PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC … Ribeiro... · Dirigismo contratual ......
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Dóris Ribeiro Torres Prina
Função social do contrato de trabalho.
Mecanismos para a solução de conflitos
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Dóris Ribeiro Torres Prina
Função social do contrato de trabalho.
Mecanismos para a solução de conflitos
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Direito das Relações Sociais, sob a
orientação do Professor Doutor Pedro Paulo
Teixeira Manus
SÃO PAULO
2011
Banca Examinadora
________________________
________________________
________________________
Autor: Dóris Ribeiro Torres Prina
Título: Função social do contrato de trabalho. Mecanismos para a
solução de conflitos
RESUMO:
Objetivo: A presente dissertação tem por objetivo analisar a evolução
do contrato de trabalho considerando os atuais dispositivos legais focados nos
valores sociais e, nesse contexto, identificar o papel do Judiciário no confronto de
direitos que afloram dos conflitos entre capital e trabalho.
Justificativas: Trata-se de tema relevante e polêmico, não só pelas
conquistas positivadas que justificam divergências na doutrina e jurisprudência,
como pelas profundas repercussões nas relações de trabalho.
Hipóteses: Os princípios constitucionais focados nos valores sociais
alteram as conformações do contrato de trabalho? Como conciliar as diversas fontes
normativas para a composição dos conflitos trabalhistas?
Aspectos teórico-metodológicos: Para a elaboração deste trabalho
foras utilizados o métodos científico, histórico e dedutivo, com a análise de textos
jurídicos para as conclusões obtidas. Quanto às técnicas, foram feitas pesquisas em
textos legais, doutrina e jurisprudência, de acordo com a metodologia científica
usual.
Resultados: O contrato de trabalho absorve o avanço legislativo para
ser concebido também sob a perspectiva de sua função social. A solução de
conflitos exige atuação comedida do Judiciário que dispõe das técnicas de
subsunção e ponderação para assegurar a preservação dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: função social, contrato de trabalho, Judiciário,
ponderação.
Autor: Dóris Ribeiro Torres Prina
Title: Social function of indenture's job. Mechanisms to solve conflicts
ABSTRACT:
Objective. This current dissertation aims to analyze employment
contract evolution considering the present legal regulations focused on social
valuables and, based on it, to identify Judiciary's role in comparison of rights whose
raise from conflicts between capital and job.
Justification. It is a relevant and controversial issue, not only by the
achievements instituted that justify disagreements in doctrine and case law but also
the deep repercution on labor relations.
Assumption: Do the constitutional principles and legal norms focused
on social values change the conformations of the employment contract? How to
conciliate several normative sources to the solve employment conflicts?
Theoretical and methodological aspects. To elaborate this essay
were uses the scientific, historical and deductive methods, based on the analysis of
legal texts to lead to the conclusions reached. Regarding the techniques, researches
were made on legal texts, doctrine and case law, due to the current scientific
methodology.
Results: Employment agreement absorbs the legislative's
advancement to be created under yours social's function perspectives as well. The
conflict's solutions demand a reasonable proceeding from Judiciary, which holds
enforcement techniques and ponderation to ensure the fundamental rights’
preservation.
Keywords: social function, employment contract, Judiciary,
ponderation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................ 9
1. CONTRATOS. CONTEXTO HISTÓRICO ............................... 13
1.1. Antiguidade e idade média ................... ................. 14
1.2. Iluminismo .................................. ............................... 15
1.3. Revoluções burguesas e a codificação ........ ... 16
1.4. O liberalismo individualista ................ ................... 18
1.5. A Ideologia do contrato ..................... .................... 20
1.6. Funções dos contratos ....................... .................. 22
1.7. Sujeitos do contrato ........................ ...................... 23
1.8. Princípios contratuais clássicos ............ ........... 24
2. A NOVA TEORIA DOS CONTRATOS .................... ................ 26
2.1. Contratos de adesão ......................... ................... 28
2.2. Dirigismo contratual ........................ ...................... 29
2.3. Pluralidade das fontes normativas ........... ....... 31
2.4. A relação entre o público e privado. Teorias .. 34
2.5. A despatrimonialização do Direito Privado ... .. 39
2.6. Cláusulas gerais ............................ ........................ 40
2.7. Princípios contratuais modernos ............. ........ 44
2.7.1. Autonomia privada ........................ ............ 45
2.7.2. Obrigatoriedade .......................... ................ 48
2.7.3. Relatividade ............................. .................... 49
2.7.4. Boa-fé objetiva .......................... .................. 50
2.8. O contrato e os direitos fundamentais ....... ...... 52
3. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ...................... ................ 54
3.1. A função social no nosso sistema jurídico ... .... 55
3.2. A função social do contrato como cláusula
geral ou princípio .............................. ....................... 59
3.3. A função social do contrato e a boa-fé objeti va . 63
3.4. A função social do contrato e a equidade .... ........ 66
3.5. A função social do contrato e os bons costume s . 70
3.6. A função social da propriedade .............. ............... 72
3.7. A função social da empresa .................. .................. 77
4. O CONTRATO E O DIREITO DO TRABALHO ............. .... 81
4.1. A evolução do Direito do Trabalho ........... ........... 83
4.2. O contrato de trabalho. Considerações ....... ....... 89
4.3. O contrato de trabalho como relação negocial .. 92
5. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE TRABALHO ....... 98
5.1. A CLT como centro do Direito Laboral ........ ....... 98
5.2. A aplicação do artigo 421 do Código Civil ... ...... 100
5.3. A aplicação dos princípios constitucionais .. ..... 103
5.4. A eficácia dos direitos fundamentais ........ ........... 106
5.5. Princípio da relatividade. Eficácia ultra par tes ... 110
5.6. Princípio da submissão ao interesse coletivo .... 112
5.7. A função social do contrato de trabalho e o
direito coletivo ................................ .......................... 114
5.8. O equilíbrio contratual. Eficácia inter parte s ...... 117
6. MECANISMOS PARA A SOLUÇÃO DE CONFLITOS ......... ... 122
6.1. O judiciário e a concretização da função soci al
do contrato ..................................... ........................... 122
6.2. A questão da interpretação .................. ................. 124
6.3. Fundamentos do protagonismo judicial ........ ... 128
6.4. O neoconstitucionalismo ..................... ................... 131
6.5. O juízo de ponderação ....................... ..................... 137
6.6. O processo argumentativo ................... ................... 141
6.7. Críticas ao processo de ponderação. ......... ......... 147
6.8. Segurança jurídica e atuação judicial criativ a .... 149
6.9. Como caminha a jurisprudência................ .............. 154
CONCLUSÃO ......................................... ......................................... 157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ ................... 161
ANEXOS .......................................................................................... 168
9
INTRODUÇÃO
O tema “função social do contrato de trabalho” encontra em nossos
dias grande repercussão no mundo jurídico, por alicerçado na alteração positivada
pelo artigo 421 do Código Civil de 2002.
A conceituação da função social do contrato é tarefa difícil pela
amplitude de seu alcance e imprecisão da expressão, o que demonstra o potencial
do atual comando civilista, com aptidão para redirecionar todo o Direito Obrigacional.
E a tarefa de construir as bases conceituais do instituto, seu alcance e efeitos vem
sendo enfrentada pelos operadores do direito ante as várias perspectivas que se
abrem e a constatação de que os princípios contratuais tendem a absorver
contornos sociais, principalmente após o impulso da Constituição de 1988, que tem
a missão de construir uma sociedade mais solidária.
O contrato é um dos institutos que se adequaram às peculiaridades de
cada época e tipo de sociedade para atender aos interesses de cada momento
histórico. O modelo clássico do Código Civil de 1916 tratava a autonomia da vontade
como uma fonte criadora de direitos e obrigações, exigindo um Estado que
garantisse o domínio econômico, com ênfase nos princípios da autonomia da
vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e respeitados a
ordem pública e os bons costumes.
O curso da história fez evoluir a teoria contratual acompanhando a
formação do Estado Social e reconhecendo os direitos de terceira geração, cujas
características são a solidariedade e a fraternidade que pressupõem igualdade,
10 liberdade e participação. A evolução no tratamento das relações contratuais foi
captada pelo legislador do Código de 2002, ocorrendo um avanço por não ser mais
possível o convívio com normas que definissem de forma precisa certos
pressupostos e suas consequências, formando uma espécie de sistema fechado.
A técnica legislativa moderna adotou conceitos legais indeterminados e
cláusulas gerais, que conferem ao sistema mobilidade e flexibilizam a rigidez dos
institutos, conduzindo para o respeito à função social como norma de ordem pública.
Com a mudança de perfil, o contrato deixa de ser um negócio jurídico restrito aos
contratantes e passa a ser visto como uma atividade humana que se desenvolve em
razão de sua função de respeitar o bem comum.
Na órbita do Direito do Trabalho a necessidade de restringir a liberdade
de contratar é antiga, mas o legislador optou pela positivação de padrões mínimos a
serem observados pelas partes, o que por certo não esgota o sistema de proteção
ao hipossuficiente, quer pela ocorrência de situações não previstas no ordenamento
pela complexidade que envolve a dinâmica das relações sociais, quer pela evolução
do mundo moderno, em que surgem, dia após dia, novos paradigmas com os
avanços da tecnologia, informática e meios de comunicação, criando novos
impasses e agressões nas relações tuteladas por esse campo do Direito, o qual tem
por missão a preservação da função social.
Nesse contexto surge a difícil tarefa de conciliar as perspectivas do
sistema capitalista com a necessidade de dar efetividade aos princípios da
Constituição Federal em vigor que propaga a ordem econômica fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos existência
digna conforme os ditames da justiça social (artigo 170, caput), exalta a busca do
pleno emprego como princípio da ordem econômica (artigo 170, VIII), prevê a
11 repressão ao abuso do poder econômico (artigo 173, § 4º) e consagra duplamente a
função social da propriedade (artigo 5º, XXIII e 170, III), ao apontá-la como garantia
fundamental e como princípio da ordem econômica.
Isso significa que enquanto no âmbito trabalhista a justiça visa o
respeito à norma que impõe o mínimo, na órbita civil surge a permissão para que o
Judiciário estabeleça o que é equidade a partir de cláusulas gerais e caminhe rumo
à sociabilidade, definindo o regramento mais adequado às partes, o que está a
merecer reflexão quanto às perspectivas do Direito Laboral nesse contexto.
É possível ao Judiciário trabalhista ampliar o foco de atuação com
amparo em outras fontes para a solução dos conflitos, buscando mecanismos que
promovam a justiça social, de que forma e quais os limites ou a autonomia da
vontade deve se manter restrita à legislação obreira?
Tais direcionamentos divergentes clamam atenção no cenário
moderno, haja vista que o descompasso legislativo vem causando o engessamento
do Direito do Trabalho e, nessa linha, necessário identificar o panorama histórico
que acompanhou a evolução do fenômeno contratual, abordando a questão da
função social do contrato e sua aplicabilidade ao contrato de trabalho. Sem esgotar
o tema porque vasto o campo de incidência, interessa a este estudo trazer para o
Direito do Trabalho algumas reflexões sobre os modernos princípios e regramentos
disponíveis em nosso ordenamento jurídico, bem como identificar alguns
mecanismos para a solução dos conflitos considerando as peculiaridades da
complexa relação capital e trabalho, focando o papel do Judiciário na missão de
manter o equilíbrio sócio-econômico no contexto atual.
No primeiro capítulo deste trabalho o objetivo é abordar o contexto
12 histórico dos contratos, focando o processo que o elevou a uma categoria autônoma
do pensamento jurídico, influenciando a forma de regulação estatal do trabalho
humano. Seu percurso sob a influência do liberalismo individualista e os efeitos
produzidos no campo contratual também serão considerados.
No segundo capítulo o trabalho será direcionado para a situação
proposta, com a abordagem da nova teoria dos contratos, sob a égide do Estado
Social e as consequências para o Direito Obrigacional. Serão apresentadas as
novas conformações dos princípios básicos aplicáveis aos contratos.
O terceiro capítulo cuidará da abordagem sobre as características
gerais da função social do contrato e sua relação com institutos afins. Servirá de
base para o estudo específico da função social do contrato de trabalho, apontando
as configurações que a acompanham.
No quarto capítulo a pesquisa seguirá direcionada ao contrato no
contexto do Direito do Trabalho, buscando rever os mecanismos de regulação
estatal das relações de emprego, sua evolução histórica e seu enquadramento como
relação jurídica negocial.
A função social do contrato de trabalho constará do quinto capítulo,
oportunidade em que buscar-se-á analisar as perspectivas de aplicação do Código
Civil e da Constituição Federal, bem como as eficácias inter partes e ultra partes.
No sexto capítulo, como decorrência do percurso feito nos capítulos
antecedentes, o objetivo é apresentar mecanismos para a concreção da função
social do contrato de trabalho, com a aplicação do juízo de ponderação, finalizando
com a análise de jurisprudência pertinente e conclusão.
13
1. CONTRATOS. CONTEXTO HISTÓRICO
O contrato é um dos institutos mais relevantes de que se ocupa o
Direito, que acompanhou a história da humanidade e teve alterada sua conformação
como instituto jurídico pelas influências do tipo de organização econômico-político-
social de cada momento histórico. O contrato tem o poder de harmonizar interesses.
A partir de um acordo de vontades, o contrato aperfeiçoa-se com concessões
recíprocas, sempre de acordo com a prática social e o momento histórico, mudando
a sua disciplina, as suas funções e a sua própria estrutura segundo o contexto
econômico-social em que está inserido.
A evolução histórica do contrato é sentida ao serem comparadas as
etapas econômicas com as características dos pactos vigentes em cada momento,
confrontando-se as funções do contrato em épocas e sistemas econômicos antigos
com as funções que assume com o desenvolvimento das forças. produtivas,
mostrando as grandes diferenças que ora fazem do contrato instrumento essencial
ao funcionamento do sistema econômico.
Observa-se a profunda intensificação do instrumento contratual para
exploração do trabalho humano produtivo, com a passagem do trabalho escravo e
servil para o dito subordinado, como produto da Revolução Industrial do início do
século XIX, constatando-se, no desenvolver da história, a figura do contrato como
meio de regulação do trabalho transformando-se em elemento essencial da
utilização de mão-de-obra, de molde a mobilizar todo o sistema econômico.
Considerando a amplitude do universo evolutivo do instituto contratual,
14 optou-se por enunciar os aspectos históricos focados no processo que o elevou a
uma categoria autônoma do pensamento jurídico, influenciando a forma de
regulação estatal do trabalho humano.
1.1. Antiguidade e idade média
Alguns doutrinadores buscam, na gênese da história da humanidade,
os primeiros indícios da existência de contratos, tentando identificar as
configurações mínimas que hoje são reconhecidas. Entretanto, ante as frágeis
evidências históricas, não reconhecem que, na Antiguidade, hebreus, egípcios e
gregos utilizassem relações contratuais formais, apesar das grandes contribuições
para o progresso da humanidade. Mesmo os romanos, em seu Direito clássico, não
possuíam uma figura geral de contrato para uma pluralidade de operações
econômicas. A vinculação estabelecida em Roma para as stipulatios era produzida
em virtude da forma e não da vontade ou outra força relevante, com exceção dos
chamados contratos consensuais, como a compra e venda1.
Contudo, a força vinculante da forma sobre a vontade, presente no
Direito romano antigo, foi abrandada na idade média por influência do Direito
Canônico, passando-se a valorizar o consensualismo em detrimento da forma. A
obrigação de manter o acordado, entretanto, estava ligada ao divino. Nesses modos
de produção pré-capitalistas, os indivíduos ligavam-se produtivamente à prestação
de trabalho por meio das corporações a que estavam vinculados (Igreja, feudo,
burgo, corporação de ofício), e não pela vontade propriamente dita.
1 SOUZA, Rodrigo Trindade de, Função social do contrato de emprego , p. 18.
15
Não é possível, portanto, falar-se em contrato com as características
de acordo de vontades no período anterior ao da era moderna, a qual foi marcada
pelo fortalecimento da burguesia e das ideologias do iluminismo e do individualismo.
1.2. Iluminismo
O iluminismo, considerado não só filosofia mas também um movimento
cultural, surge na Inglaterra expandindo-se para a França, Alemanha e demais
países europeus, dentro de limites cronológicos fixados por convenção entre a
Revolução Inglesa de 1688 e a Revolução Francesa de 1789. Sob o prisma
filosófico, esse é o período do pensamento que aspira à emancipação do homem e
de toda a humanidade por meio das luzes da razão. A ruptura que então se
estabelece com a tradição metafísica não tem precedentes2.
O pensamento político iluminista tem seu expoente mais radical no
filósofo francês Rousseau que luta por um novo contrato social baseado na
igualdade democrática, assim como uma nova pedagogia que respeite a natureza
livre do ser humano, encontrando-se, na sua obra “O Contrato Social” (1762), a força
que a autonomia da vontade no plano jurídico assumirá nos séculos seguintes3.
Com a teoria do contrato social, há o fortalecimento do Estado
enquanto sociedade politicamente organizada, como resultado da livre vontade
manifestada pelo homem, haja vista que a autoridade daquele está no
consentimento de cada cidadão em renunciar parte de sua liberdade individual.
2 Ibid., p. 19. 3 ROUSSEAU, Jean-Jacques, O Contrato Social In MORRIS, Clarence (org.), Os Grandes Filósofos do Direito , p. 211.
16 Desse modo, as vontades livres unidas dos indivíduos formam a sociedade e, em
decorrência, o contrato passa a ser a base de toda a autoridade estatal. O
Iluminismo conseguiu, assim, a centralização do poder na figura do Estado, que era
absoluto.
Para a burguesia européia nascente do século XVIII, o ideário da
liberdade permitia a consolidação do poder econômico e a conquista efetiva do
poder político. Livre para fazer seu destino, podia cada homem vincular-se
individualmente a cada atividade produtiva, vendendo e comprando o que tivesse,
quisesse e, principalmente, pudesse. Da premissa de liberdade individual, passou-se
à liberdade de contratar, o que outorgava uma dupla vantagem à burguesia: a
possibilidade de livremente adquirir a propriedade mobiliária e, ainda, a de explorar o
trabalho individual pelo preço que lhe fosse vendido4.
Na órbita do trabalho, houve a libertação dos laços pessoais com as
corporações e com os feudos, sendo que a liberdade propugnada era a formal.
Sendo livres, as relações jurídicas somente seriam criadas, modificadas e extintas
mediante a intervenção da vontade pessoal. Mas a crença no progresso, na
liberdade e na razão estimulou o egoísmo, passando o homem a preocupar-se
apenas com o ganho e a acumulação.
1.3. Revoluções burguesas e a codificação
A partir das revoluções burguesas, o ideário iluminista, no plano do
liberalismo individualista, seria finalmente implementado (século XVIII). Para o
4 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 20.
17 incremento das atividades econômicas burguesas apenas o reconhecimento do
direito de comércio não era suficiente. A riqueza financeira devia ser reconhecida
pela sociedade como elemento mais importante que os títulos de nobreza e, para
tanto, fazia-se necessário possuir também o poder político. O homem burguês
passou a fazer parte da história da humanidade, enquanto o homem trabalhador
passou a atuar apenas como fator de produção5.
A Revolução de 1789 instaurou o liberalismo individualista no nível
institucional do Estado, limitando a atuação absolutista que dominou a Idade Média.
O fundamento político aparente da Revolução era o alcance da certeza jurídica, de
poder garantir com firmeza os direitos do homem e, para tanto, era necessária a
instauração da liberdade civil. Como conseqüência da Revolução Francesa, a
vontade individual passou a predominar e cristalizou-se a concepção hoje tradicional
dos contratos.
Para garantir a segurança jurídica, a simples criação de leis esparsas
não era suficiente, surgindo a necessidade da legislação codificada para reduzir a
complexidade do sistema e unificar o Direito. A necessidade da criação do código foi
enfatizada por Savigny, um dos mais influentes jurisfilósofos do início do século XIX,
para que cada nação possuísse seu regramento próprio, livre de influências
particulares e que promovesse a “libertação” das incertezas. A solução encontrada
por Savigny foi a codificação, eliminando todas as demais arcaicas fontes de
normatividade6.
O Códe Napoleón foi o primeiro código da idade moderna, construído
5 Ibid., p. 21. 6 Da vocação do nosso tempo para a legislação e a jurisprudência In MORRIS, Clarence, op. cit., p. 296-297.
18 como exigência da Revolução Francesa animada pelo liberalismo individualista. A
disciplina do código agasalhava as solicitações da nova forma de organização
econômico-social com as da burguesia. 7
A propriedade privada passou a ser o fundamento real da liberdade,
símbolo e garantia enquanto a liberdade passou a ser a própria substância da
propriedade, ou seja, sem propriedade não há liberdade. Em decorrência, a crença
na vontade passou a ser princípio que coloca em movimento a vida social e
econômica. Ao Estado cabia apenas a função de proteção à livre emanação da
vontade.
O ideário racionalista da codificação espraiou-se para todo o mundo
ocidental como a grande solução para as sociedades. Nessa crença, diversos
países europeus, após o Códe, também lançaram e aplicaram seus códigos civis.
Inserida no projeto da modernidade, a codificação passou a ser o correspondente no
campo do Direito à sistematização do campo da ciência. Como conseqüência, o
jusnaturalismo acabou por desembocar numa experiência histórica de agudo
positivismo jurídico. O Código, ainda que portador de valores universais, foi reduzido
à voz do soberano nacional, à lei positiva do Estado em que estava inserido.
1.4. O liberalismo individualista
Considerando que as teorias contratualistas sobre o funcionamento da
comunidade trouxeram a idéia de que é do consenso que nasce a sociedade,
passou o contrato a ter um significado mais geral, vindo a representar o símbolo de
7 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 23.
19 uma determinada ordem social, como eixo principal da sociedade liberal e
assumindo um valor acentuadamente ideológico e político.
O contexto histórico em que ocorreram as revoluções burguesas e as
codificações fundamentaram a doutrina da ampla liberdade dos privados na
condução de seus negócios, considerando a máxima de que os homens formam
suas riquezas adquirindo e vendendo bens, fazendo-o de maneira absoluta e
independente porque são livres. A conhecida síntese de Rousseau é irrepreensível:
“O mais forte nunca é forte o suficiente para ser sempre o senhor se ele não
transformar sua força em Direito e a obediência em dever...” 8.
O Código Napoleônico (1804) era o código dos fortes, promovia o
interesse da burguesia e desconhecia o direito dos débeis. No ideário do laissez
faire, laissez passer contratual estava intrínseca a desigualdade fática dos
contraentes.
A grande inovação consolidada nos códigos pós-revolucionários foi a
inserção plena dos bens – incluindo os bens imóveis e mão-de-obra – no fenômeno
da produção e da troca. Foi nesse sentido que o instituto contratual personificou a
máxima da autonomia privada, sendo que a intensificação da liberdade humana
tornou-se a base de todo o regulamento estatal estabelecido para os contratos, de
forma que o acordo de vontades passou a ser equiparado a lei. Além do objetivo da
livre circulação de mercadorias em sentido estrito, havia o interesse de permitir a
livre contratação de mão-de-obra, desvinculada de laços pessoais dos regimes
anteriores, objetivando ter a força de trabalho como matéria de troca, formalmente
igual e com livre contratação.
8 ROUSSEAU, Jean-Jacques, O Contrato Social In MORRIS, Clarence, op. cit., p. 214.
20
1.5. A ideologia do contrato
O contrato surgiu como um instrumento fundamental nas relações
humanas, ainda que não se apresentasse, desde o início, da forma como
atualmente é conhecido. Encontra seu fundamento nas práticas sociais, haja vista as
diferenças comportamentais entre os indivíduos em cada momento histórico e a
necessidade de segurança de cumprimento do comportamento esperado.
Indispensável, portanto, às relações interpessoais, a partir do momento em que atua
de forma eficiente na harmonização de interesses discrepantes. Tal função se torna
mais visível ao longo do tempo, quando ocorre a intensificação da exploração da
força de trabalho e a preocupação com o interesse individual.
Por contrato entende-se o acordo entre duas ou mais pessoas que
transferem entre si algum direito ou se sujeitam a alguma obrigação9. Beviláqua
define como sendo “o acordo de vontade de duas ou mais pessoas com a finalidade
de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito”10. Para Gomes, contrato é “o
negócio jurídico, bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de
conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam”11.
Desde sua concepção mais formalmente estruturada, o contrato se
apresenta como um instrumento necessário à constituição das sociedades, visto que
por meio dele abdica-se de parte da liberdade individual em nome do coletivo. Em
sua ausência, perpetuar-se-ia o Estado Natural, regido pela insegurança e pelo
9 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa , p. 468. 10 BEVILÁQUA, Clóvis, Código civil anotado , p. 245. 11 GOMES, Orlando, Contratos , p. 10.
21 medo.
O reconhecimento do contrato pelo Direito sinaliza que as operações
econômicas devem ser objeto de regulação jurídica, o que significa que a operação
econômica é imprescindível para o conceito de contrato na órbita jurídica.
Entretanto, a conquista do econômico pelo jurídico não significa ser esse o limite das
confrontações do contrato, devendo ser considerados os objetivos transcendentes
da formação do direito obrigacional o qual, na verdade, tende a determinar e orientar
as operações econômicas segundo seus objetivos políticos.
Tendo em conta que a liberdade de contratar interessa àquele que tem
melhores condições para impor o regulamento do pacto, o elemento ocultado pela
ideologia da liberdade de contratar é o fato de que ela não satisfaz o interesse
social. A ideologia opera em benefício apenas de uma parte da sociedade, a classe
capitalista. A outra realidade dissimulada pela ideologia burguesa, e conseqüência
da primeira, é a da igualdade jurídica dos contratantes que, na verdade, visa
esconder uma desigualdade substancial, típica de sociedades capitalistas nas
relações jurídico-privadas.
A ideologia burguesa, dessa forma, é aplicada ao contrato na forma da
autonomia privada clássica e no dogma da igualdade de partes. O elemento oculto é
que, conquanto o contrato seja consensual, nem sempre seu conteúdo está
embasado na vontade real. Como elemento ideológico, a concepção de contrato
encontrada nessa ideologia é atada ao liberalismo econômico.
Assim, se o contrato assume as características do modelo de
organização dos fatores de produção de cada momento histórico, não pode ser visto
apenas como o instrumento jurídico de circulação de riqueza, embora esta seja sua
22 função explícita. O significado é muito mais amplo, como determinante da ordem
econômica e social do território em que está inserido, com elevada acepção
ideológica e política. Tais confrontações do direito obrigacional é que determinarão
as funções que são reservadas ao fenômeno contratual.
1.6. Funções dos contratos
Como apontado no item anterior, o contrato, além de ter a função
evidente de instrumento técnico-jurídico de circulação de bens, inspirado que é por
uma ideologia, também possui outras funções. Adotaremos a classificação de Fiuza
para as funções primordiais do contrato, assim apostas: econômica, pedagógica e
social. O termo “função” é aqui expresso como os motivos extrínsecos da atividade
contratual12.
Por função econômica entende-se que é por meio dos contratos que os
produtos circulam pelas várias etapas de produção, considerando que a própria
matéria do contrato é a operação econômica. O contrato, nesse aspecto, apresenta-
se como instrumento da circulação de riqueza, não sendo possível conceber a vida
em sociedade organizada sem o intercâmbio de bens e serviços por meio de
contratos. Seu caráter econômico faz revelar sua essencialidade na sociedade
capitalista. Pode ser sintetizada no processo de circulação de riqueza, auxiliando a
distribuição de renda e gerando empregos.
A função pedagógica implica em considerar que o contrato é meio de
12 FIUZA, César. A principiologia contratual e a função social dos contratos In LAGE, Émerson José Alves e LOPES, Mônica Sette (org.), Novo Código Civil e seus desdoramentos no Direito d o Trabalho , p. 97.
23 civilização, de educação do povo para a vida em sociedade, ocorrendo a sistemática
de trocas como modo de atuação civilizatória na aquisição de riqueza pelo exercício
do diálogo e da persuasão. Representa o compromisso recíproco assumido pelas
partes, vinculando-as, com previsão de direitos e deveres na forma de cláusulas que
devem ser por elas respeitadas.
A síntese dessas duas funções, na concepção de Fiuza, representaria
a função social, considerando que os contratos são fenômeno econômico-social. A
função social dos contratos, para o autor, é promover o bem-estar e a dignidade dos
homens, por todas as razões econômicas e pedagógicas, sendo que mais adiante
será aprofundado o tema correspondente à função social do contrato13.
1.7. Sujeitos do contrato
Com o iluminismo, o homem passou a ter a responsabilidade individual
pela busca da riqueza e da felicidade, sendo que a terra deixou de representar
elemento de vinculação, pois a quebra das relações feudais permitiu que os bens
imóveis participassem das regras de mercado, com aptidão para serem adquiridos
pela burguesia. A proposta era no sentido de que todos os indivíduos deveriam ser
sujeitos de direitos e deveres e, portanto, plenamente livres para contratar, criadores
e executores do Direito aplicado nas relações jurídico-privadas. Eis o sujeito
pretendido para a participação no processo de aquisição e circulação de direitos,
que recebe do ordenamento o atributo da personalidade jurídica, mas não como
pessoa humana e sim como sujeito proprietário, num universo em que todos são
13 Ibid., loc. cit.
24 abstratamente iguais.
A ideologia do contrato e a vinculação do indivíduo a partir da
concepção de proprietário formarão o sustentáculo dos direitos dos contratos, de
forma a definir todo o referencial principiológico.
1.8. Princípios contratuais clássicos
Os princípios contratuais clássicos no liberalismo individualista eram a
autonomia da vontade, a obrigatoriedade e a relatividade dos efeitos dos contratos.
A classificação aqui proposta é a utilizada por Theodoro Jr. e parte da doutrina
nacional e estrangeira.14
Apesar da centralidade da autonomia da vontade, o princípio não foi
codificado e diante do silêncio da lei, a doutrina, de forma geral e indiscriminada,
sempre a aceitou como um dos princípios reitores do Direito Civil Brasileiro. Ela
aparece como instrumentalização do dogma da liberdade contratual e embora se
exponha como princípio absoluto, sempre encontrou barreiras na ordem pública e
nos bons costumes, tendo como requisito que a vontade fosse exposta sem vícios,
observando-se o objeto lícito e possível e a forma não prescrita ou não defesa em lei
para a validade do contrato.
O princípio da obrigatoriedade dos contratos consubstancia-se na regra
de que o contrato é lei entre as partes, independentemente das circunstâncias
estabelecidas, devendo ser fielmente cumprido. Trata-se de corolário do princípio da
14 THEODORO JR, Humberto, O contrato e sua função social , p. 1.
25 autonomia da vontade e a fórmula estabelecida para resumi-lo é o do pacta sunt
servanda. Tal princípio é intrínseco ao contrato considerando que sem a
obrigatoriedade os contratos não atingiriam seus objetivos de regulação jurídica da
circulação de riquezas.
O princípio da relatividade dos efeitos dos contratos diz respeito às
consequências subjetivas da relação jurídica formada, em relação às pessoas
envolvidas e afetadas pelo pacto, de modo que todos os efeitos da avença fiquem
restritos a elas, não beneficiando nem prejudicando terceiros.
Pela aplicação dos princípios da autonomia da vontade e
obrigatoriedade é apenas o querer do cidadão que o obriga, cabendo ao Estado
fazer com que a palavra empenhada seja cumprida como se fosse lei.
Não havendo novo concurso de vontades não é possível a modificação
do que foi pactuado, também não sendo possível ao juiz, por meio de equidade,
alterar o quanto avençado.
Tais princípios passaram a ser relativizados com a concepção da
função social do contrato, como será analisado mais à frente, considerando que a
força obrigatória deixou de ser vista como categoria estanque e a relatividade dos
efeitos passou a ser encarada de forma menos intensa. Como consequência
evolutiva do pensamento jurídico, o contrato assumiu a perspectiva de um projeto de
construção de valores socialmente escolhidos, sem a vinculação estreita e egoísta
até então adotadas.
26
2. A NOVA TEORIA DOS CONTRATOS
Durante os séculos XVIII e XIX houve uma orientação voltada para o
liberalismo individualista, em que o paradigma legal era o princípio da igualdade
formal, sem considerar a realidade marcada pelas diferenças sociais e econômicas.
Nesse período, o Direito Privado estava direcionado para uma sociedade formada
por pessoas livres, em que todos eram proprietários, sendo os não detentores dos
meios de produção ou capital, proprietários da força de trabalho.15
A partir de meados do século XX iniciou-se um processo de
modernidade que afetou substancialmente as diretrizes básicas dos contratos, haja
vista que a modalidade até então praticada não mais atendia aos interesses básicos
da maior parte da sociedade.
A evolução da história, com o desenvolvimento das forças produtivas, a
concentração econômica, a explosão demográfica, a exploração de mão-de-obra e
as duas grandes guerras mundiais foram importantes fatores que exigiram uma
reavaliação da atuação do Estado, considerando que a fragilidade do modelo liberal
clássico para regular as relações privadas diante da impossibilidade de cumprir as
promessas de promover a liberdade e igualdade entre os indivíduos, foi abrindo
espaço para a eclosão do Estado Social, passando o Estado a exercer um papel
ativo, não apenas garantidor das liberdades individuais mas também atuando na
proteção do Direito, o que se faz sentir pela intervenção legislativa, administrativa e
judicial nas relações privadas, sem que haja uma desvinculação da ordem estatal
15 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 36.
27 com a ordem econômica do capitalismo.
Enquanto o Estado liberal assegurou os direitos de primeira geração,
em especial a liberdade, a vida e a propriedade individual, o Estado Social foi
impulsionado pelos movimentos populares, passando a assegurar os direitos de
segunda geração, quais sejam, os direitos sociais.
Nessa fase, o Poder Público passa a intervir no campo da autonomia
da vontade, pelo caminho legislativo, com a finalidade de garantir um sistema capaz
de equilibrar as desigualdades entre os cidadãos, enquanto o judiciário deixa de ter
a função de simples garantidor da liberdade de contratar e da manifestação de
vontade livre de vícios para ter também o poder de corrigir, de certo modo, situações
de flagrante desigualdade.
As Constituições dos países assumem um novo papel, o de fixar os
novos valores sociais, deixando a posição de mera organização nacional para
atuarem como respaldo às necessidades prementes da sociedade.
A partir daí tem início a produção de leis protetivas, como a
Consolidação das Leis do Trabalho e, no campo obrigacional, o Estado passa a
atuar na correção dos excessos e distorções geradas pela autonomia da vontade,
com limitações, haja vista que permanece a liberdade de contratar mas com
restrições à autonomia da vontade, devendo ser observada a lei emanada do Estado
como forma de assegurar maior equilíbrio entre os contratantes. É mantida a
liberdade como centro do pensamento liberal mas com foco na promoção da
valorização do bem-estar dos indivíduos.
Essa nova atuação estatal altera a base do contrato e de sua função
como instrumento de circulação de riqueza, passando o Estado a utilizar da via
28 legislativa para cuidar da regulação da economia, da sociedade e do contrato,
usando de mecanismos do dirigismo contratual para controlar o poder econômico de
domínio privado para atingir os objetivos de realização da igualdade e dignidade
humana.
Nesse trilhar, o contrato deixa de ter feições individuais para assumir
seu aspecto social e, mais à frente, no Direito Privado, dar origem à concepção de
uma função social do contrato, mas não sem antes passar por uma verdadeira crise
porque o contrato da fase moderna tem como pilar a autonomia das partes na
imposição de sua vontade e o novo modelo apresentado encontra-se amparado em
princípios e valores alheios às vontades individuais, impostos pelas leis e
constituições dos países, causando o esvaziamento do papel da vontade como
elemento central e abrindo espaço para comportamentos socialmente típicos.16
A crise, entretanto, é positiva, posto que as modificações na estrutura
do contrato são benéficas para a sociedade e visam atender aos interesses jurídicos
dos contratantes de cada momento histórico, a demonstrar que o contrato é um
instrumento necessário para a organização social.
2.1. Contratos de adesão
A massificação das relações contratuais faz com que as contratações
normalmente sejam definidas por condições prefixadas por apenas uma das partes,
sendo que a outra parte, economicamente mais fraca, apenas concorde em aderir a
16 Ibid., p. 40.
29 essas condições, de forma tácita, não havendo o livre debate dos pactuantes.17
Assim, nas práticas contratuais de adesão, torna-se ilusória a idéia do
liberalismo individualista clássico, pela qual o contrato obriga por ter origem na livre
estipulação pelas partes dos termos da avença. Daí decorre que os contratos em
série deixam de ser expressão da autonomia contratual e, portanto, da liberdade de
contratar, para converter-se em simples vinculação pela necessidade ordinária de
participação em relações de troca . Pode-se dizer que permanece de um lado, o
estipulante, aquele que impõe as regras negociais, normalmente em posição
econômica predominante e, de outro lado, o aderente, sujeito que geralmente está
em posição econômica desfavorável.
O Código de Defesa do Consumidor trata dessa modalidade contratual
no artigo 54 e o Código Civil de 2002 a ela refere nos artigos 423 e 424.
Em razão da desigualdade econômica entre os contratantes, o
legislador buscou estabelecer regras de proteção interventiva para assegurar o
equilíbrio entre os princípios da liberdade e igualdade, optando por um sistema
jurídico que prevê a imposição de penas de nulidade para as cláusulas contratuais
que impliquem renúncia antecipada de direitos, de forma a assegurar que a
liberdade contratual não acarrete prejuízos ao pactuante economicamente mais
fraco.
2.2. Dirigismo contratual
17 Ibid., p. 43.
30
A construção do Estado Social ocorreu pela constatação da
necessidade de atuação do Poder Público para restaurar as distorções causadas
pela autonomia da vontade, em face das desigualdades entre os particulares nas
relações de troca, utilizando a dinâmica de manter a liberdade contratual mas com
limitações substanciais às relações jurídico-privadas, incumbindo ao Estado
legislador a função permanente de impor limites ao conteúdo do contrato com o
objetivo de assegurar às partes maior equilíbrio.
Assim, passa o Estado a estabelecer diretrizes cogentes mínimas a
serem observadas nos contratos, intervindo nas relações através do dirigismo
contratual, o que retira uma parcela considerável de prevalência da autonomia da
vontade, deixando de lado a função subjetiva que inspirava até então o Direito
Privado. O contrato livremente pactuado pelos contraentes defendido pelo
liberalismo individual é substituído pelo contrato regulado. O pacta sunt servanda
deixa de ser absoluto, passando, no Estado Social, a ser necessariamente
conjugado com as políticas públicas para que haja compatibilização com os anseios
da coletividade18.
No campo jurisdicional, o Estado assume a atribuição de interferir no
conteúdo do contrato, passando não apenas a assegurar a regularidade da vontade
manifestada pelas partes mas também a zelar pela observância das diretrizes
legisladas, de forma a chancelar, na condição de Estado-juiz, o princípio da
igualdade nas relações entre privados.
No Brasil, a proteção da parte mais fraca na área do Direito Civil
ocorreu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, especialmente
18 Ibid., p. 45.
31 nos artigos 6º, IV, 39, IV e 49, em que o diploma reconhece efeitos diferentes de
obrigatoriedade do contrato nas hipóteses em que a contratação é feita com a
adesão a regulamentos contratuais preestabelecidos para o consumo, sendo que o
diploma restringe a liberdade contratual antes, depois e no curso da relação jurídica
para evitar a prevalência do desequilíbrio19.
O Direito do Trabalho, que desprendeu-se do Direito Civil tradicional
em face da ruptura que representou com os postulados básicos do Estado Liberal,
pautou-se na tônica de limitar a autonomia da vontade com base nas diversas
restrições determinadas pela legislação tutelar que delimitam o contrato mínimo
legal. Tais características não refletem um sistema jurídico aberto mas sim a
existência de um Estado Social com elevado grau de intervenção legislativa e
controle do campo privado.
Nessa linha, o dirigismo contratual representa a intervenção do Estado
na promoção das relações contratuais atrelada ao interesse da coletividade e sua
manifestação se fará sentir na forma de cláusulas gerais, conceitos indeterminados
e preceitos de ordem pública.
2.3. Pluralidade das fontes normativas
As características gerais do Direito na atualidade afetam, sem dúvida, o
conteúdo e a sistematização da categoria contrato, principalmente pela nova
conformação do contrato “pós-moderno”, haja vista a pluralização das fontes
normativas e a ausência de concentração codificada no sistema jurídico.
19 Ibid., p. 46.
32
A escolha do conteúdo do contrato reduz cada vez mais a liberdade e
autonomia dos sujeitos na órbita privada considerando os limites fixados pelo direito
positivo. Contudo, as restrições à autonomia contratual não derivam apenas da lei,
mas também de decisões judiciais, a exemplo das declarações de nulidade de
cláusula e decisões administrativas, como a fixação de preços máximos fixados
pelo Poder Público, gerando um pluralismo de fontes. Esse fenômeno ocorre pela
diversidade de entidades descentralizadas e autônomas que acabam legislando em
virtude de um poder próprio, sendo que no direito obrigacional houve a pulverização
normativa para outros diplomas que não se identificam com o código.
Fruto das doutrinas individualista e voluntarista, o Código Civil de 1916,
seguindo o modelo europeu, representava a constituição do Direito Privado, tendo
por objetivo garantir ao sujeito de direito, na atividade privada, a estabilidade e
segurança jurídica com amparo no texto codificado. Entretanto, tal modelo entra em
declínio na Europa a partir de meados do século XIX, com reflexos legislativos no
Brasil por volta dos anos 20 do século seguinte, quando houve a necessidade de
intervenção estatal mais contundente na economia, oportunidade em que o
fenômeno do dirigismo contratual elege como instrumento uma legislação
extravagante para regular novos institutos20.
Surgiram, então, as codificações por especialização, como a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), as quais não abalaram os
alicerces da dogmática do Direito Civil mas diminuíram sua abrangência. O Código
Civil perde seu caráter de exclusividade na regulação das relações patrimoniais
privadas e o Direito Civil deixa de ter preocupação central com o indivíduo e passa a 20 ROPPO, Enzo, O contrato , p. 139-140.
33 focar as atividades por ele desenvolvidas, seus riscos, impacto social e formas de
utilização dos bens disponíveis, com o objetivo de assegurar os resultados definidos
pelo Estado21.
Nesse trilhar, as Constituições, de forma paralela, redefinem os marcos
da autonomia privada e da propriedade, fixando compromissos a serem assumidos
pelo legislador ordinário e o Código Civil vigente passa a ser interpretado em
conjunto com os inúmeros diplomas setoriais, incidindo todo o conjunto sobre as
relações privadas.
A atuação judicial desvincula-se das profundas limitações impostas
pelo código, acompanhando a constitucionalização do Direito Obrigacional. Pela
experiência advinda de outros sistemas jurídicos, em especial o da common law, a
questão da rígida fidelidade à lei e aos vínculos conceituais próprios da interpretação
axiomática abre espaço para a possibilidade da aplicação judicial do direito por via
da concreção. Isso porque o sistema codificado é insuficiente para tutelar uma
razoável parte de situações fáticas da realidade social nacional22.
O Direito do Trabalho, desde sua origem, convive com a idéia de
pluralidade de fontes na formação do regramento aplicável ao contrato de trabalho,
haja vista que ao lado da legislação trabalhista positivada encontramos não só os
contratos e convenções coletivas de trabalho que definem o contrato mínimo legal,
como também um vasto regramento administrativo que se incorpora a essa
legislação, a exemplo das normas editadas pelo Ministério do Trabalho em matéria
de higiene e segurança do trabalho. E nessa área, a constatação da incompletude
21 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 47. 22 MARTINS-COSTA, Judith, As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico In Revista de Informação Legislativa , p. 24
34 do microssistema trabalhista leva à reflexão quanto à necessidade de aplicação das
conquistas de outros ramos da ciência jurídica, o que será objeto de análise mais
adiante.
2.4. A relação entre o público e privado. Teorias.
A separação do Direito em público e privado decorreu das
necessidades de cada época histórica, considerando os modelos jurídicos, sociais e
econômicos que a acompanharam. O Estado Liberal trouxe grande isolamento entre
Direito Público e Privado, na medida em que a Constituição destinava-se apenas a
estabelecer a forma de organização do Estado, enquanto o Código Civil cuidava de
ditar regras para regular as relações entre os privados, sendo que essa rígida
separação originou a distinção entre o público e o privado. Tal fronteira veio a ser
dissipada no Estado Social, cujo modelo jurídico adotado de atuação positiva do
Poder Público na delimitação do conteúdo dos contratos entre particulares fez com
que as esferas do público e do privado se entrelaçassem23.
A distinção entre público e privado também se torna relativa pelos
novos modelos constitucionais deixados pelo Estado Social, na medida em que toda
a malha normativa passa a estar subordinada aos princípios e valores determinados
pela Constituição Federal. O principio da dignidade da pessoa humana estreita e
modifica a interação entre o público e o privado e sua realização como valor
constitucional incidente sobre todo o ordenamento faz com que o Direito Privado
seja visto como um novo modelo jurídico que garanta liberdade de atuação aos
23 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 49.
