos da ementa

do julgado paradigmático da proposta pragmatista, do modo a evidenciar tal estreita-

mento teorético, trazendo elementos à distinção central entre o decidir e o escolher,

no caso apreciado:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUICIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZ ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. [...] 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DA VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PRÉTREA. [...] Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana” [...] Direito à busca da felicidade. [...]. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBSTANTIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. [...] A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita a sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. [...]. Isonomia entre casais heteroafetivos e pares

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honmoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. [...]. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. [...]. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no parágrafo 3 do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. [...]. Não há como se fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. [...]. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”.

  Analisando o julgado paradigmático, inclusive, o que se pode deduzir dos tre-

chos da ementa a que se optou pela transcrição, a celeuma, como se introduziu,

está em dar interpretação conforme à Constituição ao dispositivo civilista que restrin-

ge, nos exatos termos de prescrição constitucional – qual seja, do parágrafo 3, do

art. 226, da Constituição Federal de 1988 – a união estável à entidade familiar forma

da entre homem e mulher, o que inviabiliza a pretendida equiparação aos homoafeti

vos.

Em decisão plenária, acatando o voto do Relator Ministro Ayres de Britto, foi

alcançada a suposta interpretação conforme à Constituição, à evidência de uma sé-

rie de argumentos, por vezes, rotulados como princípios, como, por exemplo, a felici-

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dade; por vezes, embasados em construções teoréticas como da própria moldura de

Kelsen, abrindo a possibilidade de interpretação criativa judicial, na ausência de ex-

pressa previsão legal. Tudo isso de modo a demonstrar o seu afastamento da res-

posta constitucionalmente adequada e o seu estreitamento às construções debati-

das no Segundo Capítulo desta Dissertação.

Ditos argumentos, brevemente apresentados e majoritariamente acolhidos

nos votos dos Ministros que participaram do julgamento, até poderiam conduzir à in-

terpretação de que se trata de decisão final a fim da perspectiva positiva. Todavia, o

estreitamento principal percebido, à vista de cristalina mixagens teóricas, é para a

construção flagrantemente pragmática, não representando, sobretudo, a motivação

exarada no voto do Ministro Relator, que acabou acolhida pelo Supremo Tribunal

Federal em seu Pleno, a fundamentação democrática nos moldes alinhavados no

Primeiro Capítulo.

As contendas trazidas aos palcos do Supremo, na verdade, partem do fato de

que as uniões entre pessoas do mesmo sexo trata-se de uma realidade fática inegá-

vel, decorrente de um processo de liberalização dos costumes, já reconhecida em ou

tros países, e de cuja distinção de tratamento jurídico, quando comparadas as uni-

ões entre pessoas de sexos diferentes, representa um menosprezo à identidade e a

dignidade dos homossexuais. Cuida-se, conforme Streck, Barreto e Oliveira, “da as-

sunção de um sociologismo com roupagens jurídicas, mais do que argumentos que

tratem de valores éticos e sua regulação jurídica”341.

À guisa destas considerações, considerando a perspectiva do Tribunal em dar

suposta “adequação” jurídica a questão de cunho social iminente, no contexto da so-

ciedade atual, em detrimento do processo democrático, é que se fez o estreitamento

à decisão pragmatista, sobretudo, em vista da sua principal discussão em torno dos

juízes legisladores.

Com efeito, o texto constitucional não foi levado à sério. Não se tem como pro

ceder o reconhecimento da equiparação cuja pretensão se dirigia a discussão entre

                                                                                                                         341 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83, p. 80. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015.

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a união estável heteroafetivas e as uniões homoafetivas. Isso por que a Constituição

Federal, como vetor da normatividade que dela se irradia – segundo Streck, Barreto

e Oliveira, “parametricidade constitucional”, que expressa o sentido do limite e o

limite do sentido342 - , diz, expressamente, que união estável consiste na entidade

familiar entre homem e mulher, do que se exclui, por completo, a caracterização de

união estável entre pessoas do mesmo sexto.

A pretendida interpretação “extensiva” da Constituição Federal, relativamente

ao preceito civilista em debate, diante da literalidade do parágrafo terceiro do artigo

226 da Constituição Federal de 1988, que é decalcada naquele primeiro, pelo Poder

Judiciário, transforma o Tribunal com poderes permanentes de alteração da Constitui

ção, dando guarida à caduca “mutação constitucional” (Verfassungswandlung) que

funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de alteração formal da Cons-

tituição (Verfassungsänderung), reservado ao espaço do Poder Constituinte deriva-

do, pela via do processo de emenda constitucional343.

Com efeito, a interpretação conforme a Constituição não modifica o texto da

norma, mas leva em conta, assim recepcionada a viragem ontológica-linguística pelo

direito, a diferença ontológica existente entre eles. Isso a concluir que não há texto

sem norma e nem norma sem texto, dependendo aquela de um processo compreen-

sivo, que trabalhe com toda a historicidade do texto de modo a desvelar seu significa

do mais autêntico: a normatividade ou parametricidade constitucional.

Isso quer dizer, portanto, que é só através desta normatividade ou parametri-

cidade constitucionais, que é desvelado o sentido da norma, e não através de analo-

gias ou outras formas de atribuição de sentido. Mais ainda, a diferença entre texto e

norma não permite se possa atribuir qualquer norma ao texto. Nessa exata medida,

não cabe, ao conferir-se suposta interpretação conforme a Constituição, no caso em

análise, substituir-se o próprio texto da Constituição por outro que o Judiciário enten-

da mais adequado.

                                                                                                                         342 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015. 343 Ibidem, p. 75-83.  

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Propostas como a estabelecida pela decisão em análise, alcança aquilo que

Streck, Barreto e Oliveira chamam de degradação dos pré-compromissos estabeleci-

dos pelo constituinte de 1988, através de uma irresponsável defesa de “bons” ativis-

mos judiciais, para resolver problemas que a realidade imediata apresenta344.

Streck, Barreto e Oliveria, fazendo correlação com o Ulisses da Odisseia de

Homero, que se acorrenta para libertar-se do canto das sereiras, explicam metafori-

camente as Constituições como tais correntes, servindo para que o corpo político es-

tabeleça as suas próprias restrições, para não sucumbir ao despotismo das futuras

maiorias. Assim é que esses autores questionam sobre o tipo de democracia que se

pretende, a partir de decisões como esta. No caso, a intenção foi a melhor, mas o ris

co da abertura à voluntariedade permite que noutros casos também se suponha fa-

zer o bem e, daqui um ponto, o texto constitucional é, por completo, ignorado, dando

ensejo aquela preocupante governança dos juízes, ao arrepio do princípio democrá-

tico345.

Conforme a pena dos autores citados,

Em todos estes casos, o mais correto é dizer que não há como

determinar a “bondade” ou a “maldade” de um determinado ativismo

judicial. Também é mais correto dizer que questões como essa que

estamos analisando não devem ser deixadas para serem resolvidas

pela “vontade do poder” (Wille zur Macht) do Poder Judiciário. Delgar

tais questões ao Judiciário é correr um sério risco: o de fragilizar a

produção democrática do direito, cerne da democracia [...]. Ou

vamos admitir que o direito – produzido democraticamente – possa

vir a ser corrigido por argumentações teleológicas-fáticas-e/ou-

morais?346

Perceba-se o antagonismo que se estabelece: se, por um lado, a questão das

uniões homoafetivas é analisada por um magistrado favorável ao movimento das mi-

norias e da regulamentação de tais relações, sua decisão seria no sentido da proce-

                                                                                                                         344 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015.  345 Ibidem, p. 75-83. 346 Ibidem, p. 77-78.

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dências; se, por outro lado, fosse um magistrado conservador e alheio a “mutação”

dos costumes, julgaria improcedente o pedido. E é justamente isso que é repelido no

Estado Democrático de Direito.

A decisão a ser tomada em casos como o analisado precisa ser levada a ca-

bo no espaço político, e não no jurisdicional, “justamente para evitar que sua resolu-

ção fique à mercê das opiniões pessoais dos ministros da Corte Constitrucional”. Ou

seja,

a decisão deve ser construída no contexto de uma sociedade

dialogal, em que o Poder Judiciário tem sua função que não consiste

em legislar. Em suma, uma questão como essa, justamente pela

importância da qual está revestida, não pode ser resolvida por

determinação de um Tribunal. É necessário que haja uma

determinação mais ampla, que envolva todos os seguimentos da

sociedade, cujo locus adequado encontra-se demarcado nos meios

democráticos de decisão347.

Do modo como o Supremo Tribunal Federal julgou a contenda das uniões ho-

moafetivas, acabou por repristinar tardiamente a malfadada jurisprudência dos valo-

res. Sob o pretexto e a despeito de o texto da Constituição Federal propiciar um teci-

do normativo fechado demais, setores do direito pensam que é preciso abrir tal senti-

do normativo com o uso aleatório e descompromissado dos princípios constitucio-

nais.

São por essas razões que, no Estado Democrático de Direito, mesmo que to-

dos estejam de acordo com uma determinada causa, é preciso esperar o Legislador.

É Dworkin quem ensina que não importa ao direito o que os juízes pensam sobre o

direito, a política ou o futebol; aplicar o direito pressupõe fazer interpretação com ba-

se em argumentos de princípios, e não em argumentos pessoais. Numa democracia,

portanto, não se quer saber o que o juiz pensa sobre determinado fenômeno, o que

se quer saber é como alcançar uma resposta através do direito. E essa, certamente,

não pode ser aquela que o Judiciário diz que é.

                                                                                                                         347 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83, p. 79-80. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015.

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Segundo Streck, Barreto e Oliveira,

Ao permitir decisões desse jaez, estar-se-á incentivando a que o

Judiciário “crie” uma Constituição “paralela” [...], estabelecendo, a

partir da subjetividade dos juízes, aquilo que “indevidamente” – a

critério do intérprete – não constou no pacto constituinte. O

constituinte não resolveu? “Chame-se o Judiciário [...]”. Ou “criemos

um princípio”, que “valerá” mais do que a Constituição...!348

Dizendo de outro modo, não há um lado “b” da Constituição Federal a ser des

coberto axiologicamente, como se debaixo da Constituição existissem valores a se-

rem desvelados pela subjetividade do intérprete. Nesse sentido, a resposta constitu-

cionalmente adequada, para a questão das uniões homoafetivas, está a depender

de alteração legal-constitucional349.

Mais outra vez, é pontual a referencia a Streck, Barreto e Oliveira, ao expres-

sarem que a Constituição (dirigente e compromissária) é o Alfa e o Ômega da ordem

jurídica democrática e que viver em democracia tem seu custo, que é, no mínimo, o

respeito aos pré-compromissos constitucionais, que só podem ser liberados também

por quem a Constituição outoga poder para tanto, ou seja, pelo poder constituinte

derivado. “Se tudo o que não está previsto na Constituição pode ser ‘realizado’ pelo

Poder Judiciário, não precisaríamos sequer ter feito a Constituição: o Judiciário faria

melhor (ou o Ministério Público!)”350.

