Por Que Engordamos_ e o Que Faz - Gary Taubes

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Por que engordamos: e o que fazer a respeito.

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  • NOTA DO AUTOR

    Este livro vem sendo elaborado h mais de uma dcada. Comeou com uma srie de artigosinvestigativos que escrevi para a Science e ento para a New York Times Magazine sobre o estadosurpreendentemente deplorvel das pesquisas sobre nutrio e doenas crnicas. uma extenso edesdobramento dos cinco anos de novas pesquisas que se tornaram meu livro anterior, GoodCalories, Bad Calories (2007). Seus argumentos foram lapidados em palestras em faculdades demedicina, universidades e institutos de pesquisa nos Estados Unidos e no Canad.

    O que tentei deixar claro em Good Calories, Bad Calories foi que as pesquisas sobre nutrio eobesidade perderam o rumo aps a Segunda Guerra Mundial, com o desmantelamento da comunidadeeuropeia de mdicos e cientistas que fizeram o trabalho pioneiro nessas disciplinas. Desde ento,vm resistindo a toda e qualquer tentativa de correo. Em consequncia, os indivduos envolvidosnessas pesquisas no s desperdiaram dcadas de tempo, esforo e dinheiro, como tambmcausaram danos incalculveis ao longo do caminho. Suas crenas permanecem inabalveis diante deum conjunto cada vez maior de evidncias que as refutam, enquanto so abraadas por autoridadesem sade pblica e traduzidas precisamente em recomendaes erradas sobre o que comer e, o que mais importante, o que no comer se quisermos manter um peso adequado e viver uma vida longa esaudvel.

    Em grande medida, decidi escrever Por que engordamos devido a dois retornos frequentes querecebi sobre Good Calories, Bad Calories.

    O primeiro vem dos pesquisadores que fizeram um esforo de entender os argumentos em GoodCalories, Bad Calories, que leram o livro ou assistiram a uma de minhas palestras ou, ainda,discutiram ideias comigo diretamente. Muitas vezes, essas pessoas me dizem que o que estouafirmando sobre o porqu de engordarmos, e sobre as causas alimentares de doenascardiovasculares, diabetes e outras enfermidades crnicas, faz muito sentido. bem possvel queisso esteja correto, dizem, com a implicao velada de que bem possvel que aquilo que nosdisseram durante as ltimas cinco dcadas esteja errado. Todos concordamos que essas ideiasconcorrentes deveriam ser testadas.

    Eu, no entanto, acredito que essa uma questo urgente. Se tantas pessoas esto ficando obesase diabticas porque estamos recebendo recomendaes erradas, no deveramos estar perdendotempo tentando determinar isso com certeza. A obesidade e a diabetes j so avassaladoras no spara centenas de milhes de indivduos, como tambm para nossos sistemas de sade.

    Contudo, mesmo quando esses pesquisadores veem a necessidade de encarar o problemaimediatamente, eles tm outras obrigaes e interesses legtimos, e inclusive so financiados pararealizar outras pesquisas. Com sorte, as ideias discutidas em Good Calories, Bad Calories podem

  • vir a ser testadas de forma rigorosa nos prximos vinte anos. Se confirmadas, levar pelo menosmais uma dcada at que nossas autoridades em sade pblica mudem efetivamente sua explicaooficial acerca de por que engordamos, de que maneira isso nos faz adoecer e o que podemos fazerpara evitar ou reverter esses fatos. Como me disse um professor de nutrio da Universidade deNova York aps uma de minhas palestras, poderia levar uma vida inteira para que o tipo de mudanaque estou defendendo seja aceito.

    Isso simplesmente tempo demais para esperar pelas respostas certas a essas perguntascruciais. Portanto, este livro foi escrito, em parte, para acelerar esse processo. Aqui, apresentoargumentos contra a sabedoria convencional, esmiuados at sua essncia. Se bem possvel queestejam corretos, tratemos de verific-los e faamos isso o quanto antes.

    O outro retorno que recebo com frequncia de leitores leigos, bem como de um nmeroalentador de mdicos, nutricionistas, pesquisadores e administradores de sade, que dizem que leramGood Calories, Bad Calories ou assistiram a minhas palestras, consideraram a lgica e asevidncias convincentes e abraaram a mensagem implcita. Eles me dizem que sua vida e sua sadeforam transformadas de maneira que no acreditavam ser possvel. Emagreceram quase sem esforoe foram capazes de manter o novo peso. Seus fatores de risco para doenas cardiovascularesapresentaram uma melhora significativa. Alguns contam que j no precisam dos medicamentos parahipertenso e diabetes. Eles se sentem melhor e com mais energia. Em suma, eles se sentemsaudveis pela primeira vez h muito tempo. Voc pode ver comentrios desse tipo na pgina daAmazon para Good Calories, Bad Calories, em que representam uma grande proporo das vriascentenas de avaliaes pessoais no site.

    Esses comentrios, e-mails e cartas muitas vezes vm acompanhados de uma solicitao. GoodCalories, Bad Calories um livro longo (quase quinhentas pginas), denso, com contexto histrico ecientfico, e repleto de notas, todas as quais acredito terem sido necessrias para iniciar um dilogoexpressivo com os especialistas e garantir que eles (ou os leitores) no aceitassem cegamente nadado que digo. O livro exige que o leitor dedique tempo e ateno considerveis para acompanhar osargumentos e as evidncias. Por essa razo, muitos dos que o leram me pediram para escrever outrolivro, um que seus maridos ou esposas, seus pais em idade avanada ou seus amigos e irmos possamler sem dificuldade. Muitos mdicos me pediram para escrever um livro que eles possam entregar aseus pacientes ou mesmo a seus colegas de profisso, um livro que no requeira tanto investimentode tempo e esforo.

    Portanto, essa a outra razo pela qual escrevi Por que engordamos. Espero que, ao l-lo,voc compreenda, talvez pela primeira vez, por que engordamos e o que fazer a respeito.

    Meu nico pedido que voc reflita criticamente durante a leitura. Quero que, enquanto l,pergunte a si mesmo se o que estou dizendo realmente faz sentido. Para usar um termo de MichaelPollan, a proposta deste livro ser um manifesto do pensador. Seu objetivo refutar alguns dosconceitos equivocados que se passam por recomendaes mdicas e de sade pblica nos Estados

  • Unidos e em todo o mundo, e equip-lo, caro leitor, com a lgica e as informaes necessrias paratomar sua sade e seu bem-estar nas prprias mos.

    Porm, quero fazer um alerta: se voc aceitar meus argumentos como vlidos e mudar suaalimentao conforme proponho, pode estar indo contra as recomendaes do seu mdico e,certamente, contra as recomendaes dos rgos governamentais e organizaes de sade que ditama opinio consensual sobre o que constitui uma dieta saudvel. Nesse sentido, voc l esse livro eage com base nele por sua conta e risco. Para, entretanto, retificar essa situao, voc pode entregareste livro ao seu mdico quando terminar de l-lo para que ele tambm possa decidir em quem e noque acreditar. E tambm poderia entreg-lo a seus representantes no Congresso, porque a epidemiacada vez maior de obesidade e diabetes nos Estados Unidos e em todo o mundo , com efeito, umgrave problema de sade pblica, e no s um fardo a ser carregado individualmente. Ajudaria senossos representantes eleitos entendessem de fato como chegamos a essa situao para que pudessemfinalmente agir para resolv-la, em vez de perpetu-la.

    G.T., setembro de 2010Este livro no substitui orientaes mdicas. As informaes aqui fornecidas tm por

    objetivo ajudar o leitor a tomar decises embasadas sobre sua sade. Entretanto, antes decomear a seguir as recomendaes alimentares apresentadas neste livro ou qualquer outra dieta,voc deve consultar seu mdico.

  • INTRODUO

    O PECADO ORIGINAL

    Em 1934, uma jovem pediatra alem chamada Hilde Bruch mudou-se para os Estados Unidos, seinstalou na cidade de Nova York e ficou impressionada, como escreveu mais tarde, com o nmerode crianas obesas que viu realmente obesas, no s nas clnicas, mas nas ruas e nos metrs, e nasescolas. Com efeito, as crianas obesas na cidade de Nova York chamavam tanto a ateno queoutros imigrantes europeus costumavam perguntar a Bruch sobre isso, presumindo que ela teria umaresposta. Qual o problema com as crianas norte-americanas?, perguntavam. Por que elas so togordas e barrigudas? Muitos diziam que nunca tinham visto tantas crianas em tal estado.

    Hoje ouvimos essas perguntas o tempo todo, ou as fazemos ns mesmos, com os constanteslembretes de que estamos em meio a uma epidemia de obesidade (assim como todos os pasesdesenvolvidos). Perguntas similares so feitas com relao a adultos obesos. Por que eles so togordos e barrigudos? Ou talvez voc se pergunte: Por que eu sou?

    Mas essa era a cidade de Nova York em meados dos anos 1930. Isso foi duas dcadas antes dasprimeiras franquias de McDonalds e KFC, quando nasceu o fast-food tal como o conhecemos hoje.Isso foi meio sculo antes das pores extragrandes e do xarope de milho rico em frutose. Maisexatamente, 1934 era o pior momento da Grande Depresso, uma poca de sopas comunitrias, filaspara o po e desemprego sem precedentes. Um em cada quatro trabalhadores nos Estados Unidosestava desempregado. Seis em cada dez norte-americanos estavam vivendo na pobreza. Na cidade deNova York, onde Bruch e seus colegas imigrantes ficaram impressionados com a adiposidade dascrianas locais, consta que uma em cada quatro crianas era desnutrida. Como isso possvel?

    Um ano depois de chegar a Nova York, Bruch abriu uma clnica no Colgio de Mdicos eCirurgies da Universidade de Columbia para tratar crianas obesas. Em 1939, ela publicou oprimeiro de uma srie de relatrios sobre seus estudos exaustivos das muitas crianas obesas quetratou, embora na maioria das vezes sem sucesso. Com base em entrevistas com os pacientes e seusfamiliares, ela descobriu que as crianas obesas realmente ingeriam quantidades excessivas dealimento por mais que elas, ou seus pais, negassem esse fato no incio. Dizer a elas para comermenos, no entanto, simplesmente no funcionava, e nenhuma instruo, compaixo, orientao ouexortao dirigida s crianas ou aos pais parecia ajudar.

  • Segundo Bruch, era difcil evitar o simples fato de que, afinal, essas crianas haviam passado avida toda tentando comer com moderao e, desse modo, controlar seu peso, ou ao menos pensandoem comer menos do que comiam, mas ainda assim continuavam obesas. Algumas dessas crianas,Bruch relatou, faziam rduos esforos para perder peso, praticamente desistindo de viver paraconseguir isso. Contudo, manter um peso mais baixo implicava viver o tempo todo em dieta defome, e elas simplesmente no conseguiam fazer isso, embora a obesidade as tornasse infelizes eexcludas.

    Uma das pacientes de Bruch era uma adolescente de ossatura fina, que literalmentedesaparecia sob montes de banha. Essa jovem passara a vida lutando contra a balana e contra astentativas de seus pais de ajud-la a emagrecer. Ela sabia o que tinha de fazer, ou ao menosacreditava que sim, e seus pais tambm ela precisava comer menos , e o esforo para isso definiasua existncia. Eu sempre soube que a vida de uma pessoa dependia da sua imagem, ela disse aBruch. Eu sempre ficava infeliz e deprimida quando ganhava [peso]. No havia motivo para viver[...]. Eu realmente me odiava. Eu no suportava. No queria olhar para mim mesma. Odiavaespelhos. Eles me mostravam o quanto eu era gorda [...] Comer e engordar nunca me fizeram sentirfeliz mas eu nunca consegui enxergar uma soluo para isso e continuei engordando.

