Introdução aos Direitos Animais - (Prefácio e Introdução) - Gary L. Francione

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( ( ( ( UNI VERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reiror } OSÉ T ADEU J ORGE Coordenador Geral da Universidade ALVARO PENTEADO CRÓSTA Co nsel ho Editorial Pres idente PAULO FRANCH ETTI CHRI STI ANO LYRA FI LHO- Jost A. R. GoNTIJO J osÉ ROBERTO ZAN - L UIZ MARQUES MARCELO K NOBEL- M ARCO A NTONIO ZAGO SEDI HIRANO- SI LVIA H UNOLD LARA GARY L. FRANCIONE INTRODUÇÃO AO S DIREITOS ANIMAIS Seu filho ou o cachorro? TRADU Ç ÃO REGINA RHEDA je o r T o R A MIM:+++.w:+J

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Rei ror }OSÉ T ADEU J ORGE

Coordenador Geral da Universidade ALVARO PENTEADO CRÓSTA

Conselho Editorial

Presidente

PAULO FRANCH ETTI

C H R ISTIANO LYRA F ILHO- Jost A. R. GoNTIJ O

J osÉ R O BERT O ZAN - L UIZ MARQUES

MARCELO K NOBEL- M ARCO A NTONIO ZAGO

SEDI HIRANO- S I LVIA H UNOLD LARA

GARY L. FRANCIONE

INTRODUÇÃO AO S DIREITOS ANIMAIS

Seu filho ou o cachorro?

TRADU ÇÃO REGINA RHEDA

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO

SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UN I CAMP

DIRETORIA DE TRATAM ENTO DA INFORMAÇÁO

Francionc, Gary L., 19S4p

F846 1 Introdurão aos dh·âtos animais: seuflibo ou o Cllchon·o! I Gary L. Fran-

cionc; tradumra: RcginaR.hcda.- Campinas,SP: Editorada Unicamp,lo 1 3·

1. D ireitos animais- Estados Unidos. 2. Animais- Proteção- Legisp !ação - Estados Unidos. 3· Fi losofia. 4. Ética. L Regina Rheda, 1957-. 11. T ítulo.

CDD 344.79049

)46.73046954

ISBN 978-8 5-•68-0997-0

Índices para catálogo sistemático:

r. Direi tos animais - Estados Unidos 2.. Animais- Proteção- Legislação- Estados Unidos 3· Filosofia 4· Ética

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344·79049

346·73046954 100

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Título original: lntroduction to animal rigbts: your child or t/g dog?

Copyright © 2000 Tcmple Universiry Prcss

Copyright © by Gary L. Francionc

Copyrighr © .o 1 3 by Editora da Unicamp

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Primcd in Brazil. Foi feito o depósito legal.

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A Anna, minha companheira, amiga mais íntima e aliada, que, além de contribuir para a qualidade da minha vida de outras formas, nu­merosas demais para mencionar, me manipulou vergonhosamente até eu socorrer um cachorro (meu primeiro) condenado a ser morto num abrigo local há uns 20 anos, e desse modo iniciou o que evoluiu para uma considerável "matilha" . .Minha dívida para com ela, em tan­tos níveis, é inestimável.

A Eileen Chamberlain, Cheryl Byer, Gloria Binkowski e Elisabeth Colville, que, durante anos, sem alarde e sem qualquer expectativa ou desejo de reconhecimento, gastaram a maior parte de seus recursos emocionais e financeiros cuidando dos animais refugiados deste mun­do, e que salvaram tantas vidas.

A Patty Shenker, com quem sempre pudemos contar. E a todos os meus companheiros animais, que me ensinaram tanto

sobre o significado da moralidade, e em particular a Bonnie Beale, uma cachorrinha branca e peluda que foi deliberadamente atropelada por um carro ao tentar atravessar uma rua movimentada tarde da noite, em fevereiro de 1998. Quando a encontramos, ela estava desi­dratada e faminta. Zarpamos na calada da noite para o consultório do Dr. Bruce e ele tratou de seus ferimentos. Ela parece ser meio ve­lha; é aleijada de uma perna; é surda; enxerga mal; e tem um tumor no pulmão que a Dra. Ann fez entrar em remissão. Bonnie adora passear de carro, correr pelo quintal, ficar no nosso colo por períodos infindáveis de tempo e dormir aconchegada sob o meu queixo ou ao ombro de Anna. Com sua dieta vegana, especialmente com os bis­coitos caseiros de Anna, ela passou de menos de quatro quilos para mais de sete, e tem mais personalidade por grama do que qualquer pessoa que já encontrei. Seu retrato está na capa [da edição original publicada em 2000 pela Temple University Press], e não tenho a menor dúvida de que ela seja uma pessoa, um membro da comu­nidade moral que tem o direito de não ser tratado como uma coisa.

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AGRADECIMENTOS

Devo meus agradecimentos sobretudo à minha companheira e colega na Rutgers Law School, a professora adjunta Anna E. Charlton. Além de ser uma excelente advogada e professora, Anna tem sido uma constante nas discussões que resultaram neste livro. Ela foi cofunda­dora e codiretora do Centro Jurídico de Direitos Animais Rutgers (Rutgers Animal Rights Law Center). Muitas das ideias apresentadas aqui evoluíram a partir de um seminário sobre animais e o Direito, que ela e eu demos na Rutgers Law School durante a década pas­sada. De fato, senti que ela faz tanto parte do projeto que lhe ofe­reci coautoria. Ela declinou, mas considero este livro tanto seu quanto meu.

Estou profundamente agradecido pelas muitas horas de discussão que tive com Alan Watson e Drucilla Cornell, e sinto-me honrado por Alan Watson ter decidido escrever o Prefácio. Também estimo minhas discussões com Peter Singer, de quem geralmente discordo, mas que é um colega dos mais generosos e corteses. Meus colegas na Rutgers, Alfred Blumrosen, Alex Brooks e Philip Shuchman, sem­pre estiveram disponíveis para conversar sobre questões de jurispru­dência, e estou grato a eles. O decano da Rutgers Law School, Stuart Deutsch, o decano associado Ronald K. Chen, o vice-reitor Norman Samuels e o antigo decano Reger I. Abrams fizeram todo o possível para facilitar o meu trabalho.

Beneficiei-me imensamente das discussões com Marc Bekoff, Ted Benton, Gloria Binkowski, Lesli Bisgould, Bill Bratton, Che1yl Byer, Eileen Chamberlain, Elisabeth Colville, Marly Cornell, James Corri­gan, David DeGrazia, Cora Diamond, Jane W. Evans, Ernie Feil, o falecido José Ferrater Mora, Michael Allen Fox, Henry Furst, Deidre Gallagher, Jane Goldberg, Lori Gruen, Coral Hull, Terry Kay, Ar­thur Kinoy, o falecido \Villiam M. Kuntsler, Eileen La1mo, Sheldon Leder, Jeffrey Moussaieff Masson, Simon Oswitch, Maureen Plimmer, Jerry Silverman, Bonnie Sonder e Sheldon Walden. Apresentei resu­mos da argumentação contida neste livro em vários lugares, incluin-

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Jo Rutgers, Brock University, Essex University, Harvard Law School, Manchester University, University of SCI·anton e American Philoso­phical Association, e recebi um ótimo feedbacle .

Os estudantes do nosso seminário sobre animais e o Direito, na Rutgers, estimularam consistentemente meu pensar sobre essas ques­tões ao longo elos anos, e expresso minha gratidão a todos eles. Os meus assistentes de pesquisa Daniel Agatino, Karen Bacon, Steven Flores, Michelle Lerner, Megan Metzelaar e Lydia Zaidman fizeram um trabalho maravilhoso. O Sr. Flores e a Sra. Zaidman merecem uma menção especial pelo extraordinário esforço que exerceram. Mi­nha secretária Mary Ann Moore, as decanas assistentes Marie Meli­to e Linda Garbaccio, e nossa administradora departamental Roseann Raniere fizeram todo o possível para ajudar, assim como a nossa bibliotecária, professora Caro! Roehrenbeck, e sua maravilhosa equipe, incluindo Marjorie Crawforcl, Dan Campbell, Susanna Camargo-Pohl, Helen Leskovac, Steven Perkins, Nina Forcl, Evelyn Ramones, Brian Cucljoe e Daniel Sanders. Kathleen Rehn e Bernadette Carter me salvaram ele vários desastres ao computador.

Agradecimentos muito especiais a Patty Shenker, Doug Stoll, Bill Crockett, Marly Cornell, Ernie Feil, Henry Furst, Amy Sperling, Jane Rubin, meus amigos na North American Vegetarian Society e à Neuman-Publicker Foundation, que apoiaram meu trabalho de vários modos. Sem o tratamento com acupuntura do Dr. Jolm Kohler, eu nunca teria sido capaz de sentar diante do computador durante 12 horas por dia. E estimo a paciência ele meus pais com minhas visi­tas infrequentes enquanto estava escrevendo este livro.

Mais uma vez, o pessoal da Temple University Press deu um excelente apoio profissional: Doris Braenclel, minha editora e boa amiga, a diretora Lois Patton e seus colegas Charles Ault, David Wilson, Jenny French, Aime Marie Anclerson, Gary Kramer, Tamika Hughes, Irene Imperio, Julie Luongo, e os copiclesques freelance Keith Monley, Marly Cornell, Joan Vida! e Megan Metzelaar. Tenho orgulho de ser autor de uma das poucas editoras universitárias ver­dadeiramente progressistas e inovadoras que ainda restam na academia amencana.

Finalmente, minha família não humana - Stratton, Emma, Chel­sea, Robert, Stevie, Bonnie Beale e Simon - me deixou claro que perguntar se os animais podem pensar, ou se são autoconscientes, ou se têm uma gama de emoções muito semelhante à nossa está no mesmo patamar que perguntar se os outros humanos têm essas ca-

racterísticas. Podemos não ser capazes de provar com absoluta cer­teza que os animais têm essas características, assim como não pode­mos provar com certeza que as mentes humanas são todas semelhantes. Mas talvez uma boa notícia para quem tem sérias dú­vidas quanto a essas questões seja a de que a Sociedade da Terra Plana aceita novos membros.

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SUMÁRIO

NOTA DA TRADUTORA

PREFÁCIO

A lan Watson .. .

INTRODUÇÃO ....

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1. O DIAGNÓSTICO: NOSSA ESQUIZOFRENIA MORAL ACERCA

DOS ANIMAIS .... ....... ... ... .... .. .. .... .. . O OH>> • • ····· · ···· oo Ooo HOO 0 o o o H O o 49

2. VIVISSECÇÃO: UMA QUESTÃO MAIS COMPLICADA ... 91

3. A CAUSA DA NOSSA ESQUIZOFRENIA MORAL: OS ANIMAIS

COMO PROPRIEDADE ..... . ·· ··· ··· · 11 7

4 . A CURA PARA A NOSSA ESQUIZOFRENIA MORAL:

O PRINCÍPIO DA IGUAL CONSIDERAÇÃO .. ··· ·· .. .. 159

5. ROBÔS, RELIGIÃO E RACIONALIDADE..... .. .. 189

6. TER NOSSA VACA E TAMBÉM COMÉ-LA: O ERRO DE

BENTHAM..... . . H • •• 22 7

7. DIREITOS ANIMAIS : SEU FILHO OU O CACHORRO? ... . ... . 257

APÊNDICE: VINTE PERGUNTAS (E RESPOSTAS) ...... .. 279

ÍNDICE REMISSIVO . H • •• •• • • • . .. .... .. 305

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NOTA DA TRADUTORA

O termo fundamental deste livro é animal rights. Optei por traduzi-lo como direitos animais, em vez de direitos dos animais (que também se usa e, naturalmente, está certo), por três razões: o termo direitos ani­mais faz um paralelo linguístico com direitos humanos, é mais fácil de escrever e de falar, e, assim como derecbos animales, está dissemi­nado entre os ativistas sul-americanos mais ligados à abordagem dos direitos, em particular à de Gary Francione. Agradeço a Sérgio Greif, Dra. Ana María Aboglio e Cláudio de Godoy pela ajuda com termos científicos e jurídicos, e a Mareio Seligmann-Silva, Vera Cristofani e Luís Martini pelo empenho em tornar possível esta publicação.