35 indivíduos mas também atue no cumprimento do objetivo de distribuir e produzir o
bem-estar social. Nesse nível de interligação não há norma integralmente pública ou
privada, sendo que a distinção passa a ser feita a nível quantitativo e não qualitativo,
conforme o interesse preponderante.
Essas características são, ainda, sentidas no Direito obrigacional, haja
vista que a dificuldade de limitação de fronteiras não significa a absorção do Direito
Privado pelo Público, mas a fixação de normas cogentes e gerais definidas pelo
Estado com o objetivo de assegurar de forma ampla e efetiva a liberdade dos
particulares na condução da autonomia privada.. A partir daí deve ocorrer a
reconstrução do ordenamento, desvinculado do antagonismo dos interesses
públicos e privados, com uma nova perspectiva que objetive a graduação ou
hierarquia normativa, atendendo às peculiaridades objetivas e subjetivas. Os
contratos entre particulares assumem novo perfil, não se restringindo à realização
dos interesses particulares dos pactuantes haja vista a limitação por regulação
estatal cogente com o objetivo de assegurar a realização dos interesses maiores da
coletividade, instrumentalizados nos textos constitucionais, numa perspectiva civil-
constitucional. A função social do contrato passa, assim, a ser vista como o elo de
ligação e interdependência entre o público e o privado.
Com essa nova perspectiva, em que não há mais o distanciamento
entre os interesses do indivíduo e da sociedade, deixou de ser o Código Civil o único
diploma a tratar das relações entre os privados, mesmo porque as Constituições
passaram a cuidar também desse segmento, o que fez surgir algumas teorias a
respeito, dentre elas a civil-constitucionalista, constitucionalista e pluralista.
Os adeptos da teoria civil-constitucionalista admitem a impossibilidade
do Código Civil regrar todos os aspectos da vida privada no mundo atual,
36 reconhecendo a necessidade de reavaliação do seu papel no sistema jurídico
privado. Entretanto, não retiram o caráter de centralidade dessa categoria
codificada, na medida em que os elementos básicos que regem o Direito Privado
estão no Código Civil, sendo ele adotado para suprir eventuais lacunas dos demais
microssistemas, dentre eles a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código de
Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente, além de outros.
Nessa linha, sustenta Fiuza que
(..) muitos chegam a afirmar que no centro do sistema não gravita o Código
Civil, mas a própria Constituição, que de lá irradia seus princípios e valores.
A assertiva não deixa de ser correta, se levarmos em conta o sistema
jurídico como um todo. No entanto, enfocando-se apenas o sistema
juscivilístico, seria um pouco exagerada a afirmação, porque se entenda
que é na Constituição que se deve inspirar o intérprete, em última instância.
Na verdade, o Código Civil ocupa o centro do sistema civilístico, mas deve,
por sua vez, ser lido à luz da Constituição24.
Tal corrente de pensamento, portanto, não nega a força que as
Constituições passam a ter no regramento das relações privadas, mas sustenta que
o regramento aplicável à hipótese será alcançado por atuação do intérprete, através
do estudo hermenêutico da norma no caso concreto, de forma a autorizar que o
Código Civil seja interpretado com supedâneo na Constituição.
A teoria constitucionalista, por sua vez, atribui maior força normativa
aos preceitos constitucionais direcionados às relações entre os privados, partindo da
premissa de plena efetividade dos princípios e valores resguardados pela
Constituição. A interpretação das normas que regulam a relação jurídico-privada
devem ser feita a partir dos princípios e valores inseridos na Constituição.
24 FIUZA, César, Direito Civil , p. 103.
37
Para os simpatizantes dessa corrente de pensamento o Código Civil
não mais é a fonte principal do Direito Privado, eis que a unidade do sistema não
pode ser produzida a partir do Código, haja vista que este tutela interesses
individuais, os quais são reconhecidos pela Constituição como subordinados a
interesses coletivos maiores. A existência de diplomas legislativos diversos que
muitas vezes trazem em seu bojo princípios e valores díspares e conflitantes justifica
que se recorra a um diploma com maior potencial normativo como a Constituição.
A posição de Nalin guarda afinidade com tal teoria ao defender que a
Constituição acaba ocupando espaço legislativo e social que deveria ser reservado
ao Código Civil, qual seja, a tutela do “homem ser”25.
Para a doutrina constitucionalista, dada a importância atualmente
atribuída aos direitos existenciais do indivíduo, sempre que a tutela desses novos
direitos não encontrar apoio na legislação infraconstitucional, surge a Constituição
com eficácia plena para ser aplicada.
Tais doutrinas igualmente reconhecem uma constitucionalização do
Direito Civil, mas definem o Código ou a Constituição como centro do sistema de
Direito Privado. Já a doutrina pluralista entende que Constituição, Código e estatutos
têm a função de fornecer as fontes normativas, mas não reconhece um centro
delimitado do Direito Civil, um diploma habilitado a universalmente receber o papel
de unificação do sistema.
Este é o posicionamento de Perlingieri quando afirma que: “A questão
não reside na disposição topográfica (códigos, leis especiais), mas na correta
individuação dos problemas. A tais problemas será necessário dar uma resposta,
25 NALIN, Paulo, A autonomia privada na legalidade constitucional In A autonomia privada na legalidade constitucional – Contrato & Sociedade , p. 101
38 procurando-a no sistema como um todo, sem apego à preconceituosa premissa do
caráter residual do código e, por outro lado, sem desatenções às leis cada vez mais
numerosas e fragmentadas26.
Assim, a doutrina pluralista, por não eleger um diploma central
universal, afirma a necessidade de uma variação hermenêutica. O intérprete obriga-
se a harmonizar institutos e princípios, numa tarefa de permanente intersecção de
valores.
Nesse contexto, as três correntes doutrinárias acima identificadas
convergem para a condição de superioridade das normas constitucionais em relação
às demais normas, afastando as regras tradicionais de aplicação da Constituição
apenas de forma indireta e neutralizando a visão liberal-clássica de considerá-la
como mero instrumento de estruturação do Estado. Ainda que em escala
diferenciada, consideram que as normas constitucionais gozam de aplicabilidade
plena e atuam na funcionalização dos institutos jurídicos preexistentes, de modo que
a solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada apenas no artigo de
lei, mas à luz de todo o sistema de direito privado27.
Nessa nova concepção, o princípio da liberdade contratual cede
espaço aos princípios que privilegiam o valor humano, como dignidade, liberdade,
igualdade, direito à vida, segurança, propriedade e outros. E o Direito do Trabalho,
como integrante do sistema de regulação das relações entre os particulares,
acompanha a nova sistemática obrigacional.
26 PERLINGIERI, Perfis do Direito Civil , p. 6. 27 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 55.
39
2.5. A despatrimonialização do Direito Privado
Como sugere o termo, despatrimonializar é tirar o foco valorativo do
universo patrimonial, da produção voltada a si mesma, do consumismo, sendo que a
despatrimonialização do Direito Privado é a tendência normativa-cultural de
superação do patrimonialismo, em direção ao pessoalismo, como leciona Souza28.
O pessoalismo diz respeito ao valor humano do sujeito, e não ao
personalismo, ligado ao individualismo nas relações entre privados e próprio das
codificações liberais. A relação obrigacional, sob essa ótica, passa a valorizar os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (1º, III), da valorização do
trabalho e da livre iniciativa (1º, IV), da construção de uma sociedade justa e
solidária (3º, I), bem como da atuação na erradicação da pobreza, marginalização e
redução das desigualdades sociais e regionais (3º, III). Tais princípios possuem
aptidão para subordinar e validar qualquer regra infraconstitucional de Direito
Privado, justificando o sistema civil-constitucional plural e interveniente, baseado em
valores de alçada constitucional.
Assim, com a despatrimonialização do Direito Privado, há uma
reavaliação da vontade dos pactuantes na fixação do regulamento contratual, tendo
por fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana.
2.6. Cláusulas gerais
28 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 59.
40
Cláusulas gerais são normas que não definem uma determinada
conduta mas sim os valores e parâmetros que devem servir de critérios e limites
para a aplicação de outras normas.
Os códigos oriundos do liberalismo individualista supõem a existência
de sistemas rígidos e completos e que, portanto, mostram-se refratários a
modificações que se operem nos planos econômico e social. A técnica das cláusulas
gerais apresenta a vantagem de permitir a abertura do sistema e enfatizam a
interpretação. Representam normas que não prescrevem uma certa conduta,
apenas definindo os valores e parâmetros hermenêuticos. Servem, assim, como
ponto de referência interpretativo e oferecem ao julgador os critérios axiológicos e os
limites para a aplicação das demais disposições normativas.
O reconhecimento de um sistema jurídico que esteja permanentemente
ligado às transformações sociais apenas pode encontrar operatividade em normas
que não tenham a pretensão de encerrar a integralidade das situações de fato
previstas. O sistema que se pretenda interativo à realidade que busca regrar deve
reconhecer a incompletude das soluções previamente pensadas pelo legislador.
Será a vagueza de técnicas jurídicas, como as cláusulas gerais, que permitirá a
interação de forma mais justa e equilibrada do Direito com a sociedade.
Para Reale, o sistematizador do Código Civil, cláusulas gerais são
normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz,
vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. Sua função é
dotar o sistema interno do Código Civil de mobilidade, mitigando as regras mais
rígidas, além de atuar de forma a concretizar o que se encontra previsto nos
princípios gerais de direito e nos conceitos legais indeterminados. Prestam-se,
ainda, para abrandar as desvantagens do estilo excessivamente abstrato e genérico
41 da lei. Para tanto, as cláusulas gerais passam, necessariamente, pelos conceitos
determinados pela função. O juiz exerce papel de suma importância no exercício dos
poderes que derivam das cláusulas gerais, porque ele instrumentaliza, preenchendo
valores, o que se encontra abstratamente contido nas referidas cláusulas gerais29.
As cláusulas gerais possuem características próprias, que as
distinguem das normas ditas ordinárias. Considerando o objetivo deste estudo
optou-se por apontar as duas principais: a generalidade do enunciado e a remissão
a princípios.
A generalidade do enunciado é sua principal característica, eis que é
dotada de abstração pelo conteúdo incerto, não enumerando pressupostos e
consequências.
Martins-Costa esclarece que as cláusulas gerais permitem a
(...) visualização de uma nova noção de sistema jurídico. Se conseguirmos
afastar de nosso raciocínio as armadilhas da ilusão codificadora e
admitirmos a possibilidade da convivência entre o código, as variadas leis
especais e um modelo de interpretação judicial que não dispense a
utilização do raciocínio problemático de que tratou Vieweg em sua Tópica,
poderão os códigos sobreviver como ‘eixos centrais’ de cada sistema e
subsistema individualmente considerados, entendidos estes, por óbvio, não
mais à base da concepção típica às ciências exatas, mas de um modo
aberto30.
Enfatiza a jurista que esse tipo de norma busca a formulação da
hipótese legal por intermédio de conceitos cujos termos têm significados
intencionalmente vagos e abertos, chamados de “conceitos jurídicos
29 NERY JR., Nelson, Contratos no Código Civil In NETTO, Domingos Franciulli; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (coord.). O novo Código Civil – Homenagem ao Prof. Miguel Reale , p. 428-429. 30 MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 24.
42 indeterminados”. Em vez de traçar pontualmente a hipótese e sua conseqüência, é
apenas delineada uma vaga moldura, apta a permitir, pela vagueza semântica que
caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes máximas de
conduta originalmente estranhos ao código31.
O resultado obtido pela adoção desse procedimento é a concreção de
princípios, diretrizes e máximas de conduta, numa constante inovação de normas
que se adequam ao caso concreto.
A remissão a princípios, apontada como segunda característica
relevante das cláusulas gerais, significa que o contexto da cláusula geral não
apresenta valores que são encontrados dentro do sistema jurídico, pela atividade
hermenêutica, ou mesmo fora do sistema, haja vista que o objetivo da técnica é
dotar o sistema de mobilidade. Ao deixar de se utilizar de preceitos normativos
rígidos e optar por valores em mutação, abre-se o ordenamento, dotando-o de
variabilidade e permanente atualidade aos elementos sociais.
Na legislação nacional, o Código Civil de 2002 adotou a técnica de
cláusulas gerais para a consagração de vários valores. Seu artigo 421, ao
estabelecer o princípio da função social do contrato encampou o modelo de cláusula
geral. Nesse sentido, a opção de expressão da função social do contrato por esse
meio não foi opção casuística. O uso desta técnica ocorreu exatamente para que a
limitação da autonomia das partes fosse ampliada à generalidade das relações
privadas, e seus termos pudessem ser descobertos na análise concreta.
As cláusulas gerais remetem a valores, incumbindo ao jurista aplicador
31 Idem, O Direito Privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro In Revista dos Tribunais , p. 24.
43 adequar a regra aos princípios constitucionais, os quais, estando em patamar
hierarquicamente superior, servem de parâmetros para o conteúdo e controle de
aplicação das cláusulas gerais.
Nessa linha, a vinculação necessária entre cláusulas gerais e
Constituição é analisada por Nalin, ao afirmar que a Carta Constitucional atua como
conexão axiológica entre o Código Civil e suas cláusulas gerais, no momento da
concretização normativa32.
Assim, apenas com a vigência de uma Constituição democrática, como
a de 1988, é que se passou a ter um suporte axiológico para a construção normativa
das cláusulas abertas, dela emanando o substrato necessário para a construção do
sistema jurídico.
Entretanto, a doutrina identifica alguns problemas trazidos pelas
cláusulas gerais, tendo em vista a incerteza jurídica gerada pela possibilidade do
juiz, nas palavras de Nery Jr., “criar a norma pela determinação dos conceitos,
preenchendo o seu conteúdo com valores”33.
Para Theodoro Jr., os riscos e perigos não são poucos, nem pequenos.
Em sua visão uma norma legal em branco evidentemente permite ao juiz preencher
o claro legislativo de modo a aproximar-se mais da justiça do caso concreto. O
aplicador da lei, contudo, sofre a constante tentação de fazer prevalecer seus
valores pessoais sobre os que a ordem jurídica adotou como indispensáveis ao
sistema geral de organização social legislada. Nos ordenamentos que adotam tipos
rígidos para sua conceituação normativa, os valores e princípios fundamentais são
32 NALIN, Paulo, Cláusula geral e segurança jurídica no Código Civil In Revista Trimestral de Direito Civil , p. 66. 33 NERY JR., Nelson, Código Civil anotado e legislação extravagante , p. 143.
44 levados em conta pelo legislador, de maneira que o juiz tem sua atividade exegética
e axiológica bastante reduzida e simplificada. Já num regime de normas
principiológicas, cabe-lhe uma tarefa complicada e penosa, qual seja, a de
reconstruir todo o mecanismo axiológico da ordem constitucional cada vez que tiver
de aplicar a cláusula geral da lei às necessidades do caso concreto.34
Jorge Jr. enfatiza a importância da fundamentação judicial ao indicar
que a amplitude do conceito de cláusula geral, aliada à possibilidade de se fazer
referência a valores e princípios, fará com que seu controle seja feito de forma
praticamente exclusiva através da fundamentação judicial35.
A relevância da posição do juiz na concreção e aplicação das cláusulas
gerais segue o ideário de construção do Estado Social, em que se repartem as
responsabilidades para consagração de princípios de solidariedade. Nesse sentido,
o controle é exercido com base numa repartição de responsabilidade entre legislador
e juiz.
2.7. Princípios contratuais modernos
Princípios são regras gerais de conduta que fundamentam a
interpretação da norma, do ato ou negócio jurídico. Não se encontram positivados no
sistema normativo e servem de base para preencher lacunas. Quando incluídos no
direito positivo deixam de ser princípios e ganham status de cláusulas gerais.
Sintetiza Fiuza que princípios informadores são normas gerais e 34 THEODORO JR., Humberto, op. cit., p. 126. 35 JORGE JR., Alberto Gosson, Cláusulas gerais no novo Código Civil , p. 58-59.
45 fundamentais que fornecem os pilares de determinado ramo do pensamento
científico. Informam, portanto, o cientista. Fornecem os fundamentos dos quais
devemos partir para a compreensão da completude. São gerais, porque se aplicam
a uma série de hipóteses, e são fundantes, na medida em que deles se pode extrair
um conjunto de regras, e das quais decorrem por lógica36.
Assim, é de vital importância atribuir eficácia normativa aos princípios
gerais de Direito, para que seja possível operacionalizar com coerência as normas,
os subprincípios e os valores jurídicos. Considerando que o Código Civil é ainda
regido pela autonomia da vontade, enquanto a Constituição somente autoriza a livre
iniciativa enquanto funcionalizada pela justiça social, a única alternativa capaz de
afastar a possibilidade de atuação contrária aos valores jurídicos constitucionais é
admitir a eficácia normativa da Carta Política, de molde a justificar a releitura dos
princípios gerais do Direito das Obrigações, remodelados a partir dos paradigmas
constitucionais atuais de valorização social.
2.7.1. Autonomia privada
A Constituição Brasileira de 1988, ao estabelecer no artigo 170 que a
ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
assegurando, entre outros princípios, a propriedade privada (inciso II) e a livre
concorrência (inciso IV), indica que a liberdade é garantida a partir do direito
subjetivo de garantia da propriedade. É a livre iniciativa e a propriedade privada que 36 FIUZA, César, A principiologia contratual e a função social dos contratos In LAGE, Emerson José Alves; LOPES, Mônica Sette (orgs.), Novo Código Civil e seus desdobramentos no Direito do Trabalho , p. 98.
46 fornecem os valores que lastreiam a autonomia privada. A liberdade de atuação
negocial é exercida por meio da liberdade individual, também constitucionalmente
garantida no artigo 5º, caput, da Constituição, o que significa que a Lei Maior prevê
que os indivíduos exerçam a gestão de seus interesses, mas com limites, porque ao
lado da livre iniciativa, a dignidade do trabalho é princípio da ordem econômica,
estabelecendo-se como princípios da atividade econômica a função social da
propriedade (inciso III), defesa do consumidor (inciso V), defesa do meio ambiente
(inciso VI), a redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII) e a busca do
pleno emprego (inciso VIII).
Considerando as diretrizes constitucionais acima identificadas, devem
ser conciliados os princípios para que possam ser dotados de concreção. E para
cumprir o objetivo lançado na Carta Constitucional de construção de um Estado
Social, os princípios que consagram a livre iniciativa acenam para instrumentos
tendentes a propiciar o progresso econômico para a superação das desigualdades
de fato, o que implica na promoção de valores sociais.
Para compreender esses novos contornos da vontade no Direito
Privado é necessária a compreensão de que o contrato não tem mais sua fonte
exclusiva e legitimadora na expressão da vontade dos sujeitos. Amplia-se o conceito
de fontes do contrato com a articulação de valores constitucionais fundamentais a
serem sempre atendidos, bem como a disposição de normas infraconstitucionais de
dirigismo contratual, que servem para dar efetividade àqueles valores37.
O contrato deixa de ser o poder reconhecido aos particulares para a
criação de normas ou preceitos para ser a escolha de resultados já declarados na
37 GODOY, Cláudio Luiz Bueno, Função social do contrato . São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17
47 lei, pois apenas estes são de interesse da coletividade na produção. É a passagem
da autonomia da vontade para a autonomia privada, em que a determinação do
conteúdo típico de um ato jurídico deixa de ter iniciativa individual e passa para a
competência da consciência social e da ordem pública para que possa desempenhar
a função econômico-social.
A atenção que deve ter o contrato para com interesses coletivos
também é preocupação de Gomes, para quem o contrato não é mais fonte única da
relação contratual resultante do acordo de vontades, mas também por prescrições
da lei, imperativas e dispositivas e pela eqüidade. A reconstrução do próprio sistema
contratual orientado no sentido de libertar o conceito de contrato da idéia de
autonomia privada e admitir que, além da vontade das partes, outras fontes lhe
integram o conteúdo. A nova concepção atenta para o dado novo de que, em virtude
da política interventiva do Estado hodierno, o contrato, quando instrumenta relações
entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, ajusta-se a
parâmetros que levam em conta a dimensão coletiva dos conflitos sociais
subjacentes38.
O Código Civil brasileiro de 2002 provoca a alteração da extensão da
liberdade de formação e condução do contrato, conjugando interesses privados e
sociais. Ao relacionar a liberdade de contratar com a função social, preserva,
legalmente, a sustentação jurídica do capitalismo, mas garante que a autonomia
negocial deve ser condicionada ao fim coletivo.
38 GOMES, Orlando, Contratos , p. 18-19.
48
2.7.2. Obrigatoriedade
A decadência da força obrigatória dos contratos é conseqüência
indireta da quebra do princípio da autonomia da vontade. É efeito da
desconsideração do contrato como resultado exclusivo de um acordo de vontades
livres e iguais, mas um processo social complexo no qual intervêm pessoas
desiguais e interdependentes. Nesse quadro, a noção de força obrigatória é relativa
e o Direito das Obrigações se transforma em todos os seus princípios.
Apesar do afastamento da concepção absolutista do pacta sunt
servanda, as limitações que se impõem não podem servir de pretexto para o raso e
firme descumprimento imotivado dos contratos. Por evidente, permanece o
fundamento moral de cumprimento da palavra empenhada. Mas também a
fundamentação moral deve ser vista de forma mais ampla, adequando-se aos
anseios de toda a sociedade.
Com a mudança de foco, atualmente é aceita a possibilidade de
revisão contratual sempre que se notarem as condições de desequilíbrio marcante
entre as prestações pactuadas ou em decorrência da alteração das circunstâncias
em que se processou a celebração do contrato. A teoria da imprevisão aproximou a
noção da cláusula rebus sic stantibus ao requisito de imprevisibilidade da parte
prejudicada.
Em decorrência, e como forma de instrumentalização da relativização
da força obrigatória, passa o juiz a atuar na adequação do regulamento do contrato,
como forma de ajustá-lo às limitações impostas pelo ordenamento para proteção de
partes econômica ou socialmente inferiores. A conformação efetuada pelo judiciário
49 é de garantir o cumprimento do contrato na forma da expectativa gerada no meio
social, e não pela vontade meramente individual.
Assim, a função social do contrato está presente quando o consenso e
a obrigatoriedade contratual se adequam aos objetivos gerais da sociedade .
2.7.3. Relatividade
Como manifestação ideológica, o princípio clássico da relatividade dos
efeitos do contrato exclui que a posição jurídica de um sujeito possa ser
juridicamente atingida e lesada por um contrato celebrado entre outros sujeitos.
A partir da compreensão de que a obrigação de cumprimento do pacto
é lastreada não somente na vontade individual manifestada, mas também nos
efeitos gerados pela expectativa social das conseqüências do pactuado, esse
princípio também acaba por ter seu conteúdo revisto.
Assim, os efeitos que devem produzir os contratos não podem mais ser
os combinados entre as partes a fim de que se reconheça o pacto como válido e
eficaz. E eficácia social que deve ter cada avença firmada entre particulares obriga
que os efeitos que sejam produzidos também afetem positivamente à coletividade.
A legislação brasileira tem atenuado o princípio da relatividade dos
efeitos do contrato ao tratar sobre a fraude à execução (artigo 593 do Código de
Processo Civil) e a fraude contra credores (artigo 158 do Código Civil de 2002),
observando-se que o objetivo maior desses dispositivos é a proteção, ainda que
indireta, dos interesses do particular lesado com transações indevidas.
50
A remodelação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato é
aquele que mais se aproxima da função social. Nesse sentido foi a conclusão do
Conselho Superior da Justiça Federal, tomada na I Jornada de Direito Civil e
instrumentalizada em seu Enunciado de número 2139:
O princípio da relatividade dos efeitos do contrato possui seu conteúdo
transformado pela operação da função social. O reconhecimento de que mesmo as
relações interprivadas produzem conseqüências na coletividade e que há vinculação
de todos os particulares na consecução do objetivo de construção de uma sociedade
justa, obriga que se ultrapasse a fórmula individualista da relatividade.
2.7.4. Boa-fé objetiva
A boa-fé subjetiva relaciona-se com o requisito de que estado psíquico
do sujeito seja destituído de dolo na relação jurídica que se forma, enquanto a boa-
fé objetiva, de que tratamos, é princípio contratual que se impõe como determinante
da conduta, uma regra de conduta, de lealdade.
A consagração da boa-fé objetiva é verdadeira revolução na
interpretação dos contratos e, no Direito nacional, ocorre como fenômeno
relativamente recente, efeito da eticização das relações jurídicas e reconhecimento
de que as partes que entabulam o contrato são sujeitos envolvidos numa relação de
cooperação durante todo o processo, valor que se aproxima do solidarismo e se
contrapõe ao individualismo.
39 Enunciado 21 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.
51
O reconhecimento hermenêutico do conteúdo das vontades presentes
nos contratos era até então apoiada em duas doutrinas estanques: de um lado, a
Teoria da Vontade, pela qual era necessária a identificação da vontade interna do
declarante e, de outro, a Teoria da Declaração, em que bastava verificar a
declaração do agente, independentemente de vontade.
O Direito brasileiro, por aplicação do artigo 85 do Código Civil de 1916,
reconhecia a força da declaração da vontade interna do agente. O Código Civil de
2002 buscou inovar, estabelecendo na redação do artigo 112, uma mescla entre as
duas teorias, evitando os excessos que cada uma encerra.
Por aplicação desse comando hermenêutico, a importância depositada
é a confiança que a declaração de vontade gera e na boa-fé de quem recebeu a
declaração. A consagração da boa-fé como norma de ordem pública ocorre com a
introdução do artigo 422 do Código de 2002.
Entretanto, foi com o Código de Defesa do Consumidor que iniciou
essa nova visão sobre os contratos, ao lastrear na boa-fé objetiva o núcleo de todo o
diploma.
A boa-fé objetiva, por sua amplitude, passou a atuar como elemento
que substitui o ato volitivo na vinculação do contrato. Por evidente, o princípio pacta
sunt servanda permanece em vigor como corolário do Direito das Obrigações, mas
sem ter por base a vinculatividade do querer individual instrumentalizado num
contrato e necessidade de preservação da segurança jurídica, enquanto segurança
do cumprimento dos interesses econômicos individuais. A segurança jurídica
ambicionada no contrato relaciona-se, antes, na certeza de que as partes poderão
cumprir suas obrigações assumidas, sem abusos ou excessos.
52
Martins-Costa atribui uma tríplice função à boa-fé: a de atuar como
cânone hermenêutico e integrativo, propiciando elementos para interpretação do
conteúdo dos contratos; como fonte de deveres jurídicos, notadamente deveres
secundários ou anexos; e como limite ao exercício de direitos subjetivos, ou seja,
estabelecendo balizadores ao exercício dos direitos. Com o advento do Código de
Defesa do Consumidor, há o reconhecimento do desequilíbrio entre as partes, de
modo que também se agrega uma função corretiva para promoção de um concreto
reequilíbrio da relação contratual40.
Esta função limitadora da boa-fé ao exercício de direitos subjetivos é
aquela que melhor adapta o princípio de Direito Privado ao ideário da sociabilidade
advinda do Estado Social, pois aproxima o contrato a uma vontade de equilíbrio nas
prestações.
2.8. O contrato e os direitos fundamentais
O reconhecimento da fundamentalidade e aplicabilidade direta dos
princípios constitucionais obriga que o Direito Privado seja visto como plenamente
inserido num ambiente de determinação constitucional. E isto não significa o
afastamento da autonomia privada como princípio do Direito dos Contratos. O
respeito à dignidade humana envolve a proteção também da liberdade dos
indivíduos, valor que igualmente é instrumentalizado na possibilidade dos
particulares se vincularem por força de sua vontade. Mas a completude da dignidade 40 MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis – a boa-fé nas relações de consumo In: MARTINS-COSTA, Judith (org.) A Reconstrução do Direito Privado – Reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fund amentais constitucionais no Direito Privado . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 640-641.
53 humana obriga que esse exercício de liberdade seja limitado aos interesses de toda
a comunidade.
Na transição da interpretação constitucional do contrato do ter para o
ser, pondera Noronha que, sendo a autonomia privada um dado filosófico, relativo
ao valor da pessoa humana, é dessa afirmação de sua dignidade e do
desenvolvimento de sua personalidade, no universo das relações negociais entre
privados, que se identifica como uma liberdade de regulação de seus interesses.
Mas também sublinha que somente se exercerá nos limites e com as finalidades
assinaladas pela função social que se reconhece genericamente pelo atendimento a
valores constitucionais básicos, a cuja promoção se deve também direcionar41.
A afirmação da eficácia dos valores constitucionais no Direito Privado é
adequação metodológica que deve ser operada como forma de fazer valer a
principiologia da dignidade humana, encartada no mais importante instrumento
jurídico da nação, a Constituição.
A cláusula geral de função social do contrato é, pois, o elemento do
Direito Civil que pode fazer a ligação com os valores constitucionais de dignidade
humana. A. partir desses elementos é possível percorrer o caminho da reconstrução
da contratualidade trabalhista, como será analisado adiante.
41 NORONHA, Fernando, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais, p. 115.
54
3. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Não há no ordenamento jurídico nacional definição para a expressão
“função social” adotada pelo artigo 421 do Código Civil em vigor, ao dispor que “a
liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”, pelo que a adequada significação deve ser estabelecida pela doutrina.
De Plácido e Silva indica que o vocábulo vem do latim functio, de fungi
que significa exercer, desempenhar e define seu significado, dentre várias
indicações, como sendo o direito ou dever de agir, atribuído ou conferido por lei a
uma pessoa42.
Na acepção jurídica o termo “função” em regra é utilizado para abordar
a finalidade de algum instituto de Direito, identificando o motivo de sua existência e,
nessa linha, pode a função do contrato ser considerada como a vinculação à
finalidade prevista no sistema jurídico de acordo com as normas que disciplinam as
relações contratuais na esfera privada. É a obrigação a cumprir, o papel a ser
desempenhado por um indivíduo ou por uma instituição em dada coletividade.
O vocábulo “social” deve ser considerado como relativo à coletividade,
ao conjunto dos cidadãos de um país, conveniente à comunidade. O interesse
individual cede lugar para os anseios do grupo coletivo e o bem-estar da sociedade.
A figura do “contrato” assume as características do modelo de
organização dos fatores de produção de cada momento histórico, constituindo o
42 SILVA, De Plácido e, Vocabulário Jurídico , p. 372.
55 instrumento jurídico de circulação de bens, produtos e serviços . Pode ser
conceituado em linhas gerais como o acordo de vontades que tem por fim criar,
modificar ou extinguir direitos.
Assim, é possível dizer que a função social do contrato está
intimamente relacionada com o papel que cada ser individual ou coletivo
desempenha na sociedade, vinculado à finalidade prevista no sistema jurídico de
acordo com as normas que disciplinam as relações contratuais na esfera privada.
3.1. A função social no nosso sistema jurídico
A partir de meados do século XVIII, com a Revolução Industrial, em
que inventos deram início ao aperfeiçoamento das técnicas produtivas e a
substituição do trabalho manual pelo mecânico, a sociedade passou por profundas
modificações, principalmente no que diz respeito ao trabalho humano, surgindo o
ambiente propício para o questionamento dos princípios do liberalismo.
Os movimentos que ocorreram nessa fase demonstraram que a
manutenção dos ideais do liberalismo estava colocando em risco o capitalismo.
Assim surgiu o intervencionismo estatal e o crescente reconhecimento dos grupos
de trabalhadores, que inicialmente passaram a ser legalizados e posteriormente
protegidos. Uma das formas utilizadas para impedir a deterioração das condições
sociais e laborais foi a limitação da autonomia da vontade pelo intervencionismo
estatal.
Após o advento da Revolução Industrial e o momento histórico
caracterizado pelo conflito de interesses entre as classes do capital (burguesia) e do
56 trabalho (proletariado), surgiram as “doutrinas sociais”, destacando-se a Encíclica
Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII (1891), iniciando-se o processo de
valorização do trabalho como instrumento de dignidade da pessoa humana do
trabalhador.
Por ocasião do final da Primeira Grande Guerra, o Tratado de
Versalhes, além de criar a Organização Internacional do Trabalho (1919) como parte
das Sociedades das Nações, consagrou, a nível internacional, o Direito do Trabalho
como novo ramo autônomo da ciência jurídica, apresentando como princípio diretivo
informador deste novo Direito, o “de que o trabalho não há de ser considerado como
mercadoria ou artigo de comércio”.
O Direito do Trabalho, portanto, desprendeu-se do Direito Civil
tradicional em face da ruptura que representou com os postulados básicos do
Estado Liberal.
No cenário brasileiro, com a Carta Política de 1988, houve ampla
reformulação da arquitetura normativa, baseada nos princípios de valorização da
condição humana. O indivíduo passa a ser o foco da proteção estatal. Entre os
fundamentos da República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de
Direito, estão a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho
(CF/88, art. 1º, III e IV), o qual passou a ser tratado como direito social (CF/88, art.
6º), enquanto a valorização do trabalho humano transformou-se em fundamento da
própria ordem econômica, cuja finalidade é assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros princípios, os da
função social da propriedade e da busca do pleno emprego (CF/88, art. 170, caput,
III e VIII).
57
Em seu preâmbulo, a Constituição Brasileira de 1988 consagra o
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias.
O modelo clássico do Código Civil de 1916 tratava a autonomia da
vontade como única fonte criadora de direitos e obrigações, exigindo um Estado que
garantisse o domínio econômico, com ênfase nos princípios da autonomia da
vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e respeitados a
ordem pública e os bons costumes.
Contudo, o curso da história gerou uma evolução no tratamento das
relações contratuais, identificada pelo legislador do novo Código, eis que não era
mais possível o convívio com normas que definissem de forma precisa certos
pressupostos e suas consequências, formando uma espécie de sistema fechado.
Houve a necessidade, assim, da adoção de uma técnica legislativa moderna,
utilizando-se de conceitos legais indeterminados e cláusulas gerais, que conferem
ao sistema mobilidade e flexibilizam a rigidez dos institutos jurídicos e dos
regramentos do direito positivo.
Foram estabelecidos novos paradigmas para o convívio social,
fornecendo novos contornos à liberdade contratual, diante da constitucionalização
do direito privado, ou seja, dos reflexos do conteúdo material da Constituição
Federal nas relações privadas.
As principais novas bases constitucionais encontram fundamento nos
58 desdobramentos da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana (CF,
art. 1º, inciso III), nos princípios instrumentais da ótica solidarista (CF, art. 3º, inciso
I), bem como no valor social da livre iniciativa (CF, art. 1º, inciso IV).
As relações contratuais passaram a submeter-se a novas diretrizes,
como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato,
demonstrando o reconhecimento de que a igualdade entre os contratantes é
inerente à justiça do mecanismo contratual. Disso se extrai que a autonomia da
vontade e princípios que fundaram o modelo clássico de contrato hoje devem ser
relidos à luz da Constituição.
Nesse compasso, o moderno direito privado foca-se no capitalismo
com ética, afastando o individualismo extremado e a liberdade ilimitada de contratar,
promovendo os princípios contratuais da função social, igualdade material, boa-fé
objetiva e equivalência contratual. O perfil político-ideológico do Código Civil passa
de liberal para social, com a técnica legislativa mista, principalmente pela adoção
das cláusulas gerais, a exemplo da função social do contrato, da função social da
empresa, da função social e ambiental da propriedade e da boa-fé objetiva.
Assim, a função social já estava inserida em nosso ordenamento
jurídico, pelo menos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988,
considerando que o solidarismo, como princípio do Estado Social, confunde-se com
a função social, havendo a positivação do instituto no Direito Obrigacional a partir da
vigência do Código Civil de 2002, pelo regramento inserto no artigo 421, pelo qual a
“liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”.
A doutrina aponta algumas deficiências técnicas do dispositivo legal. A
59 primeira diz respeito ao uso da expressão “liberdade de contratar” ao invés de
“liberdade contratual”, posto que aquela atinge a autonomia privada de estabelecer a
conveniência de celebrar o contrato e a escolha do co-pactuante, enquanto esta
representa o autêntico princípio liberal individualista do Direito Obrigacional,
alcançando a escolha do próprio conteúdo da avença, independente de outras
limitações. A segunda dificuldade técnica é a afirmação de que o princípio da função
social é a “razão” do exercício da liberdade, podendo induzir o intérprete a
considerar que a função social dá as bases para que o indivíduo tenha liberdade de
estabelecer contratos.
De qualquer forma, deve ser considerado que valor tão importante
como a liberdade não pode ficar contido num instituto de direito obrigacional como o
da função social do contrato, haja vista representar verdadeira garantia
constitucional que tem, em uma de suas manifestações, a autonomia privada. Nessa
linha de raciocínio, forçoso concluir que o dispositivo em comento não elimina o
princípio da autonomia contratual, servindo apenas para atenuar ou reduzir o
alcance desse princípio quando estão presentes interesses metaindividuais ou
interesse individual concernente à dignidade da pessoa humana.
3.2. A função social do contrato como cláusula geral ou princípio
As cláusulas gerais e os princípios jurídicos são os principais
instrumentos utilizados para a abertura de um sistema positivista fechado, pela
impossibilidade deste apresentar respostas satisfatórias para todos os problemas,
como já analisado. Possuem em comum a característica de “vagueza semântica”.
60
Apregoa Dworkin que a limitação do papel ativo dos princípios jurídicos
é próprio de um sistema positivista baseado na regra de subsunção. Nesse sistema,
rechaçado, há dificuldade de reconhecer que o princípio possa obrigar, pois não tem
a habilitação de prescrever um resultado particular. Mas, com a impossibilidade
desse sistema positivista fechado encerrar respostas satisfatórias para todos os
problemas, percebe-se a necessidade de instrumentos que possibilitem a abertura
do sistema. As cláusulas gerais e os princípios jurídicos são os principais
instrumentos para tanto43.
A função social do contrato, portanto, é compatível com vários graus
de concretização, o que exige a intervenção do juiz para dar-lhe concreção,
considerando os princípios aplicáveis ao caso concreto.
O artigo 421 do Código Civil, que trata da função social do contrato,
possui um alto grau de generalidade, sendo necessário que o seu conteúdo seja
definido na incidência do caso em concreto, adotando como parâmetros os
princípios jurídicos, em especial os princípios materialmente constitucionais e os
próprios do Direito do Trabalho.
A elevação do grau de importância outorgada à função social do
contrato, leva autores como Tartuce a reconhecer a função social do contrato – e
mesmo a função social da propriedade, raiz da primeira – como princípio geral do
direito, equiparando-se aos grandes princípios da justiça, liberdade, igualdade e
dignidade humana44.
A vinculação entre cláusulas gerais e princípios é acentuada por
Martins-Costa, a qual reconhece a distinção, mas também percebe que uma
43 DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério , p. 56-57. 44 TARTUCE, Flávio, A função social dos contratos , p. 77.
61 cláusula geral pode conter um princípio, como no caso da boa-fé45.46.
Assim, a cláusula geral de função social do contrato serve como
mecanismo ao intérprete para que, no caso concreto, se utilize de um princípio,
utilizando a técnica argumentativa. Releva notar que o conteúdo do artigo 421 do
Código Civil pode ser considerado como um princípio inserido no sistema de forma
expressa mas considerá-lo como cláusula geral permite, principalmente no meio
hermeneuta mais conservador, que se alcance uma aplicabilidade mais efetiva e
segura.
A função social como cláusula geral ou princípio tem como
característica o reenvio ao juiz de princípios jurídicos buscados no ordenamento, o
que permite, por via indireta, a utilização de critérios metajurídicos.
Nesse contexto, prospera o entendimento do MARTINS-COSTA no
sentido de que a inovação contida no artigo 421 do Código Civil é
concomitantemente cláusula geral de modalidade restritiva da liberdade contratual e
regulativa, e também um princípio.
Seja como princípio ou como cláusula geral, seu conteúdo deriva de
um princípio maior, o do solidarismo, previsto na Constituição Federal de 1988,
artigo 3º, I, que estabelece como objetivo fundamental da República a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária e, em complemento, o artigo 1º, III e IV que
enumera como fundamentos do Estado a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Associando-se o princípio civilista da sociabilidade com o constitucional
45 MARTINS-COSTA, Judith, A boa-fé no direito privado , p. 323. 46
62 da solidariedade, encontra-se a fórmula de despatrimonialização do direito das
obrigações, como já referido neste trabalho, e resgate da subjetividade. Afasta-se o
individualismo típico do liberalismo individualista, para colocar a normatização civil
em um novo paradigma de prestígio de valores sociais, como princípio fundante do
ordenamento, sendo que no campo do Direito Obrigacional, o princípio do
solidarismo obriga a uma concepção baseada na justiça social, de modo que passa
a ser necessária a atuação do Estado removendo obstáculos para a efetiva
igualdade.
A noção de função social reconhece que todos os indivíduos têm uma
certa função na sociedade, de executar uma certa tarefa e, como corolário,
abstendo-se desta função ou realizando atos contrários, seu comportamento deve
ser socialmente reprimido. A regra jurídica aqui aplicada decorre da necessidade de
se manter coerentes entre si os diferentes elementos sociais para o cumprimento da
função social que incumbe a cada indivíduo e a cada grupo.
O Direito fundado na solidariedade obriga que se reconheça que a
conduta é imposta ao homem social. Todo o indivíduo passa a ser obrigado pelo
direito objetivo a cooperar, absorvendo uma noção bem diferente da tradicional de
direito individual, porque a fundamentação da regra de Direito está na obrigação de
cada homem desempenhar seu papel social. O Direito não protege a vontade
coletiva, como também não protege a vontade individual; mas protege e garante o
fim coletivo que é perseguido por uma vontade individual.
O foco da função social do contrato está, portanto, na compatibilização
da existência individual do ser humano com sua natureza essencialmente social,
pois a função exclusivamente individual para o contrato é incompatível com o Estado
Social.
63
3.3. A função social do contrato e a boa-fé objetiva
O Código Civil Brasileiro de 2002 trata dos princípios contratuais da
boa-fé objetiva e da função social do contrato nos artigos 421 e 422, representando
grande avanço no Direito Obrigacional. Estabelece o texto legal a obrigação
acessória de agir segundo os princípios da probidade e da boa-fé,
independentemente de previsão no regulamento contratual ou de qualquer outro
ajuste.
O princípio da boa-fé objetiva tem por objetivo estabelecer regras
complementares ao acordado pelas partes para integrar o negócio jurídico, as quais
obrigam a um comportamento ético, leal e que seja direcionado ao esperado
cumprimento das obrigações.
Pela boa-fé objetiva, cumpre aos pactuantes observar conduta que não
é expressa mas esperada socialmente, ao mesmo tempo que outorga ao julgador a
obrigação de integração da conduta esperada no caso concreto a partir de critérios
encontrados no sistema jurídico, mas que, na maioria das vezes, também não está
individualizado na lei. Embora essas duas características aproximem a boa-fé
objetiva da função social do contrato, há traços importantes que as distinguem.
Theodoro Jr. chama atenção para o fato de que se o legislador cuidou de disciplinar
separadamente esses dois princípios, foi porque lhes reconheceu individualidade.
Explica que o terreno próprio da função social do contrato é o da modernização do
antigo e inflexível princípio da relatividade dos contratos. Os problemas do
comportamento ético entre os próprios contratantes, segundo o autor, não são
64 cuidados pela função social do contrato, mas pela boa-fé objetiva47.
Retomando as lições de Reale a respeito dos princípios que dirigem o
direito das obrigações no novo Código, Theodoro Jr. relaciona boa-fé com o
princípio da eticidade (em que se aplicam regras como a da lealdade e solidariedade
entre os pactuantes) e a função social com o da socialidade (pelo qual se deve
preocupar com a ordem econômica e com a ordem social, no plano exterior do
relacionamento travado entre os contratantes, ou seja, no plano do impacto do
contrato com terceiros ou com toda a comunidade)48.
Assim, é possível delimitar a boa-fé objetiva e função social da
seguinte forma: a) ofende-se a boa-fé objetiva quando o contrato ou a maneira de
interpretá-lo ou executá-lo redundam em prejuízo injusto para uma das partes; b)
ofende-se a função social do contrato sempre que os efeitos externos do contrato
prejudiquem injustamente os interesses da comunidade ou de estranhos ao vínculo
social49.
Essa distinção não reconhece a função social do contrato como
instrumento da concretização de princípios constitucionais de solidariedade e
dignidade humana.. Para se obter nas relações entre privados condutas que se
coadunem com valores comuns à sociedade, deve-se evitar a lesão a terceiros e,
também,reconhecer o contrato como inserido nos instrumentos de concretização de
valores comunitários.
É imprescindível que as relações interprivados não importem prejuízos
para terceiros e principalmente para a comunidade em que se insere. Mas isso não
47 THEODORO JR., Humberto, op. cit., p. 48-49. 48 Ibid., p. 49-50. 49 Ibid., p. 51
65 é suficiente num ambiente de solidarismo ambicionado. Ocorre que faz parte do
projeto constitucional comum que as relações entre os privados igualmente atuem
na produção de dignidade e igualdade também para aqueles que contratam. Numa
distinção restritiva da função social apenas para uma eficácia ultra partes, seria
possível que as avenças contivessem as mais indignificantes condições para um dos
contratantes, desde que o mesmo consentisse50.