    Como a adolescente de ossatura fina de Bruch, aqueles de ns que estamos acima do peso ouobesos passaremos grande parte da vida tentando comer menos, ou no mnimo no comer demais. svezes conseguimos, s vezes no, mas a luta continua. Para alguns, como a paciente de Bruch, abatalha comea na infncia. Para outros, comea na faculdade, com aquela camada de gordura queaparece ao redor da cintura e dos quadris durante o primeiro ano longe de casa. Outros, ainda,comeam a perceber aos trinta ou quarenta anos que ser magro j no to fcil quanto antes.

    Se somos mais gordos do que as autoridades mdicas gostariam, e formos a um mdico poralguma razo, provvel que esse mdico sugira de forma mais ou menos contundente que faamosalgo a respeito. O sobrepeso e a obesidade, dir, esto associados a um aumento no risco depraticamente todas as enfermidades crnicas que nos afligem doenas cardiovasculares, AVC,diabetes, cncer, demncia, asma. Seremos instrudos a praticar exerccios regularmente, fazer dieta,comer menos, como se a ideia de adotar essas prticas, o desejo de adot-las, nunca tivesse passadopor nossa cabea. Mais do que em qualquer outra enfermidade, como disse Bruch a respeito daobesidade, s se requer que o mdico realize um truque especial, que leve o paciente a fazer algo parar de comer , quando j se provou que ele no capaz disso.

    Os mdicos da poca de Bruch no eram imprudentes, e os mdicos de hoje tambm no so.Eles apenas tm um sistema de crenas um paradigma falho, que estipula que o motivo pelo qualengordamos claro e incontroverso, assim como a cura. Ns engordamos, segundo os mdicos,porque comemos demais e/ou nos exercitamos de menos, e portanto a cura fazer o contrrio. Nomnimo, devemos tentar no comer demais, como Michael Pollan famosamente prescreve em seu

  • best-seller Em defesa da comida, e isso bastar. Ao menos no ficaremos ainda mais gordos. Foiisso que Bruch descreveu em 1959 como a postura norte-americana predominante de que oproblema [da obesidade] simplesmente de comer mais do que o corpo necessita e que agora apostura predominante no mundo inteiro.

    Podemos chamar isso de paradigma do balano calrico ou paradigma da alimentaoexcessiva paradigma do equilbrio energtico, para usar o termo preciso. A causa fundamentalda obesidade e do sobrepeso, como afirma a Organizao Mundial da Sade, um desequilbrioenergtico entre as calorias consumidas, por um lado, e as calorias gastas, por outro.[1] Nsengordamos quando consumimos mais energia do que gastamos (um balano energtico positivo, naterminologia cientfica) e emagrecemos quando gastamos mais energia do que consumimos (umbalano energtico negativo). Alimento energia, e medimos essa energia na forma de calorias.Portanto, se consumimos mais calorias do que gastamos, engordamos. Se consumimos menoscalorias, emagrecemos.

    Esse modo de pensar sobre o nosso peso corporal to convincente e to disseminado que,hoje em dia, praticamente impossvel no acreditar nele. Mesmo tendo um sem-nmero deevidncias do contrrio no importa quanto de nossa vida passamos, sem sucesso, tentando comermenos e nos exercitar mais , mais provvel questionarmos nosso prprio discernimento e nossaprpria fora de vontade do que questionarmos a noo de que a adiposidade determinada pelaquantidade de calorias que consumimos e gastamos.

    Meu exemplo favorito desse pensamento vem de um respeitado fisiologista do exerccio,coautor de um conjunto de atividades fsicas e diretrizes de sade que foram publicadas em agosto de2007 pela Associao Americana do Corao e pelo Colgio Americano de Medicina Esportiva.Esse colega me contou que ele prprio era baixo, gordo e careca quando comeou a praticarcorrida de longa distncia nos anos 1970 e agora, com quase setenta anos, era baixo, mais gordo ecareca. Nesse meio-tempo, relatou, ele ganhou treze quilos e correu, talvez, 130 mil quilmetros oequivalente mais ou menos a dar trs voltas ao redor da Terra (na linha do Equador). Ele acreditavaque a prtica de exerccios fsicos podia ajud-lo a manter o peso somente at certo ponto, mastambm acreditava que seria mais gordo se no praticasse corrida.

    Quando lhe perguntei se ele pensava que poderia ser mais magro se tivesse corrido ainda mais,talvez quatro vezes ao redor do planeta em vez de trs, ele respondeu: No vejo como poderia tersido mais ativo. Eu no tinha tempo para praticar mais. Porm, se tivesse corrido de duas a trs horaspor dia durante as ltimas duas dcadas, talvez no tivesse ganhado esse peso. E o ponto quetalvez tivesse ganhado mesmo assim, mas ele simplesmente no conseguia enxergar essapossibilidade. Como diriam os socilogos da cincia, ele estava preso em um paradigma.

    Com o passar dos anos, esse paradigma do balano calrico mostrou-se notadamente resistentea toda evidncia contrria. Imagine um julgamento por assassinato em que testemunhas dignas de

  • crdito prestam depoimento, uma aps outra, declarando que o suspeito estava em outro lugar nomomento do assassinato e, portanto, tinha um libi incontestvel, e mesmo assim os juradoscontinuam insistindo que o ru culpado, porque nisso que acreditavam quando o julgamentocomeou.

    Considere a epidemia de obesidade. C estamos ns, uma populao ficando cada vez maisgorda. H cinquenta anos, um em cada oito ou nove norte-americanos teria sido consideradooficialmente obeso, e hoje um em cada trs. Dois em cada trs so considerados acima do peso, oque significa que pesam mais do que as autoridades em sade pblica consideram saudvel. Ascrianas so mais gordas, os adolescentes so mais gordos, at os recm-nascidos esto saindo dotero mais gordos. Ao longo de dcadas dessa epidemia de obesidade, a noo de equilbrioenergtico e relao entre consumo e gasto calrico manteve-se firme, e por isso os oficiais de sadepresumem que no estamos prestando ateno ao que nos vm dizendo para comer menos e praticarmais exerccios ou que simplesmente no conseguimos evitar.

    Malcom Gladwell discutiu esse paradoxo na The New Yorker em 1998. Nos disseram que nodevemos ingerir mais calorias do que queimamos, que no podemos perder peso se no praticarmosexerccios fsicos regularmente, escreveu. Que poucos de ns sejamos capazes de realmente seguiressa recomendao ou nossa culpa, ou culpa da recomendao. A ortodoxia mdica, naturalmente,tende primeira posio. Os livros de dieta tendem ltima. Considerando a frequncia com que aortodoxia mdica esteve errada no passado, essa postura no , primeira vista, irracional. Vale apena verificar se isso verdade.

    Aps entrevistar o nmero necessrio de autoridades, Gladwell concluiu que era nossa culpa,que ns simplesmente carecemos da disciplina [...] ou dos meios necessrios para comer menos epraticar mais exerccios embora para alguns de ns, segundo afirmou, nossa adiposidade se devamais a fatores genticos do que a fracassos morais.

    Neste livro, argumentarei que a culpa toda da ortodoxia mdica a crena de que o excessode gordura causado pelo consumo excessivo de calorias e a recomendao que decorre de talcrena. Argumentarei que esse paradigma do balano calrico para explicar a adiposidade no fazsentido: que no engordamos porque comemos demais e nos exercitamos de menos e que noresolvemos o problema ou o prevenimos fazendo o oposto. Este o pecado original, por assim dizer,e jamais resolveremos nossos prprios problemas de peso corporal, muito menos os problemassociais de obesidade e diabetes e das doenas que os acompanham, enquanto no entendermos talfato e o corrigirmos.

    No pretendo insinuar, entretanto, que existe uma receita mgica para perder peso, ou ao menosno uma que no inclua sacrifcio. A questo : o que deve ser sacrificado?

    A primeira parte deste livro apresentar as evidncias contra a hiptese do balano calrico.Discutir muitas das observaes, dos fatos da vida, que esse conceito no consegue explicar, por

  • que passamos a acreditar nele mesmo assim e que erros cometemos em consequncia disso.A segunda parte do livro apresentar o modo de pensar a obesidade e o excesso de gordura que

    os mdicos-pesquisadores europeus vieram a aceitar pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Elesargumentaram, como farei, que absurdo conceber a obesidade como sendo causada por umaalimentao excessiva, porque qualquer coisa que faa as pessoas crescerem seja em altura ou empeso, em msculo ou em gordura as far comer em excesso. As crianas, por exemplo, no ficammais altas porque comem com voracidade e consomem mais calorias do que gastam. Elas comemtanto em excesso porque esto crescendo. Elas precisam consumir mais calorias do que gastam.A razo pela qual as crianas crescem que elas esto secretando hormnios que as fazem crescer nesse caso, o hormnio do crescimento. E h todas as razes para pensar que o crescimento de nossotecido adiposo que leva ao sobrepeso e obesidade tambm conduzido e controlado porhormnios.

    Portanto, em vez de definir a obesidade como um desequilbrio energtico ou consequncia deuma alimentao excessiva, como tm feito os especialistas nos ltimos cinquenta anos, essespesquisadores europeus partiram da ideia de que a obesidade , fundamentalmente, um distrbio deacumulao excessiva de gordura. Isso o que um filsofo chamaria de princpios fundamentais. Averdade contida nessa afirmao to bvia que parece quase sem sentido diz-la. Contudo, uma vezdita, a pergunta natural a ser feita : o que regula a acumulao de gordura? Porque, quaisquer quesejam os hormnios ou enzimas que agem para aumentar naturalmente nossa acumulao de gordura assim como o hormnio do crescimento faz as crianas crescerem , eles sero os principaissuspeitos em que devemos nos centrar para determinar por que alguns de ns engordamos e outrosno.

    Lamentavelmente, a comunidade de pesquisa mdica da Europa mal sobreviveu SegundaGuerra Mundial, e esses mdicos e suas ideias sobre a obesidade no estavam por perto no fim dosanos 1950 e incio dos anos 1960, quando essa pergunta sobre o que regula a acumulao de gordurafoi respondida. Como se veio a saber, dois fatores determinam essencialmente a quantidade degordura que acumulamos, e ambos tm relao com o hormnio insulina.

    Primeiro, quando os nveis de insulina esto elevados, acumulamos gordura em nosso tecidoadiposo; quando esses nveis caem, liberamos gordura do tecido adiposo e a queimamos para obterenergia. Isso sabido desde o incio dos anos 1960 e nunca foi controverso. Segundo, nossos nveisde insulina so praticamente determinados pelos carboidratos que comemos no totalmente, maspara todos os efeitos. Quanto mais carboidratos comemos, e quanto mais doces e fceis de digerireles so, mais insulina acabaremos secretando, o que significa que o nvel de insulina em nossacorrente sangunea maior, assim como a gordura que retemos em nossas clulas adiposas. Ocarboidrato estimula a insulina, que estimula a gordura, como George Cahill, ex-professor demedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, recentemente descreveu para mimesse processo. Cahill conduziu parte das pesquisas iniciais sobre a regulao da acumulao de

  • gordura nos anos 1950 e ento coeditou um compndio dessas pesquisas em 180 pginas para aSociedade Americana de Fisiologia, que foi publicado em 1965.