Dessa forma, sempre lembrando que o processo decisional do Supremo Tri-

bunal Federal se fragmenta em uma série de votos dos Ministros participantes da res

pectiva Sessão de Julgamento, de suma importância, analisar o contexto decisional

levado a efeito pelos julgadores, colocando-os em debate com a distinção central da

presente Dissertação de Mestrado: decisão ou escolha.

                                                                                                                         348 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83, p. 81. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015. 349 Interessante perceber que, na Espanha, por exemplo, o problema foi resolvido mediante a edição de lei. “Na terra de Cervantes, o Poder Judiciário não se sentiu autorizado a “colmatar” a “inconstitucionalidade da Constituição.” (Ibidem, p. 75-83). 350 Ibidem, p. 83.

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Nada obstante, com efeito, diante do resultado final do julgado analisado, pelo

reconhecimento da equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis hetero-

afetivas, aceitando suposta “mutação constitucional” do texto do parágrafo terceiro,

do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, o que ocorreu, no caso em exame,

foi indiscutível pragmatismo, fragilizando a decisão judicial e a produção democrática

do direito, assumindo, cristalinamente, o Poder Judiciário o papel de Legislador,

dando razão a Holmes, para quem o direito é o que os Tribunais dizem. Em última

análise, representando escolha e não decisão.

Chama atenção do acórdão o fato de os Tribunais estaduais pátrios terem si-

do convocados a pronunciar seus entendimentos a respeito da pretendida equipara-

ção e suposta interpretação constitucional da matéria, e apenas os Tribunais estadu-

ais do Distrito Federal e de Santa Catarina, dentre os que assim se manifestaram, te

rem se colocado contra, em que pese com fundamentação que ainda não correspon-

deria à fundamentação democrática desenvolvida no Primeiro Capítulo.

Por outro lado, Tribunais do Acre, Goiás, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e

Paraná, se assumiram favoráveis à equiparação e à procedência da declaração de

inconstitucionalidade do preceito civilista, bem assim da “mutação constitucional” do

referido dispositivo constitucional, tendo inclusive, o Tribunal Gaúcho editado provi-

mento administrativo para determinar aos serviços notariais o registro de documen-

tos relacionados com as uniões em espécie.

À evidência dessas manifestações da jurisprudência pátria, e da constatação,

na linha do que se vem analisando, de que a postura não se tratou de decisão pró-

pria do paradigma constitucional, e sim de escolha valorativa do Judiciário brasileiro,

preocupa muito o cenário da prática jurídica de terrae brasilis, dando sempre dignida

de à distinção que foi proposta na presente Dissertação de Mestrado.

O Ministro Relator Ayres de Britto, no seu extenso voto, parte da premissa de

que há um direito líquido e certo à isonomia entre homem e mulher, o que equivale a

dizer: que não pode haver discriminação pelo fato em si da contraposta conformação

anátomo-fisiológica; que cada um, dentro da sua autonomia privada, pode fazer ou

deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; que não assiste direito às pessoas

heteroafetivas de se contraporem à sua equivalência jurídica perante sujeitos homo-

afetivos, o que existe é absolutamente o contrário, o direito da mulher ao tratamento

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igualitário ao do homem, na mesma medida em que assiste direito aos homoafetivos

a tratamento isonômico ao dos heteroafetivos.

Segundo o Relator, tais considerações representam um saldo normativo na

proibição do preconceito, de modo que o direito à opção sexual seria emanação dire

ta da dignidade da pessoa humana, sendo poderoso fator de afirmação e elevação

pessoal, incrementando a autoestima do sujeito e o alcance da felicidade, tudo isso

elevado a alçada de princípio constitucional implícito da ordem positiva.

Assim assentada a discussão de fundo, traz à baila a questão de se caberia a

distinção no tratamento dado à união estável heteroafetiva, como entidade familiar,

da qual decorrem os efeitos jurídicos relacionados, por exemplo, ao regime de bens,

às regras sucessórias, à disciplina previdenciária, etc., para as uniões homoafetivas,

também constituídas com igual propósito de constituição de família.

Essa complicada questão perpassa, como antecipado, pelo debate da inter-

pretação constitucional do art. 1.723 do Código Civil, o que pressupõe a atenção ao

conteúdo normativo do art. 226, parágrafo terceiro, da Constituição Federal de 1988,

ambos afirmando que união estável consiste, dentre outras características que pode-

riam ser comuns entre ela e a união homoafetiva, na união entre um homem e uma

mulher. E é, nesse ponto, guardada a relevância social de todo o debate construído

como premissa (ou argumento), que foge à decisão do Supremo Tribunal Federal da

resposta constitucionalmente adequada, especialmente, pelos votos dos Ministros jul

gadores que admitiram a mutação constitucional do mencionado parágrafo terceiro,

do art. 226, da Constituição Federal de 1988, em desprestígio do texto vigente.

Para respondê-la, o Ministro Relator diz que é preciso fazer uma interpretação

cuidadosa da cabeça ou do caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, e,

assim, empregar um conceito não-reducionista de entidade familiar, não circunscrita

aos institutos do casamento civil e da união estável heteroafetiva, mas com um senti

do “coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do

ser”351. Noutras palavras, para resolver a quaestio juris envolta da inconstitucionalida

                                                                                                                         351 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015.

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de cuja declaração se pretendeu nas Ações analisadas, entendeu o Ministro Relator

a importância de se considerar a união homoafetiva como entidade familiar.

Foge o voto da relatoria da direção da resposta constitucionalmente adequa-

da. Na pretensa interpretação constitucional do citado preceito civilista, em defesa a

“mutação constitucional”, do parágrafo terceiro do artigo 226 da Constituição Federal

de 1988, afirma o Ministro Relator Ayres de Britto, agasalhando citação de Sérgio da

Silva Mendes, que “não se separe por um parágrafo [...] o que a vida uniu pelo afe-

to”; ou “não se pode fazer rolar a cabeça do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo

terceiro, pois esse tipo acanhado ou reducionista de interpretação jurídica seria o

modo mais eficaz de tornar a Constituição ineficaz”352.

Com tal postura motivacional, acabou por comprometer a decisão, na sua fun-

damentação democrática, culminando o processo interpretativo com escolha subje-

tivista e axiológica, e, mais que isso, com a criação jurisprudencial do Direito, em

total desprestígio do processo democrático de sua produção.

Dizendo de outro modo, para mudar o texto constitucional positivo, o meio cor

reto para tanto, são as emendas constitucionais, a partir da observância de todo o

processo legislativo correspondente, com seu quorum privilegiado de votação. Todo

o cuidado com a pretensa mutação constitucional pela via do Judiciário. Esse último

processo, para ser legítimo, não poderá ignorar o texto constitucional. Outrossim, só

representará a sua essência, quando representar a mudança exigência da normativi-

dade que se extrai da própria Constituição, normatividade esta que, reitere-se, não

exclui o texto, mas o leva em consideração (a sério), pela tradição, a partir da qual

fluirá, na circularidade hermenêutica, a produção do seu sentido mais autêntico em

cuja tal normatividade constitucional se assenta.

                                                                                                                         352 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 653.

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Fora desse processo compreensivo que caracteriza a própria fundamentação

democrática, “mutação constitucional” equivale, parafraseando Streck, a rompimento

constitucional353.

E, por aí, é que se constituiu o voto do Ministro Relator Ayres de Britto, conclu

índo pela declaração de inconstitucionalidade, reconhecendo a equiparação pretendi

da entre as uniões hetero e homoafetivas, para igual proteção jurídica. Logo, o resul-

tado final não equivaleu a decisão democrática, ficando na sua veste de escolha sub

jetiva e axiológica do intérprete, escondida por standards interpretativas, como o su-

posto “princípio” da felicidade agraciado pelo voto, para justificar a eleição valorativa.

As constatações a respeito da estreita vinculação às correntes pragmatistas

da decisão analisada também se extraem, além do rol de metas-regras elencadas

pelo Ministro Relator, também, do voto do Ministro Luiz Fux, para quem “as canetas

dos magistrados” tem o poder de firmar posição histórica, tornando público e cogen-

te que o Estado não será indiferente à discriminação de sexo; será o primeiro e o

maior opositor do preconceito aos homossexuais em qualquer de suas formas. Decla

radamente, se diz apaixonado pela causa, fechando o aditamento que fez ao seu

voto, com a seguinte passagem:

De sorte que, esse momento, que não deixa de ser de ousadia

judicial – mas a vida é uma ousadia, ou, então, ela não é nada - , é o

momento de uma travessia. A travessia que, talvez, o legislador não

tenha querido fazer, mas que a Suprema Corte acenou, por meio do

belíssimo voto do Ministro Carlos Ayres, que está disposta a fazê-lo.

Os homoafetivos vieram aqui pleitear uma equiparação, pleitear que

eles fossem reconhecidos à luz da comunhão que têm, da unidade,

da identidade, e, acima de tudo, porque eles querem emergir um

projeto de vida. Mas, a Suprema Corte concederá [...] mais que um

projeto de vida, um projeto de felicidade354.  

                                                                                                                         353 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 63. 354 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015.  

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Flagrante, dessas exposições do voto do Ministro Luiz Fux, o entrelaçamento

da postura decisional lançada no julgado com o modelo de pragmatismo que foi estu

dado por conta do Segundo Capítulo desta Dissertação de Mestrado. É o Judiciário,

pretendendo corrigir o Direito, mediante justificativas de cunho axiológico, por méto-

dos que ignoram a normatividade constitucional e a produção democrática do Direi-

to, em prol de escolhas discricionárias.

Mesma abertura discricionária, se evidencia das palavras da Ministra Carmen

Lúcia que, em seu voto, enfatiza a “largueza” dos princípios constitucionais que de-

terminam a interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, acompanhando,

a partir disso, os votos do Ministro Relator Ayres de Britto e do Ministro Luiz Fux, pe-

la equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas, reconhe-

cendo a inconstitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil e a mutação constituci-

onal do artigo 226, parágrafo terceiro, da Constituição Federal de 1988.

Não é demais reiterar que, conforme a teoria integrativa de Dworkin, da qual

parte a Crítica Hermenêutica do Direito, e de onde se buscam os elementos à cons-

trução da fundamentação democrática, os princípios não promovem “largueza”, mas

sim fecham a interpretação na direção da melhor luz ao Direito, ou seja, no descorti-

nar da resposta constitucionalmente adequada. Dizendo de outro modo, essa abertu

ra faz flagrar a aposta na discricionariedade para justificar a escolha do sentido do Di

reito. Logo, não é própria do processo interpretativo-construtivo que reclama o para-

digma intersubjetivo, mas é próprio da manutenção do esquema sujeito-objeto.

A consagração dessas considerações, fica bem evidente diante da adoção de

suposto “método” de interpretação sistemática, resgatando a hermenêutica clássica,

anterior à viragem ontológica, pela Ministra Carmen Lúcia, ao fazer constar do seu

voto: “Sistema que é, a Constituição haverá de ser interpretada como um conjunto

harmônico de normas, no qual se põe uma finalidade voltada à concretização de

valores nela adotados como princípios”355.

                                                                                                                         355 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 699.