Nessa hipótese, a distinção entre função social e boa-fé objetiva é
amortizada, pois ambas impõem condutas socialmente esperadas pelas partes, mas
a partir de valores diversos. A boa-fé refere-se a valores éticos, ambicionando a
lealdade das partes no cumprimento da obrigação: a eticidade é concretizada com
valores retirados do meio social, para que se estabeleçam os elementos que
permitirão o cumprimento da avença. A execução da função social é mais amplo e
condiciona o cumprimento do contrato a um projeto social amparado na dignidade
humana e no solidarismo.
É correto afirmar, portanto, que o princípio da boa-fé objetiva, previsto
nos artigos 187 e 422 do Código Civil, guarda relação com o princípio da eticidade,
na medida em que as regras de conduta dos contratantes devem buscar o alcance
da finalidade contratual conforme as legítimas expectativas das partes, de forma
cooperada e solidária. Já o princípio da função social do contrato, previsto no artigo
421 do mesmo diploma, está diretamente relacionado com o princípio da
socialidade, eis que o contrato não deve ser uma fonte de opressão econômica para
o devedor, na esteira de uma mera liberdade formal, mas sim, a um só tempo, um
instrumento de circulação de riqueza limitado pelo princípio da dignidade da pessoa
50 TEPEDINO, Gustavo, Direitos humanos e relações privada In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Temas de Direito Civil , p. 58.
66 humana, entendida a pessoa humana enquanto um ser coletivo e não um ente
individual, abstratamente considerado.
3.4. A função social do contrato e a equidade
O conceito da função social do contrato, além de amparado na quebra
do individualismo, da autonomia da vontade e na projeção de princípios de
dignidade humana e solidariedade, é muitas vezes lastreado na eqüidade51.
Com efeito, a noção de eqüidade é trazida na obra de Aristóteles
dedicada a Nicômaco. Nela, justiça e eqüidade não são idênticas em absoluto, nem
genericamente diferentes. A eqüidade, embora superior a uma espécie de justiça, é
justa em si; não é superior à justiça por ser genericamente diferente dela. Explica o
filósofo que a eqüidade, embora justa, não é justiça legal, mas sim uma retificação
da justiça legal. A natureza, portanto, da eqüidade é a retificação da lei onde esta é
imperfeita por causa de sua generalidade52.
Em Kant, a eqüidade não passa do Direito destituído de coerção: “uma
deusa surda que não pode reivindicar uma audiência de Direito”. Embora consiga
reconhecer um dever moral que lastreia a reivindicação com base na eqüidade, o
pensador alemão não vê como possa um juiz deferi-la apenas por esse fundamento.
O mal que dá origem ao pedido lastreado na eqüidade “só pode ser apresentado
diante de um ‘Tribunal da Consciência’, ao passo que toda a questão de Direito deve
51 NALIN, Paulo, Do Contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional , p. 223. 52 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco In MORRIS, Clarence (org.), Os Grandes Filósofos do Direito, p. 16.
67 ser levada perante um ‘Tribunal Civil”53.
Em grande parte contrariando o pensamento de Kant, há tendência
moderna de ampliação dos poderes do juiz; de exaltação de sua capacidade de
valorar fatos e situações, de modo responsável e autônomo, através de valorações
eqüitativas, a par do “direito estrito”. Roppo sinaliza esta tendência em disposições
do código civil italiano de 1942, inclusive com a possibilidade do juiz enriquecer e
precisar, com base na eqüidade, as determinações do regulamento contratual,
introduzindo-lhe previsões e associando-lhe efeitos objetivamente não recondutíveis
à vontade dos contratantes54.
Tal tendência, lembra Diniz, pode ser encontrada no artigo 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro, na medida em que outorga poderes ao
julgador de valorizar, na aplicação da lei, os fins sociais a que ela se destina e às
exigências do bem comum55.
Também a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 8º,
autoriza as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho a decidir por
eqüidade. Mas a ressalva celetista das hipóteses em que o julgamento por eqüidade
é permitido (apenas quando faltarem disposições legais ou contratuais) também é
reconhecida para os demais contratos. Nesse sentido, ressalva Roppo que a
valorização eqüitativa, associando efeitos não pretendidos pelas partes, apenas
opera para suprir as previsões lacunosas do texto, de modo a permitir o
prosseguimento do negócio e respeito substancial pelo que foi querido. Assim, não
cabe ao juiz a utilização de poderes de eqüidade para modificar o contrato e fazer
53 KANT, Immanuel, Filosofia do Direito In MORRIS, Clarence (org.), Os Grandes Filósofos do Direito , p. 241-242. 54 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 174. 55 DINIZ, Maria Helena, As lacunas no direito , p. 250-251.
68 derivar dele conseqüências contrárias à composição de interesses das partes56.
Em análise da distinção entre boa-fé e eqüidade, Cordeiro revela que
esta abriga duas acepções fundamentais: a primeira, de uma noção, de sabor
aristotélico, que, apelando às particularidades da questão real, permitiria corrigir
injustiças ocasionadas pela natureza rígida das regras jurídicas abstratas. Outra,
que prescindindo do Direito estrito, oferece soluções apenas baseadas na chamada
justiça do caso concreto. Em ambas, segue o autor, não há critérios objetivos que
possam informar a própria natureza da eqüidade, “a bitola material que, em última
análise, vai corrigir a regra estrita ou enquadrar o caso concreto sem auxílios”. O
intérprete não tem elementos seguros para a individualização, não absorve a
importância do sistema, não é submetido a qualquer controle57.
A decisão por eqüidade apresenta diferenças marcantes em relação à
aplicação da função social do contrato. Enumeramos quatro distinções
Primeiro, porque a eqüidade tem por objetivo singular a apresentação
de solução para o caso concreto esperado, sem qualquer pretensão de firmamento
de modelo para situações análogas vindouras. Tal como a boa-fé, a aplicação da
função social do contrato intenta uma solução para a situação singular que se
apresenta. Mas também possui vocação de ser generalizante, pois a opção de
atenção de aplicação sistemática do direito provoca a tendência de repetição.
Segundo, em vista do alcance dos institutos. Diante das restrições de
aplicação da eqüidade (lacunas na lei ou no regulamento), tem-se que o instituto não
se presta como instrumento com o qual possa o intérprete fazer valer o interesse
56 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 175-176. 57 CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no Direito Civil , p. 1198 ss.
69 público contra as escolhas da autonomia das partes que se revelem contrárias.58
Diversamente, a função social do contrato, significa a possibilidade de alteração no
estabelecido pelos contratantes, não simples e abstratamente em nome de um ideal
moral de justiça, mas para a concretização de interesses que ultrapassam a mera
soma de intenções individuais e que estão registrados constitucionalmente. Atua-se,
na função social, em nome de interesses de toda a comunidade, tendo a
principiologia do ordenamento como único limitador59.
Terceiro, pelas situações de invocação dos institutos. A eqüidade atua
supletivamente, de modo que apenas na falta de determinação voluntária das
partes, e com o fim de permitir a execução da avença, possa o juiz completar o
negócio. Como determinado no artigo 421 do Código Civil de 2002, o
condicionamento da função social não é supletivo ou secundário ao contrato, mas
fornece a própria razão do reconhecimento pelo ordenamento no estabelecido pelo
regulamento. A função social é protagonista do regulamento do contrato. Por fim,
pela fundamentação hermenêutica. O julgamento por eqüidade oferece soluções
baseadas apenas na justiça do caso concreto, sem critérios claros e demonstráveis
de sua própria natureza. O juiz transita sobre fundamentos inseguros, prescindindo
do reconhecimento do Direito como sistema. Tal não ocorre com o instituto
comparado: a função social do contrato, compreendida nas determinantes
axiológicas do Estado Social e da solidariedade que lhe é imanente, recebe desse
ideário seu lastreamento. Ainda que se tratem de valores de individualização por
atuação argumentativa do juiz – e dependem do correto manejo das ferramentas
próprias como forma de legitimação da decisão - estabelecem-se critérios
58 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 176. 59 PERLINGIERI, Pietro, op. cit., p. 51.
70 seguramente mais objetivos de aplicação.
3.5. A função social do contrato e os bons costumes
Na medida em que a ordem pública e os bons costumes, desde a
sistematização contratual liberal, atuaram como limitação à então ampla liberdade
individual no estabelecimento do regulamento contratual, é compreensível que haja
a confusão com a função social. Tratam-se de institutos que colocam a autonomia
dos privados submetida a interesses superiores. Mas também é necessário fixar as
distinções. Roppo relaciona a ordem pública com um complexo de princípios e
valores que informam a organização política e econômica da sociedade, numa certa
fase da sua evolução histórica e que, por isso, são imanentes ao ordenamento
jurídico do momento60.
Diniz diz que são normas de ordem pública “as que, em um país,
estabelecem os princípios indispensáveis à organização do Estado, sob o prisma
social, político, econômico e moral, seguindo os preceitos de direito”61.
Em síntese, os preceitos de ordem pública são princípios que se
relacionam com os interesses do Estado, voltados a sua organização política e
econômica de acordo com sua evolução histórica.
Quanto aos bons costumes, Larenz os identifica como regras morais
reconhecidas pela comunidade jurídica, atuando como limite imanente da liberdade
moral objetiva e que se explica por si mesma; relaciona-se a razões de conteúdo
60 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 179. 61 DINIZ, Maria Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interp retada , p. 362.
71 moral, de consciência62.
Remetem a critérios metajurídicos, mas que são homogêneos em
determinado grupo social. Rodrigues conceitua como “regras morais não reduzidas a
escrito, mas aceitas pelo grupo social e que constituem o substrato ideológico
inspirador do sistema jurídico”63.
Os bons costumes estão amparados em explicações morais de dada
sociedade e, dessa forma, limitados em seu conteúdo e extensão temporal. A
diferença que se estabelece entre ordem pública, em específico, e função social,
pode ser encontrada na tutela de interesses de primeira geração e os de terceira
geração: a ordem pública corresponde ao primeiro, próprio do Estado Liberal,
enquanto a função social significa a proteção de interesses que ultrapassam os dos
figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais
homogêneos. O Estado Social, na intenção de promover valores de solidariedade,
utiliza-se da função social na imposição de condutas úteis a esse fim.
A função social, a ordem pública e os bons costumes possuem em
comum a limitação individual na fixação das obrigações, estabelecendo-se a
diferença no conteúdo da origem dessas restrições. Os dois primeiros seguem os
interesses próprios da organização política do Estado. A função social é produto de
outra época; é orientada pelos ideais do Estado Social, de modo que a função a que
o Estado então se arvora é de garantidor, não apenas de interesses próprios, mas
voltados a cada um dos indivíduos que o compõem. Por esse motivo, a preocupação
passa a ser que a felicidade de cada sujeito não seja barrada por interesses
62 LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones , p. 75. 63 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: dos contratos e das declarações unil aterais de vontade , p.17.
72 individuais instrumentalizados no negócio jurídico.
A função social dos contratos, portanto, não afasta a necessidade de
observância de ordem pública e bons costumes. Principalmente em relação à ordem
pública é possível dizer que é instrumentalizada pela função social. Sendo os
valores de dignidade humana e sociabilidade que disciplinam a organização política
e econômica do Estado, funcionam como orientadores da ordem pública.
3.6. A função social da propriedade
O direito de propriedade sofre grande alteração em sua estrutura
considerando a ótica da funcionalização social. Duguit sustenta que o direito de
propriedade só deve ser concebido como o poder, para certos indivíduos que se
encontram numa certa situação econômica, de desempenhar livremente a missão
social que lhes incumbe por virtude da sua situação especial de proprietários. Nessa
concepção, a propriedade individual deve ser compreendida como um fato
contingente, produto momentâneo da evolução social; e o direito do proprietário,
como justificado e ao mesmo tempo limitado pela missão social que lhe incumbe, em
conseqüência da situação particular em que se encontra64.
Há, por certo, correlação entre função social do contrato e função
social da propriedade, considerando que contrato e propriedade privada são
institutos que fundamentaram o liberalismo e continuam a lastrear o capitalismo. O
iluminismo nasceu com a proposta de libertação do homem da superstição, da
tradição e das corporações. Tratou-se da matriz apropriada pela burguesia para a
64 DUGUIT, Leon, Fundamentos do Direito , p.26.
73 construção do liberalismo não intervencionista do Estado. Na mesma medida e
importância se colocavam a propriedade e a liberdade contratual como direitos
absolutos dos particulares. A funcionalização de propriedade e contrato significa a
diminuição da importância da esfera individualista, na afirmação de supremacia de
valores de importância comunitária para a sociedade.65
A relação entre contrato e propriedade é estudada por Roppo, para
quem é impossível o estudo do contrato, sem analisá-lo com o instituto privatístico
fundamental da propriedade. Apenas assim, é possível individualizar as conexões
funcionais e a posição recíproca no sistema que possuem66.
Em relação com a propriedade, o Códe reafirmou o caráter de
subordinação e instrumentalidade do contrato: a propriedade era a categoria chave
de todo o processo econômico e fruição de suas utilidades, enquanto o contrato
tinha o papel – complementar – de simples meio para sua circulação67.
Com a progressão do capitalismo e complexificação das operações
econômicas, abre-se um processo de mobilização e desmaterialização da riqueza,
que tende a tirar do direito de propriedade a supremacia entre os instrumentos de
controle e gestão da riqueza. Num sistema capitalista desenvolvido, a riqueza não
se identifica apenas com as coisas materiais e com o direito de usá-las; ela consiste
também, e sobretudo, em bens imateriais, em relações, em promessas alheias e no
correspondente direito de outrem68.
Importa considerar que essas formas de riqueza imaterial têm, na
65 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e da propriedade contempor ânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural , p. 19. 66 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 63. 67 Ibidem, p. 64 68 Ibidem, p. 65
74 maioria das vezes, sua fonte num contrato. Num curto sentido, os bens imateriais
são assimiláveis ao direito de propriedade. O contrato, assim, transforma-se
profundamente sua relação com o contrato, pois este não apenas transfere a
propriedade, mas também a cria. Conclui Roppo que, num sistema capitalista
avançado, parece ser o contrato, e já não a propriedade, o instrumento fundamental
de gestão dos recursos e de propulsão da economia69.
Como se vê, as relações de subordinação e instrumentalidade,
formadas entre contrato e propriedade, dão lugar a uma preponderância da primeira
característica. A propriedade primitiva foi o mais remoto antecedente da utilização
social da propriedade, ainda que não se pudesse afirmar que houvesse um conceito
de função social da propriedade, como hoje é concebido. Mas com a alteração do
papel do contrato na produção – e não apenas de circulação de riqueza – sua
funcionalização passa a ser não apenas uma decorrência da função social da
propriedade, mas de superioridade no projeto de sociabilidade.
Ainda que timidamente, o Direito positivo brasileiro registra a função
social da propriedade. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) foi a primeira legislação
nacional a utilizar a expressão função social da propriedade, em seus artigos 2º,
caput e 12, afirmando que a propriedade deve ter uma destinação social.
O Código Civil Brasileiro segue nessa trilha, a qual já vinha sendo
anunciada pelo texto constitucional. O legislador, na formação do artigo 421 do
Código Civil, claramente se inspirou na Constituição Federal de 1988, para qual a
propriedade tem função social. A Constituição da República Federativa do Brasil
assegura o direito de propriedade em seu artigo 5º, XXII, mas em paralelo refere no
69 Ibidem, loc. cit.
75 inciso XXIII que a “propriedade atenderá à sua função social”. Também o artigo 170
estabelece a função social da propriedade como princípio da ordem econômica.
Finalmente, o artigo 186 da Carta Magna brasileira enumera os requisitos para que a
propriedade rural observe a sua destinação social.
Em derradeiro, o Código Civil Brasileiro de 2002, também faz
referência à função social da propriedade, dispondo no artigo 1.228, §1º, in verbis:
O direito de propriedade deve ser executado em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna e as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Na perspectiva constitucional, o direito de propriedade é
prioritariamente conformado pela idéia da função social. Silva destaca que a
propriedade deve ser encarada pelo intérprete em constante consonância com sua
fundamentação na função social, incidindo tanto sobre os fundamentos dos poderes
do proprietário, como sobre o modo com que o conteúdo do direito vem
positivamente determinado. Segundo o autor, a função social se manifesta na
própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente
como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e
utilização dos bens. Também reconhece que o princípio da função social da
propriedade não suprime legislativamente a propriedade privada, mas faz com que
ela não possa mais ser vista como um mero direito individual70.
Vê-se que a função social da propriedade relaciona-se a um poder de
destinação da propriedade, a um objetivo determinado pela sociedade. Nesse
70 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo , p. 274-275.
76 sentido, impõe-se ao proprietário uma série de deveres positivos, e não apenas de
restrição à ação do mesmo Trata-se, segundo Comparato, de um direito-meio e
não direito-fim: não é concebida como valor imanente de se dotar a propriedade de
um fim social, mas como instrumento de proteção de valores fundamentais71.
Em relação ao alcance da função social da propriedade, deve-se
pensar além do mero economicismo. A afirmação de que somente os bens
produtivos têm uma função social é desmentida pelas disposições constitucionais
acerca da matéria. Tratam-se as normas dos artigos 170 e 186 de enunciados
próprios à propriedade com valor econômico, mas não há tal distinção no
estabelecido no artigo 5º, XXIII. Como leciona Perlingieri, a afirmação generalizada
de que a propriedade privada tem função social não consente discriminações e
obriga o intérprete a invidividuá-la em relação à particular ordem de interesses
juridicamente. A ordem constitucional, portanto, funcionaliza não a propriedade
imóvel, mas a integralidade dos bens economicamente valorados72.
Ambos os institutos, função social da propriedade e do contrato não
constituem sacrifício à liberdade individual. Do mesmo modo que a funcionalização
do contrato não extingue a autonomia privada, também a nova compreensão da
propriedade, socialmente funcionalizada, mantém o direito dos particulares
transmitirem livremente seu bem. A previsão é de que interesses coletivos devem
axiologicamente se sobrepor às satisfações perseguidas pelos privados. Nesta
perspectiva solidarista e funcional, o proprietário não pode realizar um ato que lhe dê
uma vantagem mínima para criar uma grande desvantagem ou dano a outro73.
71 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção In Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financei ro , p. 79 72 PERLINGIERI, Pietro, op. cit., p. 230. 73 Ibid., p. 233-234.
77
A matriz constitucional da função social da propriedade atinge a
definição da função social do contrato. Como lembra Martins-Costa com base em
observações de Reale, a função social do contrato representa, verdadeiramente,
uma projeção da própria função social da propriedade74.
Nessa perspectiva, contrato e propriedade são funcionalizados
seguindo-se a mesma matriz constitucional, atuando na proteção da personalidade
humana e da sociedade75.
3.7. A função social da empresa
O aspecto da função social da empresa que será analisado refere-se à
sua responsabilidade social, considerando que o fenômeno empresarial não fica, no
Estado Social, alienado e divorciado dos valores da sociabilidade. A atividade
empresarial tem significado privilegiado na organização social capitalista76.
Certo é que, na medida em que integra o esforço de geração de
emprego, tributo, valor, consumo, produto, serviço, inovação e renda, insere-se
privilegiadamente nas estruturas sociais. Mas as imbricações das iniciativas
empresárias aos interesses gerais da comunidade e a sua própria integração em
projetos coletivos são questões ainda nebulosas. O balizador mais importante está
no reconhecimento de que, na medida em que a propriedade teve seu conceito e
seu significado relativizados, a empresa também, e de um modo geral, não pode ser
74 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro , p. 57. 75 MANCEBO, Rafael Chagas, A função social do contrato , p. 26-27. 76 DALLEGRAVE NETO, José Affonso, A responsabilidade civil no Direito do Trabalho , p. 269
78 considerada como mero direito individual, em face da finalidade econômica que o
mercado lhe atribui489. A função social da empresa é fenômeno do Estado Social.
Essa nova visão afeta o mundo empresarial, pois o conceito constitucional de
propriedade passa a ser mais amplo que o conceito tradicional do Direito Civil,
abrangendo também o poder de controle empresarial.
A vinculação da empresa aos projetos coletivos é mais intensamente
verificada na atividade financeira, vez que afeta de forma mais direta o ente estatal.
Identifica Facchini Neto que, sob o ângulo da função social da empresa, pode ser
explicada a outorga de poderes à Comissão de Valores Mobiliários – CVM – para
intervir no mercado de ações, assegurando o equilíbrio entre os participantes,
impondo obrigações às empresas que têm títulos negociados no mercado de
capitais e restringindo a autonomia privada dessas sociedades mercantis. Segundo
o autor, a ingerência estatal no mercado de capitais, através da CVM, mostra-se
justificada apenas para que a empresa, como a propriedade e o contrato, atenda à
sua função social e não apenas aos interesses dos sócios.
Mas pode-se também avançar na afirmação da ligação da iniciativa
empresarial a interesses não meramente econômicos. Não se aceita, na perspectiva
exposta por Lobo, o discurso hegemônico da economicidade, típico da empresa
tradicional, em que a função do empreendimento se reduz à criação de valor para
seus sócios. A própria incapacidade política do Estado brasileiro de implementação
em efetivo de um estado de bem estar social acarreta um aumento do terceiro setor
e incentivo à colaboração da sociedade civil para a solução de questões sociais.
Nesse contexto, há o fortalecimento da concepção de empresa socialmente
responsável, em que a responsabilidade social do empreendimento é ordinariamente
associada à comunicação das relações produtivas com as obrigações estatais.
79
A obrigação estatal de cuidar da dignificação da vida dos indivíduos
passa a ser também projeto compartilhado pela iniciativa empresarial. Gomes
identifica que são os graves problemas que atualmente atingem os assalariados e
produzem desemprego estrutural que determinam que a dinâmica empresarial deve
ser orientada em favor do ser humano e do bem comum. Sob esse ângulo, o caráter
institucional da empresa – enquanto organização de pessoas para um fim comum –
tem justificativa no fato de que o trabalho de todos redunda em proveito direto dos
membros da sociedade civil.
A função social da empresa está ligada à função social da propriedade
e função social dos contratos, na medida em que a empresa interage com esses
dois institutos. Esse reflexo possui fundamental importância no Direito do Trabalho,
pois a identificação do empregador com a noção de empresa, assegurada pelo
próprio artigo 2º da CLT, implica irrefutavelmente a exigência de cumprimento de
sua função social.
A empresa, compreendida como concretização da iniciativa privada,
somente receberá tutela jurídica quando atuar em favor de seus empregados,
valorizando o trabalho humano. Nesse sentido, compreende Dallegrave que, como
forma de combater o desemprego estrutural, a função social da empresa deve ser
formada na atuação para concreção dos valores constitucionais do trabalho: o
cumprimento integral dos direitos trabalhistas (art. 7º), política de geração de pleno
emprego (art. 170, VIII) e procurando evitar, na medida do possível, a substituição
do trabalhador pelos agentes de automação (art. 7º, XXVII).77
É, portanto, no Direito do Trabalho, que a função social da empresa e
77 DALLEGRAVE NETO, op. cit., p. 269-270.
80 do contrato apresentam maior dificuldade, notadamente pela situação de prevalência
da empresa-empregadora na definição do regulamento do contrato de trabalho.
81
4. O CONTRATO E O DIREITO DO TRABALHO
Inicialmente impõe considerar que foi necessário abordar a figura do
contrato, de forma geral, bem como sua função social, para direcionar a pesquisa
para uma modalidade específica e que representa o objetivo deste estudo, qual seja,
o contrato de trabalho.
Os mecanismos de regulação estatal das relações de trabalho
desenvolveram-se a partir de uma lógica não dissociada dos valores ideológicos que
acompanharam a formação dos contratos em geral. Entretanto, a relação de
emprego tem características próprias, eis que traz a presença de uma massa
relativamente homogênea na sua formação - os trabalhadores – com características
próprias, a merecer importância o seu enquadramento na conservação do sistema
econômico.
Embora o Direito do Trabalho faça parte do Direito Obrigacional, deve
ser estudado a partir de uma perspectiva singular, eis que possui princípios próprios
e diversos dos que valem para o Direito comum. Pode-se dizer que o Direito do
Trabalho possui um microssistema comandado pela Consolidação das Leis do
Trabalho, a qual surgiu para dar-lhe autonomia legislativa, assegurando, desde o
princípio, a adoção do Direito Comum como fonte subsidiária, como vem expresso
em seu artigo 8º, parágrafo único. Ainda que integre o universo do Direito
Obrigacional, esse ramo do direito deve ser analisado sob a ótica que lhe é própria,
eis que possui princípios e regramentos específicos, o que é natural, eis que
deslocou-se do Direito Civil pelo curso da história a partir de Revolução Industrial.
82 Passou a constituir um ramo autônomo, pela necessidade de tutelar as relações
entre capital e trabalho com as características que lhes são inerentes, preservando-
as da influência dos valores liberais da época.
Não se trata de um Direito isolado mas que necessita ser
complementado por outros diplomas do ordenamento jurídico. A subsidiariedade do
Direito Civil inserida no diploma segue uma fórmula ideológica, com a finalidade
inicial de preservação da influência dos valores liberais previstos no Código Civil de
1916, de índole individualista, foco esse alterado pelo Código Civil de 2002 que
avançou para a sociabilidade, exaltando os valores morais.
Assim, o avanço do Direito Civil com o advento do Código de 2002, traz
ao dispositivo celetista nova perspectiva e abre novos caminhos, permitindo a
reconstrução do contrato de trabalho à luz dos valores constitucionais e
sociabilização das obrigações. O artigo 8º, parágrafo único, da CLT, por certo, abre
uma porta para a aplicabilidade do artigo 421 do Código Civil nas relações de
emprego.
No Brasil, a Constituição de 1988 é a primeira a incluir os direitos
sociais nos direitos fundamentais, anteriormente concentrados no capítulo que trata
da ordem econômica social. O trabalho, assim, em conjunto com os princípios que
visam proteger a pessoa humana, foi elevado à condição de valor social, um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo. 1º, IV), sua valorização está
prevista como fundamento da ordem econômica (artigo 170) e prioridade da ordem
social (artigo 193).
Nesse contexto, considerando os elementos históricos, será possível
percorrer o caminho da reconstrução da contratualidade trabalhista e compreender
83 os limites de sua conformação.
4.1. A evolução do Direito do Trabalho
Na Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, a passagem do
trabalho escravo para o modelo de utilização de labor subordinado acarreta a
passagem do modelo de trabalho por conta alheia baseado na tutela para o
paradigma do contrato, eis que a vinculação do indivíduo trabalhador aos meios de
produção não ocorria por qualquer manifestação volitiva ou opção pessoal, mas
através das corporações a que estava ligado, ou a partir das redes geográficas de
tutela, principalmente os burgos e as paróquias, circunstâncias que determinavam
as condições de proteção e determinações de trabalho.
O princípio do modo de organização que vai se impor com o livre
acesso ao trabalho surge com o iluminismo do século XVIII, em que o ideário de
liberdade individual transforma-se em liberdade de contratar. O trabalho torna-se
fonte de toda a riqueza e, para ser socialmente útil, deve ser reorganizado a partir
dos princípios da nova economia política. A separação dos vínculos feudais tinha por
objetivo que a terra, o feudo, deixasse de significar elemento de vinculação do
homem, exigindo a circulação dos bens imóveis, de forma que a terra também
participasse das regras de mercado. No segmento do trabalho também era permitido
que a burguesia explorasse o trabalho individual pelo preço que fosse ofertado,
passando a ser oferecido o trabalho operário em praças, livre da vinculação dos
status outorgados pelas corporações. A condição do assalariado antes a transição é
a de miséria material, necessidade, dependência e subcidadania.
84
O imperativo da liberdade do trabalho surgirá com o liberalismo, que
implicará a destruição dos meios de organização do trabalho até então dominantes,
o trabalho regulado (corporações) e o trabalho forçado (servidão da gleba). Há uma
composição de interesses, eis que os operários têm a necessidade de trabalhar para
garantir sua sobrevivência; enquanto a burguesia busca dispor livremente de toda a
força de trabalho disponível. Nesse sentido, o contrato de trabalho e livre acesso ao
mercado assumem postura de libertação de uma ordem de intensas coerções.
Os objetivos liberais individualistas passam a reger a forma de
organização do trabalho, transformando o trabalho humano em mero fator de
produção, condicionado ao mercado de forma estrutural. A força de trabalho era
considerada matéria de troca formalmente igual e com livre contratação, sendo que
a ligação do operário aos meios de produção só vai ocorrer com a declaração de
liberdade do trabalho, reconhecendo-se o operário como proprietário de sua força de
trabalho, o qual recebe um status diferente, o de sujeito de direito, podendo inserir-
se formalmente como figura ativa no mercado. A transação deixa de ser regulada
por sistemas de coerções ou de garantias externas à própria troca. . O livre contrato
de trabalho foi imposto aos trabalhadores numa relação de dominação política; na
promessa não só de que os operários estariam mais protegidos que nas formas
tradicionais de trabalho, como também teriam na liberdade a garantia da felicidade.
Assim, antes do período da modernidade não há falar em relação de
trabalho subordinado, o qual só adquiriu tal característica quando o trabalho humano
passou a ser considerado mercadoria, passando a enquadrar-se nos modelos civis
já conhecidos. O contrato de trabalho, portanto, é instituto recente, que apenas será
consolidado no Direito no final do século XIX e início do XX.
Para visualizar a evolução do Direito do Trabalho no mundo e no Brasil,
85 a título de ilustração, adotamos a elucidativa esquematização feita por Souza:78
Fases do desenvolvimento do Direito do Trabalho legislado europeu-
ocidental:
a) 1ª fase (início do séc. XIX): restrições ao trabalho de menores e
mulheres; leis de caráter humanitário. Legislações de caráter disperso e
assistemático.
b) 2ª fase (de 1848 ao início da I Guerra Mundial): Sistematização e
consolidação das leis protetivas. Influência do Manifesto Comunista e do movimento
socialista de organização dos trabalhadores. As reivindicações são
institucionalizadas na ordem jurídica, com inúmeras legislações sistematizadas
próprias à tutela das relações de trabalho.
c) 3ª fase (após a I Guerra Mundial). Institucionalização e oficialização
do Direito do Trabalho, em especial com a inserção da matéria em Cartas
Constitucionais. São emblemáticas as Constituição Mexicana de 1917 e a Alemã
1919 (Weimar). Também é o período de internacionalização do Direito do Trabalho,
com a criação da OIT, em 1919, pelo Tratado de Versalhes. A legislação trabalhista
ganha consistência e autonomia no universo jurídico.
d) 4ª fase (final do séc. XX). Crise e transição do Direito do Trabalho.
Diversos fatores econômicos e sociais são arrolados, como crise do petróleo a partir
da década de 70, constantes déficits fiscais do Estado, renovação tecnológica e
vitórias eleitorais de forças representativas do neoliberalismo. Como efeito da
flexibilização há a desregulamentação e precarizaçäo do trabalho, sendo importante
o Direito Internacional para a formação do Direito do Trabalho nacional. Como
78 Souza, Rodrigo Trindade, op. cit., p. 88-92.
86 registra Süssekind, a OIT, com a ação desenvolvida desde 1919, tornou-se uma das
mais respeitáveis e inesgotáveis fontes do novo ramo do Direito79.
Fases do desenvolvimento do Direito do Trabalho no Brasil:
a) Pré-história. A Constituição de 1824 aboliu as corporações de ofício
para assegurar a liberdade de exercício de ofícios e profissões. São proclamadas
diversas leis tendentes à abolição de escravidão: Em 1871, Lei do Ventre Livre;
1885, Lei dos Sexagenários; 1888, Lei da Abolição.
b) 1ª fase (1888 a 1930). Manifestações incipientes e esparsas. De
modo relevante, é apenas na agricultura cafeeira e na industrialização incipiente que
verifica a relação empregatícia. Há pouca atuação coletiva dos trabalhadores e
intensa imigração de europeus, trazendo idéias socialistas. Poucas iniciativas de
regulamentação pelo Estado (liberalismo não intervencionista). Constituições liberais
clássicas. A Constituição de 1891 garante a liberdade de associação. Pequenos
agrupamentos de trabalhadores, chamados de ligas operárias, com caráter
reivindicativo de melhores salários e redução da jornada (trabalhadores do couro,
costureiras, madeira). Também há formação de caixas beneficentes para formação
de fundos para assistência de trabalhadores doentes. Ocorrem greves esporádicas,
principalmente em São Paulo. Promulgam-se as seguintes leis: regulação de
trabalho de menores (1891), organização de sindicatos rurais (Dec. 979 de 1903),
organização de sindicatos urbanos, reunindo profissionais de ofícios similares ou
conexos (Dec. 1.637 de 1907).
c) 2ª fase (1930 a 1945). Institucionalização do Direito do Trabalho.
Com a Revolução de 30, se inicia intensa atividade administrativa e legislativa do
79 SÜSSEKIND, Arnaldo, Princípios de Direito do Trabalho In SÜSSEKIND, Arnaldo et al, Instituições de Direito do Trabalho , p. 143.
87 Estado. Produz-se minuciosa legislação com controle do sistema justrabalhista pelo
Estado e repressão dos movimentos autonomistas operários. Em 1930 é criado o
Ministério do Trabalho, o qual passa a expedir decretos. As seguintes leis são
criadas:
1930: Decreto 19.482 (Lei dos 2/3). Restrição ao trabalho de
estrangeiros, com objetivo de sufocar manifestações operárias autonomistas.
1931: Decreto 19.770 (Lei dos Sindicatos). Criação de estrutura de
sindicalismo oficial único (colaborador do Estado). Os sindicatos deixam de ser
pessoas jurídicas de direito privado. Veda-se atividade política e de propagando
ideológica.
1932: Decreto 21.396. Estabelecimento de sistema judicial de solução
de conflitos com as Comissões mistas de conciliação e julgamento. Regulamentação
do trabalho das mulheres.
1934: É promulgada a primeira Constituição a tratar sobre o Direito do
Trabalho. Estabelece-se garantia liberdade sindical (art. 120), isonomia salarial,
salário mínimo, jornada de 8 horas, proteção ao trabalho das mulheres e menores,
RSR, férias remuneradas (§ 1o do art. 121). Hiato de pluralidade sindical e
autonomia; sindicatos voltaram a ser pessoas jurídicas de direito privado.
1936: Decreto sobre o salário mínimo.
1937: Constituição Federal de cunho eminentemente corporativista,
inspirada na Carta del Lavoro, de 1927 e na Constituição polonesa. O art. 140 referia
que a economia era organizada em corporações, sendo consideradas órgãos do
Estado, exercendo função delegada de poder público284. Instituiu o sindicato único,
imposto por lei, vinculado ao Estado, podendo haver intervenção, mas,
88 contraditoriamente, afirmava que “a associação profissional ou sindical é livre”.
Criação do imposto sindical, como forma de reforçar a submissão ao Estado. A
greve e o lockout foram considerados recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao
capital e incompatíveis com os interesses da produção nacional (art. 139). Para
desenvolver seu programa econômico e dominação política, era imprescindível ao
Estado evitar a luta de classes.
1943. Consolidação das Leis do Trabalho. Alterou, reuniu e ampliou a
legislação trabalhista.
1946. Constituição de 1946. Hiato democrático. Extinto o Estado Novo,
emergiu a Constituição de 1946, que outorgou à Justiça do Trabalho o status de
órgão do Poder Judiciário. O direito de greve foi reconhecido, mas se manteve o
sindicato atrelado ao Estado.
1964. Ditadura. Na nova fase autoritária. A greve e a atividade sindical
voltam a ser reprimidas. Constituição de 1967, com a emenda de 1969, diminuiu o
limite de idade para trabalho de 14 anos para 12 anos, em retrocesso social.
Reconhece-se nesse período ausência de maturação político-judicial, substituída por
uma matriz corporativa e intensamente autoritária. Resultou um modelo fechado,
centralizado e compacto. O sistema manteve-se praticamente o mesmo até pelo
menos 1988.
e) 3ª fase (final dos anos 80). Transição democrática. Com a Carta de
1988, buscou-se a superaçäo democrática do modelo anterior, vedando-se a
intervenção nos sindicatos. Inclusão dos direitos trabalhistas no rol dos “direitos
sociais”, no título “dos direitos e garantias fundamentais”. Nas constituições
anteriores, estavam sempre no âmbito da ordem econômica e social. O art. 7o é
89 uma “mini CLT”, tantos são os direitos lá albergados. Representou avanço social na
afirmação da importância da negociação coletiva, redução da idade mínima de
trabalho, adicional de horas extras e férias, extensão de direitos aos domésticos;
também assegurou o direito de greve e liberdade sindical. O período inaugurado
também marca uma intensa atividade legiferante do Estado, não raro com diplomas
contraditórios.
Assim, o modelo contratual adotado pela legislação trabalhista no
Brasil é fruto do dirigismo estatal, positivado pelo artigo 444 da CLT, ao assegurar
que as relações contratuais podem ser objeto de livre estipulação entre as partes,
desde que não haja contrariedade às disposições de proteção ao trabalho, aos
contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades
competentes.
4.2. O contrato de trabalho. Considerações
O Direito do Trabalho desprendeu-se do Direito Civil, consagrando sua
principal característica, qual seja, a de limitar a autonomia da vontade, concebendo
o trabalhador como dotado de patrimônio, consistente na sua força de trabalho.
Assim, o contrato de trabalho, a princípio, não possui uma função social eis que sua
finalidade precípua é a de fornecer mão-de-obra ao empregador proprietário.
Em nosso sistema jurídico, o contrato de trabalho é idealizado
considerando o trabalhador como sujeito detentor de direitos subjetivos amparados
na vontade, buscando substituir a violência privada pela dominação legal. O modelo
de legislação adotado para regular as relações de trabalho, com limitação da
90 autonomia da vontade demonstra uma tendência voltada ao Estado Social, com
acentuada intervenção legislativa, outorgando proteção jurídica nos limites do
patrimônio a ser resguardado.
Considerar que a relação de emprego é dotada de direitos que possam
exceder a previsão da legislação tutelar e que migrem da concepção patrimonialista
para a tutela da dignidade humana não encontra ressonância no microssistema
trabalhista e só será possível a partir de uma visão sistemática do Direito,
considerando o trabalhador como detentor de direitos que não apenas os
decorrentes da propriedade.
Nessa linha, impõe considerar que a relação de emprego não pode ser
concebida como função puramente econômica, haja vista a impossibilidade de
desvinculação de interesses não proprietários, plenamente inseridos nessa relação
de troca. A Carta Política de 1988, ao atribuir dignidade humana ao contratante, não
encontra nos direitos subjetivos patrimoniais de crédito e débito os contornos mais
adequados para o perfil da relação jurídica obrigacional. O próprio Direito Civil deve
ser revisto, a partir da garantia de respeito à dignidade humana.
Nalin bem acentua que o valor jurídico maior a ser tutelado, conforme
atual noção da justiça contratual, é o equilíbrio, animado pelo cânone constitucional
da solidariedade. A atuação revisionista, a ser operada pelo Judiciário encara o
desenrolar dos fatos econômicos de forma subjetiva.80
Assim, impõe considerar que o contrato de trabalho não pode ser visto
apenas sob o prisma econômico, devendo ser analisado sob a ótica econômico-
social, tanto como instrumento de proteção dos trabalhadores, diante da exploração
80 NALIN, Paulo, Do Contrato , p. 202.
91 a que são submetidos, quanto meio de preservação do próprio sistema capitalista, o
qual fixa o regramento de uma específica forma de produção.
Em decorrência, a legislação trabalhista obsta a melhoria das relações
de trabalho ao restringir as tutelas direcionadas aos trabalhadores, sem identificá-los
como detentores de direitos fundamentais baseados no ser e não apenas no ter.
Entretanto, como analisa Souza, a despatrimonialização do Direito
Obrigacional alcança o Direito do Trabalho, afastando sua visão primordialmente
economicista. Também é redirecionado para o respeito da dignidade humana e
compreensão de que a força de trabalho não pode ser economicamente valorizada
na desvinculação com o sujeito trabalhador81.
Nesse sentido, alerta Coutinho que se o contrato de trabalho serve à
circulação de serviços, produção de riqueza e elemento de organização produtiva
capitalista, baseada na propriedade privada, é igualmente seguro que “não se pode
restringir o fenômeno negocial a uma interpretação e análise somente econômicas,
sob pena de manter-se dentro da racionalidade do mercado”82.
Tais considerações permitem concluir que o contrato de trabalho não
deve se limitar aos interesses individuais dos contratantes, mas a servir aos
interesses sociais e guardar relação com o equilíbrio entre direitos e obrigações, o
que representa uma mudança de foco para o cidadão trabalhador e para os valores
éticos da sociedade.
81 SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 97. 82 COUTINHO, Aldacy Rachid, Função social do contrato individual de trabalho In COUTINHO, Aldacy Rachid; DALLEGRAVE NETO, José Affonso, Transformações do Direito do Trabalho – Estudos em homenagem ao professor João Régis Fassbender Tei xeira , p. 47.
92
4.3. O contrato de trabalho como relação jurídica n egocial
Dizer de que a relação de emprego se desenvolve a partir de um
contrato, na forma concebida pelo Direito Civil, não é unânime. A função social,
como concebida pelo artigo 421 do Código Civil tem por base a existência de um
contrato. Assim, para que se reconheça que a relação jurídica de trabalho
subordinado possa cumprir sua função social, impõe, antes, que se considere a
relação de emprego instrumentalizada por uma espécie de negócio jurídico, o
contrato de trabalho.
Surgiram diferentes interpretações sobre a natureza do vínculo que se
forma entre as partes envolvidas em uma relação de emprego, uma sustentando e
outra negando a sua condição de negócio jurídico.
Note-se que não há uma separação entre contrato e relação de
emprego, como se fossem duas situações estanques no plano jurídico. Para Mario
de la Cueva, o contrato é um acordo de vontades e a relação de emprego é o
conjunto de direitos e obrigações que se desenvolvem na dinâmica do vínculo, daí
usar a expressão contrato-realidade. Nesse caso, o contrato é a fonte da qual a
relação de emprego é o efeito que se consubstancia com a prestação material dos
serviços no complexo de direitos e deveres dele emergente mas de outras fontes
também, posição que Evaristo de Moraes também defende por entender que o
contrato é o pressuposto da relação, embora critique a palavra contra-realidade83.
Nascimento define a relação de emprego como sendo "a relação
83 MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de, Introdução ao Direito do Trabalho , p. 252.
93 jurídica de natureza contratual tendo como sujeitos o emprego e o empregador e
como objeto o trabalho subordinado, continuado e assalariado” 84.
O conceito de relação jurídica confirma a tese que não dissocia
contrato e relação de emprego, eis que representa uma relação social disciplinada
pela ordem jurídica, vinculando duas ou mais pessoas segundo uma hipótese
normativa.
Negócio jurídico é o ato previsto no mundo jurídico pelo qual uma ou
mais pessoas, em virtude de declaração de vontade, constituem uma relação
jurídica, segundo os limites legais. A vontade instaura o vínculo, cria a situação
jurídica e também pode subordinar os efeitos dessa situação a algumas cláusulas e
condições constantes da declaração e desde que inexistam proibições legais ou
disposições imperativas em outro sentido85.
O Código Civil de 1916 não previa a categoria do negócio jurídico,
como fez o Diploma Civilista de 2002, o qual trata da figura do negócio jurídico,
revelando que, em sua classificação geral, adota a posição dualista, pois distingue
negócio jurídico de ato jurídico lícito. Como categoria geral, as normas do negócio
jurídico também se aplicam às espécies do Direito Obrigacional, entre os quais, o
contrato. O Direito do Trabalho é reconhecido como espécie do Direito das
Obrigações, pois tem o contrato como figura central. É através do contrato de
emprego que se concretizam todas as outras fontes normativas desse ramo da
ciência jurídica: da Constituição ao regulamento de empresa86.
O contrato é definido por Roppo como “uma declaração de vontade
84 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho , p. 500. 85 NASCIMENTO, Amauri Mascaro, op. cit., p. 545. 86 MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de, op. cit., p. 201.
94 dirigida a produzir efeitos jurídicos”87. Como forma de simplificação e racionalização
da linguagem jurídica, a vontade88 é elevada como fonte criadora no mundo jurídico
de direitos e obrigações.
A Consolidação das Leis do Trabalho não define o contrato de
emprego, sendo que no contexto dos artigos 2º e 3º encontramos a identificação das
figuras do empregado e do empregador que compõem essa modalidade de contrato.
A larga regulamentação estatal no estabelecimento de um contrato mínimo legal
cogente e irrenunciável diminui consideravelmente as matérias que podem ser
objeto de livre pactuação entre empregado e empregador. A instrumentalização da
relação de emprego, conforme estabelecido no artigo 444 da CLT implica em
limitação da vontade para os contratantes. Desse traço marcante que demonstra a
pouca valorização do elemento volitivo, e que distingue a autonomia da relação de
emprego das demais relações jurídico-obrigacionais, decorre a crítica de alguns ao
contratualismo no trabalho subordinado.
Catharino apresenta com clareza as principais teorias sobre a
natureza da relação de emprego89:
a) Teoria anticontratualista. A vontade do empregado é extremamente
reduzida, limitando o liame obrigacional em um dever de fidelidade produzido a partir
do trabalho como fato. Numa lembrança das relações de status, mascara-se uma
concepção comunitária da empresa, de esforço conjunto para atingimento dos
interesses de produção. É evidente uma tentativa de mascaramento de luta de
classes e dominação, sob a idéia da colaboração entre iguais.