    Em outras palavras, a prpria cincia deixa claro que hormnios, enzimas e fatores decrescimento regulam nosso tecido adiposo, assim como tudo mais em nosso corpo, e que noengordamos porque comemos demais; engordamos porque os carboidratos em nossa dieta nos fazemengordar. A cincia nos diz que a obesidade , em definitivo, resultado de um desequilbriohormonal, e no calrico especificamente, o estmulo de secreo de insulina causado pelaingesto de alimentos ricos em carboidratos de fcil digesto: carboidratos refinados, incluindofarinha e cereais em gros, vegetais ricos em amido, como o caso das batatas, e acares, comosacarose (acar refinado) e xarope de milho rico em frutose. Esses carboidratos literalmente nosfazem engordar e, levando-nos a acumular gordura, eles nos tornam mais famintos e sedentrios.

    Esta a realidade fundamental de por que engordamos. Se quisermos ficar magros e continuarmagros, precisamos compreender e aceitar tal fato e, talvez o mais importante, nossos mdicostambm precisam.

    Se seu objetivo ao ler este livro for simplesmente encontrar uma resposta para a pergunta Oque fao para continuar magro ou perder o excesso de gordura em meu corpo?, aqui est: fiquelonge de alimentos ricos em carboidratos e, quanto mais doce o alimento, ou quanto mais fcil deconsumir e digerir carboidratos lquidos como cerveja, suco de fruta e refrigerante soprovavelmente os piores , maior a probabilidade de que o faam engordar e mais voc deve evit-los.

    Sem dvida, esta no uma mensagem nova. At os anos 1960, como discutirei mais adiante,era a sabedoria convencional. Alimentos ricos em carboidratos pes, massas, batatas, doces,cerveja eram vistos como atipicamente engordantes, e quem quisesse evitar engordar no osconsumia. Desde ento, tem sido a mensagem de uma srie interminvel de livros de dieta que muitasvezes se tornam best-sellers. No entanto, esse fato essencial tem sido to mal-utilizado, e a cinciaem questo to distorcida ou mal-interpretada, tanto por aqueles que propem essas dietas comrestrio de carboidratos quanto por aqueles que insistem que elas so uma moda perigosa (entre osquais a Associao Americana do Corao), que quero explic-lo uma vez mais. Se o argumento forconvincente o bastante para fazer voc mudar sua dieta, tanto melhor. Darei alguns conselhos sobrecomo fazer isso, com base em lies que aprendi com mdicos que tm anos de experincia usandoessas dietas para tratar seus pacientes obesos e, com frequncia, diabticos.

    Nas mais de seis dcadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando essa pergunta sobreo que nos faz engordar calorias ou carboidratos era discutida, muitas vezes parecia mais umaquesto religiosa do que cientfica. So tantos os sistemas de crena diferentes que interferem naquesto do que constitui uma dieta saudvel que a questo cientfica por que engordamos? foiesquecida no meio do caminho. Foi ofuscada por consideraes ticas, morais e sociolgicas que

  • so vlidas em si mesmas e certamente dignas de ser debatidas, mas que no tm nada a ver com acincia propriamente dita e no tm lugar em uma investigao cientfica.

    As dietas com restrio de carboidratos geralmente (embora no, talvez, idealmente) substituemos carboidratos na dieta por pores grandes ou, no mnimo, maiores de produtos de origem animal a comear por ovos no caf da manh, passando para carnes, peixes ou aves no almoo e no jantar.As implicaes disso merecem ser discutidas. Nossa dependncia de produtos de origem animal jno ruim para o meio ambiente, e no ficar ainda pior? A criao de animais no um dosprincipais fatores de aquecimento global, escassez de gua e poluio? Ao pensar em uma dietasaudvel, no deveramos pensar no que bom para ns e tambm para o planeta? Temos o direito dematar animais para nos servir de alimento ou coloc-los para trabalhar em sua produo? O nicoestilo de vida moralmente ou eticamente defensvel no seria o vegetariano ou mesmo vegano?

    Essas so todas perguntas importantes que precisam ser abordadas, como indivduos e comosociedade. Mas elas no tm vez na discusso mdica e cientfica sobre por que engordamos. E isso que estou tentando explorar aqui assim como Hilde Bruch fez h mais de setenta anos. Por quesomos gordos? Por que nossas crianas so gordas? O que podemos fazer a respeito?

    [1] Tais pronunciamentos oficiais so efetivamente universais. Aqui esto mais alguns. Centro para Controle de Doenas dos EstadosUnidos: A gesto do peso uma questo de equilbrio equilibrar o nmero de calorias que voc consome com o nmero de caloriasque o seu corpo usa ou queima. Conselho de Pesquisa Mdica do Reino Unido: Embora o aumento da obesidade no possa seratribudo a nenhum fator isolado, sua causa o mero desequilbrio entre a energia consumida (por meio das escolhas alimentares quefazemos) e a energia gasta (principalmente por meio de atividade fsica). Instituto Nacional de Pesquisa Mdica e Sade da Frana(INSERM): O sobrepeso e a obesidade sempre resultam de um desequilbrio entre o consumo e o gasto de energia. Ministrio deSade da Alemanha: O sobrepeso o resultado de um excesso de energia consumida em comparao com a energia gasta.

  • LIVRO I

  • CAPTULO 1

    POR QUE ELES ERAM GORDOS?

    Imagine que voc parte de um jri. O ru acusado de um crime atroz. O promotor tem provas que,segundo ele, implicam o acusado de forma decisiva. Ele afirma que as provas so clarssimas e quevoc deve votar a favor da condenao do ru. Esse criminoso deve ser posto atrs das grades, elediz, porque uma ameaa sociedade.

    O advogado de defesa est argumentando com igual veemncia que as evidncias no so assimto inequvocas. O ru tem um libi, embora no seja perfeito. H impresses digitais na cena docrime que no correspondem s do ru. Ele afirma que a polcia pode ter manejado mal as provasforenses (as amostras de cabelo e o DNA). A defesa argumenta que o caso no , nem de longe, todefinitivo quanto o promotor o levou a acreditar. Se voc tem dvidas cabveis, como se espera quetenha, deve absolv-lo, ele diz. Se colocar um homem inocente atrs das grades, voc no scometer injustias incalculveis contra essa pessoa, como tambm deixar o culpado livre paraatacar novamente.

    Na sala de deliberaes do jri, sua tarefa avaliar as afirmaes e contra-afirmaes a fim detomar uma deciso baseada unicamente nas evidncias. No importa quais possam ter sido suasinclinaes quando o julgamento comeou. No importa se voc achava que o ru parecia culpado ouque no parecia o tipo de pessoa que cometeria um ato to horrvel. Tudo o que importa so asevidncias e se elas so convincentes ou no.

    Um dado que sabemos sobre justia criminal que pessoas inocentes muitas vezes socondenadas por crimes que no cometeram, apesar de um sistema judicirio que destinado a evitarexatamente isso. Um aspecto recorrente na longa sequncia de erros da justia que aqueles que socondenados indevidamente costumam ser os suspeitos bvios. Sua condenao parece correta; asevidncias que poderiam isent-los so descartadas com mais facilidade. Questes complicadas sodeixadas de lado, assim como as provas que possivelmente os libertaro depois de condenados.

    Seria bom pensar que a cincia e os cientistas no cometem erros desse tipo, mas elesacontecem o tempo todo. So parte da natureza humana. Supe-se que os mtodos cientficos evitema adoo de falsas convices, mas esses mtodos nem sempre so seguidos e, mesmo quando so,inferir a verdade sobre a natureza e o universo uma tarefa difcil. O senso comum pode ser um guia

  • eficaz, porm, como assinalou Voltaire em seu Dicionrio filosfico, o senso comum no assim tocomum, mesmo entre cientistas, e muitas vezes o que a cincia nos diz que as ideias que parecemser senso comum no o so. O Sol no gira em torno da Terra, por exemplo, apesar de as aparnciassuperficiais indicarem o contrrio.

    O que separa a cincia e o direito da religio que, para a primeira, nada deve ser aceito combase na f. Somos encorajados a perguntar se as evidncias de fato corroboram aquilo em quequerem que acreditemos ou em que crescemos acreditando e temos liberdade para perguntar setodas as evidncias esto sendo levadas em considerao ou apenas uma parte tendenciosa delas. Senossas crenas no so corroboradas pelas evidncias, somos encorajados a modificar nossascrenas.

    supreendentemente fcil encontrar evidncias que refutam a convico de que engordamosporque consumimos mais calorias do que gastamos isto , porque comemos demais. Na maior partedas cincias, avaliar ceticamente as evidncias considerado um requisito fundamental paraprogredir. Em nutrio e sade pblica, entretanto, isso visto por muitos como contraproducente,porque mina esforos de promover comportamentos que as autoridades acreditam, de maneiraacertada ou no, serem bons para ns.

    Contudo nossa sade (e nosso peso corporal) esto em risco aqui, e por isso devemos analisaras evidncias e ver aonde elas nos levam. Imagine que somos parte de um jri encarregado dedecidir se comer demais consumir mais calorias do que gastamos ou no responsvel pelocrime de obesidade e sobrepeso.

    Um ponto de partida conveniente a epidemia de obesidade. Desde que os pesquisadores nosCentros de Controle e Preveno de Doenas (CDC, na sigla em ingls) divulgaram, em meados dosanos 1990, que a epidemia havia se instalado, as autoridades colocaram a culpa na alimentaoexcessiva e no comportamento sedentrio, atribuindo esses dois fatores relativa abundncia dassociedades modernas.

    O aumento da prosperidade teria causado a epidemia, auxiliada e encorajada pelas indstriasalimentcia e do entretenimento, conforme explicou a nutricionista Marion Nestle na Science em2003. [Essas indstrias] transformam os indivduos com renda disponvel em consumidores dealimentos propagandeados de forma agressiva, os quais so ricos em energia, mas pobres em valornutricional, e de carros, aparelhos de TV e computadores que promovem o comportamentosedentrio. Ganhar peso bom para os negcios.

    O psiclogo Kelly Brownell, da Universidade de Yale, cunhou o termo ambiente txico paradescrever a mesma ideia. Assim como os residentes do Love Canal ou de Chernobyl viviam emambientes txicos que propiciavam o desenvolvimento de cncer (substncias qumicas nos lenisfreticos e radioatividade), o restante de ns, segundo Brownell, vive em um ambiente txico quepropicia a alimentao excessiva e a inatividade fsica. A obesidade a consequncia natural.

  • Cheesebrgueres e batatas fritas, drive-ins e pores extragrandes, doces e refrigerantes, chips debatata e salgadinhos de milho sabor queijo, todos eles um dia raros, hoje so parte de nossapaisagem tanto quanto rvores, grama e nuvens, diz. Poucas crianas vo escola caminhando oude bicicleta; h pouca educao fsica; computadores, videogames e televisores mantm as crianasdentro de casa e inativas; e os pais relutam em deixar os filhos livres para brincar.

    Em outras palavras, dinheiro demais, comida demais, facilmente disponvel, e incentivosdemais para ser sedentrios ou pouca necessidade de ser fisicamente ativos teriam causado aepidemia de obesidade. A Organizao Mundial da Sade usa um raciocnio idntico para explicar aepidemia de obesidade no mundo, atribuindo-a a rendas mais altas, urbanizao, mudanas rumo aescolhas profissionais que exigem menos esforo fsico [...] mudanas rumo a menos atividade fsica[...] e cultivo de atividades de lazer mais passivas. Os pesquisadores de obesidade hoje usam umtermo aparentemente cientfico para descrever essa condio: eles se referem ao ambienteobesognico em que vivemos nos dias de hoje, isto , um ambiente propenso a transformar pessoasmagras em gordas.