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Aqui há também um problema quanto ao conteúdo deontológico dos princí-

pios, que é ignorado, apostando num conteúdo axiológico, desprestigiando a integri-

dade dworkiana, como se atividade judicial, consistisse em transplantar suposta car-

ga axiológica de tais princípios.

Interessante observar que, após o voto da Ministra Carmen Lúcia, o Ministro

Gilmar Mendes interveio para questionar como se proceder à interpretação conforme

a Constituição Federal de 1988 da regra civilista em questão diante do fato de ser

“decalque da norma constitucional”. Daí concluindo que o único argumento para aga

salhar a pretendida declaração de inconstitucionalidade deveria situar-se no fato de

que o dispositivo civilista estaria sendo invocado para impossibilitar o reconhecimen-

to356.

Ato contínuo, aproveitando a “deixa” do Ministro Gilmar Mendes, quem inter-

vém, na Sessão de julgamento, é o Ministro Ricardo Lewandowski, antecipando seu

voto, no sentido do descabimento da pretendida equiparação entre união estável he-

teroafetiva e união homoafetiva, por força da redação do parágrafo terceiro, do artigo

226, da Constituição Federal de 1988. De mais a mais, não havendo como equiparar

as uniões entre pessoas do mesmo sexo em qualquer das três concepções de enti-

dade familiar previstas pelo artigo 226 da Constituição Federal, quais sejam, as rela-

ções oriundas do casamento, da união estável heteroafetivas e as monoparentais, re

lacionadas ao vínculo de parentesco/descendência.

Assim coloca o seu voto: “[...] não há como enquadrar a união entre pessoas

do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família [...]”, sobretudo, como uni-

ão estável heteroafetiva. O assunto da equiparação pretendida foi amplamente deba

tido no âmbito da respectiva Assembleia Constituinte que redundou na redação do

parágrafo terceiro, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, optando, portanto, o

Poder Constituinte, pela não inclusão das uniões entre pessoas do mesmo sexo no

contexto das uniões estáveis heteroafetivas357.

Nesse medida, o Ministro Ricardo Lewandowski sustenta que                                                                                                                          356 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 706. 357 Ibidem, p. 711-712.

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Não há [...] como cogitar-se de uma mutação constitucional ou

mesmo de proceder-se a uma interpretação extensiva do dispositivo

em foco, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei

Maior estabelece no tocante a tais procedimentos, a começar pelo

que se contém no art. 60, parágrafo 4, III, o qual erige a “separação

dos Poderes” à dignidade de “cláusula pétrea”, que sequer pode ser

alterada por meio de emenda constitucional358.

Em complementação da sua racionalidade, assevera que é certo que o Poder

Judiciário não é mais o mero bouche de la loi, cuja interpretação ficava tolhida na lei,

representando processo acrítico e mecânico; mas também é certo que, em que pese

deva valer-se das variadas técnicas hermenêuticas para extrair o melhor sentido da

lei, a interpretação judicial não pode desdobrar dos limites objetivamente delineados

nos parâmetros normativos359.

Estes limites à interpretação judicial exsurgem da clareza da norma constitu-

cional, que resultou dos debates da respectiva Assembleia Constituinte, a qual ex-

pressa, com todas as letras, que a união estável só pode ocorrer entre o homem e a

mulher, considerando ainda a sua possível convolação em casamento.

Portanto, na linha do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, inviável a preten-

dida equiparação, destoando dos votos anteriores dos Ministros Ayres de Britto, Luiz

Fux e Carmen Lúcia, parecendo se guiar pelos nortes da resposta adequada, o que

não acontece, todavia, porque busca outra saída argumentativa para o problema da

intervenção jurisdicional à pretensa colmatação de lacunas. Dizendo de outro modo,

aposta na integração analógica entre as uniões hetero e homoafetivas, conferindo a

procedência das demandas e, assim, também se imiscuindo no papel do legislador.

Não nega que as uniões homoafetivas possam caracterizar outra espécie, dis-

tinta das três anteriores, de entidade familiar, a qual pode ser deduzida da normativi-

dade constitucional, que leva em conta este fenômeno de uniões entre pessoas do

mesmo sexo, colocando-o em debate com os princípios constitucionais da dignidade

                                                                                                                         358 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 712. 359 Ibidem, p. 713.

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da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da

não discriminação por orientação sexual, aplicáveis à espécie. Todavia, na forma do

texto constitucional atual, jamais, como união estável.

Assim sendo, reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo, caracteriza-

da pela continuidade, publicidade e durabilidade, como entidade familiar, apta a rece

ber proteção estatal, diante do rol que entende ser exemplificativo do artigo 226 da

Constituição Federal de 1988. Utiliza, para tanto, o instituto da integração, que deter-

mina a aplicação analógica do instituto mais parecido previsto no ordenamento jurídi

co positivo, e que, no caso, é a união estável, autorizando, dessa forma, a aplicação

desta disciplina naquilo que não coloque em xeque a sua especificidade quanto à exi

gência de gêneros distintos: homem e mulher, para a sua caracterização.

O que se pretende, assevera o Ministro Ricardo Lewandowski,

[...] não é [...] substituir a vontade do constituinte por outra

arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência

de um vácuo normativo [...], procurar reger um realidade social

superveniente a essa vontade, [...] até que o Parlamento lhe dê o

adequado tratamento legislativo360.

Ao fim e ao cabo, o Ministro Ricardo Lewandowski conclui que não está a re-

conhecer uma “união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do parágrafo

terceiro, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, ou seja, por “mutação cons-

titucional” do seu conteúdo e alcance. Mas, está a reconhecer à união entre pessoas

do mesmo sexo tratamento igualitários ao ofertado à união heteroafetiva, por aplica-

ção analógica e naquilo que não contraste a peculiaridade da sua estrita característi-

ca da formação entre um homem e uma mulher. Ou seja, primeiro, reconhece a digni

dade de entidade familiar; depois, lhe outorga, por analogia, a proteção jurídica, con-

siderando o papel precípuo do Judiciário, nesta quadra histórica, da proteção da mi-

norias, sobretudo, à evidência de lacuna na lei.

                                                                                                                         360 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 718.

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Julga, assim, procedente as Ações, mas para que sejam aplicadas às uniões

homoafetivas, caracterizadas como entidade familiar, as prescrições relativas às uni-

ões heteroafetivas, excluídas aquelas que exijam diversidade de sexo para seu exer-

cício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem tais re-

lações. Entretanto, não acolhe a fundamentação de suposta interpretação conforme

à Constituição Federal do preceito civilista e da sustentada “mutação constitucional”

do parágrafo terceiro, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, que vinha sen

do adotada, ou seja, para a equiparação entre as uniões hetero e homoafetivas.

Aparentemente, andava melhor o Ministro Ricardo Lewandowski, na sua moti-

vação sobre a espécie em questão, quando comparado com os votos dos Ministros

Ayres de Britto, Luiz Fux e Carmen Lúcia. Nada obstante, a advertência streckiana é

peculiar no sentido de que, quando se está à frente de ativismos judiciais, não se

trata de dizer que está indo bem ou mal. Por vezes, é bom; e, às vezes, é ruim. Esse

é o risco à democracia o qual ressaltou-se no início das discussões sobre a analítica

aqui debatida361.

Quer dizer, não se pode deduzir o que se queira, quando a Constituição não

diz o que quer. Não se pode alterá-la ou esticá-la mediante ativismos judiciais.Assim,

é importante que essa matéria seja decidida pelo plano de produção democrática do

direito, senão, conforme Streck, Barreto e Oliveira, “entreguemos tudo às demandas

judiciais! Mas, depois, não nos queixemos do ‘excesso de judicialização’ ou de ‘ativis

mos’”362.

Por sua vez, o Ministro Joaquim Barbosa parece não ter andado bem na con-

fecção do seu voto. Isso porque, em que pese concorde que o respaldo constitucio-

nal para o reconhecimento das uniões homoafetivas não se encontre no artigo 226 e

seu parágrafo terceiro da Constituição Federal de 1988, aposta “na rica pallette axio-

                                                                                                                         361 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83, p. 83. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015. 362  Ibidem, p. 83.  

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lógica que informa todo arcabouço constitucional criado em 1988”363, dando conteú-

do eminentemente valorativo ao conjunto de princípios constitucionais, o que promo-

ve abertura interpretativa, ao contrário, do fechamento normativo que representam.

O Ministro Gilmar Mendes, também, aproveitando o voto do Ministro Ricardo

Lewandowski, interveio na Sessão de julgamento, estabelecendo importante debate

com os Ministros Relator Ayres de Britto e Luiz Fux, contando ainda com a interven-

ção do Ministro Marco Aurélio.

Começou o seu voto, assumindo ser crítico ferrenho do argumento judicial no

sentido que “essa coisa de que não podemos fazer isto porque estamos nos compor

tando como legislador positivo ou coisa que o valha”. Admite-se que essa afirmação

deu sinal de alerta para o exame aqui proposto.

O Ministro Gilmar Mendes vota pela procedência das Ações em questão, afir-

mando que a leitura que tem sido feita pelo artigo 1.723 do Código Civil é pelo afasta

mento do reconhecimento das uniões homoafetivas, o que não representa a correta

exegese constitucional.

A interpretação que há de ser estabelecida parte do reconhecimento jurídico

das uniões homoafetivas, a partir do conjunto principiológico da Constituição Federal

de 1988, que consagra os direitos fundamentais de liberdade, de igualdade e de não

discriminação, dos quais exsurge o dever de proteção estatal quanto à ampla garan-

tia de tais, o que termina por concluir pelo referido acatamento das citadas uniões.

Pontua:

Não seria extravagante, no âmbito da jurisdição constitucional, diante

inclusive das acusações de eventual ativismo judicial, de excesso de

intervenção judicial, dizer que melhor saberia o Congresso

encaminhar esse tema, como têm feito muitos parlamentos do

mundo todo. Mas é verdade, também, que o quadro que se tem [...] é

de inércia, de não decisão por razões políticas várias [...]. É evidente

[...] que aqui nós não estamos a falar apenas [...] de falta de uma

                                                                                                                         363 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 724.

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disciplina que permita o desenvolvimento de uma dada política

pública. Nós estamos a falar, realmente, de direitos fundamentais

básicos. [...] a partir da própria ideia do direito de liberdade, [...] do

direito de igualdade, [...] apontando que aqueles que fazem essa

opção, se não encontram um modelo institucional adequado,

acabarão sofrendo as mais diversas formas de discriminação. [...] o

próprio Estado, nesse contexto, [...] tem um dever de proteção

correspectivo a esse direito ou a esses direitos elencados364.

Nada obstante, o Ministro Gilmar Mendes coloca que tal reconhecimento apre

senta dificuldade quanto à legitimação, enquanto Corte Constitucional, do Supremo

Tribunal Federal, que deve ficar limitada à aplicação da normatividade constitucional.

“E, para isso, não podemos dizer que nós lemos no texto constitucional o que quiser-

mos”. Noutras palavras, não se pode ignorar a redação do artigo 226, parágrafo ter-

ceiro, da Constituição Federal de 1988, que trata da união estável entre um homem

e uma mulher, sendo resultado da historicidade de luta para o reconhecimento das

famílias que viviam na “informalidade”.