Regina Rbeda

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PREFÁCIO

Nossa história política e social está cravejada de complacência: com seres humanos designados como escravos, com pessoas não brancas, gays, mulheres e animais. A repulsa social à opressão, quando vem, é frequentemente extrema e violenta. Mesmo quando não é, pode vir rápido e guiada por uma ideia intelectual. A luta foi ganha de forma ampla, mas não definitiva nem total, contra a escravidão; con­tra o preconceito racial e sexual; contra a homofobia. A conn·ovérsia quanto à relação entre humanos e animais vem ocorrendo há muito tempo, mas sem solução em vista. Eu diria que o panorama está prestes a mudar. Creio que este livro renovadoramente corajoso do professor Gary Francione vá representar uma virada na maneira co­mo nós, humanos, vemos os animais e em como nossas atitudes se traduzem no modo de os tratarmos.

Mudanças radicais do pensamento e de atitudes humanas são sem­pre alarmantes e dolorosas. Há pessoas demais, enn·e nós, que estão fortemente comprometidas com o status quo . Devemos recordar que quando a Declaração da Independência dos Estados Unidos procla­mou que: "Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a pro­cura da felicidade", milhões de pessoas dentro das fronteiras dos novos Estados Unidos eram mantidas na condição de escravidão. Quando os líderes políticos e intelectuais se reuniram para começar a formular a sociedade que queriam estabelecer em sua nação inde­pendente, a escravidão permaneceu entranhada na Constituição que escreveram. Os redatores foram escolhendo os elementos que consi­deravam essenciais à formação de uma sociedade justa e moral, sem que a moralidade da escravidão fosse seriamente desafiada. Uma so­ciedade organizada sobre a proclamação da dignidade inerente a cada pessoa tolerou e lucrou com um sistema político que se con­tentava em tratar alguns seres humanos como coisas que não diferiam de objetos inanimados. Homens de grande caráter moral, profunda

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INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

convicção religiosa, e educação e poder de reflexão consideráveis foram capazes de ignorar essa trágica dissonância e negar, a seus semelhantes humanos, uma posição na comunidade moraL

Quando a escravidão relegou algumas pessoas ao status de coisas, a lei não pôde oferecer uma proteção que forçasse um proprietário de escravos a respeitar qualquer interesse de seu escravo, se fosse do interesse do proprietário explorar sua propriedade escrava. Aqueles que tentaram tornar a escravidão mais "humanitária" ou "compassiva" não puderam proteger o escravo contra as decisões de seu proprie­tário quanto ao melhor uso de sua propriedade. Não foi possível dar passos incrementais em direção à liberdade. Não podíamos "reformar" nosso caminho para sair dessa situação. Dar "direitos" aos escravos, quando eles ainda eram propriedade, não era a resposta. Uma refor­ma tática e humanitária não bastava. A situação melhorou graças à abolição da escravidão só depois de um sangrento conflito.

Agora Gary Francione lança um desafio concernente ao nosso uso e tratamento dos animais. Ele nos incita a nos desfazermos das confortáveis desculpas proporcionadas pelo nosso aparente compro­misso com o tratamento "humanitário" ou "compassivo" dos animais e a reconhecer que, sob as leis e regulações relativas a como trata­mos os animais com quem dividimos este planeta, na realidade os tratamos como coisas que não têm nenhmn interesse que devamos levar a sério.

Como pode acontecer isso? A norma social de que devemos ser "bondosos" com os animais não é um dos poucos imperativos morais com os quais todos concordamos? O livro de Francione arranca o véu através do qual a ética humana obscmece nosso modo de ver os animais dando-nos a ilusão de que levamos seus interesses a sério. Uma sociedade que levasse os interesses dos animais a sério não mataria bilhões deles pelo prazer do sabor de sua carne, quando há alternativas alimentares disponíveis; não os sujeitaria ao confinamento e ao sofrimento impostos pelo agronegócio ou pelos experimentos científicos; não . toleraria seu tormento em rodeios ou circos para o nosso fugaz entretenimento. A incisiva acusação de Francione contra nossa exploração dos mesmos animais que supostamente tratamos de modo hmnan.itário revela que teríamos de puxar pela imaginação para achar um meio de explorar os animais que a nossa sociedade hmnanitária não permita.

Francione localiza a raiz do fracasso do princípio do tratamento humanitário em uma falha conceitual da teoria moral que foi in-

GARY L. FRANC IO NE

c01·porada às leis anticrueldade modernas. O princípio do tratamento humanitário tem origem na teoria do advogado e filósofo inglês do século XIX Jeremy Bentham. Bentham rejeitava a visão de que, co­mo os animais não têm, supostamente, racionalidade ou capacidade de se comunicar usando a linguagem, os hmnanos podiam tratá-los como coisas e não tinham nenhuma obrigação moral direta para com eles. Bentham afirmava que a senciência, ou a capacidade de experien­ciar dor e sofrimento, era a única característica exigida para provar o status moral dos animais. Em uma passagem que hoje é famosa, ele escreveu que "um cavalo ou cachorro adulto é um animal incom­paravelmente mais racional e mais sociável do que um bebê de um dia, uma semana ou mesmo mn mês de idade. Mas suponha que não fosse esse o caso; de que isso serviria? A questão não é Eles podem 7··aciocinm-?, nem Eles podem falar?, mas sim Eles podem sofrer?" .

O problema, de acordo com Francione, é que, embora Bentham rejeitasse a escravidão humana, ele nunca desafiou o status dos ani­mais como prop7'iedade dos humanos. Como resultado, o princípio do u·atamento humanitário, que requer que "equilibremos" os interesses dos humanos com os dos animais e assim pretende tratar os inte­resses dos animais como moralmente significativos, estava fadado ao fracasso porque, mesmo sob a visão supostamente mais iluminada de Bentham, os animais ainda existem exclusivamente como recursos dos humanos. Mesmo sob o princípio do tratamento humanitário, os animais não são nada além de coisas.

Francione insiste que aprendemos ao menos uma lição com a abolição da escravatura: se for para incluir um humano na comuni­dade moral, não se pode permitir que essa pessoa seja u·atada exclu­sivamente como um meio para os fms de outra. Uma pessoa não pode ser o recurso de outra. Se também professarmos que levamos os interesses dos animais a sério, não podemos continuar a conside­rá-los um recurso ao qual devemos apenas mn tratamento huma­nitário. Francione argun1enta que não há meio de um sistema "hí­brido" - um sistema que professe equilibrar os interesses de um grupo que são protegidos por direitos com os interesses de outro grupo que são desprotegidos por direitos - poder servir para ofe­recer qualquer proteção significativa aos interesses do último.

A teoria apresentada por Francione é original, pois não se apoia numa teoria de direitos liberais tradicional, como faz Tom Regan em Tbe Case fo7' Animal Rigbts; ele também não se apoia na teoria utilitarista, como faz Peter Singer, que, em Libertação Animal (Animal

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INTRODU ÇÃ O AOS DIR EITOS A NIMAIS

Liberation), articula uma teoria derivada diretamente de Bentham. Francione demonstra que o princípio da igual consideração, que de­ve ser parte de qualquer teoria moral, seja ela baseada nos direitos ou na consequência ou na "ética do cuidado" ecofeminista, requer que rejeitemos o uso e o tratamento dos animais como recursos. Tal requisito teria profundas implicações para a nossa teoria a respeito da nossa obrigação moral para com os animais, porque qualquer teo­ria que rejeite a condição dos animais como coisas deve estar com­prometida com a abolição da exploração animal, e não com a mera regulação do uso de animais para assegurar que ele seja mais "hu­manitário".

Francione corretamente observa, baseado na história da proprieda­de e no status econômico dos animais como tendo apenas o valor que lhes é atribuído pelos humanos, que, se os animais forem vistos so­mente como mercadorias, provavelmente não haverá mudanças signi­ficativas no tratamento que lhes damos. Mas ele faz a observação mais profunda de que, enquanto os animais forem tratados exclusivamente como meios para os fins dos humanos, seus interesses deverão sem­pre ser dessemelhantes aos interesses humanos. Assim como no caso da escravidão humana, o princípio da igual consideração nunca pode ser aplicado aos animais, porque seus interesses serão sempre e sis­tematicamente considerados sem valor. Como resultado, os animais irão, nas palavras de Bentham, "ficar degradados na classe das coisas".

Segundo Francione, o princípio de que devemos tratar casos se­melhantes semelhantemente proíbe que tratemos qualquer ser senciente, seja ele humano ou animal, exclusivamente como um re­curso. Fracione argumenta que, se for para os interesses dos animais terem alguma importância moral, devemos lhes estender um direito básico - o direito de não serem tratados como uma coisa. Devemos abolir, e não meramente regular, a exploração dos animais. Ele afir­ma que nossa completa rejeição ao nosso tratamento dos animais como coisas não é tão radical quanto parece, quando consideramos que já condenamos a imposição de sofrimento "desnecessário" aos animais e que a maioria dos usos que fazemos deles não pode ser descrita como necessária em qualquer sentido que seja. Podemos preferir os interesses dos humanos aos interesses dos animais em situações de genuíno conflito ou emergência, como quando passamos por uma casa em chamas ocupada por um homem e um animal e só temos tempo de salvar um deles, mas devemos parar de gerar esses conflitos ao tratar os animais como coisas, em primeiro lugar.

GA RY L. FR A NC IONE

O leitor que digere a argumentação claramente articulada e con­vincente no cerne do livro de Francione deve concluir que o trata­mento que damos aos animais invalida nossas declarações de que levamos os interesses deles a sério. Francione insiste que devemos estabelecer uma relação nova e completamente diferente com os ou­tros animais, uma relação que transforme nossas instituições, nossa indústria e nossa ligação com o ambiente.

Enfrentar verdades incômodas não é fácil. Francione coloca diante de nós de modo severo a realidade do nosso tratamento de animais. E então nos desafia a repetir nossa alegação de que levamos os inte­resses dos animais a sério. Quando ele retira os obscurantes confortos da nossa negação, nossas justificações para explorar os animais soam tão ocas e hipócritas quanto nossa defesa da escravidão humana no passado. A teoria de Francione é radical, mas é simples, do mesmo modo que a maioria das ideias revolucionárias são simples; é remi­niscente da voz do escravo que proclamava: "Eu sou um homem".

O livro de Francione de 1995, Animais, Property, and tbe Lmv, marcou o início do status legal dos animais como tema de estudos acadêmicos sérios. Nesse livro, Francione apresentou a análise defi ­nitiva da condição dos animais como propriedade e colocou os ter­mos da discussão que continua em ebulição pelas salas de aula e a mídia. Seguiu-se em 1996 o Rain Without Thzmder: Tbe ldeology ~f the Animal Rights Movement, um estudo do movimento americano pelos direitos animais em que Francione argumentou que esse mo­vimento, em geral, rejeitou a posição dos direitos animais e abn1çou a regulação, e não a abolição, da exploração animal.

No presente livro, Francione oferece uma teoria de direitos ani­mais que ele deriva das nossas visões morais convencionais e dissemi­nadas. Embora trate de alguns dos problemas filosóficos mais difíceis que informam a ética animal, sua apresentação é extraordinariamente clara e acessível a qualquer leitor interessado no assunto. Foi neces­sário alguém como Francione, com seu penetrante insight, ag11çado intelecto e longa experiência prática como principal advogado lig;1do aos direitos animais da nação, para produzir uma análise que há de superar as abordagens anteriores da relação entre humanos e animais, e para fornecer uma base teórica rigorosa e criativa para redefinir essa relação.