87 ROPPO, Enzo, op. cit., p. 46-47. 88 Ibid., p. 49. 89 CATHARINO, José Martins. Compêndio universitário de Direito do Trabalho , p. 225 ss.
95
b) Teoria acontratualista (paracontratualista). A relação de emprego é
determinada singelamente pela integração na empresa, num ato bilateral,
independentemente da formalização do contrato. Há semelhança com a opção
brasileira do artigo 442 da CLT, pois identifica a relação de emprego com o próprio
contrato.
c) Teorias contratualistas. A vontade é tida como essencial para o
estabelecimento da relação de emprego. O contrato de emprego é, portanto,
submetido aos princípios comuns dos demais contratos do direito privado. Omite-se,
todavia, que a essencialidade da prestação de trabalho, como forma de obtenção de
condições de sobrevivência, reduz intensamente a autonomia das partes.
d) Teoria institucional impura. Reconhece que a relação de emprego é
cada vez mais “estatutária”, diante da intervenção do estado no dirigismo das
condições mínimas, mas não nega a contratualidade da relação de emprego, na
singeleza da constatação da opção política de nosso tempo.
Conforme a doutrina da autonomia da vontade, a liberdade de contratar
estava lastreada na igualdade formal assegurada pelo ordenamento. O Direito
Obrigacional, herdeiro do liberalismo,parte do pressuposto da igualdade das partes;
sua origem repousa no conceito revolucionário-burguês de cidadão e na prévia
concepção ideológica de que todos são iguais perante a lei. No Direito do Trabalho,
as partes são desiguais, no sentido de que a desigualdade possa promover a
igualdade de oportunidades, transformando a realidade empírica em fato jurídico
conhecido90.
Tanto a liberdade quanto o negócio jurídico são institutos que têm
90 GENRO, Tarso Fernando, Introdução à crítica do Direito do Trabalho , p. 90-91.
96 influenciado sobremaneira o Direito do Trabalho brasileiro, inclusive no que respeita
à origem, desenvolvimento e extinção do contrato de trabalho91.
Nesse passo, ante a desigualdade de fato reconhecida, não é possível
afirmar uma ampla liberdade do indivíduo trabalhador no que tange à formação do
contrato de trabalho, à vontade de contratar, à escolha do co-pactuante e à fixação
do conteúdo da avença.
Larenz identifica situações em que, pela imposição da necessidade,
não se pode encontrar uma efetiva liberdade contratual quando o indivíduo está
impossibilitado de definir o conteúdo do pacto. Isso acontece quando a necessidade
impõe a formação do pacto, como nos contratos com serviços públicos, proibição de
contratos que prejudiquem a moral e os bons costumes e obrigações de contratar
derivadas da economia dirigida.92
A exigência da vontade, sob tal ótica, representaria óbice à
caracterização do contrato de emprego como espécie de negócio jurídico. A
inaptidão do contrato clássico para regular o trabalho subordinado é suposição
inafastável, desde a consagração da própria autonomia do Direito do Trabalho.
Em tempos de retorno de velhas doutrinas liberais, a afirmação da
necessidade de proteção dos direitos dos trabalhadores também passa pela
reafirmação de que empregado e empregador não têm a mesma potência na
definição do regulamento contratual.
As críticas desses notáveis doutrinadores são válidas na importância
de afirmar o contrato de emprego com características próprias do restante do direito 91 BARACAT, Eduardo Milléo, A vontade na formação do contrato de trabalho: o problema do negócio jurídico In DALLEGRAVE NETO, José Affonso; Gunther, Luiz Eduardo, O impacto do novo Código Civil no Direito do Trabalho , p. 247. 92 LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones , p. 66-73.
97 obrigacional. Mas, como veremos a seguir, ao subtrair todo o elemento volitivo na
formação do vínculo de emprego, retira-se a importância do progresso do conceito
da autonomia privada sobre a autonomia da vontade. E, além disso, acaba por
render-se ao economicismo da relação de emprego, afastando o papel de dignidade
e emancipação para o trabalhador, conquistas que são alcançadas no respeito à
vontade do empregado contratado.
98
5. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE TRABALHO
5.1. A CLT como centro do Direito Laboral
Como já visto, o Direito do Trabalho desprendeu-se do Direito Civil
tradicional em face da ruptura que representou com os postulados básicos do
Estado Liberal, passando a constituir um ramo autônomo da ciência do direito que
cuida das normas jurídicas que disciplinam o trabalho subordinado, com princípios
próprios e diversos dos que valem para o Direito Comum, haja vista suas
conformações a partir da Revolução Industrial. Mesmo em se considerando tratar-se
de modalidade de Direito Obrigacional, precisa ser analisado a partir de suas
peculiaridades, considerando a necessidade de um ramo autônomo do Direito que
tivesse a missão de cuidar das relações entre a força produtiva e o poder
econômico, afastando as idéias jurídicas dominantes calcadas no Liberalismo
Individualista de submissão absoluta do contrato à autonomia individual.
A Consolidação das Leis Trabalhistas foi a fórmula encontrada no
século XX, para dar ao Direito do Trabalho autonomia legislativa, mas preservando,
como fonte subsidiária, o Direito Comum, instrumentalizado no Código Civil. Assim,
não se trata de um direito isolado mas um ramo da ciência jurídica que se
desenvolve adotando o Direito Comum naquilo que não contrarie os seus objetivos,
convivendo, no mais, com o ordenamento jurídico geral.
A previsão no Direito positivo brasileiro de subsidiariedade do Direito
Civil é objeto do artigo 8º, parágrafo único da CLT: “O direito comum será fonte
99 subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os
princípios fundamentais deste”. A doutrina, em geral, considera a CLT como um
desenvolvimento da disciplina codificada que conserva a natureza e função de
direito geral, admitindo que os princípios gerais que instruem a interpretação e
preenchem as lacunas da lei devam ser extraídos do Código Civil, considerado
como base dos princípios do Direito Obrigacional. Daí haver certo consenso na
doutrina nacional quanto a caracterizar o contrato de trabalho como sendo um
negócio jurídico, importando os pressupostos a ele aplicáveis.
No entanto, a característica do Código Civil de 2002 de avanço para a
sociabilidade confronta com as raízes individualistas do diploma de 1916. O rumo do
Direito Civil para a sociabilidade e impregnação de valores morais na disciplina do
Direito das Obrigações pode servir para que esses novos contornos do Direito
Comum possam influenciar o Direito do Trabalho. Nesse sentido, leciona a
juslaborista argentina Vásquez que a evolução que se tem visto fazer o Direito Civil,
durante a segunda metade do século XX, permite sustentar que já não existem as
tensões entre os princípios sociais do Direito do Trabalho e os princípios qualificados
pejorativamente como “individualistas” do Direito Civil93.
Em paralelo, também se abrem construções doutrinárias de superação
da compreensão das normas constitucionais como simples enunciados voltados
para o futuro e carentes de qualquer valor práxis. Como bem observa Marzukevic, o
Direito do Trabalho deve ser interpretado reconhecendo-se a aplicabilidade direta de
princípios constitucionais, numa atitude de comprometimento com a efetividade e
93 VÁSQUEZ, Gabriela Alejandra. El regreso al derecho civil para la protección del trabajador , p. 23.
100 igualdade material94.
Assim, o Direito Laboral não pode ser visto de forma isolada, não
sendo possível pretender que sua autonomia signifique uma modalidade de
independência para separação do Direito em geral. Como um ramo da ciência
jurídica dependente, o Direito do Trabalho deve voltar-se para os institutos de Direito
Civil que sejam compatíveis com seus objetivos e na proposta de concretização de
valores constitucionais.
Nessa linha, o princípio da função social do contrato, objeto do artigo
421 do Código Civil, pode ser adotado como instrumento precioso para a abertura
do sistema justrabalhista e inversão do critério hermenêutico dedutivo-axiomático
para indutivo-axiológico. Souza denomina essa perspectiva de permeabilização do
microssistema trabalhista95.
5.2. A aplicação do artigo 421 do Código Civil
Dúvida não há de que o Direito Comum é fonte supletiva do Direito do
Trabalho, tal como prevê o artigo 8º, parágrafo único, da CLT, inserido originalmente
para preservar o direito laboral da influência de valores liberais previstos no Código
Civil de 1916. Entretanto, o caminho percorrido atualmente pelo Direito Civil na
concretização de valores constitucionais e sociabilização das obrigações, permitem
que se atribua ao dispositivo uma nova importância e colaboram com a reconstrução
da contratualidade trabalhista.
94 MAZURKEVIC, Arion. A boa-fé objetiva: uma proposta para reaproximação do Direito do Trabalho ao Direito Civil In DALLEGRAVE NETO, José Affonso; GUNTHER, Luiz Eduardo, op. cit., p. 358. 95 Souza, Rodrigo Trindade de, op. cit., p. 141.
101
A perspectiva de aplicação do artigo 421 do Código Civil de 2002
também repousa na generalidade do Diploma. Como afirma Nalin, o diploma de
2002 tenta manter certa neutralidade às tantas relações interprivadas
contemporâneas, distanciando-se do modelo de leis interventoras que se seguiu à
Constituição de 1988. O efeito é que não há antecipação do determinado sujeito da
relação jurídica que recebe a tutela da lei geral96.
A não indicação prévia do sujeito, de forma intencional, permite que a
adoção dos comandos de tutela sejam individualizados posteriormente, por ocasião
da análise concreta da relação jurídica. Isso, entretanto, não indica que a
generalidade seja abstrata, tampouco anula as opções de tutela, eis que a análise
dos mecanismos de proteção exige que a pessoa seja considerada como ser
concreto e sua fragilidade deve ser reconhecida de forma pontual. O modelo de
contrato que se faz surgir das múltiplas fontes do Direito Privado é o da preocupação
com a sociabilidade e compreensão de que interesses sociais são superiores à
vontades egoístas na formação do contrato. São características que aproximam o
Direito Civil do Direito do Trabalho97.
A aplicação do artigo 421 do Código Civil às relações de emprego é
resultado da aplicação literal do artigo 8º, parágrafo único da CLT. Isso porque o
Direito do Trabalho está inserido num sistema jurídico positivo axiológico, em cujo
ápice estão os valores constitucionais que orientam a função social do contrato, a
permitir a aplicação Constituição. Ademais, apesar do Direito do Trabalho possuir
um microssistema comandado pela Consolidação, não se trata de um universo
96 NALIN, Paulo, A autonomia privada na legalidade constitucional In NALIN, Paulo (org.), op. cit., p. 21-22. 97 LIMA, Taísa Maria Macena. O contrato no código civil de 2002: função social e principiologia In Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Regi ão. Belo Horizonte, n. 67, jan./jun. 2003, p. 63
102 impermeável, alheio a influências de outros microssistemas. Como defende Fachin,
o Direito que se pretende construir precisa saber conviver com uma indispensável
instabilidade que lhe dê entradas e saídas, dos fatos para o Direito e do Direito para
os fatos. Daí porque, defende o autor, deve-se pensar o sistema jurídico como um
sistema que se reconstrói cotidianamente, que não é pronto e acabado98.
Considerando que nas últimas décadas é o Direito do Trabalho que
vem se afastando de sua raiz intrínseca de combate de desigualdades, ganha força
a possibilidade de aplicação do artigo 421 do Código Civil à relação de emprego, eis
que as inovações legislativas e jurisprudenciais retiram o Direito do Trabalho de sua
gênese social e o aproximam de um Direito Civil já retrógrado. Os exemplos se
multiplicam: a ampla terceirização trabalhista, o cooperativismo de fachada, o
trabalho voluntário travestido, o trabalho em domicílio precarizado, a ampliação dos
pactos provisórios, o trabalho em tempo parcial com ampla execução de horas
extraordinárias, o “banco de horas”, a suspensão contratual, a tentativa de
supremacia do negociado sobre o legislado.
Tais inovações, por certo, fomentam o individualismo, violam a
dignidade do trabalhador e precarizam profundamente a relação jurídica. A denúncia
do retrocesso legislativo e social que essas medidas trazem é imprescindível.
Entretanto, é imperioso que a doutrina e jurisprudência se estruturem para
responder frente a situações legislativas já consumadas, reafirmando que o contrato
de emprego possui uma função social de aplicação preferencial a leis casuístas e,
ainda, é necessário considerar que a tutela reservada ao trabalhador não é apenas a
expressamente prevista na legislação dita trabalhista.
98 FACHIN, Luiz Edson, Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Códig o Civil Brasileiro , p. 125-126.
103
Contudo, ressalvamos que não se trata de simples incorporação do
modelo geral civilista. Como lembra Sady, a técnica protetiva adotada pela CLT
difere fundamentalmente da técnica incorporada pelo novo Código Civil. Ocorre que
no Direito do Trabalho brasileiro legislado, optou-se que a lei estabelecesse o que é
justo, indicando os padrões de contratos equilibrados, de modo que a eqüidade foi
transportada do campo subjetivo para o objetivo. Na área do Direito Civil, em
especial com o artigo 421 do Código, surge a possibilidade do próprio juiz
estabelecer o que é eqüidade, através do método judge made law99.
Assim, no anseio de superação do caráter meramente instrumental-
econômico do contrato de emprego e na reafirmação da dignidade do indivíduo
trabalhador, voltar a atenção ao Direito Civil parece ser uma boa decisão, numa
revitalização estratégica do artigo 8º, parágrafo único da CLT100.
5.3. A aplicação dos princípios constitucionais
No ordenamento nacional, a Constituição Federal de 1988 foi a
primeira a trazer para o elenco dos direitos fundamentais os direitos sociais,
anteriormente concentrados no capítulo referente à Ordem Econômica e Social. Na
linha das constituições sociais democratas, a Carta Constitucional vigente inscreve o
cânone da dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da organização
nacional.
Com os princípios e regras constitucionais que têm por fim proteger a
99 SADY, João José, O novo Código Civil e o Direito do Trabalho: a função social do contrato. In Revista LTr , p. 4. 100 ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O moderno Direito do Trabalho , p. 46.
104 pessoa humana, o bem jurídico trabalho foi erigido pela Constituição Federal de
1988 como valor social, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito
(artigo 1º, IV). O mesmo diploma, ainda, assegura que a ordem econômica deva ser
fundada na valorização do trabalho (artigo 170) e que a ordem social tenha por base
o primado do trabalho (artigo 193).
Abramovich e Coutis defendem a importância da aplicação direta
desses princípios, inclusive e especialmente, pela via judicial. Dizem que ao positivar
os direitos sociais no ordenamento jurídico, o país não tem o objetivo de construir
um “direito natural”, mas formar as bases de uma dogmática que torne exigíveis os
direitos previstos na Constituição e tratados internacionais. Pensar em contrário,
seria reafirmar a posição do Estado mínimo do século XIX, em que os direitos
fundamentais gerariam apenas obrigações negativas ou de abstenção por parte do
Estado. Para os autores argentinos, ainda que tenha havido consagração
constitucional, não se alcançará o reconhecimento universal como direitos plenos
até a superação dos obstáculos que impedem a sua adequada justiciabilidade,
compreendida como a possibilidade de reclamar ante um juiz ou tribunal o
cumprimento ao menos de algumas obrigações que derivem do direito. Por efeito, o
que qualificará a existência de um direito social como direito pleno não é
simplesmente a conduta cumprida pelo Estado, mas a existência de algum poder
jurídico para a ação do titular do direito em caso de descumprimento da obrigação
devida. Há, nessa situação, a perspectiva de decisão judicial que imponha o
cumprimento da obrigação gerada pelo direito101.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgados,
101 ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS Christian, C., Los derechos sociales como derechos exigibles , p. 21-38.
105 tem afirmado a responsabilidade dos Estados membros por violações não apenas às
convenções interamericanas, mas também quando não são observados princípios
constitucionais. O órgão internacional entende que os Estados são responsáveis por
dotar a normativa constitucional de concreção, responsabilizando-se internamente
pela não-observância da Constituição nacional e internacionalmente quando o valor
também está inserido em tratado.
.A Constituição não apenas reconhece a existência da dignidade da
pessoa humana, mas transforma-a em valor supremo da ordem jurídica. No campo
do trabalho, enfatiza Gomes, o efeito é o de que não se pode dar mais atenção aos
interesses da economia, que condicionam e engessam a atuação governamental, e
“deixar o trabalhador vagar solitário no meio das leis do mercado”102.
Nessa linha, os princípios constitucionais passam a sustentar a própria
autonomia privada do contrato de emprego. Gediel sustenta que é possível lastrear
a tutela constitucional da autonomia privada como princípio ou como bem
constitucionalmente protegido; e também fundamentar que essa tutela resulta dos
direitos fundamentais: à liberdade e ao livre desenvolvimento da personalidade (art.
5o, caput); à livre iniciativa econômica (art. 1o, IV e art. 170, caput); ao livre exercício
de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5o, XIII); à propriedade (art. 5o, caput e
XXII); à realização de convenção ou acordo coletivo de trabalho (art. 7o, XXVI)103.
Em decorrência, na relação de emprego os princípios constitucionais
voltados para a concretização da dignidade humana encontram campo necessário
para aplicação. A função social do contrato está intimamente ligada à proteção dos
102 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel, Direito do Trabalho e dignidade da pessoa humana no contexto da globalização econômica – Problemas e pe rspectivas , p. 95 103 GEDIEL, José Antônio Peres. A Irrenunciabilidade a Direitos da Personalidade Pelo Trabalhador, In SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Constituição, direitos fundamentais e direito priva do . p. 158.
106 direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, amparada no artigo 1º, III, da
Carta Política, salientando-se que a realização da justiça social (artigo 170, caput) é
objetivo da República. Justamente na solidariedade (artigo 3o, III) reside a função
social dos pactos.
Forçoso concluir, portanto, que há uma fusão de preceitos patrimoniais
e pessoais, assegurando-se, através da aplicação de valores fundamentais
constitucionalizados, o direito do sujeito ao mínimo para que possa viver com
dignidade104.
5.4. A eficácia dos direitos fundamentais
A função social do contrato é instituto que se adapta aos mais
importantes interesses da coletividade, como também o contrato de trabalho tem sua
tônica no anseio coletivo de promoção dos direitos fundamentais. Não é possível,
assim, restringir o Direito do Trabalho ao rol de proteção que a legislação específica
pode oferecer na esfera de disponibilidade das partes na formação do regulamento
contratual.
É necessário reconstruir a figura do contrato de trabalho com a
estrutura de direitos relativos, boa-fé objetiva, função social do contrato e dignidade
da pessoa humana, eis que o prisma de análise das relações jurídicas da atualidade
deve ser o da dignidade da pessoa humana e preservação de sua intimidade.
Inclusive o trabalho subordinado e a propriedade privada, bases do sistema
capitalista, devem se adaptar a esses postulados ético-normativos.
104 TARTUCE, Flávio, op. cit., p. 200.
107
O fato de determinada cláusula de regulamento contratual não ser
expressamente vedada não significa que deva ser aceita como válida. Afirma Sarlet
que apenas o fato de uma ação não ser vedada – e portanto ser tida como permitida
– não significa que o Estado se abstenha de valorar a conduta particular. Segundo o
professor, mantém o poder público responsabilidade por determinadas ações de um
particular em relação a outro; responsabilidade essa que não se limita a um dever de
proibir intervenções em bens jurídicos fundamentais, cuja inobservância acarreta
uma infração a um dever de proteção105.
As teorias de abuso de direito buscam superar o formalismo da
liberdade contratual, inclusive na esfera jurídica trabalhista. Houve grande inovação
com a introdução dos artigos 186, 187 e 422 do Código Civil. A positivação ocorrida
foi no sentido de que o exercício de direitos, inclusive a liberdade contratual, deve
estar sempre relacionada com o sistema normativo, do qual a boa-fé faz parte. Os
fundamentos da boa-fé objetiva e da justiça social permitem interpretar o contrato de
forma que haja o atendimento da dignidade da pessoa humana como valor maior e
objetivo da república brasileira, nos termos do artigo 1º, III, da Carta Política.
Imperioso, entretanto, que a teoria do abuso de direito permaneça
articulada de forma constante com uma teoria de direitos fundamentais, como
pressuposto daquela, sendo essa a posição da doutrina sustentada por. SARLET a
respeito da vinculação direta dos particulares direitos fundamentais, aplicando o
instituto a toda a ordem pública. Os direitos a não-discriminação e à privacidade,
como direitos fundamentais, implicam a necessidade de se proteger os particulares,
não apenas contra atos atentatórios praticados pelo Estado, mas também contra os
105 SARLET, Ingo Wolfgang, A Constituição Concretizada , p. 136-137.
108 demais indivíduos e entidades privadas106.
A doutrina portuguesa também caminha nesse sentido, reconhecendo
que, nas relações privadas, devem ser observados os princípios maiores da
dignidade e repressão à discriminação107.
No direito nacional, é com a Constituição de 1988 que surge um novo
paradigma a estruturar a ordem jurídica tendo por base a dignidade humana e os
direitos fundamentais, inclusive quanto ao conteúdo das obrigações firmadas entre
particulares. Nessa linha, a relação de emprego instrumentalizada pelo contrato
também absorve o comando dos direitos fundamentais, especialmente pela
impossibilidade de separação do indivíduo trabalhador e, portanto, detentor de
dignidade humana a ser preservada, da força de trabalho que pessoalmente produz.
Observados os contornos modernos do instituto contratual de que
tratamos, a idéia de indissociabilidade entre trabalhador e trabalho passa a ser
imprescindível para a defesa da irrenunciabilidade dos direitos fundamentais pelo
trabalhador. Na concepção de Gediel, eleva-se ao patamar de direitos fundamentais
os direitos da personalidade e os direitos sociais dos trabalhadores. Por efeito dessa
compreensão, delineia-se emblematicamente, a um só tempo, a indissociabilidade
das dimensões do humano vivendo em sociedade: o cidadão livre do espaço público
e o trabalhador juridicamente subordinado no espaço privado”108.
No Direito do Trabalho não é possível separar o sujeito da relação de
emprego e a força de trabalho. É o que Genro chama de vinculação ontológica da
106 Ibid., p.117-119. 107 DAMAS, Joaquim Augusto, O Princípio da Igualdade na Relação Jurídica de Trabalho In Revista Jurídica do Trabalho , p. 108. 108 GEDIEL, José Antônio Peres. A Irrenunciabilidade a Direitos da Personalidade pelo Trabalhador In SARLET, Ingo Wolfgang (org.), op. cit., p.162.
109 força de trabalho com o prestador e que traduz a impossibilidade de separar o
contrato da condição do homem trabalhador. Neste elemento, segundo o autor, é
que se constrói, no plano ideológico, a tese de que o Direito do Trabalho visa
“dignificar” o prestador. Formam-se duas conseqüências básicas: de uma parte,
marca a condição operária como objeto da dominação imanente à produção
capitalista. De outra, o domínio sobre a força viva do trabalho evidencia no processo
produtivo a presença do homem que é juridicamente livre para reivindicar melhores
condições de trabalho.109
No Direito do Trabalho é compreensível a dificuldade de concreção
dos direitos fundamentais nos contratos de emprego, tendo em vista a desvantagem
econômica do trabalhador e a decorrente prevalência da atuação empresarial na
formulação do regulamento que rege o contrato individual de trabalho e, daí, o
caráter tutelar do Direito do Trabalho, articulado em torno da noção de
hipossuficiência do trabalhador. O caminho para essa superação passa,
inicialmente, pela compreensão da vinculação dos particulares na formação de
condições dignas de vida e, depois, pela afirmação de que a renúncia temporária de
direitos fundamentais pelo trabalhador não pode ser aceito, normalmente, como
renúncia.
Nesse contexto, é importante para uma teoria dos direitos
fundamentais articulada ao Direito do Trabalho, afastar a contratualidade trabalhista
baseada na autonomia da vontade. Não é possível considerar livre e juridicamente
válida disposição contratual que traga redução de direitos fundamentais do
trabalhador, ressalvando que a força de trabalho não está limitada apenas às
questões de natureza patrimonial, mas também a questões de cunho ligado à 109 GENRO, Tarso Fernando, Contribuição à crítica do direito coletivo do trabalho , p. 19.
110 pessoa do trabalhador transformadas em direitos. Como fundamenta Coutinho, para
o objetivo de reconhecimento da impossibilidade de renúncia de direitos
fundamentais, através do contrato de emprego, deve-se ter clara a inafastabilidade
de que a relação sempre carrega uma “pessoa humana”, impregnada de direitos que
desvelam e afloram sua dignidade. Por efeito, a objetivação do trabalho, em parte,
oculta o sujeito titular de direitos que deve ser (re)focado110.
Assim, considerando a pessoa do trabalhador como o centro do
contrato, este passa a ser instrumento capaz de assegurar também o direito à
integridade física e mental desse mesmo trabalhador.
5.5. Princípio da relatividade. Eficácia ultra partes
O contrato de trabalho, sob a ótica de sua funcionalidade, como
qualquer pacto entre privados, deve atender aos interesses da coletividade que o
rodeia. Reale afirma que ao contrato é atribuída função social para que seja
“concluído em benefício dos contratantes, sem conflito com o interesse público”111.
Theodoro Jr., por sua vez, sustenta que a função social atribuída ao
contrato contrapõe-se, principalmente, ao princípio da relatividade, o que vale dizer
que a eficácia do pacto, no tocante às obrigações contratuais, é sempre relativa,
mas sua oponibilidade é absoluta, quando em jogo interesses de terceiros ou da
comunidade112.
110 COUTINHO, Aldacy Rachid, A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.), op. cit., p. 182. 111 Cf. REALE, Miguel, Função social do contrato. 112 THEODORO JR., Humberto, op. cit., p. 46-47.
111
Nessa linha, induvidoso que o princípio contratual da relatividade
implica no reconhecimento de que a avença não pode prejudicar, nem beneficiar
terceiros, pelo que a eficácia inter partes da função social do contrato tem como
principal característica representar um corte nesse princípio. Tal ruptura na
relatividade reconhece que mesmo os pactos firmados entre privados pode ensejar
desvantagens para terceiros, para grupos sociais inteiros ou mesmo para a
integralidade da comunidade. Como refere Lorenzetti, “o contrato não é um assunto
individual, mas que tem passado a ser uma instituição social que não afeta somente
o interesse dos contratantes”113.
Reconhecendo-se o contrato como fato social, forçoso considerar que,
de um modo geral, possa ser oposto por terceiros. Nesse sentido, compreende
Godoy que o contrato, em hipótese alguma, pode ser considerado indiferente à
sociedade em cujo seio se insere. A nova teoria contratual impõe se o compreenda
como voltado à promoção de valores sociais e, mais, obriga que se veja o contrato
como tendo a habilitação de interferência na esfera alheia.114
Deve ser estabelecida uma graduação para a eficácia ultra partes:
primeiro, no sentido de terceiros, como sujeitos individualizados, detentores do
direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural
função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou da
pactuação; depois, numa visão mais abrangente, a submissão da fixação do
regulamento do contrato a interesses mais amplos, identificados como de toda a
comunidade em que o pacto se insere.
A eficácia ultra partes da função social do contrato está diretamente
113 LORENZETTI, Ricardo Luis, Fundamentos do direito privado , p. 132. 114 GODOY, Cláudio Luiz Bueno, op. cit., p. 133.
112 relacionada à sociabilidade, pois tem um campo de atuação mais amplo quando
vislumbra a possibilidade de submissão a interesses sociais.
Como expressão da vontade estatal de limitar a ação dos particulares,
o contrato de emprego regrado pelo direito do trabalho possui duas partes, como
lembra Ribeiro Santos: os direitos e garantias fundamentais, com a característica de
bens indisponíveis, constitucionalmente protegidos no interesse da ordem pública e
social, e uma parte contratual, emergente das negociações coletivas e dos contratos
individuais de trabalho115.
A transcendência social do contrato de emprego individualizado, no
Direito do Trabalho, como abordaremos a seguir, é tratado ao nível de princípio.
5.6. Princípio da submissão ao interesse coletivo
O Direito do Trabalho, como referimos, possui uma tônica
preponderantemente coletiva, consolidada nos movimentos e nas ações
organizadas dos trabalhadores.
Por encerrar um grande feixe de determinantes normativos estatais e
convencionais coletivos na composição do regulamento contratual, permite a
construção de uma relação jurídica menos desigual nas prestações a que se
obrigam os contratantes. Entretanto, o contrato fortemente dirigido para a promoção
de maior igualdade na prestação das partes, nem sempre significa a promoção de
interesses gerais da comunidade.
115 SANTOS, Enoque Ribeiro dos, A função social do contrato, a solidariedade e o pilar da modernidade nas relações de trabalho , p. 98.
113
O caráter protetivo do Direito do Trabalho em relação ao indivíduo não
significa que seja visto como um conjunto de regras divorciadas do conjunto de
interesses da sociedade. Como lecionava Krotoschin, o Direito do Trabalho é um
Direito especial para um único setor social, ainda que se trate de um setor
sumamente importante numericamente. Mas adverte o professor argentino que deve
sempre se ter em mente que esse setor (o dos trabalhadores) está vinculado à
sociedade inteira, e o direito do trabalho, portanto, está incorporado
necessariamente ao ordenamento jurídico geral116.
Por exemplo, sempre que um trabalhador individual aceita, como
condição de conseguir o posto de trabalho ou de se manter no emprego, a
precarização de algum direito, não está apenas tornando seu contrato de trabalho
contrário à função social, mas também está prejudicando toda a categoria de
trabalhadores que também se verão obrigados a abrir mão de condições
conquistadas. Assim, a repercussão do fato a nível de categoria faz com que o
contrato se apresente contrário à função social. Isso porque os efeitos da relação de
emprego não se restringem à pessoa dos sujeitos que firmam o contrato individual
de trabalho. Na tarefa de superação do caráter meramente instrumental-econômico
do pacto de emprego, impõe reconhecer que a essencialidade do trabalho para a
sociedade aumenta substancialmente os afetados por condições de labor
precarizadas. Por um lado, há uma séria afetação a todas as pessoas que
dependem diretamente dos frutos econômicos da relação, o salário gerado pelo
trabalho posto à disposição. A precarização passa a ser contrária à função social,
porque diminuem as condições de obtenção de dignidade que deveriam ser
propiciadas pelo trabalho, seja para o indivíduo trabalhador, seja para sua família.
116 KROTOSCHIN, Ernesto, Tratado práctico del derecho del trabajo , p. 8.
114 Por outro lado, o achatamento nos rendimentos do trabalho traz conseqüências à
universalidade da força de trabalho, que também terá de se submeter – sempre em
nome da competitividade alimentada pelo sistema capitalista – à precarização até
então singularmente instituída. Os efeitos desse processo são sentidos em larga
escala, eis que a condição salarial está diretamente relacionada aos objetivos do
consumo.
Na atualidade, nos deparamos com a formação contínua de novas
formas de precarização das condições de trabalho, quer pelas condições de
desemprego estrutural, quer pela extrema competitividade empresarial, o que muitas
vezes ocorre com o aval da legislação tutelar. Nesse contexto, incluir o Direito do
Trabalho num universo ampliado de instrumentalização de valores sociais autoriza o
reconhecimento de que a aplicação estrita de seu regramento nem sempre faz
cumprir a diretriz da função social do contrato de trabalho.
5.7. A função social do contrato de trabalho e o di reito coletivo
Não obstante seja o foco deste estudo a aplicação da função social do
contrato no campo do Direito Individual do Trabalho, oportunas algumas
considerações sobre a sua incidência no Direito Coletivo. Induvidoso que o contrato
de trabalho tem seu regulamento formado por várias fontes, assim consideradas a
vontade das partes, o contrato mínimo legal e as normas coletivas. Assim, delimitar
a vinculação da vontade das partes à função social pouca utilidade trará se o
restante das fontes normativas não tiverem o balizador da sociabilidade.
Na medida em que a aplicação da função social do contrato, em seu
115 aspecto de eficácia ultra partes robusta (submissão a interesses sociais) limita em
larga escala a autonomia da vontade, forma-se tendência de trancamento do ideário
neoliberal no mundo do trabalho. Com o objetivo de preservação de valores
coletivos, há maior dificuldade de se aceitar que a livre negociação das partes do
contrato de emprego estabeleça condições desfavoráveis ao trabalhador, ainda que
amparado em lei específica117.
Santos também segue essa linha ao dispor que o reconhecimento de
que se aplica a função social, prevista no artigo 421 do Código Civil, aos pactos de
emprego, significa que passam a ser tendencialmente barradas as iniciativas de
flexibilização trabalhista. Para o autor, o instituto agora positivado obriga que não
sejam apenas valorados os interesses do capital, ordinariamente clamados para
fazer face aos aspectos concorrenciais da globalização econômica118.
Por tal ótica, a prevalência dos princípios de solidariedade social,
próprios do Estado Social e instrumentalizados em parte nas relações jurídico-
privadas pela aplicação da função social do contrato retira grande parte da lógica de
preconização de um Estado mínimo e o predomínio das forças onipotentes do
mercado. Neste “pilar de modernidade das relações de trabalho seriam preservados
os direitos mínimos do trabalhador, que não seriam objeto de negociação”119.
No Direito Coletivo do Trabalho, da mesma forma, também se
estabelece restrição da liberdade de pactuação de normas coletivas, assim
consideradas as convenções e acordos coletivos de trabalho, eis que também
representam modalidades de contratos, de forma a obstar que grupos sindicais
117 CARVALHO, José Quintella de. A função social do contrato e o direito do trabalho. In LAGE , Émerson José Alves; LOPES, Mônica Sette (orgs.), op. cit., p. 76. 118 SANTOS, Enoque Ribeiro do, op. cit., p. 98-99. 119 Ibid., p. 100.
116 menos favorecidos cedam a uma vontade mais poderosa de gerar normas
trabalhistas que restrinjam direitos fixados em anteriores acordos. Note-se que não
há incoerência em fixar tal limitação no estabelecimento de cláusulas livremente
estipuladas por entidades de representação do capital e do trabalho, ainda que
cumpridas as restrições legais explícitas. Como já referido na doutrina de Perlingieri,
a afirmação de prevalência das formações sociais não impede que mesmo entre
essas se estabeleça uma graduação. Ocorre que entre as formações sociais há uma
diversidade de funções, de modo que não parece correto expor de forma unitária o
problema de seu controle. A validade do reconhecimento da capacidade de auto-
regramento entre as entidades de representação limita-se ao âmbito do
ordenamento no qual são destinadas no âmbito da sociedade a ter relevância e
sempre vinculadas à promoção da dignidade humana120.
Pode-se, portanto, falar em função social da convenção ou acordo
coletivo quando o instrumento atender aos interesses de duas ordens de
coletividade, quais sejam, a comunidade nacional como um todo e os próprios
representados pelo sindicato. Com isso, pode-se falar em função social da
negociação coletiva, quando esta cumpre o seu papel pela contraposição entre
valores coletivos e valores individuais como fator da liberdade de contratar.
Como decorrência, a fixação de normas coletivas, mesmo que firmadas
entre entidades representativas do capital e trabalho, mas contrárias aos interesses
da coletividade, não podem ser consideradas como cumpridoras de sua função
social.
120 PERLINGIERI, op. cit., p. 39-40.
117
5.8. O equilíbrio contratual. Eficácia inter partes
O enfoque do contrato sob a perspectiva de equivalência das
prestações entre os contratantes – eficácia inter partes – não escapa do
reconhecimento de que há reflexos em toda a sociedade no que diz respeito à
preservação do princípio da dignidade humana, eis que afastam-se as fórmulas
clássicas do liberalismo contratual. Lorenzetti realça que, na teoria clássica, o
contrato era entendido como fenômeno econômico neutro, mas que se trata de
concepção equivocada, pois há efeitos redistributivos verificados quando se efetua
uma análise globalizada do negócio celebrado. Explica que, hodiernamente, faz
parte dos fundamentos do contrato, por exemplo, o favorecimento ao consumo,
como norma implícita de ordem pública.121
Isso porque o contrato, em sua função social, passa por uma
hierarquia de valores acolhida como orientadora para a vida em sociedade, sendo
que, atualmente, há uma opção pelos efeitos socialmente esperados nas operações
privadas. Como sustenta Briz, a vida social não é um fim em si mesma, mas deve
ser ordenada para que se alcance o bem dos indivíduos em seu conjunto. É nesse
ambiente que a função social do contrato também deve se desenvolver. Pelos seus
estudos, para que se intensifique a função social do contrato, sua finalidade será
principalmente a proteção da parte débil da relação, aquele que, por sua condição
econômica deficiente, ocupa uma posição de inferioridade ao contratar.122
Analisando os efeitos do novo paradigma de valorização da dignidade
humana no direito dos contratos, Fachin identifica a prevalência do sentido da
121 LORENZETTI, Ricardo Luis, op. cit., p. 541-543. 122 SANTOS BRIZ, Jaime, La contratación privada , p. 32-33.
118 comutatividade e da igualdade, como valores perseguidos pela sociedade. Por
efeito, passam a ser cada vez mais efetivas as tentativas de impedir as
desproporções, permitindo a revisão das equações econômicas e financeiras das
avenças123.
Na visão desse professor, a idéia de interesse social corresponde ao
início de distribuição de cargas sociais, de modo que o sentido que se coloca no
centro do sistema jurídico é o da relação entre pessoas, e que faz do princípio da
igualdade uma presença necessária. Nesse sentido, que chama de “ideológico”, há
uma dimensão mais enriquecida da igualdade, entendia como a carga
confessadamente política que o princípio da função social possui.124 Ele também
ressalva que a conquista do princípio da igualdade – presente no Código e na
Constituição – não implica ausência de discriminação, tratamento absolutamente
sistemático. Significa, isto sim, uma igualdade perante a regra, uma igualdade
perante a lei Para operacionalização do valor, a paridade contratual vai informar não
apenas a constituição do vínculo contratual, mas a hermenêutica da sua aplicação,
vez que é no momento da eficácia que a desproporção fica mais evidente. Segundo
o autor, as desproporções geradas pelos efeitos do contrato que permitirão uma
ingerência na equação econômicofinanceira de dadas relações jurídico-privadas.125
Veja-se, ainda, que a relação da função social com a busca da
igualdade substancial e busca da dignidade humana decorre da própria
Constituição, ao lançar os princípios e objetivos fundamentais. Essa isonomia
constitucional deve ser interpretada como a tentativa de eliminar todas as
123 FACHIN, Luiz Edson, Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Códig o Civil Brasileiro , p. 229. 124 Ibid., p. 289-291. 125 Ibid., p. 294-295.
119 desigualdades de fato, passando a ser obrigação do Estado a redução dos desníveis
econômicos, mediante a interferência nas relações de trabalho e produção.
Contudo, seria utópico imaginar a possibilidade de se atingir uma
absoluta proporção de obrigações nos contratos no sistema capitalista vigente,
razão pela qual a eficácia inter partes da função social do contrato deve significar a
repressão a cláusulas danosas aos contratantes reconhecidamente indefesos, em
especial nos contratos de adesão.
Nesse sentido, defende Santos que a função social do contrato, com
seus balizamentos próprios, procura evitar a imposição de cláusulas danosas aos
contratantes indefesos. Os consectários lógicos que sugerem a função social do
contrato, para esse autor, são a vedação da lesão e a aplicação da teoria da
imprevisão126.
Na mesma trilha segue Carvalho para quem, na tentativa de potenciar
a convivência entre os princípios da igualdade e da liberdade, a prevalência do
primeiro parece inequívoca quando se trata de contrato de adesão. Nessa situação,
o legislador cria a presunção de desigualdade. Reconhecendo o contrato de
emprego como categoria do contrato de adesão, a aplicação da função social do
contrato obriga que se imponha a nulidade de cláusulas que impliquem qualquer
renúncia antecipada127.
Nesse contexto, impõe considerar que para obstar renúncias
antecipadas do trabalhador, vigora no Direito do Trabalho o princípio da proteção,
acompanhado pelos subprincípios da norma mais favorável e o da condição mais
126 SANTOS, Antônio Jeová. Função social do contrato – Lesão e imprevisão no C C/2002 e no CDC, p. 129. 127 CARVALHO, José Quintella de, op. cit.,, p. 80
120 benéfica.
Pelo princípio da norma mais favorável, havendo mais de uma norma a
regular a mesma situação de fato, independentemente da sua posição no plano da
hierarquia das fontes formais, aplica-se aquela que for a mais favorável ao
trabalhador. A norma de hierarquia superior fixa direitos mínimos que podem ser
ampliados na norma hierarquicamente inferior, garantindo ao trabalhador que
incidirá sobre seu contrato a norma que for mais vantajosa. Pelo princípio da
condição mais benéfica, há o objetivo de oferecer garantias ao trabalhador, de forma
que vantagens previstas em cláusulas contratuais já conquistadas pelo empregado
não podem ser suprimidas. Assim, na ocorrência de sucessão de normas no curso
da relação de emprego que regulem um mesmo instituto, são mantidas as condições
mais benéficas adquiridas na constância da norma anterior. Tais princípios estão
previstos nas Súmulas 51128 e 288129 do Tribunal Superior do Trabalho.
Por outro lado, a nossa legislação laboral também busca impedir a
ocorrência de lesões ao trabalhador pela alteração do pactuado ao longo do contrato
pelo princípio da inalterabilidade lesiva positivado pelo artigo 468 da CLT.
Por certo que tais princípios representam instrumentos importantes em
termos de regramento mínimo imposto ao contrato de trabalho, logrando obstar
grande número de desproporções nas prestações, mas tais limitações restringem-se
128 Súmula 51 - Norma Regulamentar. Vantagens e opção pelo novo regulamento. Art. 468 da CLT. (RA 41/1973, DJ 14.06.1973. Nova redação em decorrência da incorporação da Orientação Jurisprudencial nº 163 da SDI-1 - Res. 129/2005, DJ 20.04.2005) I - As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento (ex-Súmula nº 51 - RA 41/1973, DJ 14.06.1973). II - Havendo a coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro (ex-OJ nº 163 - Inserida em 26.03.1999). 129 Súmula 288 - Complementação dos proventos da aposentadoria (Res. 21/1988, DJ 18.03.1988). A complementação dos proventos da aposentadoria é regida pelas normas em vigor na data da admissão do empregado, observando-se as alterações posteriores desde que mais favoráveis ao beneficiário do direito.
121 ao mínimo previamente fixado na legislação tutelar, nas normas coletivas, ou no
contrato de trabalho.
Considerando que o nosso Direito do Trabalho, no curso da história,
fixou que o justo é o positivado no sistema normativo laboral, resta reduzido o
reconhecimento como antissocial do regramento de trabalho de acordo com a lei,
mas contrário aos valores abstratamente estabelecidos pela sociedade, em especial
através de princípios constitucionais. Nesse caso a aplicação do princípio da
proteção não beneficia o trabalhador, exigindo uma postura que avance no
reconhecimento da inadequação de certas práticas não expressamente vetadas pelo
microssistema trabalhista.
Sem dúvida a proibição de alteração lesiva no curso do contrato
constitui um importante avanço do sistema trabalhista mas na ausência de norma
legal explícita há dificuldade dos operadores identificarem ilicitude na contratação.
O tema relativo à alteração das circunstâncias e onerosidade
superveniente, com aplicação da teoria da imprevisão, tem importância para o
estudo da função social dos contratos em geral, considerando a eficácia inter partes,
o que não ocorre com o contrato de trabalho porque as alterações onerosas que
ocorrem no curso da contratação já são nulas naturalmente, sem a necessidade de
constatação quanto ao grau de intensidade da onerosidade.
De qualquer forma, a análise da lesão por aplicação de cláusulas
abusivas como decorrência da função social do contrato em sua eficácia inter partes,
pode auxiliar na reversão de posturas contrárias ao objetivado pela sociedade.
122
6. MECANISMOS PARA A SOLUÇÃO DE CONFLITOS
6.1. O judiciário e a concretização da função socia l do contrato
A perspectiva de concretização da função social do contrato coloca em
relevo a atuação do judiciário, interessando à teoria jurídica examinar esse espaço
da ciência do Direito em que há o embate contínuo de teorias distintas e posições
ideológicas, com o seu próprio redimensionamento na perspectiva crescente de
tutela dos direitos fundamentais, mormente em se considerando o nível de
complexidade da sociedade atual que enfrenta constantes inovações em todos os
níveis.
Nesse prisma, a vinculação do contrato a um conceito normativo aberto
e impreciso como a função social obriga a uma reavaliação dos mecanismos
interpretativos, com a necessidade do judiciário redimensionar seu papel na
perspectiva crescente de aplicação das cláusulas gerais, concretização de princípios
e tutela dos direitos fundamentais. Tal perspectiva, por certo, coloca em relevo a
atuação judicial, mesmo porque a opção legislativa de inserção do comando na
forma de cláusula aberta, evidencia a intenção legislativa de realçar essa atuação,
mormente em se considerando que a vigência do Código Civil de 2002 iniciou com a
perda de força do positivismo.