    Uma evidncia que precisa ser considerada nesse contexto, entretanto, o fato bemdocumentado de que ser gordo est associado com pobreza, e no com prosperidade certamente nocaso das mulheres e com frequncia no caso dos homens. Quanto mais pobres somos, mais gordostendemos a ser. Isso foi relatado pela primeira vez em uma pesquisa com nova-iorquinos habitantesde Midtown Manhattan no incio dos anos 1960: as mulheres obesas tinham seis vezes maisprobabilidade de ser pobres do que ricas; os homens obesos, duas vezes mais. Isso se confirmou empraticamente todos os estudos desde ento, tanto em adultos quanto em crianas, incluindo as citadaspesquisas do Centro de Controle e Preveno de Doenas que revelaram a existncia de umaepidemia de obesidade.[1]

    Ser possvel que a epidemia de obesidade seja causada pela prosperidade, de modo que,quanto mais ricos nos tornamos, mais magros ficamos, e que a obesidade esteja associada com apobreza, de modo que, quanto mais pobres somos, maior a probabilidade de sermos gordos? Isso no impossvel. Talvez os pobres no sofram a presso de seus pares que sofrem os ricos para semanter magros. Acredite ou no, esta tem sido uma das explicaes aceitas para esse aparenteparadoxo. Outra explicao comumente aceita para a associao entre obesidade e pobreza quemulheres mais gordas se casam com homens de uma classe social inferior, ao passo que mulheresmais magras se casam com homens de uma classe social mais alta. Uma terceira que as pessoaspobres no dispem do tempo livre para praticar exerccios de que dispem as pessoas ricas; elasno tm dinheiro para frequentar academias e moram em bairros sem parques nem caladas, por issoseus filhos no tm oportunidades para se exercitar e caminhar. Essas explicaes podem serverdadeiras, mas exigem um esforo de imaginao, e a contradio torna-se ainda mais gritante medida que nos aprofundamos.

  • Se observarmos a literatura mdica o que, nesse caso, os especialistas no fizeram ,podemos encontrar vrias populaes que registram nveis de obesidade similares aos dos EstadosUnidos, da Europa e de outras regies, mas sem prosperidade e com poucos, ou nenhum, dosingredientes do ambiente txico de Brownell: sem cheesebrgueres, refrigerantes ou salgadinhos demilho sabor queijo, sem drive-ins, computadores ou aparelhos de TV (s vezes nem mesmo livros,com a exceo da Bblia, talvez) e sem mes superprotetoras que impeam os filhos de brincarlivremente.

    Nessas populaes, as rendas no estavam aumentando; no havia mecanismos para poupar mode obra, nem mudanas rumo a trabalhos que exigem menos esforo fsico, e tampouco se cultivavamformas mais passivas de lazer. Ao contrrio, algumas dessas populaes eram mais pobres do quesomos capazes de conceber. Pauprrimas. Essas so as populaes que, segundo a hiptese dobalano calrico, deveriam ser to magras quanto se pode ser, e ainda assim no o eram.

    Lembra-se dos questionamentos de Hilde Bruch sobre todas aquelas crianas obesas em meio Grande Depresso? Bem, esse tipo de observao no to atpico quanto poderamos pensar.Considere uma tribo de ndios norte-americanos no Arizona, conhecidos como pimas. Hoje os pimaspossivelmente tm o maior ndice de obesidade e diabetes dos Estados Unidos. Seu problema muitas vezes evocado como um exemplo do que acontece quando uma cultura tradicional entra emchoque com o ambiente txico da Amrica moderna. Os pimas costumavam ser agricultores ecaadores, dizem, e hoje so assalariados sedentrios, como o resto de ns, indo de carro at osmesmos restaurantes de fast-food, comendo os mesmos salgadinhos, assistindo aos mesmosprogramas de TV e ficando gordos e diabticos tal como o restante de ns, s que um pouco mais. medida que a tpica dieta norte-americana se tornou mais disponvel na reserva [pima do rio Gila]aps a [Segunda] Guerra [Mundial], de acordo com os Institutos Nacionais de Sade dos EstadosUnidos, as pessoas ficaram mais obesas.

    O grifo na citao meu, porque, como se v, os pimas tinham um problema de peso bem antesda Segunda Guerra Mundial e mesmo antes da Primeira, uma poca em que no havia nadaparticularmente txico em seu ambiente, ou ao menos no da forma como seria descrito hoje. Entre1901 e 1905, dois antroplogos estudaram os pimas, e ambos comentaram sobre como eles eramgordos, em particular as mulheres.

    O primeiro foi Frank Russell, um jovem antroplogo de Harvard, cujo relatrio pioneiro sobreos pimas foi publicado em 1908. Russell observou que muitos dos pimas mais velhos apresentavamum grau de obesidade que est em ntido contraste com o ndio alto e musculoso que se tornouconvencional no pensamento popular. Ele tambm tirou a foto da pima [p. 31] que batizou de FatLouisa.

    O segundo foi Ales Hrdlicka, que primeiro se formou mdico e mais tarde veio a ser curador deantropologia fsica no Instituto Smithsonian. Hrdlicka visitou os pimas em 1902 e novamente em1905 como parte de uma srie de expedies que realizou para estudar a sade e o bem-estar das

  • tribos nativas da regio. Indivduos especialmente bem-nutridos, mulheres e tambm homens, soencontrados em todas as tribos e em todas as idades, escreveu Hrdlicka sobre os pimas e os utes dosul, situados em uma regio prxima, mas a obesidade real encontrada quase exclusivamente entreos ndios nas reservas.

    Imagem 01: A pima obesa a quem Frank Russell chamou deFat Louisa h mais de cem anos certamente no engordou porque

    comeu em restaurantes de fast-food e assistiu televiso em excesso.

    O que torna essa observao to notvel que os pimas, na poca, tinham deixado de estarentre as tribos mais abastadas dos Estados Unidos para estar entre as mais pobres. O que quer que ostenha tornado gordos, prosperidade e renda em ascenso no tiveram nada a ver com isso; comefeito, parecia ser exatamente o contrrio.

    Durante os anos 1850, os pimas foram excelentes caadores e agricultores. Os animais de caaeram abundantes na regio, e os pimas eram particularmente adeptos de captur-los ou mat-los comarco e flecha. Eles tambm comiam peixe e moluscos do rio Gila, que corria por seu territrio.Cultivavam milho, feijo, trigo, melo e figo em campos irrigados com gua do Gila, e tambmcriavam gado e aves.

    Em 1846, quando um batalho do exrcito norte-americano passou pelas terras dos pimas, JohnGriffin, o cirurgio do batalho, descreveu os pimas como cheios de vida e em excelente estadode sade, tendo observado que eles tambm tinham verdadeira abundncia de alimentos armazns carregados.[2] Tanto que, quando teve incio a corrida do ouro trs anos depois, o governodos Estados Unidos pediu que os pimas fornecessem comida, e eles forneceram, para as dezenas demilhares de viajantes que passaram por seu territrio na dcada seguinte, com destino Califrnia no

  • Caminho de Santa F.Com a corrida pelo ouro na Califrnia, o paraso relativo dos pimas chegou ao fim e, com ele,

    sua riqueza. Anglo-americanos e mexicanos comearam a se instalar na regio em grande nmero.Esses recm-chegados alguns dos espcimes mais vis de humanidade que a raa branca jproduziu, nas palavras de Russell caaram os animais da regio at praticamente extingui-los edesviaram a gua do rio Gila para irrigar seus prprios campos custa dos cultivos dos pimas.

    Na dcada de 1870, os pimas estavam passando pelo que chamaram de anos de fome. Oincrvel que a fome, o desespero e a dissipao que da resultaram no devastaram a tribo,escreveu Russell. Quando Russell e Hrdlicka apareceram, nos primeiros anos do sculo XX, a triboainda estava cultivando o que conseguisse, mas agora contava com raes do governo para asubsistncia cotidiana.

    Ento, por que eles eram gordos? Supe-se que anos de fome levam perda de peso, e no aoganho ou manuteno, como talvez fosse o caso. E, se as raes do governo eram simplesmenteexcessivas, tornando a fome coisa do passado, por que os pimas engordariam com as raesabundantes e no com a comida abundante que tinham antes da poca de fome? Talvez a respostaesteja no tipo de alimento consumido, uma questo de qualidade e no de quantidade. Isso o queRussell estava propondo quando escreveu que certos alimentos em sua dieta pareciam sermarcadamente engordantes.

    Hrdlicka tambm considerou que os pimas deveriam ser magros, tendo em vista o estadoprecrio de sua existncia, e afirmou: ao que parece, o papel desempenhado pelo alimento naproduo de obesidade entre os ndios indireto. Isso o levou a supor que a causa era a inatividadefsica ou, no mnimo, a inatividade fsica relativa. Em outras palavras, os pimas talvez fossem maisativos do que somos hoje, considerando os rigores da agricultura pr-industrial, mas eramsedentrios em comparao ao que costumavam ser. Isso o que Hrdlicka chamou de mudana desua vida ativa passada para o estado presente de no pouca indolncia. Mas, ento, ele no foicapaz de explicar por que as mulheres tendiam a ser mais gordas, embora elas realizassempraticamente todo o trabalho duro nos vilarejos fazendo as colheitas, moendo os gros e, inclusive,carregando os fardos pesados quando no havia animais de carga disponveis. Hrdlicka tambmficou intrigado com outra tribo local, os pueblos, que tinham hbitos sedentrios desde temposremotos, mas no eram gordos.

    Portanto, possivelmente o culpado era o tipo de comida. Os pimas j estavam comendo tudo oque entra na dieta do homem branco, como afirmou Hrdlicka. Isso pode ter sido crucial. A dietados pimas em 1900 tinha caractersticas muito similares s dietas que muitos de ns estamoscomendo um sculo depois, no em quantidade, mas em qualidade.

    Ao que se revela, meia dzia de postos comerciais haviam sido instalados na reserva dos pimasaps 1850. Destes, como observou o antroplogo Henry Dobyns, os pimas compravam acar, cafe produtos enlatados para substituir os alimentos tradicionais perdidos desde que os brancos

  • assentaram em seu territrio. Alm disso, a maior parte da rao que o governo distribua sreservas era farinha refinada, bem como uma quantidade de acar que era significativa, ao menospara os pimas de um sculo atrs. Estes foram, muito provavelmente, os fatores cruciais, comoargumentarei no decorrer deste livro.

    Se os pimas fossem um exemplo isolado de uma populao que era muito pobre e ao mesmotempo afligida pela obesidade, poderamos descart-los como uma exceo regra a nicatestemunha ocular cujo depoimento diverge de inmeros outros. Mas houve, como falei, muitas detais populaes que atestam a presena de nveis elevados de obesidade em populaesextremamente pobres. Os pimas foram os porta-bandeiras em um desfile de testemunhas cujodepoimento nunca ouvido e que demonstram que possvel engordar sendo pobre, trabalhador e atmesmo mal-alimentado. Antes de prosseguir, examinemos o que essas testemunhas tm a dizer.