O aumento do número de aulas sobre direitos animais oferecidas nas faculdades de Direito tem atraído muita atenção, recentemente. Sem dúvida, o empenho pedagógico e acadêmico de Francione, assim

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20 I INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

como seus litígios de interesse público, tem sido responsável por essa tendência. Com sua colega Alma Charlton, Francione deu aulas sobre aspectos legais dos direitos animais por mais de uma década na Rut­g·ers Law School e dirigiu a única oficina de litígio referente a di­reitos animais de qualquer faculdade de Direito do país. Antes disso, e enquanto ele e eu éramos professores da University of Pennsylva­nia Law School, Francione lecionou direitos animais como parte de seu curso de jurisprudência. Embora outras pessoas ecoem suas ideias, o n·abalho de Francione define o padrão nessa área de pesquisa.

Quem me conhece bem pode estar confuso com este Prefácio. Durante a maior parte da minha vida adulta, fui um ávido caçador Je pássaros e pescador. Mesmo hoje, quase duas décadas depois de ter deixado a Escócia, incluo os membros do meu grupo de tiro entre meus amigos mais chegados. Conheci Gary Francione através de meu amigo, e seu professor, David Yalden-Thomson, com quem eu atirava em patos e gansos n·ês dias por semana, na Virgínia. Mas j<í se passaram anos desde que cacei com alguma seriedade. Vou com frequência à nossa fazenda na Carolina do Sul, com a intenção de pescar. Mas não consigo me lembrar de ter realmente posto a minha vara de pesca no barco. Ia haver um evento de tiro ao pombo em nossa fazenda, organizado por um clube, e me pediram para parti­cipar. Respondi que não conseguia decidir. No fim, não participei. E acho que não vou mais atirar em pássaros. Ainda como carne, embora com menos frequência. Tenho quase certeza de que vou pescar trutas com mosca, novamente. Então tenho um conflito. Não vou explicar, nem posso. Mas é apropriado registrar que acredito que se tivesse vivido em 1850, em condições semelhantes a estas em que vivo agora - no sul dos Estados Unidos, com minha fazenda fami­liar e muitos acres cobertos de algodão -, eu não teria me oposto à escravidão, embora possivelmente tivesse, espero, dúvidas.

Alan Watson Athens, Geórgia

12 de maio de 2000

INTRODUÇÃO

ANIMAIS: O QUE DIZEMOS E O QUE FAZEMOS

Há uma profunda disparidade entre o que dizemos acreditar sobre os animais e como, de fato, os tratamos. Por um lado, dizemos le­var os interesses dos animais a sério. Dois terços dos americanos consultados pela Associated Press concordam com a seguinte decla­ração: "O direito de um animal de viver livre de sofrimento deveria ser tão importante quanto o direito de uma pessoa de viver livre de sofrimento". Mais de 50% dos americanos acreditam que é errado matar animais para fazer casacos de pele ou caçá-los por esporte'. Quase 50% consideram os animais "exatamente como os humanos sob todos os aspectos importantes"2• Acima de 50% vivem com ga­tos ou cachorros, e aproximadamente 90% dessas pessoas consideram seus animais de estimação como membros de suas famílias3 e se arriscariam a se machucar ou morrer para salvar a vida de seu pet4•

Os americanos gastam aproximadamente US$ 7 bilhões por ano em cuidados veterinários para com seus cachorros e gatos\ e acima de US$ 20 bilhões em comida e acessórios para esses e outros animais de estimação6.

Essas atiU1des se refletem também em outras nações. Por exemplo, 94% dos britânicos7 e 88% dos espanhóis8 acham que os animais deveriam ser protegidos contra atos de crueldade, e apenas 14% dos europeus apoiam o uso da engenharia genética que resulta em sofri­mento animal, mesmo se o objetivo for criar drogas que possam salvar vidas hmnanas9. E todos os dias lemos notícias sobre notáveis esforços de humanos para salvar animais. Por exemplo, em 1988, o salvamento de três baleias que ficaram presas sob o gelo no Alasca necessitou de um significativo esforço voluntário, durou semanas, custou aproximadamente US$ 800 mil, an·aiu a atenção da mídia internacional e até fez os Estados Unidos e a União Soviética se unirem num esforço para salvar os animais 10

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INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

Por outro lado, nosso real tratamento dos animais contrasta dura­mente com aquilo que proclamamos sobre a nossa consideração pe­lo seu status moral. A cada ano, sujeitamos bilhões de animais a uma enormidade de dor, sofrimento e angústia. Segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, matamos mais de 8 bilhões de animais por ano para comida, incluindo aproximadamente 37 milhões de vacas e bezerros, 102 milhões de leitões, quase 4 milhões de ovelhas e cordeiros, 7,9 bilhões de galinhas, 290 milhões de perus e 22 milhões de patos 11

• Abatemos mais de 100 mil cavalos por ano12.

A cada dia, abatemos aproximadamente 23 milhões de animais, ou acima de 950 mil por hora, ou quase 16 mil por minuto, ou acima de 260 a cada segundo. Sem falar dos outros bilhões que são mor­tos no mundo todo. Esses animais são criados em condições horren­das, mutilados de várias formas sem anestesia nem analgésicos, trans­portados por longas distâncias em contêineres imundos e apertados, e finalmente mortos em meio ao fedor, ao bamlho e à sordidez do abatedouro. Matamos bilhões de peixes e outros animais marinhos anualmente. Nós os capturamos com anzóis e os deixamos sufocar em redes. Compramos lagostas no supermercado - onde elas são mantidas em tanques superlotados durante semanas, com suas garras fechadas e amarradas por elásticos, e sem receber comida - e as cozinhamos vivas em água fervente.

Os caçadores matam aproximadamente 200 milhões de animais nos Estados Unidos a cada ano; essa cifra inclui 50 milhões de pombos selvagens, 25 milhões de esquilos e coelhos, 25 milhões de codorni­zes, 20 milhões de faisões, 10 milhões de patos, 4 milhões de veados, 2 milhões de gansos, 150 mil alces e 21 mil ursos n. Além desses animais, os caçadores matam centenas de milhares de antílopes, cis­nes, panteras, perus, guaxinins, gambás, lobos, raposas, coiotes, linces americanos, porcos-do-mato e outros animais. Esses números não incluem os animais mortos em ranchos de caça comerciais ou even­tos como o tiro ao pombo. Além do mais, os caçadores frequente­mente aleijam os animais sem matá-los ou apanhá-los depois. Por exemplo, estima-se que os caçadores que usam arco e flecha não apanham 50% dos animais que atingem 14

• Isso aumenta o verdadeiro número de mortos pela caça em ao menos dezenas de milhões de animais não contados. Com frequência, os animais que são feridos morrem aos poucos, ao longo de horas ou mesmo dias, de perda de sangue, perfuração do intestino e estômago, e graves infecções. Mui­tos animais foram caçados até a extinção.

GARY L. FRANCIONE

Só nos Estados Unidos, usamos milhões de animais, anualmente, para experimentos biomédicos, testes de produtos e educação. Esses animais são utilizados para medir os efeitos . de toxinas, doenças, drogas, radiação, projéteis e todas as formas de privação física e psicológica. Os animais são queimados, envenenados, irradiados, ce­gados, eletrocutados, forçados a passar fome, a ter doenças (como câncer), a ter infecções (como pneumonia), são privados do sono, mantidos em confinamento solitário, sujeitados à remoção de seus membros e olhos, viciados em drogas, forçados a abandonar o .vício em drogas e enjaulados pelo tempo que durarem suas vidas. Os ani­mais que não morrem durante os procedimentos experimentais são quase sempre mortos imediatamente depois, ou reciclados para outros experimentos ou testes, até serem finalmente mortos. E tudo isso, as pessoas nos dizem, é para o propósito de melhorar a saúde e curar as doenças dos humanos.

Milhões de animais são usados só para o propósito de proporcio­nar entretenimento. Animais "atores" são utilizados no cinema e na televisão. Nos Estados Unidos, há milhares de zoológicos, circos, parques de diversões, pistas de corrida de cavalos e cães, espetáculos de mamíferos marinhos e rodeios, e essas e outras atividades seme­lhantes, como as touradas, também estão presentes em outros países. Os animais usados no entretenimento são frequentemente forçados a suportar prisão e confinamento perpétuos, más condições de vida, dificuldades e perigos físicos extremos, e tratamento bmtal. A maio­ria dos animais usados para entretenimento são mortos quando dei­xam de ser úteis, ou são vendidos para a pesquisa biomédica ou para ser alvos de tiros em reservas de caça comerciais.

E matam-se milhões de animais por ano simplesmente para us:í-los na indústria da moda. No mundo todo, cerca de 40 milhões de ani­mais são capturados com armadilhas de metal ou laço, ou são cri;ldos em confinamento intensivo em granjas de peles, onde são mortos por eletrocussão, asfixia ou quebra do pescoço. Nos Estados Unidos, de 8 a 10 milhões de visons, coelhos, raposas, coiotes, chinchilas, casto­res, zibelinas, guaxinins e outros animais são mortos todos os anos para a produção de peles.

Em resumo, pode-se dizer que sofremos de um tipo de "esqu i­zofrenia moral", quando se trata do que pensamos sobre os aninulis. Afirmamos que consideramos os animais como seres que têm inte­resses moralmente significativos, mas nossa maneira de trat;í-los con­tradiz nossa afirmação.

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24 I INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

NOSS A SABEDORIA CONVENCIONAL: PODEMOS PREFERIR OS HUMANOS, MAS SOMENTE QUANDO "NECESSÁRIO"

Neste livro, vamos explorar o tema do status moral dos amma1s nu­ma tentativa ele entender a disparidade que existe entre o que dize­mos sobre os animais e como realmente os tratamos. Um bom ponto ele partida é pergtmtar se há uma sabedoria convencional so­bre o assunto - quaisquer intuições ou posições geralmente aceitas sobre o status moral dos animais que possam servir como foco para noss;t investigação.

Penso que a maioria de nós concordaria que nosso pensar moral sobre os animais é informado por duas intuições, ambas envolvendo o conceito ele necessidade.

Intuição 1: Podemos preferir os humanos em situações de "neces­sidade"

Não pensamos que os animais sejam "o mesmo" que nós. A 1mioria ele nós tem a posição de que, em situações de verdadeiro conflito entre os interesses dos humanos e os dos animais, ou em algwna emergência que requeira que escolhamos entre um humano e um animal - isto é, quando for necessário fazer isso -, elevemos preferir os interesses ele um humano aos interesses de um animal.

Imagine a seguinte situação: você chega em casa e vê que ela está em chamas. Nela há dois ocupantes vivos: seu filho e seu ca­chorro. Você é a única pessoa nas imediações da casa em chamas. O fogo queima com tanta fúria que você tem tempo de salvar ou o seu filho ou o seu cachorro, mas não os dois. Qual deles você escolhe? A resposta é simples. Você salva seu filho . Mas esse quadro hipotético não é justo. Afinal de contas, a maioria de nós salvaria o próprio filho, mesmo se o outro ocupante ela casa em chamas fosse o fi lho de outra pessoa, ou a Madre Teresa de Calcutá, ou algum outro humano que valorizássemos. De fato, para dizer honestamente, a maioria de nós . escolheria salvar o próprio filho em vez de uma dúzia ele filhos de outras pessoas.