A revalorização do papel de uma justiça independente e
reconhecimento de uma magistratura com força para manter o funcionamento do
sistema democrático ocorreu no final do século XX, no Ocidente, quando passou a
123 haver maior expectativa no perfil do Poder Judiciário que nos demais poderes do
Estado, aumentando o reclamo por um maior grau de protagonismo dos juízes.
Por haver necessidade de preenchimento do conceito da função social
do contrato pela análise objetiva dos operadores do direito, a atuação do julgador é
necessária, desencadeando um processo de diálogo multidisciplinar, em que o
contrato possa produzir efeitos para terceiros, o objeto da avença respeite os direitos
humanos não positivados e haja compatibilização do acordado com eventuais
onerosidades excessivas supervenientes ou já presentes na contratação. Esse é o
caminho possível para que a função social do contrato se efetive, sem as restrições
permeadas pelo texto legal e com a seriedade e rigor necessárias a afastar a
legitimação da decisão apenas na vontade individual do julgador. Há necessidade de
buscar construções hermenêuticas adequadas à instrumentalização do artigo 421 do
Código Civil que se mostrem eficazes e afinadas com os princípios da democracia e
demais garantias constitucionais.
A função de interpretar coloca em relevo o papel dos juízes no sistema
jurídico, principalmente no que respeita à perspectiva crescente de tutela dos
direitos fundamentais. Muitas são as teorias e posições ideológicas que se
apresentam considerando a complexidade da estrutura social atual que se altera
rapidamente com a evolução da história, em que presenciamos avanços
tecnológicos e científicos, trazendo consequências para o campo das relações
humanas.
Nesse contexto, a vinculação do contrato a um conceito normativo
aberto e impreciso como a função social, obriga a uma reavaliação dos tradicionais
instrumentos de interpretação e aplicação do Direito, colocando em relevo a atuação
judicial na busca da perspectiva de concretização desse novo instituto.
124
Como refere Martins-Costa, o desafio a ser enfrentado pelo
ordenamento jurídico brasileiro passa a ser o de dotar a sociedade de uma técnica
legislativa e jurídica que possua uma unidade valorativa e conceitual, ao mesmo
tempo em que haja a possibilidade da doutrina e jurisprudência integrá-las num
sistema compreendido de forma aberta. A técnica expressa preferencialmente
através da cláusula geral, segundo a autora, constitui convite para uma atividade
judicial mais criadora e, todavia, sujeita a controles adequados130.
A inserção do comando na forma de cláusula aberta escolhida pelo
legislador torna evidente sua intenção de colocar em relevo a atuação do juiz. A
vigência do atual Código Civil coincide com o momento em que a ciência jurídica
retoma a discussão da responsabilidade judiciária, considerando o enfraquecimento
do positivismo, o que acarreta a necessidade de revisão das técnicas de
interpretação do Direito.
6.2. A questão da interpretação
A questão da interpretação surge em 1814, com Savigny, que
preconiza o modelo hermenêutico, na busca de um critério para interpretação
autêntica. Sustentava o jurisfilósofo que a interpretação consistia no compreender o
pensamento do legislador, manifestado no texto da lei, dando origem à divisão da
doutrina em dois grupos: um que considerava a vontade do legislador (doutrina
130 MARTINS-COSTA, Judith, As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico In Revista de Informação Legislativa , p. 27-28.
125 subjetivista e outro que buscava a vontade da lei (doutrina objetivista).131
A importância do tema relativo à interpretação ganha vulto no início do
século XX, com Kelsen, o qual conceitua interpretação como “uma operação mental
que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão
superior para um escalão inferior”132.
O conceito segue, portanto, sua teoria de pirâmide normativa e de
fundamentos de validade das normas, embora revolucione ao reconhecer que o
Direito produz diversas oportunidades de interpretação e que o juiz deve escolher
uma. Rompe, portanto, com a tradição de interpretação intelectualista e insere-se na
vanguarda dos voluntaristas, reconhecendo que todo ato jurídico em que o Direito é
aplicado é em parte determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. A
indeterminação pode tanto resultar do fato pressuposto, da conseqüência
condicionada ou da intenção do órgão que produziu a norma (plurissignificação de
palavras). Os métodos de interpretação conduzem apenas a um resultado possível,
mas não ao único correto. Portanto, a obtenção da norma individual no processo de
aplicação da lei é uma função livre e voluntária. Mas das diversas possibilidades,
apenas uma torna-se direito positivo, quando aplicada pelo órgão com tal função133.
Hart sustenta que há a necessidade de uma norma de reconhecimento
como remédio para a falta de certeza, de modo que especifica as características que
a norma primária (que impõe deveres ou obrigações) deve possuir, exercendo
pressão social correspondente134.
131 SAVIGNY, Friedrich Carl Von,– Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência In MORRIS, Clarence (org.), Os Grandes Filósofos do Direito, p. 298. 132 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito , p. 463. 133SOUZA, Rodrigo Trindade de, op. cit., p.189. 134 HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito , p. 107-109.
126
Referido autor é um dos primeiros a falar sobre um sistema jurídico
aberto, embora estruture sua obra no positivismo. A importância da interpretação
reside na conclusão de que o direito não resulta de um exercício tácito do Poder
Legislativo, mas da aceitação da norma de reconhecimento pelo tribunal como
adequada para ser usada dessa maneira.
A partir do pensamento de Dworkin, uma nova etapa é inaugurada, na
medida que ele defende que o direito é um conceito primordialmente interpretativo,
pelo que as divergências entre os operadores são divergências aplicativas. “Os
juizes devem decidir o que é o direito interpretando o modo usual como os outros
juizes decidiram o que é direito” 135.
Mesmo teorias gerais do Direito são, para o professor norte-americano,
apenas interpretações gerais da nossa própria prática judicial. Entre o
convencionalismo e o pragmatismo, adota a concepção do Direito como integridade,
compreendendo a doutrina e a jurisdição. O julgamento interpretativo deve observar
as diferentes dimensões interpretativas (equidade, justiça e devido processo legal),
as quais são conflitantes entre si.136
Afirma que qualquer argumento jurídico prático, não importa quão
detalhado e restrito seja, adota o tipo de fundamento abstrato que lhe oferece a
doutrina e, quando há confronto entre fundamentos antagônicos, um argumento
jurídico assume um deles e rejeita os outros. Desse modo, o direito de uma
comunidade é o sistema de direito e responsabilidades que autorizam a coerção e
decorrem de decisões anteriores do tipo adequado.137
135 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 488 136 Ibid., p. 489 137 Ibid., p. 116
127
Perelman, por sua vez, identifica a importância da interpretação no
reconhecimento da exigência da univocidade dos elementos nos quais ela se
fundamenta138.
A argumentação obriga não apenas a seleção de dados, mas
igualmente o modo como são interpretados; o significado que lhes foi atribuído.
Nega a existência de interpretações “verdadeiras”. As premissas de interpretação
não são evidentes, mas resultam de um acordo entre quem argumenta e seu
auditório. Não importam os fundamentos de validade da norma mas os meios
necessários para sustentação da decisão como sendo mais justa, eqüitativa,
razoável, oportuna ou conforme o direito, do que tantas outras decisões igualmente
cabíveis.
A doutrina de Perelman é importante para a definição da função social
do contrato, eis que há um rompimento com a tradição da interpretação lógico-
dedutiva inaugurada com a codificação napoleônica e que é bastante abrandada no
Código Civil. A importância está principalmente no resgate da noção de raciocínio
dialético e reconhecimento do esgotamento do modelo cientificista de conhecimento,
afastando-se da doutrina kelseniana ao afirmar a igual importância do conhecimento
produzido por estudiosos e aplicadores do Direito, pois todos são tidos como
articuladores de argumentos convincentes.
Ferraz Jr. aborda a questão sustentando que o problema da dogmática
jurídica não é mais o da verdade ou da falsidade de seus enunciados, mas das
pautas de decisões possíveis, a partir da argumentação retórica. O professor
brasileiro aceita as idéias de Lask ao referir que quando dizemos que interpretar é
138 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação – A nova retórica , p. 136
128 compreender outra interpretação (a fixada na norma), afirmamos a existência de
dois atos: um que dá à norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo139.
Todos eles justificam suas conclusões sobre interpretação na
necessidade de criação de balizadores de decidibilidade. Essa é a questão básica
que domina a atividade do jurista. A hermenêutica jurídica visa, fundamentalmente,
criar condições para que eventuais conflitos possam ser resolvidos com um mínimo
de perturbação social. Todavia, o jurista, ao enfrentar a questão da decidibilidade,
não se fixa num só modelo, mas utiliza os modelos em conjunto, dando apenas
pontualmente primazia a um deles e subordinando os demais. Na verdade, ao que
parece, é negada a ideologia como fundamento do interpretar e decidir porque há
necessidade de produção de um saber jurídico capaz de se organizar segundo as
exigências de generalidade e sistematicidade.
6.3. Fundamentos do protagonismo judicial
A busca por uma justiça independente e capaz de assegurar o
funcionamento do sistema democrático, no Ocidente, tomou impulso no final do
século XX. Para Cárcova, nas “novas democracias”, os juízes aparecem instalados
no imaginário popular como ultima ratio, garantidores finais do funcionamento
democrático. Tem-se depositado uma maior expectativa de performance do Poder
Judiciário que nos demais poderes de Estado. As expectativas que esta
especificidade funcional alenta aumentam o reclamo por um maior grau de
139 FERRAZ JR., Tércio Sampaio, A Ciência do Direito , p. 72.
129 protagonismo dos juízes, estimulando o que chama de activismo jurisdiccional140.
Ost aprofunda o tema da importância da interpretação, ao mesmo
tempo que lança importantes referenciais para os paradigmas que devem ser
seguidos pelo juiz no processo interpretativo141.
Três modelos de juízes são imaginados: Júpiter, Hércules e Hermes.
Ost rejeita inicialmente o modelo de Júpiter. Trata-se do modelo da pirâmide ou do
Código, sempre proferido de cima, adotando a forma da lei. O juiz expressa-se de
modo imperativo e dá preferência à natureza do proibido. Intenta inscrever-se em
um depósito sagrado, leis, códigos e Constituições modernas.
O modelo do magistrado Hércules, valorizado por Dworkin, também
não pode ser aceito142. Ost o identifica com a figura da revolução, em que o juiz é a
fonte única do Direito válido. O que mira é um juiz semideus que se submete ao
trabalho esgotante de julgar e acabar por levar o mundo em seus braços. A grande
crítica de Ost é que neste modelo é a decisão individual, e não a lei, a fonte criadora
da autoridade.
O projeto defendido é o do juiz Hermes: respeita-se o caráter
hermenêutico e reflexivo do juízo jurídico que não se reduz à improvisação, nem à
simples determinação de uma regra superior. No modelo de Hermes, deve-se
pensar o Direito como circulação incessante de sentido, mais do que como discurso
de verdade. É necessário advertir a pluralidade e diversidade dos atores que jogam
na cena jurídica e que contribuem, cada um à sua maneira, para aplicar o Direito. É
na teoria do Direito como circulação de sentido que se deve centrar a idéia sobre o
140 CÁRCOVA, Carlos Maria, Direito, política e magistratura , p. 167. 141 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez , p. 171 ss. 142 DWORKIN, Ronald, O império do direito , p. 287.
130 qual nada, nem o juiz nem o legislador, tem o privilégio. A circulação do sentido
jurídico opera no espaço público e nada poderia, sem violência ou ilusão, pretender
monopolizá-lo143.
Este modelo circulatório tem o êxito de reafirmar o Direito como
discurso incompleto e propor uma interpretação mais ampla, menos monológica,
efetivamente aberta. Mas, principalmente, alcança o resultado positivo de conseguir
articular os elementos de legitimação da força da decisão no estabelecimento do
diálogo com o discurso da autoridade. As garantias principais de legitimidade,
indicadas por Ost, devem ser o respeito às condições de discussão e respeito aos
direitos fundamentais. Este é o juiz pretendido: que busca o preenchimento do
Direito na circulação do discurso e que legitima sua ação na democracia do agir.
Trata-se do protagonismo judicial que se pretende democrático e eficaz144.
O conceito da função social deve ser preenchido pela análise objetiva
dos operadores jurídicos, exigindo a atuação do juiz num processo de diálogo
multidisciplinar, no qual deve ser considerado o contrato como produtor de efeitos
para terceiros, a necessidade de adequação do objeto da avença ao respeito dos
direitos humanos não positivados e a compatibilização do acordado com eventuais
onerosidades excessivas supervenientes ou já presentes desde o início do pacto.
Essas são as construções possíveis para a função social do contrato e que exigem
seriedade e rigor na análise, sem restrições ao comando estrito da norma e sem
buscar a legitimação da decisão apenas na vontade individual do juiz.
A instrumentalização do artigo 421 do Código Civil, em decorrência,
143 CÁRCOVA, Carlos Maria, op. cit., p. 175. 144 NALIN, Paulo, Cláusula geral e segurança jurídica no Código Civil In Revista Trimestral de Direito Civil , p. 59.
131 exige a busca de construções hermenêuticas adequadas, que sejam eficazes e
coerentes com o princípio democrático e com os demais princípios constitucionais. E
essa busca de novos modelos de interpretação e atuação jurisdicional, deu origem à
corrente de pensamento jurídico contemporâneo nominada de constitucionalismo
pós-positivista ou neoconstitucionalismo, a qual reconhece a Constituição como
concretizadora de princípios morais e que passamos a seguir a examinar.
6.4. O neoconstitucionalismo
O constitucionalismo moderno ou neoconstitucionalismo é entendido
como “o processo históricocultural, em virtude do qual a relação entre detentores do
poder e quem a ele está sujeito se configura como uma relação jurídica, definida,
regulada e submetida a regras jurídicas conhecidas”. A normatização dessa relação
jurídica ocorre hoje, em toda parte em que o constitucionalismo vingou, salvo
esporádicas exceções, precipuamente por meio da Constituição145 .
O termo neoconstitucionalismo pode representar uma teoria, uma
ideologia ou um método de análise do direito ou, ainda, pode designar alguns
elementos estruturais de um sistema jurídico e político, um modelo de Estado de
Direito. O prefixo neo sugere uma nova teoria acerca da interpretação do Direito,
como se o constitucionalismo contemporâneo estivesse em desenvolvimento sob
bases contrapostas ao seu passado histórico. Realmente, é possível visualizar
elementos nessa corrente de pensamento que justificam a sensação geral
compartilhada pela doutrina de que o novo modelo constitucional solidarista
145 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales , p. 34.
132 provocou profundas modificações no campo do Direito, pelo que razoável que se
considere tratar-se de algo novo.
Há várias teorias que não podem ser reunidas numa corrente unitária
de pensamento, como as defendidas por Dworkin 146, Alexy147, Sanchís148, e outros,
mas é possível encontrar uma série de coincidências e tendências comuns que
estão a indicar uma nova cultura jurídica, baseada no paradigma do Estado
constitucional de direito.
Considerando o objetivo desse estudo, voltado à função social do
contrato de trabalho, não vamos tratar das teorias de forma individual, dada a
complexidade da matéria. Contudo, é possível identificar entre elas alguns pontos
comuns, assim sintetizados por Vale: a) a importância dada aos princípios e valores
como componentes elementares dos sistemas jurídicos constitucionalizados; b) a
ponderação como método de interpretação/aplicação dos princípios e de resolução
dos conflitos entre valores e bens constitucionais; c) a compreensão da Constituição
como norma que irradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, condicionando toda
a atividade jurídica e política dos poderes do Estado e até mesmo dos particulares
em suas relações privadas; d) o protagonismo dos juízes em relação ao legislador
na tarefa de interpretar a Constituição; e) enfim, a aceitação de alguma conexão
entre Direito e moral149.
Nas palavras de Sanchís, inspirado em Alexy, pode-se dizer que o
perfil do constitucionalismo contemporâneo se resume em: mais princípios que
regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que 146 Cf. DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério . 147 Cf. ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho . 148 Cf. SANCHÍS, Luis Prieto, Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales . 149 VALE, André Rufino do, Aspectos do Neoconstitucionalismo In Revista Brasileira de Direito Constitucional , p. 67-68.
133 legislador150.
Não se trata, portanto, de um movimento, mas de um conjunto de
teorias que compartilharam do mesmo objetivo, no sentido de identificar os aspectos
relevantes do direito dos Estados que adotaram Constituições caracterizadas pela
forte presença de direitos, princípios e valores como as Constituições da Itália
(1948), Alemanha (1949) e Espanha (1978), contexto no qual as Constituições de
Portugal (1976) e do Brasil (1988) inserem-se perfeitamente.
O neoconstitucionalismo pode ser identificado por seus três marcos: o
histórico, o filosófico e o teórico. O marco histórico do novo direito constitucional, na
Europa continental, foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na
Alemanha. No Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização
que ela ajudou a protagonizar. O marco filosófico é o pós-positivismo, que busca ir
além da legalidade estrita, empreendendo uma leitura moral do Direito e o marco
teórico representa o reconhecimento da força normativa da Constituição; da
expansão da jurisdição constitucional e a nova interpretação constitucional.
Alguns fatores podem ser considerados como responsáveis por essa
nova corrente de pensamento como a pluralidade de fontes normativas em
substituição ao monopólio legislativo, o estabelecimento do juízo de ponderação
como substitutivo do processo de subsunção, a necessidade de concretização
judicial de direitos essenciais e o desenvolvimento das teorias da argumentação
jurídica.
A doutrina neoconstitucionalista, em síntese, ressalvadas as
peculiaridades das várias teorias, possui como principais elementos identificadores,
150 Ibid., p. 68.
134 os seguintes:a) o reconhecimento da força normativa da Constituição; b) a
valorização dos princípios constitucionais (mais princípios que regras; c) a aplicação
de nova interpretação constitucional (mais ponderação que subsunção); d) a
constitucionalização do Direito (efeito expansivo das normas constitucionais, cujo
conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa por todo o sistema
jurídico); e) a coexistência de pluralidade de valores; f) a expansão dos poderes do
judiciário para conformação dos princípios constitucionais (ativismo judicial; em lugar
da autonomia do legislador); g) a judicialização de questões políticas e sociais; h) a
nova interpretação constitucional (técnica da ponderação ao invés da técnica da
subsunção); i) a reaproximação entre direito em moral, entre direito e ética.
O neoconstitucionalismo une elementos de forte conteúdo normativo e
garantia jurisdicional. Segundo Sanchís, é uma noção de poder constituinte mais
liberal que democrático e, como resultado, tem-se uma Constituição bastante
transformadora, que pretende condicionar as importantes decisões da maioria e cujo
protagonista fundamental não corresponde ao legislador, mas aos juízes. A
proposta, portanto, é de conjugação de uma Constituição normativa e garantista. É
normativa, pois cria diretamente direitos e obrigações exigíveis; sua eficácia não
depende de vontades legislativas. O caráter garantista supõe que seus preceitos
podem valer através de procedimentos jurisdicionais existentes à proteção dos
direitos151.
Comanducci sistematiza o neoconstitucinalismo em três aspectos: o
neoconstitucionalismo teórico, o ideológico e o metodológico152.
151 SANCHÍS, Luis Prieto, Neoconstitucionalismo y ponderación judicia In CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), p. 126. 152 COMANDUCCI, Paolo, Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico In CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s) , p. 83-87.
135
Segundo ele, o neoconstitucionalismo teórico diz respeito ao sucesso
do processo da constitucionalização do direito que operou uma imensa
transformação dos sistemas jurídicos contemporâneos, já que não mais reflete as
teses formalistas positivistas, identificando duas formas de conceber a constituição:
o descritivo e o axiológico, A adoção de um modelo ou de outro irá interferir na
maneira como são interpretadas as normas constitucionais. Na adoção do modelo
descritivo, a constituição é interpretada como qualquer lei, mas se o modelo adotado
for o axiológico, a constituição é interpretada de acordo com valores morais a serem
perseguidos153.
O neoconstitucionalismo ideológico, por sua vez, representa um
modelo axiológico de conceber a constituição e evidencia a obrigação dos poderes
públicos de protegerem os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Sustenta
que se aproxima do positivismo ideológico porque defende também uma obrigação
moral de obedecer à constituição. Por isso, ao defender um modelo axiológico de
constituição, demonstra uma versão taxativa quanto à especificidade da aplicação e
interpretação das normas constitucionais, o neoconstitucionalismo metodológico se
contrapõe ao positivismo conceitual, sua versão semelhante, por defender um
conceito de direito separado da moral. Portanto, o neoconstitucinalismo ao
estabelecer o enlace necessário entre princípios fundamentais e o conteúdo
constitucional, identifica e justifica como direito um ordenamento que esteja de
acordo com juízos morais. As normas somente serão consideradas jurídicas se
tiverem um fundamento ético.
Assim, o chamado neoconstitucionalismo teórico evidencia a
onipotência da Constituição no sistema jurídico, o que implica reconhecer que os 153 Ibid., p. 84.
136 princípios constitucionais estão presentes em todos os campos do Direito, bem
como a onipotência judicial, eis que o legislador perde autonomia porque a
Constituição oferece orientações para as mais diversas áreas, as quais são
confiadas à garantia judicial, havendo prevalência da ponderação sobre a
subsunção.
Como ideologia, o constitucionalismo pós-positivista põe em segundo
plano a dimensão constitucional de limitação do poder estatal e valoriza seu caráter
de garantidora dos direitos fundamentais. O neoconstitucionalismo valoriza
positivamente e busca a defesa e ampliação do processo de constitucionalização
para tutela dos direitos fundamentais154.
Como metodologia, em substituição ao positivismo ideológico, sempre
é possível identificar e descrever o Direito como é, distinguindo-o como dever-ser e
excluindo-se uma conexão necessária entre Direito e moral. A tese é a de que
qualquer decisão jurídica e, em particular, a decisão judicial, está justificada, em
última instância, numa norma moral155.156
Em decorrência, a legitimidade de uma Constituição está determinada
por princípios morais que veiculam direitos fundamentais, sendo que as
indeterminações semânticas e sintáticas apenas podem ser superadas em
considerações valorativas que devem ser identificadas na ponderação de princípios.
Havendo uma inafastabilidade dos juízos morais como resposta a conflitos jurídicos,
em especial os que dizem respeito à tutela de direitos fundamentais, o efeito é um
poder de decisão nas mãos da magistratura, ainda que de natureza distinta da
154 SANCHÍS, Luis Prieto, Constitucionalismo y Positivismo , p.74 155 Ibid., p. 52. 156
137 encarnada no legislador. Assim, a questão a ser considerada é se o juiz poderá
aplicar os princípios constitucionais ou mesmo considerar certa norma legislada
como inválida, principalmente no que respeita à função social do contrato,
considerando tratar-se de cláusula geral, e sua aplicabilidade na seara trabalhista.
6.5. O juízo de ponderação
Como já referido, o neoconstitucionalismo põe em relevo o
protagonismo judicial, eis que a grande quantidade de tutelas a nível constitucional
exige do julgador a análise de diversos princípios para aplicação ao caso concreto.
Isso exige maior preparo do juiz para lidar com a questão pela ausência de normas
completas e pela multiplicidade de princípios, surgindo o dilema de ter de escolher
um determinado valor jurídico em detrimento de outro, embora igualmente acolhidos
pela Constituição.
Esta escolha é resultado de um juízo de ponderação, considerado
como o procedimento de tomada de decisão empregado pelo juiz quando lida com
tensões entre valores ou interesses constitucionais que se chocam, tarefa que vem
se desenvolvendo não só pelo Supremo Tribunal Federal, mas também por todos os
demais órgãos integrantes do Judiciário.
O ideal de justiça está necessariamente vinculado à busca do equilíbrio
entre interesses conflitantes que se apresentam para composição pelo judiciário, o
qual detém a árdua missão de conciliar pretensões contrapostas, muitas vezes
inconciliáveis entre si. Buscar caminhos e soluções é o desafio que se apresenta ao
operador do direito considerando a multiplicidade de perspectivas, teorias e
138 concepções, cujo enfrentamento requer o uso de técnicas que demonstrem a força
do convencimento, pelo discurso e argumentação. E argumentar é propor soluções
que passem pela etapa da ponderação, com o empenho de motivações racionais e
interpretação do ordenamento jurídico.
A atividade jurisdicional não mais se entende como um exercício de
pura extração de conclusões a partir de premissas inequívocas estabelecidas pelo
julgador. Impõe-se que a decisão seja justa e ela o será, na visão não-legalista, se
puder ser devidamente.
Isso é assim em todos os domínios do Direito, sendo que quanto mais
aberta a textura normativa do ramo jurídico considerado, maior haverá de ser o
espaço para o confronto de teses igualmente razoáveis. No Direito Constitucional,
com o fenômeno conhecido por “rematerialização da Constituição”, que se exprime
pela multiplicação de normas de cariz principiológico, a tendência é a da assiduidade
das colisões de pretensões e valores díspares. Esses conflitos revestem-se de
essencial importância, uma vez que concernem a aspectos de estrutura do próprio
Estado e importam conseqüências decisivas para a compreensão dos direitos
fundamentais. O assunto ganha relevo, porque se reconhece status jurídico ímpar à
Constituição no contexto das normas jurídicas e um papel decisivo na ordenação da
sociedade.
Os autores que de forma mais intensa têm desenvolvido o tema são
Alexy, Guastini e Sanchís. Vamos apenas referir aos aspectos convergentes das
teorias que interessam ao objetivo deste trabalho, sem a pretensão de esgotar a
matéria dada a complexidade de seu conteúdo.
A circunstância da prevalência judicial não significa a outorga de
139 liberdade de convicções morais subjetivas, mas razões morais relevantes, na busca
de critérios corretos, fundados em convicções gerais, tomadas a partir de discussões
jurídicas precedentes. Para Alexy, o modelo hermenêutico não é suficiente para a
solução do problema da interpretação correta. A interpretação, para o autor, traduz-
se no ato de argumentar157.
Três características podem ser identificadas: a) a ponderação se
realiza entre dois princípios em conflito, sem relações de especialidade, cujos
supostos de fato se superpõem parcialmente; b) o intérprete estabelece uma
hierarquia valorativa, mediante juízo de valor; c) a hierarquia é estabelecida em caso
concreto, não tendo valor em abstrato.
Dworkin, defende que os juízes têm a obrigação de aplicar os
princípios porque formam parte especial do Direito158.
Entretanto, quando há conflito constitucional, não é possível resolver
pelo critério da especialidade, sendo inviável resolver o conflito com a declaração de
invalidade de alguma das razões ou estabelecer de forma definida uma hierarquia
entre elas que não está na Constituição. Nesse caso, há necessidade de ser feito o
sopesamento de princípios para, apenas no caso concreto, definir qual o princípio
prevalente. A necessidade da utilização do método da ponderação decorre do fato
de que não existe uma descrição exaustiva dos supostos de aplicação dos
princípios, nem uma indicação das conseqüências de sua aplicação. Cabe, portanto,
apenas formular um enunciado, trazendo a hierarquia móvel ou axiológica restrita ao
caso concreto, objetivando, por meio da ponderação, resolver conflitos entre
princípios de mesmo valor ou hierarquia. O perfil de delimitação dos direitos não
157 ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos , p. 43-44. 158 DWORKIN, Ronald, O império do direito , p. 71.
140 vem em abstrato e de modo definitivo, mas aparece em concreto pela necessidade
de justificação da tutela de outros direitos ou grau pretendido.
A ponderação, portanto, exige proporcionalidade, que implica
estabelecer uma ordem de preferência relativa ao caso concreto. A busca não é de
uma resposta válida para tudo, mas de uma preferência relativa ao caso concreto,
que não exclui uma solução diferente em outros casos ou declaração de invalidade
dos bens ou valores em conflito, ou exceção permanente. Ambos são abstratamente
preservados, ainda que no caso concreto se reconheça a primazia de um sobre
outro.
O método não se opera automaticamente, tampouco em apenas um
ato. Sanchís faz referência a fases distintas no processo de ponderação.
Primeiramente, deve-se averiguar que a medida tenha um fim constitucionalmente
legítimo, como fundamento de interferência na esfera de outro princípio de direito.
Num segundo momento, a máxima ponderação requer creditar a adequação,
aptidão ou idoneidade da medida objeto de ajuizamento em ordem à proteção ou
consecução da finalidade expressada: a atuação que afete a um princípio ou direito
constitucional deve mostrar-se consistente com o bem ou com a finalidade em cuja
virtude se estabelece. Por fim, a ponderação se completa com o juízo de
proporcionalidade em sentido estrito, que condensa todas as exigências anteriores e
encerra o núcleo da ponderação, aplicável tanto às interferências públicas como às
condutas particulares159.
A partir de tais fases, percebe-se que a ponderação não é método
alternativo à subsunção, pois ambas operam em fases distintas da aplicação do
159 SANCHÍS, Luis Prieto, Neoconstitucionalismo y ponderación judicial In CARBONELL (org.), Neoconstitucionalismo(s) , p. 149-150
141 Direito. Se não há conflitos de princípios, o juiz se limita a subsumir, sem
ponderação. Mas caso haja um problema de princípios – os hard cases de Dworkin
- é preciso seguir pelo caminho da ponderação: obriga-se subsumir, constatar que o
caso está incluído no campo de aplicação dos princípios. Depois de ponderar,
novamente aparece a subsunção, quando se aplica a regra gerada pela ponderação:
superada a antinomia, opera-se a nova regra pela premissa normativa da
subsunção160.
O processo de ponderação defendido pelos autores citados,
ressalvadas algumas pequenas divergências, guardam relação com o da
argumentação moral, ao obrigar o intérprete ao desenvolvimento de uma
racionalidade em relação aos princípios e ao estabelecer as etapas de sua
realização. E a compreensão da técnica da ponderação requer o exame do processo
argumentativo para complementá-la.
6.6. O processo argumentativo
São inúmeras as teorias que tratam do processo argumentativo quando
há necessidade de aplicação de um princípio para a formação da norma ao caso
concreto, não sendo objetivo deste trabalho analisá-las individualmente, haja vista a
complexidade que envolve cada uma delas. Assim, iremos apenas fazer referência,
ainda que de forma superficial, aos aspectos que interessam à conclusão deste
trabalho.
160 DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério , p. 127 ss.
142
Gargarella reconhece que as principais críticas ao caráter
contramajoritário – a atuação não-democrática – do Poder Judiciário nascem, em
boa medida, na abertura que chama de brecha interpretativa, a abertura do processo
interpretativo161.
Alexy, Dworkin e Habermas, por sua vez, não visualizam a
interpretação como uma brecha, mas a melhor forma de outorga de legitimidade à
decisão. E com base nessa linha é que será desenvolvido o tema do vasto campo
da argumentação, buscando abordar seus fundamentos e requisitos.
Dworkin admite que podem haver conflitos entre princípios e que o juiz
deverá dar vitória ao princípio que tenha maior força de convencimento. A tarefa do
julgador é de justificação racional do princípio eleito, mas propõe um modelo
baseado na resposta correta sempre encontrada pelo juiz no direito preestabelecido.
Também afasta a teoria silogista, estabelecendo que os juizes não fundamentam
suas decisões em objetivos sociais ou diretrizes políticas, mas em princípios que
fundamentam os direitos162.
Para o autor, que vê o direito como integridade, as afirmações jurídicas
são opiniões interpretativas, na medida em que interpretam a prática jurídica
contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Possuem
características construtivas tanto em relação à fonte de inspiração quanto ao produto
da interpretação dessa prática jurídica, apresentando, assim, aos juízes que
decidem casos difíceis, um programa essencialmente interpretativo, baseado na
161 GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno. Sobre el carácter c ontramayoritario del poder judicial , p. 59. 162 DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério , p. 23.
143 consideração de todas as virtudes componentes e construção de sua teoria geral do
direito contemporâneo a fim de refletir coerentemente sobre os princípios.
O modelo do discurso da interpretação jurídica surge como reação às
insuficiências e debilidades de modelos alternativos, como o modelo dedutivo, o
modelo decisório, o modelo hermenêutico e o modelo de coerência163.
Alexy, quanto à resolução dos conflitos entre princípios, não atribui o
caráter de decisionismo (subjetivismo) defendido pelo positivismo e propõe uma
teoria cognoscitivista, apresentando um critério de racionalidade comunicativa
(procedimental-discursiva) e justificando a escolha pelos pressupostos jurídicos e
fáticos. A pretensão de correção vincula-se à justificação.
Como já vimos, a colisão de princípios deve ser resolvida a partir do
critério do peso ou ponderação, sendo importante estabelecer uma relação de
precedência entre os princípios colidentes. Mas não há relação de precedência a
priori entre os princípios, de modo que a questão decisiva está na identificação das
condições para que se encontre a prevalência de um princípio sobre outro. Nesse
momento, adensa-se o papel da argumentação. Detendo ambos os princípios em
colisão, o potencial de aplicação, o estabelecimento da prevalência, dependerá da
carga de argumentação operada pelo julgador164.
Há necessidade de um procedimento racional para que os princípios
fundamentais não fiquem adstritos a um campo de decisionismo e voluntarismo.
Duarte defende uma mudança no conceito de validez. A necessidade é de que haja
controle de correção jurídica das normas objetivamente apresentadas em
163 CÁRCOVA, Carlos Maria, op. cit., p. 176-178. 164 ALEXY,Robert, Los derechos fundamentales en el estado constitucional democrático In CARBONELL, Miguel (org.), Neoconstitucionalismo (s) , p. 91-92.
144 parâmetros de validez, tanto formais como substanciais. Deve-se partir de uma
“regra de reconhecimento” normativo que se constrói de forma intersubjetiva
(racionalidade comunicativa), a partir de procedimentos racionais de argumentação
que pretendam inferir a busca de razões para a justificação da validez da norma em
questão165.
A crítica é a de que a teoria dos princípios implicaria ponderações que
levariam a insegurança insuportável, além de estar vinculada à teoria dos valores. A
essa crítica, Alexy, apoiado em Wright, responde que princípios e valores pertencem
a campos diversos: os primeiros reportam-se ao âmbito deontológico, ao passo que
os últimos relacionam-se com o âmbito axiológico. Sendo os princípios mandados de
otimização, residem na seara do dever-ser e, portanto, situam-se no âmbito
deontológico. O processo que defende não é de regras de valoração, mas de
estabelecimento de critérios de valoração, vez que a aplicação de critérios de
valoração entre os quais se deve sopesar corresponde à aplicação de princípios166.
A diferença entre princípios e valores se reduziria, assim, a um ponto: o que nos
modelo de valores é qualificado como “melhor”, no modelo dos princípios é o
“devido”. Trata-se da distinção pertinente aos âmbitos deontológico e axiológico167.
Resumindo, a validez, como critério, não é objeto de algum tipo de
evidência, dependendo de fundamentação, a qual pode ocorrer no âmbito jurídico,
social ou ético. Deve ser afastada a idéia de que a ponderação restaria ao inteiro
arbítrio de quem a realiza, eis que esta não consiste apenas na obtenção de modelo
de decisão, mas, sim, de um modelo de fundamentação, num enunciado racional de
165 DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito – Aproximação à metodologia discursiva do direito , p. 50. 166 ALEXY, Robert, La estructura de las normas de derecho fundamental In ALEXY, Robert (org.), Teoría de los derechos fundamentales , p. 144. 167 Ibid., p. 146.
145 preferência. Por certo que a regra constitutiva para as ponderações não refere à
importância de um princípio em relação a outro, se maior ou menor, pois o juízo não
pode ser feito a priori. Entretanto, estabelece que é essa importância que deve ser
fundamentada para justificar um enunciado de preferência condicionado.
A tônica da teoria do discurso é a de poder discutir racionalmente sobre
os problemas práticos com uma pretensão de retidão168. Alexy esclarece que a
teoria do discurso, de forma alguma, substitui a fundamentação pela simples
elaboração de consensos. Antes disso, ela incorpora completamente as regras do
argumentar racional, que estão referidas em argumentos169.
Para que se afaste a índole monológica do processo, deve-se
assegurar regras de imparcialidade na argumentação prática. Mas, evidentemente, a
idéia do discurso não é uma idéia neutra. Ela encerra a universalidade e a
autonomia da argumentação. Por isso, Alexy afirma que a validade universal das
regras de discurso pode fundamentar-se com um argumento composto de três
partes distintas: a) argumento transcendental (que compõe o núcleo do argumento e
determina essencialmente seu caráter universal); b) argumento centrado na
maximização da utilidade individual; c) premissa empírica sobre a existência de
homens com um interesse em correção170.
Em relação à fundamentação dos direitos humanos, são três as
classes de argumentação teorético-discursivas propostas por Alexy. O argumento da
autonomia refere-se ao pressuposto de autonomia do interlocutor, excluindo-se a
impugnação de dados direitos humanos. O segundo argumento – de consenso –
168 ALEXY, Teoría del discurso y derechos humanos , p. 47. 169 Ibid., p. 49. 170 Ibid., p. 72-73.
146 baseia-se em “suposições sobre resultados necessários ou impossíveis dos
discursos”171: consiste na introdução da imparcialidade no âmbito do discurso e, com
isso, da igualdade. O terceiro argumento é o da democracia e funda-se na
institucionalização jurídica de procedimentos democráticos, possibilidade de
realização aproximada das exigências da racionalidade discursiva e cumprimento de
alguns direitos fundamentais e humanos não políticos.
As regras democráticas do discurso são compartilhadas por Alexy e
Habermas, o qual procura construir um sistema contrafático de discurso racional,
que possa servir de base epistemológica de correção das pretensões de validez dos
juízos normativos. Ele entende que o critério de medição de imparcialidade não se
satisfaz com um sistema de julgamento que justifica normativamente a correção de
decisões, desde uma ponderação convincente de razões apresentadas pelas partes
e decididas por um terceiro imparcial, o juiz. Para ele, a argumentação continua
sendo o único meio disponível para assegurar-se da verdade.
Em resumo, Habermas e Alexy propõem formas procedimentais-
discursivas com critérios para a universalização de enunciados normativos dentro de
um modelo de ciência que busca racionalidade aos argumentos práticos-morais a
partir de postulados metodológicos-deontológicos. Devem-se respeitar as regras do
discurso desde uma teoria dos direitos fundamentais que atua, inicialmente, pela
liberdade e igualdade no discurso e se conecta, após, ao procedimento de
concretização daqueles direitos fundamentais. A tarefa da metodologia jurídica deve
ser de elaborar um modelo de argumentação que compartilhe todas as
possibilidades de diferenciação, confrontação e reconciliação de posições de
interesses e de valores contrários na busca de uma solução socialmente justificável. 171 Ibid., p. 114.
147
Duarte compartilha com Habermas e Alexy a idéia de que o jurista deve
realizar uma tarefa que responda a uma sociedade comunicativa, vez que se trata
de uma comunidade plural e complexa172. Propugna que a solução deve surgir do
consenso, a partir de opiniões diferentes. Será produto de um entendimento
produzido em função da pragmática concebida num espaço de discussão
comunicativa que buscará a congruência de expectativas em relação à pluralidade
de sentidos plausíveis173. A finalidade da estruturação de princípios de
argumentação é a de procedimentalizar a concretização dos direitos fundamentais.
6.7. Críticas ao processo de ponderação
A crítica mais intensa ao processo de ponderação é a da ilegitimidade
do Poder Judiciário, que atuaria como invasor das atribuições conferidas ao poder
constituinte, pois, ao atribuir ao juiz o poder de interpretar a constituição com base
em princípios e de declarar a inconstitucionalidade das leis, permitiria uma
usurpação da função legislativa.
Entretanto, como já apontado, a ponderação não é a técnica que se
sobrepõe à subsunção de forma absoluta porque o próprio juízo de ponderação, em
fase específica, pressupõe também um processo de subsunção, além de não se
tratar de técnica a ser aplicada em todos os conflitos que se apresentam para
solução. Sua adoção deve ser direcionada apenas para os casos difíceis, em que
devem ser sopesados princípios constitucionais. A utilização de juízos morais não é
172 DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito – Aproximação à metodologia discursiva do direito , p. 206. 173 Ibid., p. 209.
148 usurpação de poder constituinte, pois o próprio valor, de forma abstrata, foi previsto
na Constituição: há uma razoável abertura interpretativa escolhida pelo constituinte.
Dúvida não há de que a valorização e aprimoramento dos processos
democráticos beneficiam a diminuição de tensões na sociedade mas não a
eliminam, sendo certo que não há como prever todas as situações de conflitos entre
valores nem soluções para todas as possibilidades.
As críticas ao subjetivismo não podem ser eliminadas mas sim
minimizadas, porque não tratamos de como procedem os juízes mas de como
deveriam proceder, além do que a ponderação verdadeira não pode dar lugar a
qualquer decisão. Devem os princípios ter suas propriedades relevantes bem
identificadas, a partir de uma teoria da argumentação afinada com os pressupostos
democráticos.
Os dois argumentos contrários à ponderação – margem de
discricionariedade e ilegitimidade do controle judicial da lei – são adequadamente
rebatidos por Sanchís, para quem a ponderação busca a norma adequada apenas
ao caso concreto174.
Não se trata de negociar entre valores, mas de construir uma regra
suscetível de universalização para todos os casos com análogas propriedades
relevantes. O juiz deverá dar solução ao impasse sem contrariar o legislador e
buscar uma interpretação argumentativa que permita a concretização pelo menos do
núcleo dos direitos fundamentais.
O neoconstitucionalismo inicialmente coloca em questão o dogma
positivista da unidade da ordem normativa e apenas no debate da aplicação de
174 SANCHÍS, Neoconstitucionalismo..., p. 153-154
149 direitos fundamentais há necessidade de ponderação e fundamentação
democrática-argumentativa da decisão.
Alexy, assim como Sanchís, defende que, sobre o controle judicial das
leis, a fiscalização abstrata poderia desaparecer sem maiores problemas para o
garantismo, mas tal não poderia ocorrer com a defesa dos direitos pela justiça
ordinária, sob pena de afastamento do caráter normativo da Constituição. Parece
claro que o método da ponderação representa certo risco à supremacia do legislador
e regras de maioria democrática, mas trata-se de um risco inevitável para que se
mantenha a força do constitucionalismo normativo. Por sua importância, a proteção
dos direitos fundamentais não pode ser confiada à maioria parlamentar simples.175
Assim, inevitável considerar o caráter valorativo e a margem de
discricionariedade que comporta o juízo, o que não significa, de qualquer forma, que
a ponderação estimule um subjetivismo vazio, eis que se não é garantida uma única
resposta, ao menos é indicado o caminho da argumentação necessária.
6.8. Segurança jurídica e atuação judicial criativa
A atuação judicial ora objeto de análise sofre, além das críticas já
apontadas, outra relacionada à falta de segurança jurídica que esse sistema
interpretativo poderá outorgar ao meio social. Há referência à diminuição do princípio
da legalidade e impossibilidade de reconhecer a jurisprudência como fonte
autônoma do Direito e de obrigações.
175 ALEXY, Robert, Los derechos fundamentales en el estado constitucional democrático In CARBONELL, Miguel (org.), Neoconstitucionalismo(s) , p. 39.
150
Considerando que já abordamos as questões relativas à forma de
legitimação democrático-institucional do juiz na concreção de conceitos jurídicos
abertos, e afastamento de pretensos “critérios pessoais” do julgador, passamos a
analisar a questão da segurança jurídica.
No campo do Direito Privado, as críticas são reforçadas pela convicção
de muitos doutrinadores sobre a ampla independência econômica do instituto
contratual e a necessidade de “salvar” o contrato de toda a sorte de exceções
exageradas aos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos
contratos.
Theodoro Jr., alerta para o risco da atuação que implique excessos do
judiciário ao dispor que
A adoção de um sistema normativo inspirado em conceitos abertos e
cláusulas gerais tem, é certo, suas virtudes, mas apresenta, também, riscos
e perigos que não são poucos nem pequenos. Uma norma legal em branco
evidentemente permite ao juiz preencher o claro legislativo de modo a
aproximar-se mais da justiça do caso concreto. O aplicador da lei, contudo,
sofre a constante tentação de fazer prevalecer seus valores pessoais sobre
os que a ordem jurídica adotou como indispensáveis ao sistema geral de
organização social legislada.176
Outros autores como Alvim também demonstram preocupação com o
tema, sinalizando para que não haja “exageros” na interpretação do contrato e que o
valor econômico encerrado no instrumento não seja jamais abandonado:
(...) um contrato, no fundo, apesar dessas exceções que foram apostas ao
princípio do pacta sunt servanda, é uma manifestação de vontade que deve
levar a determinados resultados práticos, resultados práticos esses que são
representativos da vontade de ambos os contratantes, tais como declarados
176 THEODORO JR., Humberto. O contrato e sua função social , p. 125-126.
151
e que se conjugam e se expressam na parte dispositiva do contrato. Nunca
se poderia interpretar o valor da função social como valor destrutivo do
instituto do contrato (...) 177
No Direito do Trabalho, inclusive, grande parte da doutrina e
jurisprudência defende que a necessidade de pacificação social entre as forças
representativas do capital e trabalho impede que o juiz possa estabelecer restrições
maiores ou diferentes das positivamente estabelecidas no ordenamento. A
“segurança” esperada é a de que trabalhadores e empregadores apenas terão o
especificamente estabelecido na legislação tutelar; que ela basta em si e que o juiz
trabalhista não pode conceber direitos e garantias que perpassem a letra da lei178.