Daí conclui o Ministro Gilmar Mendes que, pelo próprio texto constitucional, o

caminho à procedência das Ações não pode assentar-se em interpretação conforme

a Constituição Federal de 1988 do preceito civilista e nem na arguida “mutação” do

referenciado artigo constitucional.

Na ocasião, interveio o Ministro Relator Ayres de Britto, para dizer que o que

pretenderam ele, o Ministro Luiz Fux e a Ministra Carmen Lúcia foi dar uma interpre-

tação extensiva destas normas legais. Estabelecido o debate, o Ministro votante afir-

ma que o que é dever do Judiciário é a explicitação dos fundamentos. Ponto alto do

voto, portanto, valendo destacar que o próprio sentido que se deu de fundamentação

democrática provém da explicitação do compreendido.

Nessa importante direção do seu voto, o Ministro Gilmar Mendes fundamenta

que parte da premissa de que há outros direitos envolvidos, direitos estes de perfil

fundamental associado ao desenvolvimento da personalidade, que justificam ou

                                                                                                                         364 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 730-731.

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justificariam a criação de um modelo idêntico ou semelhante aquele da união estável

para as relações homoafetivas, com base já no princípio da igualdade, da liberdade

e da não discriminação de sexo.

Disso a decorrer um dever de proteção do Estado, tudo com a expressa res-

salva da importância de se motivar tais questões – de princípio – de forma muito

clara, “sob pena de cairmos num voluntarismo e numa interpretação ablativa; quan-

do nós quisermos, nós interpretamos o texto constitucional da outra maneira”. Esse

arbítrio deslegitimaria o papel da Corte365.

A direção do voto do Ministro Gilmar Mendes é aplaudida pelo Ministro Marco

Aurélio, que acrescenta que “a atuação judicante é sempre vinculada à Constituição

e à legislação de regência”366.

Assim como o Ministro Ricardo Lewandowski, o Ministro Gilmar Mendes, inclu

sive ainda com fundamentação que pode-se dizer mais digna, trazendo ao debate o

problema da deslegitimação da intervenção do Supremo, em face de decisões volun

taristas que ignoram o texto constitucional, poderia ter se guiado bem, mas a ques-

tão está no fato de que não cabe ao Judiciário legislar sobre essa matéria. Sequer é

possível falar-se em omissão. Isso porque há texto expresso e em sentido contrário,

o que reclama a interferência do Parlamento sob pena de, ainda que com a melhor

das boas intenções, produzir sérios efeitos colaterais, notadamente, a fragilização da

autonomia do direito, em aplausos a sua (in)correção pela moral, e da democracia.

Em última análise, a repristinação da jurisprudência dos valores, na linha em que de-

fende Streck, Barreto e Oliveira, em passagem acima já citada.

Nota-se do voto do Ministro Gilmar Mendes séria preocupação com a decisão

a ser levada a efeito no caso das uniões homoafetivas, à evidência de suposta lacu-

na no ordenamento sobre tal regulamentação. Chega ao ponto de destacar que, de-

pendendo da complexidade das soluções normativas a que se alcance o Tribunal, tal

vez, uma decisão por ele emanada possa ter efeito mais prejudicial do que benéfico

                                                                                                                         365 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 734. 366 Ibidem, p. 734.  

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ao amadurecimento do longo debate que se trava na sociedade e no Congresso367.

Chama atenção também para eventuais discussões problemáticas e a abertura à no

vas lacunas, diante do deferimento da pretensão.

Em que pese isso, insiste na colmatação de lacunas axiológicas constante do

texto da Constituição, a serem preenchidas com suporte na teoria do pensamento do

possível, importada do direito alienígena, considerando estar-se diante de vulnera-

ção de direito fundamental sobre o qual irradia-se um dever de proteção Estatal.

Não cabe ao Judiciário colmatar lacunas do constituinte. Conforme já mencio-

nado, ao assim fazer, estar-se-á por incentivar a criação de uma Constituição parale-

la ou “b”, estabelecendo, a partir da subjetividade do intérprete, aquilo que indevida-

mente (aos olhos de quem interpreta) não constou do pacto. Se a Constituição não

diz, o Judiciário preenche. Com efeito, a resolução das questões relativas às uniões

homoafetivas, enquanto o poder constituinte derivado não emendar ou criar lei ordi-

nária para regulamentação, deverá ser feita no âmbito do direito obrigacional, e não

a partir do direito sucessório ou de família. De acordo com Streck, Barreto e Oliveira,

“há limites hermenêuticos para que o Judiciário se transforme em legislador”368.

Após, quem entra em cena é o Ministro Marco Aurélio. Em seu voto, aplaude

toda a postura ativista “às avessas” sobre a qual foram, no corpo da presente Disser-

tação, de uma forma ou de outra, tecidas contrariedades. Primeiro, assevera que o

Judiciário, “desenganadamente”, não haveria transbordado os limites de sua atua-

ção. Depois, tece argumentos sobre o dualismo direito e moral, ignorando, talvez, a

revolução copernicana por que passou o direito e através da qual se diz que os prin-

cípios inserem o mundo prático e as questões morais no direito. Mais adiante, vem

resgatar a concepção de normatividade constitucional correlacionada a um conjunto

de valores, aos quais se reputa a busca do sentido do direito.

                                                                                                                         367 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 734, p. 774. 368 STRECK, Lenio Luiz. BARRETO, Vicente de Paulo. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos de um “terceiro turno constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito – RECHTD. v.1, n. 2, jul.-dez/2009, p. 75-83, p. 81. Disponível em: <revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401>. Acesso em 25 set. 2015.

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Todos esses argumentos, a determinar, na sua ótica, uma interpretação exten

siva do parágrafo terceiro, do artigo 226, da Constituição Federal de 1988, de modo

a equipararem-se as uniões estáveis hetero e homoafetivas. Isso a estender efeitos

em prol duma interpretação constitucional do artigo 1.723 do Código Civil, assumin-

do inclusive a direção das teorias que tratam da constitucionalização do direito priva-

do, o que se aplicaria à espécie. Também, em função do conhecido contramajoritaris

mo a que incumbiria ao Poder Judiciário, na proteção das minorias, apostando, ao

fim e ao cabo, nas ferramentas da hermenêutica tradicional, em especial, nos princí-

pios constitucionais como vetores de sentido, donde se extrai do núcleo da dignida-

de da pessoa humana, o reconhecimento à equiparação, em interpretação conforme

e mutação constitucional.

Na mesma linha dos votos dos Ministros Relator, Luiz Fux, Carmen Lúcia, an

da muito mal o voto do Ministro Marco Aurélio, aplaudindo postura pragmatista, pren-

dendo o direito ao dualismo metafísico essencialista e subjetivista, não levando a sé-

rio o texto e a diferença que se estabelece entre ele e norma. Passando por cima da

Constituição Federal, para decidir conforme a sua consciência, bem como ainda se

imiscuindo no papel de legislador, donde também se pontuam criticas aos demais vo

tos até então analisados nesta Dissertação.

Na sequencia, é o Ministro Celso Mello quem profere o seu voto e também se

distancia da resposta constitucionalmente adequada, nos moldes em que enfatizada

a sua construção no contexto trabalhado na presente Dissertação de Mestrado. Intro

duz o enfrentamento da temática à evidência de antagonismos de valor, ou seja, par

te da premissa de que a discussão de fundo se limita em resgatar suposto conteúdo

axiológico da Constituição, o que é equivocado. Depois, acata “mutação constitucio-

nal” do parágrafo terceiro, do artigo 226, da Constituição Federal, isso para não dizer

que agasalharia tese de que há norma constitucional inconstitucional. Dizendo de ou

tro modo, prefere dar interpretação extensiva ao mencionado preceito constitucional,

entendendo estar abarcada pela normatividade do texto – nada obstante sua expres-

sa literalidade – as uniões homoafetivas como entidade familiar a merecer o mesmo

tratamento das uniões estáveis heteroafetivas.

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Para chegar as conclusões do seu voto, às escâncaras, diz partir de métodos

interpretativos da hermenêutica tradicional, sobretudo, da interpretação sistemática e

teleológica, a partir dos quais entende

[...] que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime

jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto

justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos

princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade,

da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que

consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa

estrita dimensão que privilegia o sentido da inclusão decorrente da

própria Constituição da República (art. 1, III, e art. 3, IV),

fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte

legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do

mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar369.

Ora, mais outra vez, o Supremo, por ocasião do voto em análise, se afastou lé

guas da resposta constitucionalmente adequada, apostando em sopesamentos valo-

rativos, em standards interpretativos e métodos que se prestam à justificada da escol

ha do sentido da norma, ao arrepio da fundamentação democrática e da própria pro-

dução democrática do direito, transformando-se o Judiciário em Legislativo.

O Ministro Celso de Mello faz constar tópico exclusivo em seu voto para tratar

de suposto postulado constitucional de busca da felicidade como expressão derivati-

va do princípio da dignidade da pessoa humana. Com a devida vênia, sob rótulos

deste tipo, se fragiliza o direito nesta quadra histórica. A abertura voluntária que pro-

move permite que tudo possa ser justificado sob a bandeira da busca da felicidade

ou, quem sabe, da dignidade da pessoa humana. Ignora-se, por completo, o papel

de fechamento dos princípios constitucionais, bem como a sua verdadeira natureza

normativa, e não meramente axiológica, a dar guarida a qualquer opção subjetiva do

intérprete.

                                                                                                                         369 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 734, p. 845.

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Vê-se ainda no voto do Ministro Celso de Mello certa apologia à práticas ati-

vistas judiciais, asseverando que, embora desempenhadas pela Corte em momentos

excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando há omissão ou retar

damento no cumprimento das promessas constitucionais, destacando o protagonis-

mo a que assume o Poder Judiciário, preferindo a “usurpação” de competência – e o

sério comprometimento da Constituição – ao suposto desvalor da omissão370.

Acredita-se haver, nesse ponto, nítida confusão entre ativismos judiciais e judi

cialização, o que é bem separado pelo trabalho de Clarissa Tassinari, na obra intitula

da “Jurisdição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário”. O ativismo judici-

al, nos moldes como praticado e incentivado no julgado examinado, fragiliza a auto-

nomia do direito que cede lugar a discursos com pretensão retórica-corretiva. A judici

alização não cria este efeito nefasto, mas consiste em fenômeno próprio do constitu-

cionalismo contemporâneo e o deslocamento do polo de tensão ao Poder Judiciário,

sem, no entanto, falar-se em usurpação constitucional, mas como decorrência do pró

prio modelo de Estado Democrático de Direito.

Por último, pronunciou o seu voto o Ministro Presidente Cezar Peluso, quem,

de certa forma, acompanhou o voto da relatoria, no sentido de que se deve fazer in-

terpretação sistemática do ordenamento jurídico, de modo a dar-se interpretação con

forme a Constituição ao preceito civilista em debate. Assim faz, encontrado nos prin-

cípios constitucionais o vetor interpretativo para o reconhecimento das uniões homo-

afetivas como entidade familiar, a merecerem tratamento similar às uniões heteroafe

tivas, buscando na integração analógica a colmatação da lacuna normativa que reco

nhece presente.