Vamos variar um pouco a hipótese. Imagine que os dois ocupan­tes d<l casa em chamas sejam um cachorro e um ser humano, e que você não conheça nenhtml deles. Quem você salva? Novamente a resposta é simples: sua inluição moral lhe diria que você tem de preferir o humano ao animal. Mas se o cachorro for um membro da sua família, um ser com o qual você tem um relacionamento, e

GARY L. FRANCIONE

você não conhecer o humano, a força dessa intuição moral pode diminuir. E pode diminuir mais ainda se, independentemente de você conhecer o cachorro, o humano em questão for Aclolf Hitler ou Charles Manson. Em todo caso, na maioria das situações de emergência - pelo menos no abstrato -, consideramos moralmente preferível escolher o humano a escolher o animal.

Intuição 2: É errado infligir sofrimento "desnecessário" aos aru­mals

Embora possamos preferir humanos a animais em situações de verdadeira emergência ou conflito, também reconhecemos que, como nós, e diferentemente das plantas e das pedras, os animais (ou pelo menos muitos deles) são sencientes - são daquele tipo de ser que é consciente e pode ter experiências subjetivas de dor e sofrimento15. Como nós, os não humanos sencientes têm interesse em não experien­ciar dor e sofrimento, isto é, eles são daquele tipo de ser que pre­fere não sofrer dor, ou deseja não sofrer dor, ou não quer sofrer dor. Os animais podem ter outros interesses também, mas, se são seu­cientes, sabemos que eles têm, no mínimo, interesse em evitar dor e sofrimento. Consideramos esse interesse moralmente significativo e aceitamos que não devemos infligir nenhum sofrimento desnecessário aos amma1s.

O PRINCÍPIO DO TRATAMENTO HUMANITÁRIO: UMA PROIBIÇÃO CONTRA O SOFRIMENTO ANIMAL "DESNECESSÁRIO"

Essas duas intuições que abarcam a nossa sabedoria convencional sobre os animais estão representadas no princípio do tratamento hu­nzanitti1-io, que tem sido uma parte arraigada e incontroversa da nossa cultura desde o século XIX. O princípio do tratamento huma­nitário sustenta que podemos preferir os interesses dos humanos aos interesses dos animais, mas que podemos fazer isso apenas quando for necessário, e que, portanto, não devemos infligir sofrimento des­necessário aos animais. O princípio do tratamento humanitário é não somente uma norma moral, mas também uma norma legal: as leis do bem-estar animal professam que estamos proibidos de infligir sofri­mento desnecessário aos animais. Além disso, nossa razão para proi­bir o sofrimento animal desnecessário assenta-se não apenas no fato de que infligir tal sofrimento nos fará agli· com menos bondade com

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26 I INTRODU ÇÃO AOS DIREI TOS AN IMAIS

outros humanos, mas no de que acreditamos que isso sep um mal para os próprios animais.

A fim de determinar se um uso ou tratamento animal em particu­lar é necessário sob o princípio do tratamento humanitário, devemos equilibrar os interesses dos animais e os interesses dos humanos. Se a balança pesar a favor dos humanos - se os interesses dos huma­nos em infligir dano a um animal forem mais fortes do que os interesses do animal em não ser forçado a sofrer -, consideramos o uso ou tratamento justificado moralmente porque é necessário. Se a balança pesar a favor dos animais, então a inflição do dano não é moralmente justificada porque é considerada desnecessária. Essa ope­r;~ção de equilibrar os interesses certamente não é precisa, e podemos muito bem divergir quanto às nossas avaliações do peso relativo dos interesses rivais dos humanos e dos animais em determinados casos, assim como quanto a que constitui sofrimento desnecessário. Mas, sejam quais forem nossas outras diferenças, devemos concordar que, se a proibição contra o sofrimento desnecessário tiver algum significa­do, é moral e legalmente errado infligir sofrimento aos animais para o nosso mero divertimento ou prazer. Devemos concordar que há alguns limites significativos ao nosso uso e tratamento dos animais.

O PROBLEMA: NÃO PRATICAMOS O QUE PRE GAMOS

Embora afirmemos que podemos preferir humanos a animais quando necessário, mas que é errado impor sofrimento desnecessário aos animais, o fato é que a grande maioria dos usos que fazemos dos animais somente pode ser justificada pelo hábito, a convenção, o di­vertimento, a conveniência ou o prazer. Em ouu·as palavras, a maio­ria do sofrimento que impomos aos animais é completamente desne­cessária, seja qual for a nossa interpretação dessa noção.

Por exemplo, os usos de animais no entretenimento, como em fi lmes, circos, rodeios e caça esportiva, não podem, por definição, ser considerados necessários. No entanto, essas atividades são todas protegidas por leis que supostamente proíbem a inflição de sofrimen­to desnecessário aos animais. Certamente não é necessário vestirmos casacos de pele, ou utilizarmos animais para testar produtos de uso doméstico duplicados, ou termos ainda outra marca de batom ou loção pós-barba.

GAR Y L. FRANCION E

Mais importante em termos de número de animais usados, entre­tanto, é a criação animal industrial; só nos Estados Unidos, mais de 8 bilhões de animais são mortos anualmente para a produção de co­mida. Como veremos no Capítulo 1, não é necessário, em nenhum sentido, comer carne ou outros produtos animais: de fato, um núme­ro crescente de profissionais da saúde afirma que os produtos animais podem ser prejudiciais à saúde humana. Além disso, respeitáveis cien­tistas ambientalistas têm chamado a atenção para o tremendo custo que a criação animal voltada à produção de carne impõe ao nosso planeta. Em todo caso, nossa melhor justificativa para a enorme dor, sofrimento e morte impostos a esses bilhões de animais de fazenda ou granja é que gostamos do sabor de suas carnes. E embora muitos de nós acreditemos que o uso de animais em experimentos, testes de produtos e educação científica apresenta a clássica escolha do nós versus eles na "casa em chamas", a necessidade do uso de animais para esses propósitos também está aberta a um sério questionamento.

ANIMAIS COMO PROPRIEDADE: UM EQUILÍBRIO DESEQUILIBRADO

A razão da profunda inconsistência entre o que dizemos sobre os animais e como realmente os u·atamos é o status, ou a condição, elos animais como nossa propriedade16

• Os animais são mercadorias que possuímos e cujo ímico valor é aquele que nós, como proprietários, escolhemos lhes dar. A condição de propriedade dos animais torna completamente sem sentido qualquer equilíbrio que, supostamente, se requeira sob o princípio do tratamento humanitário ou as leis elo bem-estar animal, porque o que estamos realmente pesando são os interesses elos proprietários contra os interesses da sua propriedade animal. Não é preciso ter muito conhecimento sobre leis referentes à propriedade ou sobre economia para reconhecer que, nesse equili ­brar, a balança raramente, ou nunca, pesará a favor dos animais. Se alguém lhe sugerisse que você equilibrasse seus interesses com os interesses de seu automóvel ou de seu relógio de pulso, você muito corretamente consideraria a sugestão absurda. Seu automóve l e seu relógio de pulso são sua propriedade. E les não têm interesses mo­ralmente significativos; eles são meras coisas sem outro va lor além daquele que você, o dono, lhes dá. Como os animais são mer:~ pro­priedade, geralmente temos permissão para ignorar seus interesses e

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28 I INTRODUÇÃO AOS DIRE ITOS ANIMA IS

p<ml infligir-lhes a mais horrenda dor, sofrimento ou morte, quando essa atitude é economicamente vantajosa para nós.

Dizemos que podemos preferir os interesses dos animais aos m­teresses dos humanos, mas somente quando for necessário fazer isso, porém é semp1~e necessário decidir contra os animais a fim de pro­teger os direitos elos humanos à propriedade animal. Permite-se que interpretemos o sofrimento necessário como qualquer sofrimento ne­cessário para usarmos nossa propriedade animal para um determina­do propósito - mesmo que esse propósito seja nossa mera conve­uiência ou prazer. Tratamos todas as interações entre humanos e animais como análogas ao conflito da casa em chamas. O interesse do humano como proprietário quase sempre prevalecerá. O animal em questão é sempre um "animal de estimação" ou "pet", ou um animal "de laboratório", ou um animal de "caça", ou um animal para "comida", ou um animal de "rodeio", ou alguma outra forma de propriedade animal que existe somente para nosso uso e que só tem valor como um meio para os nossos fins . Não há realmente nenhuma escolha a ser feita entre o interesse do humano e o inte­resse do animal porque a escolha já está predeterminada pelo status

de propriedade do animal.

A SOLUÇÃO: LEVAR OS INTERESSES DOS AN IMAI S A SÉ RI O

Se quisermos levar os interesses dos animais a sério e dar conteúdo à nossa professada rejeição à inflição de sofrimento desnecessário a eles, só podemos fazer isso de uma maneira: aplicando aos animais o princípio da igual consideração, ou a norma de que devemos tratar semelhantes semelhantemente. Não há nada de exótico ou particular­mente complicado no princípio da igual consideração. De fato, esse princípio faz parte de todas as teorias morais e, como o princípio do n·atamento hwnanitário, é um preceito que a maioria de nós acei­ta no nosso pensar cotidiano sobre as questões morais . Aplicarmos o princípio da igual consideração aos animais não quer dizer que este­jamos comprometidos com a posição de que os animais são "o mes­mo" que os humanos (seja o que for que isso signifique), ou que eles são nossos "iguais" em todos os aspectos. Quer dizer apenas que se os humanos e os animais de fato tiverem um interesse semelhante, devemos tratar esse interesse da mesma maneira, a menos que haja alguma boa razão para não fazer isso. Nossa sabedoria convencional

GAR Y L FRANCIO NE

sobre os animais nos faz entender que eles são semelhantes a nós ao menos em um aspecto: eles são sencientes e, como nós, têm inte­resse em não sofrer. Nesse sentido, nós e eles somos semelhantes, e dessemelhantes a tudo mais, no universo, que não seja senciente.

Não protegemos, nem podemos proteger, todos os humanos de todo sofrimento, mas pelo menos dizemos proteger todos os huma­nos - jovens ou velhos, brilhantes ou estúpidos, ricos ou pobres -de sofrer sob qualquer circunstância como resultado de ser usado ex­clusivamente como recurso alheio. Embora possamos tolerar diferentes graus e tipos de exploração humana, traçamos um limite. Não con­sideramos moralmente permissível tratar qualquer humano que seja como propriedade de outros humanos; não consideramos moralmen­te permissível tratar qualquer humano que seja exclusivamente como meio para os fins de outros humanos. De fato, protegemos o inte­resse dos humanos em não ser propriedade de outros com um me­canismo chamado direito . Em particular, consideramos todo ser hu­mano um titular daquilo que chamamos de um direito básico de não ser propriedade alheia. Os animais e os humanos são semelhantes, pois são sencientes. Se o interesse dos animais em não sofrer for moralmente significativo, então devemos aplicar o princípio da igual consideração e lhes estender o direito básico de não serem tratados como coisas, como nossa propriedade, a menos que haja uma razão moralmente sólida para não fazermos isso. Devemos reconhecer que os animais, como os humanos, têm um interesse moralmente sig­nificativo em não sofrer de jeito nenhum como resultado de ser usa­dos como recursos.

Já que este livro é sobre direitos animais, pode ser uma boa ideia fazer uma curta digressão aqui, para explorar o conceito de direitos como uma questão geral, o conceito de direito básico, e o que que­remos dizer ao afirmar que o princípio da igual consideração requer que reconheçamos que os animais têm direito de não ser tratados exclusivamente como recursos dos humanos.