Dúvida não há de que as cláusulas gerais contribuem para a
insegurança, haja vista a dificuldade de lidar com os novos instrumentos
recentemente introduzidos em nosso sistema jurídico, sendo que a ausência de
construções doutrinárias e jurisprudenciais a respeito intensificam esse quadro.
Some-se a isso a falta de coercitividade da previsão do artigo 421 do Código Civil,
por não se encontrar acompanhada de penalidade pelo descumprimento.
Naturalmente que a segurança alardeada não é outra que não a
segurança de mercado buscada pelos modelos do liberalismo clássico voltados à
obtenção de lucro. A possibilidade do judiciário ativamente interferir nas avenças,
por certo que acarreta certa incerteza nas expectativas econômicas que possui a
parte mais forte da contratação. A possibilidade de revisão dos contratos, como
exceção à pacta sunt servanda sempre foi vista sob a estrita perspectiva da
177 ALVIN, Arruda, A função social dos contratos no Novo Código Civil In PASINI, Nelson; LAMERA, Antonio Valdir Úbeda; TAVALERA, Glauber (coords). Simpósio sobre o novo Código Civil brasileiro , p. 100. 178 BARACAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no direito individual do trabalho p.31
152 alteração objetiva das circunstâncias. Ripert acentua que todo contrato é um
empreendimento sobre o futuro, de modo que tem, de forma intrínseca, a idéia de
segurança. Em suas palavras, “contratar é prever”.179. Mas também faz defesa da
possibilidade de revisão dos contratos na situação excepcional de imprevisão,
quando se aplica a cláusula rebus sic stantibus. Existirá abuso no momento em que
o desequilíbrio das prestações for de tal monta que o contratante não poderia
normalmente prever que iria tirar do contrato a vantagem esperada180.
De qualquer forma, mesmo admitindo a importância da construção
doutrinária da revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente, o foco
ora perseguido caminha por outro viés. A segurança jurídica objetivada deve ir além
da adequação da vontade individual às circunstâncias igualmente individuais do
momento. A segurança que deve ser perseguida não diz respeito apenas à
intangibilidade de cláusulas contratuais, mas aos objetivos esperados por toda a
sociedade, sem produção de lesões supervenientes aos contratantes e terceiros. O
contrato firmado sem a observância desse elementar princípio de justiça contratual
já tem em sua gênese o princípio da insegurança.
Seguindo essa ótica, Nalin esclarece que a segurança jurídica não está
mais no paradigma moderno da vontade, mas no pós-moderno da boa-fé. Para o
autor o novo perfil de segurança jurídica deve observar a abertura do sistema
privado, de modo que os princípios constitucionais de solidariedade orientem o
intérprete a localizar os seus mais importantes fundamentos. Essa construção leva
em conta, precipuamente, a justiça contratual contemporânea, baseada no equilíbrio
179 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 156. 180 Ibid., p. 158-159.
153 das obrigações181.
A questão da segurança jurídica atualmente exige uma reconstrução
da teoria contratual considerando o sistema jurídico como um todo, focando a busca
do equilíbrio entre as partes como resultado da valorização de todos os aspectos
objetivos e subjetivos que envolvem o pacto.
Nesse contexto, a boa-fé aliada à função social do contrato exercem
papel preponderante na pós-modernidade do paradigma da vontade, pois
representam diretrizes capazes de nortear o conteúdo dos contratos em benefício da
parte mais frágil e dos interesses da coletividade.
Segurança jurídica, justiça contratual e cláusulas gerais não
representam institutos inconciliáveis, embora num sistema capitalista pouco ou mal
regulado, possam entrar em atrito. Ocorre, conforme acentuado por Santiago, que a
idéia de segurança jurídica não pode ser usada para depreciar a validade da função
social do contrato, porque este princípio tem em seu bojo a idéia de justiça182.
Como enfatiza Gitelman, caberá ao juiz a tarefa de aplicar o direito
posto ao caso real, mas com o compromisso de garantir o cumprimento da
igualdade social, da função social do contrato, da função social da propriedade,
buscando sempre o equilíbrio entre as partes em suas decisões183.
6.9. Como caminha a jurisprudência
181 NALIN, Paulo, Do contrato: conceito pós-moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional , p. 213. 182 SANTIAGO, Mariana Ribeiro, O princípio da função social do contrato , p. 125-126. 183 GITELMAN, Suely Ester, Compromisso Científico do Jurista com a Dignidade do Homem e com a Parificação e Pacificação Social In NERY, Rosa Maria de Andrade, Função do Direito Privado no atual momento histórico , p. 492 ss.
154
Como já apontado, o princípio da função social tem previsão e
concreção constitucional e, em especial, aplicabilidade na relação de emprego e que
o método de ponderação na análise de casos concretos, com a aplicação e
interpretação direta de princípios constitucionais, a partir da argumentação, é o que
proporciona maior eficácia aos direitos fundamentais, como concretização da função
social do contrato.
Contudo, deve ser ressaltado que a ponderação, como já analisado,
não é método alternativo à subsunção, pois ambas operam em fases distintas da
aplicação do Direito, não comportando o método da ponderação se não houver
conflito de princípios constitucionais, dentre eles os que asseguram a dignidade da
pessoa humana e o respeito aos valores sociais.
A questão da função social do contrato de trabalho tem sido objeto de
julgados pelas Cortes Trabalhistas a exemplo dos anexos colacionados ao final
deste trabalho.
Por exemplo, a Terceira Turma do Colendo Tribunal Superior do
Trabalho, apreciando agravo de instrumento interposto (TST-AIRR-195000-
52.2005.5.15.0152), decidiu pelo descabimento do recurso de revista. A hipótese era
de aplicação da Súmula 396, I , do TST, pela qual, exaurido o período de
estabilidade, são devidos ao empregado apenas os salários do período
compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade, não
lhe sendo assegurada a reintegração no emprego. Tratava-se de condenação ao
pagamento de indenização relativa ao período de estabilidade por ser a reclamante
portadora de LER/DORT, reconhecida como doença profissional por laudo pericial,
155 sendo que a autora buscava a reintegração enquanto a ré pretendia eximir-se do
pagamento da indenização 184.
No julgamento pelo Regional, o relator apreciou a lide à luz do artigo
118 da Lei nº 8.213/91, considerando o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, bem como o da função social do contrato de trabalho, concluindo
por reconhecer o direito à indenização e não à estabilidade, pelo decurso do lapso
estabilitário. Isso porque o laudo médico apurou incapacidade parcial e permanente,
sendo que a prova produzida era no sentido da necessidade de afastamento por 60
dias.
Na fundamentação, trouxe à guisa de jurisprudência dois julgados que
confirmavam a reintegração de empregada portadora de neoplasia sob o
fundamento de que a inexistência de norma legal não constituía óbice para a
aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana do trabalhador e da função
social do contrato de trabalho.
No primeiro julgado, apontado como referência jurisprudencial, foi
realçado tratar-se de moléstia grave, em grande parte dos casos avassaladora, na
medida em que não somente destrói a resistência do portador, em especial pelos
tratamentos a que é obrigado a se submeter, como também sua auto-estima, sendo
ainda cercada de preconceitos e discriminação pela sociedade. Restou consignado
que embora não exista norma legal prevendo a estabilidade do portador de câncer,
até porque em determinadas fases da doença o paciente pode não estar
incapacitado para o trabalho, o caso deveria ser analisado pela ótica da função
social da empresa e do direito à existência digna, conforme princípio adotado pela
184 Vide Anexo 1
156 Constituição Federal, no art. 170, inciso III. O julgado realça a constatação de que
modernamente há autêntica mitigação do direito potestativo de resilição contratual,
em homenagem ao princípio da função social do contrato e à própria moralização
das relações jurídicas no Estado Democrático de Direito, que privilegia a dignidade
do ser humano, concluindo pela concessão da reintegração da obreira.
O segundo julgado apresentado como jurisprudência seguiu a mesma
linha ao enfrentar lide em que a autora também era portadora de neoplasia.
Considerou que o poder de resilição do pacto laboral encontra limitações nos
princípios que informam o ordenamento jurídico, em especial os princípios da
dignidade da pessoa humana, da função social do contrato e da função social da
propriedade privada.
Comparando as hipóteses acima referidas é possível identificar o uso
dos métodos de subsunção no caso da portadora de moléstia profissional e de
ponderação naqueles em que as autoras eram portadoras de neoplasia,
confirmando que o método de ponderação na análise de casos concretos, com a
aplicação direta de princípios constitucionais, a partir da argumentação, é o que
proporciona maior eficácia aos direitos fundamentais, como concretização da função
social do contrato de trabalho.
A jurisprudência dos nossos Tribunais, portanto, ainda que
timidamente, a exemplo dos acórdãos anexos, já acena no sentido de prestigiar a
função social do contrato e os princípios constitucionais que asseguram a dignidade
da pessoa humana e preservam o valor social do trabalho.
157
CONCLUSÃO
O contrato é um dos institutos que se adequaram às peculiaridades de
cada época e tipo de sociedade para atender aos interesses de cada momento
histórico.
O tema “função social do contrato de trabalho” encontra grande
repercussão no mundo jurídico, por alicerçado no redimensionamento constitucional
de elevação do trabalho à condição de valor social e na alteração positivada pelo
artigo 421 do Código Civil de 2002.
. O modelo clássico do Código Civil de 1916 tratava a autonomia da
vontade como uma fonte criadora de direitos e obrigações, exigindo um Estado que
garantisse o domínio econômico. O curso da história fez evoluir a teoria contratual
acompanhando a formação do Estado Social e reconhecendo os direitos de terceira
geração, cujas características são a solidariedade e a fraternidade.
A evolução no tratamento das relações contratuais foi captada pelo
legislador do Código de 2002. A nova sistemática adotou uma técnica legislativa
moderna, utilizando os conceitos legais indeterminados e cláusulas gerais, que
conferem ao sistema mobilidade e flexibilizam a rigidez dos institutos, conduzindo
para o respeito à função social como norma de ordem pública.
Com este novo perfil, o contrato deixou de ser um negócio jurídico
restrito aos contratantes e passou a ser visto como uma atividade humana que se
desenvolve em razão de sua função de respeitar o bem comum.
Na órbita do Direito do Trabalho a necessidade de restringir a liberdade
158 de contratar é antiga, mas o legislador optou pela positivação de padrões mínimos a
serem observados pelas partes, o que não esgota o sistema de proteção pela
ocorrência de situações não previstas no ordenamento e surgimento de novos
paradigmas com os avanços da tecnologia, informática e meios de comunicação,
criando novos impasses e agressões nas relações de trabalho.
A Constituição Federal em vigor reconhece a ordem econômica
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (CF, 170, caput), exalta
a busca do pleno emprego como princípio da ordem econômica (CC, 170, VIII),
prevê a repressão ao abuso do poder econômico (CC, 173, § 4º) e consagra
duplamente a função social da propriedade (CF, 5º, XXIII e 170, III), ao apontá-la
como garantia fundamental e como princípio da ordem econômica.
A elevação do trabalho à condição de valor social pela Lei Maior,
buscando uma sociedade mais justa e solidária, o avanço do Código Civil
reformulado a partir de mecanismos flexíveis focados nos valores sociais e a
crescente positivação infraconstitucional voltada à sociabilidade obrigam o repensar
de uma nova concepção para o contrato de trabalho: que ele exerça sua função
social.
E essa nova perspectiva coloca em relevo a atuação do Judiciário,
principalmente o trabalhista, por sua responsabilidade na preservação do equilíbrio
socioeconômico no contexto atual, de forma a justificar reflexão sobre os atuais
mecanismos para a solução de conflitos entre capital e trabalho.
Pelo presente trabalho buscou-se demonstrar que o princípio da função
social tem previsão e concreção constitucional e, em especial, aplicabilidade na
159 relação de emprego, amparando-se na premissa constitucional da dignidade
humana e despatrimonialização das relações jurídico-privadas. E, ainda, que o
método de ponderação na análise de casos concretos, com a aplicação e
interpretação direta de princípios constitucionais, a partir da argumentação, é o que
proporciona maior eficácia aos direitos fundamentais, como concretização da função
social do contrato.
Foram relacionados os traços fundamentais do constitucionalismo
contemporâneo, nominado neoconstitucionalismo, reconhecendo o fenômeno da
rematerialização constitucional, a ideologia de valorização dos direitos fundamentais
e a reaproximação entre direito e moral.
Alguns aspectos da função jurisdicional na solução dos conflitos foram
abordados, sem entretanto esgotá-los, buscando demonstrar que o juízo de
ponderação, intimamente relacionado com balanço, sopesamento e
proporcionalidade, representa uma metodologia com eficácia para a fixação de
soluções que mais se aproximem do ideal de justiça, permitindo melhor distinguir o
papel e os limites da atividade de julgar, diante da constatação de que o Direito não
se resume à mera aplicação de textos legais e de que estes não abrangem todo o
Direito.
Defendeu-se que a ponderação não é técnica que se sobrepõe à
subsunção de forma absoluta porque o próprio juízo de ponderação, em fase
específica, pressupõe também um processo de subsunção, além de não se tratar de
técnica a ser aplicada em todos os conflitos que se apresentam para solução. Sua
adoção deve ser direcionada para os casos em que houver conflito de princípios
constitucionais, dentre eles os que asseguram a dignidade da pessoa humana e o
respeito aos valores sociais.
160
Quanto à questão da segurança jurídica, deve haver uma reconstrução
da teoria contratual considerando o sistema jurídico como um todo, focando a busca
do equilíbrio entre as partes como resultado da valorização de todos os aspectos
objetivos e subjetivos que envolvem o pacto. Nesse contexto, a função social do
contrato exerce papel preponderante por representar diretriz capaz de nortear o
conteúdo dos contratos em benefício dos interesses da coletividade. E essa,
efetivamente, é a missão do Judiciário.
161
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167
ANEXOS
ANEXO 1
A C Ó R D Ã O
(3ª Turma)
GMALB/avrr/abn/mc
PE
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA - DESCABI MENTO. ESTABILIDADE PROVISÓRIA DECORRENTE DE DOENÇA PROFIS SIONAL. REINTEGRAÇÃO CONVERTIDA EM INDENIZAÇÃO. Nos termos da Súmula 396, I, do TST, -exaurido o período de estabilidade, são devidos ao empregado apenas os salários do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade, não lhe sendo assegurada a reintegração no emprego- (Súmula 333/TST e art. 896, § 4°, da CLT). Agravo de instrumento conhecido e desprovido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n° TST-AIRR-195000-52.2005.5.15.0152, em que é Agravante MÁRCIA ADRIANA CORDEIRO e Agravada EMS S.A.
Pelo despacho recorrido, originário do Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, denegou-se seguimento ao recurso de revista interposto (fls. 412/413).
Inconformada, a Reclamante interpõe agravo de instrumento, sustentando, em resumo, que o recurso merece regular processamento (fls. 415/420).
Sem contraminuta e contrarrazões (fl. 872-PE).
Os autos não foram encaminhados ao D. Ministério Público do Trabalho (RI/TST, art. 83).
É o relatório.
V O T O
ADMISSIBILIDADE.
Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do agravo de instrumento.
MÉRITO.
ESTABILIDADE PROVISÓRIA DECORRENTE DE DOENÇA PROFISSIONAL. REINTEGRAÇÃO CONVERTIDA EM INDENIZAÇÃ O.
168 O Regional manteve a sentença pela qual a Reclamada foi condenada ao pagamento de indenização relativa ao período de estabilidade. Assim está posto o acórdão (fls. 364-v/366-v):
-2 - Recurso da reclamada
2.1.- Doença profissional - estabilidade - reintegração (análise conjunta)
2.1.1- Insurge-se a reclamada contra o reconhecimento da estabilidade acidentária, enquanto a autora busca o deferimento de reintegração, e não da indenização compensatória.
Pois bem. De acordo com o bem elaborado laudo pericial, a reclamante foi submetida a exame físico ortopédico, complementado por avaliação do posto do trabalho, que apontou ser a mesma portadora de doença inflamatória em membro superior esquerdo (cotovelo esquerdo), patologia classificado como LER/DORT (fl. 231). Ainda consta da vistoria ao posto de trabalho que a autora laborava em esforço com movimentos repetitivos e contínuos com os membros superiores (fl. 230). Assim, concluiu que há nexo causal entre a lesão e a atividade exercida na empresa e que há incapacidade laborativa parcial e definitiva (fl. 231).
No mais, a reclamada não apresentou qualquer elemento técnico ou fático capaz de desconstituir a conclusão pericial. Com efeito, não socorre à ré o argumento de que ao tempo do rompimento contratual não havia obstáculo para exercício do poder potestativo. É que a jurisprudência pacífica do C. TST já analisou a questão, de modo que em se tratando de doença profissional, cujos sintomas são progressivos, nada impede que o reconhecimento se dê após a ruptura, independentemente da percepção de auxílio-doença acidentário (Súmula n. 378, II, do C. TST).
De qualquer forma, ao contrário do que tenta fazer crer a ré, há que se presumir que tinha conhecimento da doença profissional. Com efeito, o reclamante afirmou na exordial que, por determinação médica, a reclamada alterou a função da reclamante em agosto/04 (fl. 3), juntando inclusive o relatório médico de fl. 20, datado de 20/08/04. Ocorre que a reclamada não impugnou tal fato alegado na peça vestibular, nem impugnou a referida declaração médica, o que atrai a aplicação do art. 302 do CPC.
Aliás, basta levar em conta os atestados e relatórios médicos que apontam a lesão no membro superior esquerdo (fls. 18/22) ainda durante o curso do contrato de trabalho, o que também é confirmado no laudo pericial pela análise do prontuário médico (fl. 223). O relatório de fl. 18, por exemplo, menciona tratamento de tenossinovite desde 2004 (o contrato foi rompido em março de 2005), enquanto que a declaração de fl. 22 informa a necessidade de investigação para confirmação de nexo causal e possível abertura de CAT.
Portanto, nego provimento ao recurso da reclamada.
2.1.2- Passo a analisar o recurso da obreira, que reitera a reintegração.
Pessoalmente venho entendendo que, nas hipóteses de incapacidades permanentes, com a conseqüente inexistência de alta médica, não há como iniciar a contagem do prazo ânuo previsto no art. 118 da Lei nº 8.213/91. Aliás, permitir que nesses casos o empregador, após impingir ao empregado incapacidade laboral
169 permanente, dispensar o seu empregado um ano após, mediante uma interpretação distorcida do art. 118 da já citada lei, implicaria ferir de morte o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como o da função social do contrato de trabalho. Tal posicionamento encontra eco na jurisprudência, conforme a seguir ementado:
'REINTEGRAÇÃO. DISPENSA IMOTIVADA. EMPREGADA PORTADORA DE NEOPLASIA. DIREITO POTESTATIVO DE RESILIÇÃO CONTRATUAL ENCONTRA LIMITES NOS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Preliminar - nulidade da sentença - cerceamento de defesa. Rejeito. verifica-se, pela fundamentação da r. sentença recorrida, que a argumentação acerca da contestação não conduziria a resultado diferenciado. Nestes termos, rejeito a preliminar, e passo ao mérito, nos termos do artigo 515 e parágrafo 1º do CPC. Mérito. A recorrente é portadora de neoplasia e é sabido que tal moléstia é grave, em grande parte dos casos é avassaladora, na medida em que não somente destrói a resistência do portador, em especial pelos tratamentos a que é obrigado a se submeter, como também sua auto-estima, e ainda é cercada de preconceitos e discriminação, na nossa sociedade. Não obstante não exista norma legal prevendo a estabilidade do portador de câncer, até porque em determinadas fases da doença o paciente pode não estar incapacitado para o trabalho, o presente caso deve ser analisado pela ótica da função social da empresa, o do direito à existência digna, conforme princípio adotado pela Constituição Federal, no art. 170, inciso III. O que se verifica, modernamente, é uma autêntica mitigação do direito potestativo de resilição contratual, em homenagem ao princípio da função social do contrato e à própria moralização das relações jurídicas no Estado Democrático de Direito, que privilegia a dignidade do ser humano. Devida a reintegração, pois ao mais fraco deve ser assegurado um standard mínimo de direitos e de proteção jurídica, que possibilite uma vida digna. Há que se observar que a propriedade tem função social, nos termos do comando constitucional. Dou provimento ao pedido para determinar a reintegração da obreira, arcando o recorrido com o pagamento dos salários e vantagens devidas à obreira, nos termos da inicial. Plano de Saúde. Devida também a manutenção da assistência e tratamento médicos, nos mesmos moldes havidos antes da dispensa arbitrária e anteriormente deferidos pela liminar concedida. Dou provimento.' (TRT 2ª Regição, Processo 01713-2005-031-02-00-0, 10ª Turma, Desembargadora Relatora Marta Casei Momezzo, DJ: 15/04/2008).
'Poder Potestativo do Empregador. Limitação nas Garantias de Emprego e no respeito aos princípios que informam todo nosso ordenamento jurídico - artigos 1º, inciso III, 5º, inciso XXII, e 170, inciso III, da Carta Magna, e artigo 421, do Código Civil -. Dispensa de trabalhadora portadora de neoplasia após 30 (trinta) anos de dedicação à empresa. Negação do direito à vida e à saúde. Inexistência de norma legal prevendo a estabilidade do trabalhador portador de câncer. Observância aos princípios da dignidade da pessoa humana do trabalhador e da função social do contrato de trabalho. Ordem de reintegração que ora se mantém.
O poder de resilição do pacto laboral encontra limitações nas garantias de emprego, assim como no respeito aos princípios que informam todo o ordenamento jurídico, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no artigo 1o, inciso III, da Carta Magna. Com a adoção do aludido princípio, a Constituição Federal de 1988 implantou no sistema jurídico brasileiro uma nova
170 concepção acerca das relações contratuais, pela qual as partes devem pautar suas condutas dentro da legalidade, da confiança mútua e da boa fé. Tais premissas refletem o princípio da função social do contrato (artigos 421, Código Civil, e 8º, da CLT), o qual traduz genuína expressividade do princípio da função social da propriedade privada, consagrado nos artigos 5°, inc iso XXIII, e 170, inciso III, da Constituição Federal, ou seja, o contorno é constitucional e se sobreleva à imediatidade da rescisão contratual decorrentes dos interesses meramente empresariais.
A dispensa de trabalhadora portadora de neoplasia após trinta anos de dedicação à empresa a toda evidência importa verdadeira negação do direito à vida e à saúde, porquanto, dentro outros dissabores, conduz à depressão, ao distanciamento do convívio social e, consoante demonstram as regras de experiência, em sua maioria, ao desemprego.
A despeito da inexistência de norma legal prevendo a estabilidade do portador de câncer, até porque em determinadas fases da doença o paciente pode desenvolver normalmente suas atividades laborativas, imperiosa a solução controvérsia sob o prisma dos princípios da dignidade da pessoa humana do trabalhador e da função social do contrato. Ordem de reintegração ao emprego que ora se mantém- (TRT 2ª Região, 9ª Turma, proc. 00947200838102004, Rel. Des. Jane Granzoto Torres da Silva).
Feitas tais ponderações breves, registre-se que a MM. Juíza 'a quo', considerando que a CAT foi aberta no dia 03/05/05 (fl. 23), prevendo duração provável do tratamento de 60 dias, deferiu a indenização referente ao período da dispensa até 03/07/06.
Como se viu no laudo médico, a incapacidade da autora é parcial e permanente e, pelo que dos autos consta, houve necessidade de afastamento pelo período de 60 dias, que era a duração provável do tratamento (CAT de fl. 23), inexistindo qualquer elemento indicando que o tratamento perdura até os dias atuais. Inclusive relatou o perito que a demandante não recebe benefício previdenciário no momento (fl. 223), o que contraria a tese recursal de que ainda não teria alta médica.
Sendo assim, agiu com acerto a origem ao deferir apenas a indenização substitutiva, por já escoado o período estabilitário. Se a reclamante se insurge contra a impossibilidade de recuperação total da capacidade de trabalho, deveria formular postulação específica para discutir a diminuição da capacidade.
Como se não bastasse, a reclamante não se preocupou em provar os fatos supervenientes à CAT, não podendo, assim, ser presumida a inexistência de alta previdenciária.
Nada a reformar.-
Alega a Recorrente que tem direito à reintegração, pois, por ocasião da dispensa, já era portadora de doença profissional em razão das atividades realizadas na Ré. Indica violação do art. 118 da Lei n° 8.213/1991. Aponta contrariedade à Súmula 378/TST. Colaciona arestos.
O Regional reconheceu que a Autora era beneficiária da estabilidade provisória decorrente de doença profissional.
171 Assim, não se vislumbra ofensa ao art. 118 da Lei n° 8.213/2001, tampouco contrariedade à Súmula 378/TST.
Ocorre que, na hipótese em que o período de estabilidade já se encontra exaurido à data da sentença, não se mostra mais possível a reintegração, mas apenas o pagamento das parcelas contratuais que o trabalhador deixou de fruir. Nesse sentido a Súmula 396, I, do TST:
-SUM-396 ESTABILIDADE PROVISÓRIA. PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO. CONCESSÃO DO SALÁRIO RELATIVO AO PERÍODO DE ESTABILI-DADE JÁ EXAURIDO. INEXISTÊNCIA DE JULGAMENTO 'EXTRA PETITA' (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 106 e 116 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - Exaurido o período de estabilidade, são devidos ao empregado apenas os salários do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade, não lhe sendo assegurada a reintegração no emprego. (ex-OJ nº 116 da SBDI-1 - inserida em 01.10.1997)-.
Os arestos colacionados estão superados pelo entendimento acima reproduzido. Impõe-se o óbice do art. 896, § 4º, da CLT e da Súmula 333/TST.
Mantenho o r. despacho agravado.
Em síntese e pelo exposto, conheço do agravo de instrumento e, no mérito, nego-lhe provimento.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do agravo de instrumento e, no mérito, negar-lhe provimento.
Brasília, 22 de junho de 2011.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira
Ministro Relator
fls.
PROCESSO Nº TST-AIRR-195000-52.2005.5.15.0152
Firmado por assinatura digital em 27/06/2011 pelo sistema AssineJus da Justiça do Trabalho, conforme MP 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira.
172
ANEXO 2
A C Ó R D Ã O
1ª TURMA
VMF/sas/mx/mmc
RECURSO DE REVISTA - SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DE PROGRESSÃO HORIZONTAL - PL ANO DE CARGOS E SALÁRIOS - AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO PELO MI NISTÉRIO DO TRABALHO - VALIDADE. A discussão dos autos circunscreve-se ao aspecto da necessidade ou não de homologação do Plano de Cargos e Salários da reclamada pelo Ministério do Trabalho, como requisito de sua validade, para viabilizar a consecução da progressão horizontal por antiguidade pleiteada pelo obreiro. Com efeito, a elaboração de um Plano de Cargos e Salários é faculdade do empregador, porém, uma vez implementado, o referido plano integra os contratos de trabalho dos empregados e sujeita a empresa a observá-lo. Assim, a norma empresarial estabelecida - Plano de Cargos e Salários - vincula o empregador e adere aos contratos de trabalhos existentes na data da sua promulgação, não mais podendo ser ignorada, por se tratar de direito já incluído no patrimônio do trabalhador. O que de fato importa ressaltar é que a empregadora, uma vez tendo elaborado o seu Plano de Cargos e Salários, não pode furtar-se a cumpri-lo. A ausência de homologação pelo Ministério do Trabalho não conduz à ineficácia da tabela de cargos e salários e não afasta o direito dos empregados em ver implementadas pela empresa as promoções por ela estabelecidas. Nesse sentido, considerados o teor da norma sob exame e a condição da reclamada de integrante da administração pública indireta, é próprio inferir que, uma vez instituída a progressão horizontal por antiguidade, no Plano de Cargos e Salários, ainda que não homologado pelo Ministério do Trabalho, a concessão dessa progressão é medida que se impõe. A exigência de homologação do Plano de Cargos e Salários pelo Ministério do Trabalho é fato impeditivo do direito à equiparação salarial, por força do disposto no § 2º, do art. 461 da CLT, mas não isenta a empresa de cumprir as obrigações por ela assumidas, relativas às promoções por antiguidade previstas na tabela salarial, quando demonstrado pelo autor o fato constitutivo do seu direito, caso dos autos.
Recurso de revista conhecido e provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-3564-48.2010.5.06.0000, em que é Recorrente FÁBIO SOARES NUNES e Recorrido COMPANHIA PERNAMBUCANA DE SANEAMENTO - COMPESA .
Contra a decisão do 6º Tribunal Regional do Trabalho, a fls. 121, em que se denegou seguimento ao recurso de revista com fundamento nas Súmulas nºs 126 e 296 do TST, o reclamante interpõe agravo de instrumento, a fls. 1-13.
Alega o agravante, em síntese, que o recurso de revista merecia regular processamento.
173 Ofertada contraminuta a fls. 128.
Ausente o parecer do Ministério Público do Trabalho, a teor do art. 83 do RITST.
É o relatório.
V O T O
I - AGRAVO DE INSTRUMENTO
1 - CONHECIMENTO
Conheço do agravo de instrumento, porquanto preenchidos os pressupostos legais de admissibilidade.
2 - MÉRITO
2.1 - SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DE PROGRESSÃO HORIZONTAL - PL ANO DE CARGOS E SALÁRIOS - AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO PELO MI NISTÉRIO DO TRABALHO - VALIDADE
O 6º Tribunal Regional deu provimento ao recurso ordinário da reclamada para julgar improcedente a reclamação trabalhista, por considerar inválido o Plano de Cargos e Salários da empregadora. Eis o teor do acórdão regional:
................................................................................................................
No julgamento do processo n° TRT-00418-200á-009 -06-00-8, de que foi relatora Sua Excelência a Desembargadora Maria Clara Saboya A. Bernardino, que versou sobre matéria essencialmente idêntica ao do presente recurso, concluímos pela ineficácia jurídica do Plano de Cargos e Salários, invocado pela parte reclamante como fundamento do pedido de condenação da parte recorrente ao pagamento de diferenças salariais decorrentes de promoções, em acórdão assim ementado:
(...)
No particular, Sua Excelência assim se expressou em seu douto voto:
(...)
A r. sentença guerreada (fls. 227/238 ) passa ao largo sobre os critérios formais e substanciais, tese da defesa, essenciais para validade do plano de cargos e salários, reconhece, expressamente, o direito dos empregados da parte ré à progressão salarial horizontal por merecimento e antigüidade, e, ante a inexistência de" norma regulamentar quanta à periodicidade para promoções por antigüidade, com fulcro no artigo 4o, do Decreto-Lei n°. 4.657, de 04 de setem bro de 1942 (LICC), por analogia, adotou, em concreto, o plano de cargos e salários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para fixar "a duração de um triênio para concessão das progressões salariais por antigüidade" e, em conseqüência, deferir à autora promoções por antigüidade para o estágio "G em 1o de julho de 2003; H em 1º de maio de 2006 (Acordo Coletivo) fls. 52/66; e em 1o de maio de 2008", fls. 67/78.
174 Tem razão a recorrente.
Com efeito, a recorrente, sociedade de economia mista estadual, por força de mandamento constitucional (art. 173, § 1°, II), est á sujeita, para fins trabalhistas, ao regime próprio das empresas privadas. E, no caso dos autos, incontroverso que o Plano de Cargos e Salários - RD 012/86, que alicerça o pedido atrial, ressente-se de requisitos formal e substancial, essenciais à sua validade, qual seja, homologação perante o Ministério do Trabalho, e critério alternado de promoções por merecimento e antigüidade, "ex vi" do artigo 461, §§ 2º e 3°, da CLT, e Súmu la 6, item I, primeira parte, do Tribunal Superior do Trabalho.
Na verdade, o Plano de Cargos e Salários e respectivo enquadramento - RD 012/86, de 30.10.1986 (fls. 121/180) com as modificações introduzidas pelo Reenquadramento de Pessoal - RD 024/90, de 21.11.1990 (fls. 140/160), e pelo Reenquadramento Suplementar - RD n°. 007/91, de 14. 03.1991 (fls. 161/170), carece, repita-se, novamente, de requisitos formal e substancial para sua validade, mercê da inexistência de homologação perante o Ministério do Trabalho (formal) e ausência de previsão alternada de promoções por merecimento e antigüidade (substancial), disciplinando, apenas, a promoção por mérito, fixando critérios e periodicidade, sendo silente quanto à promoção por antigüidade, salvo em relação ao 'empregado que tiver ultrapassado o último estágio salarial' que foi assegurado o direito 'de dois em dois anos'.
Flagrante, portanto, o descumprimento do artigo 461, §§ 2o e 3o, da CLT, estratificado na Súmula 6, item l/TST. Nesse sentido, aliás, a iterativa e atual jurisprudência do órgão de cúpula do Judiciário Trabalhista, manifestada no julgamento do E-RR-1859/1999-038-01-00, relatado pela lúcida Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, do qual colho o seguinte fragmento: 'São dois, portanto, os requisitos necessários ao quadro de carreira para que se possa falar em eficácia prevista no § 2°, do artigo 461 da CLT: I) Critério alternado de promoção ve; II) homologação por órgão administrativo competente. Trata-se de requisitos horizontais e indispensáveis, não divisando qualquer hierarquia ou regra de prevalência'.
Trilha o mesmo caminho o jurista Maurício Godinho Delgado ao asseverar que: 'há requisitos, porém, à validade de tal quadro de carreira; são, pelo menos, requisitos à sua potencialidade de atuar como fato impeditivo dá equiparação salarial. Esses requisitos podem ser classificados como formais e substanciais'.
E adianta: 'O requisito formal consiste ná exigência de o quadro' de carreira receber homologação administrativa. É necessário que ele seja analisado e aprovado pela autoridade administrativa competente.'
Enquanto que "o requisito substancial diz respeito à necessidade de o quadro de carreira instituir, dentro de cada categoria ou classe de profissões ou cargos ou funções, uma sistemática de promoções alternadas por merecimento e antigüidade' (Curso do Direito do Trabalho, 2a edição, Ltr, pâgs. 791/792).
Assim, ante a falta de prova do fato constitutivo do direito - Plano de Cargos e Salários válido - ônus processual da parte autora, inteligência dos artigos 818, da CLT e 333,1, do CPC, subsidiário, dou provimento ao apelo ordinário, para decretar a improcedência da ação trabalhista."
175 Dessa forma, havendo concorrido com meu voto de adesão na formação desse precedente, aplico a mesma solução à espécie: provejo o recurso ordinário, para julgar os pedidos improcedentes, inverter a responsabilidade e dispensar a recorrida do pagamento das custas processuais (em razão do requerimento dos benefícios da justiça gratuita), e absolver a parte recorrente do pagamento dos honorários assistenciais: é como voto. (g.n.)
................................................................................................................
À guisa de esclarecimentos, note-se os termos da sentença de fls. 54-55:
............................................................................................................
Limitado aos documentos que vieram aos autos (a Reclamada sequer exibiu a ficha funcional do Reclamante para que o Juízo pudesse analisar o histórico das promoções segundo ela concedidas) e após analisar detidamente a norma empresarial e os Acordos Coletivos 2006/2007 e 2008/2009 acostados ao feito, me convenci de que tem razão o empregado, ainda que em parte.
O regulamento empresarial disciplina as promoções por mérito e por antigüidade, estipulando que elas devem ocorrer anualmente a partir da reserva de verba da ordem de 3% sobre a rubrica "salários" da folha de pagamento. Tal norma, ao contrário do que diz a Reclamada, vincula a Diretoria da empresa, pois ali não está dito que a Diretoria "poderá reservar", mas que "reservará" a verba anualmente.
O que se conclui, no entanto, pelo teor da defesa da Reclamada, é que isto não tem acontecido, pelo fato de que a Diretoria da empresa tem-se negado, ano após ano, de dar cumprimento ao próprio regulamento empresarial, que, como tal, adere aos contratos de emprego dos empregados admitidos durante sua vigência.
E bem verdade que concordo com a Reclamada quando assenta que não é possível ao Poder Judiciário substituir-se ao empregador para implementar as avaliações de desempenho necessárias às promoções por merecimento, pois esta é atribuição que a lei lhe comete com exclusividade, já que a ele a norma do art. 2° da CLT atribui a gestão da empresa, não podendo o juiz, por se tratar de critério personalíssimo, neste ponto, substituir-se ao empregador.
(...)
Mas, no que tange à promoção por antigüidade, que atende a critério objetivo - o tempo de serviço - parece-me plenamente possível ao Poder Judiciário aferir se tem o empregador deixado de dar cumprimento à norma interna por ele mesmo editada.
Ao contrário do que alega a Reclamada, não me parece lacunosa a norma empresarial, no que tange à periodicidade da concessão da promoção por antigüidade, acaso impossível a concessão da promoção por merecimento.
Aliás, se assim fosse, necessário seria concluir que o implemento da condição estaria sujeito ao puro arbítrio do empregador, que decidiria, mesmo na hipótese da promoção por antigüidade, qual seria o tempo necessário à concessão da promoção, em manifesta afronta à norma do art. 122 do Código Civil.
176 Mas, ao contrário, pode-se extrair da leitura sistemática do regulamento empresarial, como se viu acima, que a progressão horizontal por antigüidade será concedida ao empregado de dois em dois anos.
(...)
Com efeito, ultrapassados os dois anos sem ter sido promovido por merecimento, em procedimento em que concorre com outros colegas, o empregado não beneficiado adquire o direito de ser promovido automaticamente - é este, por interpretação sistemática, o conteúdo da norma editada pelo próprio empregador, que se nega a cumpri-la.
E tanto é verdade que a Reclamada tém-se omitido neste ponto que os Acordos Coletivos de Trabalho de 2006/2007 (Cláusula 36, parágrafo único) e 2008/2009 (Cláusula 4a) previram a concessão de progressão funcional indistintamente a todos aqueles contratados até o último dia de vigência do ACT anterior.
(...)
Sendo assim, é de se concluir que, efetivamente, a partir de junho/2007, o Reclamante já deveria ter sido promovido, ao menos por antigüidade, ao estágio "G" da classe 05 da tabela salarial da Reclamada.
...........................................................................................................
O reclamante, no recurso de revista, argumentou, em suma, que a eficácia do Plano de Cargos e Salários da reclamada não depende de homologação pelo Ministério do Trabalho, ante a ausência de previsão normativa para tal, visto que as exigências inscritas na CLT, art. 461, § 2º, e Súmula 6 são inaplicáveis a esta ação, mas, sim, a pleitos de equiparação salarial, sendo que seu pleito refere-se à progressão salarial horizontal, presente em norma interna da recorrida. Dessa forma, a lei ou a Súmula 6 do TST, em nenhum momento, contemplam a homologação como pressuposto de eficácia do PCS.
Aduziu, ainda, não poder ser prejudicado pela manifesta má-fé da empregadora que, ao não homologar o seu Plano de Cargos e Salários perante o Ministério do Trabalho, beneficia-se, agora, de sua própria torpeza.
Apontou violação dos arts. 7º, XXVI, 37, da Constituição Federal, 443 e 461 da CLT. Alegou contrariedade à Súmula nº 6, I, do TST e trouxe arestos para o confronto de teses.
O julgado transcrito a fls. 115-116, do 20º TRT, enseja a admissibilidade do recurso de revista, porquanto adota tese jurídica diametralmente oposta àquela aventada pelo Juízo regional, no sentido de que a ausência de homologação do quadro de carreira pelo Ministério do Trabalho não impede o deferimento das diferenças salariais postuladas com base no plano de cargos e salários elaborado pelo empregador.
Assim, diante da constatada divergência jurisprudencial, dou provimento ao agravo de instrumento, para determinar o processamento do recurso de revista.
177 Encontrando-se os autos suficientemente instruídos, com fulcro no art. 897, § 7º, da CLT e na Resolução Administrativa nº 928/2003, passo ao julgamento do recurso de revista.
II - RECURSO DE REVISTA
1 - CONHECIMENTO
Presentes os pressupostos extrínsecos de admissibilidade quanto à tempestividade (fls. 110-111) e representação processual (fls. 25), examino-lhes os intrínsecos.
1.1 - SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DE PROGRESSÃO HORIZONTAL - PL ANO DE CARGOS E SALÁRIOS - AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO PELO MI NISTÉRIO DO TRABALHO - VALIDADE
O 6º Tribunal Regional deu provimento ao recurso ordinário da reclamada para julgar improcedente a reclamação trabalhista, por considerar inválido o Plano de Cargos e Salários da empregadora. Eis o teor do acórdão regional:
................................................................................................................
No julgamento do processo n° TRT-00418-200á-009 -06-00-8, de que foi relatora Sua Excelência a Desembargadora Maria Clara Saboya A. Bernardino, que versou sobre matéria essencialmente idêntica ao do presente recurso, concluímos pela ineficácia jurídica do Plano de Cargos e Salários, invocado pela parte reclamante como fundamento do pedido de condenação da parte recorrente ao pagamento de diferenças salariais decorrentes de promoções, em acórdão assim ementado:
(...)
No particular, Sua Excelência assim se expressou em seu douto voto:
(...)
A r. sentença guerreada (fls. 227/238 ) passa ao largo sobre os critérios formais e substanciais, tese da defesa, essenciais para validade do plano de cargos e salários, reconhece, expressamente, o direito dos empregados da parte ré à progressão salarial horizontal por merecimento e antigüidade, e, ante a inexistência de" norma regulamentar quanta à periodicidade para promoções por antigüidade, com fulcro no artigo 4o, do Decreto-Lei n°. 4.657, de 04 de setem bro de 1942 (LICC), por analogia, adotou, em concreto, o plano de cargos e salários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para fixar "a duração de um triênio para concessão das progressões salariais por antigüidade" e, em conseqüência, deferir à autora promoções por antigüidade para o estágio "G em 1o de julho de 2003; H em 1º de maio de 2006 (Acordo Coletivo) fls. 52/66; e em 1o de maio de 2008", fls. 67/78.
Tem razão a recorrente.
Com efeito, a recorrente, sociedade de economia mista estadual, por força de mandamento constitucional (art. 173, § 1°, II), est á sujeita, para fins trabalhistas, ao regime próprio das empresas privadas. E, no caso dos autos, incontroverso que o
178 Plano de Cargos e Salários - RD 012/86, que alicerça o pedido atrial, ressente-se de requisitos formal e substancial, essenciais à sua validade, qual seja, homologação perante o Ministério do Trabalho, e critério alternado de promoções por merecimento e antigüidade, "ex vi" do artigo 461, §§ 2º e 3°, da CLT, e Súmu la 6, item I, primeira parte, do Tribunal Superior do Trabalho.
Na verdade, o Plano de Cargos e Salários e respectivo enquadramento - RD 012/86, de 30.10.1986 (fls. 121/180) com as modificações introduzidas pelo Reenquadramento de Pessoal - RD 024/90, de 21.11.1990 (fls. 140/160), e pelo Reenquadramento Suplementar - RD n°. 007/91, de 14. 03.1991 (fls. 161/170), carece, repita-se, novamente, de requisitos formal e substancial para sua validade, mercê da inexistência de homologação perante o Ministério do Trabalho (formal) e ausência de previsão alternada de promoções por merecimento e antigüidade (substancial), disciplinando, apenas, a promoção por mérito, fixando critérios e periodicidade, sendo silente quanto à promoção por antigüidade, salvo em relação ao 'empregado que tiver ultrapassado o último estágio salarial' que foi assegurado o direito 'de dois em dois anos'.
Flagrante, portanto, o descumprimento do artigo 461, §§ 2o e 3o, da CLT, estratificado na Súmula 6, item l/TST. Nesse sentido, aliás, a iterativa e atual jurisprudência do órgão de cúpula do Judiciário Trabalhista, manifestada no julgamento do E-RR-1859/1999-038-01-00, relatado pela lúcida Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, do qual colho o seguinte fragmento: 'São dois, portanto, os requisitos necessários ao quadro de carreira para que se possa falar em eficácia prevista no § 2°, do artigo 461 da CLT: I) Critério alternado de promoção ve; II) homologação por órgão administrativo competente. Trata-se de requisitos horizontais e indispensáveis, não divisando qualquer hierarquia ou regra de prevalência'.
Trilha o mesmo caminho o jurista Maurício Godinho Delgado ao asseverar que: 'há requisitos, porém, à validade de tal quadro de carreira; são, pelo menos, requisitos à sua potencialidade de atuar como fato impeditivo dá equiparação salarial. Esses requisitos podem ser classificados como formais e substanciais'.
E adianta: 'O requisito formal consiste ná exigência de o quadro' de carreira receber homologação administrativa. É necessário que ele seja analisado e aprovado pela autoridade administrativa competente.'
Enquanto que "o requisito substancial diz respeito à necessidade de o quadro de carreira instituir, dentro de cada categoria ou classe de profissões ou cargos ou funções, uma sistemática de promoções alternadas por merecimento e antigüidade' (Curso do Direito do Trabalho, 2a edição, Ltr, pâgs. 791/792).
Assim, ante a falta de prova do fato constitutivo do direito - Plano de Cargos e Salários válido - ônus processual da parte autora, inteligência dos artigos 818, da CLT e 333,1, do CPC, subsidiário, dou provimento ao apelo ordinário, para decretar a improcedência da ação trabalhista."