    Um quarto de sculo depois que Russell e Hrdlicka visitaram os pimas, dois pesquisadores daUniversidade de Chicago estudaram outra tribo de ndios norte-americanos, os sioux vivendo nareserva Crow Creek, em Dakota do Sul. Esses sioux moravam em cabanas inapropriadas paraocupao, quase sempre de quatro a oito membros de uma famlia por habitao. Muitos no tinhamencanamento nem gua corrente. Quarenta por cento das crianas viviam em casas sem qualquer tipode saneamento. Quinze famlias, com 32 crianas entre elas, alimentavam-se essencialmente basede po e caf. Isso era misria em um nvel quase inimaginvel em nossos dias.

    No entanto, seus ndices de obesidade no eram muito diferentes dos que temos hoje em meio nossa epidemia: 40% das mulheres adultas na reserva, mais de 25% dos homens e 10% das crianas,de acordo com o relatrio da Universidade de Chicago, seriam considerados nitidamente obesos.Seria possvel argumentar que talvez sua vida na reserva, marcada pelo que Hrdlicka chamara deuma no pouca indolncia, estava causando obesidade, mas os pesquisadores observaram outrofato pertinente sobre esses sioux: 20% das mulheres adultas, 25% dos homens e 25% das crianaseram extremamente magros.

    As dietas na reserva, grande parte das quais, mais uma vez, vinham das raes do governo,eram deficientes em calorias, bem como em protenas, vitaminas e sais minerais essenciais. Eradifcil no perceber o impacto dessas deficincias alimentares: Embora no se tenha feito umlevantamento preciso, nem mesmo um observador casual poderia deixar de notar a grandeprevalncia de dentes cariados, pernas arqueadas, olhos inflamados e cegueira entre essas famlias.

    Essa combinao de obesidade e m nutrio ou subnutrio (calorias insuficientes) existentenas mesmas populaes algo a que atualmente as autoridades se referem como se fosse umfenmeno novo, mas no . Aqui temos m nutrio ou subnutrio coexistindo com obesidade emuma mesma populao h oitenta anos. uma observao importante, e voltaremos a ela. Vejamosmais alguns exemplos:

    1951: NPOLES, ITLIA

  • Ancel Keys, nutricionista da Universidade de Minnesota e um dos principais responsveis pornos convencer de que a gordura que comemos e o colesterol em nosso sangue so causadores dedoenas cardiovasculares, visita Npoles para estudar a dieta e a sade dos napolitanos. No hcomo confundir o cenrio geral ele escreve mais tarde , um pouco de carne magra uma ou duasvezes por semana era a regra, a manteiga era quase desconhecida, nunca se consumia leite, a no sercom caf ou para as crianas, colazione [caf da manh] no trabalho normalmente significava meiopozinho recheado com alface ou espinafre assado. Comia-se massa todos os dias, normalmenteacompanhada de po (puro), e 25% das calorias eram fornecidas por azeite de oliva e vinho. Nohavia evidncias de deficincia nutricional, mas as mulheres da classe trabalhadora eram gordas.

    O que Keys no disse foi que a maioria das pessoas em Npoles e, de fato, em todo o sul daItlia eram extremamente pobres na poca. Os napolitanos haviam sido devastados pela SegundaGuerra Mundial, tanto que uma cena trgica durante os ltimos anos da guerra eram fileiras de mes eesposas prostituindo-se para os soldados aliados para conseguir dinheiro para alimentar sua famlia.Um inqurito parlamentar aps a guerra retratou a regio como essencialmente uma nao de terceiromundo. Havia pouca carne disponvel, motivo pelo qual o consumo de carne era baixo, e a mnutrio era comum. Foi s no fim dos anos 1950, muito depois da visita de Keys, que os esforos dereconstruo comearam a mostrar algum progresso significativo.

    Outro fato digno de nota o quanto essa descrio da dieta napolitana assemelha-se dietamediterrnea, que a ltima moda em nossos dias, at mesmo a quantidade generosa de azeite deoliva e o vinho tinto, ou s dietas das vovs que Michael Pollan recomenda em Em defesa dacomida: Coma comida, no em excesso, e sobretudo vegetais. Certamente essas pessoas noestavam comendo em excesso. Em uma pesquisa de 1951, a Itlia e a Grcia figuravam como ospases com a menor quantidade de alimento disponvel per capita em todo o continente europeu 2,4mil calorias dirias em comparao a 3,8 mil calorias disponveis per capita nos Estados Unidos napoca. E, ainda assim, as mulheres da classe trabalhadora eram gordas. No as mulheres ricas,mas aquelas que precisavam trabalhar duro para ganhar a vida.

    1954: OS PIMAS NOVAMENTEPesquisadores do Bureau de Assuntos Indgenas dos Estados Unidos pesam e medem as

    crianas pimas e relatam que mais da metade, tanto dos meninos quanto das meninas, obesa aosonze anos de idade. As condies de vida na reserva do rio Gila: Pobreza disseminada.

    1959: CHARLESTON, CAROLINA DO SULEntre os afro-americanos, 18% dos homens e 30% das mulheres so obesos. A renda dos chefes

    de famlia varia de nove a 53 dlares por semana, ou o equivalente a cerca de 65 a 390 dlaressemanais nos dias de hoje.

  • 1960: DURBAN, FRICA DO SULEntre os zulus, 40% das mulheres adultas so obesas. As mulheres na faixa dos quarenta anos

    pesam, em mdia, 79 quilos. As mulheres, em mdia, so nove quilos mais pesadas e dez centmetrosmais baixas do que os homens, porm isso no significa que sejam mais bem-alimentadas aadiposidade excessiva, segundo relatam os pesquisadores, muitas vezes acompanhada de vriossinais de m nutrio.

    1961: NAURU, PACFICO SULUm mdico local descreve a situao em poucas palavras: Para os padres europeus, todos os

    que passaram da puberdade esto muitssimo acima do peso.

    1961-1963: TRINIDAD, NDIAS OCIDENTAISUma equipe de nutricionistas dos Estados Unidos relata que a m nutrio um problema

    mdico grave na ilha, mas a obesidade tambm. Aproximadamente um tero das mulheres com maisde 25 anos so obesas. Estima-se que, em mdia, a ingesto calrica dessas mulheres inferior a 2mil calorias por dia menos que o mnimo recomendado na poca pela Organizao das NaesUnidas para a Alimentao e a Agricultura (FAO, na sigla em ingls) como necessrio para uma dietasaudvel.

    1963: CHILEA obesidade descrita como o principal problema nutricional dos adultos chilenos. Cerca de

    22% dos funcionrios do exrcito e 32% dos funcionrios administrativos so obesos. Entre osoperrios de fbricas, 35% dos homens e 39% das mulheres so obesos. Esses operrios de fbricasso os mais interessantes, porque seu trabalho muito provavelmente envolve esforo fsicoconsidervel.

    1964-1965: JOHANESBURGO, FRICA DO SULPesquisadores do Instituto Sul-Africano de Pesquisas Mdicas estudam os bantos urbanos

    pensionistas com mais de sessenta anos os mais indigentes dos bantos idosos, o que significaque so os indivduos mais pobres de uma populao extremamente pobre. As mulheres nessapopulao pesam, em mdia, 75 quilos e 30% delas esto gravemente acima do peso. O pesomdio das mulheres brancas pobres, segundo os relatrios, tambm 75 quilos.

    1965: CAROLINA DO NORTECerca de 29% dos cheroquis adultos na reserva Qualla so obesos.

    1969: GANA

  • Entre a populao, 25% das mulheres e 7% dos homens atendidos em ambulatrios mdicos emAccra so obesos, incluindo metade de todas as mulheres na faixa dos quarenta anos. Pode-seconcluir, de modo razovel, que a obesidade grave comum em mulheres entre trinta e sessentaanos, escreve um professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Gana, e amplamente sabido que muitas mulheres feirantes nas cidades costeiras da frica Ocidental sogordas.

    1970: LAGOS, NIGRIACerca de 5% dos homens so obesos, bem como aproximadamente 30% das mulheres. Das

    mulheres entre 55 e 65 anos, 40% so muito obesas.

    1971: RAROTONGA, PACFICO SULEntre as mulheres adultas, 40% so obesas; 25% so extremamente obesas.

    1974: KINGSTON, JAMAICARolf Richards, mdico formado na Inglaterra e responsvel por uma clnica especializada em

    diabetes na Universidade das ndias Ocidentais, relata que 10% dos homens adultos em Kingston e66% das mulheres so obesos.

    1974: CHILE (NOVAMENTE)Um nutricionista da Universidade Catlica em Santiago relata, em um estudo de 3,3 mil

    operrios de fbricas, a maioria envolvida em trabalho pesado: Apenas 11% dos homens e 9% dasmulheres so gravemente subnutridos; apenas 14% dos homens e 15% das mulheres estogravemente acima do peso. Entre os indivduos com 45 anos ou mais, cerca de 40% dos homens e50% das mulheres so obesos. Ele tambm relata, com base em estudos dos anos 1960 no Chile, quea incidncia mais baixa [de obesidade] ocorre entre os trabalhadores agrcolas. Os funcionriosadministrativos apresentam os ndices mais altos de obesidade, mas a condio tambm comumentre moradores de favelas.

    1978: OKLAHOMAKelly West, o principal epidemiologista da poca especializado em diabetes, relata, acerca das

    tribos indgenas da regio, que os homens so muito gordos, e as mulheres so ainda mais gordas.

    1981-1983: CONDADO DE STARR, TEXASNa fronteira com o Mxico, a 320 quilmetros ao sul de San Antonio, William Mueller e seus

    colaboradores da Universidade do Texas pesam e medem mais de 1,1 mil mexicanos estadunidensesque residem na regio. Quarenta por cento dos homens na faixa dos trinta anos so obesos, embora a

  • maioria deles sejam empregados em trabalho agrcola e/ou nos campos de petrleo. Mais demetade das mulheres na faixa dos cinquenta anos so obesas. Quanto s condies de vida, Muellermais tarde as descreve como muito simples [...] Havia apenas um restaurante [em toda a regio], umrestaurante mexicano, e no havia nada alm disso.

    Ento, por que eles eram gordos? O que torna to (suspeitosamente) convincente o argumentodo balano calrico que ele sempre fornece uma resposta para essa pergunta. Se a populao erato pobre e malnutrida que at mesmo o mais adepto da ideia de que uma alimentao imoderadacausa obesidade ter dificuldade em imaginar que eles tinham comida em excesso disponvel ospimas, por exemplo, nos anos 1900 ou 1950, os sioux nos anos 1920, os trinidadianos ou oshabitantes de favelas no Chile nos anos 1960 e 1970 , sempre possvel alegar que eles devem tersido sedentrios ou, no mnimo, sedentrios demais. Se eram fisicamente ativos as mulheres pimas,os operrios nas fbricas chilenas, ou os mexicanos estadunidenses que trabalhavam na agriculturaou nos campos de petrleo , pode-se alegar que comiam demais.

    Os mesmos argumentos tambm podem ser e so apresentados para casos individuais. Sesomos gordos e podemos provar que comemos com moderao no comemos mais do que nossosamigos ou irmos magros, por exemplo , os especialistas presumem com segurana que somosfisicamente inativos. Se temos gordura em excesso, mas visivelmente praticamos muito exerccio,ento os especialistas concluem, com igual segurana, que comemos demais. Se no somos glutes,devemos ser culpados por preguia. Se no somos preguiosos, a gula nosso pecado.

    Essas afirmaes podem ser feitas (e muitas vezes o so) sem que se conhea um nico fatoadicional pertinente sobre as populaes ou os indivduos em questo. Com efeito, elasfrequentemente so feitas com pouco desejo ou disposio para aprender mais.

    No incio dos anos 1970, nutricionistas e mdicos com esprito investigativo discutiam sobre osnveis elevados de obesidade observados nessas populaes pobres e ocasionalmente o faziam comuma mente aberta com relao causa. Eles eram curiosos (como deveramos ser) e hesitantes eminsistir que sabiam a resposta (como deveramos ser).

    Essa era uma poca em que a obesidade ainda era considerada um problema de m nutrio,e no um problema de nutrio excessiva, como hoje. Uma pesquisa de 1971 na Checoslovquia,por exemplo, revelou que aproximadamente 10% dos homens e 30% das mulheres eram obesos.Quando esses dados foram publicados em anais de congressos alguns anos depois, o pesquisador queos publicou comeou com a seguinte afirmao: At mesmo uma breve visita Checoslovquiarevelaria que a obesidade extremamente comum e que, como em outros pases industriais, provavelmente a forma mais disseminada de m nutrio.

    A referncia obesidade como uma forma de m nutrio no acompanhada de nenhumjulgamento moral, nenhum sistema de crenas, nenhuma insinuao velada de gula e preguia.Meramente afirma que algo est errado com a oferta de alimento, e seria importante descobrirmos o

  • qu.As declaraes so de Rolf Richards, um mdico jamaicano que se especializou em diabetes no

    Reino Unido, discutindo as evidncias e os dilemas da obesidade e da pobreza em 1974, masfazendo isso sem ideias preconcebidas: difcil explicar a frequncia elevada de obesidadeobservada em uma sociedade relativamente sem recursos [muito pobre] tal como a que existe nasndias Ocidentais, em comparao ao padro de vida existente na maioria dos pases desenvolvidos.A m nutrio e a subnutrio so distrbios comuns nos dois primeiros anos de vida nessas regiese representam quase 25% de todas as admisses nas enfermarias peditricas na Jamaica. Asubnutrio continua na primeira infncia e vai at o incio da adolescncia. A obesidade comea ase manifestar na populao feminina a partir dos 25 anos e atinge enormes propores dos 30 anosem diante.

    Quando Richards diz subnutrio, ele quer dizer que no havia comida suficiente. Donascimento aos primeiros anos da adolescncia, as crianas das ndias Ocidentais eramexcepcionalmente magras, e seu crescimento era prejudicado. Elas precisavam de mais comida, eno s mais comida nutritiva. Ento se manifestava a obesidade, sobretudo entre as mulheres, eexplodia nesses indivduos quando eles atingiam a maturidade. a combinao que ele observou nossioux em 1928 e mais tarde no Chile m nutrio e/ou subnutrio coexistindo com obesidade namesma populao, muitas vezes at mesmo nas mesmas famlias.

    Aqui est essa mesma observao discutida mais recentemente, porm agora impregnada peloparadigma de que comer demais a causa da obesidade. Isto de um artigo de 2005 do NewEngland Journal of Medicine, A Nutrition Paradox Underweight and Obesity in DevelopingCountries [Um paradoxo nutricional peso abaixo do normal e obesidade nos pases emdesenvolvimento], escrito por Benjamin Caballero, diretor do Centro para Nutrio Humana daUniversidade Johns Hopkins. Caballero descreve sua visita a uma clnica mdica nas favelas de SoPaulo. A sala de espera, ele escreve, estava repleta de mes com crianas magras e atrofiadas,apresentando os tpicos sinais de subnutrio crnica. Sua aparncia, lamentavelmente, surpreenderiaa poucos dos que visitam as reas urbanas pobres dos pases em desenvolvimento. O que poderia vira ser uma surpresa que muitas das mes segurando essas crianas subnutridas eram, elas prprias,obesas.

    Caballero, ento, descreve a dificuldade que, segundo acredita, esse fenmeno apresenta: Acoexistncia de peso abaixo e acima do normal apresenta um desafio aos programas de sadepblica, j que os objetivos dos programas para reduzir a subnutrio obviamente entram em conflitocom aqueles que visam a prevenir a obesidade. Ou seja, se queremos prevenir a obesidade,precisamos fazer que as pessoas comam menos; porm, se queremos prevenir a subnutrio,precisamos disponibilizar mais comida. O que fazer?

    O grifo na citao de Caballero meu, e no dele. A coexistncia de crianas magras eatrofiadas apresentando os tpicos sinais de subnutrio crnica com mes obesas no apresenta um

  • desafio para os programas de sade pblica, como Caballero afirmou; apresenta um desafio paranossas crenas nosso paradigma.

    Se acreditamos que essas mes estavam acima do peso porque comiam demais, e sabemos queas crianas so magras e atrofiadas porque no esto recebendo comida suficiente, ento estamospresumindo que as mes estavam ingerindo calorias suprfluas que poderiam ter dado a seus filhospara que eles pudessem prosperar. Em outras palavras, as mes esto dispostas a fazer os filhospassarem fome para que elas prprias possam comer demais. Isso vai contra tudo o que sabemossobre comportamento materno.

    Ento, o que fazer? Descartamos todas as nossas crenas sobre comportamento materno paraque possamos manter intactas nossas crenas sobre a causa da obesidade? Ou questionamos nossascrenas sobre a causa da obesidade e mantemos intactas nossas crenas sobre os sacrifcios que asmes fazem por seus filhos? Mais uma vez, a coexistncia de magreza excessiva e sobrepeso nasmesmas populaes e inclusive nas mesmas famlias no apresenta um desafio para os programas desade pblica; apresenta um desafio para nossas crenas sobre a causa da obesidade e do sobrepeso.E no deveria ser a nica razo para isso, como veremos nos captulos a seguir.

    [1] Em 1968, George McGovern, um senador dos Estados Unidos, presidiu uma srie de audincias no Congresso em que norte-americanos empobrecidos testemunharam sobre a dificuldade de fornecer refeies nutritivas a suas famlias de baixa renda. Contudo, amaioria daqueles que deram seu testemunho, como mais tarde rememorou McGovern, estavam muitssimo acima do peso. Isso levouum senador em seu comit a dizer: George, isso ridculo. Essas pessoas no esto sofrendo de desnutrio. Esto todas acima dopeso.

    [2]Griffin no foi o nico a comentar sobre a boa forma e a sade excelente dos pimas em meados do sculo XIX. Por exemplo, JohnBartlett, comissrio de fronteira dos Estados Unidos, escreveu, no vero de 1852, que as mulheres tinham boa silhueta, com peito largoe braos e pernas bem-formados e que os homens eram geralmente magros e esbeltos, com pernas e braos finos e peito estreito.

  • CAPTULO 2

    OS BENEFCIOS ILUSRIOS DE COMER POUCO

    No incio dos anos 1990, os Institutos Nacionais de Sade dos Estados Unidos comearam ainvestigar alguns problemas graves de sade feminina. O resultado foi a Iniciativa para a Sade daMulher (WHI, na sigla em ingls), uma coleo de estudos que custaria aproximadamente um bilhode dlares. Entre as perguntas que os pesquisadores esperavam responder, estava se as dietas combaixo teor de gordura de fato previnem doenas cardiovasculares ou cncer, ao menos em mulheres.Ento, eles recrutaram cerca de 50 mil mulheres para um estudo e escolheram 20 mil de maneiraaleatria, instruindo-as a ingerir uma dieta pobre em gorduras e rica em frutas, hortalias e fibras.Essas mulheres receberam acompanhamento constante para ser motivadas a seguir a dieta.

    Um dos efeitos desse acompanhamento, ou talvez da prpria dieta, que as mulheres tambmdecidiram, de maneira consciente ou no, comer menos. De acordo com os pesquisadores da WHI, asmulheres consumiram durante a dieta, em mdia, 360 calorias dirias a menos do que costumavamconsumir quando concordaram em participar do estudo. Se acreditamos que a obesidade causadapor uma alimentao excessiva, poderamos dizer que essas mulheres estavam ingerindo 360 caloriasdirias a menos do que o necessrio. Estavam consumindo quase 20% menos calorias do que o valorrecomendado pelos rgos de sade pblica.

    O resultado? Aps oito anos de tal alimentao insuficiente, essas mulheres perderam, emmdia, um quilo cada uma. E a circunferncia mdia de sua cintura uma medida de gorduraabdominal aumentou. Isso indica que o peso que essas mulheres perderam, se que perderam, noera gordura, e sim tecido magro msculo.[1]

    Como isso possvel? Se nosso peso corporal realmente determinado pela diferena entre ascalorias que consumimos e as calorias que gastamos, essas mulheres deveriam ter emagrecidoconsideravelmente. Meio quilo de gordura contm energia equivalente a cerca de 3,5 mil calorias. Seessas mulheres estavam realmente ingerindo 360 calorias a menos por dia, elas deveriam ter perdidomais de um quilo de gordura (7 mil calorias) nas primeiras trs semanas e mais de dezoito quilos noprimeiro ano.[2] E essas mulheres tinham muita gordura para perder. Quase metade delas comeou oestudo obesa; a maioria estava, no mnimo, acima do peso.

    Uma possibilidade, sem dvida, que os pesquisadores tenham sido completamente incapazes

  • de avaliar o quanto as mulheres comiam. Talvez elas enganassem os pesquisadores e inclusive a siprprias. Talvez no consumissem 360 calorias dirias a menos. Ns no fazamos ideia do queessas mulheres estavam comendo de fato, porque, como faz a maioria das pessoas quando indagadassobre sua dieta, elas mentiam a respeito, afirmou Michael Pollan no The New York Times.

    Outra possibilidade que essa reduo de calorias, essa prtica de alimentao insuficiente aolongo de anos, simplesmente no tenha o resultado esperado.

    De todas as razes para questionar a ideia de que comer demais causa obesidade, a mais bviasempre foi o fato de que comer de menos no a cura.

    Sim, verdade: se voc for abandonado em uma ilha deserta e passar fome por meses a fio, vaidesaparecer, independentemente de ser gordo ou magro. Mesmo que passe s um pouco de fome, suagordura ser consumida, assim como uma boa parte de seus msculos. No entanto, experimente amesma receita no mundo real e tente segui-la por tempo indefinido tente manter a perda de peso ever que funciona muito raramente, se que funciona.

    Isso no deveria ser uma surpresa. Como afirmei anteriormente, com o auxlio da sabedoria eexperincia de Hilde Bruch, a maioria daqueles de ns que somos gordos passa grande parte da vidatentando comer menos. Se no funciona quando a motivao simplesmente dcadas do intensoreforo negativo que acompanha a obesidade ostracismo social, limitao fsica, aumento naincidncia de doenas , podemos realmente esperar que funcione s porque uma autoridade usandojaleco branco insiste que devemos tentar? Rara a pessoa obesa que nunca tentou comer menos. Sevoc continua acima do peso, como Bruch observou, h uma boa razo para concluir que reduzir aingesto de alimentos no foi capaz de cur-lo dessa aflio em particular, mesmo que tenha dadoalgum resultado a curto prazo ao tratar o sintoma mais visvel a adiposidade excessiva.

    A primeira vez que algum publicou uma anlise sobre a eficcia da alimentao insuficientecomo tratamento para a obesidade o psiclogo Albert Stunkard e seu colega Mavis McLaren-Humeem 1959 , esta foi a concluso. Pouca coisa mudou desde ento. Stunkard afirmou que seu estudo foimotivado por aquilo que chamou de paradoxo entre sua prpria tentativa fracassada, em sua clnicano Hospital de Nova York, de tratar pacientes obesos restringindo a quantidade que comiam e opressuposto difundido de que tal tratamento era fcil e eficaz.

    Stunkard e McLaren-Hume examinaram minuciosamente a literatura mdica e encontraramapenas oito artigos em que os mdicos relatavam seus ndices de sucesso ao tratar pacientes obesos eacima do peso em suas clnicas. Os resultados, segundo Stunkard, eram consideravelmente similarese consideravelmente insatisfatrios. A maior parte dessas clnicas estava prescrevendo dietas ques permitiam o consumo de oitocentas ou mil calorias por dia talvez metade do que as mulheresque participaram do estudo da WHI declararam que estavam ingerindo e, ainda assim, apenas umem cada quatro pacientes perdeu em torno de nove quilos; apenas um em cada vinte pacientesconseguiu perder dezoito quilos. Stunkard tambm relatou sua prpria experincia ao receitar dietas

  • balanceadas de oitocentas a 1,5 mil calorias por dia a uma centena de pacientes obesos em suaprpria clnica: apenas doze perderam em torno de nove quilos, e apenas um perdeu dezoito quilos.Dois anos aps o fim do tratamento, Stunkard escreveu, apenas dois pacientes haviam mantido aperda de peso.[3]

    As avaliaes mais recentes beneficiam-se do uso de computadores e de elaboradas anlisesestatsticas, mas os resultados, como diria Stunkard, continuam sendo consideravelmente similares econsideravelmente insatisfatrios. Prescrever dietas de baixa caloria para pacientes obesos e acimado peso, de acordo com uma anlise de 2007 da Universidade de Tufts, leva, quando muito, aperdas de peso modestas, que so transitrias isto , temporrias. Em geral, perdem-se dequatro a cinco quilos nos primeiros seis meses. Depois de um ano, grande parte do que se perdeu recuperada.

    A anlise da Universidade de Tufts levou em considerao todos os estudos relevantes sobredieta divulgados em publicaes mdicas desde 1980. O maior estudo desse tipo j realizado chegaexatamente mesma concluso.[4] Os pesquisadores eram da Universidade de Harvard e do Centrode Pesquisa Biomdica de Pennington, que fica em Baton Rouge, Louisiana, e o mais influenteinstituto de pesquisa acadmica sobre obesidade nos Estados Unidos. Juntos, eles recrutaram mais deoitocentos indivduos obesos e acima do peso e estipularam de maneira aleatria que eles deveriamseguir uma de quatro dietas. Essas dietas eram um pouco diferentes quanto aos nutrientes em suacomposio (propores de protena, gordura e carboidratos), mas todas eram muito parecidas nosentido de que os indivduos deveriam ingerir 750 calorias a menos por dia, uma quantiasignificativa. Os participantes tambm receberam acompanhamento comportamental intensivo paraajud-los a seguir a dieta, o tipo de assistncia profissional a que poucos de ns temos acessoquando tentamos perder peso. Eles receberam inclusive cardpios planejados a cada duas semanaspara auxili-los com a difcil tarefa de preparar refeies saborosas que, ao mesmo tempo, fossempouco calricas.

    Os indivduos comearam o estudo, em mdia, 25 quilos acima do peso. Perderam, em mdia,apenas quatro quilos. E, mais uma vez, assim como teria previsto a anlise da Universidade de Tufts,a maior parte desses quatro quilos foi perdida nos primeiros seis meses, e a maioria dosparticipantes voltou a ganhar peso aps um ano. No de admirar que a obesidade raras vezes sejacurada. Comer menos isto , ter uma alimentao insuficiente simplesmente no funciona durantemais do que alguns poucos meses, quando muito.

    A realidade, no entanto, no impediu as autoridades de recomendarem essa abordagem, o quefaz que a leitura de tais recomendaes seja um exerccio daquilo que os psiclogos chamam dedissonncia cognitiva, a tenso que resulta de tentar sustentar duas crenas incompatveis aomesmo tempo.

    Tome, por exemplo, o Handbook of Obesity, um manual de 1998 editado por trs das maiores

  • autoridades no assunto George Bray, Claude Bouchard e W. P. T. James. A terapia alimentarcontinua sendo o pilar do tratamento, e a reduo do consumo de energia continua sendo a base dosprogramas bem-sucedidos de reduo de peso, o livro afirma. Mas ento destaca, alguns pargrafosdepois, que os resultados de tais dietas restritas e com energia reduzida tm resultados sabidamenteinsatisfatrios e no duradouros. Ento, por que uma terapia to ineficaz o pilar do tratamento? OHandbook of Obesity se esquece de dizer.

    A ltima edio (2005) de Joslin: Diabetes Melito, um manual muitssimo respeitado paramdicos e pesquisadores, um exemplo mais recente dessa dissonncia cognitiva. O captulo sobreobesidade foi escrito por Jeffrey Flier, um pesquisador que hoje reitor da Faculdade de Medicinada Universidade de Harvard, e sua esposa e colega de pesquisa, Terry Maratos-Flier. Os Fliertambm descrevem a reduo de consumo calrico como o pilar de todo e qualquer tratamentopara obesidade. Contudo, em seguida, enumeram todas as formas pelas quais esse pilar fracassa.Aps examinar abordagens que vo das redues mais sutis de calorias (ingerir, por exemplo, cemcalorias dirias a menos na esperana de perder menos de meio quilo a cada cinco semanas) fomepropriamente dita, passando por dietas de baixa caloria que propem o consumo de oitocentas a milcalorias dirias e outras ainda menos calricas (de duzentas a seiscentas calorias por dia), elesconcluem que nenhuma dessas abordagens mostrou mrito algum. Infelizmente.

    At os anos 1970, a literatura mdica referia-se s dietas de baixa caloria como dietas defome. Afinal, o que se espera nessas dietas que comamos metade ou at menos do quenormalmente preferimos comer. Porm, no se pode esperar que passemos fome por mais do quealguns meses, muito menos por tempo indefinido, que o que tais dietas exigem de maneira implcitase quisermos manter qualquer que seja a perda de peso que podemos experimentar no incio. Asdietas com pouqussimas calorias so conhecidas como jejuns porque no permitem comerpraticamente nada. Mais uma vez, difcil imaginar jejuar por mais do que algumas semanas; talvez,com sorte, um ms ou dois, e certamente no podemos continuar para sempre depois de perder nossoexcesso de gordura.

    Os dois pesquisadores que possivelmente obtiveram os melhores registros histricos em todo omundo ao tratar a obesidade em um ambiente acadmico foram George Blackburn e Bruce Bistrian,da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard. Nos anos 1970, eles comearam a tratarpacientes obesos com uma dieta de seiscentas calorias dirias contendo apenas carne magra, peixe eaves. Segundo Bistrian, eles trataram milhares de pacientes. A metade deles perdeu mais de dezoitoquilos. Esta uma maneira extraordinariamente eficaz e segura de perder peso em grandequantidade, Bistrian afirmou. Mas ento Bistrian e Blackburn desistiram da terapia, porque nosabiam o que dizer aos pacientes depois que estes emagreciam. No se podia esperar que ospacientes vivessem para sempre base de seiscentas calorias dirias e, se eles voltassem a comernormalmente, engordariam outra vez. A nica alternativa aceitvel do ponto de vista mdico, de

  • acordo com Bistrian, era prescrever aos pacientes medicamentos inibidores de apetite, e ospesquisadores no tinham inteno de fazer isso.

    Ento, mesmo que perca a maior parte de seu excesso de gordura com uma dessas dietas, vocse depara com o seguinte problema: o que acontece agora?. Se voc perder peso ingerindo apenasseiscentas calorias por dia, ou mesmo 1,2 mil calorias, seria de surpreender que engordarnovamente quando voltar a comer 2 mil calorias por dia ou mais? por isso que os especialistasdizem que uma dieta precisa ser algo que sejamos capazes de seguir durante a vida inteira umprograma de estilo de vida. Mas como possvel passar fome ou jejuar por mais do que um breveperodo? Conforme Bistrian declarou quando eu o entrevistei h alguns anos, ecoando Bruch meiosculo antes, comer pouco no tratamento ou cura para a obesidade; uma maneira de reduzirtemporariamente seu sintoma mais bvio. E, se comer pouco no tratamento ou cura, issocertamente sugere que comer muito no a causa.

    [1] Este no foi o nico resultado desalentador no estudo. Os investigadores da WHI tambm relataram que a dieta com baixo teor degordura no foi capaz de prevenir doenas cardiovasculares, cncer ou qualquer outra enfermidade.

    [2] Esse clculo foi simplificado para fins de clareza. Se for corrigido para a observao de que os indivduos que perdem peso nosestudos sobre dieta gastam menos energia ao fazer isso, ento a perda de peso esperada com esse dficit energtico deveria ser menor:aproximadamente 725 gramas nas primeiras trs semanas e dez quilos em um ano. Devo essa correo a Kevin Hall, biomdico do NIH,que assinala que os nmeros corrigidos so ainda muitssimo distantes do valor observado!.

    [3] Embora a anlise de Stunkard tenha sido amplamente percebida como uma condenao de todos os mtodos de tratamento alimentarpara a obesidade, os estudos que ele examinou incluam apenas dietas com restrio de calorias.

    [4] Eu no considero o estudo da WHI sobre dietas com baixo teor de gordura, porque seu objetivo era promover a preveno dedoenas cardiovasculares e cncer, e no a perda de peso.

  • CAPTULO 3

    OS BENEFCIOS ILUSRIOS

    Imagine que voc foi convidado para um jantar. O talento do chef famoso, e no convite consta queesse jantar em particular ser um banquete de propores monumentais. Traga seu apetite, diz oconvite venha com fome. Como voc faria isso?

    Voc pode tentar comer menos ao longo do dia talvez at mesmo pular o almoo, ou o caf damanh e o almoo. Voc pode ir para a academia e fazer exerccios mais puxados ou, quem sabe,correr ou nadar mais do que de costume para abrir o apetite. Pode inclusive decidir ir caminhandoat o jantar, em vez de ir de carro, pela mesma razo.

    Pensemos sobre isso por um instante. As instrues que constantemente recebemos para perderpeso comer menos (reduzir as calorias que ingerimos) e praticar mais exerccios (aumentar ascalorias que gastamos) so as mesmssimas coisas que faremos se nosso propsito for sentir fome,estimular o apetite, para comer mais. A existncia de uma epidemia de obesidade coincidente commeio sculo de recomendaes para comer menos e se exercitar mais comea a no parecer toparadoxal assim.[1]

    J vimos os problemas de comer menos para perder peso. Agora, examinemos o outro lado daequao entre consumo e gasto de calorias. O que acontece quando aumentamos o gasto de energiaintensificando nossa prtica de atividade fsica?

    comum a crena de que o comportamento sedentrio to culpado por nossos problemas depeso quanto o que comemos. E, visto que a probabilidade de padecermos de doenascardiovasculares, diabetes e cncer aumenta medida que engordamos, a natureza supostamentesedentria de nossa vida hoje considerada tambm um fator causal dessas doenas. A prticaregular de atividade fsica vista como um meio essencial de prevenir todos os males crnicos denossa poca (exceto, claro, os que afetam msculos e articulaes, que so causados por exercciosem excesso).

    Considerando a onipresena da mensagem, o domnio que tem sobre nossa vida e asimplicidade elegante da noo queime calorias, perca peso, previna doenas , no seria timo sefosse verdade? Nossa cultura certamente acredita que . A f nos benefcios da atividade fsica paraa sade est hoje to profundamente arraigada em nossa conscincia que muitas vezes este

  • considerado o nico fato na controversa cincia da sade e do estilo de vida que jamais deve serquestionado.

    H, de fato, excelentes razes para praticar exerccios regularmente. Ao fazer isso, podemosmelhorar nossa resistncia e aptido; podemos viver por mais tempo, talvez, como afirmam osespecialistas, reduzindo o risco de doenas cardiovasculares ou diabetes. (Embora isso aindaprecise ser testado com rigor.) Podemos simplesmente nos sentir melhor com relao a ns mesmos,e est bastante claro que muitos de ns que nos exercitamos regularmente, como eu, tornam-seapaixonados pela atividade. Todavia a questo que quero explorar aqui no se praticar exerccios divertido ou bom para ns (o que quer que isso signifique), ou se um complemento necessrio deum estilo de vida saudvel, como as autoridades esto sempre nos dizendo, mas se nos ajuda amanter o peso, se somos magros, ou a perd-lo, se no somos.

    A resposta parece ser no.Observemos as evidncias. Quero comear com a observao que fiz no Captulo 1 de que a

    obesidade est associada pobreza. Nos Estados Unidos, na Europa e em outras naesdesenvolvidas, quanto mais pobres as pessoas so, mais gordas tendem a ser. Tambm verdade que,quanto mais pobres somos, maior a probabilidade de trabalharmos em ocupaes que exigem grandeesforo fsico; usar o corpo, mais do que o crebro, para ganhar a vida.

    So os pobres e destitudos que fazem o trabalho pesado das naes desenvolvidas, que ganhama vida com muito suor, no de maneira figurada, mas literal. Eles podem no frequentar academiasesportivas ou passar o tempo livre (se que tm) treinando para a prxima maratona, pormapresentam muito mais probabilidade do que os mais abastados de trabalhar nos campos e nasfbricas, como domsticas e jardineiros, nas minas e na construo. A concluso de que, quanto maispobres somos, mais gordos tendemos a ser , justamente, uma das boas razes para duvidar daafirmao de que a quantidade de energia que gastamos diariamente tem alguma relao com o fatode engordarmos. Se, como afirmei antes, os operrios das fbricas podem ser obesos, como tambmos trabalhadores dos campos de petrleo, difcil imaginar que o gasto dirio de energia faa grandediferena.

    Outra boa razo para duvidar dessa afirmao , mais uma vez, a prpria epidemia deobesidade. Ns engordamos paulatinamente no decorrer das ltimas dcadas, e isso poderia sugerir,como fazem muitas autoridades entre elas, a Organizao Mundial da Sade , que estamos ficandomais sedentrios. Mas as evidncias indicam o contrrio, certamente nos Estados Unidos, onde aepidemia de obesidade coincidiu com o que poderamos chamar de epidemia de atividade fsica notempo livre, de academias esportivas e meios inovadores de gastar energia (patinao, mountainbike, step e elptico, spinning e aerbica, capoeira e a lista continua), praticamente todas as quaisforam inventadas ou radicalmente redesenhadas desde que a epidemia de obesidade comeou.[2]

    At os anos 1970, os norte-americanos no acreditavam na necessidade de passar seu tempolivre transpirando, no se pudessem evitar. Em meados dos anos 1970, como assinalaram William

  • Bennett e Joel Gurin em seu livro de 1982 sobre obesidade, The Dieters Dilemma, ainda pareciaum pouco estranho ver pessoas saindo para correr pelas ruas da cidade com o equivalente coloridode uma pea ntima. Mas este j no o caso. De fato, The New York Times relatou em 1977 que osEstados Unidos encontravam-se, na poca, em meio a uma exploso de atividade fsica, e que issos estava acontecendo porque a crena disseminada dos anos 1960 de que atividade fsica fazia mal sade havia se transformado na nova sabedoria convencional de que exerccio vigoroso fazbem sade. Em 1980, The Washington Post relatou que 100 milhes de norte-americanos haviamse tornado membros ativos da nova revoluo do fitness e que muitos desses teriam sidoconsiderados manacos por sade apenas uma dcada antes. O que estamos vendo, o Postinformou, um dos fenmenos sociolgicos mais importantes do fim do sculo XX.

    No entanto, se o comportamento sedentrio nos torna gordos e a prtica de exerccios previneisso, a exploso de atividade fsica e a nova revoluo do fitness no deveriam terdesencadeado uma epidemia de magreza, em vez de coincidir com uma epidemia de obesidade?

    Como se v, h poucas evidncias para corroborar a crena de que o nmero de calorias quegastamos tem algum efeito sobre o nosso sobrepeso. Em agosto de 2007, a Associao Americana doCorao (AHA) e o Colgio Americano de Medicina Esportiva (ACSM) lidaram com essasevidncias de uma maneira particularmente condenatria quando publicaram diretrizes conjuntassobre sade e atividade fsica. Entre os dez autores especialistas, estavam muitos dos maioresdefensores do papel essencial da atividade fsica em um estilo de vida saudvel. Ou seja, pessoasque realmente querem nos convencer a praticar exerccios e podem sentir-se tentadas a acumularevidncias a favor de que o faamos. Segundo eles, so necessrios trinta minutos de atividade fsicamoderada, cinco dias por semana, para manter e promover a sade.

    Porm, em se tratando da questo de como a prtica de exerccios influencia nosso pesocorporal, esses especialistas s foram capazes de dizer: razovel presumir que pessoas com gastoenergtico dirio relativamente alto estariam menos inclinadas a ganhar peso com o passar do tempoem comparao quelas que tm pouco gasto de energia. At o momento, os dados para corroboraressa hiptese no so particularmente conclusivos.

    As diretrizes da AHA e do ACSM foram o ponto de partida para as diretrizes recentes de outrosorganismos oficiais o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla emingls), a Associao Internacional para o Estudo da Obesidade e a Fora-Tarefa Internacional daObesidade , todos os quais recomendaram a prtica diria de uma hora de exerccios. Contudo, arazo pela qual essas autoridades defendem mais atividade fsica no nos ajudar a perder peso algo que eles tacitamente reconhecem que no pode ser alcanado apenas com exerccios , e simnos ajudar a evitar engordar ainda mais.

    A lgica por trs das recomendaes de uma hora de atividade fsica por dia baseia-seprecisamente na escassez de evidncias que corroborem a noo de que praticar exerccios por

  • menos tempo do que isso tem algum efeito. Uma vez que existem poucos estudos que tentam explicaro que acontece quando as pessoas fazem atividade fsica por mais de sessenta minutos por dia, essasautoridades podem supor que essa quantidade de exerccio talvez faa alguma diferena. Asdiretrizes do USDA afirmam que podem ser necessrios at noventa minutos de exerccio moderadopor dia uma hora e meia todos os dias! apenas para manter a perda de peso, mas elas no dizemquanto peso possvel perder exercitando-se por mais de noventa minutos dirios.

    As evidncias deixam pouco espao para argumentao. Dizer que elas no [so]particularmente conclusivas, como fizeram a AHA e o ACSM, um pouco generoso demais. Umrelatrio a que essas diretrizes de especialistas costumam referir-se como base para suas avaliaesfoi publicado no ano 2000 por dois finlandeses especializados em fisiologia do exerccio. Essespesquisadores observaram os resultados de dzias de estudos experimentais bem-construdos queabordavam a manuteno de massa corporal isto , indivduos que conseguiram emagrecer pormeio de dietas e estavam tentando manter o novo peso. Eles constataram que todos os participantesdesses estudos engordaram novamente. Dependendo do tipo de estudo, a prtica de exerccios fsicosou reduzia o ritmo de ganho (em noventa gramas por ms) ou o aumentava (em cinquenta gramas porms). Como os prprios investigadores concluram, com eufemismo caracterstico, a relao entrepeso e atividade fsica era mais complexa do que eles poderiam ter imaginado.

    Um estudo que os pesquisadores finlandeses no puderam considerar, porque foi publicado em2006 seis anos depois , particularmente revelador, tanto em suas concluses quanto no modocomo essas concluses foram interpretadas. Os autores foram Paul Williams, especialista emestatstica do Laboratrio Nacional Lawrence Berkeley, em Berkeley, Califrnia, e Peter Wood,pesquisador da Universidade de Stanford que vem estudando o efeito da atividade fsica sobre asade desde os anos 1970. Williams e Wood reuniram informaes detalhadas sobre quase 13 milcorredores habituais (todos assinantes da revista Runners World) e ento compararam aquilometragem semanal desses corredores com o quanto eles pesavam a cada ano. Aqueles quecorriam mais tendiam a pesar menos, mas todos esses corredores tenderam a ganhar peso com opassar dos anos, mesmo aqueles que corriam sessenta quilmetros por semana digamos, dozequilmetros por dia, cinco dias por semana.

    Essa observao levou Williams e Wood, ambos crentes na doutrina do balano calrico, aafirmar que at mesmo os corredores mais dedicados precisariam aumentar em alguns quilmetrospor semana a distncia que corriam, ano aps ano gastar ainda mais energia medida que ficavammais velhos , se quisessem continuar magros. Se os homens acrescentassem trs quilmetros distncia semanal a cada ano e as mulheres cinco, de acordo com Williams e Wood, eles talvezconseguissem se manter magros, porque isso talvez significasse gastar na corrida as calorias que, docontrrio, pareciam fadadas a se acumular em forma de gordura.

    Vejamos aonde nos leva esse raciocnio. Imagine um homem na faixa dos vinte anos que corretrinta quilmetros por semana digamos, seis quilmetros por dia, cinco dias por semana. Segundo

  • Williams e Wood (e a lgica e matemtica da equao entre consumo e gasto calrico), ele ter dedobrar essa quantidade quando chegar aos trinta anos (doze quilmetros por dia, cinco dias porsemana) e triplic-la aos quarenta (dezoito quilmetros por dia, cinco dias por semana) para evitaracumular gordura. Uma mulher na faixa dos vinte anos que corre cinco quilmetros por dia, cincodias por semana uma distncia impressionante, mas no excessiva teria de aumentar para 25quilmetros a distncia percorrida diariamente quando chegasse aos quarenta anos se quisessemanter o mesmo corpo de sua juventude. Se ela faz um quilmetro em cinco minutos, um bom ritmopara tal distncia, melhor que esteja preparada para passar mais de duas horas de seu dia correndopara manter o peso sob controle.

    Se acreditamos na explicao do balano calrico, e isso, por sua vez, leva-nos a concluir quetemos de correr meias maratonas cinco vezes por semana (aos quarenta, e mais aos cinquenta, e maisaos sessenta...) para manter o peso, talvez seja hora de questionar nossas crenas fundamentais.Talvez seja outra razo, que no as calorias que consumimos e gastamos, o que determina seengordamos.

    A f onipresente na crena de que, quanto mais calorias gastamos, menos pesaremos baseia-se,afinal, em uma nica observao e em um nico pressuposto. A observao de que as pessoas queso magras tendem a ser fisicamente mais ativas do que aquelas que no o so. Isso incontestvel.Maratonistas, via de regra, no so obesos nem esto acima do peso; os primeiros colocados nasmaratonas muitas vezes parecem esquelticos.

    Contudo, essa observao no nos diz nada sobre se os corredores seriam mais gordos se nocorressem, ou se a prtica de corrida