O conceito de direitos

Há muita confusão em torno do conceito de direitos. Para o nos­so objetivo, precisamos focar apenas um aspecto do conceito de di­reito que é comum a praticamente todas as teorias sobre os direitos: um direito é um determinado modo de proteger interesses. Dizer que um interesse está protegido por um direito é dizer que o inte-

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resse está protegido de ser ignorado ou violado simplesmente porque isso beneficiará outra pessoa. Podemos pensar em um direito qual­quer como se fosse uma cerca ou um muro ao redor de um inte­resse, com uma placa que proíbe a entrada mesmo que entrar seja vantajoso para quem está procurando fazer isso. Conforme a descri­ção de um autor, direitos são "noções morais que emergem do respeito pelo indivíduo. Eles erguem cercas protetoras em torno do indivíduo. Eles estabelecem áreas onde o indivíduo está qualificado a ser protegido contra o Estado e a maioria mesmo onde o bem-estar geral pague um preço" 17 •

Por exemplo, nosso direito à liberdade de expressão protege nos­so interesse em nos autoexpressar, mesmo se as outras pessoas não derem valor a essa expressão e mesmo se elas se beneficiassem com sua repressão. Os direitos, entretanto, não são absolutos no sentido de que sua proteção não tenha exceção. Por exemplo, meu direito à liberdade de expressão não protege o meu ato de gritar falsamente "incêndio!" num cinema lotado, ou o meu ato de declarar fa lsidades difamatórias sobre outra pessoa. Meu interesse em me expressar não está protegido nestes casos, mas em nenhum deles tenta-se censurar o conteúdo do meu discurso meramente porque outras pessoas dis­cordem de mim.

Do mesmo modo, o direito à liberdade protege nosso interesse em nossa liberdade, independentemente do valor que outras pessoas deem a esse interesse. Se outras pessoas pensarem que devo ser preso só porque irão se beneficiar da minha prisão, meu direito irá me proteger desse tratamento. Mas, novamente, meu direito não é absoluto. Se um júri de meus pares me declarar culpado de ter co­metido um crime, então posso ser forçado a perder minha liberdade. Mas meu interesse em minha liberdade será protegido contra ser tirado de mim porque outras pessoas atribuem valor a ele de um modo diferente.

Semelhantemente, o direito a ter propriedade protege nosso inte­resse em possuir coisas - nosso interesse em usar, vender, dispor de e valorar essas coisas - mesmo que outras pessoas possam se beneficiar da desconsideração desse interesse. Novamente, o direito de propriedade, assim como os outros direitos, não é absoluto; não podemos usar nossa propriedade de um modo que machuque ou prejudique outras pessoas. E, às vezes, o Estado pode tomar a pro­priedade, embora nestes casos geralmente se requeira que ele ofereça uma compensação ao proprietário.

GAR Y L. FRAN CIONE

O direito básico de não ser tratado como uma coisa

Reconhecemos que, entre os humanos, há uma ampla gama de interesses, pois quase não há dois humanos que prefiram, queiram ou desejem exatamente as mesmas coisas . Alguns humanos preferem La Boherne; ouu·os preferem Pink Floyd. Alguns humanos têm inte­resse em obter uma educação universitária; outros preferem aprender um ofício; outros, ainda, não têm interesse em nada disso. Mas to­dos os humanos têm interesse em evitar dor e sofrimento, a menos que estejam com morte cerebral ou não sejam sencientes por algum

outro motivo. Embora não protejamos os humanos contra todo tipo de sofri­

mento, e embora possamos não concordar quanto a quais interesses humanos devam ser protegidos por direitos, geralmente concordamos que todos os humanos devem ser protegidos do sofrimento que resul­ta de ser usado como propriedade ou mercadoria de outro humano. Não consideramos legítimo tratar qualquer hunumo que seja, indepen­dentemente de suas características particulares, como propriedade de outros humanos. De fato, num mundo profundamente dividido quan­to a muitas questões morais, uma das poucas normas endossadas pela comunidade internacional é a proibição da escravidão humana . Também não é uma questão de determinar se uma forma em par­ticular de escravidão é "humanitária" ou não; condenamos toda escra­vidão humana. É claro que seria incorreto dizer que a escravidão humana foi inteiramente eliminada do planeta, mas a instituição é universalmente considerada odiosa em termos morais, e é proibida legalmente. Protegemos o interesse de um humano em não ser pro­priedade alheia com um direito, o que quer dizer que não permiti­mos que esse interesse seja ignorado ou ab-rogado simplesmente porque fazer isso vá beneficiar outra pessoa. O direito de não ser tratado como propriedade alheia é básico, pois é diferente de qu:Jis­quer outros direitos que poderíamos ter porque é a fundação pan1 esses ouu·os direitos; é uma precondição par:J a posse de interesses moralmente significativos. Se não reconhecermos que um humano tem o direito de não ser tratado exclusivamente como um meio pan1 os fins de ouu·o, então qualquer outro direito que possamos lhe dar, como o direito à liberdade de expressão, ou à liberdade, ou ao voto, ou a ter propriedade, fica completamente sem sentido 18

• Em termos mais simples : se eu posso escravizar você e matá-lo conforme a mJ ­nha vontade, então qualquer outro direito que você poss<l ter n~o

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32 INT RODU ÇÃO AOS DIREITOS ANIMA IS

vai lhe servir para muita coisa. Podemos não concordar quanto a que outros direitos os humanos têm, mas para terem qualquer direito que seja, eles devem ter o direito básico de não ser tratados como COISaS.

Direitos animais

O princípio da igual consideração requer que tratemos interesses semelhantes de um modo semelhante, a menos que haja uma razão moralmente sólida para não fazermos isso. Há uma razão moralmente sólida que justifique darmos a todos os humanos o direito básico de não ser propriedade alheia, enquanto negamos esse mesmo direito a todos os animais e os tratamos como meros recursos?

A resposta usual é alegar que alguma diferença empírica entre os humanos e os animais justifica esse tratamento dessemelhante. Por exemplo, afirmamos que os animais não podem pensar de modo ra­cional ou abstrato, e que portanto é aceitável tratá-los como nossa propriedade. Em primeiro lugar, é tão difícil negar que muitos ani­mais são capazes de pensar de modo racional ou abstrato quanto negar que os cachorros têm rabos. Mas, mesmo se fosse verdade que os animais não são racionais ou não podem pensar de modo abstrato, que diferença isso poderia fazer em termos morais? Muitos humanos, tais como os bebês ou as pessoas com deficiência mental grave, não podem pensar racionalmente ou em termos abstratos, e jamais pensa­ríamos em usar esses humanos como sujeitos em experimentos bio­médicos dolorosos, ou como fontes de comida ou roupa. Apesar do que dizemos, tratamos os interesses semelhantes dos animais de um modo dessemelhante, e assim privamos os interesses dos animais de importância moral.

Não há nenhuma característica que sirva para distinguir os huma­nos dos outros animais. Qualquer au·ibuto que possamos pensar que torna os humanos "especiais", e assim diferentes dos outros animais, é compartilhado por algum grupo de não humanos. Qualquer "de­feito" que possamos pensar que torna os animais inferiores a nós é compartilhado por algum grupo dentre nós. No fim, a única dife­rença · entre eles e nós é a espécie, e a espécie, apenas, não é um critério moralmente relevante para excluir os animais da comunidade moral, assim como a raça não é uma justificação para a escravidão humana, ou o sexo uma justificação para fazer das mulheres a pro­priedade de seus maridos. Usar a espécie para justificar a condição

GAR Y L. FRA NCIONE

de propriedade dos animais é especismo19, assim como usar a raça ou

o sexo para justificar a condição de propriedade de humanos é ra­cismo ou sexismo. Se nós queremos que os interesses dos animais tenham importância moral, então temos de tratar casos semelhantes semelhantemente, e não podemos u·atar os animais de uma maneira que não gostaríamos de u·atar nenhum hwnano.

Se nós aplicamos o princípio da igual consideração aos animais, então devemos lhes estender aquele direito básico que estendemos a todos os seres humanos: o direito de não serem tratados como coisas. Mas, as~im como nosso reconhecimF!nto de que nenhum humano deveria ser propriedade alheia requeria que abolíssemos a escravidão, e não meramente a regulássemos para torná-la mais "humanitária" ou "compassiva", nosso reconhecimento de que os animais têm aquele direito básico significa que não podemos mais justificar nossa explo­ração institucional dos animais para comida, vestuário, divertimento e experimentos. Se estamos sendo sinceros quando dizemos que con­sideramos os animais seres com interesses moralmente significativos, então realmente não temos escolha: estamos semelhantemente com­prometidos com a abolição da exploração animal, e não meramente com a regulação dessa exploração.

A posição que estou propondo neste livro é radical, no sentido de que ela nos forçaria a parar de usar os animais de muitas ma­neiras que hoje achamos absolutamente normais. Num outro sentido, entretanto, meu argumento é bem conservador, pois parte de um princípio moral que já dizemos aceitar - que é errado impor sofri­mento desnecessário aos animais. Se o interesse dos animais em não sofrer é, de verdade, um interesse moralmente significativo, e se os animais não são meras coisas moralmente indistinguíveis de objetos inanimados, então devemos interpretar a proibição do sofrimento ani­mal desnecessário de um modo semelhante àquele como interpre­tamos a proibição do sofrimento humano desnecessário. Em ambos os casos, o sofrimento não pode ser justificado por facilitar o diverti­mento, a conveniência ou o prazer alheios. Os humanos e os animais devem ser protegidos, em qualquer circunstância, contra o sofrimen­to resultante de seu uso como propriedade ou recurso alheio.

E quanto à casa em chamas?

Mesmo que preferíssemos a vida do humano à vida do animal em situações de verdadeira emergência ou conflito, isso nos diz pouco

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34 I IN TROD UÇÃ O AOS DIREITOS ANIMAIS

sobre a maioria das situações no mundo real, nas quais devemos avaliar nossas obrigações morais para com os animais. Na grande maioria dessas instâncias, não há um verdadeiro conflito ou emergên­cia. Fabricamos esses conflitos e emergências ao incorrer em petição de princípio e tratar os animais como nossa propriedade.

Se levarmos os interesses dos animais a sério, isso não significa que não possamos preferir os humanos aos animais em situações de verdadeira emergência ou conflito. O que isso significa é que não podemos mais criar esses conflitos ignorando o princípio da igual consideração e interpretando o termo "sofrimento desnecessário" de dois modos diferentes, um para os animais e outro para os humanos. É claro que pode haver situações em que nos deparamos com uma emergência verdadeira, como a casa em chamas com o cachorro e a criança, em que só temos tempo de salvar um deles. Mesmo se sem­pre escolhermos salvar o humano em vez do cachorro nessas situa­ções, isso não significa que os animais não passem de recursos que podemos usar para os nossos propósitos. Não chegaríamos a essa conclusão se escolhêssemos entre dois humanos. Imagine que dois humanos estejam na casa em chamas. Um é um bebê; o outro é um adulto bem velho que, mesmo sem aquele incêndio, logo morrerá de causas naturais, de qualquer maneira. Você decide salvar a pessoa jovem pela simples razão de que ela ainda não viveu sua vida. Então você concluiria que é moralmente aceitável escravizar pessoas bem velhas? Ou usá-las como doadoras forçadas de órgãos, ou como su­jeitos involuntários de experimentos biomédicos? Certamente que não.

Semelhantemente, suponha que um animal selvagem esteja prestes a atacar meu amigo Fred. Minha escolha de matar o animal a fim de salvar a vida de Fred não significa que seja moralmente aceitável ma­tar animais para comida, assim como minha justificação moral para matar um humano louco que ameaçou matar Fred não servma pa­ra justificar meu ato de usar humanos loucos como sujeitos involun­tários de experimentos biomédicos.

Em resumo, podemos decidir escolher o humano em vez do ani­mal em casos de verdadeira emergência - quando for necessário -, mas isso não significa que tenhamos justificação para tratar os animais como recursos para o uso humano. E se o tratamento dos animais co­mo recursos não pode ser justificado, então a exploração institucio­nalizada dos animais deve ser abolida.