Traça também preocupação com o papel do Legislador, mas, mesmo assim,

vota pela intervenção jurisdicional no estado em que a questão é trazida aos palcos

do Judiciário.

                                                                                                                         370  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Declaração de Preceito Fundamental n. 132/RJ e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4277/DF. Requerente Governo do Estado do Rio de Janeiro e Procuradoria-Geral da República. Relatoria Ministro Ayres de Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/1319703>. Acesso em 04 de set. 2015, p. 734, p. 868.  

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Nessa medida, o voto da presidência enseja os mesmos entraves à fundamen

tação democrática já exaustivamente apresentados, evitando tautologia, reportando-

se ao conteúdo acima esposado.

Assim sendo, diante de toda essa analítica envolta da Ação Direta de Incons-

titucionalidade na qual foi discutida a causa das uniões homoafetivas, fica evidente a

completa ignorância do texto constitucional e, assim, da normatividade que produz,

carecendo o processo decisional da fundamentação democrática por todos os seus

votos, caracterizando o resultado – pragmático –, na disfarçada versão de escolha,

carregada de conteúdo subjetivo-axiológica, o que ficou claro, tendo constado, no

corpo do acórdão, diversas referência à suposta carga axiológica da Constituição

Federal de 1988.

Outro caso prático em que se verificou postura decisional pragmatista foi o da

Reclamação n. 4.335/AC cuja análise ainda se faz pertinente em que pese a edição

da Lei 11.464/2007, que resolveu o problema jurídico da progressão de regime para

os crimes hediondos, mas não a questão em volta da fundamentação e que aqui é a

pertinente371.

Trata-se de medida interposta pela Defensoria Pública do Estado do Acre no

intuito de fazer valer o entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado em con-

trole difuso de constitucionalidade. O Reclamante alega que houve descumprimento

da decisão do Supremo proferida por conta do habeas corpus 82.959, de relatoria do

Ministro Marco Aurélio, quando foi afastado pela Corte a vedação da progressão de

regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, considerando inconstituci-

onal o artigo 2, parágrafo primeiro, da Lei 8.072/90372.

A partir do citado julgamento, requereu a Reclamante fosse concedida a pro-

gressão de regime aos autores da demanda originária, tendo o pedido sido rejeitado

pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC, o

qual assim decidiu:                                                                                                                          371 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015. 372  Redação originária da Lei 8.072/1990: “Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: [...] § 2º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. […]” (Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8072-25-julho-1990-372192-publicacaooriginal-1-pl.html >. Acesso em 24 de set. 2015).  

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[...] conquanto o Plenário do Supremo Tribunal, em maioria apertada

(6 votos x 5 votos), tenha declarado “incidenter tantum” a

inconstitucionalidade do art. 2º , § 1º da Lei 8.072/90 (Crimes

Hediondos), por via do Habeas Corpus n . 82.959, isto após

dezesseis anos dizendo que a norma era constitucional, perfilho-me

a melhor doutrina constitucional pátria que entende que no controle

difuso de constitucionalidade a decisão produz efeitos “inter

partes”373.

Com essa denegação, o Reclamante impetrou habeas corpus perante o Tribu

nal de Justiça do Estado do Acre, também não obtende melhor sorte, o que terminou

no aforamento da Reclamação analisada, submetendo-se a questão à Corte Máxima

de Justiça.

Nada obstante, a medida da Reclamação proposta é restrita a fazer cumprir

decisões da Corte que estejam revestidas de eficácia erga omnes e efeitos vinculan-

tes, como ocorre no controle concentrado de constitucionalidade. No controle difuso,

a Constituição Federal de 1988, pelo seu art. 52, X374, condiciona a suspensão da lei

declarada inconstitucional pelo Supremo à intervenção do Senado. Repare-se que o

texto constitucional que assim expressa essa exegese foi acolhido pelos juízos da co

marca e do Colegiado Estadual.

Ocorre que, no referido julgado paradigmático, uma parte dos Ministros, em

especial, se destacam os votos do Ministro Relator Gilmar Mendes e do Ministro

Eros Grau375, se posicionou que estaria ocorrendo uma mutação constitucional, em

virtude de uma tendência à concentração do controle de constitucionalidade, visuali-

zada nas mudanças operadas no texto da Constituição e na legislação infraconstitu-

cional. A partir disso, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria, deu proce-

dência à Reclamação. Mutatis mutandis, dizendo que onde a Constituição fala que

                                                                                                                         373 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 4. 374 Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição de República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /cccvil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.html>. Acesso em: 04 set. 2015. 375 Contrariamente à reconhecida mutação constitucional: os Ministros Sepúlveda Pertence; Joaquim Barbosa; Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não conheceriam da Reclamação, mas concederiam habeas corpus de ofício.

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compete ao Senado a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional,

deveria ser lido como dar publicidade à lei declarada, no todo ou em parte, inconsti-

tucional pelo Supremo.

Absolutamente pragmatista a decisão analisada, por razões semelhantes as

acima alinhavadas por conta do exame do outro aresto deste mesmo estreitamento.

Agora, importante a ressalva streckiana quem também analisa a decisão em testilha,

separando mutação de rompimento constitucional:

[...] quando estamos diante de uma postura ativista, temos uma

decisão que vai além do próprio texto da Constituição, acarretando o

que Hesse chama de rompimento constitucional, quando o texto

permanece igual, mas a prática é alterada pelas práticas das

maiorias. É o que ocorreu com a Constituição de Weimar e o

nazismo376.

Assim, a pretendida mutação constitucional equivale ao rompimento constituci

onal, à negação da normatividade constitucional irradiada de sua tradição. Em mais

este caso, o Judiciário ignorou por completo os limites semânticos do texto, afetando

a produção democrática do direito, de modo que o resultado do processo decisional,

também, aqui, é artificial, correspondendo à escolha, e não a decisão originária da

interpretação construtiva/produtiva desenvolvida.

Sempre merecendo destaque o fato de que a decisão do Supremo Tribunal

Federal parte de um conjunto de votos exarados pelos Ministros participantes do res-

pectivo julgamento, é importante analisar os referidos votos assim lançados no ares-

to de modo a verificar o conteúdo de cada qual em relação com a distinção entre de-

cidir e escolher.

Parte-se do voto do Ministro Relator, Gilmar Mendes, quem é grande defensor

da suposta “mutação constitucional”, na espécie em debate. Primeiramente, o Minis-

tro Relator se preocupa com o esclarecimento da decisão proferida em sede de con-

trole difuso de constitucionalidade e de cuja declaração de inconstitucionalidade da

lei federal proveio. Depois, a direção do seu voto caminha para demonstração de de-

fendida “evolução” no tangente à utilização do instituto da Reclamação, restando as-

                                                                                                                         376 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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sente o cabimento para todos aqueles que comprovarem prejuízo resultante de deci-

sões contrárias às teses do Supremo Tribunal Federal, em reconhecimento à eficá-

cia erga omnes das decisões de mérito, proferidas em sede de controle concentra-

do.

Pontua o Ministro Relator Gilmar Mendes que é necessário, para decidir-se o

caso analisado, apreciar se a Reclamação foi utilizada em consonância com a sua

destinação constitucional, que venha ser a garantia da autoridade das decisões do

Supremo Tribunal Federal, e, a partir disso, direcionar a discussão sobre a necessi-

dade da expedição, pelo Senado Federal, de resolução para suspender a eficácia do

dispositivo declarado inconstitucional, pela Corte, no controle difuso, nos moldes em

que contemplado pelo texto constitucional vigente.

Traça o Ministro Relator as discussões que surgiram no âmbito das respecti-

vas constituintes, anteriores a 1988, sobre os efeitos ex tunc e ex nunc das decisões

proferidas pelo Supremo Tribunal, demonstrando que, quando se trata de declara-

ção de inconstitucionalidade, a historicidade demonstraria que os efeitos da suspen-

são operam-se ex tunc, de modo que aquilo que é inconstitucional seria natimorto,

não produziria efeitos. Aí estaria a natureza da atribuição conferida ao Senado Fede-

ral para a edição de ato político à retirada da lei do ordenamento jurídico, de forma

definitiva e com efeitos retroativos.

Nada obstante, conforme o Ministro Relator, a inércia do Senado Federal não

afetaria a relação entre os Poderes; não revogaria o ato declarado inconstitucional.

A atribuição constitucional que lhe seria conferida é apenas à edição de ato político

que empreste eficácia erga omnes à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida

no caso em discussão. A Casa do Congresso, portanto, não poderia restringir ou am

pliar a extensão do julgado, mas poderia, inclusive, se omitir e isso não consistiria

infringência à ordem constitucional.

Diante dessas considerações, e à evidência de que o Supremo Tribunal Fede-

ral pode, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou seja, no controle concentrado,

suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei e, inclusive, de uma emenda constitu-

cional, o Ministro Relator traz o questionamento de que “por que haveria a declara-

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ção de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer-se tão-somente

para as partes?377”.

A razão, assevera o Relator, decorreria apenas do fato de que “o instituto da

suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente históri-

ca”378. Não seria apropriado para conferir-se eficácia geral e vinculante quando a Cor

te não declara a inconstitucionalidade da lei, mas diz a forma em que deve ser inter-

pretada. Também não seria o caso, quando o Supremo dá interpretação conforme à

Constituição, assim como também nos casos de declaração de inconstitucionalidade

parcial sem redução de texto, de rejeição de arguição de inconstitucionalidade e de-

claração de não-recepção da lei.

A suspensão pelo Senado Federal da lei declarada inconstitucional pela Corte

Máxima, na linha do voto da relatoria, ficaria restringida aos casos de declaração de

inconstitucionalidade de lei ou do ato normativo. Além disso, certo é que, no controle

difuso, em que a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex nunc, é que

se discutiria a intervenção do Senado, ressaltando que, para o Ministro Relator, não

restaria dúvidas de que o Tribunal assumiria posição que antes se atribuída à Casa

do Congresso.

Essas conotações dão, na forma do voto da relatoria, novo significado norma-

tivo ao instituto da suspensão de execução pelo Senado Federal. Conforme o Rela-

tor:

Esse entendimento marca uma evolução no sistema de controle de

constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, praticamente,

os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle

abstrato e concreto. A decisão do Supremo Federal, tal como

colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria

de controle de constitucionalidade incidental, permitindo que o órgão

fracionário se desvincule do dever de observância da decisão do

Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal a que se encontra vinculado.

Decide-se autonomamente com fundamento na declaração de

                                                                                                                         377 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 27. 378 Ibidem, p. 27.

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inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) do Supremo

Tribunal Federal proferida incidenter tantum379.

Segundo o Relator Ministro Gilmar Mendes, a exigência de que a eficácia ge-

ral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal

fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida na Constituição de

1934 e mantida na Constituição de 1988, teria perdido grande parte do seu significa-

do pela ampliação da utilização do controle abstrato de normas. O alargamento da

legitimidade, pelo constituinte de 1988, por exemplo, para a propositura da Ação

Direta de Inconstitucionalidade, e a inevitável possibilidade de se submeter qualquer

questão constitucional ao Supremo, teria operado uma mudança substancial no mo-

delo de controle de constitucionalidade até então vigente, reduzindo o campo da difu

sidade e aumentando o do modelo concentrado.

Sem dispor o ordenamento brasileiro de um mecanismo que emprestasse for-

ça de lei ou que, pelo menos, conferisse caráter vinculante às decisões do Supremo

Tribunal Federal para os demais Tribunal locais tal como o stare decisis americano,

sobretudo, no controle difuso, aponta o Relator que a doutrina se contentava com a

teoria da nulidade da lei inconstitucional e a obrigação dos órgãos estatais de se

absterem de aplicar a disposição declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal

Federal. Defende que tal construção, no entanto, era incongruente com a suspensão

de execução pelo Senado Federal, se emprestando a esta um caráter substantivo,

que acusa não devesse ter.

Nada obstante, o entendimento que ficou amplamente aceito foi no sentido de

que o ato do Senado Federal conferia eficácia erga omnes à declaração de inconsti-

tucionalidade proferida no caso concreto. Quer dizer, se a doutrina e a jurisprudência

vinham entendendo que a lei inconstitucional era ipso jure nula, deveriam ter defendi

do, de forma coerente, conforme o voto da relatoria, que o ato de suspensão a ser

praticado pelo Senado Federal destinava-se exclusivamente a conferir publicidade à

decisão do Supremo Tribunal Federal.

Não foi o que aconteceu, como acima visto, sendo conferido caráter substanci

al à decisão do Senado Federal, entendendo o ato de suspensão por este emanado                                                                                                                          379 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 32.

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como o único apto a dar efeitos gerais e vinculantes à declaração de inconstituciona-

lidade proferida pelo Supremo e de cuja eficácia estaria limitada às partes.

Todavia, conforme a relatoria, a preferencia constitucional e infraconstitucio-

nal pelo controle concentrado, seja pelo aumento da legitimação da Ação Direta de

Inconstitucionalidade, seja pela disciplina conferida à Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental, seja pela atribuição outorgada aos relatores para decisões

monocráticas em sede de recurso especial e extraordinário, seja ainda pelos efeitos

gerais estendidos às declarações de inconstitucionalidades de leis municipais, e seja

pelo controle de constitucionalidade nas ações coletivas, todos estes casos em dire-

ção a uma eficácia para além das partes do processo, conduziriam a uma interpreta-

ção pela inutilidade da suspensão por ato do Senado Federal, como apta a tal atribui

ção de efeitos erga omnes.

Isso a concluir, na ótica do voto do Relator, pela “mutação constitucional” do

preceito constitucional que esta a assim a exigir, devendo ser interpretada a expedi-

ção do ato suspensivo da lei ou norma declarada inconstitucional, pelo Senado Fede

ral, como publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal, sendo única função

da Casa do Congresso a conferência, portanto, deste efeito de publicidade para a

decisão.

Nas palavras do Ministro Relator Gilmar Mendes,

[...] por razões de ordem pragmática, a jurisprudência e a legislação

têm consolidado fórmulas que retiram do instituto da “suspensão da

execução da lei pelo Senado Federal” significado substancial ou de

especial atribuição de efeitos gerais à decisão proferida no caso

concreto. Como se vê, as decisões proferidas pelo Supremo

Tribunal, em sede de controle incidental, acabam por ter eficácia que

transcende o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte

vem fazendo uma releitura do texto constante do art. 52, X, da

Constituição de 1988 [...]. Portanto, é outro o contexto normativo que

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se coloca para a suspensão da execução pelo Senado Federal no

âmbito da Constituição de 1988380.

Portanto, para o Ministro Relator, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de

controle incidental, concluir, em definitivo, que a lei é inconstitucional, tal decisão pro

duzirá efeitos gerais, “fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este

publique a decisão no diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a deci-

são do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo”381.

Considerando a existência de suposta “mutação constitucional”, o Ministro Re

lator vota pela procedência da Reclamação analisada. Dizendo de outro modo, para

a relatoria, quando a Constituição diz que ao Senado Federal compete suspender a

execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional pelo Supremo, deve

ser lido dar publicidade à declaração.

Ocorre, assim, por este contexto, flagrante rompimento constitucional, e não

mutação constitucional. Há total desconsideração do texto constitucional que marca

a literalidade do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, bem como toda

a sua historicidade registrada na atribuição, via Senado Federal, da atribuição de efi-

cácia geral às decisões, tomadas no controle incidental, declaratórias de inconstituci-

onalidade de lei ou ato normativo, pelo Supremo Tribunal Federal. Mutatis mutandis,

não há normatividade constitucional que destoe desta compreensão, assim como

não há texto sem norma. Por isso, não podendo ser ignorado o contexto textual do

referido dispositivo constitucional à resposta constitucionalmente adequada.

Conforme Tassinari,

[...] são dois os efeitos que podem ser atribuídos às decisões em

sede de controle de constitucionalidade. Uma vez exercido de modo

concentrado, o efeito será erga omnes (para todos, sendo, portanto,

vinculante). Se realizado pela via difusa, inter partes (incidente

apenas no caso em análise), podendo ser atribuído efeito erga

omnes mediante a remessa ao Senado Federal, a teor do que dispõe

                                                                                                                         380 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 51-52. 381 Ibidem, p. 55.  

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o artigo 52, X, da Constituição Brasileira, dispositivo que foi incluído

no texto constitucional a fim de equacionar um problema surgido na

importação do controle de constitucionalidade estadunidense para a

realidade brasileira – naquele país, as decisões, como regra, por

força da doutrina do stare decisis, possuem caráter vinculante382

Com efeito, o preceito constitucional em questão foi mantido pelo constituinte

de 1988 e, nessa medida, não pode ser afastado por decisão judicial que venha bur-

lar o processo democrático de produção do direito. Há apenas uma maneira de se al

terar formalmente o texto da Constituição, que é a via do processo legislativo especí-

fico, previsto pelo seu artigo 59383, ou seja, pelo processo de emenda constitucional.

O procedimento de alteração textual requer aprovação do Congresso Nacional, do

Presidente da República ou da Assembleia Legislativa, observados os requisitos e

particularidades estabelecidos pelo artigo 60 da Constituição Federal de 1988384.

Interessante perceber a ressalva de Tassinari, quem bem pontua que não se

pode pretender fazer uma mutação constitucional; ela ocorre ou não, caso contrário

se estaria violando o Estado Democrático de Direito385. Assim leciona, a partir dos

ensinamentos de Canotilho, para quem a mutação constitucional ocorre por força da

alteração do sentido do texto, sem que se altere a sua redação386. Dizendo de outro

                                                                                                                         382 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da autuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 128-129. 383 “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II – leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 20 set 2015). 384 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 20 set 2015). 385 Op. Cit., p. 129. 386 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: almedina, 2004, p. 1.228.

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modo, exatamente, como reflexo da normatividade da qual se irradia o sentido, inclu-

sive, como resultado do processo de compreensão autêntica, equivalente ao modelo

decisional que conduz à resposta correta.

A única maneira de se compreender a posição é na aposta ao ativismo judici-

al. E o risco é, nos moldes como visto na decisão acima, para a democracia, sendo,

inclusive, o seu preço a higidez do citado modo constitucional de produção do direi-

to. É, da Constituição, que se aferem os próprios limites à criatividade jurisdicional,

não podendo os juízes se tornarem legisladores, inclusive, como acabou acontecen-

do, retirando a possibilidade de chancela dos representantes do povo no processo

de controle de constitucionalidade, “mitigando o modelo de participação democrática

indireta esboçado pela Constituição no art. 52, X”387.

Nesse sentido, pelo voto do Ministro Relator Gilmar Mendes, acolhido por mai

oria dos julgadores votantes, o resultado final do processo interpretativo equivaleu-

se à verdadeira escolha, e não decisão, sendo aquela fruto do subjetivismo que assu

jeita o objeto (ou o texto), atribuindo-lhe o sentido (ser) que lhe convém.

Na sequência, causa perplexidade o voto do Ministro Eros Grau, confirmando

orientação que já estava a adotar no julgamento de outro caso, a ADI 4.219. Para

ele, a interpretação constitucional está numa relação dialética entre a segurança jurí-

dica e a liberdade individual de um lado e a interpretação evolutiva no outro polo, de

modo que a discussão paira na certeza e liberdade individual garantidas pela lei pelo

sistema do Direito burguês e a sua contínua adequação do devir. Todavia, para resol

ver o impasse, diz que a primeira estaria a exigir a observância do texto e a segunda

“demanda criatividade que pode fazer ir além do texto”388.

Por tudo que até agora se enfatizou não deve existir esta criatividade jurisdici-

onal, em prejuízo ao processo democrático legítimo, como também o texto não é al-

go que recebe uma capa de sentido, antes disso ele é evento, na forma antes desta-

cada, e não pode ser ignorado, para fins de desvelar-se a sua normatividade, coisas

que, no fundo, parecem ter sido desconsideradas pelo Ministro Eros Grau.

                                                                                                                         387 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da autuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 131. 388  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 64.

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Para o Ministro Eros Grau, “a dimensão legislativa e a dimensão normativa do

fenômeno jurídico [...] compõe um só processo, o processo que o direito é enquanto

dinamismo”389. Nessa ótica, está a acompanhar o Relator quanto à malfadada muta-

ção constitucional, no sentido de que, se a relatoria diz que o texto do preceito cons-

titucional, ao invés de suspensão, fala em publicidade, ou seja, se não se limita a in-

terpretar a literalidade do texto, produzindo norma a partir dele, avança para propor

a substituição de um texto normativo para outro. Isto, para a Ministro votante, carac-

teriza mutação constitucional, o que, no ótica do estuado, trata-se, com efeito, de cla

ro rompimento constitucional, em prejuízo da democracia.

O desprestígio democrático que se vem acusando, através da mutação consti

tucional acolhida pelos julgados analisados, fica latente de passagem do voto em te-

la, quando aponta que “na mutação constitucional caminhamos não de um texto a

uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro”, isso ainda

sob o “ingênuo” argumento de que interpretação equivale à prudência.390 Ora, isso é

tarefa constitucionalmente outorgada ao processo legislativo, portanto, ao legislador,

e não ao Judiciário, que, nesta forma, estaria assumindo poder legiferente.

Mais, o estreitamento ao pragmatismo, no sentido de que o Direito se resume

a aquilo que os juízes e tribunais dizem ser, consta expresso do contexto decisional

levado ao efeito pelo Ministro Eros Grau, que, depois de assumir as críticas que sur-

giriam da acolhida mutação constitucional em relação à historicidade do texto, por

trabalho que possa ser desenvolvido pela doutrina, assevera:

Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da

doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela

nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma

relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis

ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o

compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina

                                                                                                                         389  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 70. 390 Ibidem, p. 72.

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[= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o

discurso do direito. Ele nos seguirá; e não o inverso391.

Afora essas considerações, outra vem a evidência do que se está aqui a acu-

sar, ou seja, que o Ministro Eros Grau foi pragmático neste julgamento, distanciando-

se da resposta constitucionalmente adequada, produzindo escolha, ao arrepio demo

crático. Coloca em debate o papel do Legislativo frente a uma decisão de inconstitu-

cionalidade, dispondo que não poderia mais este Poder sobre isso dispor. Mas, espe

ra um pouco, quem é o legitimado, nos moldes da parametricidade constitucional pa-

ra a produção/criação do Direito? Há usurpação de funções, justificadas em afirma-

ções do tipo “os braços do Judiciário nesta situação alcançam o céu”392. Perigo à vis-

ta!

Por outro lado, é importante destacar que a decisão final, pela mutação cons-

titucional, foi acolhida por maioria, e que, nessa medida, existiram votos que se pode

admitir, ao menos no tangente à questão central em debate, teria caminhado à res-

posta constitucionalmente adequada.

Nesse sentido, o voto do Ministro Joaquim Barbosa, para quem a pretendida

mutação constitucional representa, pura e simplesmente, mudança no sentido da nor

ma constitucional, pela via interpretativa, o que não se revela como hipótese em que

seja possível tal mutação. Assim, além de encontrar obstáculo na redação do artigo

52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, foi na contramão das regras de self

restraint, qualificadas como virtudes passivas da justiça constitucional393.

Pela referida teoria, ao Judiciário só restariam três alternativas: (a) anular a le-

gislação em desacordo com a Constituição; (b) declarar a sua compatibilidade com o

texto constitucional; e (c) abster-se de se pronunciar sobre questão de constituciona-

lidade em respeito ao princípio da democracia. Para o Ministro Joaquim Barbosa, a

                                                                                                                         391 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 77. 392 Ibidem, p. 81. 393 Ibidem, p. 99-100.

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última regra de sabedoria política, tão importante para a vitalidade da democracia

constitucional, é a plenamente aplicável no caso em exame394.

Integrando os votos dissidentes, também merece apreço o lançado pelo Minis

tro Ricardo Lewandowski, dirigindo-se, no tocante ao afastamento da mutação consti

tucional pragmática, na direção da resposta constitucionalmente adequada.

Para o Ministro Ricardo Lewandowski, a interpretação dada pela relatoria leva

a um significativo aviltamento da tradicional competência do Senado Federal no con-

trole de constitucionalidade, reduzindo seu papel a mero órgão de divulgação das de

cisões do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, no acolhimento do entendimento

da relatoria, ocorreria “verdadeira capitis diminutio no tocante à [...] competência que

os constituintes de 1988 lhe outorgaram”395.

A exegese proposta, conforme o Ministro Ricardo Lewandowski, vulneraria o

sistema de separação de poderes, concebido em meados do século XVIII,na França,

pelo Barão de la Brède e Montesquieu, exatamente, para impedir que todas as fun-

ções governamentais se concentrassem em determinado órgão estatal, colocando

em xeque a liberdade política dos cidadãos396.

Segundo ele, a supressão de competências de um Poder de Estado, pela via

da exegese constitucional, colocaria em risco ainda a própria lógica do sistema de

freios e contrapesos. Não se ignora que a Constituição de 1988 tenha redesenhado

a relação entre os três Poderes, fortalecendo o papel do Supremo Tribunal Federal.

Nada obstante, o fortalecimento não se deu em detrimento das competências dos

demais Poderes, em especial, daquela conferida ao Senado Federal, pelo preceito

constitucional em liça.

Não há como cogitar-se, na ótica do voto ora analisado, de mutação constituci

onal, na espécie debatida, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei

Maior estabelece, a começar pelo que se contém no artigo 60, parágrafo 4, inciso III,

que erige a separação dos poderes à dignidade de cláusula pétrea. O que a relatoria

                                                                                                                         394 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 101.  395 Ibidem, p. 120. 396 Ibidem, p. 121.  

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propõe, para o Ministro Ricardo Lewandowski, é o deslocamento da competência atri

buída pelos constituintes de 1988 a um determinado Poder, para outro.

Nas suas palavras,

É evidente que a aplicação da Constituição à realidade fática

pressupõe o processo de interpretação, até para que suas normas

possam acompanhar a natural e perma-nente evolução dos cânones

sociais. Mas existem parâmetros rígidos para tal. O primeiro deles, é,

inegavelmente, o próprio sentido literal do texto. Segundo Heidegger,

a palavra é essencial para conferir-se o ser às coisas. “Nenhuma

coisa é onde a palavra, isto é, o nome, faltar”, diz ele. E a

interpretação, por óbvio, há de encontrar limites também – e quiçá

em primeiro lugar – na literalidade da norma, ou seja, em sua

estrutura semântica397.

Nesta linha de condução, portanto, o Ministro Ricardo Lewandowski dirigiu-se

à resposta constitucionalmente adequada, em que pese na decisão colegiada final a

posição equivalente a tal não tenha sido a assumida. Desdobrou-se, em última análi-

se, o processo decisional do julgado analisado, em pragmatismo, refletindo, portan-

to, seu resultado uma escolha de conteúdo axiológico-subjetivista.

Com estes dois julgados, encerra-se a análise da casuística pátria, demons-

trando que, à evidência de julgados positivistas e pragmáticos, no cenário da jurispru

dência de terrae brasilis, a decisão judicial democrática encontra-se deficitária, ce-

dendo espaço às escolhas subjetivistas-axiológicas e, dessa forma, carecendo de le-

gitimidade.

                                                                                                                         397 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.333/AC. Requerente Defensoria Pública do Estado do Acre. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília/DF, 20 de março de 2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/6495286>. Acesso em 04 set. 2015, p. 124.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão dos estudos elaborados à resolução da problemáti-

ca travada na presente Dissertação de Mestrado acerca da distinção sobre os atos

de decidir e de escolher, a partir daquilo que se designa por fundamentação demo-

crática, importa, de imediato, reconhecer a afirmativa tomada sob hipótese prelimi-

nar.

Dizendo de outro modo, existe não só distinção entre os atos de decidir e

de escolher, no tangente à produção dos resultados de um processo e outro, como

que tal distinção recebe a qualidade de fundamental, na mesma medida em que a

fundamentação vai adjetivada de democrática. Isto é, para o Direito, resultado de rup

tura paradigmática.

É sempre bom lembrar que a distinção que se estabeleceu permitiu estrei-

tar o fenômeno dos atos de decidir ao processo fenomenológico de produção de

sentido da hermenêutica-ontológica heideggeriana, da qual se alicerça, depois, o pro

cesso de compreensão autêntica da hermenêutica filosófica gadameriana e que,

mais tarde, vai inspirar a fundamentação da fundamentação streckiana cuja base ser

ve de respaldo teórico à construção da fundamentação democrática.

Portanto, tudo correlacionado! Decisão e escolha se distinguem em fun-

ção do processo que cada qual adota para os respectivos atos ou respostas, tendo a

primeira processo produtivo equivalente ao das construções hermenêuticas-ontoló-

gicas; e a segunda, privilegiando apenas o primeiro plano do referenciado processo

compreensivo, resumindo-se seu resultado à escolha de uma das vias que se mani-

festam como possíveis, usando da subjetividade valorativa, para tal direcionamento.

Pois bem, transplantando a distinção proposta para o fenômeno jurídico,

se pode falar em decisões fundamentais ou democráticas, que redundam na respos-

ta constitucionalmente adequada, fruto da fundamentação paradigmática, a qual se

constrói do citado complexo processo interpretativo produtivo da compreensão autên

tica.

Um processo que não é cindido no primeiro plano de antecipação do sen-

tido, saltando para uma justificação posterior desse resultado, como se se pudesse

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“entificar” aquele ser. Mas um processo de interpretação inspirado em construções

hermenêuticos-ontológicas, através do qual se permita, por esta própria antecipação

de sentido, o desvelamento do seu compreender mais autêntico.

Quer dizer, um processo interpretativo construtivo que reconheça na tradi-

ção a que estamos inseridos pela linguagem o locus da compreensão, colocando ela

própria numa relação circular entre o todo e a parte e a parte e o todo, a fim de fazer

aparecer aquilo que se escondia e que consiste na autêntica compreensão.

Daí dizer-se que a fundamentação democrática consiste na “fundamenta-

ção da fundamentação” da Crítica Hermenêutica do Direito, ou na explicitação daqui-

lo que se compreendeu, não restando este processo interpretativo cindido, mas inte-

grado, desde uma primeira antecipação de sentido até o seu autêntico desvelamen-

to fenomenológico, quando então se compreende, interpreta e aplica.

Esse processo pelo qual se constitui a decisão judicial própria do paradig-

ma constitucional e que encontra a sua legitimidade na fundamentação democrática

desenvolvida, produz a parametricidade constitucional, responsável pelo sentido do

limite e o limite do sentido do Direito, numa relação intersubjetiva. É ele que permite

seja alcançada a resposta constitucionalmente adequada, recebendo, para esse re-

sultado, a integridade do Direito, através da coerência com um sistema de princípios

constitucionais.

É, assim, que se produz, no Estado Democrático de Direito, a decisão de-

mocrática, que reclama, portanto, a intersubjetividade a que se está vinculado em

função do paradigma da linguagem, afastado que se está dos dualismos metafísicos

que caracterizaram os paradigmas objetivista e subjetivista, especialmente, o esque-

ma sujeito-objeto, que compromete a interpretação judicial neste quadrante histórico.

Dizendo de outro modo, e justificando por que a distinção é fundamental –

no melhor sentido hermenêutico –, e a problemática travada é de ruptura, qualquer

proposta teorética da decisão que não acompanhe esse processo interpretativo cons

trutivo, acaba por não superar os dualismos metafísicos que acabam circundando,

de uma forma ou de outra, o pensamento jurídico.

É, do reconhecimento da diferença ontológica, no Direito melhor represen

tada pela distinção ontológica entre texto e norma, que torna-se possível tal rompi-

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mento metafísico. A partir dela não se privilegia um ou outro, mas se reconhece a im

portância de cada qual na compreensão do todo, de modo que um não existe sem o

outro. Se assim não for, o resultado é artificial, culminando na entificação do texto ou

no solipsismo da atribuição de sentido do decido conforme à consciência do intérpre-

te.

A questão paradigmática só pode, assim, ser respondida por uma herme-

nêutica de ruptura, que traga o sujeito para dentro do complexo processo interpreta-

tivo, considerando estar, desde sempre, inserido neste processo pela linguagem que

se traduz pela faticidade e a historicidade.

Nesse contexto, a decisão judicial e a interpretação do Direito, no Estado

Democrático de Direito, jamais poderiam se estreitar à escolha ou opção política

dentre as vias aparentemente possíveis, a partir de juízos fundados em valores. Nes

te processo, a resposta prefere o sentido apofântico, da mera manifestação – ou arti-

ficial –, em detrimento do fenomenológico-hermenêutico autêntico ou correto.

É, assim, da fundamentação democrática cunhada através de perspecti-

vas hermenêuticas-ontológicas que se pode sustentar que existem respostas corre-

tas no Direito e que, nos moldes concluídos, se identifica à resposta constitucional-

mente adequada, consistindo esta, em última análise, a decisão reclamada pelo pa-

radigma da intersubjetividade.

Tendo esta distinção em mente e a sua séria repercussão no pensamento

jurídico, inclusive, como forma de ruptura paradigmática, tornou-se importante a aná-

lise de algumas propostas que ganharam coro no Direito, para decisão ou interpreta-

ção judiciais.

Aí é que vem mais um fechamento conclusivo da problemática travada na

presente Dissertação de Mestrado e que diz com posturas nominadas como positivis

tas e como pragmatistas e o quanto não correspondem à decisão, no Estado Demo-

crático de Direito, equivalendo seus resultados à escolha subjetivista-axiológica, nos

exatos moldes em que traçadas as diferenças destes atos.

Depois de se situar o positivismo jurídico no contexto sócio-político, como

ainda alicerçar as suas características ou problemas, este último objetivo pela lente

de Bobbio, a primeira teoria que se trouxe à discussão foi a teoria interpretativa kel-

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seniana, de acordo com a qual a interpretação deve seguir uma moldura de possibili-

dades, que se origina a partir da noção que desenvolve de ordenamento jurídico hie-

rarquizado.

Para Kelsen, a norma superior regula o ato pelo qual é produzida a norma

de grau inferior. Assim, no sistema piramidal kelseniano, a sentença é válida se re-

mete a uma lei válida; a lei é válida se remete à uma norma constitucional válida; e a

Constituição é validada se a norma fundamental diz que assim é. Esse sistema, que

decorre, portanto, da noção de ordenamento jurídico, aponta para existência de uma

moldura dentro da qual deve-se extrair a interpretação ou seja a norma que será

aplicada. Por isso, positivismo normativista kelseniano.

Acontece que, dentro desta estrutura interpretativa da moldura, sempre so

bra espaço para discricionariedade, reconhecendo, nisso, a interpretação como ato

de vontade, abrindo alas para o decisionismo, conduzindo a cientificidade que busca

va em sua Teoria Pura, agora, na interpretação, para o campo da hierarquia de inte-

resses, através de opções que designa político-jurídicas.

Pronto: o resultado da interpretação conforme a moldura, sem adentrar-se

no fato de que a norma fundamental é pressuposta e advém de um ponto de vista ex

terno, o que também abriria à subjetividade, se distancia do processo interpretativo

construtivo da interpretação, longe estando de se caracterizar como decisão, porque

aposta na discricionariedade para eleição rasa do “melhor” interesse dentre as várias

possibilidades que a moldura propicia.

Opção política dentre as vias aparentemente possíveis, caracteriza, na for

ma da distinção estabelecida, atos de escolha, revelando a cisão do processo inter-

pretativo-compreensivo que não se completa, preferindo o plano apofântico de produ

ção do sentido, ao hermenêutico em que se manifesta na sua autenticidade plena.

A segunda teoria que veio à baila foi a hartiana, especialmente, ao que in-

teressou à problemática traçada, a proposta decisional construída por Hart, para re-

solver aquilo que designou chamar de hard cases, e que tem, na criatividade judicial,

caracterizada pelo poder discricionário outorgado aos juízes, para julgar os referidos

casos, o seu ponto alto. Os casos difíceis, segundo Hart, antes de mais nada, seriam

aqueles que, em função da abertura semântica do texto legal, não teriam respostas

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por mera subsunção dedutiva da lei. Para eles, ou na insuficiência do Direito Positi-

vo, a aposta é na discrionariedade judicial.

Não precisa ir muito além disso para aventar-se a discrepância, no plano

de proposta interpretativa hartiana, para se perceber a negação da resposta correta,

no Direito. Segundo Hart, as múltiplas respostas seriam inerentes à abertura discrici-

onária que os hard cases permitiriam. A tarefa interpretativa ficaria resumida na elei-

ção valorativa-pessoal do intérprete.

Bingo de novo! Primeiro, que a separação entre casos fáceis e casos difí-

ceis é algo que deixa à evidência a incompletude do processo compreensivo, especi

almente por que cinde a compreensão, a interpretação e a aplicação, que integram

um todo unitário, diante da viragem linguística que rompeu com as metafísicas. Lo-

go, insistir nisso é insistir na relação sujeito-objeto da filosofia da consciência.

Segundo, que a discricionariedade outorgada aos juízes para resolver tais

casos difíceis assim é feita desprovida de qualquer tipo de teoria filosófica justificati-

va, resvalando o resultado desse processo interpretativo a simples escolha de uma

das vias que se apresentam possíveis, de acordo com a concepção pessoal do jul-

gador.

Por terceiro, ainda, e na linha de ambas as pontuações conclusivas acima

e que vão direcionar para a resposta da problemática travada, é que, na teoria hartia

na, há completa ignorância sobre um sistema de princípios a produzir o fechamento

interpretativo na direção da melhor resposta, que, por ela, fica ao alvedrio da criativi-

dade judicial, permitindo, inclusive, que os juízes se tornem legisladores, em flagran-

te corrupção do processo democrático de produção do Direito.

Não é difícil perceber, assim, que esta proposta teorética também equiva-

le à escolha e sucumbe à decisão oriunda da fundamentação democrática defendida

nesta Dissertação.

A última teoria sob a forma positivista estudada foi a da argumentação ale

xyana e o problema desta que vem a colocar em xeque a decisão, resvalando o re-

sultado que produz também em escolha subjetiva-axiológica, está em resgatar a dis-

cricionariedade hartina para resolver o problema dos casos difíceis.

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As teorias argumentativas por que procedurais não se preocupam com to-

do o processo interpretativo da compreensão autêntica. Ignoram a pré-compreensão

e o como se dá todo o desenvolvimento até a sua compreensão autêntica, na neces-

sária relação intersubjetiva, se preocupando apenas com suposta etapa final de apli-

cação dos argumentos, mediante cristalinas justificativas às opções valorativas que

se tomaram previamente.

Nesse caminho, qualquer argumento parece válido para justificativa da es

colha e na medida em que relegam à interpretação aos métodos para utilização dos

diversos argumentos, estagnam na metafísica, ignorando a virada linguística, insistin

do na relação sujeito-objeto, acabando, em última análise, também por privilegiarem

o sentido apofântico, em detrimento do hermenêutico.

Logo, assim como as demais propostas, também as teorias argumentanti-

vas, em especial, a argumentação alexyana e a sua ponderação, para a solução das

insuficiências do direito, ao menos como tem sido recepcionada pela jurisprudência

brasileira, a partir de uma ponderação rasa de interesses, sucumbem à fundamenta-

ção democrática, recaindo os resultados que alcançam na alçada da distorcida esco-

lha.

Feita a digressão sobre os modelos positivistas de decisão, é o pragmatis-

mo que vem à cena com o objetivo de ser cotejada a sua proposta decisional a partir

da distinção fundamental estabelecida.

No pragmatismo, cuja vertente analisada foi a do realismo americano de

Oliver Wendell Holmes Júnior, o que se prega é a liberdade criativa judicial, para, em

juízos nitidamente valorativos, exprimir a decisão que lhe pareça mais justa.

Conforme o estudado expoente, o Direito é aquilo que os Tribunais dizem

que é. Há, com isso, a completa negação à integridade como virtude política que se

erradia através de um todo coerente de princípios. Há, outrossim, apenas a exigên-

cia de se decidir a partir de qualquer teoria que se apresente adequada para expri-

mir a ideia do melhor para a comunidade, de acordo, diga-se, à vinculação valorativa

do intérprete sopesador dos interesses em disputa.

À evidência, os entraves desta proposta à vista da distinção adotada e da

construção da fundamentação democrática. Primeiro, por que torna os juízes legisla-

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dores, em desrespeito total à produção democrática do direito. Segundo, por que par

te de um “marco zero” de sentido do direito, negando a pré-compreensão, não se in-

serindo na intersubjetividade reclamada pelo paradigma atual, situando-se, flagrante

mente, na metafísica da filosofia da consciência, quando não muito no objetivismo

que “entifica” o texto.

É absolutamente afastada, por este modelo, a condição de alcançar-se à

resposta constitucionalmente adequada, inclusive, por que é correlato de sua propos

ta a existência de múltiplas soluções. A preocupação da decisão pragmática também

é só com uma suposta última etapa do processo compreensivo: os argumentos no

sentido de qual decisão representa melhor a pretendida maximalização dos resulta-

dos.

Mais uma cilada no Direito: a decisão revestida de cunho pragmatista, por

ignorar os campos da validade e da normatividade, não consiste em verdadeira deci-

são, situando os julgados assim proferidos na sua distorcida versão de escolha, fun-

dada em juízos subjetivos-valorativos.

Pior que o reconhecimento dessas incompatibilidades no plano de discus-

são de matizes teóricas para a decisão judicial e a interpretação do Direito, é percep

ção, a partir da análise jurisprudencial específica, o quanto repercutem na prática jurí

dica dos Tribunais, especialmente, do Supremo Tribunal Federal.

Dizendo de outro modo, sob as vestes de suposta decisão, o Judiciário

brasileiro tem feito flagrantes escolhas ou opções políticas, a partir de critérios outros

- subjetivistas e axiológicos -, que não jurídicos, transvestidos de argumentos. Ditas

escolhas não dão legitimidade à decisão judicial, nem correspondem ao dever e direi

to fundamental que emana do artigo 93, IX, da Constituição Federal 1988, refletem,

sim, as interpretações vulgarizadas de Warat cuja citação no decorrer do texto se fi-

zeram referencias.

Não é demais, mesmo à guisa de conclusão, pedir vênia para, nesse con-

texto da jurisprudência pátria, trazer à evidência as perplexas considerações alcança

das pelo falecido Ministro Humberto Gomes de Barros, no julgamento do AgReg em

Resp 279.889/AL, as quais dão sempre dignidade a toda discussão travada neste es

tudo sobre decidir ou escolher, de modo a restar claro que a interpretação judicial,

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no Estado Democrático de Direito, só pode ser equivalente à decisão, se legitimando

na e pela fundamentação democrática construída. Fora disso, o risco é para demora-

cia!

Referido Ministro, em sua atuação no Superior Tribunal de Justiça, profe-

rindo voto no julgado citado, em notório realismo brasileiro tardio, assim se colocou:

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for

Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da

minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros

deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me

submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos

Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos

estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja

respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs.

Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros

decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim,

porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros.

Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina

que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos.

Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando

viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração

de que temos notável saber jurídico — uma imposição da

Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim,

certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha

investidura obriga-me a pensar que assim seja398.

Sendo assim, à evidência de orientações tais no pensamento jurídico bra-

sileiro, sobretudo, na prática judiciária nacional, é que se demonstra o quão relevan-

te se mostra a discussão proposta através da distinção fundamental, devendo ser

levada à sério, na construção de uma Teoria da Decisão Judicial Democrática, como

forma de se implementar a tão sonhada democracia sustentável.

                                                                                                                         398 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 279889/AL. Agravante Fazenda Nacional. Agravado Pedro Lourenço Wanderley e outros. Relator Ministro José Delgado. Brasília, DF, 03 de abril de 2001. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200000986119&dt_publicacao=11/06/2001>. Acesso em 30 de setembro de 2015.

 

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