Dessa forma, havendo concorrido com meu voto de adesão na formação desse precedente, aplico a mesma solução à espécie: provejo o recurso ordinário, para julgar os pedidos improcedentes, inverter a responsabilidade e dispensar a recorrida do pagamento das custas processuais (em razão do requerimento dos benefícios da
179 justiça gratuita), e absolver a parte recorrente do pagamento dos honorários assistenciais: é como voto. (gn)
................................................................................................................
À guisa de esclarecimentos, note-se os termos da sentença de fls. 54-55:
............................................................................................................
Limitado aos documentos que vieram aos autos (a Reclamada sequer exibiu a ficha funcional do Reclamante para que o Juízo pudesse analisar o histórico das promoções segundo ela concedidas) e após analisar detidamente a norma empresarial e os Acordos Coletivos 2006/2007 e 2008/2009 acostados ao feito, me convenci de que tem razão o empregado, ainda que em parte.
O regulamento empresarial disciplina as promoções por mérito e por antigüidade, estipulando que elas devem ocorrer anualmente a partir da reserva de verba da ordem de 3% sobre a rubrica "salários" da folha de pagamento. Tal norma, ao contrário do que diz a Reclamada, vincula a Diretoria da empresa, pois ali não está dito que a Diretoria "poderá reservar", mas que "reservará" a verba anualmente.
O que se conclui, no entanto, pelo teor da defesa da Reclamada, é que isto não tem acontecido, pelo fato de que a Diretoria da empresa tem-se negado, ano após ano, de dar cumprimento ao próprio regulamento empresarial, que, como tal, adere aos contratos de emprego dos empregados admitidos durante sua vigência.
E bem verdade que concordo com a Reclamada quando assenta que não é possível ao Poder Judiciário substituir-se ao empregador para implementar as avaliações de desempenho necessárias às promoções por merecimento, pois esta é atribuição que a lei lhe comete com exclusividade, já que a ele a norma do art. 2° da CLT atribui a gestão da empresa, não podendo o juiz, por se tratar de critério personalíssimo, neste ponto, substituir-se ao empregador.
(...)
Mas, no que tange à promoção por antigüidade, que atende a critério objetivo - o tempo de serviço - parece-me plenamente possível ao Poder Judiciário aferir se tem o empregador deixado de dar cumprimento à norma interna por ele mesmo editada.
Ao contrário do que alega a Reclamada, não me parece lacunosa a norma empresarial, no que tange à periodicidade da concessão da promoção por antigüidade, acaso impossível a concessão da promoção por merecimento.
Aliás, se assim fosse, necessário seria concluir que o implemento da condição estaria sujeito ao puro arbítrio do empregador, que decidiria, mesmo na hipótese da promoção por antigüidade, qual seria o tempo necessário à concessão da promoção, em manifesta afronta à norma do art. 122 do Código Civil.
Mas, ao contrário, pode-se extrair da leitura sistemática do regulamento empresarial, como se viu acima, que a progressão horizontal por antigüidade será concedida ao empregado de dois em dois anos.
(...)
180 Com efeito, ultrapassados os dois anos sem ter sido promovido por merecimento, em procedimento em que concorre com outros colegas, o empregado não beneficiado adquire o direito de ser promovido automaticamente - é este, por interpretação sistemática, o conteúdo da norma editada pelo próprio empregador, que se nega a cumpri-la.
E tanto é verdade que a Reclamada tém-se omitido neste ponto que os Acordos Coletivos de Trabalho de 2006/2007 (Cláusula 36, parágrafo único) e 2008/2009 (Cláusula 4a) previram a concessão de progressão funcional indistintamente a todos aqueles contratados até o último dia de vigência do ACT anterior.
(...)
Sendo assim, é de se concluir que, efetivamente, a partir de junho/2007, o Reclamante já deveria ter sido promovido, ao menos por antigüidade, ao estágio "G" da classe 05 da tabela salarial da Reclamada.
...........................................................................................................
O reclamante, no recurso de revista, argumentou, em suma, que a eficácia do Plano de Cargos e Salários da reclamada não depende de homologação pelo Ministério do Trabalho, ante a ausência de previsão normativa para tal, visto que as exigências inscritas na CLT, art. 461, § 2º, e Súmula 6 são inaplicáveis a esta ação, mas, sim, a pleitos de equiparação salarial, sendo que seu pleito refere-se à progressão salarial horizontal, presente em norma interna da recorrida. Dessa forma, a lei ou a Súmula 6 do TST, em nenhum momento, contemplam a homologação como pressuposto de eficácia do PCS.
Aduziu, ainda, não poder ser prejudicado pela manifesta má-fé da empregadora que, ao não homologar o seu Plano de Cargos e Salários perante o Ministério do Trabalho, beneficia-se, agora, de sua própria torpeza.
Apontou violação dos arts. 7º, XXVI, 37, da Constituição Federal, 443 e 461 da CLT. Alegou contrariedade à Súmula nº 6, I, do TST e trouxe arestos para o confronto de teses.
O julgado transcrito a fls. 115-116, do 20º TRT, enseja a admissibilidade do recurso de revista, porquanto adota tese jurídica diametralmente oposta àquela aventada pelo Juízo regional, no sentido de que a ausência de homologação do quadro de carreira pelo Ministério do Trabalho não impede o deferimento das diferenças salariais postuladas com base no plano de cargos e salários elaborado pelo empregador.
Assim, diante da constatada divergência jurisprudencial, conheço do recurso de revista.
2 - MÉRITO
2.1 - SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DE PROGRESSÃO HORIZONTAL - PL ANO DE CARGOS E SALÁRIOS - AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO PELO MI NISTÉRIO DO TRABALHO - VALIDADE
181 Cumpre registrar, em primeiro plano, que a discussão dos autos não gira em torno de pedido de equiparação salarial, o que por si só, afasta as disposições do art. 461, § 2º, da CLT e da Súmula nº 6 do TST. O que pleiteia o reclamante é a progressão salarial horizontal para o último estágio (letra -G-) da sua carreira de atendente comercial 1, classe 05, fls. 22 da reclamação trabalhista.
Compreende-se que, em se tratando de progressão horizontal por mérito, há necessidade de a empresa deliberar se o trabalhador destinatário da benesse apresenta, ou não, no exercício de suas funções, o mérito que a justifique. Mas, no que tange à progressão por antiguidade, tal exigência não tem razão de ser, em princípio, posto que o deferimento da promoção por antiguidade é essencialmente determinado pelo fator objetivo do decurso do tempo.
A discussão dos autos circunscreve-se, portanto, ao aspecto da necessidade ou não de homologação do plano de cargos e salários da reclamada pelo Ministério do Trabalho, como requisito de sua validade para viabilizar a consecução da progressão horizontal por antiguidade pleiteada pelo obreiro.
Frise-se, por oportuno, que o art. 461, § 2º, da CLT e a Súmula nº 6 do TST não estabelecem a necessidade de homologação do quadro de carreira pelo Ministério do Trabalho, como requisito de sua validade, a amparar pedido de progressão salarial. Cumpre registrar que o art. 107 do Código Civil é claro ao dispor que -a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir-. Ainda, à luz do disposto no art. 113 do Código Civil, os negócios jurídicos devem sempre ser interpretados conforme a boa-fé.
Questão relevante para o deslinde da controvérsia, que merece ser avaliada e ponderada, é se a conduta da empregadora, ao implementar o referido Plano de Cargos e Salários sem submetê-lo à homologação do Ministério do Trabalho, feriu o princípio da boa-fé objetiva que deve pautar as relações jurídicas, pois, naturalmente, influiu no julgamento da lide e serviu de motivo determinante para o indeferimento da pretensão do reclamante à progressão horizontal por antiguidade.
A resposta a esse questionamento passa não apenas pelo princípio da boa-fé que rege as relações contratuais, mas, também e especialmente, pela própria função social dos contratos e pelo relevante papel social desempenhado pelas empresas.
O art. 421 do Código Civil é expresso em afirmar que - a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato-, ou seja, a autonomia privada e a discricionariedade na pactuação do negócio jurídico não são absolutas, encontrando limitações naturais decorrentes dos reflexos que essa contratação causa no seio da coletividade.
Na esfera das relações de trabalho a função social do contrato ganha relevo, na medida em que seus efeitos são irradiados sobre toda a sociedade econômica e produtiva do país, sendo imprescindível zelar pelo equilíbrio e segurança jurídica dessas relações. Assim, não há espaço para incertezas e instabilidades na execução dos contratos de trabalho, devendo as partes agir de maneira ética e transparente no curso da relação, atendendo o princípio da boa-fé, acima referido.
182 O exame mais acurado da controvérsia demonstra, de fato, que a razão está com o empregado, na medida em que a omissão da empregadora ao não homologar o seu plano de cargos e salários perante o Ministério do Trabalho não pode obstar o pedido do trabalhador à progressão salarial horizontal por antiguidade prevista no referido plano.
Com efeito, a elaboração de um Plano de Cargos e Salários é faculdade do empregador, porém, uma vez implementado, o referido plano integra os contratos de trabalho dos empregados e sujeita a empresa a observá-lo. Assim, a norma empresarial estabelecida - Plano de Cargos e Salários - vincula o empregador e adere aos contratos de trabalhos existentes na data da sua promulgação, não mais podendo ser ignorada, por se tratar de direito já incluído no patrimônio do trabalhador.
É preciso ter em conta que a relação entre empregador e empregado não é uma disputa de interesses, mas uma união de esforços entre o capital e o trabalho com vistas a atender os anseios de ambos os polos dessa relação. De um lado, tem-se a empregadora, com a missão de prestar, com efetividade, serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, enquanto que, de outro, está o trabalhador, que busca meios de sobrevivência e de satisfação de suas necessidades básicas, asseguradas, inclusive, pelo art. 7º, caput, da Constituição Federal, mediante a percepção da remuneração ajustada. Por isso, nessa relação jurídica contratual não se admite ações unilaterais que levem a outra parte ao equívoco, em descompasso com o equilíbrio das partes e a segurança jurídica almejados pela legislação trabalhista.
A conduta da reclamada, ao não homologar o seu Plano de Cargos e Salários perante o Ministério do Trabalho como óbice ao pedido de progressão salarial, não merece chancela do Poder Judiciário, pois não condiz com a função social da empresa e do contrato de trabalho, tendo em vista que desprestigia os interesses dos trabalhadores, essenciais colaboradores para o desenvolvimento das suas atividades.
O que de fato importa ressaltar é que a empregadora, uma vez tendo elaborado o seu Plano de Cargos e Salários, não pode furtar-se a cumpri-lo. A ausência de homologação pelo Ministério do Trabalho não conduz à ineficácia da tabela de cargos e salários e não afasta o direito dos empregados em ver implementadas as promoções por ela estabelecidas, que aderem ao contrato de trabalho.
Nesse sentido, considerados o teor da norma sob exame e a condição da reclamada de integrante da administração pública indireta, é próprio inferir que uma vez pactuada a progressão horizontal por antiguidade, no Plano de Cargos e Salários, ainda que não homologado pelo Ministério do Trabalho, a concessão dessa progressão é medida que se impõe.
A exigência de homologação do Plano de Cargos e Salários pelo Ministério do Trabalho é fato impeditivo do direito à equiparação salarial, por força do disposto no § 2º, do art. 461 da CLT, mas não isenta a empresa de cumprir as obrigações por ela assumidas, relativas às promoções por antiguidade previstas na tabela salarial, quando demonstrado pelo autor o fato constitutivo do seu direito, caso dos autos.
183 Ante o exposto, dou provimento ao recurso de revista, para restabelecer a sentença, inclusive quanto ao pagamento dos honorários advocatícios. Custas pela reclamada.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do agravo de instrumento, e, no mérito, dar-lhe provimento para determinar o processamento do recurso de revista. Por unanimidade, conhecer do recurso de revista, por divergência jurisprudencial e, no mérito, dar-lhe provimento para restabelecer a sentença, inclusive quanto ao pagamento dos honorários advocatícios. Custas pela reclamada.
Brasília, 22 de junho de 2011.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001) Ministro Vieira de Mello Filho Relator PROCESSO Nº TST-RR-3564-48.2010.5.06.0000 Firmado por assinatura digital em 27/06/2011 pelo sistema AssineJus da Justiça do Trabalho, conforme MP 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira.
184
ANEXO 3
A C Ó R D Ã O
3ª Turma
PE
RMW/mv/af
RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. HORAS IN ITINERE. BASE DE CÁLCULO E REFLEXOS. A decisão que afasta a validade da cláusula do instrumento coletivo, por ter sido nesse estipulado o salário básico como base de cálculo das horas extras in itinere, não viola o art. 7º, XXVI, da Constituição da República. Precedente. Inviável concluir pela contrariedade à Súmula 90/TST, uma vez que o Colegiado de origem não dirimiu a lide à luz do entendimento cristalizado nesse verbete. A invocação de ofensa ao art. 8º da Lei Maior sem indicação do inciso que os recorrentes entendem aviltado não dá azo ao conhecimento da revista, nos termos da Súmula 221, I, do TST.
Revista não conhecida, no tema .
HORAS EXTRAS. TRABALHO POR PRODUÇÃO. Não há falar em afronta literal ao art. 7º, XVI, da Carta Magna e tampouco contrariedade à Súmula 340/TST (-O empregado, sujeito a controle de horário, remunerado à base de comissões, tem direito ao adicional de, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) pelo trabalho em horas extras, calculado sobre o valor-hora das comissões recebidas no mês, considerando-se como divisor o número de horas efetivamente trabalhadas.-), porquanto nada dizem especificamente com a matéria ora discutida, qual seja, a limitação das horas extras ao pagamento do respectivo adicional no caso de trabalho por produção.
Recurso de revista integralmente não conhecido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-700-26.2010.5.15.0052, em que são Recorrentes ÂNGELO JOSÉ BAZAN E OUTROS e é Recorrido JOSÉ ORLANDO DA SILVA .
O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, pela certidão de julgamento das fls. 329-30, deu parcial provimento ao recurso ordinário dos reclamados para -excluir a condenação ao pagamento das horas in itinere com base no período de trajeto alegado pelo reclamante e reflexos daí decorrentes, mantendo-se, contudo, a condenação ao pagamento das diferenças em virtude da base de cálculo fundada na remuneração do reclamante, bem como os reflexos decorrentes nesse particular-.
Interpõem recurso de revista os reclamados (fls. 343-6), com fulcro nas alíneas -a- e -c- do art. 896 da CLT. Insurgem-se quanto aos temas -horas in itinere- e -horas extras-. Despacho positivo de admissibilidade do recurso de revista (fls. 351-2). Sem contrarrazões (certidão da fl. 355).
185 Feito não remetido ao Ministério Público do Trabalho (art. 83 do RITST). É o relatório. V O T O I - CONHECIMENTO 1. PRESSUPOSTOS EXTRÍNSECOS Tempestivo o recurso (fls. 339 e 341), regular a representação (fls. 177 e 178) e efetuado o preparo (fls. 241, 295, 297, 329 e 349). 2. PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS 2.1. HORAS IN ITINERE. BASE DE CÁLCULO E REFLEXOS Quanto ao tema, eis os termos da decisão regional:
-Horas "in itinere" - Base de cálculo
Apesar de este Relator comungar com o entendimento estampado na r. decisão de origem no sentido de que as horas de trajeto devem ser pagas em conformidade com a realidade vivida pelo trabalhador rural e não à razão daquilo que foi estipulado pela norma coletiva, em virtude da prevalência do princípio da condição mais benéfica e do princípio da primazia da realidade, a r. sentença deve ser reformulada no particular.
Isso porque, o atual pensamento desta Quinta Turma sobre o assunto segue a ideia de que as diferenças de horas de trajeto somente poderão ser concedidas ao trabalhador nas hipóteses em que não houver norma coletiva específica, e que tenha fixado determinada quantidade de horas.
No presente caso, sustentou-se que o reclamante usufruía tempo superior à 1h por dia para realizar o deslocamento casa-trabalho-casa, apesar de a defesa ter sustentado que os locais de trabalho situavam-se nas redondezas de Guará, cidade onde mora o reclamante.
Contudo, o acordo coletivo de trabalho colacionado aos autos (cláusula 5ª fl. 62) prevê o pagamento de apenas 1 hora por dia a título de tempo de percurso, independentemente do tempo gasto, de modo que, prevalece, no particular, o pactuado pela categoria.
Todavia, quanto à base de cálculo para pagamento da hora extra "in itinere", merece manutenção a sentença de origem.
Realmente, o inciso XXVI do artigo 7° da Carta Magna procurou privilegiar e incentivar a livre negociação entre os atores sociais do Capital e do Trabalho. Porém, é igualmente inegável a superioridade hierárquica, no Direito do Trabalho brasileiro, do princípio da condição mais benéfica ao empregado.
Daí, mesmo que a reclamada tenha procedido corretamente a remuneração das horas de trajeto ao reclamante, deve ele recebe r essa verba com base em seus ganhos incrementados por sua produtividade ao longo do tempo . Afinal, trata-se de remuneração de tempo diretamente relacionado com a capacidade produtiva do empregado.
Sendo assim, dou provimento ao apelo, para excluir da condenação o pagamento das horas "in itinere" com base no período de trajeto alegado pelo reclamante e reflexos daí derivados, mantendo-se, contudo, a condenação ao pagamento das
186 diferenças em virtude da base de cálculo fundada na remuneração do reclamante.- (fls. 334-5, destaquei)
Nas razões da revista, os reclamados afirmam que, -com relação aos reflexos das horas in itinere, manter a decisão recorrida seria uma afronta literal ao art. 7º, XXVI, da Constituição Federal- (fl. 344). Alegam que foi firmado -acordo com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pontal (...), no qual ficou determinado que o pagamento das horas in itinere deve se basear no salário hora- (fl. 344). Sustentam que, -em fiel cumprimento de acordos coletivos entre categorias (cláusula 5ª), pagaram (...) horas in itinere sobre o piso contratual- (fl. 344). Asseveram que, -inexistindo ofensa legal e constituindo o acordo coletivo um ato jurídico perfeito, não há falar em pagamento de horas in itinere- (fl. 345). Apontam violação dos arts. 7º, XXVI, e 8º da Constituição da República, bem como contrariedade à Súmula 90/TST.
O recurso não merece conhecimento.
Não dá azo ao conhecimento da revista a alegação de que, -com relação aos reflexos das horas in itinere, manter a decisão recorrida seria uma afronta literal ao art. 7º, XXVI, da Constituição Federal-, uma vez que o Colegiado de origem não emitiu tese a respeito dos reflexos das horas in itinere, tendo se limitado a discutir a base de cálculo dessa verba, tampouco foi instado a fazê-lo mediante a oposição de embargos declaratórios. Ante a ausência de tese, inviável aferir a apontada violação do art. 7º, XXVI, da Carta Magna, indicado em respaldo a tal argumento.
Quanto à base de cálculo das horas in itinere, tampouco merece conhecimento o recurso.
Com efeito, a função social, enquanto preceito de ordem pública, impõe limites positivos aos contratos - incluindo-se aqui acordos e convenções coletivas de trabalho -, conforme consagrado no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil:
-Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos-.
O princípio da função social tem como base três princípios constitucionais: dignidade da pessoa humana, solidarismo social e igualdade substancial.
No Estado Social - de natureza tipicamente intervencionista -, a ordem econômica se apresenta erigida sob dois fundamentos: a livre iniciativa (possibilidade de contratar) e a valorização do trabalho humano. A partir de tais fundamentos, a ordem econômica, instrumentalizada mediante o contrato, busca assegurar a dignidade da pessoa humana, na pessoa dos contratantes ou de terceiros. Incumbe ao Poder Público, portanto, controlar, por meio do Judiciário, essa dinâmica contratual, a fim de verificar, em última análise, a implementação da função social do contrato.
Nesse espeque, o contrato deve ser bom para as partes, bem como para toda coletividade, não podendo prejudicar terceiros, pois os efeitos da relação contratual ultrapassam a esfera jurídica dos contratantes. O contrato somente
187 atende a função social a que se destina se respeitar a dignidade dos contratantes e de terceiros, sob mútua cooperação. Outrossim, o contrato deve ser justo, equilibrado, observar a igualdade substancial - esta entendida como equivalência material, equilíbrio econômico e financeiro.
Por sua vez, o art. 421 do Código Civil estabelece:
-A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato-.
GUSTAVO TEPEDINO, em comentários a aludido dispositivo, leciona:
-A doutrina liberalista só excepcionalmente fazia referência à função social como parâmetro de interpretação da autonomia negocial, menos ainda como fundamento da liberdade contratual.
(...)
No sistema atual, a função social amplia para o domínio do contrato a noção de ordem pública. De acordo com o preceito em análise, a função social será considerada um fim para cuja realização ou preservação se justifica a imposição de preceitos inderrogáveis e inafastáveis pela vontade das partes.
(...)
Toda e qualquer relação jurídica vincula-se a valores sociais estabelecidos pelo ordenamento, que definirão os deveres impostos aos titulares de interesses jurídicos tanto nas situações jurídicas existenciais quanto nas patrimoniais, no âmbito das quais se destaca a propriedade privada, cuja função social se encontra expressamente consagrada no texto constitucional (CF, arts. 5º, XXIII, e 170, III). De acordo com a função que a situação jurídica desempenha, serão definidos os poderes atribuídos ao titular do direito subjetivo.
(...)
Tal como observado em relação à propriedade, em que a estrutura interna do direito é remodelada de acordo com sua função social, concretamente definida, e que se constitui em pressuposto de validade do exercício do próprio domínio, também o contrato, uma vez funcionalizado, se transforma em um -instrumento de realização do projeto constitucional- e das finalidades sociais definidas constitucionalmente.
(...)
Na ótica individualista, uma vez respeitados tais limites, a atividade contratual poderia desenvolver-se livre de qualquer restrição ou condicionamento. Ou seja, uma vez considerado válido o ato jurídico, os contratantes dispunham de uma espécie de salvo-conduto, que lhes dava a prerrogativa de exercer a liberdade contratual em termos qualitativamente absolutos, embora quantitativamente delimitados.
Ao contrário, nos termos do preceito em análise, toma-se a função social como razão - isto é, fundamento -, e não apenas como limite externo ao exercício da liberdade contratual. A função social é aqui definida textualmente como a razão da
188 liberdade de contratar. Disto decorre poder-se afirmar que a funcionalização constitui dado essencial à situação jurídica, qualifica-a em seus aspectos nucleares, em sua natureza e disciplina. Informada pela Constituição Federal, supera-se a conceituação da função social como categoria contraposta ao direito subjetivo ou que o delimite apenas externamente. Toda situação jurídica patrimonial, integrada a uma relação contratual, deve ser considerada originalmente justificada e estruturada em razão de sua função social- (Código Civil Interpretado, Renovar, 2006, pp. 8-10).
Tais considerações se aplicam perfeitamente aos instrumentos nascidos de negociação coletiva, cuja natureza mista é afirmada pela doutrina, consoante se depreende da lição de MAURÍCIO GODINHO DELGADO, em sua obra -Curso de Direito do Trabalho- (2ª ed., São Paulo: LTr, 2003, p. 1393-5):
-A particularidade de tais diplomas encontra-se na circunstância de que são negócios jurídicos celebrados por sujeitos privados (cujo caráter é social, coletivo, e não meramente individual), tendo tais negócios jurídicos o condão de produzir regras jurídicas (e não meras cláusulas obrigacionais, como próprio aos demais negócios jurídicos privados). A diferença específica de tais diplomas perante outros correlatos, está, portanto, na combinação singular que concretizam: o fato de serem contratos, pactos de vontades privadas, embora coletivas, dotados do poder de criação de normas jurídicas.
A chamada teoria mista, que enfatiza essa combinação peculiar -- contrato criador de norma jurídica -- é, sem dúvida, a que melhor explica a natureza jurídica dos diplomas negociais coletivos. São eles, desse modo, pactos de origem societária, envolvendo seres coletivos, a que a ordem jurídica atribui aptidão para gerar regras jurídicas. São pactos geradores de normas.
(...)
Conforme já antecipado, a teoria mista é que alcançou a mais correta percepção da estrutura dos diplomas negociais coletivos, contrapondo-os com melhor precisão ao conjunto de figuras congêneres existentes no universo do Direito.
Esses institutos são contratos criadores de normas jurídicas. Tais contratos, ressalte-se, têm esse poder em função da qualidade especial de seus sujeitos convenentes, os seres coletivos trabalhistas. Seus sujeitos pactuantes são seres coletivos, formam e representam coletividades relevantes; por isso o poder excepcional que lhes foi conferido pela ordem jurídica. São, desse modo, contratos sociais normativos.
A expressão teoria mista não é, de fato, inteiramente adequada para expressar o exato sentido de tal formulação doutrinária. Ela sugere a idéia de simples agregação de realidades distintas, que não se unificam. Contudo, o que importa, por além da expressão, é compreender-se que os diplomas negociais coletivos distinguem-se e se justificam, socialmente, caso o caráter contratual coletivo esteja tão bem preservado quanto o caráter normativo que deflui de seu interior. Isso quer dizer que sindicalismo sem força e representatividade, que não seja resultado e reprodutor da plenitude dos princípios do Direito Coletivo, compromete o pólo contratual verdadeiro desses contratos sociais normativos".
189 Nessa linha, não detém o ente sindical, representante da categoria profissional, poderes irrestritos para negociar, porquanto pautados pelos interesses dos representados, sob pena de nulidade do fruto da negociação. Assim, a negociação coletiva entabulada em detrimento dos próprios representados também viola frontalmente o princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual os direitos e deveres das partes não se limitam à realização da prestação principal, no caso, a representação formal dos interesses dos membros da categoria. O que encontramos, na realidade, é a boa-fé impondo a observância também de muitos outros deveres de conduta, formando assim uma relação obrigacional complexa.
Destaco a lição de CLÓVIS DO COUTO E SILVA (A obrigação como processo. São Paulo : José Bushatsky, 1964, p. 30-1), no sentido de que -o mandamento de conduta engloba todos os que participam do vínculo obrigacional e estabelece, entre eles, um elo de cooperação, em face do fim objetivo a que visam-. Segundo o renomado jurista, o dever que deriva da concreção do princípio da boa-fé é dever de consideração para com o outro, endereçado a todos os partícipes do vínculo.
Outrossim, JORGE CESA FERREIRA DA SILVA assevera:
-A boa-fé expande as fontes dos deveres obrigacionais , posicionando-se ao lado da vontade e dotando a obrigação de deveres orientados a interesses distintos dos vinculados estritamente à prestação, tais como o não-surgimento de danos decorrentes da prestação realizada ou a realização do melhor adimplemento.- (A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato - Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 270)
Na espécie, mantida pelo TRT a condenação dos reclamados -ao pagamento das diferenças em virtude da base de cálculo fundada na remuneração do reclamante-, estabelecida, tal condenação, na sentença na qual consignado que -as convenções coletivas preveem pagamento das horas in itinere sobre o valor do salário básico- e que -as horas in itinere são devidas porque são consideradas extraordinárias - ultrapassam a jornada legalmente ou convencionalmente estabelecida- (fl. 225). Aludida previsão, ainda que ratificada pelo sindicato da categoria, não se mostra legítima, porquanto não se coaduna com a função social inerente aos acordos coletivos, tampouco respeita a boa-fé objetiva.
A negociação coletiva, consagrada nos arts. 7º, XXVI, e 8º da Carta Magna, não pode ser exercida de forma arbitrária e maliciosa, a fim de burlar normas de ordem pública, como as insculpidas nos arts. 9º e 468 da CLT. A autonomia da vontade coletiva, consagrada no mandamento constitucional, há de se exercer no âmbito que lhe é próprio, com observância, portanto, no expressivo dizer de CARMEN CAMINO, do chamado núcleo duro do Direito do Trabalho, formado por normas de fonte estatal, imperativas e de ordem pública, informadas pelos princípios da proteção e da irrenunciabilidade, com ressalva das hipóteses de abertura, pela própria lei, à autonomia coletiva - a que de Oscar Ermida Uriarte chama de válvulas de escape -, e que dizem, no direito posto, com salário e jornada de trabalho (Art. 7º, VI, XIII e XIV, da Constituição da República).
Logo, tem-se que o reconhecimento da validade das convenções coletivas de trabalho, insculpido no inciso XXVI do art. 7º da Lei Maior, não afasta o respeito aos demais preceitos trabalhistas, tampouco impede o exame, por parte do
190 Poder Judiciário, da conformação do conteúdo do instrumento coletivo ao ordenamento jurídico laboral.
Nesse sentido, já decidiu esta Terceira Turma, ao examinar a possibilidade de se estipular, mediante negociação coletiva, o piso salarial da categoria como base de cálculo das horas in itinere, como se depreende do excerto da fundamentação do acórdão a seguir, proferido no autos do RR-144900-42.2008.5.09.0092:
-A discussão cinge-se à possibilidade de se estipular, mediante negociação coletiva, o piso salarial da categoria como base de cálculo das horas "in itinere" e a não integração das horas de percurso ao salário dos trabalhadores, tendo em mira o disposto no art. 7º, XXVI, da Constituição Federal.
[omissis]
Ao se considerar as horas de trajeto como computáveis na jornada de trabalho, nas hipóteses elencadas pela lei, e, consequentemente, reputá-las como sobrelabor, caso excedam a carga horária contratual, tem-se que as horas de percurso são calculadas da mesma forma em que o são as horas extraordinárias. Estas, por sua vez, integram o salário para todos os efeitos legais, se habitualmente prestadas, e são estimadas tendo como base não o piso salarial da categoria, mas sim o próprio salário, conforme prescrevem os arts. 7º, XVI, da Constituição Federal e 59, § 1º, da CLT.
Diante do panorama legal e constitucional acima exposto, não há como se legitimar, pela via da negociação coletiva, a cláusula coletiva segundo a qual "tal pagamento não integrará os salários para nenhum efeito contratual e legal nem será considerado como jornada extraordinária (...)", pois, em tal caso, além de estar-se negando vigência, eficácia e efetividade a norma instituída pelo Poder Legislativo, competente para tanto, ofender-se-ia o limite constitucionalmente oferecido pelo art. 7º, VI, da Carta Magna, que, admitindo a redução de salário, não tolerará a sua supressão.
Daí porque nenhum equívoco pode-se imputar à instância regional, que deixou de reconhecer validade à cláusula coletiva cujo conteúdo afronta regras cogentes de natureza legal e constitucional.
Incólume, assim, o art. 7º, XXVI, da Carta Magna." (TST-RR-144900-42.2008.5.09.0092, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 07.05.2010)
In casu, trata-se de -pagamento de hora extra in itinere- (fl. 335, destaquei), pelo que, em face do reconhecimento de que consistentes no caso, as horas in itinere, em horas extras, como essas devem ser calculadas. Assim, considerando que integram a base de cálculo das horas extras as parcelas de natureza salarial, nos termos dos arts. 7º, XVI, da Carta Magna e 59, §1º, da CLT e da Súmula 264/TST (-A remuneração do serviço suplementar é composta do valor da hora normal, integrado por parcelas de natureza salarial e acrescido do adicional previsto em lei, contrato, acordo, convenção coletiva ou sentença normativa-), a decisão que afasta a validade da cláusula do instrumento coletivo, por ter sido nesse
191 estipulado o salário básico como base de cálculo das horas extras in itinere, não viola o art. 7º, XXVI, da Constituição da República.
Outro lado, inviável concluir pela contrariedade à Súmula 90/TST, uma vez que o Colegiado de origem não dirimiu a lide à luz do entendimento cristalizado nesse verbete, tampouco foi instado a fazê-lo mediante a oposição de embargos de declaração.
Acrescente-se que, nos temos da Súmula 221, I, desta Corte, para o conhecimento do recurso de revista, mister a indicação expressa do dispositivo de lei ou da Constituição tido como violado. Assim, a invocação de ofensa ao art. 8º da Lei Maior não é suficiente para ensejar o conhecimento da revista, uma vez que não explicitado o inciso do mencionado preceito constitucional, dentre os oito existentes, que os recorrentes entendem aviltado.
Não conheço.
2.2. HORAS EXTRAS. TRABALHO POR PRODUÇÃO
Quanto ao tema, eis os termos da decisão regional:
-Adicional de horas extras - salário por produção - hora normal já quitada
Apesar dos respeitáveis fundamentos expostos no recurso interposto, convém novamente dar razão à sentença proferida, uma vez que esta 9ª Câmara tem entendido que, nos dias de hoje, já não dá mais para ignorar o fato de que a remuneração com base apenas na capacidade produtiva do empregado funciona como elemento que se contrapõe àqueles princípios protetivos à sua saúde e higidez, inseridos na norma do inciso XII do artigo 7° da CF/1988.
Remunerar o trabalho por produção deve ser visto como típica cláusula draconiana.
Seu intuito é exatamente o de constranger o trabalhador a estar sempre prorrogando suas jornadas em troca de algumas migalhas salariais a mais, renda extra essa que, no final, acaba incorporada em seu orçamento mensal, criando, com isso, uma relação de dependência tal qual a da droga ou da bebida.
Em outras palavras, trata-se de situação que faz do trabalhador escravo de sua própria produtividade. Sem notar, essa sua necessidade em manter constante determinado nível de produtividade já alcançado gera o maior desgaste de sua própria saúde, assim como compromete, aos poucos, sua plena capacidade física para aquele mesmo trabalho.
A remuneração do trabalhador apenas com o adicional de horas extras em decorrência de seu trabalho por produção também pode representar típico desrespeito àqueles princípios que visam a proteção à saúde e à integridade física de pessoa humana, valores estes que se constituem em primado constitucional (CF/1988, artigo 7°, incisos XIII e XXII).
Mais que devido, então, manter os termos da condenação.- (fl. 332)
Nas razões da revista, os reclamados afirmam que, recebendo o autor salário por produção, deve a condenação -ser limitada ao adicional de horas extras,
192 uma vez que a hora simples já restou quitada quando do pagamento da produção- (fl. 345). Apontam violação do art. 7º, XVI, da Constituição da República, bem como contrariedade à Súmula 340/TST e à OJ 235/SDI-I/TST. Colige um único aresto.
O recurso não merece conhecimento.
De início, cumpre ressaltar que tramita o feito sob o rito sumaríssimo. Assim, ante o previsto no § 6º do artigo 896 da CLT e na OJ 352/SDI-I desta Corte, a admissibilidade da revista fica circunscrita às hipóteses de contrariedade a Súmula desta Corte e de violação direta de dispositivo constitucional.
Não há falar em afronta literal ao art. 7º, XVI, da Carta Magna, que prevê -remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal-, e tampouco em contrariedade à Súmula 340/TST (-O empregado, sujeito a controle de horário, remunerado à base de comissões, tem direito ao adicional de, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) pelo trabalho em horas extras, calculado sobre o valor-hora das comissões recebidas no mês, considerando-se como divisor o número de horas efetivamente trabalhadas.-), porquanto nada dizem especificamente com a pretensão recursal, qual seja, de limitação da condenação em horas extras ao pagamento do respectivo adicional, por ser o autor remunerado por produção.
Não conheço. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, não conhecer do recurso de revista. Brasília, 15 de junho de 2011. Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001) Rosa Maria Weber Candiota da Rosa Ministra Relatora fls. PROCESSO Nº TST-RR-700-26.2010.5.15.0052 Firmado por assinatura digital em 16/06/2011 pelo sistema AssineJus da Justiça do Trabalho, conforme MP 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira.
193
ANEXO 4
A C Ó R D Ã O
(8ª Turma)
GMMEA/lag
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA - DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ACUSAÇÃO DE ILÍCITO PENAL DIRIGIDA AO RECLAMANTE. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. AUSÊNCIA DE INDÍ CIOS PARA OFERECIMENTO DE DENÚNCIA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. T RATAMENTO INDIGNO AO RECLAMANTE QUE CONTAVA COM MAIS DE DEZ A NOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PARA A RECLAMADA. Nega-se provimento ao agravo de instrumento que não logra desconstituir os fundamentos do despacho que denegou seguimento ao recurso de revista. Agravo de Instrumento a que se nega provimento.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n° TST-AIRR-148040-45.2006.5.15.0009, em que é Agravante VOLKSWAGEN DO BRASIL INDÚSTRIA DE VEÍCULOS AUTOMOTO RES LTDA. e Agravado ROBSON LEANDRO LINS .
A Reclamada interpõe Agravo de Instrumento às fls. 2/13, contra o despacho de fls. 477, que negou seguimento ao seu Recurso de Revista.
Contraminuta às fls. 479/482.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, de acordo com o art. 83 do Regimento Interno do TST.
É o relatório.
V O T O
1 - CONHECIMENTO
Conheço do Agravo de Instrumento porque atendidos os pressupostos legais de admissibilidade.
2 - MÉRITO
O Regional, no exercício do primeiro juízo de admissibilidade, denegou seguimento ao Recurso de Revista da Reclamada aos seguintes fundamentos:
-DANO MORAL - INDENIZAÇÃO
A pretensão da recorrente, assim como exposta, importaria, necessariamente, no reexame de fatos e provas, o que encontra óbice na Súmula 126 do E. TST e inviabiliza o apelo, inclusive por divergência jurisprudencial.
194 Por outro lado, não há que falar em ofensa aos arts. 818 da CLT e 333, I, do CPC, pois as diretrizes acerca do ônus da prova, inseridas em tais dispositivos, somente são aplicáveis quando a lide carecer de elementos probantes.
DANO MORAL - VALOR ARBITRADO
O arbitramento do valor da indenização por danos morais insere-se no poder discricionário do julgador, que dispõe de sua conveniência e oportunidade na análise do caso concreto, razão pela qual não se verifica divergência jurisprudencial específica (Súmula 296, I,d o E. TST), tampouco ofensa ao dispositivo constitucional apontado, conforme exige a alínea 'c' do art.896 da CLT.- (fls. 477).
A Corte de origem, ao analisar a questão, consignou que:
-O reclamante, na inicial, aduziu que trabalhou por mais de onze anos na ré, e no dia 13.10.2004 teve seu nome envolvido na alteração das características do veículo -Gol Rallye vermelho- ocorrida no interior da ré, em razão de haver instalado um dos chicotes do painel dianteiro do mencionado veículo; foi inocentado no processo crime instaurado; e foi orientado para que comparecesse ao trabalho no dia 18.10.2004, ocasião em que foi dispensado, após ter seu serviço suspenso após ter sido inquirido pela -proteção ao patrimônio-; foi escoltado por um segurança da fábrica até as dependências onde ficavam os armários com seus pertences e dos demais envolvidos no caso e durante o caminho percorrido foi indagado por diversas pessoas acerca dos fatos e vários colegas de trabalho afirmavam que era inocente e que não teve culpa (fls. 03/11).
A reclamada, na defesa escrita, negou a existência de dano moral, aduzindo que não há qualquer irregularidade em relação ao fato de o autor ter sido convocado para prestar esclarecimentos; em momento algum acusou o obreiro da prática de furto de acessórios de veículos e apenas solicitou a sua colaboração quanto à averiguação dos fatos; não divulgou os fatos e asseverou que a dispensa do autor deu-se em virtude de negligência no cumprimento de suas atividades, ou seja, no fato de não haver impedido que ocorresse a troca da peça para carros com travas elétricas, fios para instalação de alto falantes e ar-condicionado (fls. 320/328).
Assim, ao reclamante competia o ônus de demonstrar as suas alegações, fato constitutivo de seu direito, na forma dos arts. 818 da CLT e 333, I, do CPC.
Os documentos de fls. 132/312 demonstram que foi instaurado processo crime contra -Elias Santana da Conceição- e -Miguel Moreira Barros Júnior-, incursos no art. 155, § 4º, II e IV, do CPC, tendo o reclamante participado do inquérito policial na condição de quinto indiciado (fls. 137). E conforme verificado à fl. 238, não foi oferecida a denúncia em relação ao autor, uma vez que o D. Ministério Público Estadual não encontrou indícios da existência de liame subjetivo entre o reclamante e os denunciados.
O autor, em depoimento pessoal, afirmou:
'...o Sr. Elias era superior hierárquico do depoente, esclarecendo que quando o encarregado não estava presente, o depoente se reportava ao Sr. Elias; ...o Sr. Elias solicitava informações técnicas na área elétrica ao depoente freqüentemente, razão pela qual nunca suspeitou de qualquer irregularidade no que diz respeito ao fato que motivou sua dispensa; o depoente nunca suspeitou de irregularidades com o veículo
195 GOL vermelho, vindo a saber do caso no dia que foi descoberto pela segurança; o depoente não poderia ter evitado o delito; ...o depoente não foi tratado com rispidez na ocasião em que esteve na fábrica para prestar esclarecimentos; ...neste dia outros empregados do setor também foram ouvidos separadamente; ...todos aguardavam em sala separada para serem ouvidos, um a um, permanecendo incomunicáveis e não podendo deslocar-se pela fábrica sem o acompanhamento do pessoal da segurança; ...a reclamada não divulgou o fato no interior da empresa através dos veículos de comunicação habitualmente utilizados, sabendo dizer que houve comentário entre os colegas.' (fl. 317).
O preposto do reclamado, em depoimento pessoal, declarou:
'...não esteve presente no dia em que o(a) reclamante prestou esclarecimentos na fábrica; ...não sabe dizer quantos seguranças foram requisitados para acompanhar os esclarecimentos; ...não sabe dizer se os empregados envolvidos tiveram autorização para entrar na fábrica e retirar os seus pertences; ...' (fls. 318).
Da análise de suas declarações, contata-se que muito pouco - ou quase nada - sabia em relação aos fatos, olvidando-se a ré do disposto no art. 843, § 1º, da CLT, o que aponta, inclusive, para a admissão da veracidade dos fatos narrados na inicial.
Ademais, a testemunha trazida pelo reclamante, única prova testemunhal produzida, esclareceu:
-...trabalhou na reclamada... na função de encarregado de proteção ao patrimônio; ...o depoente acompanhou o reclamante no dia em que este esteve na fábrica para buscar os seus pertences; ...nessa ocasião, a entrada do reclamante já não estava mais autorizada, razão pela qual o supervisor autorizou a passagem pela catraca e o depoente acompanhou o reclamante até o seu setor e o levou de volta, por determinação do coordenador de segurança; ...no setor do reclamante o depoente foi destratado por um representante do sindicato, que dizia ao depoente que aquilo era -crueldade-; ...no setor os demais empregados choravam; ...os outros empregados dispensados não entraram na fábrica para pegar os pertences porque acharam o procedimento muito humilhante; ...o (a) reclamante pegou os pertences dos demais e também chorava.- (fls. 318).
Além disso, tendo em conta o conjunto probatório existente nos autos, não é possível admitir que o reclamante sabia das irregularidades ocorridas e/ou que poderia (deveria) agir (ter agido) no intuito de evitar os acontecimentos, ônus que competida à ré, na forma dos arts. 818 da CLT e 333, II, do CPC.
Ademais, constata-se que a ré foi quem agiu de forma negligente e imprudente em relação à apuração dos fatos, bem como em razão da circunstância de determinar o acompanhamento de segurança ao obreiro quando este foi ao seu armário para retirar os seus pertences, na ocasião da dispensa, tanto que os funcionários do setor em que o reclamante laborava tinham conhecimento do ocorrido e agiram, inclusive, de modo a reconhecer a ausência de culpa do reclamante que, inclusive, laborava para a reclamada há mais de dez anos.
A atitude da ré mostra-se totalmente reprovável, cumprindo salientar, ainda, que se revelou abusiva a dispensa imotivada do reclamante, o que representa excesso ao direito potestativo do empregador, no aspecto, circunstância que implica,
196 inclusive, a violação aos princípios da função social do contrato e da boa-fé contratual (arts. 187, 421 e 422 do CC, aplicados de forma subsidiária ao Direito do Trabalho, na forma do art. 8º, parágrafo único, da CLT), afora à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV, da CF/88).
'Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.' (art. 187 do CC).
'A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato' (art. 421 do CC).
'Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.' (art. 422 do CC).
Diz-se que a função social do contrato, a que se refere o art. 421 do CC, estará cumprida quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade (art. 3º, I, da CF), da justiça social (art. 170, caput, CF), da livre iniciativa, quando for respeitada a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) ou não se ferirem valores ambientais etc. Atrelada à função social do contrato está a boa-fé objetiva, a respeito da qual estabeleceu-se a Súmula 170 do STJ (resultante da Jornada de Direito Civil realizada no ano de 2002, em Brasília, pelo Conselho da Justiça Federal e sob os auspícios do Superior Tribunal de Justiça), in verbis: -A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quanto tal exigência decorrer da natureza do contrato-.
Disso tudo se extrai que a regra contida no artigo 9º da CLT - que fulmina de nulidade os atos praticados com objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT - deve ser interpretada em harmonia com os princípios da função social do contrato, da lealdade e da boa-fé, insculpidos nos igualmente mencionados artigos 421 e 422 do CC, os quais se entrelaçam com o princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa (art. 3º, I da CF/88).
À luz de todos os preceitos e princípios invocados, é inevitável observar que a reclamada, no caso em exame, deixou de cumprir a função social do contrato, agindo em flagrante má-fé, seja subjetiva ou objetivamente falando.
[...]