GARY L. FRANCIONE

CONFUSÃO ACERCA DA ÉTICA ANIMAL

Há uma grande confusão no discurso público sobre o stntus mor~!

dos animais. Essa confusão provém de duas fontes . Primeiro, algumas pessoas pensam que a posição dos direitos animais defende que se atribuam a eles os mesmos direitos desfrutados pelos seres humanos. Essa é uma forma errada de entender a posição dos direitos animais . Não estou argumentando que nosso reconhecimento do statns moral dos animais signifique que tenhamos o compromisso de tratar os animais e os humanos igualmente para todos os propósitos, ou que devamos dar aos animais o direito ao voto, ou o direito a ter pro­priedade, ou o direito à educação. Minha posição é simples: somos obrigados a estender aos animais apenas um direito - o direito de não serem tratados como propriedade dos humanos.

Segundo, as organizações protetoras dos animais, particularmente nos Estados Unidos, usam a expressão "direitos animais" indiscrimi­nadamente, para descrever qualquer posição tida como capaz ele re­duzir o sofrimento animal, incluindo as medidas puramente regula­tórias ou do bem-estar animal. Por exemplo, uma proposta par;l aumentar o tamanho das gaiolas de galinhas poedeiras toma por certa a legitimidade do tratamento dos animais como propriedade; seu objetivo é regular a nossa posse de animais. A proposta de abolir completamente a indústria de ovos por ela ser uma violação do di­reito básico dos animais ele não serem usados como nossos recursos é uma posição dos direitos animais. Mas as organizações protetoras dos animais classificam ambas as posições como formas de promover o avanço dos direitos animais. Alguns defensores dos animais apoiam essas medidas regulatórias, pensando que elas são um meio para eventualmente alcançar a abolição de usos específicos ele animais. Não há, entretanto, nenhuma evidência empírica de que a regulação da exploração animal conduza à abolição da sua . exploração20

ABORDAGENS ANTERIORES

Nos últimos 25 anos, muito se escreveu sobre o status mon1 l dos animais não humanos, e a natureza e a extensão das obrigações dos humanos para com os animais21• Duas abordagens, entretanto, se destacaram: a posição defendida pelo fi lósofo australiano PNer Singer em Libe1'1:ação Anima{22 e a elo filósofo <lmericano Tom Reg~n ern Tbe

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Page 18: Introdução aos Direitos Animais - (Prefácio e Introdução) - Gary L. Francione

36 INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

C11se fm· Ani71lal Rigbt.rl--1• O argmnento que apresento neste livro é significativamente diferente dessas duas abordagens anteriores.

Em Libertação Animal, Singer rejeita o especismo e professa endos­sar a posição de que devemos aplicar o princípio da igual conside­r<tção aos interesses de todos os animais sencientes. Mas Singer não acredita que a importância moral dos interesses dos animais requeira a abolição da condição de propriedade dos animais ou das instituições de exploração animal que supõem que os animais sejam nossos recur­sos. Ele afirma que podemos continuar a usar os animais não huma­nos para os propósitos humanos, mas que devemos dar mais consi­deração aos interesses dos não humanos do que se dá no presente. Discutirei as opiniões de Singer em maior detalhe no Capítulo 6. Por enquanto, é importante entender que a posição defendida neste livro é a de que aplicar o princípio da igual consideração aos animais (o que é imperativo se for para os interesses dos animais terem impor­tância moral) Hqzter a abolição da condição de propriedade dos ani­mais. Um preceito fundamental do princípio da igual consideração é "cada um contará como um e nenhum como mais de um". Reconhe­cemos que a escravidão humana não é moralmente permissível preci­S<tmente porque ela priva os humanos do benefício do princípio da igual consideração - os interesses dos proprietários de escravos nun­ca serão julgados semelhantes aos interesses dos escravos. Os escravos sempre contarão como menos de um. O mesmo é verdadeiro para os animais: enquanto os animais forem propriedade, seus interesses sem­pre contarão como menos de um porque os interesses da propriedade mmca serão julgados semelhantes aos interesses dos proprietários.

Em Tbe Case jiJ1~ Animal Rights, Tom Regan argumenta que os animais têm direitos morais e que, independentemente das consequên­cias, devemos abolir, e não meramente regular, a exploração animal. A _ teoria de Regan não se estende a todas as criaturas sencientes, mas apenas às que ele considera "sujeitos-de-uma-vida", que

[ ... ] têm crença.s e desejos; percepção, memória e um sentido de futuro,

incluindo seu próprio futuro; uma vida emocional juntamente com sensações

de prazer e dor; interesses de preferência e bem-estar; a capacidade de ini­

ciar uma ação para tentar realizar seus desejos e objetivos; uma identidade

psicofísica ao longo do tempo; e um bem-estar individual no sentido de que

sw1 vida experiencial vai bem ou mal para eles, logicamente independente­

mente de sua utilidade para os outros e logicamente independentemente de

serem objetos dos interesses de mais alguém24•

GARY L. FRANCIONE

Regan argumenta que todos os mamíferos normais, de um ano ou mais de idade, se qualificam como "sujeitos-de-uma-vida"25

.

Embora eu aceite a conclusão de Regan de que os animais pos­suem direitos e que nosso reconhecimento de seu status de titulares de direitos requer a abolição, e não a mera regulação, da nossa explo­ração institucional dos animais, a argumentação que apresento difere da de Regan em ao menos quatro aspectos. Primeiro, não vejo razão para limitar a classe dos animais protegidos àqueles que Regan des­creve como "sujeitos-de-mna-vida". Alguns animais e alguns humanos podem não ter a "capacidade de iniciar uma ação para tentar reali­zar seus desejos e objetivos", e podem ter um "sentido de futuro" ou "uma identidade psicofísica ao longo do tempo" dos mais ele­mentares, mas, se forem sencientes, eles têm interesse em não sofrer ou não experienciar dor, e portanto podem ser considerados possui­dores de uma "vida experiencial [que] vai bem ou mal para eles, logicamente independentemente de sua utilidade para os outros e logicamente independentemente de serem objetos dos interesses de mais alguém". Embora seja mais fácil identificar a constelação de qualidades que Regan descreve em mamíferos normalmente desenvol­vidos de uma determinada idade, não há dúvida de que as galinhas e outras aves sejam seres sencientes inteligentes com uma vida ex­periencial. E embora a maioria de nós nem sequer pense nos peixes como seres conscientes da dor, os pesquisadores concluíram que eles "têm experiências subjetivas e portanto são sujeitos a sofrer"26

Segundo, Regan argumenta que todos os "sujeitos-de-uma-vida" são iguais, pois todos têm o mesmo nível de valor moral, a despei­to de qualquer outra característica que possam ter. Então, por exem­plo, se mn humano e um cachorro se qualificam como "sujeitos-de­uma-vida", não é moralmente permissível usar qualquer um deles exclusivamente como meio para um fim. No entanto, Regan também parece assumir como fato a noção de que os animais são cognitiva­mente inferiores aos hmnanos e que a morte é, portanto, um dano maior aos humanos do que aos animais. Isso leva Regan a concluir que, numa situação envolvendo uma verdadeira emergência, somos não apenas obrigados a salvar o hmnano em vez do animal, como também somos obrigados a escolher salvar um hmnano em vez de um milhão de cachorros27

• Eu, além de ter a opinião de que a seu­ciência somente, e não as outras qualidades de um "sujeito-de-unla­vida", já basta para a importância moral, não compartilho da posição de Regan de que é uma espécie de fato empírico que a morte seja

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38 I INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

um dano maior aos humanos do que aos animais, ou que somos obrigados a salvar um humano em vez de um milhão de cachorros. Em situações de verdadeira emergência, pode ser justificável salvar­mos o humano em vez do animal, mas também pode ser justificável salvarmos o animal em vez do humano28

Terceiro, minha argumentação, diferentemente da de Regan, foca o status legal dos animais como propriedade. Eu argumento que, en­quanto os animais forem considerados propriedade, eles serão tratados como coisas sem status moral e sem interesses moralmente significa­tivos. Argumento que os animais têm apenas um direito - o direi­to a não ser tratados como propriedade ou recursos.

Quarto, e mais importante, eu argumento que o direito básico de não ser tratado como propriedade pode ser derivado diretamente do princípio da igual consideração e não requer a complicada teoria de direitos sobre a qual Regan se apoia. De fato, é minha opinião que requerer a abolição da exploração animal deve ser parte de qualquer

teoria que professe atribuir importância moral aos animais. Se real­mente acreditarmos que os animais não são meras coisas e que eles têm interesses moralmente significativos, então, endossando a teoria dos direitos de outras maneiras ou não, estamos comprometidos com a posição de que não podemos mais tratar os animais como nossos recursos. Isso não significa que não possamos favorecer humanos em situações de verdadeira emergência ou conflito, mas não podemos fabricar essas situações de conflito através de uma estrutura moral que supõe que os animais não passem de recursos para os humanos.

Em suma, eu argumento que Regan e Singer têm de chegar à mesma conclusão - que o status moral dos animais necessariamente impede seu uso como propriedade dos humanos - e que essa con­clusão se apoia apenas na nossa aplicação do princípio da igual con­sideração aos interesses dos animais em evitar a dor e o sofrimento.

UMA PALAVRA SOBRE "PROVAR" QUESTÕES MORAIS

O tratamento dos animais pelos humanos é, acima de tudo, uma questão moral; concerne a como os humanos têm de se comportar com os animais. A questão relevante é se há algum limite moral ao nosso modo de usar ou tratar os outros animais e, se sim, quais são esses limites e como devemos averiguá-los.

GARY L. FRANCIONE

De um modo geral, não podemos provar questões morais do mes­mo modo que podemos provar que dois mais dois são quatro. A proposição "dois mais dois são quatro" é evidente por si mesma -é verdadeira em virtude do próprio significado dos termos usados. Qualquer um que entender o significado da palavra "dois" e o con­ceito da adição deverá concluir que "dois mais dois são quatro" é verdadeiro e que "dois mais dois são cinco" é falso.

A maioria das questões morais não se presta à certeza que pode­mos ter sobre a matemática. Não podemos ter uma certeza matemá­tica sobre as nossas visões morais - sejam elas quais forem - con­cernentes à pena de morte, à ação afirmativa, ao aborto, ou aos direitos animais. Podemos ter argumentos convincentes que apoiem nossas visões morais, mas não podemos dizer que essas visões sejam incontestavelmente verdadeiras e certas do mesmo modo que "dois mais dois são quatro" é incontestavelmente verdadeiro e certo.

O fato de as questões da moralidade serem diferentes das questões da matemática leva algumas pessoas a acreditar que as visões morais não diferem das nossas opiniões sobre de que flores, ou quadros, ou time de beisebol, ou grupo de música gostamos, e que nenhuma visão moral pode alegar que é preferível a outra. Essas crenças siio expressas pelas pessoas que afirmam que a linguagem ou as atitudes racistas ou sexistas são questões que só têm a ver com o "politica­mente correto". Isto é, elas afirmam que determinar se o racismo e o sexismo são moralmente errados ou certos depende de concepções políticas e sociais mutáveis; que o racismo e o sexismo são, no final das contas, questões subjetivas de convenção; e que não existe uma "verdade" moral objetiva e absoluta sobre o racismo e o sexismo.

Essa visão não resulta do fato de não podermos obter uma cer­teza na moralidade do mesmo modo que podemos fazê-lo na m;lte­mática. Os julgamentos morais podem não ser certos à maneira elas expressões matemáticas, mas os julgamentos morais não requerem esse tipo de certeza a fim de ser persuasivos e convincentes. Se uma visão moral estiver sustentada em razões melhores do que outras, então é ela que presumivelmente devemos adotar - até aparecer alguma outra posição moral sustentada em razões ainda melhores. Se um argumento a favor de uma posição moral for válido - ou seja, a conclusão do argumento resulta das premissas de uma maneira que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também deve ser verdadeira -, então esse argumento deve ser aceito, em vez de um argumento em que não exista essa relação entre as premissas e a

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40 I INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

conclusão. Se uma posição moral "combinar" mais com posições mo­nlis que já temos, então devemos aceitá-la, em vez de urna que não combine tanto. Por exemplo, podemos não ser capazes de provar as proposições morais do mesmo modo que podemos provar que dois mais dois são quatro, mas podemos oferecer muitas razões convin­centes para que o Holocausto deva ser condenado como um acon­tecimento flagrantemente imoral, e não podemos oferecer nenhuma razão para considerar esse acontecimento moralmente justificável. A condenação moral do Holocausto também combina com nosso julga­mento de que matar humanos inocentes de maneira intencional é moralmente errado. Mas poderíamos "provar" que o Holocausto era imoral para, digamos, um nazista, ou algum outro tipo de branco n1cista que acreditasse que os judeus (ou qualquer outro grupo) eram inferiores e podiam ser tratados exclusivamente como um meio para os fins de seja lá que grupo que servisse como a classe dos "senho­res"? Não, não poderíamos. Isso não significa, entretanto, que a imoralidade do Holocausto seja uma questão de opinião.

Neste livro, vou argumentar que a posição dos direitos animais, que afirma que devemos abolir, e não meramente regular, o uso de animais, é sustentada em razões sólidas e argumentos válidos. E, em­bora eu não professe ser capaz de provar que a posição dos direitos animais é verdadeira do mesmo modo que uma proposição matemá­tica é verdadeira, argumentarei que a posição que defendo combina bem com as duas intuições que refletem nossa sabedoria convencio­nal sobre o status moral dos animais: que podemos preferir humanos a animais em situações de verdadeira emergência ou necessidade e que não devemos infligir sofrimento desnecessário aos animais. Ou seja, a posição dos direitos animais pode explicar essas duas intuições e unificá-las, conseguindo assim um "equilíbrio reflexivo" entre urna teoria sobre o status moral dos animais e nosso senso comum, ou sabedoria convencional, sobre o status moral dos animais29

• Isso é o melhor que podemos esperar conseguir, quando estamos falando so­bre questões morais e não matemática.

AS MENTES DOS ANIMAIS

Uma questão que eu não vou explorar em detalhes neste livro é se os animais têm mentes ou são capazes de atividade cognitiva. Há muitos anos que os filósofos vêm debatendo se os animais têm men-

GARY L. FRANCIONE

tes e, caso tenham, se podemos saber algo sobre o que se passa nelas. Embora esse debate teórico possa ser do interesse de algumas pessoas, não vamos nos deter nele em nenhum grau considerável, exceto quando chegarmos a examinar a posição, assumida por algu­mas pessoas no século XVII e mantida por alguns teimosos ainda hoje, de que os animais absolutamente não têm mentes nem interes­ses. Devemos considerar essa posição porque, se ela for verdadeira, então os animais não · são diferentes das pedras ou dos motores de carro, e não precisamos nos preocupar, em termos morais, com seu uso e seu tratamento. Também vamos considerar as diferenças entre as mentes dos humanos e dos animais que têm sido oferecidas como justificações para excluir os animais da comunidade moral. Mas, fora essas investigações, vou assumir que todos os animais sencientes, todos os animais que são conscientes da dor, têm mentes e são ca­pazes de atividade cognitiva.

Negar que os animais são conscientes da dor, ou afirmar que não podemos saber se eles sentem dor, é tão absurdo quanto negar que os outros humanos são conscientes da dor ou afirmar que não po­demos saber se os outros humanos sentem dor. As semelhanças neurológicas e fisiológicas entre os animais humanos e os animais não humanos deixam incontroverso o fato da senciência animal. Mes- · mo a ciência predominante aceita que os animais são sencientes. Por exemplo, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos declara que, "a menos que se estabeleça o contrário, os pesquisadores devem considerar que os procedimentos que provocam dor ou angústia em seres humanos podem provocar dor ou angústia em outros animais"30 •

E os cientistas usam animais em experimentos sobre a dor, que evi­dentemente seriam inúteis se os animais não experienciassem dor, e de uma maneira que é substancialmente semelhante à nossa maneira de sentir dor. De fato, em 1992, o Conselho Nacional de Pesquisa publicou um livro intitulado Recognition and Alleviation of Pain and Distress in Labo1'at01y Animais, em que reconhecia que os animais usados em experimentos "serão sujeitados a condições que lhes cau­sam dor e angústia"3 1• Em resumo, praticamente ninguém mais ques­tiona se os animais sentem dor e angústia32

.

Embora o assunto possa deixar alguns filósofos acadêmicos per­plexos, os demais entre nós aceitam que muitos animais, como ca­chorros, gatos, primatas, vacas, porcos, roedores, galinhas, peixes e assim por diante, são sencientes; é precisamente por isso que todos nós aceitamos a norma moral de que é errado impor sofrimento

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42 INTR ODU ÇÃO A OS DIR EITOS ANIMA IS

desnecessário aos animais. Se os animais fossem indiferentes à dor, não teríamos um princípio do tratamento humanitário, em primeiro lugar. Ser senciente sig;nifica ser o tipo de ser que tem experiências subjetivas de dor (e prazer) e interesse em não experienciar essa dor (ou em experienciar prazer). É inquestionável que a maioria dos ani­mais que usamos para comida, experimentos, entretenimento e vestuá­rio tem essas experiências subjetivas. E são essas experiências subje­tivas que distinguem os animais - humanos e não humanos - das rochas e das plantas, e que fazem dos animais não humanos um objeto da nossa preocupação moral, em primeiro lugar.

Mas a observação de que os animais têm mentes não é exatamente uma novidade. Por exemplo, em 1592, o ensaísta francês Michel E. de Montaigne escreveu

[ ... ] que não há nenhuma razão para imaginar que os amma1s fazem através de um instinto natural e reforçado as mesmas coisas que fazemos por opção e competência. De resultados semelhantes devemos inferir faculdades semelhantes (e de resultados mais abundantes, faculdades mais abundantes); e devemos, consequentemente, confessar que a mesma razão, os mesmos mé­todos, que empregamos ao u·abalhar também são empregados pelos animais (se não outros e melhores)ll.

A existência das mentes animais é reconhecida explicitamente na teoria evolucionista de Charles Darwin e nos escritos de determina­dos cientistas e fi lósofos da Grécia antiga34.

UM RESUMO DO LIVRO

Nos Capítulos 1 e 2, vamos explorar o que chamo de nossa "esqui­zofrenia moral" acerca dos animais. Todos nós dizemos aceitar o princípio do tratamento humanitário e concordar que infligir sofri­mento desnecessário aos animais é moralmente errado. Apesar disso, a maioria dos usos que fazemos dos animais não pode ser descrita como necessana de nenhum modo coerente ou significativo.

No Capítulo 3, veremos que a razão para a nossa esquizofrenia está relacionada ao status dos animais como propriedade. Enquanto considerarmos os animais como coisas que possuímos e que têm apenas o valor que lhes damos, o sofrimento animal será quase sem-

GAR Y L. FRANC IONE

pre considerado necessário desde que proporcwne algum benefício a nós, seus proprietários.

No Capítulo 4, vamos explorar a cura para a nossa esquizofrenia moral: a aplicação do princípio da igual consideração, que requer que estendamos aos animais o direito básico de não serem tratados como propriedade dos humanos e que consigamos a abolição da exploração animal. No Capítulo 5, vamos considerar se há alguma razão mon1l sólida que justifique não estendermos esse direito básico aos animais.

No Capítulo 6, vamos considerar, em termos históricos, como o princípio do u·atamento humanitário deu errado e por que pensáva­mos que podíamos tratar os animais como seres com status mora l ao mesmo tempo em que continuávamos a usá-los como nossos recursos.

No Capítulo 7, vamos discutir se é possível preservar nossa in­tuição de que podemos preferir os humanos em simações de verda­deira emergência ou conflito, ao mesmo tempo em que aceit<t mos a posição de que todos os não humanos sencientes têm o direito bá­sico de não ser tratados como coisas e de que não podemos us<í-los como recursos.

No Apêndice, vou discutir 20 perguntas comuns sobre os direitos animais e me empenhar em respondê-las.

. NOTAS

1 David Foster, "Animal Rights Activists Getting Message Across: New Pnll

Findings Show Americans More in Tune with 'Radical' Views", Cbicago Trihmu:.

25 jan. 1996, p. C8.

2 John Balzar, "Creatures Great and - Equal?", Los Augeles Tinwr. 25 dez.

1993, p. Al.

3 Alec Gallup, "Gallup Poli: Dog and Cat Owners See Pets As Part of F:1mily'' ,

Stm· 71-i/nme. 28 out. 1996, p. ElO.

4 Jeanne Malmgren, "Poli Proves lt: \Ve're Nuts about Pets", Sttw 7h l>tmr. 2ó

jun. 1994, p. E1.

5 Melinda Wilson, "Canine Blood Bank Is Looking for Doggie Donors", Den·nit

Ne-zvs. 29 nov. 1996, p. Al.

6 American Pet Manufacturers Association, citado em Ranny Green, "Here's So­

me N ew, Bizarre Gifts for Pets and Owners", Sem:tle Times. 15 dez. l 99ó, p. G-+.

7 Julie Kirkbride, "Peers Use Delays to Foil Hedgehog Cruelty Me;lsure", Oai/y

7eleg;mpb. 3 nov. 1995, p. 12.

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Page 22: Introdução aos Direitos Animais - (Prefácio e Introdução) - Gary L. Francione

44 INTRODUÇÃO AOS DIREITOS ANIMAIS

8 Edward Gonnan, "Woman's Goring Fails to Halt Death in the Afternoon",

Tbe Ti11les. Londres, Home News Section, 30 jun. 1995.

9 Malcolm Eames, "Four Legs Veq Good", Tbe Gzuwdian. 25 ago. 1995, p. 17.

10 Ver Richard Mauer, "Unlikely Allies Rush to Free 3 VVhales", New Yo1·k

Times. 18 out. 1988, p. AIS; Sheny Simpson, "Whales Linger Near Freedom:

Soviet Icebreaker Makes Final Pass", Washington Post. 28 out. 1988, p. Al.

11 U.S. Department of Agriculture, National Agricultura! Statistics Service,

/(~riwltuml Statistics 1999. Washington, D.C., U.S. Government Printing Office,

1999.

12 Esse número vem do website da Organização das Nações Unidas para Ali­

mentação e Agricultura.

H ]ames A. Swan, In Defeme of Hunting. Nova York, Harper Collins, 1995,

pp. 7-8.

14 Ver Adrian Benke, Tbe Bowbunting Altemative. San Antonio, Tex., B. Todd

Press, 1989, pp. 7-10, 85-90.

15 Minha definição de senciência como a consciência da dor distinguiria os seres

sencientes dos seres que não têm nada além de reações nervosas nociceptivas,

nos quais um dano ao tecido pode causar ações reflexivas, mas onde não há

nenhuma percepção de que é o se/f que está sentindo dor.

16 Ver em geral Gary L. Francione, Animais, P1·ope1ty, and the Law. Filadélfia,

Temple University Press, 1995.

17 Bernard E . Rollin, "The Legal anel Moral Bases of Animal Rights", in Har­

lan B. Miller e William H. Williams (eds.), Etbics and Animais. Clifton, N.J.,

Humana Press, 1983, p. 106. Para uma discussão geral sobre o conceito de

direitos e a teoria dos direitos no contexto das leis concernentes aos animais,

ver Francione, Animais, Propetty, tmd tbe Law, nota 16 acima, pp. 91-114. Uma

das razões por que o conceito de direitos é complicado é que nem todos os

direitos têm o 1Jlesmo tipo de muro protetor erguido ao seu redor. Em relação

a alguns direitos, protegemos interesses individuais contra serem avaliados caso

a caso, mas permitimos que considerações sobre o bem-estar geral resultem na

perda de proteções a direitos. Suponha, por exemplo, que a legislatura determine

que as taxas elevadas de impostos estejam inibindo o investimento e que uma

redução nas taxas vá servir ao bem-estar geral. Poderíamos dizer que, como

resultado da ação legislativa, os contribuintes de impostos têm direito ao bene­

fício representado pela redução nas taxas. Durante o período em que as taxas

redttziclas estiverem em efeito, o direito está protegido contra ser ignorado ou

ab-rogado; o coletor de impostos tem a obrigação ou o dever de respeitar a

decisão legislativa e taxar nos níveis determinados pela legislatura. (Normalmente

associamos os direitos com reivindicações e deveres correlatos, mas há outros

componentes normativos dos direitos. Ver idem, op. cit., pp. 42-3, 95-104.) O

GARY L. FRANCIONE

coletor de impostos não tem permissão para taxar contribuintes i11dividuais nwn

nível mais elevado por pensar que isso trará consequências melhores, em geral,

a todos. Mas assim como a legislatura reduziu o nível das taxas a fim de servir

ao bem-estar geral, ela pode, no futuro, decidir eliminar esse benefício fiscal para

todos, baseada em uma avaliação diferente do que constitui o bem-estar geral.

Ela pode determinar que são necessárias mais receitas fiscais para subsidiar outros

programas e portanto pode decidir eliminar o muro protetor - o direito - que

protegia o interesse dos contribuintes em pagar taxas de impostos mais baixas.

Poderíamos pensar num direito a uma redução na taxa, ou um direito a diri­

gir a 100 quilômetros por hora em vez de 85 quilômetros por hora, ou tipos

semelhantes de direitos, como direitos "baseados em determinadas políticas".

Ver idem, op. cit., pp. 109-10. Os direitos baseados em determinadas políticas

continuam sendo direitos, pois geralmente não permitimos que eles sejam ab­

rogados com base em uma avaliação das consequências em casos particulares.

Mas permitimos que os direitos baseados em determinadas políticas sejam ab­

rogados se determinarmos que as consequências de modo geral (e não caso

a caso) militam a favor da ab-rogação. Entretanto, não consideramos que os

direitos baseados em determinadas políticas, como o direito a wna redução na

taxa de imposto, protejam interesses essenciais para nós enquanto seres humanos.

Todos nós gostaríamos ele pagar taxas mais baixas, mas o mundo não vai acabar se tivermos de pagar taxas mais elevadas.

Em conu·aste com esses direitos baseados em deter·minadas políticas estão os

direitos que poderíamos chamar de "baseados no respeito", que acreditamos se­

rem fundamentais para o nosso sistema político (ver idem, op. cit.). Os direitos

baseados no respeito protegem os interesses que acreditamos que devam ser

protegidos independentemente das consequências gerais. Nos Estados Unidos e

na maioria das democmcias liberais, o direito à liberdade de expressão é visto

como protetor de um interesse que deve ser protegido mesmo se as consequên­

cias gerais de fazer isso forem indesejáveis ou problemáticas.

T.1nto os direitos baseados em determinadas políticas quanto os direitos basea­

dos no respeito protegem quaisquer interesses envolvidos contra a ab-rogação

baseada simplesmente nas consequências. Algumas pessoas argumentariam que os

direitos baseados em determinadas políticas não são realmente direitos porque o

interesse protegido pelo chamado direito pode, no fina l das contas, ficar com­

prometido devido às considerações das consequências. Ver nota 6 do Capítulo 6

abaixo. Os direitos baseados no respeito protegem contra a ab-rogação baseada

nas avaliações caso a caso das consequências e também nas avaliações gerais das

consequências pua a sociedade em geral. Os direitos baseados no respeito são o

que define um sistema político e identifica quais as crenças morais importantes naquela cultura.

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46 INTRODUÇ ÃO AOS DIREITOS ANI MA IS

Diferentes sistemas políticos identificam diferentes direitos como direitos basea­

dos no respeito. Por exemplo, embora os direitos à liberdade de expressão e a

ter propriedade possam ser considerados essenciais em uma democracia libera l,

os direitos à educação e à assistência à saúde também podem ser considerados

essenctaJs, e, em alguns sistemas políticos, podem ser considerados mais impor­

tat1tes do que a liberdade de expressão e a propriedade.

18 O direito básico de não ser u·atado como uma coisa sem interesses passíveis

de proteção é um direito baseado no respeito. Ver nota 17 acima. No entanto,

esse direito básico é um tipo especial de direito baseado no respeito, pois é

necessário para se ter qualquer direito ou importância moral, independentemente

do sistema político e dos outros direitos baseados no respeito que forem pro­

tegidos. O direito básico de não ser tratado como uma coisa reconhece que o

titular do direito é uma pessoa. Ver Capítulo 4 abaixo.

19 O termo "especismo" foi originalmente cunhado por Richard Ryder. Ver

Richard D. Ryder, Victims of Science: The Use of Animais in Research. Londres,

D avis-Poynter, 197 5.

20 Ver em geral Gary L. Francione, Rain Without Tlmnde-r: The Ideology of the

Animal Rights Movement. Filadélfia, Temple University Press, 1996.

21 Ver, por exemplo, Teci Benton, Natuml Relations: Ecology, Animal Rights and

Social Jttstice. Londres, Verso, 1993; Marc Bekoff e Can·on A. Meaney (eds.),

Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welf'm·e. Westport, Conn., Greenwood

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L. Francione, Rain Witbout Thunde1', nota 20 acima; G. L. Francione, Animais,

PToperty, and the Law, nota 16 acima; R. G. Frey, Rigbts, Killing, and Sziffering:

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Clarenclon Press, 1990; Richarcl D. Ryder, Animal Revolution: Cbanging Attitudn

T01Vm·ds Speciesimt. Oxford, Basil Blackwell, 1989; R. D . Ryder, Victims of Stience,

nota 19 acima; S. F. Sapontzis, Momls, Rerrson, mui Animais. Filadélfi:l, Temple

University Press, 1987; James Serpell, In tbe Comprmy of Animais: A Stw~y o(

Human-Animal Relrrtionsbips. Oxford, Basil Blachvell, 1986; Richarcl Sorabji, Aui­

mal i\1.incls and Human Jvlomls: Tbe 01·igins of tbe vVestenz Debrrte. Ithaca, Cornell

University Press, 1993.

22 Peter Singer, Animal Libemtion, 2• ed. Nova York, N ew York Review of

Books, 1990.

23 Tom Regan, Tbe Case j01· Animal Rigbts. Berkeley e Los Angeles, University

o f California Press, 1983.

24 Idem, op. cit., p. 243.

25 Idem, op. cir., p. 78.

26 F. ]. Verheijen e W F. G . Fliglu, "Decapitation ,md Brining: Experimental

Tests Show That After These Commercial Methods for Slaughtering Eel rlugui/la

rrnguilla (L.), Deatl1 Is Not Instantaneous", 28 Aqurrmltm·e Rmarcb 36 1-2, 1997.

Ver também Michael vV Fox, Inlmmrme Society: Tbe Ame-rican H7ay o( E1.ploitiug

Animrrls. Nova York, St. Martin's Press, 1990, pp. 119-20. O apoio dentro d :1

comwlidade cienúfica à senciência dos peixes foi reforçado por um rebtório de

1979 do zoólogo britânico Lord Medway. Ver Ryder, Animnl Revolution, nota 21

acima, pp. 197, 222 .

27 Regan, Tbe Crrse jo1· Aniuwl Rigbts, nota 23 acima, pp. 324-5.

28 Ver nota 61 do Capítulo 5 e texto que a acomp,mha aba ixo.

29 A noção do equilíbrio reflexivo como uma alternativa ao fundacion:l lismo

(ou a ideia de que os princípios morais podem ter a certeza dos princípios

matemáticos) na teoria moral foi discutida pela primeira vez por John Rnv ls em

A Tbe01y of Justice. Cambridge, M ass., Belknap Press, 1971.

30 U .S. D eparu:nent of H ealth anel Human Services, National Jnstinttes o f

Health , "Public H ealth Setvice Policy anel Government Principies Regarding

the Care anel Use o f Animais", Instimte o f Laboratory Animal Resourccs, ( :uirlc

47

Page 24: Introdução aos Direitos Animais - (Prefácio e Introdução) - Gary L. Francione

4 8 I INTRODUÇÃO AOS DIREITOS AN IMAIS

fór tbe CnTe nnd Uçe of Lnbomt01'J Animalr. Washington, D.C. , National Academy

Press, 1996, p. 11 7. 31 Committee on Pain and Distress in Laboratory Animais, lnstitute of La­

boratory Animal Resources, Commission on Life Sciences, N ational Research

Council, Rewgnition rmd A lleviation of Pain and Distnss in Labo,-at01J Animais.

\Vashington, D.C., National Academy Press, 1992 , p. ix. 32 Algumas pessoas ainda afirmam que os animais não são conscientes da dor.

Para uma discussão sobre aqueles que negam que os animais usados em expe­

rimentos sofrem, ver Bernard E. Rollin, Tbe Unbeeded C1y : A nimal Consciousness,

Animal Pnin mui Science. Oxford, Oxford University Press, 1990. Ver também

Capítulo 2 e Capítulo 5 abaixo. 33 Michel E. de Montaigne, "Apology for Raymond Sebond" [c. 1592], reim­

presso em Paul A. B. Clarke e Andrew Linzey (eds.), Political Tbe01y and Animal

Rigbts. Londres, Pluto Press, 1990, p. 64. 34 Ver em geral Sorabji , Animal 1\t!iuds and Human Mom ls, nota 21 acima. Ver

também Capítulo 5 abaixo.

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O DIAGNÓSTICO: NOSSA ESQUIZOFRENIA MORAL ACERCA DOS ANIMAIS

Nossas atitudes morais acerca dos animais são, para dizer o mimmo, esquizofrênicas. Por um lado, todos concordamos que é moralmente errado impor sofrimento desnecessário aos animais. Por outro lado, a maioria do sofrimento que impomos aos animais não pode ser considerada análoga à nossa escolha de salvar o ser humano na casa em chamas, nem, de fato , necessária em qualquer sentido dessa pa­lavra.

Neste capítulo, vamos explorar a disparidade entre o que dizemos sobre os animais e como realmente os tratamos. Primeiro, vamos examinar o status moral dos animais antes do século XIX. Em segui­da, vamos ver como esse status supostamente mudou com a aceitação moral e legal do princípio do tratamento humanitário, isto é, a no­ção de que temos a obrigação moral de não impor sofrimento "des­necessário" aos animais. Depois, vamos ver que há muita disparidade entre aquilo em que dizemos acreditar sobre o status moral dos ani­mais e como realmente os tratamos.

OS ANIMAIS COMO COISAS

Antes do século XIX, a cultura ocidental não reconhecia, de modo geral, que os seres humanos tivessem qualquer obrigação moral para com os animais. Os animais não importavam moralmente e eram considerados seres completamente fora da comunidade moral. Podía­mos ter obrigações morais que concerniam aos animais, mas essas obrigações eram, na realidade, devidas a outros humanos, e não aos animais. Os animais eram considerados coisas, seres com um status

moral que não diferia do status moral de objetos inanimados como as pedras ou os relógios.

No século XVII, já tarde na nossa história, promoveu-se a VIsao de que os animais não são nada além de robôs sem capacidade de pensar ou sentir. Por exemplo, René Descartes (1596-1650), consi-

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