Desse modo, é inegável a caracterização do dano moral, no aspecto, tendo em conta as circunstâncias referidas e a violação aos princípios da boa-fé, da função social do contrato, ao direito potestativo do empregador (exercido, no caso, de forma extremamente abusiva), afora aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e dos valores sociais do trabalho (art. 1º, IV, da CF).
Ressalte-se, contudo, que em relação ao arbitramento da indenização por dano moral devem ser considerados vários elementos, principalmente, o caráter pedagógico da indenização a ser fixada (considerado o abuso praticado pelo empregador e o seu potencial econômico), a -compensação- da lesão moral sofrida pela vítima (observado o contexto sócio-econômico ao qual pertence), os ditames da razoabilidade, o tempo de serviço na empresa (aproximadamente dez anos e seis meses) e o salário percebido (R$2.661,13).
197 Assim, a indenização fixada no importe de R$80.000 (oitenta mil reais) revela-se excessiva, razão pela qual tal indenização deve ser reduzida para o importe de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais), por entender mais adequado e condizente com os critérios e parâmetros já referidos nas linhas supra. (fls.429/435).
A Agravante, inconformada, insiste que foram preenchidos os requisitos do art. 896 da CLT, merecendo, assim, processamento o apelo trancado.
Ocorre, contudo, que os argumentos expendidos pela Agravante não logram infirmar os termos do despacho agravado, que se sustenta pelos seus próprios fundamentos, os quais adoto como razões de decidir.
Ressalte-se que, ao se reportar explicitamente aos fundamentos da decisão agravada, adotando-os como razão de decidir, o presente julgado adota a técnica de motivação das decisões judiciais por referência ou por remissão, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como bastante ao atendimento da exigência contida no art. 93, IX, da Constituição. Precedente: STF, MS-27.350/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 04/06/2008.
Sinale-se que o Regional, ao distribuir o ônus da prova, observou o contido nos artigos 818 da CLT e 333, I e II, do CPC, de modo que não se vislumbra a ofensa apontada, nos moldes do art. 896, -c-, da CLT.
Por outro lado, o Regional concluiu que o preposto quase nada sabia em relação aos fatos, atraindo a incidência do art. 843, § 1º, da CLT para a admissão da veracidade dos fatos narrados na inicial - fundamento que não foi objeto de impugnação pela Reclamada em suas razões recursais, desatendendo o disposto no art. 514, II, do CPC.
No que concerne ao valor da indenização, observa-se que a decisão regional, ao reduzir o valor arbitrado pela sentença de origem, levou em consideração as circunstâncias do caso e a extensão da lesão, considerando o contexto sócio-econômico ao qual o Reclamante pertence, o seu tempo de serviço e até o valor de seu salário, pautando-se pelo princípio da razoabilidade, em obediência aos critérios de justiça e equidade, de sorte que não há como se constatar violação à literalidade dos artigos 5º, V, da Constituição da República.
Ressalte-se que não existe um parâmetro legal para a fixação do dano moral e, por ser meramente estimativo o valor da indenização, prevalece o critério de se atribuir ao juiz o cálculo da indenização. Precedentes: RR-72300-98.2007.5.03.0003, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, 4ª Turma, DEJT 04/12/2009 e RR-1257100-59.2005.5.15.0141, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, DEJT 11/12/2009.
Por outro lado, os arestos transcritos às fls. 10/13 não servem para comprovação de divergência jurisprudencial, por inespecíficos, pois retratam situação fática diversa da examinada no caso concreto para arbitramento do valor da indenização, porquanto tais julgados ou tratam de racismo ou não consignam critérios como o contexto sócio-econômico, o tempo de serviço e valor do salário do Reclamante, os quais foram objetivamente considerados pelo Regional. Óbice da Súmula 296, I, do TST.
198 Cumpre aduzir que esta Corte, analisando caso análogo, manteve a decisão do Regional, que majorou a indenização para R$ 80.000,00 (TST-RR-73900-95.2006.5.09.0562, Min. João Batista Brito Pereira, 5ª Turma, DEJT de 01/04/2011).
Nego provimento ao Agravo de Instrumento.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, negar provimento ao Agravo de Instrumento.
Brasília, 08 de junho de 2011.
Firmado por Assinatura Eletrônica (Lei nº 11.419/2006)
Márcio Eurico Vitral Amaro
Ministro Relator
fls.
PROCESSO Nº TST-AIRR-148040-45.2006.5.15.0009
Firmado por assinatura eletrônica em 08/06/2011 pelo Sistema de Informações Judiciárias do Tribunal Superior do Trabalho, nos termos da Lei nº 11.419/2006.
199
ANEXO 5
A C Ó R D Ã O
(6ª Turma)
GMMGD/gus/jb/jr
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. TERCEIRI ZAÇÃO TRABALHISTA - ENTIDADES ESTATAIS - RESPONSABILIDADE EM CASO DE CULPA -IN VIGILANDO- NO QUE TANGE AO CUMPRIMENTO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA POR PARTE DA EMPRESA TERCEIRIZANTE CONTRATADA - COMPATIBILIDADE COM O AR T. 71 DA LEI DE LICITAÇÕES - INCIDÊNCIA DOS ARTS. 159 DO CCB/191 6, 186 E 927, -CAPUT-, DO CCB/2002. DECISÃO DENEGATÓRIA. MANUTENÇÃ O. A mera inadimplência da empresa terceirizante quanto às verbas trabalhistas e previdenciárias devidas ao trabalhador terceirizado não transfere a responsabilidade por tais verbas para a entidade estatal tomadora de serviços, a teor do disposto no art. 71 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), cuja constitucionalidade foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADC nº 16-DF. Entretanto, a interpretação sistemática desse dispositivo, em conjunto com os demais preceitos que regem a matéria (arts. 58, III, e 67 da Lei 8.666/93; 159 do CCB/1916, 186 e 927, -caput-, do CCB/2002, observados os respectivos períodos de vigência), revela que a norma nele inscrita, ao isentar a Administração Pública das obrigações trabalhistas decorrentes dos contratos de prestação de serviços por ela celebrados, não alcança os casos em que o ente público tomador não cumpre sua obrigação de fiscalizar a execução do contrato pelo prestador. Nesse quadro, a inadimplência da obrigação fiscalizatória da entidade estatal tomadora de serviços no tocante ao preciso cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias da empresa prestadora de serviços gera sua responsabilidade subsidiária, em face de sua culpa -in vigilando-, a teor da regra responsabilizatória incidente sobre qualquer pessoa física ou jurídica que, por ato ou omissão culposos, cause prejuízos a alguém. Evidenciando-se essa culpa -in vigilando- nos autos, incide a responsabilidade subsidiária, de natureza subjetiva, prevista nos preceitos legais especificados. No mesmo sentido, o inciso V da Súmula 331/TST. Sendo assim, não há como assegurar o processamento do recurso de revista quando o agravo de instrumento interposto não desconstitui os fundamentos da decisão denegatória, que ora subsiste por seus próprios fundamentos. Agravo de instrumento desprovido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n° TST-AIRR-122400-63.2008.5.04.0304, em que é Agravante BANCO DO BRASIL S.A. e Agravados SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA - SESI, AES SUL DISTRIBUIDORA GAÚCHA DE ENERGIA S.A., WHITE MARTINS GASES INDUSTRIAIS LTDA., MASSA FALIDA DE VIGILÂNCIA PEDROZO LTDA. e CARLITO SCHIRMANN .
O TRT de origem denegou seguimento ao recurso de revista do Reclamado.
200 Inconformado, o Reclamado interpõe o presente agravo de instrumento, sustentando que a sua revista reunia condições de admissibilidade.
Não foram apresentadas contraminuta e contra-razões, sendo dispensada a remessa dos autos ao MPT, nos termos do art. 83, § 2º, do RITST.
TRAMITAÇÃO PREFERENCIAL - FALÊNCIA (ART. 768 DA CLT ).
PROCESSO ELETRÔNICO.
É o relatório.
V O T O
I) CONHECIMENTO
Atendidos todos os pressupostos recursais, CONHEÇO do apelo.
II) MÉRITO
TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA - ENTIDADES ESTATAIS - RESPONSABILIDADE EM CASO DE CULPA -IN VIGILANDO- NO QUE TANGE AO CUMPRIMENTO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E PREVIDEN CIÁRIA POR PARTE DA EMPRESA TERCEIRIZANTE CONTRATADA - COMPATI BILIDADE COM O ART. 71 DA LEI DE LICITAÇÕES - INCIDÊNCIA DOS ARTS. 159 DO CCB/1916, 186 E 927, -CAPUT-, DO CCB/2002. DECISÃO DENEGATÓRIA. MANUTENÇÃO
O primeiro juízo de admissibilidade do recurso de revista, ao exame do tema em epígrafe, denegou-lhe seguimento.
No agravo de instrumento, o Reclamado repisa as alegações trazidas na revista, ao argumento de que foram preenchidos os requisitos de admissibilidade do art. 896 da CLT.
Contudo, a argumentação do Agravante não logra desconstituir os termos da decisão agravada, que subsiste pelos seus próprios fundamentos, ora endossados e integrantes das presentes razões de decidir, verbis:
-PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS
Responsabilidade Solidária / Subsidiária
Alegação(ões):
- contrariedade à Súmulas 331, IV, do TST e Vinculante 10 do STF.
- violação do(s) art(s). 5º, II, 37, § 6º, 97, 109, 173, § 1º, II, da CF.
- violação do(s) art(s). 71, § 1º, da Lei 8.666/93.
A 9ª Turma decidiu nos seguintes termos:
(...) A terceirização, na hipótese, é aquela em sentido amplo, que sob o mesmo título e justificativa abarca a locação de mão-de-obra. Na ausência de regramento específico a regular a prática sistemática da terceirização e para não ficarmos
201 somente na aplicação da jurisprudência que trata da matéria, impõe-se reconhecer o alcance da função social do contrato, partindo da sua inserção no mundo jurídico como regra de caráter geral que permite, por consequência, uma interpretação voltada à socialidade. A disposição do art.186 do Código Civil prevê: -Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ilícito-. A incidência da regra legal mencionada implica na responsabilização das empresas prestadora e tomadoras do serviço. Acresça-se que a isenção quanto à responsabilidade trabalhista, previdenciária, fiscal e comercial da tomadora de serviços, definida pelo art. 71 da Lei 8.666/93, deve ser interpretada em consonância com o disposto no art. 54 da mesma Lei ao estabelecer que "os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado". A abrangência do disposto no preceito legal invocado, portanto, restringe-se às pessoas envolvidas no contrato de prestação de serviços, não atingindo o trabalhador em seu direito constitucional de ter garantida a satisfação do crédito trabalhista. No acórdão do Processo TRT 0017500-50.2009.5.04.0512 (RO), julgado em 17 de março de 2010, em que atuou como relator o Exmo. Desembargador João Alfredo Borges Antunes de Miranda, envolvendo a mesma prestadora de serviços e o ora recorrente, assim decidiu a Turma: -A questão -sub judice- versa sobre a clássica situação de contratação triangular de trabalhadores, com a existência de três partes intervenientes: a prestadora dos serviços, a tomadora dos serviços e o empregado. Nestes casos, a responsabilização do tomador de serviços se embasa na culpa. A culpa surge de uma conduta errônea, que leva o indivíduo a lesar o direito alheio. O erro de conduta culposo leva à obrigação de reparar o dano, imposta a todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem (artigo 927 do CCB). A culpa pode ser -in eligendo-, que se caracteriza pela má escolha da empresa prestadora de serviços, empresa sem reais condições econômico/financeiras de suportar os custos trabalhistas decorrentes da contratação de pessoal, e -in vigilando-, pela falta de atenção do tomador do serviço aos procedimentos e atitudes da empresa prestadora em r elação aos empregados que colocam seu esforço físico e mental à disposiçã o do empreendimento econômico mantido pela tomadora de serviços. Quanto à terceirização no serviço público, é fato que, desde a publicação do Decreto-lei nº 200/1967, já ocorria estímulo à descentralização da atividade pública e a execução indireta das obras e serviços, permitindo que as entidades estatais contratassem empresas para a realização de tarefas complementares. O artigo 10, parágrafo 7º, do Decreto-Lei nº 200/1967 tem a seguinte redação: para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle, e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre, que possível à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução (grifo nosso). A própria norma exigia empresa efetivamente capaz de desempenhar os encargos, vale dizer, empresa tecnicamente e financeiramente idônea. Se o ente público contrata de forma incorreta, pactuando com empresa prestadora de serviços economicamente inidônea, causando prejuízos aos trabalhadores, deve ser responsabilizado pelo pagamento do débito trabalhista, pois evidentemente não cumpriu com os ditames legais. Assim, causando prejuízos a
202 terceiros, deve ressarci-los, por força do princípio da responsabilidade objetiva do ente público. Neste sentido, o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. O fato de o ente público depender de processo de licitação para a contratação do prestador de serviços (atendendo o disposto no artigo 37, item XXI, da CF), não afasta a sua culpa pela má escolha da empresa locadora de serviços. Isto porque o processo de licitação não foi realizado de forma regular ou porque as normas legais que regulam as licitações, normas estas originárias do ente público, são ineficientes, o que acaba trazendo prejuízos aos empregados. Por qualquer ângulo que se observa a questão, o que emerge inapelavelmente é a culpa do ente estatal. Este entendimento não contraria o artigo 594 do CCB, nem a Instrução Normativa nº 07 do Ministério do Trabalho. Em razão disto é que resulta a inaplicabilidade da regra prevista no artigo 71, parágrafo 1º, da Lei nº 8.666/1993. Cabe salientar que a alteração aos parágrafos 1º e 2º desse preceito legal, pela Lei nº 9.032, de 28-04-1995, não é suficiente para alterar tal entendimento. Nestes casos, adota-se o entendimento jurisprudencial consubstanciado no item II da Súmula nº 331 do TST, não se considerando caracterizado o vínculo empregatício com o ente público. Assim sendo, o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador direto, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual (item IV da Súmula nº 331 do TST).- Mantém-se a decisão, acrescentando-se, por fim, que as normas invocadas pelo banco reclamado já se encontram analisadas no corpo desta decisão para fins de prequestionamento.
No julgamento dos embargos de declaração a Turma aduziu o que segue:
Afirma o embargante, em síntese, que a sentença jamais poderia ser mantida com base na Súmula 331, inciso IV, do TST, sem a declaração de inconstitucionalidade do §1º do artigo 71 da Lei n. 8.666/93, uma vez que não observa a cláusula da reserva de plenário - Súmula Vinculante nº 10 do STF. Sem razão. Em primeiro lugar, porque o embargante inova ao argumentar sobre a necessária declaração de inconstitucionalidade do §1º do artigo 71 da Lei n. 8.666/93, eis que não observa a cláusula da reserva de plenário - Súmula Vinculante nº 10 do STF. Tal matéria não foi abordada no recurso ordinário das fls. 466 e seguintes. Em segundo lugar, porque os embargos ora apresentados não alteram o teor do julgado porquanto não trazem inconformidades cujo teor não tivesse sido devidamente sopesado quando da apreciação do apelo. O embargante pretende rediscutir o mérito da questão, para o que não se prestam os embargos de declaração. Foi adotada tese explícita acerca da matéria, não estando este Relator obrigado a fazer referência a fundamento que não serve de apoio à decisão. Exige-se, sim, a apresentação dos motivos que formaram o convencimento da Turma, não se lhe impondo manifestação específica sobre todos os argumentos trazidos pela parte. Nesse sentido, aliás, dispõem a Súmula nº 297, I, e a Orientação Jurisprudencial nº 118 da SDI-1 do TST. Veja-se mais que a Turma adotou outra tese aplicável ao caso, qual seja, a da função social do contrato, que confirma a validade do negócio civil havido entre o Banco e a prestadora de serviços, conforme previsto no art.421 do Código Civil. Conseqüência do desvirtuamento daquele preceito, havendo, como houve, violação do direito de terceiro ( o reclamante), há caracterização do ilícito e os que dele participaram em prejuízo daquele, devem responder pelo direito lesado (art.186 do CCB). Não houve violação de dispositivo constitucional na condenação do embargante. (destaquei - Relator: Marçal H. S. Figueiredo).
203 A decisão não contraria a Súmula do TST indicada.
Não constato, na espécie, contrariedade à Súmula Vinculante 10 do STF: Viola a cláusula de reserva de plenário (CF,art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.
Seria possível o enfrentamento da alegação de contrariedade à Súmula Vinculante 10 do STF, pois o advento da súmula vinculante no ordenamento jurídico pátrio é posterior à redação do artigo 896 da CLT, além do que os termos da Lei 11.417/2006 aplicam-se a todas as decisões judiciais, conceito que sem dúvida abrange o despacho de admissibilidade de recurso de revista. Todavia, ainda que se considere prequestionada a matéria entendo inviável o recebimento do recurso por tal fundamento, diante das dissonantes decisões monocráticas dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a respeito. Embora concedidas liminares em reclamações - com efeito restrito aos processos delas objeto -, por aparente desrespeito à referida Súmula Vinculante 10 daquela Corte e ao artigo 97 da CF, entendo que prevalece, por ora, a orientação adotada pelos Ministros Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto (Rcl/9809, de 24/02/2010, entre outras) e Cármen Lúcia Antunes Rocha (Rcl/7901, de 02/08/2010), no sentido de que não houve nenhuma violação à reserva de plenário, pois a Súmula 331 do TST foi objeto de análise pelo Plenário do Tribunal Superior do Trabalho no Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº 297.751/96, em 11 de setembro de 2000.
Pelos mesmos fundamentos, não constato violação direta e literal ao artigo 97 da Magna Carta.
Não constato violação aos dispositivos de lei e demais da Constituição Federal invocados, circunstância que obsta a admissão do recurso pelo critério previsto na alínea "c" do art. 896 da CLT.
CONCLUSÃO
Nego seguimento.-.
Acrescente-se às razões expedidas que a responsabilização subsidiária da entidade tomadora de serviços tem o mérito de buscar alternativas para que o ilícito trabalhista não favoreça indevidamente aquele que já foi beneficiário do trabalho do Reclamante. Realiza, ainda, de forma implícita, o preceito isonômico, consubstanciado no art. 5º, caput, ab initio, e I, da CF, não ferindo, por isso, em nenhum momento, a ordem jurídica vigente.
A mera inadimplência da empresa terceirizante quanto às verbas trabalhistas e previdenciárias devidas ao trabalhador terceirizado não transfere a responsabilidade por tais verbas para a entidade estatal tomadora de serviços, a teor do disposto no art. 71 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), cuja constitucionalidade foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADC nº 16-DF.
Entretanto, a interpretação sistemática desse dispositivo, em conjunto com os demais preceitos que regem a matéria (arts. 58, III, e 67 da Lei 8.666/93; 159 do CCB/1916, 186 e 927, -caput-, do CCB/2002, observados os respectivos períodos de vigência), revela que a norma nele inscrita, ao isentar a Administração Pública das obrigações trabalhistas decorrentes dos contratos de prestação de
204 serviços por ela celebrados, não alcança os casos em que o ente público tomador não cumpre sua obrigação de fiscalizar a execução do contrato pelo prestador.
Nesse quadro, a inadimplência da obrigação fiscalizatória da entidade estatal tomadora de serviços no tocante ao preciso cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias da empresa prestadora de serviços gera sua responsabilidade subsidiária, em face de sua culpa -in vigilando-, a teor da regra responsabilizatória incidente sobre qualquer pessoa física ou jurídica que, por ato ou omissão culposos, cause prejuízos a alguém.
Evidenciando-se essa culpa -in vigilando- nos autos, incide a responsabilidade subsidiária, de natureza subjetiva, prevista nos preceitos legais especificados. No mesmo sentido, o inciso V da Súmula 331/TST.
Ressalte-se, por oportuno, que não viola, igualmente, o art. 97 da CF decisão regional que aplica estritamente o entendimento contido na Súmula 331, IV/TST, mormente porque sua redação e entendimento foram aprovados pelo Plenário do Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Resolução 121/03, publicada em 21/11/2003. Com efeito, se o Pleno do TST já decidiu a matéria constitucional, consolidando o entendimento em Súmula, resulta desnecessário que o TRT leve a argüição de inconstitucionalidade ao exame de seu Órgão Pleno ou Especial, pois o órgão fracionário apenas se reporta à jurisprudência formada pela cúpula da Justiça do Trabalho.
Por estar a decisão em conformidade com a Súmula 331, IV, do TST, e a teor do art. 896, § 4º, da CLT e da Súmula 333 do TST, o recurso de revista não reúne condições de admissibilidade. Não vislumbro, pois, violação dos demais dispositivos de lei e da CF invocados.
Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Egrégia Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento. Brasília, 01 de junho de 2011. Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001) Mauricio Godinho Delgado Ministro Relator fls. PROCESSO Nº TST-AIRR-122400-63.2008.5.04.0304 Firmado por assinatura digital em 01/06/2011 pelo sistema AssineJus da Justiça do Trabalho, conforme MP 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira.
205
ANEXO 6
A C Ó R D Ã O
(6ª Turma)
GMMGD/rfs/jb/mas/ef
RECURSO DE REVISTA. 1. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE ESTA BELECE PRAZO MÍNIMO DO PACTO LABORAL EM QUATRO ANOS. INOBS ERVÂNCIA DO BENEFÍCIO PELAS RECLAMADAS. O contrato firmado pelas partes, na forma como descrita no acórdão regional, não foi por tempo determinado - já que não se insere em nenhuma das hipóteses do art. 443, § 2º, da CLT -, mas houve, sim, a inserção de cláusula no contrato que garantia ao obreiro uma duração do pacto não inferior a quatro anos. Inexiste irregularidade em pactuar-se cláusula desse teor, pois é benéfica ao empregado e a condição foi firmada por livre vontade das partes. A regra contratual, portanto, é harmônica com os termos do art. 444 da CLT: -As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes-. Além disso, o contrato não confronta com os requisitos fixados no art. 166 do CCB. Recurso de revista não conhecido quanto ao tema. 2. ÔNUS DA PROVA. A pretensão da parte recorrente importa, necessariamente, o reexame de fatos e provas, o que encontra óbice na Súmula 126/TST e inviabiliza o seguimento do recurso. Recurso de revista não conhecido. 3. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SALÁRIO MÍNIMO. Embora a proibição expressa contida na Súmula Vinculante nº 04/STF, de ser o salário mínimo utilizado como fonte diretiva de indexação da base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, deve, na ausência de edição de lei que regule a base de cálculo da parcela em debate, continuar sendo o salário mínimo o parâmetro de apuração do adicional, na forma do art. 192 da CLT. É que, não obstante o reconhecimento de sua incompatibilidade com o texto constitucional (art. 7º, IV), não pode o Poder Judiciário definir outro referencial - segundo o STF. Assim, a norma celetista continuará vigente até que sobrevenha a criação de norma legal ou negociação coletiva dispondo acerca do parâmetro a ser adotado para cálculo do adicional de insalubridade - conforme teor da Súmula Vinculante nº 4/STF. Recurso de revista conhecido e provido, quanto ao tema.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-172400-06.2002.5.15.0067, em que são Recorrentes CIPA - INDUSTRIAL DE PRODUTOS ALIMENTARES LTDA. E OUTRO e Recorrido MARCO ANTONIO VASCO.
O TRT de origem, no que interessa, deu parcial provimento ao recurso de revista do Reclamante para condenar a Reclamada no pagamento de salários no período de 27/11/2001 a 28/02/2003 e determinar como base de cálculo do adicional de insalubridade o salário base do Reclamante (fls. 979-989).
206 Irresignadas, as Reclamadas interpõem o presente recurso de revista (fls. 1025-1041).
O primeiro juízo de admissibilidade deu seguimento ao apelo (fl. 1057).
Foram apresentadas contrarrazões (fls. 1059-1066), sendo dispensada a remessa dos autos ao MPT, nos termos do art. 83, § 2º, do RITST.
É o relatório.
V O T O
I) CONHECIMENTO
PRESSUPOSTOS EXTRÍNSECOS
Atendidos todos os pressupostos comuns de admissibilidade, examino os específicos do recurso de revista.
PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS
1) CLÁUSULA CONTRATUAL QUE ESTABELECE PRAZO MÍNIMO DO PACTO LABORAL EM QUATRO ANOS. INOBSERVÂNCIA DO B ENEFÍCIO PELAS RECLAMADAS.
Foi pontuado pelo Regional:
-De fato, o art. 445 da CLT estipula o prazo máximo de dois anos para os contratos a termo, prazo este que se desrespeitado leva à modificação objetiva do contrato que se torna por prazo indeterminado, por força da regra insculpida no art. 451 consolidado.
Também não há dúvidas de que a regra geral é que os contratos de trabalho sejam firmados por tempo indeterminado, por ser tal modalidade notadamente mais favorável ao empregado. Isso porque, além de ser meio de efetivação do princípio trabalhista da continuidade da relação de emprego, torna concreto também o princípio da norma mais favorável, já que os pactos sem término prefixado tem maior potencialidade de outorgar direitos trabalhistas ao empregado ao longo do tempo e oferece um maior elenco de verbas devidas em casos de ruptura contratual.
Acontece que há situações peculiares em que o modelo indeterminado de contratação não é o mais interessante para as partes, principalmente para o empregado. É o caso, por exemplo, de profissionais de alta qualificação e prestígio no mercado que desejam ter certas garantias para aceitar uma contratação, como a certeza de que o contrato não vá se romper em um tempo exíguo, ao que fatalmente se submeteria caso o contrato se desse por prazo indeterminado.
É exatamente o que se verifica no caso dos autos, onde o reclamante foi contratado para exercer a função de Gerente Industrial de Embalagens (fl. 382), cargo de evidente destaque na empresa e que certamente lhe foi oferecido por possuir alto nível de habilitação profissional, parecendo-me muito claro que a intenção das partes com a inserção da cláusula que previu prazo de 4 anos para o contrato era outorgar garantia ao empregado de que sua contratação não seria efêmera.
207 E não se pode olvidar que as estipulações contidas em um contrato de trabalho contam com uma presunção inicial de que refletem a vontade comum das partes e, por isso, se não houver prova em contrário de que a intenção era outra, devem ser respeitadas, não sendo demais recordar que o art. 444 da CLT dispõe que 'As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes'.
Note-se, também, que o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 421, prevê que 'A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato', estipulando, no art. 422, que 'Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.'
Diz-se que a função social do contrato, a que se refere o art. 421 do CCB, estará cumprida quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade (art. 3º, I, da CF), da justiça social (art. 170, caput, CF), da livre iniciativa, quando for respeitada a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) ou não se ferirem valores ambientais etc. Atrelada a função social do contrato está a boa-fé objetiva, a respeito da qual estabeleceu-se a Súmula 170 do STJ (resultante da Jornada de Direito Civil realizada no ano de 2002, em Brasília, pelo Conselho da Justiça Federal e sob os auspícios do Superior Tribunal de Justiça), in verbis: 'A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quanto tal exigência decorrer da natureza do contrato'.
Disso tudo se extrai que a regra contida no artigo 9º da CLT - que fulmina de nulidade os atos praticados com objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT - deve ser interpretada em harmonia com o supra citado artigo 444 da Consolidação e, sobretudo, com os princípios da função social do contrato, da lealdade e da boa-fé, insculpidos nos igualmente mencionados artigos 421 e 422 do CCB, os quais se entrelaçam com o princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa (art. 3º, I da CF), com relevo para o fato de que as disposições do artigo 9º da CLT têm como finalidade proteger o trabalhador, jamais prejudicá-lo.
À luz de todos os preceitos e princípios invocados, é inevitável observar que o contratante, no caso em exame, deixou de cumprir a função social do contrato, agindo em flagrante má-fé, seja subjetiva ou objetivamente falando, já que induziu o reclamante a erro na negociação, fazendo-o acreditar nas condições oferecidas para assinatura do contrato (alto salário; pagamento de combustível; despesas com mudança; pagamento de aluguel de imóvel e contrato vigente por 4 anos), deixando de cumprir honestamente a principal obrigação contratual ajustada de que o pacto não se encerraria antes de transcorridos os 4 anos.
Além disso, há duas premissas básicas que não podem deixar de ser consideradas no presente caso, justamente por conduzirem à solução mais equânime da lide. A primeira é a de que a contratação do autor - provavelmente por ter este uma notável qualificação profissional - foi condicionada à inserção de uma garantia de que a prestação dos serviços não se daria por período inferior a 4 anos; e a segunda é a de que o espírito do legislador ao redigir o art. 9º da CLT foi beneficiar o empregado, como uma das formas de concretizar o famigerado princípio
208 da proteção e, também, o da boa-fé, e nessa linha é que deve se orientar o intérprete do direito a fim de alcançar o propósito legal.
Relevando, assim, a impropriedade em sua redação, e visando adequá-la, de certo modo, aos ditames legais, vislumbro que a cláusula em comento destinou-se a instituir um contrato por prazo determinado de 2 anos e, ao mesmo tempo, assegurar uma 'garantia de emprego' de mais 2 anos ao trabalhador.
Por tudo isso é que se conclui que fulminar de nulidade a cláusula questionada não é o mais correto, sendo razoável considerar que, na verdade, o contrato teve duração estipulada de dois anos e o restante, que sobeja, equivale a uma garantia de emprego também de dois anos.
Assim, sendo válida e exigível a cláusula em debate, há que se acolher o pedido do obreiro que, indevidamente dispensado em 26/11/01, tem o direito de receber os salários referentes ao período de 27/11/01 a 28/02/03 - data em que a garantia ao emprego foi encerrada.
Destarte, fica a empresa condenada a pagar a indenização supra, autorizando-se a dedução dos valores comprovadamente pagos a título de verbas rescisórias- (g.n) (fls. 979-989)
Na revista, as Reclamadas sustentam, em síntese, que a contratação por prazo determinado de 4 (quatro) anos é ilícita. Afirma que o contrato de trabalho deveria ser regido pelas normas do contrato por prazo indeterminado, tendo em vista aquele não poder ser superior a 2 (dois) anos. Aponta violação dos arts. 445 e 451 da CLT. Colaciona arestos para cotejo de teses.
A revista não merece conhecimento.
Conforme se infere do acórdão regional, as partes livremente firmaram cláusula contratual em que se estabeleceu a duração mínima do pacto laboral em quatro anos; essa norma entre as partes teve o objetivo de garantir ao empregado que o contrato de trabalho não seria rompido antes do período de quatro anos; essa obrigação não poderia ter sido desrespeitada pelas empresas.
Em face desses fundamentos, entende-se não assistir razão às Reclamadas.
Na forma como descrita na decisão recorrida, o contrato não foi firmado por tempo determinado - já que não se insere em nenhuma das hipóteses do art. 443, § 2º, da CLT -, mas houve, sim, a inserção de cláusula no contrato que garantia ao obreiro uma duração do pacto não inferior a quatro anos.
Inexiste irregularidade em pactuar-se cláusula desse teor, pois é benéfica ao empregado e a condição foi firmada por livre vontade das partes. A regra contratual, portanto, é harmônica com os termos do art. 444 da CLT: -As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes-. Além disso, o contrato não confronta com os requisitos fixados no art. 166 do CCB.
209 A decisão do TRT está em consonância com os princípios da proteção e da norma mais favorável.
Em face da interpretação conferida à cláusula contratual em debate, não há falar em violação dos arts. 445 e 451 da CLT.
Quanto aos arestos transcritos, são inespecíficos, motivo por que não são hábeis a provocar o processamento do recurso de revista.
NÃO CONHEÇO.
2) ÔNUS DA PROVA
Pontuou o Regional:
-A r. sentença de origem corretamente considerou válido o pacto contratual com base no documento de fl. 26, validade reiterada por este Relator com reconhecimento dos efeitos pretendidos pelo autor quanto à indenização pela rescisão antecipada do contrato.
'Se é verdade que a empresa Mabel S/A não existe, é fato que Mabel é o nome fantasia da primeira ré, e com ela se confunde totalmente.
Outrossim é por demais fácil se concluir que quem assinara tal documento fora exatamente quem assinara o contrato de locação do imóvel onde o autor residira (fl. 86, Sr. Udélio Scodro - sócio da segunda recorrente).
Portanto, correta a r. decisão de primeiro grau em deferir ao autor as diferenças salariais, posto que pelo pactuado o salário inicial haveria de ser de R$ 4.500,00 e não aquele inferior apontado na CTPS.
Nada, portanto a alterar na r. sentença neste tocante- (fls. 986-987).
Na revista, as Reclamadas sustentam, em síntese, que o documento que trata do contrato de trabalho do Reclamante não foi reconhecido válido, tendo sido impugnado. Afirma que o Reclamante deveria fazer prova constitutiva de seu direito por meio de testemunhas ou outros meios idôneos, mas não o fez. Aponta violação dos arts. 818 da CLT e 333, I, do CPC.
A revista não merece conhecimento.
O Regional consignou, expressamente, a validade do documento que trata do contrato de trabalho do Reclamante. Assim entender em sentido diverso demandaria o revolvimento de fatos e provas, hipótese vedada pela Súmula 126/TST.
Ademais, o Regional não decidiu a questão à luz do ônus da prova, carecendo os dispositivos invocados do necessário prequestionamento. Inteligência da Súmula 297/TST.
NÃO CONHEÇO.
3) ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SALÁRIO MÍNIMO. SÚMULA VINCULANTE Nº 4/STF
210 Quanto ao tema, foi pontuado pelo Regional:
-Adicional de insalubridade e base de cálculo
O pensamento silogístico da r. decisão primeira salta aos olhos e não merece reprimenda.
Como fora modificado o ambiente de trabalho do autor a perícia fora feita de forma indireta e os PPRA's juntados pelas rés demonstraram que na fábrica havia ruído superior ao mínimo tolerável de 85 decibéis . Ali, onde se ativava o autor, a pressão sonora ia de 79,9 a 88,2 decibéis.
E como a ré não fizera prova do tempo em que o autor ali ficava e tampouco prova de que lhe fornecesse protetores auriculares, a presunção de trabalho em local com excesso de ruído milita a favor do autor.
Ademais a ré pagava-lhe adicional de insalubridade, como se constata dos recibos de pagamento; fato este que se adiciona a conclusão do perito e leva à inarredável conclusão de que o valor pago a título de adicional de insalubridade não se dava por mera liberalidade do empregador.
Resta, então saber-se se correta a decisão que deferiu diferenças de adicionais de insalubridade pela adoção de incorreta base de cálculo (salário mínimo).'
A Constituição Federal de 1988, no inciso XXIII do seu art. 7º, utiliza a palavra 'remuneração' para definir a base de incidência do adicional referente ao trabalho em condições insalubres, desprezando o termo salário, propositadamente, ante a vedação contida no final do seu inciso IV, e permitindo que se repute clara a intenção do legislador constituinte em majorar a base de cálculo do referido adicional, sobretudo em se considerando os termos de seu art. 196, que assim reza:
'A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação'.
O art. 192 da CLT, confirmando a preocupação do legislador com a saúde dos trabalhadores, pune com um adicional salarial o empregador que obriga seus empregados ao labor em condições insalubres, cessando porém essa punição com a eliminação ou neutralização da insalubridade (art. 191, CLT).
Todavia, a penalidade (em sentido lato) contida no art. 192 da CLT, que é baseada no salário mínimo, além de não surtir o efeito esperado, considerando-se o seu pequeno valor, incentiva os maus empregadores ao descumprimento das normas legais pertinentes à saúde do trabalhador e contraria frontalmente o disposto no já citado art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal ('salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim' - destaque nosso).
211 Ora, se contraria a Constituição Federal, obviamente não pode servir de base para o pagamento do adicional de insalubridade. O princípio da legalidade, ante o que consta da Carta Magna, torna inaplicável a base de incidência do referido adicional contida no art. 192 da CLT, considerando-se tratar de lei infraconstitucional que não pode prevalecer contra a Constituição Federal.
Veja-se, por exemplo, a decisão da 1a Turma do STF no RE nº 236.396-5 (MG), tendo como relator o Min. Sepúlveda Pertence, publicada no DJU de 20.11.98, p. 24 e na Revista LTr. 62-12/1621, afirmando que a vinculação da base de cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo contraria o disposto no art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, o qual veda a vinculação desse salário para qualquer fim.
Destarte, após o advento da CF/88, a base de cálculo do adicional de insalubridade a ser considerada no caso do autor é o salário-base do obreiro, impondo-se a reforma da r. sentença originária para que assim fique determinado.
Dou parcial provimento- (g.n) (fls. 979-989).
Na revista, as Reclamadas sustentam, em síntese, que, para a apuração do adicional de insalubridade, deverá ser utilizado como base de cálculo o salário mínimo. Aponta violação do art. 192 da CLT. Colaciona arestos para cotejo de teses.
O recurso merece conhecimento.
A Súmula 228/TST, por vários anos, estabeleceu como base de cálculo do adicional de insalubridade o salário mínimo, sendo alterada em novembro de 2003, para ressalvar as hipóteses previstas na Súmula 17/TST (que garantia ao empregado que, por força de lei, convenção coletiva ou sentença normativa, percebesse salário profissional, sobre este seria calculado).
Contudo, a partir da edição da Súmula Vinculante n. 4/STF - -Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.- - o texto da Súmula 228/TST, diante da impossibilidade de utilização do salário mínimo como diretriz, foi alterado na sessão do Tribunal Pleno de 26.06.2008, passando a vigorar com o seguinte teor: -A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n. 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo-.
Ocorre que o novo parâmetro adotado pelo TST teve sua eficácia suspensa na parte em que permitia a utilização do salário básico para calcular o adicional de insalubridade, em razão da liminar deferida pelo Excelentíssimo Ministro Presidente do STF nos autos da Reclamação proposta pela Confederação Nacional da Indústria, n. 6.266-0/DF. Como fundamento para decidir, Sua Excelência reportou-se ao julgamento que deu origem à Súmula Vinculante n. 4 (RE 565.714/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, Sessão de 30.4.2008), afirmando que: -(...) esta Corte entendeu que o adicional de insalubridade deve continuar sendo calculado com base no salário mínimo, enquanto não superada a inconstitucionalidade por meio de lei ou convenção coletiva. Dessa forma, com base no que ficou decidido no RE 565.714/SP e fixado na Súmula Vinculante n. 4, este
212 Tribunal entendeu que não é possível a substituição do salário mínimo, seja como base de cálculo, seja como indexador, antes da edição de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o adicional de insalubridade. Logo, à primeira vista, a nova redação estabelecida para a Súmula n. 228/TST revela aplicação indevida da Súmula Vinculante n. 4, porquanto permite a substituição do salário mínimo pelo salário básico no cálculo do adicional de insalubridade sem base normativa.-
Assim, obstada a substituição da base de cálculo do adicional de insalubridade por decisão judicial, embora a proibição expressa contida na Súmula Vinculante n. 04/STF de ser o salário mínimo utilizado como fonte diretiva de indexação da base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, deve, na ausência de edição de lei que regule a base de cálculo da parcela em debate, continuar sendo o salário mínimo o parâmetro de apuração do adicional, na forma do art. 192 da CLT. É que, não obstante o reconhecimento de sua incompatibilidade com o texto constitucional (art. 7º, IV), não pode o Poder Judiciário definir outro referencial - segundo o STF. Assim, a norma celetista continuará vigente até que sobrevenha a criação de norma legal ou negociação coletiva dispondo acerca do parâmetro a ser adotado para cálculo do adicional de insalubridade - a teor da Súmula Vinculante n. 4/STF.
Nesse sentido, vem decidindo esta Corte:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ADICIO NAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. Mesmo na vigência da Constituição Federal de 1988, a base de cálculo do adicional de insalubridade é o salário mínimo de que trata o art. 76 da CLT, e não a remuneração ou o salário contratual do empregado. Incidência da Súmula 228 do TST e das Orientações Jurisprudenciais nºs 2, tanto da SBDI-1 quanto da SBDI-2. Decisão de Tribunal Regional do Trabalho, o que impossibilita o processamento do recurso de revista (§ 4º do artigo 896 da CLT e Súmula 333 do TST). Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST-AIRR-9/2006-014-04-40.0, 6ª. Turma, Min. Horácio Senna Pires, DJ 07.03.2008).
RECURSO DE REVISTA. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BAS E DE CÁLCULO. SALÁRIO MÍNIMO (CLT, ART. 192). DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE. SÚ MULA VINCULANTE Nº 4 DO STF. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o RE-565.714-SP, sob o manto da repercussão geral da questão constitucional, referente à base de cálculo do adicional de insalubridade, editou a Súmula Vinculante nº 4, reconhecendo a inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo como parâmetro, mas vedando a substituição deste por decisão judicial. Assim decidindo, a Suprema Corte adotou técnica decisória conhecida, no direito constitucional alemão, como declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade, ou seja, a norma, não obstante ser declarada inconstitucional, continua a reger as relações obrigacionais, em face da impossibilidade de o Poder Judiciário ser substituído pelo legislador, a fim de definir critério diverso para a regulação da matéria. Portanto, ainda que reconhecida a inconstitucionalidade do art. 192 da CLT, tem-se que a parte final da Súmula Vinculante nº 4 do STF não permite criar critério novo por decisão judicial, razão pela qual, até que se edite norma legal ou convencional estabelecendo base de cálculo, para o adicional de insalubridade, distinta do salário mínimo, continuará a ser aplicado esse critério para o cálculo do
213 referido adicional. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (TST-RR-248/2006-101-04-40.1, 7ª Turma, Rel. Min. Pedro Paulo Manus, DJU de 12.12.2008).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SALÁRIO MÍNIMO. ARTIGO 192 DA CLT. NÃO-REC EPÇÃO. SÚMULA VINCULANTE Nº 4 DO STF. EFEITOS PROTRAÍDOS. NÃO PROVIMENTO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fundando-se no disposto no artigo 27 da Lei nº 9.868/99 e na doutrina constitucional alemã, permite que ao ser declarada a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, por razões de segurança jurídica, estabeleça-se a restrição de sua eficácia para momento outro protraído no tempo (ADI 2.240/BA, Relator o eminente Ministro Gilmar Mendes, DJ de 03/8/2007). 2. Ante a superveniência da edição da Súmula Vinculante nº 4 do STF, a vedar a utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, e impedir que o Poder Judiciário proceda a sua substituição, tem-se que o disposto no artigo 192 da CLT, não obstante em dissonância com o referido verbete sumular, tenha seus efeitos mantidos até que seja editada norma legal dispondo em outro sentido ou até que as categorias interessadas se componham em negociação coletiva. 3. Não se aplica, à hipótese, o teor da nova redação da Súmula nº 228, dada pela Resolução nº 148/2008 do Plenário desta Casa, porquanto liminarmente suspensa sua eficácia pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Reclamação nº 6.266/DF. 4. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST-AIRR-646/2005-001-04-40.9, 7ª Turma, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DJU de 12.12.2008).
EMBARGOS. VIGÊNCIA DA LEI Nº 11.496/2007. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SUSPENSÃO DA SÚMULA 228 DESTE COLENDO TST POR DECISÃO DO EXCELSO STF. RECONHECIME NTO DO SALÁRIO MÍNIMO COMO BASE DE CÁLCULO. SÚMULA VINCULA NTE Nº 4 DO EXCELSO STF. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MANUT ENÇÃO DESSE PARÂMETRO ATÉ EDIÇÃO DE LEI POSTERIOR SOBRE O TEMA . A Súmula Vinculante nº 4 do excelso Supremo Tribunal Federal, conforme bem definido em decisão mais recente daquela Corte Maior, não permite a imposição de outra base de cálculo para o adicional de insalubridade, ainda que considerada inconstitucional a vinculação do pagamento da respectiva verba ao salário mínimo. A excelsa Suprema Corte entendeu que o artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República, revogou a norma relativa à adoção do salário mínimo como base de cálculo para o adicional de insalubridade, mas não permite a atuação do judiciário em substituição para determinar novo parâmetro, sem expressa previsão em lei. Assim, enquanto não houver norma positivada a respeito da base de cálculo do adicional, o salário mínimo é o parâmetro a ser adotado, não sendo possível que o cálculo se faça sobre salário normativo ou salário profissional, por absoluta ausência de respaldo legal. Tal entendimento possibilita a observância ao princípio da segurança jurídica que norteia o Estado de Direito e o devido processo legal. Embargos conhecidos e desprovidos. (TST-E-ED-RR-7091/2006-001-12-00.9, SBDI-1, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DJ 30.04.2009).
Em face dessas razões, cumprindo a Súmula Vinculante 4 do STF, CONHEÇO do recurso por afronta ao art. 192 da CLT.
II) MÉRITO
214 ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SALÁRI O MÍNIMO
Como consequência do conhecimento do recurso por violação do art. 192 da CLT, DOU-LHE PROVIMENTO, no aspecto, para restabelecer a r. sentença.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Egrégia Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista por violação do art. 192 da CLT, e, no mérito, dar-lhe provimento, no aspecto, para restabelecer a r. sentença.
Brasília, 22 de junho de 2011.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
Mauricio Godinho Delgado
Ministro Relator
fls.
PROCESSO Nº TST-RR-172400-06.2002.5.15.0067
C/J PROC. Nº TST-AIRR-172440-85.2002.5.15.0067
Firmado por assinatura digital em 22/06/2011 pelo sistema AssineJus da Justiça do Trabalho, conforme MP 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira.