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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Meire Mara Coelho Nogueira ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE AFONSO X, O SÁBIO Belo Horizonte 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Letras

Meire Mara Coelho Nogueira

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE

AFONSO X, O SÁBIO

Belo Horizonte

2015

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Meire Mara Coelho Nogueira

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE

AFONSO X, O SÁBIO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras, da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais – PUCMINAS, como requisito parcial à

obtenção de título de Doutor em Linguística e Língua

Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Ângela Vaz Leão

Belo Horizonte

2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Nogueira, Meire Mara Coelho

N778e Estratégias de referenciação nas cantigas de Santa Maria de Afonso X, o

sábio / Meire Mara Coelho Nogueira, Belo Horizonte, 2015.

157 f.: il.

Orientadora: Ângela Vaz Leão

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Alfonso X, Rei de Castela e Leão, 1221-1284 - Cantigas de Santa Maria -

Crítica e interpretação. 2. Literatura medieval. 3. Referência (Linguística). 4.

Anáfora (Linguística). 5. Significação (Filosofia). 6. Análise do discurso. I. Leão,

Ângela Vaz. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 860-1

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Meire Mara Coelho Nogueira

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE

AFONSO X, O SÁBIO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras, da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais – PUCMINAS, como requisito parcial à

obtenção de título de Doutor em Linguística e Língua

Portuguesa.

____________________________________________________________

Prof. Dr. Johnny José Mafra (Representante da Orientadora) – PUC Minas

____________________________________________________________

Profa. Dra. Juliana Alves Assis – PUC Minas

____________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes – PUC Minas

____________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Beatriz Nascimento Decat – UFMG

____________________________________________________________

Profa. Dra. Vanda de Oliveira Bittencourt – UFMG

Belo Horizonte, 17 de abril de 2015.

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DEDICATÓRIA

Ao meu marido, Ralney, companheiro de todas as horas.

Aos meus filhos, Cecília, Álvaro e Miguel, amores da minha vida.

À Profa. Ângela Vaz Leão, exemplo de dedicação.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e a certeza de que está dentro do meu coração;

A minha família, pela paciência e colaboração;

Aos meus professores do curso de pós-graduação da PUC Minas, pela contribuição no

decorrer dos meus estudos;

Aos colegas do grupo de estudos das Cantigas de Santa Maria, pela constante troca de

experiências e aprendizagens;

Às secretárias do Pós-Letras, sempre dispostas a ajudar;

À Santa Maria, Rosa das rosas e Fror das frores.

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RESUMO

Esta tese tem por objetivo a descrição e análise dos processos de referenciação em um corpus

selecionado na terceira centena das Cantigas de Santa Maria de D. Afonso X. À luz dos estudos

de Apothéloz, Mondada, Koch e Marcuschi, busca-se conhecer os efeitos de sentido produzidos

pelas funções coesivas estabelecidas por meio do uso dos elementos anafóricos e o papel dos

processos referenciais na continuidade textual. Além disso, procurou-se observar a relação

existente entre as informações contidas no texto e o conhecimento de mundo do leitor. Para

isso, analisam-se o emprego de anáforas correferenciais e não correferencias, bem como o

funcionamento de elementos encapsuladores no processamento textual. Dentre as estratégias

de referenciação, chamou a atenção o uso de formas nominais referenciais, as quais evidenciam

o modo como o autor reformula os objetos de discurso e fornece ao leitor pistas sobre a

(re)construção dos mesmos, o que permite estabelecer cadeias referenciais ou coesivas

importantes para a progressão referencial do texto. Verificou-se também que o emprego de

anáforas encapsuladoras contribui para a manutenção temática ao funcionarem como

intermediárias entre a informação velha e a informação nova. Dessa forma, buscou-se

demonstrar que a referenciação textual, ao instaurar e manter os objetos de discurso, pode ser

vista como um suporte para a construção do sentido do texto.

Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria. Referenciação. Objeto de discurso. Produção de

sentido.

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ABSTRACT

This thesis has as objective the description and analysis of the referential processes in a corpus

selected from the third hundred of the Cantigas de Santa Maria of Alfonso X. Taking into

account studies of Apothéloz, Mondada, Koch and Marcuschi, this work searches to understand

the effects of meaning produced by cohesive functions established by the use of anaphoric

elements and the role of referential processes in textual continuity. In addition, it is also an aim

to observe the relationship between the information contained in the text and the reader's world

knowledge. For this, the use of coreferential and non coreferential anaphora is analyzed, as well

as the operation of encapsulating elements in text processing. Among the referential strategies,

it draws the attention the use of referential nominal forms, which shows how the author

reformulate objects of discourse and provides the reader with clues about the (re)construction

of the same objects, which allows the setting of referential or cohesive chains important for the

referential progression of the text. It was also found that the use of encapsulating anaphora

contributes to the theme preservation acting as an intermediator between the old and the new

information. Thus, it is an attempt to demonstrate that the textual referencing on establishing

and maintaining speech objects can be viewed as a support for the construction of the meaning

of the text.

Key words: Cantigas de Santa Maria. Referentiation. Object of discourse. Anaphora. Sense

production.

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RÉSUMÉ

Cette thèse vise à décrire et analyser les processus de référentiation dans un corpus sélectionné

dans la troisième centaine des Cantigas de Santa Maria d'Alphonse X. À la lumière des études

de Apothéloz, Mondada, Koch et Marcuschi, on cherche à connaître les effets de sens produits

par les fonctions cohésives établies par l'utilisation d'éléments anaphoriques et le rôle des

processus référentiels dans la continuité textuelle. En outre, on a essayé d'observer la relation

entre l'information contenue dans le texte et la connaissance de monde qu'a le lecteur. Pour

cela, on a analysé l'utilisation de l'anaphore coréférentielle et non coréférentielle, et l'opération

de nominalisation dans le traitement des textes. Parmi les stratégies d'orientation, l'attention a

eté attirée par l'utilisation de formes nominales référentielles, qui montrent comment l'auteur

procède à une refonte des objets de discours et fournit au lecteur des indices sur la

(re)construction de ces objets, ce qui permet d'établir des chaînes référencielles ou cohésives

importantes pour la progression du texte. On a également constaté que l'utilisation de la

nominalisation contribue au maintien thématique, une fois qu'elle fonctionne comme

intermediaire entre l'information donnée et l'information nouvelle. Ainsi, on a essayé de

montrer que la référence textuelle peut être considérée comme un support pour la construction

du sens du texte.

Mots-clés: Cantigas de Santa Maria. Référentiation. Objet du discours. Anaphore. Production

du sens.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 9

1.1 Objetivos .........................................................................................................

1.2 Metodologia ....................................................................................................

1.2.1 Quanto ao corpus .........................................................................................

1.2.2 Quanto ao embasamento teórico ..................................................................

1.3 Plano estrutural do trabalho ..........................................................................

18

18

18

19

20

2 REFERENCIAÇÃO ....................................................................................... 22

2.1 Relação homem-linguagem-mundo ..............................................................

2.2 Da referência à referenciação ........................................................................

2.3 A construção dos objetos de discurso ............................................................

2.4 Referenciação e constituição textual .............................................................

2.5 A referenciação como processo sócio-cognitivo-interacional ......................

22

27

31

33

41

3 RELAÇÕES ANAFÓRICAS – AS ANÁFORAS CORREFERENCIAIS

E NÃO CORREFERENCIAIS.......................................................................

46

3.1 Anáfora correferencial ..................................................................................

3.2 Formas nominais anafóricas .........................................................................

3.3 Anáforas nominais com retomada de antecedentes textuais .......................

3.4 Anáforas não correferenciais ........................................................................

3.4.1 Anáfora indireta ..........................................................................................

3.4.2 Anáfora associativa .....................................................................................

3.4.2.1 Relação cognitivo-discursiva .....................................................................

3.4.2.2 Relação léxico-estereotípica ......................................................................

3.5 Encapsulamento anafórico ............................................................................

47

52

55

62

62

68

69

72

80

4 ANÁFORAS CORREFERENCIAIS E NÃO CORREFERENCIAIS

NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA ...........................................................

4.1 Anáfora correferencial sem recategorização ................................................

4.2 Anáfora correferencial recategorizadora.....................................................

4.3 Descrições nominais referenciadoras da Virgem Maria ............................

4.4 Anáforas não correferenciais ........................................................................

4.5 Síntese .............................................................................................................

85

85

94

107

116

122

5 OS ENCAPSULAMENTOS ANAFÓRICOS NAS CANTIGAS DE

SANTA MARIA ...............................................................................................

5.1 O encapsulamento anafórico nas estrofes iniciais .......................................

5.2 O encapsulamento anafórico nas estrofes narrativas ..................................

5.3.1 As expressões encapsuladoras prospectivas nas estrofes narrativas .........

5.4 O item onde como elemento encapsulador nas Cantigas de Santa Maria

5.5 Síntese .............................................................................................................

124

124

132

143

146

149

6 CONCLUSÃO ...................................................................................................

151

REFERÊNCIAS ................................................................................................

154

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se apoia na Linguística Textual, ramo da Linguística que se orienta

por considerar o texto como objeto particular de investigação. A Linguística Textual (doravante

LT) começou a se desenvolver na Europa no século XX, durante a década de 60, e a partir daí

se disseminou. Esse ramo de estudos surge rompendo com as limitações teórico-metodológicas

da Linguística Formal e procura penetrar no mecanismo de produção, construção,

funcionamento e recepção de textos orais e escritos.

Ao abordar a linguagem como meio de comunicação, entendida como um processo de

transmissão de informação entre interlocutores, a LT elege o texto e/ou discurso como objeto

de investigação científica. Atualmente, esse ramo da linguística alcança desenvolvimento

amplo em diversas partes do mundo, fazendo repercutir novas perspectivas teóricas no campo

textual.

Marcuschi (2012, p. 17) deixa evidente que a Linguística Textual, “abordada em

sentido estrito, é algo bem diverso da análise literária; também é diferente da retórica e da

estilística, embora evidencie parentescos com ambas”. O autor propõe que a LT seja vista como

“o estudo das operações linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção,

construção, funcionamento e recepção de textos escritos e orais” (p. 33). Enfim, esse ramo da

linguística coloca à disposição de quem trabalha com a linguagem instrumentos necessários

para entender o fenômeno da textualidade em suas diversas manifestações.

Em um primeiro momento das pesquisas em LT, os estudos recaíam na análise

transfrástica ocupando-se das regularidades existentes além dos limites dos enunciados como

forma de explicar fenômenos de que as teorias sintáticas e/ou semânticas não davam conta.

Visando a superar as restrições dos fenômenos tratados pelas análises transfrásticas, a partir dos

estudos gerativistas, de modo a descrever a competência textual do falante, as pesquisas

buscaram contemplar, com a construção de gramáticas textuais, o papel desse falante na

produção e interpretação dos sentidos dos enunciados. Num terceiro momento, ocorreu uma

grande transformação nos estudos da LT ocasionada pela consideração de que o texto é uma

unidade de comunicação e interação humana: o escopo das perspectivas passou a compreender,

além da noção de texto, a noção de contexto pragmático, pelo qual o texto passa a ser

considerado no próprio processo de planejamento, verbalização e construção (KOCH, 2013).

Dessa forma, o texto passa a ser considerado como “uma unidade de sentido, de um contínuo

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comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela

tessitura do texto” (FÁVERO; KOCH, 1994, p. 25).

Nessa perspectiva, a definição de texto não compreende apenas os elementos

linguísticos formais, mas planos enunciativos complexos que transcendem o funcionamento de

regras fixas. Os estudos da LT interessam-se não só pelos aspectos semântico-formais, como

também ingressam nas relações da textualidade, tanto no âmbito das relações cotextuais, que

designam a articulação dos elementos no interior do texto, quanto no das relações contextuais,

que remetem a noções empreendidas com elementos exteriores ao texto.

Em uma concepção interacional, a linguagem é concebida como atividade de interação

verbal fruto de uma ação compartilhada e, consequentemente, como manifestação comunicativa

que se concretiza por meio de textos, em cujo processamento operam ações linguístico-

discursivo-interlocutivas. Postula-se que, no âmbito das relações interativas, existe entre os

interlocutores um jogo de atuações recíprocas, que se projeta na materialidade linguística do

texto. Assim, na base da atividade linguística, encontra-se a interação e o compartilhamento de

conhecimentos, informações e atenção, pois os eventos linguísticos não são resultado de ações

individuais, mas, ao contrário, de atividades realizadas com os outros, conjuntamente.

Dentro dessa perspectiva, “o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação

e os interlocutores, sujeitos ativos”, que coordenam suas ações com o objetivo de alcançar um

fim, de acordo com as condições sob as quais a atividade verbal se desenrola (KOCH, 2014, p.

21). Durante a atividade verbal, os elementos linguísticos são selecionados e ordenados a fim

de permitir, além da depreensão de conteúdos semânticos, a interação de acordo com práticas

socioculturais. Como Koch (2013), considero que o texto se constitui no momento em que os

interlocutores de uma atividade comunicativa conferem determinado sentido a uma

manifestação linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores situacionais,

cognitivos, socioculturais e interacionais.

Conforme Koch (2013, p. 30), a essa concepção de texto subjaz “o postulado básico

de que o sentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação”.

A autora recorre à metáfora do iceberg para demonstrar que, assim como esse, o texto possui

apenas uma parte de sua superfície exposta, a maior parte dele está subjacente. Para se extrair

algum sentido do que está implícito, torna-se necessário a mobilização de diversos sistemas de

conhecimentos e a ativação de processos e estratégias cognitivas e interacionais.

Nesse contexto, assumem importância os processos de organização textual e as

questões de ordem cognitivo-discursiva como a referenciação, a inferenciação, as formas de

acessamento de conhecimento prévio, entre outras. Neste trabalho destacarei o estudo das

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estratégias de referenciação, em especial o estudo da anáfora, nas Cantigas de Santa Maria

(doravante C.S.M.), obra medieval de D. Afonso X, o Sábio, datada do séc. XIII, buscando

observar como os recursos anafóricos aí utilizados são responsáveis pela progressão referencial

e tópica do texto. A busca pelo melhor entendimento das Cantigas demonstrou a necessidade

de se estudar as estratégias de referenciação em face da seguinte hipótese: de que maneira as

expressões anafóricas, com ou sem antecedente explícito, e as expressões encapsuladoras

contribuem para a construção do sentido.

Na retórica clássica, o termo anáfora indicava a repetição de uma expressão no início

de uma frase. De acordo com Kayser (1985), essa construção paralela é mais intensa pelo fato

de ser sublinhada pela repetição de palavras dominantes sintaticamente. Recorrendo ao corpus

escolhido isso pode ser visto no exemplo abaixo:

(1) Santa Maria leva

o ben que perdeu Eva.

O ben que perdeu Eva pola sa neicidade,

cobrou Santa Maria

per sa grand’ omildade.

O ben que perdeu Eva

pela sa gran loucura,

cobrou Santa Maria

cona sa gran cordura.

O ben que perdeu Eva

a nossa madre antiga.

cobrou Santa Maria

u foi de Deus amiga.

O ben que perdeu Eva

du perdeu parayso,

cobrou Santa Maria

pelo seu mui bon siso.

O ben que perdeu Eva

u perdeu de Deus medo,

cobrou Santa Maria

creend’ en el mui cedo.

O ben que perdeu Eva

britand' o mandamento,

cobrou Santa Maria

per bõo entendemento.

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Quanto ben perdeu Eva

fazendo gran folya,

cobrou a groriosa

Virgen Santa Maria.

[Santa Maria recupera o bem que Eva perdeu. O bem que Eva perdeu por causa de sua tolice, Santa Maria recobrou pela sua humildade. O bem que Eva perdeu por causa de sua loucura, Santa Maria recobrou pela sua prudência. O bem que perdeu Eva, a nossa mãe antiga. Santa Maria recobrou quando foi de Deus amiga. O bem que Eva perdeu pelo que saiu do paraíso, Santa Maria recobrou por seu juízo. O bem que Eva perdeu quando perdeu o medo de Deus, Santa Maria recobrou crendo nele muito cedo. O bem que Eva perdeu ao romper com o mandamento, Santa Maria recobrou pelo entendimento. Quanto bem Eva perdeu por fazer grande loucura, a gloriosa Virgem Santa Maria recobrou.]

(Cantiga, 320)

Nessa cantiga, a repetição se dá no início de seis das sete estrofes da cantiga, além de

ser um exemplo de anáfora segundo a retórica, a reiteração assegura uma ligação linguística

significativa entre as partes que compõem o texto e contribui para a progressão tópica do

mesmo.

O paralelismo com anáforas clássicas foi um recurso bastante utilizado nas cantigas

medievais. Segundo Kayser (1985, p. 126), não é raro uma poesia inteira ser determinada por

intensificações anafóricas, pois, certamente, “nos tempos em que as figuras constituíam um

objecto de estudo para o poeta e a qualidade de uma obra era determinada segundo o uso

artístico das figuras de enfeite (e a exclusão das condenáveis), o seu uso poético era muito

consciente”.

No entanto, essa anáfora clássica não será alvo de análise neste trabalho. Pretendemos

limitar-nos aqui à análise da anáfora considerada como um mecanismo de relação entre um

elemento, denominado ‘anafórico’, e um antecedente, nem sempre explícito no cotexto, que

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fornece condições para que a saturação referencial seja satisfeita. Assim, a anáfora implica uma

atividade de remissão e de retomada, já que ela é, em geral, responsável pela continuidade

referencial e tópica do texto. A anáfora também constitui um poderoso recurso de progressão

discursiva, visto que, ao mesmo tempo em que ela remete a elementos no contexto, ou os

retoma, opera uma progressão referencial, ligando-se à dinâmica textual-discursiva.

Atualmente a linguística textual não trata os elos coesivos referenciais apenas no nível

estrito da sintagmática imanente do texto. Os estudos da coesão referencial deixaram de ater-se

às questões relativas à estruturação interna do texto para integrar-se em dimensões da

pragmática e do discurso que operam na produção de sentido. O processo de referenciação vai

além do simples emprego de expressões referenciais, porque o referente se cria de um conjunto

de ações empreendido pelos co-enunciadores e da maneira pela qual eles constroem o sentido

no evento comunicativo.

Estudos textuais mostram que o escritor antecipa, ou seja, sinaliza os processos

interpretativos para o leitor. O leitor, por sua vez, ativa seu conhecimento de mundo e de textos

para entender o que está escrito. Uma das maneiras de o escritor mostrar o caminho que o leitor

pode seguir é o uso de recursos anafóricos e referenciais. Na leitura, há a interação das

informações contidas no texto com o conhecimento de mundo armazenado na memória do

leitor. Este vai ativando esquemas mentais, fazendo associações, integrando o conhecimento

novo com o seu background linguístico e sociocultural.

Ainda segundo Koch (2000), os recursos anafóricos são vistos não apenas como

elementos do texto que remetem a sintagmas ou a algum constituinte de um sintagma, mas

também como os que remetem a porções inteiras do texto. Conforme a autora, além desses

elementos que fazem remissão a outros apresentados no texto, incluem-se na noção de anáfora

aqueles que remetem a elementos do universo cognitivo dos interlocutores, desde que, de

alguma maneira, ativados pelo texto.

No exemplo abaixo, extraído da Cantiga 10, pode-se notar que as expressões Atal

Sennor e esta dona retomam elementos já aludidos anteriormente, revelando-se como

mecanismos de coesão textual e contribuindo para a construção da malha tópica do texto:

(2) Rosa das rosas e Fror das frores,

Dona das donas, Sennor das sennores.

Rosa de beldad' e de parecer

e Fror d'alegria e de prazer,

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Dona en mui piadosa ser,

Sennor en toller coitas e doores.

Atal Sennor dev' ome muit' amar,

que de todo mal o pode guardar;

e pode-ll' os peccados perdõar,

que faz no mundo per maos sabores.

Devemo-la muit’ amar e servir,

ca punna de nos guardar de falir;

des i dos erros nos faz repentir,

que nos fazemos come pecadores.

Esta dona que tenno por Sennor

e de que quero seer trobador,

se eu per ren poss' aver seu amor,

dou ao demo os outros amores.

[Rosa das rosas e Flor das flores, Dona das donas, Senhora das senhoras. Rosa de beleza e de aparência e Flor de alegria e de prazer, Dona por ser muito piedosa, Senhora por tirar sofrimentos e dores. O homem deve amar muito tal Senhora, que pode protegê-lo de todo mal; e pode perdoar os pecados, que o homem pratica no mundo por maus prazeres. Nós devemos amá-la e servi-la, pois ela se esforça em nos proteger da falha; além disso nos faz arrepender dos erros, que nós cometemos como pecadores. Esta dona que tenho como Senhora e de quem quero ser trovador, se eu, por alguma razão, puder ter seu amor, dou os outros amores ao demo.]

(Cantiga 10)

Nessa cantiga, o autor garante a continuidade do texto ao estabelecer um equilíbrio

entre a repetição e a progressão textual, ou seja, remete a referentes que já foram antes

apresentados e, assim, introduzidos na memória do interlocutor; e acrescenta informações novas

que, por sua vez, passarão a constituir suporte para outras informações. Em atal Sennor, o autor

topicaliza o objeto direto e recupera toda a informação dada na estrofe anterior. Já em esta dona,

tem-se o que os autores tradicionais definem como construção de anacoluto. O autor põe no

princípio da estrofe o elemento sobre o qual ele fará um comentário. Ou melhor, o autor coloca

em evidência o assunto para, em seguida, prosseguir na exposição de seus pensamentos. Com

esses recursos, é possível manter ativado na memória o referente que o trovador quer exaltar:

Santa Maria.

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No processamento textual, há a interação das informações contidas no texto com o

conhecimento de mundo armazenado na memória do leitor. O exemplo (3) abaixo ilustra como

os conhecimentos prévios são requeridos para o entendimento do texto:

(3) A que en nossos cantares ∣ nos chamamos Fror das flores,

Maravilloso miragre ∣ fez por ũus caçadores.

[Aquela que em nossos cantares nós chamamos Flor das flores, fez um milagre maravilhoso em favor de uns caçadores]

(Cantiga 366, refrão)

No exemplo acima, o autor recupera o refrão da Cantiga 10 (Rosa das rosas e Fror

das frores, Dona das donas, Sennor das sennores), considerando que o epíteto Fror das frores

está presente na memória discursiva do leitor, e o reintroduz na memória operacional de modo

que permaneça focalizado. Nessa mesma cantiga, no último verso, novamente, o refrão da

cantiga 10 é recuperado pela expressão Sennor das sennores. Dessa forma, ao relembrar uma

designação já dada à Virgem, o autor imprime ao texto orientações argumentativas que estão

de acordo com sua proposta de enunciação.

A estrofe transcrita abaixo também exemplifica como o leitor deve ativar o

conhecimento prévio, já que ele precisa ter conhecimento de que Jesus reuniu 12 apóstolos

(companna) os quais receberam o Espírito Santo e em seguida saíram a pregar a palavra de

Deus. Além disso, é necessário saber que a Virgem Maria estava junto do grupo quando este

recebeu o Espírito Santo. De posse dessas informações o leitor terá condições de compreender

o que está sendo cantado:

(4) Nen quero de dizer leixar

de como foy chegada

a graça que Deus enviar

lle quis, atan grãada,

que por el esforçada

foy a companna que juntar

fez Deus, e enssinada,

de Spirit’ avondada,

por que souberon preegar

logo sen alongada.

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[Não posso deixar de dizer de como [Santa Maria] recebeu graça, tão abundante, que Deus lhe quis dar, e como por ela foi revigorado, instruído e cheio de Espírito, o grupo que Deus mandou juntar, pois souberam pregar logo, sem demora.]

(Cantiga 1, v. 63 - 72)

Outro exemplo de referência textual observado nas Cantigas é o que se segue:

(5) Ca pero a garça muito montou,

aquel falcon toste a acalcou

e dun gran colbe a à lle britou,

e caeu na agua, que ja per ren

Os cães non podian acorrer,

ca o rio corria de poder,

por que ouveran a garç’ a perder.

[Mas assim que a garça levantou voo, aquele falcão logo a alcançou e com um grande golpe lhe quebrou a asa, e ela caiu na água, de modo que os cães não podiam ajudar, pois o rio corria com força, pelo que pensaram que perderiam a garça.]

(Cantiga 142, v. 15 - 22)

A expressão nominal os cães pode ser interpretada apenas referencialmente, já que não

lhe corresponde um antecedente (ou subsequente) explícito no texto. Essa expressão definida

introduz um referente novo, porém inferível no discurso, já que a cantiga narra um episódio de

caça e é comum levar cães nessa situação. Portanto, trata-se de uma estratégia de ativação de

referentes com base em informações contextuais. Para Marcuschi (2010, p. 54) esse tipo de

anáfora “reintroduz, no contexto gramatical, aspectos sociocognitivos” que possibilitam

reconsiderar tópicos na interface com a semântica e a pragmática. O autor ressalta ainda que

esse tipo de anáfora representa um desafio teórico porque contraria noções de texto e coerência

já estabelecidas.

A par de tudo isso, percebe-se que os elementos anafóricos podem ser considerados

um recurso textual eficaz por qualificarem um segmento prévio do texto e apontarem para o

percurso que o escritor deseja seguir. Estou convencida de que um estudo mais aprofundado

sobre o uso desses recursos nas Cantigas de Santa Maria poderá contribuir para o entendimento

mais preciso da organização textual e para uma compreensão cada vez maior da lírica galego-

portuguesa.

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A poesia trovadoresca marca significativamente a cultura galego-portuguesa no

período medieval, mais particularmente nos séculos XII e XIII. Pela projeção dos trovadores e

de suas cantigas, a lírica trovadoresca impulsiona o abandono da visão pecaminosa da mulher,

visão adotada pela Igreja, em favor de outra mais enaltecedora, ao tomar o amor como princípio

de elevação moral e meio de salvação. O feminino ganha, então, nova especificidade,

principalmente na lírica religiosa do Rei Afonso X, o Sábio, que buscou um pacto com a Igreja

ao difundir uma visão transcendental da mulher, Santa Maria, medianeira entre o homem e a

divindade, modelo a ser imitado pelas mulheres. Dessa forma, a adoração à mulher amada

corresponde ao louvor prestado à Virgem Maria.

As cantigas religiosas, através dos imbricamentos de coesão interna e do contexto

situacional, instauram o serviço amoroso, mediatizado pela Virgem, como um eco mundano e

sentimental do serviço a Deus e ao Rei. As condições sócio-econômico-culturais e a influência

provençal colaboram para o surgimento, na Península Ibérica, de uma poesia lírica, cujos

valores artísticos e intelectuais possibilitam-nos compreender a realidade como reflexo de

dados humanos e culturais da sociedade feudal.

Afonso X, o Sábio, viveu intensamente esse período da cultura peninsular. Conforme

Leão (2011, p. 19), ele “impulsionou os conhecimentos de sua época, em várias áreas do saber,

recebendo no seu scriptorium, em Toledo, sábios e artistas de diferentes procedências e das três

culturas então reinantes na Península Ibérica: a cristã, a judaica e a muçulmana”. Da obra de

Afonso X, o que aqui nos interessa é a coletânea religiosa de poesia mariana: as CANTIGAS

DE SANTA MARIA, que este trabalho toma como objeto de investigação.

Escrito entre 1257 e 1283, em pleno apogeu do culto mariolátrico por todo o ocidente,

o cancioneiro lírico-religioso de Afonso X compreende um acervo de 420 poemas-cânticos e

apresenta dois grandes gêneros poemáticos: as cantigas de loor (de cunho lírico) e as cantigas

de miragre (de cunho narrativo), além de dois prólogos A e B. No presente trabalho, analisarei

somente cantigas de milagre, “que narram intervenções miraculosas da Virgem em favor de

seus devotos” (LEÃO, 2007, p. 30). Pela riqueza informacional acerca da história, cultura,

sociedade, hábitos e artes dessa época na Ibéria, essa coletânea representa um tesouro para

investigadores interessados em desvelar a Idade Média, a partir de uma de suas criações

artísticas mais completas.

À leitura das Cantigas, nota-se imediatamente seu riquíssimo valor documental a

instigar os interessados a debruçar-se sobre questões de várias naturezas, codificadas em

material linguístico, literário, musical e pictural. Além dos primores de sua constituição formal,

tomada em seu todo, as ações laudatórias e as narrativas de milagres que integram a coletânea

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apresentam um conjunto de costumes e tipos humanos distribuídos em classes sociais, grupos

profissionais e faixas etárias diversificados. Dessa sorte, no âmbito específico da manifestação

linguística, deparamos com uma sincronia dinâmica, que, na verdade, enfeixa variantes

temporais, geográficas, sociais e estilísticas diversas.

A partir da leitura das Cantigas, fui colhendo documentação com farto material para

análise dos processos referenciais. Dessa forma, justifica-se o estudo das Cantigas de Santa

Maria, do ponto de vista da Linguística Textual, na medida em que, como ciência, essa revela

a exigência de regras gerais válidas para fenômenos que, ultrapassando os limites da frase,

operam no texto.

1.1 Objetivos

A pesquisa a ser empreendida visa, dentre outras metas, a:

a) apresentar descrição e análise das anáforas correferenciais e não correferenciais

encontradas no corpus pesquisado;

b) evidenciar que as formas remissivas anafóricas utilizadas por Afonso X, imprimem aos

enunciados, assim como ao texto, orientações argumentativas que refletem a proposta

enunciativa do autor;

c) depreender as funções e efeitos de sentido das estratégias de referenciação no interior do

universo textual e temático construído pelo autor;

d) destacar as funções cognitivo-discursivas das expressões nominais referenciais, tais

como: ativação/reativação na memória discursiva de elementos anteriormente expressos;

organização textual; encapsulamento anafórico;

1.2 Metodologia

1.2.1 Quanto ao corpus

O corpus selecionado constitui-se de cantigas de milagre ou narrativas do cancioneiro

mariano compostas por D. Afonso X em seu scriptorium de Toledo, juntamente com seus

colaboradores (músicos, trovadores, desenhistas e miniaturistas) junto à corte de Leão e Castela,

em meados do século XIII. As cantigas foram escritas em galego-português, língua preferida

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para a composição poética do período medieval ibérico, embora D. Afonso, rei de Leão e

Castela, tivesse como língua materna o castelhano nascente.

As cantigas de milagre são compostas, grosso modo, de um título-ementa em prosa,

no qual é apresentado o resumo do assunto que será tratado; de um refrão em versos, que

enuncia o tema da cantiga e é repetido depois de cada estrofe; de um número variável de

estrofes, que narram o milagre anunciado no título-ementa (LEÃO, 2011).

O corpus que se pretende analisar compõe-se, por amostragem, de 50 cantigas

narrativas da terceira centena do cancioneiro, consideradas nos subconjuntos ementário e

cantigas propriamente ditas.

A fonte documental que serviu de base para a constituição do corpus foi a edição

elaborada pelo filólogo alemão Walter Mettmann, publicada, pela Universidade de Coimbra,

de forma seriada em edição crítica, em 04 volumes, entre 1959 e 1972. O mesmo Mettmann,

esclareça-se, publicou uma segunda edição em galego, com dois volumes sem glossário (Vigo:

Edicions Xerais de Galicia, 1981); e uma terceira, em espanhol, também sem glossário (Madrid:

Clássicos Castalia, 1986) em edição comercial, no formato de bolso. Além disso, pela Edilán

de Madrid, publicaram-se, em 1979, dois volumes do chamado “códice rico” em fac-símile com

texto, iluminuras e partituras musicais. Embora eu me tenha servido, ao longo da pesquisa, da

edição de Coimbra, também fiz consultas textuais às outras edições.

Algumas cantigas do cancioneiro mariano de D. Afonso X intercalam o primeiro verso

do refrão entre versos da estrofe. E o fazem, em alguns casos, por mais de uma vez. Nas minhas

citações, dessas cantigas, para que a leitura da estrofe não perca a sua unidade sintática, omitirei

essas partes intercaladas de refrão.

Além disso, todas as citações serão apresentadas em itálico, obedecendo à forma

métrica adotada por Mettman. Quanto às traduções, devido às dificuldades de adequação de

métrica e rima, optei por fazê-las em prosa corrida, digitadas em redondo, com fonte menor,

entre colchetes e respeitando-se os espaços inter-estróficos.

1.2.2 Quanto ao embasamento teórico

Visto que a Linguística Textual tem como objeto de estudo o texto, tomado como

unidade básica de manifestação da linguagem, pretende-se, no presente trabalho enveredar por

essa teoria. Sabendo-se que, em um texto, os elementos devem produzir sentido, resultando

numa conexão conceitual cognitiva entre si, e ainda, devem se organizar sequencialmente de

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modo a manter uma relação semântica entre um elemento e outro, para assegurar um

desenvolvimento proposicional, o papel dos processos referenciais na continuidade textual será

objeto de estudo. Buscar-se-á conhecer os efeitos de sentido produzidos pelas funções coesivas

estabelecidas pelo uso dos elementos anafóricos, além da relação da informação nova e

informação velha, instaurada pelo processo de referenciação.

A literatura sobre as anáforas é vasta, várias são as abordagens do tema – semânticas,

pragmáticas ou cognitivas. Este trabalho é realizado a partir de uma perspectiva teórica que tem

como objeto o texto e o discurso, e considera que a ligação entre a forma referencial e o objeto

de discurso se dá, não apenas por restrições semânticas, mas principalmente por necessidades

cognitivo-interacionais. De acordo com essa perspectiva, os sujeitos constroem as versões

públicas do mundo através de atividades discursivas e cognitivas, social e culturalmente

partilhadas (Mondada e Dubois, 2003), de modo que a escolha de expressões anafóricas é

determinada por restrições discursivas e cognitivo-interacionais.

Essa concepção construtivista da referência é adotada por Denis Apothéloz, Lorenza

Mondada, Alain Berrendonner, entre outros. E, aqui no Brasil, por Ingedore Villaça Koch e

Luiz Antônio Marcuschi, que serão tomados por base nesta pesquisa.

De qualquer maneira, é impossível manter uma análise da anáfora estritamente dentro

dos limites cognitivos, uma vez que adotamos que as entidades discursivas são

interacionalmente construídas. Portanto, às vezes, alguns aspectos pragmáticos e interacionais

serão considerados na análise.

1.3 Plano estrutural do trabalho

Além dessa introdução, em que se delimita o objeto de estudo, se justifica a pesquisa,

se expõem os objetivos e se apresentam esclarecimentos de natureza metodológica, esta tese

compreende mais quatro capítulos e uma conclusão geral.

No primeiro capítulo, discute-se o tratamento dado à questão da Referenciação, em

que se expõe a opção teórica feita. Nele são apresentados os princípios em que foi pautada a

análise da anáfora e das expressões nominais anafóricas. A opção teórica adotada considera a

referenciação como tributária de uma prática discursiva e que os referentes são objetos de

discurso. Este capítulo também trata da construção interacional dos objetos de discurso e da

referenciação como elemento constitutivo da textualidade e como processo sócio-cognitivo-

interacional.

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O segundo capítulo é dedicado ao estudo da anáfora correferencial, não correferencial

e encapsulamento anafórico a partir da apresentação de estudos referentes ao tema. Trata-se

também das expressões nominais anafóricas, a fim de demonstrar como as descrições nominais

contribuem para a construção ou reconstrução dos objetos de discurso. Apresentam-se reflexões

sobre a anáfora não correferencial, em especial a anáfora indireta e a anáfora associativa como

alternativa de ampliar o conceito de anáfora. Por fim, trata-se do encapsulamento anafórico

como elemento coesivo relevante no processamento textual, apresentando uma caracterização

geral do processo e dos elementos nele envolvidos.

No capítulo terceiro é realizada a análise das estratégias de referenciação anafóricas,

em especial as anáforas correferenciais e não correferenciais, nas Cantigas de Santa Maria.

Tendo como parâmetro a progressão referencial, são apresentados e analisados exemplos

tomados do corpus, a fim de demonstrar como as anáforas correferenciais recategorizadoras e

não recategorizadoras contribuem para a progressão e continuidade tópica das cantigas. Neste

capítulo, também são apresentadas as expressões nominais que fazem referência a Santa Maria,

de modo a observar como o autor as utiliza para indicar atributos e qualidades da Virgem. Por

fim, empreendo uma análise das anáforas não correferenciais encontradas no corpus.

O quarto capítulo apresenta um estudo sobre o funcionamento de elementos

encapsuladores no corpus selecionado. Busca-se observar como eles contribuem para a

manutenção temática, funcionando como intermediários entre a informação velha e a

informação nova. Primeiramente, são apresentados e analisados exemplos retirados da parte

inicial da cantiga, isto é, do conjunto título-ementa, refrão e estrofes iniciais. Em seguida,

analisam-se as estrofes narrativas propriamente ditas.

Finalmente apresentam-se considerações finais, que servem de avaliação do modo

como o autor se vale das estratégias de referenciação para a construção do sentido pretendido.

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2 REFERENCIAÇÃO

A questão da referência é um dos temas clássicos na Filosofia da Linguagem e sempre

esteve no centro das atenções de pesquisadores da Linguística Textual, que buscam entender

como a linguagem representa o mundo e o que torna o mundo compreensível para os

interlocutores. Uns consideram que existe uma correspondência entre as palavras e as coisas e

‘referir-se a’ significa operar uma representação dos objetos de mundo. Para outros, a referência

é resultado de uma operação colaborativa, que se estabelece no quadro das interações

interlocutivas, e pode sofrer transformações no curso do desenvolvimento discursivo já que os

referentes são construídos no e pelo discurso. Neste sentido, considera-se que a referência é

construída sociocognitivamente, na interação, pelos parceiros da atividade verbal e que, por

isso mesmo, exige uma abordagem abrangente.

Neste capítulo, são apresentados os princípios que pautam o exame e análise das

estratégias anafóricas presentes nas Cantigas de Santa Maria. Após uma reflexão sobre a

relação homem-linguagem-mundo, apresentamos a opção teórica adotada, que considera a

referenciação como tributária de uma prática discursiva e que os referentes são objetos de

discurso. A construção interacional dos objetos de discurso é o assunto tratado na quarta seção

do presente capítulo. Nas duas últimas seções, aborda-se a questão da referenciação como

elemento constitutivo da textualidade e como processo sócio-cognitivo-interacional.

2.1 Relação homem-linguagem-mundo

Há muito tempo, o questionamento de como o homem se relaciona com o mundo por

meio da linguagem tem feito parte das reflexões sobre a linguagem. A relação entre as palavras

e o que elas designam tem constituído tema de estudo para a Filosofia e para a Linguística. A

construção da realidade por meio da linguagem, ou melhor, os pressupostos teóricos que se

estabeleceram no intuito de investigar a relação entre uma representação simbólica e o seu

objeto de representação são muitos e de diferentes áreas do conhecimento. Por isso, serão aqui

rastreadas apenas algumas concepções importantes para o desenvolvimento deste trabalho.

Em seus primórdios, o interesse pelas questões da linguagem está ligado aos estudos

filosóficos. Os filósofos gregos já se dedicavam ao estudo dessas questões, não nos termos

atuais, mas buscando a relação entre nome e objeto. Platão, no Crátilo, isto é, em um de seus

diálogos, apresenta a questão da existência de uma ligação natural entre as palavras e as coisas

que elas designam. Para ele a linguagem é cópia (mímesis) das coisas, ou melhor, os nomes

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surgem da natureza das coisas, tornando-se uma imagem delas. Já para Aristóteles, que compôs

duas obras específicas sobre a linguagem – Retórica e Poética – a ligação entre forma e

significado seria apenas uma convenção. Paralelamente aos interesses filosóficos está a

valorização da prática de linguagem: enquanto a filosofia buscava a essência do ser, por via do

exame da linguagem, os sofistas colocavam a linguagem em primeiro plano, a partir da

formulação de regras do bem falar. (NEVES, 2012)

Os sofistas tinham a preocupação da formação do homem político, que deveria

dominar regras de conduta prática que possibilitariam “vencer” em qualquer discussão. Era a

linguagem retórica, que visava à persuasão e não teria preocupação com a verdade, pois o

falante, com o domínio de seu idioma, construiria ele próprio suas “verdades”. A força da

persuasão resultava em uma linguagem correta e rebuscada, a partir do zelo excessivo com a

língua por meio de recursos de expressão, tais como a linguagem figurada.

No entanto, uma concepção de língua perfeita e estática gera a ilusão de uma

estabilidade da atividade referencial, pois essa atividade pode ser vista como propriedade

imanente à língua, independentemente do sujeito e da atividade interacional.

Na Idade Média, a discussão das relações entre sentido e referente estava inscrita entre

os lógicos, que não apenas teorizaram sobre a relação existente entre a linguagem e a realidade,

como também formularam uma abordagem que se aproxima daquilo que denominamos de

teoria da referência. Percebe-se que a questão do sentido é preocupação muito antiga do homem,

assim como o ato de referir. (MARI, 2003)

A noção de referência nasce de orientações advindas da Lógica e da Filosofia da

Linguagem. Inicialmente, é concebida em termos de correspondência entre expressões

linguística e objetos situados no mundo extralinguístico. Nessa perspectiva, um nome

empregado para fazer referência a um objeto somente terá valor se estiver ligado a uma situação

verdadeira do mundo real. Assim, linguagem e mundo mantêm uma relação direta e objetiva.

Por isso, hoje se faz a comparação de que a referência seria um ato de etiquetagem de seres,

que considera os referentes como objetos do mundo.

De acordo com Mari (2003, p. 98), a partir dos trabalhos de Frege é que o conceito de

referente “tem sido avaliado levando-se em conta asserções descritivas, descrições definidas,

expressões predicativas e nomes próprios como componentes de uma proposição que executa

um papel fundamental no isolamento dos referentes”.

A propósito, Frege (1978), compreendendo o conceito de sentido como condição

imprescindível para o alcance da referência, apresenta uma teoria do significado que propõe a

adoção de dois preceitos básicos: i) o sentido de uma palavra está diretamente vinculado ao

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contexto linguístico em que ela aparece; ii) os aspectos de natureza subjetiva são distintos dos

de natureza objetiva. Com isso, Frege procura evidenciar que, ao contrário da representação,

que é individual, o sentido de uma palavra não apresenta natureza essencialmente subjetiva. Ele

procurou estabelecer uma distinção entre sentido e referência e fez isso por meio do conhecido

enunciado A estrela da manhã é a estrela da tarde, recorrendo à descoberta do cálculo das

órbitas celestes para explicar a correlação. Até as descobertas de Kepler, tratava-se de um

enunciado considerado falso, visto que uma e outra representavam referentes distintos. Depois

de tais descobertas, o enunciado tornou-se verdadeiro, já que a estrela da manhã passou a ser

apenas um sentido diferente de a estrela da tarde, pois ambas são usadas para identificar o

mesmo corpo celeste.

Assim, mais que denominar as coisas, as palavras fazem referência a elas, admitindo-

se seu funcionamento também como modo de percepção. Pode-se então dizer, a partir da

verdade do enunciado de Frege, que a referência é a mesma, o planeta Vênus, mas o sentido é

diferente. Cada pessoa pode construir sua representação de estrela da manhã conforme sua

própria experiência. Isso implica dizer que a diferença entre sentido e referência leva a entender

que, para haver uma relação entre sinais ou nomes, é preciso que eles nomeiem a mesma coisa

e que o sentido pode ser construído de diferentes maneiras.

Mesmo reconhecendo a importância das contribuições de Frege para o estudo da

referência, é preciso admitir que sua visão representacionalista, estática de mundo não dá conta

de uma abordagem que considera que o sentido não se esgota no próprio texto, mas é construído

nas múltiplas possibilidades de relação estabelecidas entre texto, contexto e leitor.

No percurso histórico, dos filósofos gregos a Frege, observa-se uma preocupação do

homem em conceber a referência como um processo de estabelecimentos de relações lógicas,

que conduz à investigação de questões relativas à relação entre linguagem e realidade. Mesmo

buscando uma representação das coisas no mundo objetivo e adotando a verdade como critério

básico, o homem contribuiu, ao longo do tempo, para os estudos linguístico-discursivos que se

desenvolveriam mais tarde.

De sua parte, a Filosofia da Linguagem não só tem se ocupado com a questão da

relação entre linguagem e mundo, mas também contribuído significativamente para os estudos

da natureza da linguagem e dos processos cognitivos do homem. Da mesma forma, as Ciências

Humanas e Sociais estão envolvidas com essas questões.

As Ciências Naturais postulavam uma natureza referencial da linguagem, fundada

numa ligação direta entre as palavras e as coisas. Essa visão pressupunha a existência de um

mundo autônomo, independente da existência de um sujeito que a ele se referisse. Dessa forma,

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as representações da linguagem eram vistas como entidades que se acomodavam a um mundo

objetivo e preexistente ao discurso. No entanto, os argumentos que defendiam essa correlação

entre linguagem e mundo não esclareciam como essa correspondência se realizava. Por isso,

buscaram-se outros caminhos para relacionar a linguagem e o mundo.

O advento das Ciências Cognitivas introduz novas indagações sobre o assunto e

instaura outros métodos de investigação. O cognitivismo se fundamentava em modelos de

informação que podiam ser representados por símbolos passíveis de manipulação,

assemelhando-se a mente a um computador. Nessa abordagem, as coisas do mundo eram

representadas internamente por símbolos e as atividades mentais resultariam em operações

sobre esses símbolos. Assim, procurava-se explicar as regras pelas quais os símbolos se

combinavam, se apagavam e se transformavam por meio do desenvolvimento inato da

linguagem. Admitia-se uma diferença nítida entre os processos cognitivos que ocorrem dentro

da mente e outros processos que acontecem fora dela. O interesse recaía em explicar como os

conhecimentos de cada indivíduo estão estruturados na mente e como eles são acionados para

solucionar problemas postos pelo ambiente. Dessa forma, o ambiente social e a cultura seriam

apenas fonte de informações para a mente.

Nessa fase inicial das Ciências Cognitivas, acreditava-se no dualismo corpo/mente, ou

seja, considerava-se que a mente se achava presa ao corpo por contingência da matéria. A

representação do mundo exterior era feita por meio de imagens que se instalavam no cérebro,

e, a partir delas, o homem identificava as coisas do mundo.

O psicólogo soviético Vigotsky (1979) afirma que uma palavra vazia de pensamento

é uma coisa morta; por outro lado, um pensamento despido de palavras é uma sombra. O autor

chama a atenção para a importância de se compreender a inter-relação entre o pensamento e a

linguagem, processo vivo e dinâmico. Para ele, os significados das palavras são construídos,

eles não são independentes do pensamento porque pertencem ao campo mental e sócio-cultural.

Dessa forma, ele demonstra a relação existente entre linguagem e cognição e torna possível

uma articulação entre este construto teórico e uma linguística enunciativa, cujos interesses se

pautam pela análise dos processos de significação e da produção de sentido nas práticas

discursivas.

Para Vigotsky não há possibilidade de conteúdos cognitivos fora da linguagem, da

mesma maneira que não há possibilidade de linguagem fora dos processos interativos humanos.

Esse postulado denuncia o papel da linguagem frente ao processo de percepção ou interpretação

do real, visto que a linguagem predica, representa, influencia, configura, transforma a realidade.

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Segundo Morato (2000, p. 155) “a contribuição essencial do pensamento vygotskiano

à reflexão linguística é sobretudo relativa à questão do sentido, essa “fascinante cabeça de

Medusa” na expressão feliz de Benveniste (1966)”. É fundamentalmente a questão da

significação que está em jogo no debate entre a ciência da linguagem e a ciência cognitiva, para

a qual a linguagem é o locus da representação. Nota-se que a significação é o que une linguagem

e pensamento: “o pensamento não é somente mediado externamente pelos signos. Ele é

mediado internamente pelos sentidos” (VIGOTSKY, 1979, p. 282).

A concepção de uma mente desvinculada do corpo, característica do cognitivismo

clássico, começa a perder força quando os estudos de várias áreas de conhecimento passam a

investigar a relação existente entre os aspectos sociais, culturais e interacionais e os processos

cognitivos. Percebe-se, então, que existem muitos processos cognitivos que acontecem na

sociedade e não exclusivamente nos indivíduos.

Por tudo isso, atualmente, pode-se observar por parte das Ciências Cognitivas a

afirmação de que não é possível estudar a mente separadamente do organismo, nem do meio

onde os processos comunicativos ocorrem. Assim, os fenômenos cognitivos não são mais

avaliados apenas numa perspectiva interna, mas é preciso levar em conta o processamento

linguístico, a situacionalidade e o contexto sócio-histórico.

Reflexões teóricas sobre a relação entre linguagem e cognição, que levam em

consideração também os aspectos pragmático-discursivos, ou melhor, que consideram os

processos interacionais da atividade linguística, permitem afirmar que um estudo sobre as

línguas e o funcionamento da linguagem deve considerar reflexões cognitivas, da mesma forma

que um estudo cognitivista implica uma reflexão sobre a linguagem. Assim, as Ciências

Cognitivas e a Linguística se aproximam para explicar a produção do sentido e a sua

representação.

Considera-se, a partir daí, que na base da atividade linguística está a interação e o

compartilhamento de conhecimentos. Os eventos linguísticos são uma atividade que um

indivíduo pratica com outro. Clark (1992, p. 19) defende que “o uso da linguagem é mais que

a produção e compreensão pelas pessoas de um conjunto de sentenças com significados

particulares”. Segundo o autor “o uso da linguagem, portanto, não acontece em um vácuo, mas

em arenas de ações altamente estruturadas”. Nessa perspectiva, as ações verbais são vistas como

ações conjuntas, uma vez que o uso da linguagem pressupõe engajamento em alguma ação que

se realiza na própria linguagem. (KOCH, 2014)

Dessa maneira, as abordagens sociointeracionistas consideram a linguagem uma ação

compartilhada que percorre o caminho do sujeito à realidade. Em uma concepção interacional,

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a produção de linguagem constitui atividade interativa altamente complexa de

produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos

linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que

requer não apenas a mobilização de um vasto conjunto de saberes, mas também a sua

reconstrução – bem como a dos próprios sujeitos – no momento da interação verbal.

(KOCH, 2014, p. 21)

Com o advento da Linguística Textual, coloca-se à disposição de quem se interessa

por questões de linguagem instrumentos necessários para entender o fenômeno da textualidade

em suas diversas manifestações, uma vez que esses estudos tomam como objeto o texto, fonte

de conhecimentos mobilizados e ativados, construídos e reconstruídos na atividade interacional.

Para a Linguística Textual, a compreensão do texto acontece no enlace das

informações sugeridas na sua cotextualidade com os conhecimentos sociais, que a partir de

‘pistas’ são acionados pelos indivíduos participantes da atividade. Em razão disso, os estudos

textuais desempenham importante papel nas discussões entre a Linguística Textual e as

Ciências Cognitivas.

2.2 Da referência à referenciação

Saber como a língua refere o mundo tem sido uma questão colocada há muito tempo

em diversos modelos teóricos. Mondada e Dubois (2003, p. 20) opõem duas visões de como a

língua refere o mundo: uma concepção de base filosófica e outra concepção apoiada em

princípios fenomenológicos. A primeira concepção pressupõe uma relação de correspondência

entre as palavras e as coisas, em que um mundo autônomo, já discretizado em entidades, existe

independentemente de qualquer sujeito que se refira a ele. Essa perspectiva exprime-se por

meio da conhecida metáfora do espelho, de acordo com a qual o discurso é concebido como

uma representação do mundo. De acordo com a segunda concepção, as categorias comportam

uma instabilidade constitutiva. Segundo as autoras, sob este prisma, pode-se dizer que as

práticas linguísticas não são “imputáveis a um sujeito cognitivo abstrato, racional, intencional

e ideal, solitário face ao mundo, mas a uma construção de objetos cognitivos e discursivos na

intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de concepções

individuais e públicas do mundo”.

Percebe-se que os estudos mais recentes sobre referenciação têm promovido um

deslocamento teórico do modelo que considera a referência como uma correspondência

biunívoca e especular entre as palavras e os objetos do mundo para um quadro em que os

referentes são concebidos como objetos do discurso. Esses objetos são construídos pelos

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sujeitos, em um processo colaborativo, ancorado em práticas discursivas e cognitivas situadas

social e culturalmente. Dessa forma, os referentes são introduzidos, retomados, identificados

no texto, modificados à medida que o discurso se desenrola, por meio de estratégias de

referenciação. Isso desloca a atenção do problema das entidades da língua, do mundo da

cognição, para a observação dos processos que as constituem.

A questão da referência, então, se situa entre duas tendências teóricas: a do objeto do

mundo extralinguístico e a do objeto do discurso. A primeira considera que os referentes são

objetos do mundo, portanto a participação do sujeito é excluída. A segunda prevê que os

referentes são objetos do discurso e a realidade não é vista como pronta e acabada; ao contrário,

ela é construída pelos sujeitos sociais em suas práticas discursivas (MONDADA, 2005).

Para Mondada e Dubois (2003, p. 20) ao invés “de se perguntar como a informação é

transmitida ou como os estados de mundo são representados de modo adequado”, deve-se

questionar “como as atividades humanas, cognitivas e lingüísticas, estruturam e dão um sentido

ao mundo”. Em tal perspectiva, passa-se da referência à referenciação, considerada como

categorização advinda de práticas simbólicas. Portanto, nada teria uma segmentação a priori:

tanto as categorias discursivas quanto as cognitivas podem se modificar de acordo com o

contexto. A ‘referenciação’ implica atividade e considera o sujeito sóciocognitivo, que constrói

o mundo no curso das atividades sociais e o torna estável discursivamente, enquanto o termo

‘referência’ mantém um sentido de estaticidade, já que está associado a uma visão

representacionalista da língua.

A partir dessa perspectiva, a referenciação é entendida como atividade discursiva em

que o sujeito opera sobre o material linguístico e realiza escolhas significativas com o objetivo

de construir um sentido dentro do quadro referencial escolhido. Afinal, a referenciação está

relacionada com a possibilidade não somente de construir o universo a que a linguagem se

refere, mas também de mediar as relações que se estabelecem entre sujeito e realidade.

Quando uma referência é realizada, acontece um ato de designação por meio da

linguagem, mas para a questão da referenciação é preciso ponderar que o ato da referência não

se dá fora do tempo, do espaço e de uma relação interlocutiva. O ato da referenciação envolve

uma operação colaborativa das pessoas envolvidas na interação, as quais constroem os

referentes no discurso e pelo discurso, ou seja, a referenciação é uma atividade de construção

colaborativa situada, e não somente uma operação linguística (ZAMPONI, 2010).

Por tudo isso, torna-se adequado falar em referenciação como relação intersubjetiva e

social, pela qual as versões do mundo são elaboradas. Esse postulado está associado com os

seguintes princípios:

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a) a língua não é homogênea e invariável; ao contrário, é heterogênea e variável,

histórica e socialmente construída;

b) o significado não é independente do uso, ele não preexiste ao uso;

c) a unidade básica da atividade discursiva é o enunciado, não a frase;

d) a atividade discursiva é uma ação coletiva ou conjunta, é uma atividade colaborativa

que envolve uma dimensão cognitiva e social (ZAMPONI, 2003).

É a partir desses princípios que serão examinados os sintagmas nominais na sua função

de referenciar e anaforizar entidades construídas pelo discurso. A opção teórica feita neste

trabalho leva ao exame de modelos que consideram o texto e o discurso.

Torna-se, então, necessário fazer a distinção entre texto e discurso para se estabelecer

os conceitos que serão adotados neste trabalho.

Juntamente com Koch (2014) e conforme apresentado na introdução deste trabalho, o

texto será considerado como lugar de interação entre os interlocutores, que conferem sentido a

uma manifestação linguística, por meio da atuação de fatores situacionais, cognitivos,

socioculturais e interacionais. Assume-se que o texto se manifesta linguisticamente, mas isso

não significa que ele se reduz a um depósito de frases, que devem ser decodificadas pelo

destinatário.

Já o termo discurso será aqui considerado como uma atividade linguística e sócio-

cognitiva ligada à interação. Se o discurso é atividade, o texto é o lugar onde essa atividade se

manifesta. E é nessa atividade que os interlocutores constroem interativamente os objetos de

discurso, em atos de referenciação.

De acordo com Salomão (2010, p. 157-158), as abordagens discursivas e cognitivas a

respeito da referência possuem em comum o reconhecimento de que a cena comunicativa é

condição para os processos interpretativos; as diferenças teóricas entre elas residem no modo

de olhar o objeto. Os estudos discursivos preocupam-se mais com os aspectos sociais da

produção de sentido, já os estudos cognitivos preferem explorar “os processos mentais de

categorização e esquematização, as projeções entre domínios epistêmicos, as transferências

figurativas da estrutura conceptual, o gerenciamento do fluxo discursivo.”

Qualquer que seja a abordagem, o que está envolvido é a linguagem em uso. O uso da

linguagem é mais do que a produção e entendimento de enunciados, com sentidos particulares.

É uma atividade realizada por parceiros de comunicação que trabalham colaborativamente na

construção do discurso. E nessa construção está envolvida a questão da referência.

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O produtor do texto constrói seus enunciados em função das hipóteses que faz sobre a

capacidade de interpretação do interlocutor, o que envolve as suposições, crenças e

conhecimentos partilhados. De acordo com Koch (2010), a referenciação é uma atividade

discursiva, que denota as escolhas realizadas pelo sujeito para representar estados de coisa, a

fim de concretizar um querer-dizer. Neste caso, nos termos de Marcuschi (2006, p. 13), “a

língua é muito mais do que simples mediadora, se explica como atividade cognitiva e não

apenas como forma cognoscitiva (mapeadora) da realidade”. A realidade não é um elemento a

priori, mas uma construção discursiva motivada.

Sendo assim, pode-se considerar que o sentido emerge na e da interação. Por

conseguinte, para que haja construção de sentido no texto, é necessário atentar para as

atividades linguísticas, cognitivas e interacionais.

Isso implica dizer que a interpretação de uma referenciação anafórica não se reduz a

apenas localizar um segmento linguístico no texto ou um objeto no mundo, mas, mais que isso,

localizar algum tipo de informação alocada na memória discursiva. Koch busca evidenciar que

uma das funções textual-interativa da remissão textual é “imprimir aos enunciados em que se

inserem, bem como ao texto como um todo, orientações argumentativas conformes à proposta

enunciativa do produtor” (KOCH, 2010 p. 35). Os estudos realizados sobre referenciação têm-

se dedicado a compreender o processamento cognitivo que procura entender como o

conhecimento do mundo é ativado para a construção do sentido e como a memória discursiva

pode influenciar esse processo.

Nesse ponto, torna-se necessário esclarecer a concepção de memória discursiva aqui

utilizada. Por memória discursiva (nos termos de Berrendonner, 1994) entende-se uma

representação mental construída pelos participantes da interação. Essas representações estão

constantemente sujeitas à revisão, em razão do acréscimo de interpretações novas que provêm

de enunciados anteriores do texto, ou melhor, trata-se de um conjunto evolutivo que passa por

estados sucessivos à medida que se desenvolve o discurso. Considera-se, então, a memória

discursiva como o conjunto de informações que compõem o conhecimento partilhado.

Com efeito, é bastante complexa uma descrição dos aspectos cognitivos que envolvem

a referenciação, quando se toma por base um uso da linguagem como ação e não como produto.

O falante/escrevente, ao escolher a entidade que será referenciada, pressupõe que de algum

modo ela se tornará acessível na interação. O tipo de suposição que ele realiza interfere nas

escolhas dos processos referenciais mais adequados para o tipo de enunciação que ele pretende

realizar.

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2.3 A construção dos objetos de discurso

Partindo da noção de que a língua não é espelho da realidade, visto que é histórica e

socialmente constituída, e de que a discretização do mundo pela linguagem é resultado de uma

elaboração cognitivo-social, os referentes serão aqui considerados como objetos de discurso e

não como objetos de mundo. Conforme salientam Koch e Marcuschi (1998), não se trata de

negar a existência da realidade extra-mental, mas de considerar que a discretização do mundo

não é um dado a priori e sim uma elaboração cognitiva. Isso leva a colocar em outras bases o

aspecto representativo da linguagem, porque as entidades designadas em um texto são

consideradas como diretamente ligadas às operações realizadas pelos sujeitos, tendo em vista

seus propósitos interacionais. Dessa forma, os referentes são criados no interior do discurso:

são introduzidos, retomados, identificados no texto, sofrendo alterações à medida que o texto

se desenrola, por meio de estratégias de referenciação.

Deve-se, então, ao tratar da referenciação, desligar-se da ideia de que o enunciador

simplesmente escolhe os referentes de acordo com as noções de mundo que esses referentes

evocam. Mondada e Dubois (2003, p. 20), ao defenderem que o sujeito constrói o mundo no

curso da realização das atividades e o torna estável pelas categorias manifestadas no discurso,

falam em “uma instabilidade constitutiva das categorias” já que a prática da produção e

interpretação de textos é atribuível a “uma construção de objetos cognitivos e discursivos na

intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de concepções

individuais e públicas do mundo”. Essas versões são construídas em um processo de

estabilização das representações e usos. Para as autoras, os objetos de discurso são instáveis, já

que são construídos tendo em vista a produção de sentido que é diferenciada se temos em vista

os diferentes contextos e as diferentes finalidades do texto. Sendo assim, a língua é

constitutivamente instável e está em constante processo de estabilização, isto é, existe um

conjunto de versões do mundo que são mais ou menos solidificadas.

Nesse contexto, os processos de estabilização que decorrem da depreensão dos objetos

de discurso são vistos como desenvolvidos “no seio das interações individuais e sociais com o

mundo e com os outros, e por meio de mediações semióticas complexas.” (MONDADA;

DUBOIS, 2003, p. 22)

De acordo com as autoras, um dos processos de estabilização discursiva é a

referenciação anafórica. Para elas, os processos anafóricos podem ser vistos tanto como um

modo de ilustrar o problema dos referentes evolutivos, quanto como uma forma de estabilizar

ou de focalizar uma denominação particular (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 43).

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Os objetos de discurso se desenvolvem discursivamente categorizando ou

recategorizando os objetos e contribuindo para a construção do texto. Mondada afirma que

o objeto de discurso caracteriza-se pelo fato de construir progressivamente uma

configuração ao se enriquecer com novos aspectos e propriedades, suprimir antigas

ou ignorar outras possíveis, que ele pode associar com outros objetos integrando-se

em novas configurações, ou se articulando em partes suscetíveis de se autonomizarem

em novos objetos. O objeto se completa discursivamente. (MONDADA 1994, p.64)

Assim como foi defendido por Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), os objetos de

discurso não preexistem à atividade discursiva, considerada como atividade cognitiva e

interativa, mas são construídos no seu interior. Daí se depreende que o ato de designar um

referente, ou melhor, o ato de construir um objeto de discurso, deve levar em conta as dimensões

cognitiva e pragmático-interacional. Dentro dessa perspectiva, as expressões referenciais serão

aqui analisadas partindo da hipótese de que a escolha dessas expressões com função anafórica

é determinada por condições discursivas e cognitivo-interacionais.

De acordo com Koch (2010, p. 35), as formas de referenciação “constituem escolhas

do sujeito em função de um querer-dizer”, e revelam-se como meio estratégico de (re)construir

objetos de discurso. Exatamente por serem resultado de escolhas de um locutor que constrói

sua fala/escrita em um processo interativo, essas formas referenciais muitas vezes deixam

entrever uma apreciação manipulativa do objeto, ativam conhecimentos partilhados entre os

interlocutores, além de confirmar ou frustrar expectativas que o leitor/ouvinte leva para o texto.

Outra questão observada por Koch e Penna (2006) é que os objetos de discurso são

construídos na interação, isto é, a existência dos objetos é constituída no discurso por meio de

práticas intersubjetivas. Mondada e Dubois (2003) observam que não só os enunciados são

construídos ou completados colaborativamente, como também os objetos de discurso são

enriquecidos, mantidos, construídos interativamente pelos interlocutores. Estes são elaborados

pelos interlocutores em um processo dinâmico e intersubjetivo, ancorado em práticas

discursivas e cognitivas situadas social e culturalmente, bem como em negociações que se

estabelecem no âmbito das relações interacionais.

Os objetos de discurso não cumprem apenas a função de referir. Ao contrário,

contribuem com a elaboração do sentido, assinalam direções argumentativas, sinalizam

dificuldade de acesso ao referente, recategorizam objetos presentes na memória discursiva.

Enfim, cumprem importante papel na organização textual e contribuem de maneira decisiva

para a construção interativa do sentido.

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Com o exemplo abaixo, Koch e Penna (2006) ressaltam como a escolha das formas

anafóricas orienta a argumentação e possibilita a construção conjunta do objeto de discurso:

(1) A transação entre os políticos esvaziou a política de seu sentido público. Um

Mercadante sacrifica qualquer programa em troca do cargo de governador paulista; um

Callheiros tem como programa servir ao poder de turno, e ser servido por ele; um

Severino nem sequer sabe o que é programa (na acepção política) e contenta-se em

prover sua clientela com sinecuras públicas.

Observa-se a dependência entre as formas grifadas e o enunciado anterior (A transação

entre os políticos esvaziou a política de seu sentido público). Todavia, tais formas são

introduzidas no discurso como se fossem novas, sugerindo uma recategorização dos nomes

próprios, que passam a comuns. As autoras ressaltam que o que permite a associação entre os

nomes Mercadante, Calheiros e Severino com a expressão políticos do enunciado anterior é o

conhecimento de mundo dos interlocutores.

De acordo com as autoras, o que permite tratar essas formas como referenciais é o fato

de podermos recorrer ao cotexto anterior e ao conhecimento de mundo do leitor para classificar

seus referentes como protótipo de político.

Nota-se que a referenciação é responsável pela introdução no texto de referentes novos

ou inferíveis a partir de outros elementos do cotexto. Dessa forma as cadeias referenciais são

constituídas, garantindo, além da continuidade e da progressão referencial, a orientação

argumentativa do texto e, consequentemente, a construção textual do sentido.

2.4 Referenciação e constituição textual

Primeiramente, torna-se necessário relembrar o conceito adotado quando se fala de

texto. Assim como Koch (2002), considero o texto como o lugar de constituição e de interação

de sujeitos sociais, um evento em que convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais, ou

seja, o texto se manifesta linguisticamente, mas não se reduz a um depósito de frases, pois é um

lugar de interação. Dessa forma, o texto

passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos

ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Desta forma há

lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente

detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos

participantes da interação. (KOCH, 2002, p. 17)

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Esse delineamento teórico possui implicações significativas no modo de se considerar

as questões relativas à referenciação. Quando se adota uma noção de texto, que se esgota na

materialidade linguística, pode-se pensar na anáfora como a relação entre dois segmentos

linguísticos. Por isso, por muito tempo, o estudo da anáfora se restringiu a relações pontuais no

texto, o que contribuiu para a construção de um modelo quase gramatical entre duas ou mais

expressões, em que a linguagem escrita exigia para cada anáfora um antecedente explícito e

apropriado.

Todavia, o processo de referenciação não pode se reduzir à identificação de objetos da

realidade, mas relaciona-se com a própria constituição do texto como uma rede em que

referentes são introduzidos como objetos de discurso (APOTHÉLOZ e REICHLER-

BÉGUELIN, 1995) e, como tais, são mantidos de acordo com determinadas estratégias

dependentes da progressão textual. Entende-se, então, que a progressão textual ou a manutenção

tópica, responsável pela organização e fluxo da informação, esteja ligada à progressão ou

manutenção referencial, que constrói a teia textual, seja pela preservação de referentes

introduzidos, pela introdução de referentes novos ou pela retomada de outros referentes.

Se um item, como um pronome pessoal de terceira pessoa, possui seu referente

mencionado explicitamente no cotexto anterior, esse referente será recuperado, desde que a

função textual (HALLIDAY, 1985) esteja cumprida. Mas um sintagma pode não ter menção

anterior explícita por não haver referente disponível para ser recuperado. Com efeito, não são

raras as anáforas para as quais não há uma expressão antecedente no cotexto, como é o caso das

anáforas associativas, objetos de análise nesta pesquisa. No entanto, o interlocutor estará apto

a identificar tal objeto de discurso, se a formulação textual garantir dados pertinentes para o

acesso à informação necessária. Neste caso, nos termos de Marcuschi (2006, p. 13), “a língua

é muito mais do que simples mediadora, se explica como atividade cognitiva e não apenas como

forma cognoscitiva (mapeadora) da realidade”.

Dessa forma, a referenciação textual será bem-sucedida quando o destinatário

conseguir identificar o referente do discurso no ponto em que essa operação lhe for requerida.

E essa identificação ocorrerá se o produtor a deixar acessível. Para Chafe (1996), esse acesso

se faz em graus, de acordo com o grau de ativação dos itens: ativo – se o item está no foco de

atenção, é ‘dado’; semiativo – se o item já esteve em foco, é ‘acessível’; inativo – se o item está

na memória dos interlocutores, é ‘novo’.

No momento da interpretação do texto em tempo real, uma gama de entidades é

evocada e representada mentalmente nos modelos construídos pelos sujeitos participantes da

comunicação. Alguns desses referentes evocados vão fazer parte do ‘quadro’ referencial do

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discurso, enquanto outros terão papel mais central. Nesse processo de interpretação, os

referentes são hierarquizados em função da estrutura tópica do discurso.

O interlocutor mobiliza um conjunto de recursos para focalizar a atenção sobre um

subconjunto de referentes evocados. A focalização, então, lança luz sobre determinadas

informações cognitivamente mais salientes num momento dado do processo de produção. Os

elementos mais recentemente construídos estarão ativados, bem como as informações mais

relevantes do discurso. É claro que quanto mais os referentes forem mantidos focalizados, tanto

menos esforço interpretativo por parte do interlocutor será requerido, mais o encadeamento

parecerá coerente e mais a segmentação textual será fácil.

Koch (2004) caracteriza três estratégias de constituição de referência na memória

discursiva:

a) construção/ativação: através desse mecanismo um ‘objeto’ textual ainda não

mencionado é introduzido e preenche um nódulo na rede conceitual do modelo de

mundo textual; o elemento linguístico que o representa é focalizado na memória,

de modo que esse ‘objeto’ fica saliente;

b) reconstrução/reativação: um elemento já presente na memória discursiva é

reintroduzido na memória operacional por meio de uma expressão referencial, que

mantém o objeto de discurso focalizado;

c) desfocalização/desativação: um novo objeto-de-discurso é introduzido e passa a ser

focalizado. O objeto retirado de foco, porém, continua disponível para utilização

imediata na memória dos interlocutores.

Cavalcante (2010) afirma que o primeiro procedimento explica o que ocorre na

memória discursiva quando um novo objeto de discurso é posto em foco, é o caso das

expressões não-anafóricas. Esse objeto introduzido e ativado pode submeter-se a duas

alternativas: ser reativado por uma anáfora correferencial e permanecer saliente no discurso,

isso corresponderia à situação 2 acima apresentada; sair de foco, mas preservar o estatuto de

introdução referencial, motivando descrições posteriores sem ser resgatado ao longo do texto,

o que corresponderia à situação 3.

Koch (2014) apresenta o seguinte exemplo para demonstrar que a repetição de tais

estratégias referenciais, de um lado, estabiliza o modelo textual; porém, por outro lado, esse

modelo é continuamente reelaborado e modificado por meio de novas referenciações:

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(2) Com a perigosa progressão da demência bélica de Bush 2º [construção] cabe uma

indagação: para que serve a ONU? Criada logo após a 2ª Guerra Mundial, como

substituta da Liga das Nações, representou uma grande esperança de paz e conseguiu

cumprir seu papel durante algum tempo. (...) É. Sem guerra não dá. Num mundo de

paz, como iriam ganhar seu honrado dinheirinho os industriais de armas que pagaram

a duvidosa eleição de Bush 2º, o Aloprado? [nova construção a partir de uma

reativação]. Sem guerra, coitadinhas da Lookheed, da Raytheon (escândalos da Sivan,

lembram?). Com guerra à vista, estão faturando firme. A ONU ainda não abençoou

essa nova edição de guerra santa, do terrorismo do bem contra o terrorismo do mal

[reconstrução por recategorização] (...) O Caubói Aloprado [reconstrução por

recategorização] já nem disfarça mais (...). (Juracy Andrade. In: Koch 2014, p. 49-50)

No exemplo, percebe-se como o referente Bush é construído e reconstruído ao longo

do texto para atender os propósitos do jornalista. Verifica-se também a quantidade de

conhecimentos prévios exigidos do leitor para que possa construir, adequadamente, o sentido

pretendido pelo autor. É preciso saber que Bush era, na época, presidente dos Estados Unidos

e que seu pai também fora. Por isso, a indicação numérica Bush 2º. É necessário saber também

que Bush estava impondo ao mundo uma guerra, que parecia não ter razão de ser. Em “a

duvidosa eleição de Bush 2º, o Aloprado”, o leitor precisa ter conhecimento de como foi

realizada a apuração das eleições em que Bush foi eleito. Em “essa nova edição da guerra santa,

do terrorismo do bem contra o terrorismo do mal”, cumpre conhecer o que eram as guerras

santas, empreendidas pelos cruzados, que representavam o bem contra os infiéis, que

representavam o mal. Porém, agora existe o indicativo de que ambos os lados são terroristas.

Por fim, o “Caubói Aloprado” exige que se conheça o estado natal e o modo de vida antes de

Bush se tornar um político.

Desse modo, “endereços” ou nódulos cognitivos já existentes podem ser modificados

ou expandidos, de modo que, durante o processo de compreensão, um referente é desdobrado

pelo acréscimo de novas categorizações ou avaliações acerca do mesmo.

Observa-se, na divisão apresentada por Koch, uma classificação mais voltada para a

organização textual-discursiva. Vale lembrar que essa classificação não dá conta dos diversos

tipos de anáfora na sua correlação com o processamento cognitivo dos referentes, mas propõe

algum tipo de escala de estatutos cognitivos a que se relacionam diferentes tipos de expressões

referenciais.

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A par de tudo isso, Koch e Penna (2006) procuram evidenciar, a partir da análise de

exemplos, que:

a) o discurso constrói o objeto a que faz remissão;

b) esse objeto é construído de maneira estratégica, já que busca concretizar um projeto

de querer-dizer;

c) o objeto de discurso é construído interativamente, visto que as estratégias de

construção requerem colaboração mútua;

d) as estratégias usadas para a construção dos objetos de discurso são responsáveis

pela progressão textual e manutenção tópica do texto.

Ao empreender a análise, as autoras observaram que a progressão textual e a

manutenção tópica ocorrem graças à construção/reconstrução progressiva do objeto escolhido

pelo autor. Essa construção/reconstrução se dá pelas escolhas lexicais que fornecem ao

interlocutor pistas sobre a interpretação desejada.

De acordo com Koch (2014), os processos de construção de referentes textuais são de

dois tipos. A autora, usando os termos de Prince (1981), postula que a ativação de referentes no

modelo textual pode ser “ancorada” e “não ancorada”. Há uma ativação “ancorada” quando um

novo objeto de discurso é introduzido como dado1, pelo fato de existir algum tipo de associação

com elementos do cotexto ou do contexto sociocognitivo que possa ser estabelecida por

associação e/ou inferenciação. As anáforas associativas e as anáforas indiretas de modo geral

estão entre esses casos. A ativação “não ancorada” ocorre quando um objeto de discurso

totalmente novo é introduzido no texto, passando a figurar na memória do interlocutor.

A reconstrução de objetos previamente introduzidos no texto, segundo a autora, é a

operação responsável pela manutenção em foco desses objetos, o que permite construir cadeias

referenciais ou coesivas importantes para a progressão referencial do texto. Uma vez que o

objeto se encontra ativado no modelo textual, essa operação de reconstrução pode realizar-se

por meio de recursos gramaticais, por recursos lexicais, por reiteração de um grupo nominal ou

parte dele, ou ainda, por meio de elipse.

1 Há algum tempo a questão do status informacional das categorias referenciais vem sendo associada às noções de

dado e novo. Como Fulgêncio e Liberato (1998), considero dado aqueles elementos que o produtor presume estar

na memória do interlocutor e novo os elementos que são introduzidos pelo produtor no momento em que o texto é

produzido. Assim, para um termo ser entendido como dado, seu referente deve ter sido explicitamente expresso

ou estar presente no contexto.

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Por vezes, a construção/reconstrução de referentes, pode se dar por meio de “pistas”

textuais acessadas via inferenciação. Pode-se inferir o todo a partir de uma parte; um conjunto

a partir de um subconjunto; conhecimentos que fazem parte de um frame a partir de um

elemento explícito na superfície textual. Koch (2013, p. 41) apresenta os seguintes exemplos

para demonstrar essas inferências:

(3) Mãos finas e delicadas teciam as mais graciosas rendas, enquanto olhos e lábios

pareciam sorrir suavemente.

(4) Jorge foi atacado pelo enorme cão policial. Eles são realmente animais muito

perigosos.

(5) Ao ser abordada pelo assaltante, a bolsa da jovem abriu-se, e seus pertences

espalharam-se pela calçada. O lenço, o batom, o pente rolaram para o meio da rua.

Na atividade de produção textual, os interlocutores mobilizam diversos sistemas de

conhecimentos alocados na memória, bem como estratégias de processamento sociocognitivo

e textual. Trata-se de uma atividade consciente e criativa, que compreende a escolha de meios

adequados para atingir objetivos e o desenvolvimento de estratégias, que serão detalhadas mais

adiante, ou seja, o produtor, tentando dar a entender seus propósitos ao destinatário, empreende

uma atividade intencional de manifestação verbal. Pode-se dizer então que os objetos são

construídos pelo indivíduo de maneira estratégica, a fim de alcançar um objetivo em

conformidade com as condições sob as quais a atividade verbal se concretiza, ou melhor, a

escolha de determinada estratégia de referenciação imprime ao texto uma avaliação do autor e,

consequentemente, há um encaminhamento para o sentido que ele projetou.

Para Neves (2001, p. 996),

uma primeira reflexão sobre a cadeia referencial de um texto se assenta na

correferencialidade, tendo em vista que, em princípio, referentes são introduzidos ou

criados no discurso, e nele são mantidos enquanto se mantiverem na condição de

participantes dos eventos, ou na condição de suportes dos estados que constituem

aquele universo discursivo.

Portanto, a referenciação textual é mais do que a retomada de um referente, porque o

texto é fruto de criação discursiva, e o percurso referencial nele inserido pertence ao universo

de entidades organizadas discursivamente. Os referentes constituídos no texto passam a fazer

parte do conjunto temático do texto e se entrecruzam com a referenciação textual propriamente

dita e a referenciação tópica, que relaciona as entidades envolvidas na organização informativa.

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Essa postura teórica possibilita um olhar mais atento para a progressão referencial nos

textos, pois é nessa progressão que os referentes se encadeiam para o desenvolvimento tópico

e a construção da coesão e coerência. O encadeamento dos referentes para o processamento

textual é feito por diferentes estratégias de referenciação, que variam de acordo com a relação

estabelecida entre o que é referido e o referente, como atestam Marcuschi e Koch em várias de

suas publicações.

Dessa forma, a referenciação, operada por várias estratégias de progressão referencial,

é responsável tanto pela coerência quanto pela coesão do texto. Marcuschi (2006) afirma que a

referenciação contribui tanto para a formação de relações locais quanto para o estabelecimento

de canais temáticos e para as construções de representações globais. Mesmo que, muitas vezes,

possa haver espaços que só serão preenchidos por conhecimentos de mundo, portanto externos

ao texto, sempre será necessária uma base linguística por meio da qual a coerência discursiva

poderá ser construída.

É importante ressaltar a importância da construção de objetos de discurso para a

manutenção tópica e para a progressão textual. A introdução de novos referentes ou de

referentes inferíveis de outros elementos do cotexto, bem como a remissão a referentes já

introduzidos constituem cadeias referenciais que garantem a continuidade e a progressão

referencial.

As cadeias referenciais, além de garantir a progressão e a continuidade referencial,

exercem papel importante na orientação argumentativa do texto e, consequentemente, na

construção textual do sentido, uma vez que mantêm os referentes ativados na memória de

trabalho do interlocutor durante o processamento textual (KOCH, 2014).

A progressão referencial e a manutenção tópica devem ser vistas como resultado de

estratégias cognitivo-discursivas postas em ação pelos sujeitos sociais, que objetivam a

construção textual do sentido. Para Marcuschi (2006, p. 21),

a progressão referencial diz respeito à introdução, identificação, preservação,

continuidade e retomada de referentes textuais, correspondendo às estratégias de

designação de referentes e formando o que se pode denominar cadeia referencial. A

progressão tópica diz respeito ao(s) assunto(s) ou tópico(s) discursivo(s) tratado(s) ao

longo do texto. Contudo, se a continuidade referencial serve de base para o

desenvolvimento de um tópico, a presença de um tópico oferece tão somente as

condições possibilitadoras e preservadoras da continuidade referencial, mas não a

garante.

De acordo com as considerações de Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995, p. 242), o

locutor dispõe de “uma série aberta de expressões linguísticas” fornecida a ele pelo léxico de

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sua língua. Cabe, então, ao locutor escolher a(s) mais adequada(s) ao sentido que pretende

construir no seu discurso, podendo ainda modificar o estatuto referencial ou a carga informativa

de determinada entidade introduzida na cadeia textual.

Os autores distinguem três grandes conjuntos de estratégias mais comuns de evolução

referencial, algumas delas mais frequentes na escrita do que na fala. No primeiro, o objeto de

discurso recebe uma transformação no momento de sua designação anafórica sem alterar

atributos que lhe foram predicados anteriormente. Nesse caso, a anáfora opera transformações

no objeto de discurso designado. É o caso da recategorização lexical, pela qual pode-se

introduzir novos conhecimentos ou atributos ao referente, retomar o referente denominando-o,

ou ainda, fragmentar ou selecionar elementos do referente. É o que se pode observar no exemplo

abaixo:

(6) L1: /.../ por exemplo poluição agora todo mundo fala “poluição poluição” o controle

não dá para haver controle de poluição... só os mais gritantes é que são... pu/publicados

em jornal et cetera e se controla mas os pequenos não... essas companhias de ônibus

desses ônibus fumacentos né?... (Koch e Marcuschi 1998, p.180)

De acordo com os autores, temos no exemplo acima duas operações no uso das

expressões os gritantes e os pequenos: uma é a referenciação propriamente dita, que retoma

anaforicamente o termo poluição; outra é a recategorização do objeto, indicando uma

informação inédita (casos de poluição gritantes/pequenos).

No segundo conjunto de estratégias de evolução referencial, o objeto de discurso,

modificado anteriormente, é designado por uma anáfora que não considera tais mudanças, mas,

ao contrário, retoma o objeto em seu estado inicial. Trata-se então da anáfora em seu sentido

estrito que é o de retomada de um antecedente desconsiderando novos elementos que tenham

sido atribuídos ao referente ao longo do discurso, como demonstra o exemplo abaixo:

(7) A ostra, da grossura de um calhau médio, é de uma aparência muito enrugada, de uma

cor meio uniforme, brilhantemente esbranquiçada. É um mundo obstinadamente

fechado. No entanto, pode-se abri-la: é preciso tê-la no oco de um esfregão, servir-se

de um corte fechado e pouco franco; isso se faz várias vezes (Apothéloz; Reichler-

Béguelin 1995, p. 261).

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Nesse exemplo, observa-se a introdução no texto do objeto a ostra, que posteriormente

recebe o atributo de ser um mundo obstinadamente fechado, mas o anafórico seguinte

desconsidera essa informação e retoma o objeto de discurso pela forma pronominal la (abri-la),

numa referência à expressão introdutora do objeto de discurso, no feminino. Assim o uso desse

anafórico desconsidera a recategorização evidenciada na predicação um mundo obstinadamente

fechado, no masculino.

Na terceira estratégia, o objeto de discurso sofre, ao longo do texto, uma ou mais

modificações, e a anáfora homologa essas modificações num único item lexical. Pode-se dizer

que essa estratégia é uma soma das duas anteriores, pois temos um objeto de discurso

introduzido na cadeia textual, sobre o qual algo é predicado, e, em seguida, na retomada, a

expressão anafórica ocorre em função do que se predicou anteriormente. Veja-se o exemplo

abaixo:

(8) Um jovem suspeito de haver desviado uma linha telefônica foi interpelado há alguns

dias pela polícia de Paris. Ele havia “utilizado” a linha de seus vizinhos para ligações

aos Estados Unidos por um montante de 5000 francos. O tagarela foi denunciado

diante do tribunal. (Apothéloz; Reichler-Béguelin 1995, p. 262)

Nesse exemplo, temos o objeto de discurso um jovem. Sobre ele é atribuída a

informação de que havia “utilizado” linhas telefônicas de seus vizinhos para efetuar ligações

internacionais. O elemento anafórico o tagarela homologa os atributos do objeto referido no

discurso. Os autores rotulam de “homologação da aquisição do discurso” o fato de um anafórico

posterior homologar uma informação já predicada.

Demonstra-se, com isso, que os objetos de discurso são submetidos a uma série de

mudanças ao longo do discurso, que podem ser feitas por estratégias de referenciação muito

variadas. Dessa forma, confere-se um sentido amplo para o termo anáfora, ultrapassando a

definição de anáfora como retomada, normalmente pronominal, de um item lexical

anteriormente mencionado no texto e apontando outras configurações anafóricas possíveis.

2.5 A referenciação como processo sócio-cognitivo-interacional

A produção textual pode ser tomada como uma atividade interacional visto que os

participantes se encontram envolvidos na atividade de maneiras diversas. Dessa forma, eles

devem trabalhar conjuntamente sobre uma base de conhecimentos comuns e devem assegurar-

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se desses conhecimentos. No entanto, boa parte das intenções interlocutivas não se concretizam

linguisticamente porque, muitas vezes, o enunciado apresenta apenas parte dessas intenções.

Recorrendo, novamente, à metáfora do iceberg, pode-se indagar a que corresponde todo o resto

do bloco, se o que a linguagem revela é apenas a ponta do iceberg. Certamente, boa parte desse

resto está reservada à cognição.

Os estudos da referenciação, de acordo com Lima (2010, p.197), “têm-se dedicado

especialmente a entender o processamento cognitivo, por exemplo, quando se procura entender

como o conhecimento de mundo é ativado para a construção do sentido e como a memória pode

influenciar esse processo”. A ideia básica do modelo cognitivo é que a referenciação é

determinada por processos cognitivos, pois a escolha de uma determinada expressão referencial

é dependente do estado da memória discursiva.

Um certo número de referentes é evocado e representado mentalmente pelos

interlocutores no momento da interpretação de um texto. No entanto, todos esses referentes não

são tratados e estocados em um primeiro plano na memória: alguns farão parte de um segundo

plano do discurso, que é seu quadro referencial. No processo de interpretação, os referentes são

hierarquizados em função da estrutura do discurso. O que o produtor do texto faz é mobilizar

um conjunto de meios para focalizar a atenção do receptor sobre um conjunto restrito de

referentes evocados. A focalização salienta cognitivamente elementos de informação, que

estarão ativados na memória discursiva, bem como informações relevantes do discurso global.

Evidentemente, quanto mais em foco os referentes forem mantidos, menos esforço cognitivo

será requerido, o encadeamento parecerá mais coerente e a integração dos segmentos textuais

parecerá mais fácil. (Zamponi, 2003)

Se consideramos mais adiante que os objetos de discurso não preexistem à atividade

cognitiva, mas são construídos dentro dessa atividade, então, os processos de referenciação são

atividades interativas e não apenas operações linguísticas. Assim como Marcuschi (2001),

defendo a inserção dos processos referenciais na atividade linguística interativa, envolvendo a

enunciação e a cognição. O uso da linguagem é mais que produção e entendimento de

enunciados, é uma atividade realizada por participantes que trabalham em conjunto,

colaborativamente, na construção do discurso.

É preciso levar em consideração que a interação discursiva ocorre na construção de

sentidos mediados pelos interlocutores, pautada em pontos “instáveis” e “dinâmicos” da teia

referencial. Sem a colaboração mútua dos interlocutores, as estratégias de referenciação não

seriam reforçadas pela depreensão dos objetos do discurso e, consequentemente, os propósitos

comunicativos não seriam alcançados.

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Em um ato de referenciação, mais que partilhar informações, é necessário que os

participantes se assegurem, mutuamente, de seus conhecimentos. Conhecimentos genéricos e

particulares serão mútuos se os participantes pertencerem a uma mesma comunidade. Imagina-

se que há coisas que todos os membros de uma mesma comunidade sabem. Quando duas

pessoas pertencem a uma mesma comunidade, elas podem assumir que conhecem mutuamente

as coisas daquela comunidade. Porém, isso gera o paradoxo do conhecimento comum (Clark,

1992). Para Marcuschi (2001, p. 44), “o melhor seria afirmar que os conhecimentos (os objetos

do saber) são construídos em comum e que essa condição de ser comum seria o resultado de um

movimento interativo que leva ao partilhamento, mas não é um a priori lingüístico embutido

nas mentes humanas (e conduzido pelos itens lexicais)”. Dessa forma, não são os

conhecimentos comuns que garantem o entendimento, mas são as condições comuns de

construção de conhecimento que permitem a referenciação.

Por tudo isso, o ato de referir não se reduz ao simples fato de designar algo, porque a

linguagem não é produção da realidade; ao contrário, ela é uma atividade interativa e contribui

de forma decisiva para a construção da realidade. Além disso, as estratégias utilizadas para a

introdução, alteração e identificação de referentes na interação são construídas pela atividade

cognitiva e discursiva dos usuários da linguagem. O modo de ver e de designar o mundo não é

preexistente, nem permanente, mas mantém-se em movimento de variação a partir dos diversos

contextos de interlocução.

Desde que se passou a conceber a língua como um fenômeno de interação social,

tem-se visto o referente textual como um objeto (re) construído nas práticas sociointerativas.

A língua é, em essência, ação pública realizada e negociada discursivamente no

âmbito das relações sociais que se constituem por partilhamento, refutação,

desqualificação e modificação de sentidos, experiências e conhecimentos de várias

ordens, para que se possa opinar, interferir, rejeitar, chamar atenção e persuadir, entre

outras ações, nesse mundo polifônico. (CORTEZ, 2010, p. 320)

Dessa forma, torna-se importante considerar aspectos sociais, cognitivos, culturais e

interacionais no estudo da compreensão, produção e funcionamento de textos.

A noção de objeto de discurso, aqui considerada, decorre da concepção de que as

entidades discursivas não preexistem ao discurso, uma vez que os propósitos do produtor

constantemente as reformula e as reconfigura. Assim, por meio de ações interlocucionais, os

referentes textuais são construídos, introduzidos, delimitados, desenvolvidos e transformados

ao longo da produção textual.

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Se, de um lado, existe uma visão que considera uma relação de correspondência entre

as palavras e as coisas, num processo de etiquetagem, de outro, temos um conceito pelo qual os

objetos de discurso são construídos através de práticas sociais. Conforme Mondada e Dubois

(2003), os sujeitos, por meio de experiências discursivas, cognitivas, sociais e culturais,

constroem versões públicas do mundo. As categorias e os objetos de discurso, pelos quais os

sujeitos compreendem o mundo, não são preconcebidos nem dados, mas elaborados no curso

das atividades. Assim, as categorias e os objetos de discurso são consignados por instabilidade

constitutiva, por meio de operações cognitivas ancoradas em práticas sociais, pelas atividades

verbais e por negociações dentro da interação.

Contudo, segundo as autoras, existem práticas que cumprem um efeito estabilizador,

por exemplo, na sedimentação das categorias em protótipos e estereótipos, nos procedimentos

para fixar a referência no discurso, no recurso à escrita ou às visualizações que permitem manter

categorias e objetos de discurso.

Já que consideramos os referentes textuais não como objetos de mundo, mas como

objetos de discurso, que reconstroem no processo de interação a realidade extralinguística,

concebe-se que isso acontece pela forma como, sociocognitivamente, interagimos no discurso.

A referenciação realiza-se no discurso, no momento em que o sujeito dá sentido ao mundo,

construindo discursivamente os objetos a que faz referência. Portanto, a atividade discursiva

não é isolada, mas ação coletiva ou conjunta. Isso significa dizer que usar a linguagem implica

uma atividade colaborativa, que envolve uma dimensão cognitiva e social.

Todo ato de referenciação possui uma dimensão construtiva e intersubjetiva. Além

disso ele não se dá fora do tempo, do espaço e de uma relação interlocutiva. Em outras palavras,

a referenciação não ocorre no vácuo e não se restringe somente à atividade do locutor, que não

seleciona solitariamente as expressões referenciais. O ato de referência requer uma operação

colaborativa de parceiros de interação, que constroem os referentes no e pelo discurso. Pode-se

então postular que a referenciação é uma atividade de construção colaborativa situada, e não

apenas uma operação linguística, já que implica um processamento interativo controlado,

dentro de situações específicas de comunicação.

Nesse capítulo, buscamos mostrar outra concepção de referência, já que o texto é visto

como evento; o referente como objeto de discurso e a referenciação é vista como um ato de

memória pelo qual se estabelece o sentido do texto. Dessa forma, os sentidos do texto são

construídos a partir de conhecimentos partilhados entre os interlocutores.

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Pode-se concluir que a referenciação textual, ao instaurar e manter os objetos de

discurso, pode ser vista como suporte da construção do sentido. Verifica-se que a introdução e

a manutenção de referentes como objetos de discurso, no processo interacional, refletem os

propósitos argumentativos do produtor do texto.

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3 RELAÇÕES ANAFÓRICAS – AS ANÁFORAS CORREFERENCIAS E

NÃO CORREFERENCIAIS

No que diz respeito ao tratamento teórico das expressões referenciais anafóricas,

trabalhos recentes revelam que já se foi o tempo em que as relações anafóricas eram vistas

exclusivamente sob o prisma da correferencialidade entre dois elementos da superfície textual.

Os processos anafóricos não correferenciais, que se desvinculam da noção de retomada textual,

embora apresentem continuidade referencial, despertam o interesse no campo dos estudos de

referenciação. Com isso, amplia-se não só a noção de referência, mas também a visão funcional

das expressões referenciais.

O termo anáfora será aqui considerado como um mecanismo de relação entre um

elemento, denominado elemento anafórico, expressão anafórica ou apenas anafórico, e um

elemento antecedente, que nem sempre está explícito no texto. Assim, toda anáfora implica uma

atividade de remissão e, possivelmente, de retomada, uma vez que é responsável pela

progressão referencial do texto. Contudo, a anáfora não se limita a funcionar apenas como um

mecanismo de manutenção referencial, mas constitui um recurso de progressão discursiva, visto

que, ao remeter ou retomar um elemento precedente, ela se liga à dinâmica textual-discursiva.

O elemento anafórico pode reativar objetos de discurso apresentados anteriormente, como é o

caso das anáforas diretas, ou ativar um objeto de discurso novo sem que haja um elemento

antecedente no texto, como acontece nas anáforas indiretas.

No presente capítulo, apresentamos a concepção de anáfora correferencial a partir da

apresentação de estudos concernentes ao tema. Em seguida, trata-se das formas nominais

anafóricas, a fim de demonstrar como as descrições nominais contribuem significativamente na

construção e reconstrução dos objetos de discurso, além de cumprirem importante papel na

orientação argumentativa do texto. Posteriormente, abordamos a anáfora não correferencial,

especialmente as anáforas indiretas e as anáforas associativas, como alternativa de ampliar o

conceito de anáfora. Por fim, falamos do encapsulamento anafórico, apresentando uma

caracterização geral do processo e dos elementos nele envolvidos.

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3.1 Anáfora Correferencial

Por muito tempo o estudo da anáfora se restringiu à observação de relações pontuais

no texto a partir de exemplos isolados do uso natural da língua, o que contribuiu para o

estabelecimento de um protótipo que correspondesse a um relacionamento quase gramatical

entre duas ou mais expressões. Haliday e Hasan (1976) afirmam que a anáfora ocorre entre dois

elementos expressos na superfície textual. Um elemento anafórico retoma referencialmente

outro elemento presente no cotexto antecedente, o que impõe uma dependência textual entre

um termo e um antecedente. Dessa forma, os autores descrevem a anáfora correferencial, que

implica a ideia de que uma forma pronominal ou nominal retoma um elemento nominal

explícito anteriormente no texto.

Pode-se então determinar que há correferência entre duas expressões sempre que elas

designarem no discurso o mesmo referente. Tal relação de correferência é frequentemente

considerada como o protótipo da anáfora, pois baseia-se na noção de que a anáfora é um

processo de reativação de referentes prévios (MARCUSCHI, 2010).

Nessa perspectiva, a anáfora é analisada como uma atividade discursiva em que um

elemento da superfície textual, chamado anaforizador, retoma, parcial ou totalmente, outro

elemento, chamado referente textual. Entre ambos, considera-se haver certa identidade

referencial, fundada em uma relação de continuidade. Por isso, tradicionalmente, vê-se a relação

anafórica como uma retomada correferencial ou co-significativa de referentes textuais por meio

de itens gramaticais ou lexicais.

Milner (2003, p. 94) apresenta o seguinte conceito para anáfora:

há relação de anáfora entre duas unidades A e B quando a interpretação de B depende

crucialmente da existência de A, a ponto de se poder dizer que a unidade B só é

interpretável na medida em que ela retoma – inteira ou parcialmente – A. Essa relação

existe quando B é um pronome cuja referência virtual só se estabelece pela

interpretação de um N” que o pronome “repete”. Ela existe igualmente quando B é

um N” cujo traço definido – ou seja, o traço identificável do referente – depende

exclusivamente da ocorrência, no contexto, de um certo N” – na verdade, geralmente,

o mesmo do ponto de vista lexical.

Essa visão restrita de anáfora considera que ela envolve a retomada, pelo menos

parcial, efetivada por meio de itens pronominais ou lexicais, de referentes anteriormente

expressos. No caso de pronomes, é preciso que haja um antecedente explícito. O autor impõe

uma restrição conceitual comum aos autores que adotam a mesma posição. Para Milner, entre

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os elementos A e B pode haver uma relação de identidade referencial, correferência, ou de

identidade semântica, co-significação. Ele considera a correferência indispensável à realização

de operações anafóricas e a co-significação parcialmente indispensável, pois o autor não admite

relação anafórica quando a interpretação do item lexical estiver condicionada a apenas

conhecimentos externos ao discurso.

Esse tratamento dado às anáforas, que privilegia a noção de correferencialidade, é

válido para tratar das anáforas nominais que se estabelecem por relação de sinonímia ou que se

processam por repetição lexical. Nesse caso, há uma relação explícita entre anáfora e

antecedente textual. Essa identidade referencial funda-se por um tipo de relação semântica que

se renova, no discurso, em função do encadeamento referencial.

Os exemplos abaixo, retirados de Koch (1999, p. 46-47), ilustram casos de

correferência:

(1) O bandido disparou um tiro. Esse tiro acertou uma mulher que passava

despreocupada pela calçada.

(2) A porta se abriu e apareceu uma menina. A garotinha tinha olhos azuis e longos

cabelos dourados.

(3) As crianças estão viajando. Elas só voltarão no final do mês.

Nos exemplos (1) e (2), observa-se a relação semântica entre o elemento anafórico e

seu antecedente. No caso de (1) há a repetição do mesmo item lexical. Já, em (2), ocorre a

substituição por um sinônimo. Em (3), o pronome de 3ª pessoa elas retoma o antecedente as

crianças, configurando o que se pode considerar como exemplo canônico de relação anafórica.

No entanto, as orientações teóricas de Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) e de

Koch e Marcuschi (1998) nos levam a conceber a atividade anafórica como atividade discursiva

por meio da qual o usuário da língua constrói a progressão referencial do discurso, utilizando-

se de itens tanto pronominais quanto lexicais.

Kleiber, Schnedecker e Ujma (1994) apresentam o seguinte esquema proposto por

Webber (1998) para representar a relação de correferência. Nele SNa representa o SN na função

de antecedente, e SNb é um SN ou pronome anafórico:

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SNa SNb

correfere

(co-especifica)

evoca

especifica especifica

Ea

Nesse esquema, Ea significa que a especificação (E) que SNa e SNb operam é sobre

um referente só (a): o referente introduzido por SNa é também especificado por SNb. Marcuschi

(2010, p. 57) afirma que esse esquema retrata uma situação em que “um SNa evoca e especifica

um referente, sendo que um outro SNb apenas correfere e co-especifica, mas não introduz algo

diverso. Trata-se de uma reativação. O símbolo Ea indica que a especificação referencial é uma

só e corresponde ao introduzido inicialmente”.

Uma definição estrita e correferencial de anáfora limita a observação do fenômeno e

torna impossível a explicação de grande número de construções textuais. As referenciações

textuais nem sempre acontecem de modo ordenado e linear. As relações anafóricas podem

ocorrer também sem correferencialidade entre dois elementos do cotexto.

Apothéloz (2003), ao apontar noções básicas para o estudo da anáfora, apresenta os

seguintes conceitos:

Anáfora fiel/infiel – Tem-se uma anáfora fiel toda vez que um referente anteriormente expresso

for retomado por meio de um SN definido ou demonstrativo, cujo núcleo é o mesmo já

introduzido (uma casa ... a/essa casa). Nesse tipo de construção, a anáfora atualiza-se por meio

do mesmo nome antecedente. Ela se apresenta como uma construção estereotipada, que tem

como objetivo lembrar, pela repetição do mesmo item lexical, o objeto de discurso já

caracterizado. A anáfora fiel assegura o desenvolvimento referencial e permite prever erros de

interpretação quando vários objetos de discurso estão em concorrência na memória discursiva.

Por outro lado, tem-se uma anáfora infiel sempre que a forma de retomada for diferente

daquela já expressa (uma casa ... a habitação). O emprego de um nome diferente permite

apresentar um ponto de vista particular sobre o elemento referido. A análise das relações

semânticas entre itens correferenciais possibilita observar que as substituições lexicais

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introduzem uma mudança de perspectiva do enunciador em relação ao fato ou objeto já

enunciado.

Anáfora por nomeação – Esse tipo de anáfora ocorre quando o SN transforma em referente o

processo denotado por uma proposição anterior, que pode ser o conteúdo proposicional ou o

ato de fala realizado por meio da enunciação, como em: “É conveniente situar as funções na

ordem figurativa e os funcionamentos na ordem figural? Ou o inverso? Esta interrogação

ameaça permanecer.” (Apothéloz, 2003, p. 72). Com efeito, esse tipo de anáfora condensa

informações e contribui para que esteja em foco o essencial da informação, por meio de resumos

de partes do discurso. As anáforas por nomeação demonstram que os mecanismos anafóricos

podem ir muito além da retomada de entidades e contribuir para os aspectos construtivos do

discurso.

Anáfora por silepse – Nas retomadas anafóricas a silepse cede lugar a modificações que se

referem ao gênero e ao número gramatical, como neste exemplo: “Uma mulher infiel, se assim

for conhecida pela pessoa interessada, é apenas infiel. Se ele a crê fiel, ela é pérfida”.

(Apothéloz, 2003, p. 73), em que o referente ‘a pessoa interessada’, expressão de gênero

feminino, é retomado pelo pronome masculino ‘ele’, sugerindo que a pessoa interessada é do

sexo masculino. A concordância é estabelecida de acordo com o sentido pretendido e não

conforme as regras gramaticais.

Anáfora associativa – Esse tipo de anáfora apresenta seu referente como já conhecido, ou

identificável, sempre que ele não tiver sido ainda mencionado. O mecanismo da anáfora

associativa repousa sobre conhecimentos partilhados que colocam em relação referências

genéricas, como em: “Nós chegamos a uma cidade. A igreja estava fechada”. Esse tipo de

anáfora será detalhado mais adiante.

Para Ilari (2001, p. 93) se considerarmos a anáfora como correferência estabelecida

entre expressões “torna-se impossível tratar de relações anafóricas em que o antecedente é um

predicado, ou uma oração, ou mesmo uma porção mais ou menos determinada de um texto”.

Koch e Marcuschi (1998), nos estudos sobre progressão referencial, conferem um sentido

amplo à anáfora como relação entre dois elementos textuais, o que engloba e ultrapassa a noção

tradicional, que toma a anáfora como uma estratégia de retomada, em geral pronominal, de um

item lexical anteriormente introduzido no texto. Os autores apontam configurações anafóricas,

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em que um elemento anafórico, que pode ser um pronome ou um SN, remete (retomando ou

não) a outro elemento anterior, expresso por um SN, ou uma oração, ou um segmento textual.

Alinhados com Apothéloz (1994), eles consideram que pode haver estratégias anafóricas, nem

todas co-significativas, o que leva a crer que a anáfora não deve ser observada apenas sob o

aspecto referencial, e menos ainda como uma atividade desenvolvida pelo pronome. Pode

haver casos em que o item anterior não esteja explícito, mas possa ser inferido do cotexto, sem

que haja uma remissão a referentes prévios.

De acordo com Marcuschi,

a visão clássica e linear da anáfora não considera o problema da referenciação textual

em toda sua complexidade, pois nem sempre há congruência morfossintática entre a

anáfora e seu antecedente; nem toda anáfora recebe uma interpretação no contexto de

uma atividade de simples atribuição de referente. (MARCUSCHI 2010, p. 55, In:

KOCH; MORATO; BENTES, 2010)

É possível observar em situações comunicativas a independência da anáfora em

relação aos elementos textuais e uma sensibilidade a elementos da memória discursiva, que são

ativados, construídos e adaptados de acordo com as necessidades do discurso. Conforme afirma

Koch (2002), a interpretação de uma expressão anafórica consiste não em localizar um

segmento linguístico ou um objeto de mundo, mas sim em estabelecer uma ligação com algum

tipo de informação que se encontra alocada na memória do interlocutor.

Pode-se então concluir que a anáfora, ou resulta de uma repetição ou substituição do

antecedente, o que traduz uma anáfora correferencial, ou resulta de processos inferenciais, de

saberes partilhados, o que traduz uma anáfora não correferencial. Dentro desse modelo, os

linguistas distinguem dois tipos clássicos de anáfora: a anáfora por retomada e a anáfora por

associação.

De qualquer maneira, a definição de anáfora implica a necessidade de se encontrar no

texto ou na memória discursiva do interlocutor a entidade pertinente para sua interpretação.

Esse modelo de processamento anafórico ativa pelo menos dois processos cognitivos: a busca

e a seleção do antecedente, no texto ou na memória discursiva, e a atribuição de uma

significação à própria anáfora. Se esses dois processos não forem suficientes para o interlocutor

decidir qual é o antecedente apropriado, ele deverá recorrer a inferências baseadas em seu

conhecimento de mundo. Assim, o antecedente, explícito ou não, permanece ativado na

memória de trabalho, e a expressão anafórica é integrada na interpretação textual que se está

construindo.

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52

Como se pode ver, a interpretação da anáfora requer ao mesmo tempo fatores

cognitivos, como o critério inferencial, e fatores linguísticos, como o critério da proximidade e

das relações semânticas.

3.2 Formas nominais anafóricas

O estudo do funcionamento das formas nominais anafóricas faz levantar a questão de

como se processa a criação e o desenvolvimento, por meio de expressões nominais, de relações

intratextuais no interior de um discurso de forma que se torne um produto unificado e

estruturado. As anáforas nominais requerem uma tarefa cognitiva complexa uma vez que

exigem que o sujeito acesse o sistema conceitual a fim de verificar qual a função de uma

palavra, a sua interpretação e relação com as outras palavras no contexto discursivo. Assim, o

sujeito constrói uma representação do texto ao mesmo tempo que ativa um modelo mental de

referência.

São consideradas como formas nominais as expressões constituídas minimamente por

um determinante (que pode ser Ø) seguido de um nome. A estrutura e função dessas expressões

com função referencial, sobretudo a questão do comportamento textual-discursivo, vem

merecendo a atenção especial dos pesquisadores do assunto. As relações de identidade (real ou

eventual), bem como a dependência contextual entre dois elementos nominais são fatores

essenciais que contribuem para a continuidade referencial, para a coesão e progressão textual.

Ao tratar a referenciação como atividade cognitivo-discursiva-interacional, Koch

(2001) considera que: a referenciação é uma atividade realizada por sujeitos sociais; os

referentes são objetos do discurso construídos no decorrer dessa atividade; o processamento

implica, por parte dos sujeitos envolvidos na ação, a realização de escolhas entre múltiplas

possibilidades oferecidas pela língua.

Koch (2001, p. 76) assinala que, ao se colocar em ação a estratégia da descrição

definida, “opera-se uma seleção entre propriedades passíveis de serem atribuídas a um

referente, daquela(s) que, em dada situação discursiva, é (são) relevantes para o locutor, tendo

em vista a viabilização do seu projeto de dizer.” Assumindo tal perspectiva, toda anáfora torna-

se uma escolha entre a multiplicidade de formas de caracterizar, ou de recategorizar, um

referente, que ativará na memória do interlocutor uma determinada imagem construída com

base em conhecimentos partilhados. Assim uma expressão referencial quase sempre pode ser

substituída por outra, desde que esta identifique, designe ou evoque o referente anterior. É essa

capacidade de designar um objeto de mundo que permite aos nomes e às expressões nominais

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desencadear um processo de identificação referencial com o nome antecedente e estabelecer

uma relação de referência.

Esse aspecto torna-se claro nos casos de continuidade referencial com retomada

(anáforas diretas). Mas também é observável, ainda que em menor escala, nas expressões

nominais sem retomada (anáforas indiretas).

O uso de expressões nominais anafóricas pode operar a recategorização de objetos de

discurso, de modo que, ao longo do texto, esses objetos vão sendo (re)construídos a fim de

atender os propósitos comunicativos do usuário da língua. As expressões nominais podem

desempenhar, em termos de progressão textual, uma série de funções importantes para a

construção dos sentidos no texto. Elas podem organizar o texto, tanto no nível microestrutural,

quanto no nível macroestrutural e podem também recategorizar os referentes.

As noções de correferência e co-significação estão diretamente relacionadas com o

processo de recategorização, que, conforme Apothéloz (1995), corresponde a uma estratégia

discursiva pela qual o usuário constrói, no discurso, coerência e coesão implícitas. Essa

textualidade implícita é decorrente da natureza dinâmica e colaborativa da construção dos

sentidos, haja vista que o sentido resulta dos recursos mobilizados pelo usuário da língua e na

configuração que esse imprime aos objetos de discurso a fim de exteriorizar seus propósitos

interlocucionais.

Sendo assim, a recategorização corresponde a uma estratégia de processamento em

que os objetos de discurso vão recebendo, conforme os propósitos interlocucionais, novas

configurações morfológicas, sintáticas ou semânticas, à medida que o usuário expressa juízos

de valor, atributos, características desses objetos de discurso.

Essa visão processual da construção do sentido pressupõe um entendimento mais

dinâmico da construção dos significados semânticos dos referentes. Isso explica como

elementos correferenciais não apresentam traços de sinonímia; ou como termos sinônimos, isto

é, co-significativos, não façam referência ao mesmo referente. Dessa forma, a recategorização

de um referente não está condicionada à existência de traços de correferência ou de co-

significação.

Se de um lado a co-significação está relacionada à existência de traços semânticos

parcialmente idênticos entre referentes de uma mesma cadeia referencial. De outro, a

correferência, conforme definem Halliday e Hassan (1976), numa perspectiva restrita,

corresponde ao fato de certos elementos linguísticos serem interpretados segundo a propriedade

que eles têm de apontar para outros itens do cotexto, o que revelaria a significação desses

elementos. Em uma perspectiva ampla, pode-se dizer que a correferência diz respeito à

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54

propriedade de um referente retomar pontualmente outro, havendo entre ambos uma identidade

referencial.

Como dito anteriormente, o emprego de formas nominais com o fim de categorizar ou

recategorizar os referentes, pressupõe uma escolha entre a multiplicidade de formas possíveis.

Essa escolha é sempre pautada pela proposta de sentido do produtor do texto. Em geral, trata-

se da ativação de características ou traços que devem levar o interlocutor a construir

determinada imagem do referente.

A manutenção em foco de elementos previamente introduzidos no texto possibilita a

construção de cadeias referenciais ou coesivas, que são responsáveis pela progressão referencial

do texto. Essa manutenção pode se dar por meio de recursos gramaticais (pronomes, elipses,

numerais, etc.) como também pelo uso de recursos lexicais (sinônimos, hiperônimos,

expressões nominais, etc.). O emprego de expressões nominais anafóricas permite a

recategorização dos objetos de discurso de modo que esses objetos são reconstruídos de acordo

com a intenção do enunciador.

Koch (2014) afirma que certas pesquisas demonstram que as expressões nominais

referenciais desempenham funções cognitivo-discursivas relevantes para a construção textual.

Dentre elas, destaco as seguintes, que se revelaram aplicáveis ao corpus que será analisado no

presente trabalho:

Ativação/reativação na memória

As expressões nominais referenciais possibilitam a ativação ou reativação na memória

do interlocutor de elementos anteriormente apresentados ou apenas sugeridos no texto. Por

outro lado, ao operarem uma recategorização ou refocalização do referente, elas desempenham

também função predicativa. Trata-se então, segundo Koch, de formas híbridas, ao mesmo

tempo referenciadoras e predicativas, ou seja, elas tanto veiculam informação dada, como

informação nova.

Encapsulamento ou sumarização

Para Koch, o encapsulamento é o uso de uma forma nominal para recategorizar

elementos precedentes ou subsequentes no texto, sumarizando-os e encapsulando-os sob um

determinado rótulo. Têm-se, nesses casos, anáforas que não nomeiam um referente específico,

mas referentes genéricos. Essas expressões nominais, normalmente introduzidas por um

demonstrativo, cumprem duas funções textuais: rotulam uma parte do texto que a precede e

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criam um novo referente textual que constituirá um tema para os enunciados subsequentes. Esse

assunto será tratado mais adiante detalhadamente neste trabalho.

Organização macroestrutural

As formas nominais referenciais cumprem uma função organizacional importante uma

vez que marcam a passagem de um estágio do texto para outro. Elas são importantes na

introdução, mudança ou desvio de tópico, preservando, contudo, a continuidade tópica. Assim

são responsáveis pelos movimentos de retroação e progressão textual.

Dessa forma, o objeto de discurso é construído progressivamente e enriquecido com

novos aspectos ou propriedades. Ele não se confunde com a realidade extralinguística, ao

contrário, é construído e reconstruído no interior da interação verbal.

3.3 Anáforas nominais com retomada de antecedentes textuais

As anáforas correferenciais, ou seja, as anáforas com retomada de antecedentes

textuais, seriam os modelos mais prototípicos de anáfora, uma vez que duas expressões

referenciais designam o mesmo referente.

De acordo com Koch (2005), as formas nominais referenciais anafóricas com retomada

de antecedentes textuais podem acarretar, ou não, uma recategorização do antecedente textual.

Ocorre essa recategorização quando a anáfora é feita por meio de um hiperônimo, um nome

genérico ou uma descrição nominal. Por sua vez, não ocorrerá essa recategorização se a

retomada for realizada por meio de um sinônimo ou quase-sinônimo.

Cavalcante (2003) considera que as expressões referenciais podem ser dividas em:

a) expressões sem continuidade referencial, que exclusivamente cumprem a função de

introduzir referentes novos no discurso;

b) expressões com continuidade referencial, que podem retomar ou não algum

elemento anterior, dependendo das estratégias de ativação de referentes novos ou

reativação de referentes já mencionado no texto.

Segundo a autora, no segundo grupo estão incluídos todos os casos de processamento

anafórico, com ou sem retomada.

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Koch (2005) apresenta a seguinte tipologia de anáforas com retomada de antecedente

textual. Abaixo, apresento a classificação com exemplos colhidos no trabalho da própria autora

e no corpus pesquisado por mim.

1 Anáforas correferenciais sem recategorização

1.1 Por repetição total ou parcial

Nesse tipo de anáfora, o núcleo da forma nominal anafórica repete, total ou

parcialmente, o núcleo do elemento antecedente. No caso da retomada parcial, segundo a

autora, a escolha da parte que será retomada é significativa para a construção do sentido, como

atestam os seguintes exemplos tomados da própria autora e do corpus:

(4) Durante a conferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a palavra. O

professor insinuou que o conferencista estava cometendo um sério engano.

(4’) Durante a conferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a palavra.

Mendoncinha insinuou que o conferencista estava cometendo um sério engano.

(KOCH, 2005, p. 264)

(5) E rogou a uu maestre que mui ben a entalasse (...).

Aquel maestr’ a omagen fezo mui ben entalada

en semellança da Virgen santa benaventurada.

[E pediu a um mestre que bem a esculpisse (...). Aquele mestre fez a imagem

esculpida à semelhança da Virgem bem aventurada.]

(Cantiga 312, v. 20, 25 – 26)

1.2 Por sinonímia ou parassinonímia

De acordo com Koch, a escolha de um sinônimo ou quase-sinônimo (parassinonímia)

está relacionada com a questão do gênero textual, do contexto, da variação de língua utilizada

e até mesmo com a opção estilística do produtor. Em um texto de divulgação científica, por

exemplo, não é raro encontrar um termo técnico retomado por uma palavra ou expressão

sinônima mais conhecida, que tornará o primeiro elemento mais acessível ao leitor comum,

como é exemplificado abaixo:

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(6) Os bugios não precisam de muito espaço e se alimentam de quase tudo que existe na

mata: folhas, brotos de árvores, frutinhas. O inverno, porém, é a estação de fartura para

estes símios e outros animais da floresta, pela abundância de pinhões. Os bugios, aliás,

parecem a todo instante, comprovar as teorias de Charles Darwin. Nada mais parecido

com um lutador de luta livre do que um desses macacos batendo no peito e roncando

para amedrontar o adversário. (Zero Hora, 17/05/ 1992, p. 4 citado por KOCH, 2005,

p.265)

(7) As donas daquel convento (...)

veen con sas candeas por o log’ alumear.

(...)

e ar deitaron log’ y

estadaes encendudos, como soyan deitar.

[As donas daquele convento (...) vêm com suas velas para iluminá-lo [o altar]. (...) e também colocaram aí círios acesos, como costumavam fazer.]

(Cantiga 332, v. 21a, 24, 28b – 29)

Quanto ao uso da parassinonímia, a autora afirma que esse recurso pode trazer

informações inéditas a respeito do referente, porque estabelece uma designação nem sempre

previsível pelo destinatário. A autora apresenta o seguinte exemplo:

(8) A polêmica parecia não ter fim. Pelo jeito, aquele bate-boca entraria pela noite a

dentro, sem perspectivas de solução. (KOCH, 2005, p. 265)

2 Anáforas correferenciais recategorizadoras

2.1 Hiperonímia

A estratégia de retomada por um hiperônimo é, segundo Koch, bastante comum visto

que o hiperônimo assegura uma estabilidade informacional, pois recorre a traços lexicais

presentes no hipônimo. Também nesse caso, a seleção do elemento anafórico é relevante para

a construção de sentido. O hiperônimo, ao ser usado anaforicamente, ajusta sua carga semântica

ao antecedente, isto é, selecionam-se os traços que a ele convêm, como se pode ver no exemplo

abaixo:

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(9) A aeronave teve de retornar à pista. O aparelho (aeronave) estava com defeito.

(KOCH, 2005, p. 266)

(10) Onde un dia ll’ aveo que fez mui gran travessura, (...)

Sennor preciosa,

fais que est’ erro que fige que cáia en obridança

De mia tia, que aquesto nunca lle venna emente.

[Assim um dia lhe aconteceu que ela fez grande travessura (...) Senhora preciosa, faze que este erro que cometi caia no esquecimento da minha tia, que isso nunca lhe venha à mente.]

(Cantiga 303, v. 25, 32b – 35)

O uso do hiperônimo pode glosar um termo e, assim, atualizar os conhecimentos do

interlocutor, se o elemento antecedente não tiver sido uma pista suficiente para a compreensão.

Nessas glosas, o SN geralmente é introduzido por um demonstrativo e pode vir acompanhado

por um adjetivo de caráter classificatório, como no exemplo abaixo:

(11) “Em meio à retranca generalizada dos investidores, um punhado de empresas não se

deixou impressionar, mantendo suas estratégias, tocando a vida. Acreditando no

Brasil, enfim. Entre elas destacou-se a Nestlé, que cumpria oito décadas de operações

no país naquele ano. Em pleno carnaval, a empresa suíça anunciou a compra, por 500

milhões de reais, da Garoto, seriamente ameaçada por causa de divergências

intransponíveis entre seus controladores”. (Exame, 18/02/04, citado por KOCH, 2005,

p. 266)

Segundo a autora, é preciso atentar para o grau de hiperonímia, ou seja, se o elemento

mobilizado é um hiperônimo imediato ou distante na escala hiperonímica. Com o exemplo

abaixo é possível observar os efeitos de sentido passíveis de serem produzidos:

(12) No canto da cozinha, estava um rato. Ao ver o roedor, que segurava um pedaço de

queijo, Maria deu um grito e pôs-se a correr.

(12’) No canto da cozinha, estava um rato. Ao ver o mamífero (o vertebrado), que

segurava um pedaço de queijo, Maria deu um grito e pôs-se a correr. (ocorrência pouco

provável)

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(12”) No canto da cozinha, estava um rato. Ao ver o animal (o bicho), que segurava um

pedaço de queijo, Maria deu um grito e pôs-se a correr. (KOCH, 2005, p. 267)

Quando a sequência é realizada por meio de hiperonímia/hiponímia, tem-se uma

anáfora especificadora, que permite apresentar esclarecimentos ou especificações a respeito do

objeto de discurso. Em casos como esse é comum o hipônimo vir introduzido por um artigo

indefinido, o que contraria alguns autores para os quais o artigo indefinido introduz informação

nova. O exemplo abaixo ilustra uma anáfora especificadora:

(13) Uma catástrofe ameaça uma das últimas colônias de gorilas da África. Uma epidemia

de Ebola já matou mais de 300 desses grandes macacos no santuário de Lossi, no

noroeste do Congo. Trata-se de uma perda devastadora, pois representa o

desaparecimento de um quarto da população de gorilas da reserva. (KOCH, 2005, p.

267)

2.2 Retomada por nome genérico

A retomada por termo genérico, tais como coisa, pessoa, negócio, indivíduo, é mais

comum na língua falada, mas pode ser encontrada também na língua escrita. Está relacionada

à variedade regional ou social dos interlocutores.

(14) Mistério no zôo

A polícia que investiga as mortes dos animais do Zoológico de São Paulo trabalha com

duas hipóteses: envenenamento criminoso ou transmissão do veneno via ratos. Na

última semana, a polícia apreendeu em uma loja de São Paulo frascos de um veneno

cuja fabricação e venda estão proibidos no Brasil. O material apreendido contém a

mesma substância encontrada nas vísceras dos animais mortos, o fluoracetato de

sódio.(Época, 16/02/04, citado por KOCH, 2005, p. 269)

(15) Ali u todo-los santos non an poder de põer

consello, pono a Virgen de que Deus quiso nacer.

E poren dizer-vos quero dela un miragr’, e sei

que loaredes seu nome (...)

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[Ali onde todos os santos não podem prestar socorro, presta-o a Virgem, de quem Deus quis nascer. E por isso vos quero contar um milagre dela, e sei que louvareis seu nome (...)]

(Cantiga 313, refrão, v. 11 – 12a)

2.3 Retomada por descrições nominais

De acordo com Koch (1999), as descrições nominais definidas são formas linguísticas

formadas minimamente por um determinante definido seguido de um nome. Elas podem

assumir, na língua portuguesa, as seguintes configurações:

Det. + Nome

Det. + Modificador(es) + Nome + Modificador(es)

Det. [Artigo definido]

[Demonstrativo]

Modificador [Adjetivo]

[SP]

[Oração Relativa] (KOCH, 1999, p. 139)

A escolha de uma determinada descrição definida pode trazer ao interlocutor

características ou traços do referente que o produtor quer ressaltar ou enfatizar, auxiliando na

construção do sentido textual.

O uso de uma descrição nominal implica na ativação de características ou traços do

referente que o locutor procura ressaltar. A partir de um background comum, o produtor escolhe

dentre as propriedades ou qualidades que caracterizam o referente. Essas escolhas são feitas em

função de um querer dizer.

A escolha da descrição definida pode ter um caráter avaliativo, ou seja, trazer para o

interlocutor informações sobre as opiniões, crenças e atitudes do produtor. Pode também trazer

ao conhecimento do interlocutor propriedades ou fatos relativos ao referente que o produtor

acredita serem desconhecidos, como no exemplo abaixo:

(16) O prefeito é especialmente exigente para liberar novos empreendimentos imobiliários,

principalmente quando estão localizados na franja da cidade ou em áreas rurais. (...).

“O crescimento urbano tem de ser em direção ao centro, ocupando os vazios urbanos

e aproveitando a infra-estrutura, não na área rural que deve ser preservada”, repete o

urbanista que entrou no PT em 1981 como militante dos movimentos populares

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por moradia. (Quem matou Toninho do PT? In: Caros Amigos 78, setembro de 2003,

p. 27, citado por KOCH, 2005, p. 269)

O emprego de expressões nominais anafóricas opera a recategorização dos objetos de

discurso, que vão sendo reconstruídos a fim de atender os propósitos do produtor.

Koch (2001) destaca o papel da seleção dos qualificadores nas expressões nominais

anafóricas, considerando a sua relevância para a argumentação discursiva. Ela afirma que tais

qualificadores funcionam como marcadores axiológicos positivos e negativos, os quais

assumem uma carga avaliativa no processamento textual-discursivo. O acréscimo desses

qualificadores colabora com a recategorização. Os exemplos abaixo evidenciam esse aspecto

dos qualificadores das expressões nominais.

(17) Vários artistas populares expuseram seus trabalhos na galeria recém-inaugurada. A

excelente seleção feita pelos organizadores da exposição garantiu o sucesso total do

evento.

(18) "Hoje, Laerte desperta ódio e perplexidade. Friamente, confessou 11 assassinatos de

crianças, entre quatro e dez anos. Duas outras mortes foram confessadas 87

informalmente à polícia, até quinta-feira, 27. O "Monstro de Rio Claro", como passou

a ser conhecido, gostava de registrar num caderno o dia e a cidade onde passava. (...)

O andarilho da morte faz questão de dizer que tem profissão: é engraxador, de portas

de estabelecimentos(...)” (Istoé, 02/02/2000, citado por KOCH, 2001, p. 86)

(19) A madre con coita dela foi corrend’ aa eigreja e ao capelan disse (...)

e log’ o demo lle disse: “Ai, crerigo escomu[n]gado,

e como sol falar ousas?

[A mãe com pena dela [da filha] foi correndo até a igreja e disse ao capelão (...) e logo o demo lhe falou: “Ai, clérigo maldito, como sequer ousas falar?”]

(Cantiga 343, v. 20 – 21a, 26 – 27a)

No primeiro exemplo, há o modificador positivo excelente que reforça a carga

avaliativa do referente retomado. Já no segundo exemplo, o modificador da morte permite que

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a orientação argumentativa seja controlada e o objeto de discurso avaliado negativamente. O

mesmo se observa no terceiro exemplo, o capelan é recategorizado negativamente pelo

modificador escomungado.

Nota-se que a função de recategorização pode ser realizada por meio do nome-núcleo

da expressão referencial ou pelo acréscimo de modificadores axiológicos, positivos ou

negativos. Afinal, segundo Koch 2001, p. 87, “a função das expressões referenciais não é

apenas a de referir. Pelo contrário, como multifuncionais que são, elas contribuem para elaborar

o sentido”, uma vez que podem indicar pontos de vista, assinalar direções argumentativas,

recategorizar os objetos presentes na memória discursiva do leitor.

3.4 Anáforas não correferenciais

3.4.1 Anáfora indireta

O termo anáfora indireta é utilizado para se referir aos processos anafóricos que não

mantêm vínculo com a noção de retomada, nem com a noção de correferencialidade. Alguns

traços típicos desse tipo de anáfora são: a ativação de referentes novos como se fossem velhos

e a ancoragem no universo textual.

Para Koch (2001), a anáfora indireta se caracteriza pelo fato de não haver um

antecedente explícito no cotexto, mas sim um elemento de relação, que se pode denominar

âncora. Esse tipo de anáfora é dependente de determinadas expressões da estrutura textual, o

que permite que seus referentes sejam ativados por meio de processos cognitivos que mobilizam

conhecimentos armazenados na memória dos interlocutores.

Essas características, sem dúvida, ampliaram o escopo teórico dos estudos sobre o

processamento anafórico.

A classe das anáforas indiretas representa um desafio teórico e obriga a abandonar a

maioria das noções estreitas de anáfora, impedindo que se continue confinando-a ao

campo dos pronomes e da referência em sentido estrito. Ameaça noções de texto e

coerência hoje no mercado, constituindo um problema central para as teorias formais

da referência, sendo ignorada pelos gerativistas. Por fim, reintroduz no contexto da

gramática aspectos sociocognitivos relevantes que permitem repensar tópicos

gramaticais na interface com a semântica e a pragmática. (MARCUSCHI, 2010, p.

54)

Ainda segundo o autor, a anáfora indireta também promove uma continuidade

referencial. Mesmo que não haja a retomada de um antecedente explícito, persiste um vínculo

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63

na continuidade temática que auxilia no processamento interpretativo do texto. Para Koch

(2001), o fato de a anáfora indireta introduzir um referente novo acarreta a ampliação do modelo

textual, porque cria um novo nódulo informacional e, pela remissão aos mesmos domínios de

referência, garante a continuidade referencial do texto.

Marcuschi (2010) faz uma distinção entre anáfora direta e anáfora indireta. A primeira

retoma referentes introduzidos previamente, estabelecendo uma relação de correferência entre

o elemento anafórico e seu antecedente, ou seja, trata-se de um processo de reativação de

referentes prévios, conforme foi apresentado na seção 3.1 deste capítulo. No entanto, essa visão

da anáfora direta não leva em consideração toda a complexidade da referenciação textual,

porque nem sempre existe uma congruência morfossintática entre o elemento anafórico e o

antecedente.

Nesse trabalho, Marcuschi afirma que a anáfora indireta é “constituída por expressões

nominais definidas, indefinidas e pronomes interpretados referencialmente sem que lhes

corresponda um antecedente (ou subsequente) explícito no texto” (p. 53). Trata-se, portanto, da

ativação de elementos novos e não da reativação de elementos já conhecidos. O autor apresenta

o seguinte exemplo como caso típico de anáfora indireta:

(20) Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. /.../ Quando

amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que o barco

não estava lá.

Nesse texto, ‘o barco’ é uma expressão referencial nova, porém é apresentada como

conhecida. Ela opera ancorada no domínio de “uma ilha”. Nas referenciações indiretas, as

relações são construídas a partir de modelos mentais organizados em nosso conhecimento

partilhado. O mesmo se observa no exemplo abaixo, em que o bic’ e o colo são expressões

novas, apresentadas como conhecidas, e operam ancoradas no item açor:

(21) E quando chegou a Touro ouv’ outro gran desconorto

do açor, que non queria comer e tal come morto

era, e o bic’ ynchado muito e o colo torto.

[E quando [o cavaleiro] chegou em Touro, teve outra grande tristeza por causa do açor, que não queria comer e estava como morto, com o bico muito inchado e o corpo torto.]

(Cantiga 352, v. 35 – 37)

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64

O seguinte esquema, de Kleiber, Schnedecker e Ujma (1994, p.30), representa a

anáfora indireta:

SNa SNb

evoca evoca

especifica especifica

Ea Eb

Cumpre lembrar que SNa é o SN na função antecedente, e SNb é o SN ou pronome

anafórico. Esse esquema demonstra que cada SN evoca e especifica o próprio referente. A

relação referencial entre Ea e Eb não é aleatória mas sim fundamentada cognitiva e

discursivamente por alguma espécie de associação (MARCUSCHI, 2010, p. 57).

A seguinte definição de anáfora indireta, sugerida por Schwarz (2000), é adotada por

Marcuschi:

no caso da Anáfora Indireta trata-se de expressões definidas [e expressões indefinidas

e pronominais] que se acham na dependência interpretativa em relação a determinadas

expressões ou informações constantes da estrutura textual precedente [ou

subsequente] e que têm duas funções referenciais textuais: a introdução de novos

referentes (até aí não nomeados explicitamente) e a continuação da relação referencial

global. (MARCUSCHI 2010, p.59)

Marcuschi (2010) ressalta que é importante levar em consideração os processos

cognitivos e as estratégias inferenciais presentes na atividade de textualização. Tomemos o

seguinte exemplo de Schwarz (2000, citado por Marcuschi, 2010, p. 59):

(22) Ontem fomos a um restaurante. O garçom foi muito deselegante e arrogante.

O autor demonstra que o SN o garçom ativa um referente novo, ancorando-o em um

universo textual precedente, e de certa maneira reativa o SN um restaurante. Com isso, ele

afirma que a anáfora indireta “é uma espécie de ação remática e temática simultaneamente, uma

vez que traz a informação nova e a velha”.

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Assim, o autor, baseado em Schwarz, apresenta as seguintes características dos

processos de referenciação indireta (AI):

a a inexistência de uma expressão antecedente ou subsequente explícita para

retomada, e presença de uma âncora, isto é, uma expressão ou contexto

semântico base decisivo para a interpretação da AI;

b a ausência de relação de co-referência entre a âncora e a AI, dando-se apenas uma

estreita relação conceitual;

c a interpretação da AI se dá como a construção de um novo referente (ou conteúdo

conceitual) e não como uma busca ou reativação de referentes prévios por parte

do receptor;

d a realização da AI se dá normalmente por elementos não pronominais, sendo

menos comum sua realização pronominal. (MARCUSCHI, 2010, p.60)

Para Marcuschi, as anáforas indiretas evidenciam três aspectos: a não

correferencialidade da anáfora, a não-vinculação da anáfora com a noção de retomada e a

introdução de um referente novo.

As anáforas indiretas não podem ser consideradas como um caso de descontinuidade

textual ou de falta de coerência, uma vez que entre esse tipo de anáfora e o texto precedente há

um vínculo coerente, embora não haja uma relação explícita com um antecedente. Nesse tipo

de anáfora ocorre uma estratégia de ativação de referentes novos, e não uma reativação de

referentes já conhecidos, como o que ocorre nas anáforas diretas.

Como dito anteriormente, o estudo da anáfora indireta corresponde a um desafio

teórico nos estudos de referenciação. Tal dificuldade se deve, em parte, à imprecisão na tarefa

de determinar quais os tipos ou subtipos válidos para essa forma de processamento anafórico.

Sendo assim, servirá aqui a seguinte tipologia para as anáforas indiretas (AI), apresentada por

Marcuschi (2010):

1 AI baseadas em papéis temáticos dos verbos

Nesse tipo de associação indireta os papéis temáticos dos verbos servem como âncora

do processamento anafórico. Ou melhor, esse tipo de associação funda-se diretamente na

relação semântica entre o verbo e seus argumentos. Com o exemplo abaixo, o autor demonstra

que o SN as chaves preenche o papel temático [papel instrumental] do verbo fechar,

completando o que ficou implícito com o uso do verbo.

(23) Eu queria fechar a porta quando Moretti saltou dos arbustos. Com o susto deixei cair

as chaves.

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2 AI baseadas em relações semânticas inscritas nos SNs definidos

Marcuschi afirma que as anáforas indiretas relativas à relação parte-todo são as mais

frequentes. Nesse tipo de anáfora o que está em jogo são as relações meronímicas, como

também as hiponímias, as hiperonímias e os campos lexicais. Como exemplificado abaixo:

(24) Não compre a xícara amarela. O cabo está quebrado. [parte integrante]

(25) Compre a panela cinza. O aço dura muito mais. [material]

3 AI baseadas em esquemas cognitivos e modelos mentais

Esse tipo de anáfora indireta está ancorado em representações conceituais ou relações

cognitivas de modelos mentais, como os frames, cenários, esquemas, scripts, etc., que

representam o conhecimento de mundo armazenado na memória. Ainda que não estejam

ligados a itens lexicais específicos, tais modelos podem ser ativados pelo léxico, servindo como

um mecanismo de ampliação de conhecimentos semânticos. Como se exemplifica abaixo:

(26) Nos últimos dias de agosto... a menina Rita Seidel acorda num minúsculo quarto de

hospital... A enfermeira chega até a cama...

O SN a enfermeira está ancorado no cotexto precedente, principalmente em quarto de

hospital, que ativa na memória elementos possíveis de ativação, entre eles a enfermeira.

4 AI baseadas em inferências ancoradas no modelo do mundo textual

Essas anáforas indiretas são fundadas em conhecimentos retrabalhados por estratégias

inferenciais e pelo conjunto de conhecimentos textuais mobilizados. Como não estão ligadas a

relações semânticas inscritas no léxico ou a modelos mentais estabilizados, por vezes essas

associações exigem um esforço cognitivo maior em seu processamento.

5 AI baseadas em elementos textuais ativados por nominalizações

Trata-se de nominalizações, que em geral têm uma relação com um verbo ou são

nominalizações de porções inteiras de um texto. Normalmente elas possuem a estrutura de um

demonstrativo + SN e geram uma descrição definida para referir um fato ou estado de coisas.

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6 AI esquemáticas realizadas por pronomes introdutores de referentes

Embora menos frequentes, as anáforas indiretas podem ser realizadas através de

pronomes sem antecedente explícito que se ancoram em alguma porção anterior do texto. Esses

pronomes são ativadores de novos referentes com base em elementos discursivos previamente

apresentados, como em:

(27) A: Maria pretende casar no final do ano

B: e o que é que ele faz?

Nesse exemplo, apesar de se enquadrar no tipo 1 [papel temático = casar com alguém],

a anáfora não é realizada por um SN definido, mas por um pronome de terceira pessoa.

Conforme estudos de Koch (2002, 2004) e de Marcuschi (2010), as anáforas indiretas

podem ser constituídas com base em modelos cognitivos, inferências ancoradas no cotexto ou

em relações semânticas.

De acordo com Cavalcante (2002), as anáforas indiretas talvez possam ser agrupadas

em dois grandes grupos: a) as anáforas associativas, nas quais o vínculo entre o anafórico e o

referente é firmado por uma âncora explícita no cotexto; b) anáforas não associativas, em que

o vínculo só pode ser construído implicitamente, uma vez que não existe uma fonte contextual

pontualmente localizável. A autora assume que a informação prévia, necessária à interpretação

de um anafórico, pode estar saliente, em foco, ou no cotexto, ou no conhecimento partilhado,

ou na situação comunicativa. Para haver anáfora indireta é preciso que a informação comum

presente na memória dos interlocutores estabeleça as inferências necessárias.

A autora afirma que as anáforas indiretas podem remeter a três tipos de fonte (ou

âncora): a) uma pontualmente identificável no cotexto; b) outra não pontualmente identificável

no cotexto, mas recuperável pelos conhecimentos partilhados entre os interlocutores; c) e outra

também não identificável, mas ancorada em elementos do cotexto, que ajudam a construir a

interpretação desejada.

Pode-se dizer que toda anáfora associativa é indireta, mas nem toda anáfora indireta é

associativa. A anáfora indireta é, pois, um fenômeno mais abrangente que a anáfora associativa.

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3.4.2 Anáfora Associativa

As anáforas associativas são bastante numerosas nos mais variados tipos de texto, tanto

em língua escrita como oral. Elas permitem apresentar como conhecidos conteúdos que não

foram mencionados anteriormente no texto, mas que podem ser associados a outros conteúdos

presentes no texto.

Assim, segundo Zamponi (2003), as anáforas associativas apresentam as seguintes

propriedades: fazem referência a um objeto que, apesar de apresentado como conhecido, é novo,

pois não foi apresentado explicitamente no contexto anterior; só podem ser interpretadas

referencialmente com base em dados introduzidos anteriormente no universo discursivo, o que

justifica o termo anáfora. Além disso, a relação existente entre o elemento anafórico e a âncora,

que lhe serve de suporte, se dá com base em conhecimentos semânticos e conhecimentos

armazenados na memória.

Para a autora, as anáforas associativas constituem um subgrupo das anáforas indiretas.

No entanto, como afirma Marcuschi (2010, p. 64),

certamente, existe uma relação associativa nas relações de modelos mentais, o que

permite dizer que a maioria das AI fundam-se em associações de algum tipo. Também

podemos lembrar que não é fácil estabelecer distinções claras e rígidas entre

conhecimentos conceituais armazenados na memória e conhecimentos semânticos

lexicalizados, pois essas fronteiras são tênues e não há um sistema que se dê

naturalmente.

Isso mostra a dificuldade em se encontrar o que diferencia substancialmente a anáfora

associativa no conjunto das anáforas indiretas.

A anáfora associativa se caracteriza por aspectos particulares, sejam eles de natureza

semântica ou de natureza conceitual (baseados em conhecimento de mundo e em inferências).

De acordo com Zamponi (2003, p. 195),

a resolução da anáfora associativa invocaria de maneira especial as representações

cognitivas permanentes, estocadas na memória de longo prazo, que (...) podem ter um

papel mais preponderante nesse tipo de resolução, contribuindo de maneira especial

para a interpretação anafórica.

Nos estudos sobre anáfora associativa, é possível encontrar duas teses: uma que propõe

uma abordagem cognitivo-discursiva, representada por Charolles, de acordo com a qual a

associação é estabelecida pelo discurso; e outra que afirma que a relação associativa é de

natureza léxico-estereotípica, representada por Kleiber. Nos itens subsequentes, apresento essas

duas teses.

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3.4.2.1 Relação cognitivo-discursiva

O principal defensor da existência de uma relação cognitivo-discursiva da anáfora

associativa é Michel Charolles, que afirma que “a anáfora associativa é antes de tudo um

fenômeno de...discurso” (1994, p. 70). Para o autor a anáfora associativa é caracterizada pela

presença de SNs definidos que estabelecem relação total ou parcial com um SN precedente,

conforme exemplificado abaixo:

(28) Uma carta era esperada por Sherlock Holmes. O envelope estava rasgado, o selo

estava pela metade e o carimbo postal indicava que ela havia sido enviada no dia

anterior.2

(29) E tan bon maestre era o pintor que a pintou,

que fezo que semellasse que quando a saudou

o angeo, como logo atan toste s’ enprennou;

e poren lle fez o ventre mui creçudo parecer.

[E tão bom mestre era o pintor que a pintou, que fez que parecesse que quando a saudou o anjo, logo imediatamente ela se engravidou, por isso lhe fez o ventre parecer crescido.]

(Cantiga 306, v. 25-28)

No exemplo (28), os SNs definidos são facilmente interpretados, uma vez que a

representação que nós temos do objeto ‘carta’ inclui os componentes: envelope, selo, carimbo

postal, etc. Da mesma forma o ventre, no exemplo (29), é interpretado com base em

informações anteriores. Como essas representações são normalmente compartilhadas, o leitor

ou ouvinte não têm dificuldades em interpretar qual aspecto do contexto particular está

denotado pelo SN definido. Porém, observe-se este exemplo:

(30) Uma carta era esperada por Sherlock Holmes. O garçom deve tê-la apanhado logo

de manhã.3

2 A letter was awaiting Sherlock Holmes. The envelope was crumbled, the stamp was half off and the postmark

indicated that it had been sent the day before. (CHAROLLES, 1999, p.312) 3 A letter was awaiting Sherlock Holmes. The waiter must have taken it up early in the morning. (CHAROLLES,

1999, p. 314)

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Nele será inferido, por força do princípio da relevância, segundo o qual o leitor tende

a dar mais peso à inferência que fornece relação mais informativa, que, no mundo instanciado,

Sherlock Holmes esteja em um hotel. O uso de uma anáfora associativa assim só é válido no

mundo evocado pelo texto.

Zamponi (2003) não acredita existir anáfora associativa nesse exemplo, já que, mesmo

que haja a possibilidade de se inferir que o personagem esteja em um hotel, essa inferência não

está apoiada no SN a carta; ela é desencadeada pelo SN o garçom, que poderá instanciar um

mundo em que existe um hotel. Porém, não se pode negar que foi criado um universo discursivo

em que tais entidades podem estar associadas.

Agora, veja-se o exemplo abaixo:

(31) *Uma carta era esperada por Sherlock Holmes. O prefácio estava desalinhado.4

O elemento ‘prefácio’ não é um componente usual de ‘carta’, assim como ‘garçom’,

do exemplo (29), é um item estranho no script de correio. O contrário do que ocorre com

‘envelope’, ‘selo’ e ‘carimbo postal’ do exemplo (28) acima transcrito. A relação associativa

parece corresponder ao fenômeno de associações que requer ativamentos mentais dentro de

uma rede conceitual estabelecida. Quando se reduz o encadeamento a um conjunto de duas

frases, a relação associativa não pode ser justificada a não ser por conhecimentos-padrão

veiculados pelo estereótipo, mas quando se consideram empregos em discurso essa tendência

pode ser modificada. Não se trata de negar o papel dos estereótipos, mas de não limitar a anáfora

associativa a uma generalização redutora, que não dá conta de muitos fenômenos autorizados

pelo discurso.

Por outro lado, é preciso questionar se essa validade contextual não torna as relações

associativas incontroláveis. Charolles reconhece que o discurso não tem o poder de autorizar

qualquer associação. Mas, de qualquer maneira, o discurso atua decisivamente na

aprovação/interdição de certas relações, pois em um texto nem sempre há uma representação

pré-construída de uma relação de ingrediência que torne possível o uso de uma anáfora

associativa.

A anáfora associativa pode ativar entidades com base em relações pré-inscritas no

elemento antecedente, em relações como continente/conteúdo, objeto/matéria, em relações

funcionais e ainda a partir de cenários. A informação requerida na interpretação desse tipo de

4 ? A letter was awaiting Sherlock Holmes. The preface was slipshod. (CHAROLLES, 1999, p. 314)

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anáfora é basicamente de natureza enciclopédica e as relações estabelecidas, ao contrário de

constituírem um conjunto fixo, são constantemente atualizadas à medida que o interlocutor é

levado a estabelecer relações implícitas, combinando as instruções interpretativas fornecidas

pelo elemento anafórico com as pistas dadas pelo contexto e pelo conhecimento prévio.

Conforme Charolles (1999), o uso anafórico de determinantes definidos nas anáforas

associativas pode ser dividido em duas classes:

(i) aqueles que realizam correferência entre o SN e o SN definido seguinte, como em:

(32) Uma carta era esperada por Sherlock Holmes. A mensagem deve ter sido postada no

dia anterior.5

(ii) o uso associativo, como no exemplo (28) acima transcrito.

No uso correferencial, a inferência, que torna possível estabelecer uma ligação entre

um SN definido e um SN prévio, é baseada na relação que pode ser parafraseada como: ‘se uma

entidade é uma instância específica de um N1, então é necessariamente uma instância específica

de um N2’. Uma característica necessária dessa relação pode ser garantida pelo conhecimento

de que uma coisa que é chamada de N1 também pode ser chamada de N2 (dizer ‘uma mensagem’

é outra maneira de dizer ‘uma carta’)

O uso associativo do SN definido difere em muitos aspectos do SN correferencial,

embora o princípio de interpretação seja basicamente o mesmo. A diferença entre anáfora

correferencial e SN anafórico associativo é que a entidade introduzida pelo SN associativo é

nova, já que ela não foi mencionada anteriormente e, logo, não faz parte do rol de elementos já

focalizados ou introduzidos no discurso. No caso do uso correferencial, por outro lado, há

referência a uma entidade que já foi introduzida anteriormente.

Segundo o autor, os SNs definidos associativos são um tipo muito produtivo de

anáfora. Seu uso se instancia na existência de uma relação inferencial geral e estereotípica entre

uma entidade referida pelo SN definido e uma entidade previamente introduzida no modelo

mental. O falante, pressupondo que o interlocutor tem acesso a essa relação, introduz uma

entidade nova como se ela já fosse conhecida e presume que o receptor não terá dificuldade em

5 A letter was waiting for Sherlock Holmes. The missive must have been posted the day before. (CHAROLLES,

1999, p. 313)

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reconhecê-la. A interpretação de uma anáfora associativa não é problemática quando a relação

inferencial é perfeitamente estereotípica.

Pode-se, então, afirmar que o discurso impõe os elementos necessários que levam o

leitor a encontrar a relação apropriada. Dessa forma, a posição adotada por Charolles difere da

de Kleiber, já que aquele prioriza o discurso e a cognição no estabelecimento e resolução da

anáfora. Apesar de não negar a importância do conhecimento léxico-estereotípico, Charolles

postula que o referente é recuperado mais por razões de interpretação pertinente do que por

razões semânticas.

3.4.2.2 Relação léxico-estereotípica

Kleiber (2001) cumpre o objetivo de elaborar critérios que possibilitem delimitar as

anáforas associativas a partir de uma definição, segundo o próprio autor, estreita. Para ele, as

anáforas associativas são uma espécie de gênero mais amplo que as anáforas indiretas; o que as

diferencia são critérios formais e semânticos. O autor apresenta quatro critérios que distinguem

as anáforas associativas: introdução de um referente novo; apresentação prévia de outro

referente; o referente novo é apresentado como conhecido; as construções linguísticas possuem

papel fundamental no processo como um todo. Esse tipo de anáfora é, então, uma espécie de

referência textual indireta, pela qual é introduzido um referente novo.

Kleiber apresenta como paradigmático o seguinte exemplo de anáfora associativa:

(33) Ele se abrigou sob uma velha tília. O tronco estava todo rachado.6

Esse exemplo se torna paradigmático porque o nexo estabelecido entre os referentes

(uma velha tília/ o tronco) é realizado de maneira genérica, ou seja, sabemos que o tronco de

que se fala é de uma velha tília, não porque a conhecemos, mas porque sabemos que toda tília

tem um tronco.

Para o autor, a anáfora associativa deixa por conta do interlocutor o preenchimento de

alguns elementos necessários à interpretação. Dessa forma, esse tipo de anáfora é inferencial,

mas não como outros tipos. Diferentemente das anáforas indiretas, que podem mobilizar

conhecimentos variados, as anáforas associativas mobilizam inferências de natureza léxico-

estereotípica. Exemplos desse tipo também foram encontrados no corpus pesquisado:

6 Il s’ abrita sous un vieux tilleul. Le tronc était tout craquelé. (KLEIBER, 2001, p. 92)

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(34) A madre con coita dela foi corrend’ aa eigreja

e ao capelan disse: “Por Deus mercee vos seja

que acorrades mia fila que con o demo peleja”

[A mãe com pena dela [da filha] foi correndo até a igreja e disse ao capelão: “Por Deus tenha misericórdia e socorreis minha filha que luta contra o demo”]

(Cantiga 343, v. 20-23)

Segundo a posição léxico-estereotípica defendida pelo autor, a apresentação do

antecedente ativa no interlocutor um conhecimento estereotípico do referente e de suas

propriedades, ou seja, a ligação dos dois elementos é pré-estabelecida no léxico e “rola sobre

estereótipos”. Mesmo fazendo menção a processos inferenciais, Kleiber não considera a

dimensão cognitiva e deixa de fora o sujeito actante do discurso, desconsiderando as dimensões

discursiva, pragmática e interacional. Isso se deve ao fato de o autor analisar apenas exemplos

construídos. Essa escolha, criticada por muitos, busca manter o fio semântico e neutralizar o

máximo possível os elementos contextuais.

Nessa relação léxico-estereotípica, a “parte” corresponde ao elemento novo e o “todo”,

ao referente. O elemento expresso pelo antecedente engloba outras entidades, entre elas, a

entidade denotada pela expressão associativa. Esse englobamento possibilita uma definição de

anáfora associativa, concebida como a relação da expressão anafórica, elemento englobado,

com o elemento antecedente, englobante.

Zamponi (2003) apresenta o seguinte exemplo com o propósito de questionar esse

traço definitório e restritivo da anáfora associativa:

(35) João morreu. A viúva estava inconsolável.

Segundo a autora, a menos que se considere esse exemplo como inaceitável, “é difícil

considerar a viúva como elemento englobado de morreu” (p. 117), uma vez que é apenas

provável que a morte de João ocasione a viuvez de alguém mesmo sendo certo de que em viúva

seja encontrado parte do significado de morrer. Para a autora, se a viúva é o elemento anafórico,

elemento englobado, pode-se pensar que a anáfora se dá com base em uma inferência que só

está autorizada pelo elemento englobante, mas no significado de morrer não se tem

obrigatoriamente o de viúva. Então, pode-se pensar que o discurso permitirá a interpretação

anafórica, o que contraria a tese léxico-estereotípica de Kleiber.

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Observe-se os exemplos abaixo:

(36) Eles distinguiram primeiro um telhado; depois, aproximaram-se da casa.

(37) Os arqueólogos descobriram primeiro um crânio. O esqueleto inteiro só foi

recuperado no dia seguinte. (ZAMPONI, 2003, p. 117)

Zamponi levanta dúvidas sobre a orientação da anáfora associativa ser sempre do

“todo” para a “parte”, como sustenta Kleiber. Ela afirma que nada impede a interpretação dos

exemplos acima e conclui que, em termos cognitivos, a anáfora associativa “rolaria” nos dois

sentidos.

Para Kleiber não há anáfora associativa quando o termo antecedente representa a

“parte, e o anafórico o “todo”. Para mostrar a impossibilidade dessa orientação, ele apresenta o

seguinte exemplo:

(38) Paulo adotou um gato. O animal.../Esse animal...7

(39) *Paulo adotou um animal. O gato/Esse gato... 8

No exemplo (38) o anafórico é mais informativo que o antecedente, o que, segundo o

autor, afeta a anáfora como fenômeno linguístico. Em outras palavras, é preciso que o referente

esteja, de algum modo, presente no contexto, de modo que a atividade referencial exigida pela

expressão anafórica possa ser inferida. Nesse exemplo isso não ocorre, já que de ‘animal’ não

se pode inferir ‘gato’.

Para Zamponi (2003), em termos de compreensão, a ordem da segunda sequência não

deve ser interditada, porque não há impedimentos à interpretação de um encadeamento

hiper/hiponímico. O que pode haver é uma “contravenção informativa” decorrente da ausência

de uma ligação inferencial que corresponda à proposição ‘um animal → um gato’. No entanto,

é possível hipotetizar uma entidade, dentro de um risco calculado, que pode ou não ser

confirmada posteriormente.

Kleiber (1999) procura examinar como os relacionamentos associativos são

estabelecidos e identificar as restrições que operam nesses relacionamentos. Ele sugere, então,

7 Paul a adopté un chat. L’ animal.../Cet animal... 8 *Paul a adopté un animal. Le chat.../Ce chat... (Kleiber, 2001, p. 190)

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dois princípios determinantes na relação entre o antecedente e a expressão anafórica: a condição

de alienação e o princípio da congruência ontológica.

O autor define a condição de alienação como: o referente de uma anáfora associativa

deve ser apresentado ou dado como alienado em relação ao referente do antecedente. Em outras

palavras, a maioria das entidades pode ser definida ou representada em relação a seus

componentes, ou melhor, elas são apreendidas como “todo” mesmo se pertencentes a conjuntos

maiores nos quais funcionam como ingredientes. A entidade é compreendida como um

indivíduo, ainda que não seja materialmente separada do “todo”. Kleiber apresenta a seguinte

consequência dessa condição: se o indivíduo referido pela expressão anafórica não puder

aparecer como autônomo na sua relação com a entidade evocada pela expressão antecedente,

então a sequência é mal formada.

Quando se trata de entidade que possui existência autônoma, ou seja, que não implica

a existência de outra entidade, como por exemplo, igreja, existe a chamada independência

ontológica. Essas entidades possuem a priori a condição de alienação e, por isso, podem

aparecer em anáforas associativas sem criarem dificuldades. Por outro lado, quando se trata de

entidades ontologicamente dependentes de outras, a anáfora associativa pode se tornar

problemática. Kleiber identifica três tipos dessas entidades: derivados de adjetivos e verbos,

que se referem a propriedades e eventos, como “brancura”, “explosão”; nomes relacionais,

como “marido”, “autor”, “pai”; nomes que ocorrem como componentes de outras entidades

numa relação todo-parte, como “telhado”, “tronco”.

Parece surgir um problema paradoxal em relação à anáfora associativa: de um lado, a

dependência ontológica torna as entidades elegíveis a priori para formar uma anáfora

associativa, já que as entidades a que estão subordinadas parecem ser antecedentes apropriados.

Por outro lado, a condição de alienação demanda autonomia das entidades em relação ao

indivíduo de que elas dependem ontologicamente.

Dos três tipos de entidades dependentes apresentadas, os nomes relacionais, segundo

o autor, possuem uma dependência ontológica parcial, visto que eles são dependentes em alguns

aspectos (ou funções), mas já em outras propriedades eles são autônomos. Por exemplo, um

“pai”, um “autor” ou um “habitante” não são exclusivamente um pai, um autor, um habitante,

eles também pertencem à categoria de humano, ontologicamente independente. Assim, essa

dependência parcial dos nomes relacionais permite que eles preencham a priori a condição de

alienação necessária às anáforas associativas.

Já as outras entidades possuem dependência ontológica mais forte do que os nomes

relacionais, de tal forma que a eliminação da entidade correspondente ao “todo” elimina a

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entidade referente às partes, propriedades e eventos. Os componentes de um objeto podem ser

diferenciados se forem considerados os traços referenciais especificadores dessas entidades.

Esses traços são a fonte das propriedades que as entidades podem possuir, por exemplo, os

referentes de um nome concreto são feitos de matéria e forma. As entidades que indicam

propriedades e eventos não apresentam esses traços.

Kleiber, então, apresenta o segundo princípio determinante na relação entre

antecedente e expressão anafórica: a congruência ontológica. De acordo com esse princípio, o

processo de alienação requerido pela anáfora associativa pode ocorrer apenas se o elemento

subordinado for do mesmo tipo ontológico do antecedente. Esse princípio tem uma

consequência ontológica imediata na definição da noção de parte: somente elementos do mesmo

tipo ontológico que o próprio objeto podem ser considerados como “parte” desse objeto.

Conforme Kleiber (2001), a interação hierárquica dessas duas restrições permite dar conta de

dados, por vezes intrigantes, frequentes na literatura da anáfora associativa.

Com esses dois princípios, Kleiber considera inaceitáveis exemplos como:

(40) *Paulo gosta do seu carro. O conforto é extraordinário.9

(41) *Havia uma mala sobre a cama. O couro era vermelho.10

Neles ocorrem as “incompatibilidades” ontológicas seguintes: em (40) a propriedade

(conforto) não tem matéria nem forma, ao contrário do antecedente carro; em (41), o elemento

anafórico couro possui os traços forma/matéria, mas não possui intencionalidade. Nesses casos,

seria necessária a presença de um pronome possessivo para marcar a dependência ontológica e

tornar as sequências aceitáveis. Vale ressaltar que essa é uma restrição da língua francesa. Na

língua portuguesa essas construções são possíveis.

Veja-se o exemplo:

(42) Paulo foi para os Estados Unidos de navio. O embarque foi difícil, mas ele se divertiu

com a travessia.

Nele existe congruência ontológica: embarque e travessia são do mesmo tipo

ontológico da entidade “navegar para os Estados Unidos”.

9 Paul aime sa voiture. Le confort est extraordinaire. (KLEIBER, 2001, p. 229) 10 Il y avait une valise sur le lit, le cuir était rouge. (KLEIBER, 2001, p. 237)

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Para o autor, esses dois princípios são fundamentais na relação da anáfora associativa

de modo que ela pode não ser instalada se o princípio da condição de alienação – no interior do

qual o princípio da congruência ontológica é validado – não for satisfeito. Com essa condição,

abrem-se perspectivas para o estudo dos diferentes tipos de anáfora associativa, privilegiando

a dimensão semântica dos componentes.

Kleiber (2001) apresenta quatro tipos de anáforas associativas, a partir de distinções

de natureza ontológica e de aplicação de testes. O autor visa explicitar os funcionamentos

lexicais e gramaticais de cada um. O autor pretende organizar uma tipologia das anáforas

associativas fundamentadas sobre o tipo de relação semântica. As subclasses apresentadas pelo

autor são as seguintes: meronímicas, locativas, actanciais e funcionais.

No presente trabalho, serão apenas apresentadas algumas amostras e algumas teses

essenciais sem, entretanto, reconstituir detalhes da sua análise.

A) Anáforas associativas meronímicas

Conforme Kleiber, sempre que há a relação meronímica o referente de SN2 é

concebido como “parte” do referente SN1, o qual é entendido como “todo”. O antecedente, que

corresponde ao “todo”, aparece como indivíduo autônomo porque não é dependente das

“partes”, que por sua vez, são ontologicamente dependentes, é o que se verifica entre tília e

tronco, na sequência (33) aqui citada.

As anáforas meronímicas repousam sobre uma relação lexicalmente presente na

própria parte, devido a um estatuto que tem como critério identificatório a frase genérica: um

X é uma parte de um Y. Isso permite delimitar a extensão das anáforas associativas

meronímicas, que se apoiam sobre o estatuto semântico do nome anafórico. Assim, o traço

definidor desse tipo de anáfora reside no estatuto semântico do anafórico, que deve ser

semanticamente marcado como uma ‘parte-de’.

B) Anáforas associativas locativas

A relação que se estabelece entre cidadezinha e igreja no seguinte exemplo,

apresentado pelo autor, é contrária à que ocorre nas anáforas meronímicas, uma vez que o

anafórico das anáforas locativas não é ontologicamente dependente de seu antecedente:

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(43) Chegamos a uma cidadezinha. A igreja ficava no alto da colina.11

As duas entidades ‘cidadezinha’ e ‘igreja’ são intrinsecamente autônomas. Na relação

dessas entidades não se pode aplicar o critério ‘um X é parte de um Y’. Assim, torna-se

necessário identificar qual a relação que une ‘igreja’ e ‘cidadezinha’ e que está presente no

estabelecimento da anáfora associativa.

Kleiber, então, adota um critério identificatório para as anáforas associativas locativas.

Assim há relação locativa entre X e Y se: (i) os elementos X e Y podem figurar em uma estrutura

genérica. Em Y há (geralmente) um X; (ii) os elementos X e Y não podem ser inseridos na

estrutura genérica. Um X é uma parte de Y.

Dessa forma, a relação que liga ‘igreja’ (X) a ‘cidadezinha’ (Y) é que a segunda

entidade serve de lugar estereotípico para a primeira. Trata-se de uma relação semântica, visto

que essa informação estereotípica de lugar funcional é uma informação preestabelecida.

C) Anáforas associativas actanciais

As anáforas associativas actanciais explicam relações que se estabelecem em

sequências como:

(44) Uma velha senhora foi assassinada. O assassino não foi encontrado.12

A relação anafórica exemplificada acima se estabelece entre um predicado e um de

seus argumentos ou actantes. As anáforas associativas actanciais podem ser definidas como

expressões cujo referente corresponde a um dos argumentos ou actantes de um predicado já

introduzido anteriormente. Assim esse tipo de anáfora satura um lugar argumental do predicado

precedente.

Para Kleiber, o N anafórico desse tipo de anáfora está submetido a uma restrição

semântica: ele precisa estar marcado, morfologicamente ou não, como actante do predicado

antecedente.

11 Nous entrâmes dans um village. L’église était située sur une butte. (KLEIBER, 2001, p. 283) 12 Une vielle dame a été assassinée. Le meurtier n’a pas été retrouvé. (KLEIBER, 2001, p. 318)

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D) Anáforas associativas funcionais

As anáforas associativas funcionais estão próximas das anáforas associativas

meronímicas e locativas e distantes das actancais, pois, como as meronímicas e locativas,

respondem a uma estrutura predicativa de dois argumentos; ao contrário das actanciais, que

respondem à estrutura predicado-argumento.

As anáforas associativas funcionais possuem um N anafórico que é, semanticamente

falando, um N relacional, referencialmente não-autônomo. Elas se caracterizam por estabelecer

uma relação em que o SN anafórico comporta um N cujo conteúdo semântico indica que se

trata de um elemento que preenche uma função ou papel característico num conjunto, como

exemplificado em:

(45) Entramos numa cidadezinha e pedimos para ver o prefeito.13

As anáforas funcionais podem preencher um estatuto que tem como critério

identificatório a frase genérica: X exerce uma função ou um papel em Y. Assim, a relação

funcional apresentada no exemplo acima poderia figurar na seguinte estrutura: x é prefeito de

y, a cidadezinha.

Kleiber conclui que os tipos de anáforas associativas não se esgotam na tipologia por

ele apresentada. Ao contrário, insiste em afirmar que a anáfora associativa continua a ser um

problema aberto. Ao privilegiar o léxico e os traços semânticos sobre o discurso, o autor deixa

de fora dos limites das anáforas associativas outros tipos de associações e marca como

inaceitáveis construções comuns em textos naturais.

Embora concorde com Kleiber quando ele afirma que a anáfora associativa se assenta

numa relação semântica, creio que postular a exclusividade da natureza léxico-semântica para

explicar tais anáforas é bastante redutor.

Como já exposto anteriormente, considero que o discurso é construído pelos

interlocutores na atividade verbal. Para isso, estão em jogo saberes lexicais, conhecimentos

enciclopédicos e culturais que compõem a base comum necessária para o sucesso da

referenciação e criam condições para a resolução dos diversos tipos de anáfora.

13 Nous entrâmes dans un village et demandâmes à voir le maire. (KLEIBER, 2001, p. 345)

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3.5 Encapsulamento anafórico

Para Conte (1996), o encapsulamento anafórico é um recurso coesivo importante, mas

que não tem recebido a devida atenção na discussão dos processos anafóricos. A autora assim

conceitua o encapsulamento: “é um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal funciona

como uma paráfrase resumidora para uma porção precedente do texto” (CONTE 1996, p.178).

Ela afirma que os sintagmas nominais anafóricos não apenas veiculam uma paráfrase resumitiva

de uma porção anterior do texto, como também apresentam informação nova, uma vez que o

próprio item lexical é novo na medida em que não apareceu no texto precedente. Além disso

um novo referente é apresentado e se torna argumento de predicações futuras. Assim, “o

encapsulamento anafórico se torna um procedimento muito interessante de introdução de

referentes no texto” (CONTE 1996, p.183).

A autora apresenta quatro questões que são discutidas em sequência:

(i) Como o encapsulamento pode ser visto em termos de eixo ‘velho-novo’?

(ii) Por que os nomes anafóricos encapsuladores preferem os determinantes

demonstrativos ao artigo definido?

(iii) Em que sentido os encapsuladores não são apenas recursos coesivos, mas também

um princípio de organização no discurso?

(iv) Que tipos de encapsulamento anafórico podem ser distinguidos? (p. 182)

Conte argumenta que o que acontece no encapsulamento anafórico vai além da

apresentação de uma paráfrase resumitiva de um trecho precedente do texto. O encapsulamento

pode ser considerado novo, porque o item lexical não ocorreu anteriormente no texto e, mais

importante que isso, é criado um novo referente discursivo que se torna argumento para

predicações futuras. A anáfora encapsuladora torna-se um “novo referente discursivo” sob base

de uma informação velha e, se o núcleo for axiológico, será um forte meio de manipulação e

manifestação da opinião do autor.

A autora defende que o fato de o encapsulamento anafórico estabelecer um novo

referente favorece a recorrência de determinantes demonstrativos em vez de artigos definidos.

Apesar de o artigo definido não estar excluído dos encapsulamentos, a preferência pelo

demonstrativo parece se justificar pelo intrínseco poder dêitico desse item, que põe em foco o

objeto textual novo para o leitor.

O encapsulamento anafórico é um recurso coesivo que, ao funcionar como paráfrase

de um trecho do texto, dá continuidade a ele a partir da categorização do objeto de discurso.

Além disso, no encapsulamento anafórico, a expressão referencial opera retroativamente,

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funcionando como um princípio organizador na estrutura discursiva. Assim, ele funciona como

recurso coesivo e como princípio organizador, podendo também ser um meio de manipulação

do leitor.

Segundo Koch (2010), o uso de encapsulamentos é bastante comum quando se trata

de remissão textual, uma vez que eles sumarizam sob um determinado rótulo segmentos

precedentes do cotexto. Os encapsulamentos são casos de “anáforas complexas”, que não

nomeiam um referente específico, mas sim referentes textuais genéricos. Para Koch, o SN

encapsulador desempenha funções textuais importantes: não só encapsula uma parte do cotexto

que o precede, como também cria um novo referente textual para os enunciados subsequentes.

Além disso, ele possibilita a ativação, na memória do interlocutor, de algo apresentado no

cotexto e opera uma refocalização da informação contextual. Assim essas expressões

encapsuladoras veiculam tanto informação dada ou inferível quanto informação nova, ou seja,

“trata-se, pois, de formas híbridas, simultaneamente referenciadoras e predicativas” (p.39).

A autora distingue dois tipos de formas anafóricas encapsuladoras:

a) aquelas que rotulam um segmento do texto e o transformam em objeto-de-discurso,

possibilitando a progressão textual, como exemplificado abaixo:

(46) “O tratamento do diabetes passa por uma grande transformação. Da alçada da

endocrinologia, a doença será de agora em diante considerada também uma

especialidade da cardiologia. Essa ampliação é decorrente da estreita relação entre o

diabetes e os distúrbios cardiovasculares.” (KOCH, 2010, p. 39)

b) aquelas que realizam operações de nominalização que encapsulam processos e seus

actantes, os quais se transformam em objetos-acontecimento e orientam o interlocutor para

determinadas conclusões.

(47) O capitão Celso Aparecido Monari, de 39 anos, lotado na Casa Militar do Palácio dos

Bandeirantes, residência oficial do governador Geraldo Alckimin, teve a prisão

temporária pedida pela Polícia Federal. Ele é acusado de comandar o tráfico e também

chacinas motivadas por dívidas de drogas na Zona Leste de São Paulo. O

envolvimento do oficial com o crime foi revelado com a apreensão de 863 quilos de

maconha escondidos no fundo falso de um ônibus na Rodovia Raposo Tavares, na

região de Assis, Oeste do estado. (KOCH, 2010, p. 40)

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Para ela, o encapsulamento pode ser feito por meio de pronomes demonstrativos ou

então por meio de uma expressão nominal, ocorrendo o que é chamado de rotulação. Qualquer

que seja a escolha, ela é recurso importante para levar o leitor às conclusões desejadas, ou seja,

conduzir o leitor à orientação argumentativa do texto. Portanto, o processo de encapsulamento

e rotulação é responsável pela ativação de objetos de discurso, por meio de conjuntos de

informações expressas no cotexto de forma a operar uma mudança de nível e uma sumarização

da informação. O exemplo abaixo, da cantiga 318, demonstra o uso de encapsulamento no

corpus analisado:

(48) E desto, se m’ascuitardes, vos direi, per com’ oý,

un miragre mui fremoso, e creo que foi assi;

que fez a que do lin[n]age deceu do bon Rei Davi,

e tal miragre com’ este de contar é u xe quer.

[E sobre isso, se me escutardes, um milagre muito formoso vos contarei, da maneira como ouvi e creio que assim aconteceu; que foi feito por aquela que descende da linhagem do bom Rei Davi, e tal milagre como este é o que se quer contar.]

(Cantiga 318, v. 5 – 8)

Com o exemplo abaixo, a autora distingue bem a anáfora indireta e o encapsulamento

(rotulação):

(49) Um objeto estranho apareceu sobrevoando a cidade. As asas metálicas fulguravam ao

sol. Os moradores, assustados e ao mesmo tempo maravilhados, comentavam agitados

o fato inusitado. Começaram a surgir boatos de que se tratava de uma espaçonave

vinda de outro planeta.

Um objeto estranho apareceu sobrevoando a cidade é a informação nova, que se

constitui como foco da enunciação. A expressão as asas metálicas, embora não tenha aparecido

antes, deve ser interpretada com base no enunciado anterior (um objeto que sobrevoa deve ter

asas); da mesma forma, a expressão os moradores refere-se aos habitantes da cidade

mencionada. As duas expressões vêm introduzidas pelo artigo definido, pois são consideradas

inferíveis no texto. A isso se chama anáfora indireta, isto é, informações novas no texto, mas

que são interpretadas com base em informações já presentes no mesmo, que funcionam como

âncoras para a interpretação.

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O fato inusitado refere-se ao acontecimento descrito, ou seja, foi utilizada uma

expressão que ‘encapsula’ tudo o que foi anteriormente mencionado.

Francis (2003) descreve a rotulação como um dos principais meios usados para ligar e

organizar o texto escrito. Ela identifica dois tipos de rótulos: rótulos prospectivos, que

funcionam cataforicamente, e rótulos retrospectivos, que operam anaforicamente. A autora

aponta um aspecto que os diferencia: enquanto o primeiro pode levar o leitor a predizer o

referente, o segundo, ao encapsular um segmento do texto, o nomeia pela primeira vez. É o

processo pelo qual um SN transforma em referente o conteúdo de uma proposição anterior.

Porém, o que se pretende ressaltar é que o rótulo retrospectivo cumpre uma função de

organizar a informação textual, apontando para o leitor exatamente a sequência do texto que

deve ser interpretada. Isso fornece o quadro referencial no qual o argumento subsequente é

desenvolvido. Conforme aponta Francis (2003, p. 198), “estes rótulos têm uma clara função de

mudar o tópico e de ligá-lo: eles introduzem mudanças de tópico, ou uma alteração dentro de

um tópico, mesmo preservando a continuidade colocando uma informação nova dentro de um

esquema dado”.

A autora apresenta uma função textual da rotulação, indicando uma dimensão

cognitivo-interacional: sua função de orientar o desenvolvimento do discurso. O produtor faz

uma clara opção discursiva no sentido de levar o interlocutor a desconsiderar parte da

informação precedente e de considerar a expressão rotuladora como o objeto que vai nortear o

percurso discursivo. Ao encapsular a informação sob um rótulo, o produtor do texto introduz

na memória discursiva um objeto de discurso que constituirá um referente para os enunciados

posteriores.

Segundo a autora, é impossível determinar uma lista de núcleos de SN que podem

funcionar como rótulos. Para ela, “qualquer nome pode ser o nome nuclear de um rótulo desde

que seja inespecífico e requeira realização lexical em seu contexto imediato, anterior ou

posterior” (p. 201). Apesar disso, ela apresenta uma lista de nomes que se incluiriam numa

categoria mais geral, por exemplo, caso, assunto, problema, coisa, modo, entre outros. Além

desse grupo, a autora menciona quatro tipos de nomes-núcleo:

Nomes ilocucionários – nominalizações de processos verbais, normalmente atos de

comunicação, como: resposta, apelo, promessa, explicação, declaração, desculpa, entre outros.

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Nomes de atividades de linguagem – são similares aos nomes ilocucionários, mas não têm

verbos ilocucionários cognatos: comparação, descrição, exemplo, ilustração, referência, tema,

entre outros.

Nomes de processos mentais – nomes de estados e processos cognitivos e seus resultados ou

produtos como crença, dúvida, descoberta, conhecimento, opinião, visão, entre outros.

Nomes textuais – referem-se à estrutura formal do discurso e, segundo Francis (2003) não

envolvem interpretação, porque apenas rotulam porções do discurso precedente, encapsulando

segmentos textuais e selecionando deles o aspecto formal. É o caso de: pergunta, palavras,

página, passagem, seção, entre outros.

A abordagem de Francis deixa claro que os rótulos aparecem em ambiente lexical

compatível, isto é, a determinação semântica de um termo é feita contextualmente. Além disso,

demonstra que a escolha lexical é guiada por intenções argumentativas do produtor do texto.

Por fim, os rótulos devem ser considerados como um todo, e não somente em relação

ao nome-núcleo do SN. Isso significa que, também nos processos de rotulação, os

modificadores têm um papel significante na função de encapsular e de predicar.

De tudo o que foi exposto, percebe-se que as formas nominais referenciais

desempenham funções cognitivas de extrema relevância para o processamento textual, pois,

como formas de remissão a elementos apresentados anteriormente no texto ou sugeridos pelo

contexto, elas possibilitam a (re)ativação de informações na memória do interlocutor.

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4 ANÁFORAS CORREFERENCIAIS E NÃO CORREFERENCIAIS NAS CANTIGAS

DE SANTA MARIA

Assim como afirmam Koch e Marcuschi (1998), algumas estratégias de referenciação

estão ligadas à essencialidade do sistema referencial e à organização tópica do texto, ou melhor,

essas estratégias se manifestam através do modo como os referentes são introduzidos,

conduzidos, retomados e identificados no texto. Ao mesmo tempo em que o sistema referencial

se efetiva com base nessas ligações, também se integra ao sentido construído pelo interlocutor.

Na verdade, o processo referencial e a organização tópica se complementam, uma vez que

ambos contribuem para a construção do texto.

À luz do quadro teórico apresentado nos capítulos anteriores, passo agora à análise dos

dados do corpus investigado. Esta pesquisa recebeu uma orientação qualitativa, o que implica

um trabalho de cunho interpretativo dos dados. No entanto, faço o levantamento do número de

ocorrências das anáforas correferenciais e não correferenciais, já que me tal procedimento me

pareceu oportuno por permitir identificar, em termos objetivos, que elementos ou estratégias de

referenciação são comumente mobilizados pelo autor na progressão referencial do texto.

A análise apresentada neste capítulo tem como parâmetro a progressão referencial,

como ampliação do processo anafórico constituído na construção do sentido do texto.

Primeiramente, apresento e analiso alguns exemplos, tomados do corpus, de anáforas

correferenciais que não operam recategorização do referente e como elas contribuem para a

progressão e continuidade tópica do texto. Em seguida, observo o uso das anáforas

correferenciais recategorizadoras e de que maneira elas contribuem para a construção do sentido

pretendido pelo autor. Por serem muito numerosas, dedico uma seção deste capítulo à análise

das descrições nominais que fazem referência a Santa Maria, a fim de observar o modo como

o autor as utiliza para indicar atributos e qualidades da Virgem. Por fim, empreendo a análise

de alguns exemplos de anáforas não correferenciais encontradas no corpus.

4.1 Anáfora correferencial sem recategorização

A noção de anáfora correferencial descrita neste trabalho considera que há

correferência entre dois elementos sempre que eles designarem no discurso o mesmo referente.

Essa relação implica a ideia de que uma forma pronominal ou nominal retoma um antecedente

nominal explícito no texto. Essa concepção de anáfora pressupõe a retomada, mesmo que

parcial, de referentes anteriormente expressos no texto. Koch (2005) considera que as

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retomadas por meio de repetição (total ou parcial) do antecedente ou por meio de sinônimos ou

quase-sinônimos são casos de correferência sem recategorização. Abaixo apresento exemplos

retirados das Cantigas de Santa Maria que ilustram casos de correferência entre a expressão

anafórica e seu antecedente textual sem a ocorrência de recategorização.

Os excertos abaixo, das Cantigas 311 e 355, apresentam exemplos de relação anafórica

que se podem considerar canônicos, os referentes e os elementos anafóricos estão marcados

com cores diferentes a fim de agrupá-los:

(1) E de tal razon miragre vos quero ora mostrar,

que d’ entender é mui bõo a quen y mentes parar,

que a Virgen groriosa de Monssarraz quis mostrar

por un ome que a senpre servia con mui gran fe.

El ali em romaria ya dous vezes ou tres

no ano, e amizade avia con ũu borges;

[...]

[E por esse motivo vos quero contar um milagre, que é fácil de entender a quem prestar atenção, e que a Virgem gloriosa de Monsarraz quis fazer por um homem que sempre a servia com grande fé. Ele ia ali em romaria duas ou três vezes no ano, e tinha amizade com um burguês;]

(Cantiga 311, v. 10-16)

(2) Este manceb’ en Manssel[l]a, com’ eu aprendi, morava,

e hũa moça da vila feramente o amava;

el non queria seu preito nen por ela non catava,

porque cuidava que fosse con outra mellor casado.

[Este moço morava em Mansilla, como eu fiquei sabendo, e uma moça da vila o amava muito; ele não queria esse amor nem procurava por ela, porque pensava que seria melhor casado com outra.]

(Cantiga 355, v. 15-18)

Nesses exemplos, o autor usa o pronome de 3ª pessoa para retomar referentes já

apresentados. No exemplo (1), o termo anafórico a retoma o SN a Virgen groriosa de

Monsarraz; e o termo el retoma un ome. No exemplo (2), os pronomes o e el retomam este

manceb’, e o pronome ela retoma uma moça da vila. Nota-se que esses elementos anafóricos

retomam itens anteriormente expressos sem recategorizá-los. Além disso, eles são dependentes

de formas nominais anteriormente expressas, pois esses itens realizam uma “volta” a fim de

encontrar o elemento que irá satisfazer referencialmente essas formas pronominais.

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Essa retomada correferencial pode também ser realizada por uma forma nominal como

se exemplifica abaixo com trechos das Cantigas 348 e 332:

(3) Desto direi un miragre que aveo en Espanna,

que mostrou Santa Maria, a piadosa sen sanna,

contra un rei que de gente levava mui gran companna

por onrrar a fe de Cristo e destroyr a dos mouros.

Aquel rei tesouros grandes despendera que avia

pera conquerer a terra que chaman Andaluzia;

[...]

[Sobre isso contarei um milagre que aconteceu na Espanha, e que Santa Maria, a piedosa justiceira, fez em favor de um rei que levava muitas pessoas para honrar a fé de Cristo e destruir a dos mouros. Aquele rei gastara grandes quantias que possuía para conquistar a terra que chamam Andaluzia.]

(Cantiga 348, v. 5-11)

(4) As donas daquel convento todas mui gran devoçon

an en aquesta omagen, e van y de coraçon

cada noit’ e cada dia e fazen grand’ oraçon,

e veen con sas candeas por o log’ alumear.

Onde foi hũa vegada que palla deitaron y

muita na eigreja toda, e era mester assy

por gran frio que fazia, e ar deitaron log’ y

estadaes encendudos, como soyan deitar.

[As donas daquele convento tinham grande devoção naquela imagem, e vão aí [diante do altar] de coração toda noite e todo dia e fazem muita oração e vêm com suas velas para iluminá-lo. Assim aconteceu uma vez que colocaram muita palha aí na igreja toda, e assim era necessário por causa do grande frio que fazia, e também colocaram aí círios acesos, como costumavam fazer.]

(Cantiga 332, v. 21-29)

Nos exemplos acima, é possível observar a relação semântica entre o elemento

anafórico e seu antecedente. No exemplo (3), ocorre a repetição do mesmo item lexical rei. No

exemplo (4), ocorre a substituição de candeas por um sinônimo, estadaes. Nota-se que a

utilização de um sinônimo não provoca qualquer alteração na referência, pois ambos possuem

o mesmo significado.

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A reativação de referentes no texto, seja por meio de recursos gramaticais ou lexicais,

cria cadeias coesivas responsáveis tanto pela construção do sentido quanto pela continuidade

tópica do texto.

A retomada de um referente pode ser vista como um tipo de processamento discursivo,

em que um elemento pronominal ou item lexical recobre pontualmente um referente que lhe é

anterior, estabelecendo entre o elemento anaforizante e o anaforizado certa identidade de

referência e de sentido.

Nas C.S.M., o autor faz largo uso do que se pode chamar de anáforas prototípicas,

quais sejam: as retomadas por intermédio de um pronome de 3ª pessoa ou de uma forma

nominal que retoma um elemento explícito anteriormente no texto. A tabela abaixo apresenta o

número de ocorrências desse tipo de anáfora no corpus pesquisado. Esse grupo de anáforas foi

dividido em anáforas realizadas por meio de pronome de 3ª pessoa, por repetição total ou parcial

do elemento antecedente, por sinônimo ou parassinônimo. Nesta tabela também é apresentado

o número de anáforas que empreendem uma recategorização do referente a fim de demonstrar

que o autor utiliza preferencialmente as anáforas sem recategorização.

Tabela 1 –Anáforas correferenciais sem recategorização nas C.S.M.

Pronomes 582

Repetição total ou parcial 358

Sinônimos ou parassinônimos 7

Total de anáforas sem recategorização 947 78%

Total de anáforas recategorizadoras 266 22%

Total de anáforas 1213 100%

Observa-se que 78% das anáforas encontradas são correferenciais sem

recategorização. No entanto, não se pode esquecer que os referentes que são ativados e

reativados ao longo do processamento textual refletem a intenção do autor diante do seu projeto

de dizer algo. A manutenção em foco de elementos previamente introduzidos possibilita a

construção de cadeias referenciais responsáveis pela progressão textual. À medida que se

desenrola o texto, o produtor realiza escolhas significativas de acordo com seus propósitos e

utiliza referentes, que facilitam a compreensão do texto e contribuem para a construção do seu

sentido.

Tomemos um trecho da cantiga 336 para observar a construção dessa cadeia

referencial. Neste exemplo, marcarei apenas o referente un cavaleiro para empreender a análise

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das anáforas correferenciais sem recategorização. Essa cantiga narra um milagre feito por Santa

Maria em favor de um cavaleiro que era luxurioso.

(5) Esto foi dun cavaleiro que de coraçon amava

a esta mui Groriosa e que sempre a loava

quant’ el mais loar podia, e por seu amor ar dava

a pobres e a mesqyos, esto de certo sabemos.

Este cavaleiro era grand’ e apost’ e fremoso,

manss[o]e de bon talante, sen orgull’ e omildoso

e mesurad’ en seus feitos; pero tan luxurioso

era que mais non podia ser, per quant’ aprendemos.

Pero quando lle nenbrava a Sennor de ben comprida,

quedava-ll’ aquela coita e era de bõa vida;

mais depois ll’ escaecia, como ome que s’obrida

e que non é sen seu siso, e de taes connocemos.

El aquest’ assi fazendo e cono demo luitando,

non estand’ en un estado, mais caend’ e levantando,

viu en vijon a Reya dos ceos, e el chorando

lle disse: “Sennor, mercee, ca en ti acharemos

Cada que fezermos erro. Porend’ a ta santidade

rogo que m’ ajas mercee e pola ta piadade

non cates a como sõo mui comprido de maldade

eu e os mais deste mundo por pecados que fazemos.”

Enton a Virgen mui santa cató-o come sannuda

e disse-ll’: “A esperança que ás en mi é perduda

se daquesto que tu fazes teu coraçon non se muda

e non leixas aquel erro que nos muit’ avorrecemos.”

Enton disse o cavaleiro:(...)

Enton foi-ss’ a Virgen santa; e logo en outro dia

por poder da groriosa beeita Santa Maria

o cavaleiro que ante con gran luxuri’ ardia

tornou mais frio ca neve, nos miragres lo leemos.

[Isso aconteceu com um cavaleiro que de coração amava a esta mui Gloriosa e sempre a louvava o quanto ele mais louvar podia, e por seu amor também dava a pobres e a miseráveis, isso de certo sabemos. Este cavaleiro era grande e belo e formoso, manso e de boa vontade, sem orgulho e humilde e moderado em seus feitos, mas era tão luxurioso como mais não podia ser, pelo que sabemos.

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Porém quando se lembrava da Senhora cheia de bondade, acabava-lhe aquele sofrimento e levava uma vida boa; mas depois ele se esquecia, como homem que se esquece e que não tem juízo, e sobre isso conhecemos. Ele aquilo assim fazendo e com o demo lutando, não permanecendo em um estado, mas caindo e levantando, em visão viu a Rainha dos céus, e ele chorando disse a ela: “Senhora, misericórdia, pois em ti a acharemos para cada erro que fizermos. Por isso, pela tua santidade, rogo para que tenhas misericórdia de mim e, pela tua piedade, não olhes como sou cheio de maldade, eu e os outros deste mundo, pelos pecados que fazemos.” Então a Virgem santa observou-o como nervosa e disse-lhe: “A esperança que tens em mim é perdida se daquilo que tu fazes teu coração não mudar e não deixares aquele erro que nos aborrece muito.” Então o cavaleiro disse: (...) Então a Virgem santa se foi; e logo no outro dia pelo poder da gloriosa bendita Santa Maria o cavaleiro que antes com grande luxúria ardia tornou-se mais frio que a neve, nos milagres assim lemos.]

(Cantiga 336, v. 16-46, 56-60)

Nota-se que o referente un cavaleiro é introduzido e passa a preencher um nódulo

textual, ou seja, ele é posto em foco para permanecer ativo na memória do leitor. Na sequência

do texto, esse referente será retomado por pronomes, el, lle, o, e por expressões nominais, este

cavaleiro e o cavaleiro. No caso das expressões nominais, tem-se o que Apothéloz (2003)

chamou de anáfora fiel, ou seja, um referente anteriormente expresso é retomado por meio de

um SN definido ou demonstrativo, cujo núcleo é o mesmo já introduzido. É uma construção

estereotipada, que objetiva lembrar, pela repetição do mesmo item lexical, o objeto de discurso

já introduzido. Esse tipo de anáfora assegura o desenvolvimento referencial e permite controlar

erros de interpretação se houver outros objetos de discurso em concorrência na memória do

interlocutor.

Entre os elementos anafóricos do exemplo acima há uma identidade referencial –

correferência – e uma identidade semântica – co-significação. A introdução, identificação,

preservação, continuidade e retomada desse referente constituem o mecanismo de progressão

referencial responsável pelo estabelecimento de cadeias referenciais ou coesivas.

Além dos pronomes e da repetição do mesmo item lexical, os sinônimos ou quase-

sinônimos também podem ser responsáveis pela coesão referencial. É o que se demonstra com

os exemplos abaixo, das cantigas 317 e 319:

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(6) Com s’ achou, non á y mui gran sazon,

en Galiza un escudeiraz peon

que quis mui felon

brita-la eigreja con felonia.

Santa Maria a hermida nom’ á

do Monte, porque em logar alt’ está;

(...)

[Como foi encontrado, não faz muito tempo, na Galícia, um soldado escudeiro quis com muita ira quebrar a igreja. A ermida tem nome de Santa Maria do monte, porque está em lugar alto;]

(Cantiga 317, v. 5-11)

(7) (...) e diss’ aa gente

que a desliassen, ca a merceosa

Madre de Deus, Virgen, saude lle dera

tal que se sentia que ben sãa era.

A companna toda gran lediça fera

ouve deste ffeito e foi mui goyosa.

[(...) e disse às pessoas que a deixassem, pois a misericordiosa Mãe de Deus, Virgem, lhe dera tal saúde que se sentia bem e que estava sã. Seus companheiros todos grande alegria sentiram por isso e ficaram muito jubilosos.

(Cantiga 319, v. 61-67)

É importante ressaltar que, no decorrer de um discurso, o indivíduo tem a seu dispor

elementos lexicais variados para designar referentes. Uma das consequências dessa variação é

que os termos podem não operar como co-significativos, já que a significação é essencialmente

contextualizada. Daí que é possível encontrar termos não sinonímicos em relação de

correferencialidade. Como se pode atestar nos exemplos (6) e (7), a identidade referencial de a

eigreja/a hermida e a gente/a companna não é um fato de língua, mas um fato de discurso. O

processo discursivo permite construir tal sinonímia. Esse exemplo evidencia que pode haver

estratégias de designação anafórica variadas, nem todas co-significativas.

Como afirma Koch (2005), a escolha de um sinônimo é determinada pelo gênero

textual, pela variedade de língua utilizada ou por uma opção do produtor. Nos exemplos acima,

percebe-se que a seleção de um sinônimo adequado para operar a retomada foi uma opção

estilística do autor. Como demonstrado na TAB 1 acima, a ocorrência de sinônimos no corpus

analisado é pequena. Além disso, todas elas parecem ser uma escolha do autor, não sendo

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possível estabelecer uma relação entre o uso dos sinônimos com o gênero textual ou a variedade

linguística.

Os exemplos até agora apresentados se encaixam dentro de uma visão restrita do

fenômeno, para a qual a anáfora envolve retomada, pelo menos parcial, de referentes anteriores.

Dessa forma a anáfora é operada por meio de uma forma pronominal ou por meio de um item

lexical, que deve ser uma repetição lexical ou um sinônimo. De qualquer maneira, a relação

semântica estabelecida entre esses itens deve ser prevista aprioristicamente no léxico.

Outro ponto observável é a introdução do referente novo por um SN indefinido. Bentes

(2001), ao analisar os processos de referenciação em contos populares, observou que no início

da narrativa os referentes são, em sua maioria, introduzidos por expressões nominais

indefinidas. O mesmo pode ser observado no exemplo abaixo da cantiga 309:

(8) En aquel tenpo en Roma ũu Papa santo avia,

e ũu emperador boo per quant’ ele mais podia

servia muit’ e amava a Virgen Santa Maria,

en que Deus quis prender carne e fazer dela ssa Madre.

(...)

E porque en toda Roma non era enton eigreja

desta Virgen groriosa que sempre beeita seja,

querian fazer end’ hũa mui grand’ e nobre sobeja,

en que fosse Deus loado e ela que é ssa Madre.

Mas per ren non se acordavan o logar u a fezessen;

e porend’ un ome bõo lles disse que sse tevessen

de faze-la ata quando de Deus tal sinal ouvessen

do logar u a farian a ssa Madr’, und’ el é Padre.

Onde foi pois hũa noite que o Papa xe jazia

en seu leito e dormindo, e en sonando viia

a ssi viir hũa dona mui nobre que lle dizia:

“Tu amas a Jhesu-Cristo muito e a mi, sa Madre;

E poren te rogu’ e mando que digas a esta gente

de Roma que mia eigreja façan logo mantenente

u viren meant’ agosto caer nev’ espessamente,

ca aly quer o meu Fillo Jhesu-Crist, e Deus seu Padre.”

Outra vison com’ esta o Emperador dormindo

viu essa meesma noite que o Papa e sentindo

que de Deus aquesto era, foi chorand’ e non riindo

a el e falou con ele a onrra da Virgen Madre.

Contando-lle tod’ a feito en qual maneira dormira

e en jazendo dormindo a Santa Maria vira,

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que lle mandou que fezesse ssa eigreja, sem mentira,

en que foss’ ela loada e Deus, verdadeiro Padre.

[Naquele tempo havia, em Roma, um Papa santo e um Imperador bom que o quanto ele podia servia e amava a Virgem Santa Maria, em quem Deus quis se encarnar e fazer dela sua Mãe. (...) E porque em toda Roma não havia igreja desta Virgem gloriosa que sempre bendita seja, queriam fazer aí uma muito grande e nobre, em que Deus fosse louvado e ela que é sua Mãe. Mas por nada se acordavam sobre o lugar onde a fariam; e por isso um homem bom lhes disse que esperassem para fazê-la até quando de Deus tivessem um sinal do lugar onde a fariam dedicada a sua Mãe, de quem ele é Pai. Então aconteceu uma noite em que o Papa estava deitado em seu leito dormindo, e em sonho via chegar até si uma dona muito nobre que lhe dizia: “Tu muito amas a Jesus Cristo e a mim, sua Mãe; e por isso te rogo e mando que digas a esta gente de Roma que façam logo minha igreja onde virem, em meados de agosto, cair muita neve, pois ali quer o meu Filho Jesus Cristo e Deus, seu Pai.” Outra visão como essa o Imperador dormindo teve nessa mesma noite que o Papa; e sentindo que aquilo era de Deus, foi até ele chorando e não rindo e falou com ele em honra da Virgem Mãe. Contando-lhe todo o fato de que maneira dormira e estando dormindo vira Santa Maria, que mandou que ele fizesse sua igreja, sem mentira, na qual ela fosse louvada e também Deus, verdadeiro Pai.]

(Cantiga 309, v. 10-13, 20-48)

Tal como Bentes observou, o emprego de expressões nominais indefinidas no início da

narrativa demonstra um propósito de apresentar personagens que, apesar da aparente

individualidade, são construídos como símbolos de uma realidade. Esse referente indefinido,

posteriormente, pode ser retomado por uma forma definida a partir do momento em que esse

personagem é individualizado e passa a exercer funções específicas na narrativa, como se pode

constatar no exemplo acima transcrito. Vários personagens são apresentados primeiramente de

forma indefinida: ũu Papa santo, ũu Emperador boo, un ome boo, hũa dona. No desenrolar da

narrativa eles serão retomados por expressões definidas: o Papa, o Emperador; a expressão hũa

dona será retomada por Santa Maria; e un ome boo não será novamente retomado,

demonstrando que se trata de um personagem simbólico, o que não possibilita uma

individualização do referente.

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Muitos outros aspectos podem ser evidenciados no que diz respeito à atividade

anafórica. Como já afirmado anteriormente, as orientações teóricas de Apothéloz e Reichler-

Béguelin (1995) e de Koch e Marcuschi (1998) não consideram a anáfora como uma simples

operação de designação de referente, mas como uma estratégia discursiva que opera

transformações nos objetos de discurso.

Para Marcuschi, cada gênero textual apresenta algumas características próprias em

relação à condução tópica e aos processos de referenciação. Além disso, se caracteriza por

empreender algum propósito comunicativo específico. Para o autor, apesar das estratégias de

progressão referencial serem bastante diversificadas, os gêneros textuais apresentam

características referenciais marcantes que podem ser indicativas do gênero. O corpus analisado

apresenta, como se viu, uso recorrente de pronomes e repetições para a manutenção fiel dos

referentes. Esse fato pode estar relacionado com a questão do gênero, no entanto, como não foi

alvo dessa pesquisa, necessita de um maior aprofundamento.

Passo agora à análise de exemplos de anáforas, tomadas em seu sentido mais amplo.

Busco analisar, a partir das recategorizações emprendidas, o modo como as expressões

anafóricas desempenham funções importantes na construção do sentido do texto, bem como a

contribuição das mesmas para a organização textual.

4.2 Anáfora correferencial recategorizadora

Koch (2001) considera que a referenciação é uma atividade realizada por sujeitos

sociais; que os referentes são objetos de discurso construídos no decorrer da atividade

discursiva; e que o processamento textual implica a realização de escolhas entre múltiplas

possibilidades oferecidas pela língua. Nessa perspectiva, a anáfora torna-se uma escolha entre

as várias formas de caracterizar ou de recategorizar um referente.

A recategorização corresponde, pois, a uma estratégia de processamento em que os

objetos de discurso vão recebendo novas configurações morfo-sintático-semânticas, à medida

que o produtor expressa juízos de valor, características, atributos desses objetos de discurso. De

acordo com Koch (2005), os hiperônimos, os nomes genéricos e as descrições nominais operam

uma recategorização do antecedente textual. A tabela abaixo apresenta o número de ocorrências

das anáforas recategorizadoras encontradas no corpus analisado.

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Tabela 2 – Anáforas correferenciais recategorizadoras nas C.S.M.

Hiperônimos 5

Nomes genéricos 3

Descrições nominais 258

Total de anáforas recategorizadoras 266

Nota-se que, no corpus pesquisado, o uso de hiperônimos e nomes genéricos em

função anafórica recategorizadora é pequeno. Apresento abaixo exemplos que ilustram esse

uso:

(9) [Deus] Lle deu tal enfermidade que começou a ynchar

mui mais ca d’ ipropisia nen por razon d’ é[n]prennar,

assi que todos cuidavan que quisesse rebentar;

e comer ja non podia nen sol a agua passar.

Estando en esta coita, esforçou-sse de falar,

e a quantos y estavan começou muit’ a rogar

que por Deus aa eigreja punnassen de a levar,

que ant’ o altar podesse o Corpo de Deus fillar.

[Deus lhe deu tal enfermidade que começou a inchar muito mais que de hidropisia de forma que todos pensavam que fosse estourar; e já não podia comer nem sequer água passava. Estando nesse sofrimento, esforçou-se para falar, e a quantos aí estivessem começou muito a rogar que por Deus a levassem a uma igreja, para que diante do altar ela pudesse o Corpo de Deus tomar.]

(Cantiga 308, v. 26 – 33)

O uso de um hiperônimo pode atualizar o conhecimento do leitor, se o autor julgar que

o termo antecedente não foi suficiente para a compreensão. No exemplo acima, ao trocar

enfermidade por coita, o poeta busca demonstrar que a mulher não tinha apenas uma doença,

ela padecia de um sofrimento. O autor seleciona um traço do antecedente que melhor convém

para traduzir a ideia pretendida, direcionando a interpretação do leitor.

(10) Costum’ é que as menyas que ena orden criadas

son, que grandes travessuras fazen algũas vegadas;

poren freiras que as guardan lles dan, per que castigadas

sejan e non façan cousas per que caian en errança.

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[É comum que as meninas que são criadas na ordem, algumas vezes façam grandes travessuras; por isso as freiras que cuidam delas lhes dão, para que sejam castigadas e não façam coisas para que caiam no erro.]

(Cantiga 303, v. 10 – 13)

No exemplo acima o autor retoma grandes travessuras com o item cousas demonstra

que o elemento anafórico é mais genérico que o antecedente. Esse item genérico exige uma

realização lexical amparada em informações cotextuais. Essas generalizações, embora reflitam

pontos de vista pertinentes no momento da produção discursiva, são, de certo modo, neutras, já

que não necessariamente imprimem marcas pessoais nas designações.

As anáforas recategorizadoras empregadas no corpus são preferencialmente realizadas

por descrições nominais, como apresentado na tabela acima. De acordo com Koch (2005), a

escolha de uma descrição pode trazer ao interlocutor características ou traços do referente que

o autor quer ressaltar ou enfatizar, auxiliando na construção do sentido. O emprego de

expressões nominais opera a recategorização dos objetos de discurso que vão sendo

reconstruídos a fim de atender os propósitos do produtor do texto. Passo agora à apresentação

e análise de alguns exemplos retirados do corpus.

Tomemos, de início, o exemplo da cantiga 306, no qual os referentes e os elementos

anafóricos estão marcados com cores diferentes a fim de agrupá-los:

(11) [C]OMO SANTA MARIA FEZ CONVERTER UN EREGE EN ROMA QUE DIZIA

QUE SANTA MARIA NON PODIA SEER VIRGEN E AVER FILLO.

Por gran maravilla tenno de null’ ome s’ atrever

a dizer que Deus non pode quanto xe quiser fazer

E com’ é om’ atrevudo en querer saber razon

por que fezo Deus as cousas que non eran ant’ e son

ora, muit’ é de mal siso; ca as obras de Deus non

son pera saber-sse todas, nen pode per ren seer.

E daquest’ un gran miragre aveo, per com’ oý,

a ũu herege en Roma, e contan que foi assi,

dũa omagen que era da Virgen, com’ aprendi,

pintada ena eigreja, como vos quer dizer.

Esta eigrej’ é aquela que chaman de Leteran,

que do ’mperador foi casa que nom’ ouv’ Octavian;

mas depois ar foi eigreja do aposto San Johan,

mui nobre [e] mui ben feita e que costou gran’ aver.

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Aly ést’ hũa omagen da Virgen que non á par

pintada ena parede, e como a saudar

veo o angeo do ceo, per que s’ ouve d’ e[n]prennar

ela de Spirito Santo logo sen neũu lezer.

E tan bon maestre era o pintor que a pintou,

que fezo que semellasse que quando a saudou

o angeo, como logo atan toste s’ enprennou;

e poren lle fez o ventre mui creçudo parecer,

E fez que tevesse cinta ven como prennada sol

cengir per cima do ventre quando ll’ a prennece dol.

Esta omagen un dia viu-a un herege fol,

e disse aos crischãos: “Veede que ides creer:

Que Santa Maria virgen foi, sol non dizedes ren,

ca vedes que ten a cinta como moller prenne tem

suso per cima do ventre; muito sodes de mal sen

en creer ataes cousas nen sol y mentes meter.”

Quando aquest’ ouve dito aquel herege sandeu,

log' a aquela omagen a cinta lle decendeu

juso como a moller virgen, e logo lle descreceu

o ventr’, assi come ante que foss’ ela conceber.

Pois esto viu o herege, repentiu-sse muit’ enton

e aa Virgen beeita pediu chorando perdon.

Esto fez Deus por sa Madre, por mostrar que con razon

foi prenne, seendo virgen depois que el foi nacer.

Esta omagen beeita des enton assi está

con ssa cinta abaixada, e sempr’ assi estará;

e Deus miragres por ela mostrou pois e mostrará,

por nos fazer de sa Madre a verdade connocer.

[COMO SANTA MARIA, EM ROMA, CONVERTEU UM HEREGE QUE DIZIA QUE ELA NÃO PODIA SER VIRGEM E TER FILHO. Tenho como grande milagre nenhum homem se atrever a dizer que Deus não pode fazer tudo quanto quiser. E como homem é atrevido em querer saber a razão por que Deus fez as coisas, que não existiam antes e existem agora, também é sem juízo; pois as obras de Deus não são para serem todas conhecidas, nem pode por nada ser.

E a esse respeito um grande milagre aconteceu a um herege em Roma, como ouvi, e contam que foi assim, como fiquei sabendo, de uma imagem da Virgem, que era pintada na igreja, como vos quero contar.

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Esta igreja é aquela que chamam de Latrão, que foi casa do Imperador que tinha como nome Otaviano; mas depois também foi igreja do apóstolo São João, muito nobre, muito bem feita e custou muito caro. Ali há uma imagem da Virgem que não tem par pintada na parede, e como veio o anjo do céu para saudá-la, pelo que ela se engravidou do Espírito Santo sem demora. E tão bom mestre era o pintor que a pintou, que fez que parecesse que quando a saudou o anjo, logo imediatamente ela se engravidou, por isso lhe fez o ventre parecer crescido, e fez que tivesse cinta bem como somente grávida cinge por cima do ventre quando engravida. Essa imagem um dia um herege louco viu-a e disse aos cristãos: “Vede em que credes: que Santa Maria foi virgem, sequer não dizeis nada, pois vedes que tem a cinta como mulher grávida traz por cima do ventre; sois de muito mal juízo em acreditar em tais coisas nem sequer prestais atenção.” Quando aquele herege louco disse isso, daquela imagem a cinta logo lhe caiu como de mulher virgem, e logo o ventre lhe diminuiu, como se fosse antes de ela conceber. Depois que o herege viu isso, arrependeu-se muito e à Virgem bendita pediu perdão chorando. Isso Deus fez por sua Mãe, para mostrar que com razão foi grávida, continuando virgem depois que ele nasceu. Essa imagem bendita desde então assim está com a cinta abaixada, e sempre assim estará; e Deus por ela faz milagres e ainda fará, para nos fazer conhecer a verdade sobre sua Mãe.]

(Cantiga 306)

No exemplo acima, o poeta apresenta no refrão o termo null’ ome, de forma genérica,

fazendo referência, por negação, a qualquer homem. Na primeira estrofe, ele recategoriza o

homem como atrevudo se esse quiser saber por qual razão Deus fez todas as coisas. Ainda no

refrão, o autor introduz o referente quanto xe quiser fazer que é retomado pelo elemento cousas,

na primeira estrofe, e recategorizado como as obras de Deus, ocorrendo aí uma correção

referencial (conforme Koch; Marcuschi, 1998), já que o autor substitui termos genéricos por

um mais específico. A primeira estrofe cumpre o papel de estabelecer a coesão entre o refrão e

o corpo da cantiga. Esse assunto será detalhado no próximo capítulo.

Na segunda estrofe, o uso da expressão daquest’ un gran miragre faz a ligação entre a

informação da primeira estrofe e a narrativa que será feita. Ou seja, trata-se de um ome atrevudo

que certamente duvidava das obras de Deus. Nessa mesma estrofe é apresentado o personagem

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que será beneficiário do milagre. Ele é nomeado como ũu herege. Também são introduzidos

outros elementos importantes para a narrativa: a omagen que era da Virgen, alvo da heresia do

homem e a eigreja, lugar onde acontecerá o milagre. Esses elementos operarão como fios

condutores da narrativa e serão retomados e renomeados a fim de manter uma base de

referencialidade primordial para o entendimento do texto.

O personagem ũu herege, introduzido na segunda estrofe, é retomado na sexta estrofe

com a repetição do núcleo herege. Assim, o narrador o mantém focalizado e ativado na memória

do leitor. Mas ele é recategorizado pelo uso do adjetivo fol, o que destaca uma característica do

personagem, o herege era ‘louco’, ‘sem juízo’. Essa característica é mantida em aquel herege

sandeu (8ª estrofe), porque o homem ainda duvida da virgindade de Santa Maria. Quando a

Virgem opera o milagre, e acontece a conversão do pecador, o personagem volta a ser nomeado

apenas como herege (9ª estrofe), não se especificando nenhuma das suas características.

Observa-se que o objeto de discurso herege acrescido dos termos fol/sandeu orienta o leitor

para a interpretação desejada pelo autor. Dessa forma, não só o aspecto referencial é

interessante, mas também o efeito causado pela nova informação explícita do objeto designado.

Outro elemento importante na condução da narrativa é a omagen que era da Virgen,

apresentado na segunda estrofe. A imagem pintada na parede representava a anunciação do anjo

Gabriel e trazia a Virgem com o ventre crescido e cingido por uma cinta como de uma mulher

grávida. Na quarta estrofe esse item é retomado por uma descrição nominal hũa omagen da

Virgen que non á par, recategorizando o objeto de discurso pelo acionamento de um atributo

da Virgem, que traduz a crença do produtor do texto. Mais uma vez, pela recategorização

explícita do objeto, o autor orienta a interpretação do leitor em direção ao propósito de exaltar

a Virgem Maria. No decorrer da cantiga, esse elemento é retomado por esta omagen (6ª estrofe),

aquela omagen (8ª estrofe) e esta omagen beeita (10ª estrofe). A repetição do núcleo omagen

mantém o tópico ativo na memória do leitor, o que contribui para a progressão referencial e

continuidade tópica do texto. Na última ocorrência desse item é acrescido o atributo beeita para

que o leitor não se esqueça que, por intermédio da Virgem, muitos milagres são operados.

Na segunda estrofe é ainda apresentado o lugar onde o milagre irá acontecer: na

eigreja. Mas é na terceira estrofe que o autor esclarece em que igreja acontecerá o fato. Com o

referente esta eigrej’ é aquela, ele reintroduz o elemento e inicia o detalhamento do mesmo

para que o leitor saiba exatamente onde tudo aconteceu. Essa estrofe é toda dedicada a esse

propósito. O item eigreja será retomado apenas mais uma vez pelo dêitico aly. O autor não se

refere mais a esse elemento por pressupor que o leitor já tenha informações suficientes não

sendo, pois, necessário reintroduzi-lo novamente.

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Na quarta estrofe, ao apresentar o referente o angeo do ceo como conhecido, o autor

requer do leitor um conhecimento prévio a respeito da anunciação feita pelo anjo Gabriel a

Maria. Percebe-se uma referência ancorada em aspectos contextuais passível de ser estabelecida

por inferenciação. É preciso que o leitor acione conhecimentos bíblicos para construir a cena

retratada por aquela imagem pintada na parede.

Na quinta estrofe, o autor introduz o referente o pintor como um elemento já

conhecido, mas ele é um elemento novo, pois não foi apresentado no contexto anterior. Trata-

se de uma anáfora associativa porque esse item só pode ser interpretado referencialmente com

base em dados anteriormente introduzidos no texto. Sabemos que na igreja onde ocorreu o

milagre havia uma imagem da Virgem pintada na parede; logo, alguém haveria de tê-la pintado.

Com base nessa informação é que o item o pintor pode ser apresentado como conhecido. O

mesmo ocorre com o referente o ventre (5ª estrofe), que é apresentado como conhecido porque

pode ser interpretado com base em informações anteriores. A imagem pintada representava a

Virgem grávida, portanto ela deveria estar com o ventre crescido. A análise das anáforas

associativas presentes no corpus será melhor detalhada no item 3.5 do presente capítulo

Nota-se que os referentes já existentes no texto podem ser modificados ou expandidos

durante a construção do texto. Como já dito anteriormente, o referente é um objeto de discurso

que vai se reconfigurando não apenas pelas pistas que estão na superfície do texto, mas também

por outras informações contextuais.

O mesmo pode ser observado no referente ũu mesqyo na cantiga 333. Essa cantiga

narra como Santa Maria curou um paralítico que por mais de quinze anos vivia em uma

carretinha. O homem tinha os braços tortos para trás, também eram tortos as mãos, os dedos e

os pés. As pessoas o levavam a lugares onde muitos santos faziam milagres, mas nada acontecia

ao pobre, porque era a Santa Maria que ele rogava que o curasse. Enfim ele conseguiu ir à igreja

de Terena, onde a Virgem operava muitos milagres. Pediu que acendessem velas e fez uma

oração suplicando que ela o curasse. Passou meses na igreja, chorando e rezando, até que

chegou de sua terra natal uma romaria. Naquela noite as pessoas fizeram uma vigília, ele foi

curado e todos louvaram a Virgem Maria, que socorre aqueles que nela tem confiança.

(12) E poren vos direi ora un miragre que á feito

en Terena esta Virgen, Madre do Fillo beeito,

en uu mesqyo que era de todos nenbros contreito

si que en carret’ andava mais de quinz’ anos avia.

(...)

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101

Aquela noite fezeron vegia grand’ e onrrada;

mais, que fez a Virgen santa, dos peccadores vogada?

De noit’ a aquel mesqyo foi e log’ essa vegada

pos as sas mãos mui toste aly per u mal sentia.

Des y estirou-ll’ os nenbros todos, e per sa virtude

foi tan tost’ o corpo todo guarid’ e ouve saude,

ca xe sol ela de taes feitos fazer ameude;

e ergeu-ss’ o ome logo da carreta u jazia,

Loando a Groriosa. (...)

[E por isso vos contarei um milagre que foi feito em Terena fez esta Virgem, Mãe do Filho bendito, em favor de um pobre que era paralítico de todos os membros de modo que andava em uma carreta fazia mais de quinze anos. (...) Naquela noite fizeram vigília grande e honrada; mas, o que fez a Virgem santa, advogada dos pecadores? De noite, ela foi até aquele pobre e dessa vez pôs logo as suas mãos ali, por onde o mal ele sentia. Depois disso estirou-lhe os membros todos, e por sua virtude o corpo foi rapidamente todo curado e com saúde se achou, pois ela amiúde tais feitos costuma fazer; e o homem logo ergueu-se da carreta onde permanecia, louvando a Gloriosa. (...)]

(Cantiga 333, v. 10 - 13; v. 55 – 65a)

Nessa cantiga, o beneficiário é nomeado como ũu mesqyo e, posteriormente, aquel

mesqyo demonstrando o tipo de vida miserável que aquele deficiente levava, preso a uma

carretinha havia já mais de 15 anos. Ele rogava sempre a Virgem Maria que lhe desse saúde.

Até que um dia suas preces são ouvidas e ele recebe o milagre da cura. Nesse momento ele

passa a ser nomeado o ome, como se, além da cura física, ele também tivesse recebido a

dignidade humana: ele, de ũu mesqyo (1ª estrofe citada), passa a ser referido como ome (última

estrofe citada).

É importante ressaltar que a seleção, por parte do autor, de um nome diferente do já

usado antes permite apresentar um ponto de vista particular sobre o referente. Essa substituição

lexical introduz uma mudança de perspectiva do enunciador em relação ao elemento anunciado.

Na cantiga abaixo transcrita, destaca-se o uso de descrições nominais como processos de

recategorização de referentes:

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102

(13) En Segovia est' aveo, e non á mui gran sazon,

que hũa dona y era que muito de coraçon

amava Santa Maria mais que quantas cousas son;

e do que poren ll' aveo non vos en negarei ren.

Ela seu marid' avia cavaleir' e caçador,

e de se teer viçoso avia mui gran sabor;

poren foi veer sa fonte que era end' a mellor

de toda aquela terra, e diss' a sa moller: “Ven

Logo comig', ai, irmãa, e amostrar-ch-ei logar

u podemos quinze dias ou tres domaas estar

viçosos cab' hũa fonte que eu ei; des i caçar

me veeredes andando, e prazer-vos-á muit' en.”

Pois est' acordad' ouveron, penssaron logo de s' ir,

e o cavaleiro foi-sse deante e fez ferir

ssa tenda cabo da fonte, e des y mandou viir

sa moller que y folgasse; mais a que o mundo ten

En poder e que é Madre de Deus, fezo que decer

foss' a hũa ssa eigreja e y oraçon fazer.

(...)

Enquant' el foi pola dona, o cavaleiro perdeu

o lume d' ambo-los ollos, e en terra se tendeu

volcando-s' e braadando come se fosse sandeu,

dizendo: “Quen me posesse ora en Jerusalen!”

E logo chegou a dona aas vozes que oyu;

e pois deceu [e] na tenda e tal seu marido viu,

chorand' a[a] Groriosa por el mercee pedyu

que seu lume lle tornas[s]e, ca: “Muitas vezes aven

Que erran por seus pecados os omees muit' a Deus;

mais tu, Virgen, de Deus Madre, non cates os erros seus

e mostr' aqui ta vertude, ca el e eu somos teus,

e rogar polos coitados, est' a ti muito conven.”

Pois est' a don' ouve dito, o cavaleiro cobrou

logo o lume dos ollos e diss': “Este logar dou

todo a Santa Maria e outorgo-me por sou;

e beeita seja ela porque nos assi manten.”

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103

[Isso aconteceu em Segóvia, e não há muito tempo, que aí vivia uma dona que muito de coração amava Santa Maria, mais que qualquer coisa; e do que por isso lhe aconteceu não esconderei nada. Ela tinha seu marido cavaleiro e caçador, e tinha grande prazer por ser viçoso; por isso foi ver sua fonte que era a melhor de toda aquela terra, e disse a sua mulher: “Venha logo comigo, ai irmã, e eu mostrarei o lugar onde podemos ficar quinze dias ou três semanas agradáveis perto de uma fonte que eu tenho; então me vereis caçar e tereis muito prazer nisso.” Depois que isso combinaram, pensaram em ir logo, e o cavaleiro foi primeiro e mandou construir sua tenda perto da fonte, e então mandou vir sua mulher para que aí descansasse. Mas a que o mundo tem em seu poder e que é Mãe de Deus fez que ela fosse a uma sua igreja e aí fizesse oração. (...) Quando ele foi procurar pela dona, o cavaleiro perdeu a visão de ambos os olhos, e caiu na terra rolando e gritando como se fosse louco, dizendo: “Quem poderia agora me colocar em Jerusalém!” E logo que os gritos ouviu, a dona chegou; e depois desceu até a tenda e assim viu seu marido, chorando pediu à Gloriosa misericórdia por ele para que lhe recobrasse a visão, pois: “Muitas vezes acontece que por seus pecados os homens erram contra Deus; mas tu, Virgem, Mãe de Deus, não olhes os erros e mostras aqui tua virtude, pois ele e eu somos teus, e rogar pelos sofredores, isso a ti muito convém.” Depois que a dona disse isso, o cavaleiro recobrou a visão dos olhos e disse: “Este lugar dou todo a Santa Maria e declaro-me seu; e bendita seja ela porque assim nos mantém.”]

(Cantiga 314, v. 9 – 30, 39 - 62)

Além de Santa Maria, existem dois personagens principais. O referente hua dona é

retomado mais adiante por sa moller, termo mais específico que o anterior, uma vez que o

personagem seu marid’ havia sido mencionado. Este referente é retomado posteriormente por

o cavaleiro destacando uma característica do personagem que era cavaleiro e caçador. E assim,

esses referentes vão se alternando conforme o autor deseja realçar uma característica ou outra,

mais que isso, conforme o autor pretende demonstrar a relação existente entre a dona e o

cavaleiro.

Por meio dessa estratégia, o autor mantém em foco objetos previamente introduzidos

no texto, originando cadeias referenciais, responsáveis pela progressão referencial do texto.

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Assim, as formas remissivas hũa dona/sa moller/a dona e o cavaleiro/seu marido cumprem

uma função organizacional, pois elas introduzem um tópico ou ocasionam mudança de tópico

preservando a continuidade tópica do texto, ao alocarem a informação nova dentro de um

quadro de informação velha. Observa-se que o autor tem uma série de alternativas para designar

os referentes, inclusive os próprios referentes. Daí que termos não sinonímicos possam ter

relações de correferencialidade, como em dona/moller e cavaleiro/marido.

O emprego de expressões nominais anafóricas (re)constrói, ao longo do texto, os

objetos de discurso e atende aos propósitos comunicativos do autor. Nessa recategorização, a

seleção do núcleo da expressão nominal, assim como a de seus modificadores, desempenha

papel crucial na construção do sentido pretendido. É o que se pode atestar com os exemplos

abaixo colhidos de algumas estrofes da cantiga 323:

(14) Ali era un bon ome que un filynno avia

pequeno, que tant’ amava com’ a vida que vivia;

a este deu hua fever e foi mort’ a terçer dia.

O padre, con coita dele, en sas faces deu palmadas

E depenou seus cabelos e fez por ele gran doo

dizendo: “Ai eu, meu fillo, como fico de ti soo;

quisera eu que tu visses min com’ eu vi teu avoo,

meu padre, que me fazia muitas mercees grãadas.”

E el aquesto dizendo, os mouros logo deitaron

sas algaras e correron e roubaron quant’ acharon;

e os de Coira correndo todo o logar leixaron

e fugiron, e ficaron as casas desamparadas.

Aquel ome que seu fillo pera soterrar estava,

quando viu correr a vila, o fillo desamparava

e aa Virgen beeita logo o acomendava

e todo quant’ el avia, chorando a saluçadas.

(...)

Ca log’ en aquela casa entrou a Sennor comprida

de todo ben, e tan toste deu ao minynno vida

e guardou as outras cousas, que non achou pois falida

ome de ren en sa casa, nen sol as portas britadas.

E achou seu fillo vivo e preguntou-lle que era,

ond' e como resorgira, ca por morto o tevera;

e el lle disse que hũa dona con el estedera

que o guardara dos mouros; e sas cousas ben guardadas

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Foran, que sol non tangeran en elas, nen niun dano

fezeran nen eno leito nen na mesa nen no ’scano.

[Ali havia um bom homem que tinha um filhinho pequeno, que amava tanto como a vida que vivia; a este deu uma febre e morreu no terceiro dia. O pai, sofrendo por ele, deu palmadas em suas próprias faces e arrancou seus cabelos e por ele muito se lamentou dizendo: “Ai, meu filho, como fico sem ti; quisera eu que tu me visses como eu vi teu avô, meu pai, que fazia muitos favores generosos a mim.” E ele isso dizendo, os mouros logo invadiram com seu exército e correram e roubaram o quanto acharam; e os de Coira deixaram todo o lugar correndo, fugiram, e as casas ficaram desprotegidas. Aquele homem que estava para enterrar seu filho, quando viu correr a vila, desamparou o filho e a Virgem bendita logo o recomendou e tudo quanto ele tinha, chorando e soluçando. (...) Assim que entrou naquela casa a Senhora plena de todo bem, logo deu vida ao menino e protegeu as outras coisas, pois o homem não sentiu falta de nada em sua casa, nem sequer as portas arrombadas. E achou seu filho vivo e perguntou-lhe o que acontecera, onde e como ressurgira, pois como morto o tivera; e ele lhe disse que uma senhora com ele estivera e que o protegera dos mouros, e suas coisas bem guardadas foram, que sequer não tocaram nela, nem nenhum dano fizeram nem no leito, nem na mesa, nem no banco.]

(Cantiga 323, v. 15 - 33, 40 - 51)

No exemplo acima, un bon ome é recategorizado como o padre logo que é apresentada

a figura do filynno, que, por sua vez, será renomeado como o minynno no trecho em que se fala

do milagre. Mas nessa cena não está presente a figura do pai. Assim que o pai reaparece na

cena, novamente o menino é categorizado como seu fillo. Vemos nos exemplos (9) e (10) como

o narrador conduz a construção da narrativa: quando o cavaleiro está na mesma cena que a

mulher, ele é nomeado marido e ela, moller. Quando eles estão em cenas separadas, ele é

nomeado o cavaleiro e ela, hua/a dona. O mesmo ocorre com padre e fillo. Quando os

personagens estão em cenas separadas, o pai é chamado de um/aquel ome e o filho de o

minynno.

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106

Essa estratégia de recategorização demonstra que, em termos discursivos, não há

diferença entre retomar o referente com o mesmo item lexical ou com outro item. Tanto o item

recategorizador quanto o próprio item lexical não interferem na retomada referencial em si,

porém contribuem para a construção do sentido e para a orientação do texto, porque expressam

informações que se têm a respeito do referente (KOCH; MARCUSCHI, 1998). É o que se pode

observar no exemplo abaixo, da cantiga 329:

(15) Quand’ aquest’ ouveron feito, logo sse partiron en;

mas un mour’ avizimao atrevud’ e de mal sen,

leixou ir os outros todos e foi en mui gran desden

fillar quant’ offereceron e en ssa bulssa meter.

(...)

E tan toste entraron, com’ apress’ ei,

ena eigreja, e viron estar aquele sen lei

cegu’ e atal com’ hũa pedra. (...)

[Quando isso fizeram, logo foram embora dali; mas um mouro mal, atrevido e sem juízo, deixou todos os outros irem e com muita arrogância tomou o que haviam oferecido e colocou em sua bolsa. (...) E logo entraram na igreja, como fiquei sabendo, e viram aquele sem lei cego e duro como uma pedra. (...)]

(Cantiga 329, v. 35 – 38, 55 – 57)

Nota-se que un mour’ avizimao e aquele sen lei são expressões possíveis de serem

substituídas uma pela outra no interior de um texto. A identidade referencial dessas duas

expressões é um fato discursivo, pois é na construção do sentido que tal sinonímia pode ser

constituída. Percebe-se então que as expressões podem mudar de sentido, ou receber um

sentido, dependendo dos propósitos do autor. As palavras e expressões recebem o seu sentido

no desenrolar do texto. Isso explica a ocorrência de termos correferenciais não apresentarem

traços de sinonímia; ou de itens, embora sinonímicos, isto é, co-significativos, não recobrirem

o mesmo referente. Assim, a recategorização de um referente não está condicionada à existência

de traços de correferência ou de co-significação.

Por isso que as expressões nominais em cadeias anafóricas, ao efetuarem a progressão

textual, podem desempenhar diversas funções para a construção do sentido do texto. Conforme

aponta Koch (2002), uma vez introduzidos, os objetos de discurso podem ser modificados,

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desativados, reativados, recategorizados, contribuindo para (re)construir o sentido no curso da

progressão textual.

4.3 Descrições nominais referenciadoras da Virgem Maria

À medida que se desenrola o texto, o autor faz escolhas significativas de acordo com

seus propósitos e utiliza referentes que facilitam a compreensão e contribuem para a construção

do sentido pretendido. Para isso, acrescenta-lhes novos dados informacionais a fim de atribuir

novas dimensões ao contexto significativo.

No corpus aqui analisado, chama a atenção o uso de descrições nominais

recategorizadoras que fazem referência à figura da Virgem Maria. O autor, no intuito de

declarar sua devoção e propagar a fé em Santa Maria, utiliza uma variedade de descrições que

traduzem diversos aspectos relacionados à virgindade, santidade e intervenções miraculosas

realizadas por ela. Desse modo, a partir das pistas expressas, ele conduz o leitor na tarefa de

construir uma imagem da Virgem, ampliando seus conhecimentos, interpretações e

significações. Nesta seção, apresento algumas cantigas que ilustram esse recurso utilizado pelo

autor, começando pela cantiga 319:

(16) ESTA É COMO SANTA MARIA GUARIU EN TERENA HUA MANCEBA RAVIOSA

Quen quer mui ben pod' a Virgen groriosa

de door guarir, non será tan coitosa.

Ca tan muitas graças deu e piadades

a ela seu Fillo, que enfermidades

de muitas maneiras toll'; e ben creades

que a quena chama non é vagarosa.

Poren quer' eu dela un miragr' onrrado

dizer, se m' oyrdes; e poi-lo contado

ouver, saberedes que faz mui guisado

o que faz serviç' a esta piadosa.

Riba d' Odian' á hũa sa eigreja

desta Virgen santa que bẽeita seja,

que chaman Teren'; e quen quer que deseja

saud' en seu corpo de door dultosa

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Que aja de ravia ou d' outra doença,

logo dali são vai pela sabença

desta Virgen santa, que nos atrevença

dá que a sirvamos come graciosa.

A alen Badallouz en Xerez morava

un ome que muito na Virgen fïava;

e hũa ssa filla a que muit' amava

doeceu de ravia, e foi tan raviosa

Que a non podian teer en prijoes,

nen valian ervas nen escantações,

nen aynda santos a que orações

fazian por ela, tant' era queixosa.

Vivian en coita con ela mui fort' e

non avian dela ja neun conorte

nen sabian que lle valves[s]' ergo morte;

seu padr' era 'n coita, sa madre chorosa

Por ela, ca outro fillo non avian.

Des i prometeron que a levarian

a Terena, ca ja per al non sabian

que saud' ouvesse. E poren trigosa

Foi desto sa madr' e levou-a correndo

daly a Terena, gran doo fazendo

e pela carreira ynd' assi dizendo:

“Virgen de Deus Madre santa preciosa,

Sobr' esta mia filla mostra ta vertude

que a ta mercee santa y ajude;

fonte de bondades, tu lle dá saude,

ca mui ben [a] podes dar, Virgen fremosa.”

Foi a bõa dona tanto demandando

a Santa Maria mercee, chorando

muito dos seus ollos, que foron chegando

preto da eigreja da de Deus esposa.

Tanto que a moça que era doente

viu a eigreja, logo manteente

foi mui ben guarida; e diss' aa gente

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109

que a desliassen, ca a merceosa

Madre de Deus, Virgen, saude lle dera

tal que se sentia que ben sãa era.

A companna toda gran lediça fera

ouve deste ffeito e foi mui goyosa.

Ela diz: “Amigos, as sogas tallade,

ca ja sãa soon pola piadade

de Santa Maria; ca da ssa bondade,

ao que a chama, é muit' avondosa.”

Seu padr' e sa madre gran prazer ouveron

quand' a filla viron sãa, e fezeron

aly ssa vegia e offertas deron

quanto ss' atreveron aa saborosa

Que é de Deus Madr', e muito a loaron;

des i a sa terra con ela tornaron

sãa e guarida, e da Virgen contaron

que a ssa mercee non é dovidosa.

[ESTA CANTIGA NARRA COMO SANTA MARIA CUROU EM TERENA UMA JOVEM QUE SOFRIA DE RAIVA. Não será tão sofredor aquele a quem a Virgem gloriosa da dor pode curar. Porque tantas graças e piedades lhe deu seu Filho, que ela tira enfermidades de muitas maneiras; e credes bem que para quem a chama ela não demora. Por isso eu quero contar um seu milagre honrado, se me ouvirdes; e depois que o tiver contado sabereis que age de forma muito certa aquele que presta serviço a esta piedosa. Às margens do rio Guadiana, há uma igreja desta Virgem santa, que bendita seja! – a que chamam Terena; e quem quer que deseje curar-se de dor temível em seu corpo, quer seja de raiva ou de outra doença, logo dali sai curado pela sabedoria desta Virgem santa, que nos dá confiança para que a sirvamos como cheia de graça. Para lá de Xerez de Badalóz morava um homem que confiava muito na Virgem; e uma sua filha, a quem muito amava, adoeceu de raiva, e ficou tão enferma que não podiam mantê-la presa, nem valiam ervas nem encantamentos, nem ainda santos a quem orações faziam por ela, tanto era queixosa.

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110

Viviam em sofrimento muito forte com ela e já não tinham nenhum consolo nem sabiam o que lhe valeria a não ser a morte; seu pai estava sofrendo, sua mãe chorosa por ela, pois não tinham outro filho. Então prometeram que a levariam a Terena, pois já de forma alguma sabiam como ter saúde. E por isso apressada sua mãe foi e levou-a correndo dali a Terena, fazendo grande lamentação e pelo caminho ia a dizer: “Virgem Mãe de Deus santa preciosa, sobre esta minha filha mostra tua virtude que a tua misericórdia santa aí ajude; fonte de bondades, dá-lhe tu saúde, pois muito bem a podes dar, Virgem formosa.” A boa dona foi pedindo tanto misericórdia a Santa Maria, derramando lágrimas dos seus olhos, e foram chegando perto da igreja daquela que é esposa de Deus. A moça que era doente, assim que viu a igreja, logo rapidamente foi bem curada; e disse às pessoas que a deixassem, pois a misericordiosa Mãe de Deus, Virgem, lhe dera tal saúde que se sentia bem e que estava sã. Seus companheiros todos grande alegria sentiram por isso e ficaram muito jubilosos. Ela disse: “Amigos, desamarrai as cordas, pois já estou curada pela piedade de Santa Maria; porque, pela sua bondade, é muito caridosa para aquele que a chama. Seu pai e sua mãe tiveram grande prazer quando viram a filha curada, e fizeram ali sua vigília e deram tantas ofertas quantas puderam dar à saborosa que é Mãe de Deus e muito a louvaram; daí, a sua terra com ela voltaram curada e sã, e sobre a Virgem contaram que a sua misericórdia não merece dúvidas.]

(Cantiga 319)

Na cantiga acima, o poeta designa Santa Maria como a Virgen groriosa no refrão. Ao

utilizar um SN definido, o autor apresenta o referente como sendo conhecido. Esse referente

passa a ter um “endereço cognitivo” na memória do leitor. No decorrer do texto, o autor o

recategoriza atribuindo outros atributos ao termo virgem: Virgen santa e beeita, Virgen de Deus

Madre santa preciosa, Virgen fremosa, a merceosa Madre de Deus, Virgen, ou apenas a designa

como Virgen. Ele também apresenta outras qualidades de Santa Maria: piadosa, fonte de

bondades, de Deus esposa, a saborosa que é de Deus Madre.

Com essas retomadas, o referente é mantido em foco, tem suas características

reforçadas e contribui para a progressão textual. O item, já presente na memória discursiva,

como se pode ver, é reintroduzido através das expressões referenciais elencadas acima

mantendo-se presente na superfície do texto. Essas expressões referenciais permitem a

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recategorização do referente à medida que novos atributos ou qualidades são apresentados no

decorrer da produção proporcionando o aporte de novas atribuições à Virgem.

Outra estratégia utilizada é a desativação do referente Virgem. Na metade da 5ª estrofe,

o autor inicia a narração do sofrimento da jovem que padecia de raiva. Nas estrofes seguintes,

a figura da Virgem não será mencionada, sendo o tema da cantiga o suplício da menina e o

sofrimento dos pais. O autor introduz um novo objeto de discurso ssa filla, que passa a ocupar

a posição focal. O objeto retirado de foco, Virgen, permanece em estado de ativação, podendo

voltar à posição de foco a qualquer momento. É o que acontece na 9ª estrofe, quando a mãe faz

uma oração a Santa Maria, pedindo por sua filha, e clama à Virgen de Deus Madre santa

preciosa. Novamente, o item Virgem é ativado e permanece na superfície do texto.

Segue outro exemplo, da cantiga 333, em que o autor realça as qualidades da Virgem

Maria. Essa cantiga, já parcialmente citada na seção 3.2 deste capítulo, trata de um milagre feito

em favor de um paralítico.

(17) COMO SANTA MARIA DE TERENA GUARIU UU OME CONTREITO QUE

ANDAVA EN CARRETA MAIS AVIA DE .XV. ANOS.

Connosçudamente mostra miragres Santa Maria

en aqueles que a chaman de coraçon noit’ e dia.

Ca por esto quis Deus dela nacer, que dos peccadores

foss' ant' el por avogada, des i que todas doores

guariss' e enfermidades; e daquesto sabedores

somos que sobre los santos todos á tal melhoria.

E poren vos direi ora un miragre que á feito

en Terena esta Virgen, Madre do Fillo bẽeito,

en ũu mesqyo que era de todos nenbros contreito

si que en carret' andava mais de quinz' anos avia.

(...)

A muitos santos lo trouxeron u Deus miragres mostrava

grandes, mais non lle valia nada, ca Deus o guardava

pera a ssa Madre Virgen que o guariss'; e rogava

el sempre a Groriosa que daquela malautia

Lle desse por ssa bondade saud'. E assi andado

[já] ouve per muitas terras, assi que ouve chegado

a Terena, u a Virgen fez muito miragr' onrrado,

ca ela é dos coitados esforço e luz e via.

Pois que foi ena eigreja da Sennor de ben comprida, fez fazer candeas logo que sa oraçon oida

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112

foss' e diss': “Ai, Virgen Madre, se algũa vez servida

fuste de mi algun tempo, val, ca mester me seria.”

Chorou muito dos seus ollos aquela noite jazendo

na eigreja ssa carreta e no coraçon gemendo

feramente seus pecados e sa oraçon fazendo

aa Virgen groriosa o mellor que el podia.

(...)

Jazend' assi na eigreja sempre gemend' e chorando

à Virgen Santa Maria e de coraçon rogando

que ll' ouvesse piadade, foi-se-ll' o temp' alongando,

que non [pud'] aver saude tan toste com' el queria.

Ca des Pasqua y jouve assi como vos eu digo

ata setembro meado a conssell' e a abrigo da Virgen Santa Maria; e el jazend' y mendigo,

hũa noite de ssa terra foi y mui gran romaria.

Aquela noite fezeron vegia grand' e onrrada;

mais, que fez a Virgen santa, dos pecadores vogada?

De noit' a aquel mesqyo foi e log' essa vegada

pos as sas mãos mui toste aly per u mal sentia.

Des y estirou-ll' os nembros todos, e per ssa vertude

foi tan tost' o corpo todo guarid' e ouve saude,

ca xe sol ela de taes feitos fazer ameude;

e ergeu-s' o ome logo da carreta u jazia,

Loando a Groriosa. E as gentes s' espertaron

todos [a] aquestas vozes; e poi-lo são acharon,

a Virgen Santa Maria mui de coraçon loaron,

porque tan apost' acorre a quen por ela confía.

[COMO SANTA MARIA DE TERENA CUROU UM HOMEM PARALÍTICO QUE ANDAVA EM NUMA CARRETA HAVIA MAIS DE 15 ANOS. É sabido que Santa Maria faz milagres por aqueles que, noite e dia, a chamam de coração. Por isso Deus quis nascer por ela, para que fosse diante dele advogada dos pecadores, e também que curasse todas as dores e enfermidades; e por isso sabemos que ela tem tal poder sobre todos os santos. E por isso vos contarei um milagre que em Terena fez esta Virgem, Mãe do Filho bendito, em favor de um pobre que era paralítico de todos os membros de modo que andava em uma carreta fazia mais de quinze anos. (...)

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A muitos santos o levaram, onde Deus faz grandes milagres, mas não lhe valia nada, pois Deus o guardava para que a sua Virgem Mãe o curasse; e ele rogava sempre à Groriosa que daquela doença saúde lhe desse por sua bondade. E assim já andara por muitas terras, até que chegou em Terena, onde a Virgem fazia milagre muito honrado, pois ela é esforço, luz e via dos sofredores. Depois que chegou à igreja da Senhora cheia de bondade, mandou logo fazer candeias para que sua oração fosse ouvida e disse: “Ai, Virgem Mãe, se alguma vez eu te servi por algum tempo, socorre-me, pois necessário me seria.” Chorou muito naquela noite, permanecendo em sua carreta na igreja e gemendo no coração por seus pecados, fazendo sua oração à Virgem gloriosa, o melhor que ele podia. (...) Estando assim na igreja sempre gemendo e chorando, rogando de coração à Virgem Santa Maria que tivesse dele piedade, o tempo foi passando, e não pôde recobrar a saúde tão rápido quanto queria. Desde a Páscoa aí ficou assim como vos digo até meados de setembro por conselho e proteção da Virgem Santa Maria; e ele assim permaneceu, pedinte, quando uma noite aí chegou uma grande romaria de sua terra. Naquela noite fizeram vigília grande e honrada; mas, o que fez a Virgem santa, advogada dos pecadores? De noite, ela foi até aquele coitado e dessa vez pôs logo as suas mãos ali, por onde o mal ele sentia. Depois disso estirou-lhe os membros todos, e por sua virtude o corpo foi rapidamente todo curado e com saúde se achou, pois ela amiúde tais feitos costuma fazer; e o homem logo ergueu-se da carreta onde permanecia, louvando a Gloriosa. E as pessoas se despertaram todas com aquelas vozes; e depois que o acharam são, de coração louvaram muito à Virgem Santa Maria, porque tão bem socorre a quem nela confia.]

(Cantiga 333)

Nessa cantiga, o autor introduz o referente Santa Maria no refrão e o retoma, ao longo

do texto, com expressões variadas, mantendo-o no foco de atenção. Um fator que merece

destaque diz respeito à ativação de informações, dentre os conhecimentos pressupostos como

partilhados com o leitor, de características do referente que o autor busca ressaltar ou enfatizar.

As descrições, esta Virgen, Madre do Fillo beeito; ela é dos coitados esforço e luz e via; a

Virgen santa, dos peccadores vogada, referem-se a características da Virgem: Maria é mãe de

Jesus; na fé católica ela é quem guia os crentes ao Pai e é invocada como advogada dos

pecadores. Essas expressões apresentadas como conhecidas, ativam conhecimento prévio do

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leitor armazenado na memória, colocando-o em uso e complementando a estrutura textual. A

construção dessas relações contribui para a construção da coerência e da lógica do texto, pois é

por meio dessa ativação de conhecimentos que o sentido vai sendo elaborado, ampliado e vão

surgindo distintas representações do referente.

Outros atributos também são destacados pelo autor ao renomear Santa Maria: Madre

Virgen, a Groriosa, a Virgen, Sennor de ben conprida, Virgen Santa Maria. Essas

referenciações não mobilizam apenas atributos, mas também pontos de vista baseados em

concepções culturais, que demonstram a apreensão do autor em relação ao referente.

Percebemos que, por meio dessa estratégia de recategorização, o autor pôde expressar

seu propósito de destacar certas qualidades ou atributos de Santa Maria que julga importantes

para a consecução dos seus objetivos. Assim, a referenciação apresenta-se não somente como

um mecanismo de progressão referencial, mas também como uma importante estratégia

argumentativa.

Essa estratégia de referência à figura da Virgem é largamente empregada pelo autor.

Das 258 descrições nominais recategorizadoras encontradas no corpus, 174 fazem referência a

Santa Maria. Nota-se que o autor constrói e reconstrói esse referente, em que intervêm não

apenas aspectos linguísticos, como também conteúdos inferenciais que podem ser calculados a

partir de conhecimentos culturais do interlocutor. Segundo Koch (2014) a reação do leitor pode

ser de concordância, se ele se enquadrar na imagem construída pelo autor, ou de discordância,

se esta imagem for equivocada. Ainda segundo a autora, se o autor, o veículo e o interlocutor

fossem outros, a construção do objeto seria totalmente diferente.

Abaixo apresento excertos de algumas cantigas a fim de demonstrar a riqueza de

descrições que o autor emprega ao se referir à Virgem Maria:

(18) E fezeron ssa eigreja grand’ e rica e fremosa

a onrra da Santa Virgen, Filla de Deus e Esposa,

de que ele prendeu carne, que foi mui maravillosa

cousa da que el criara fazer pois dela sa Madre.

[E fizeram sua igreja grande, rica e formosa em honra da Santa Virgem, Filha e Esposa de Deus, em quem ele se encarnou, o que foi a coisa mais maravilhosa das que ele criou porque fez dela sua Mãe.]

(Cantiga 309, v. 70 – 73)

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(19) Ca a que nos abr’ os braços e o inferno nos serra,

tan ben faz pelo mar vias come pela chãa terra;

e quen aquesto non cree maravillosament’ erra

e de Deus en niun tempo perdon aver non devia.

[Pois aquela que para nós abre os braços e fecha o inferno, também traça caminhos tanto pelo mar como pela terra plana; e quem nisso não crê muito erra; e em nenhum tempo deveria ter perdão de Deus.]

(Cantiga 325, v. 4 – 7)

(20) E el, pois viu que seria de tod’ en tod’ enforcado,

Fezo a oraçon logo muit’ e dos ollos chorando,

e diss’: “Ay, Santa Maria de Villa-Sirga, e quando

eu fuy ena ta ygreja, por meus din[n]eiros, estando,

comprei pera a ta obra un bon canto, ey-cho dado.

Poren, Virgen groriosa, Madre de gran piedades,

non cates a meus pecados, mais, Sennor, por ta bondade

vey como moir’ a gran torto, ca tu sabes a verdade

deste feito que mi apõen. Se eu non sõo culpado,

Mostr[a] aqui teu miragre, ay, Virgen santa comprida

vogada dos pecadores, de todo-los santos vida.

Se tu, Sennor poderosa, en algun tempo servida

de mi algun pouco fuste, fais esto que ch’ ey rogado.”

[E ele, depois que viu que seria mesmo enforcado, fez logo a oração e chorando, disse: “Ai, Santa Maria de Vila Sirga, quando eu fui à tua igreja, com meus recursos, lá permanecendo, comprei para a tua obra uma boa pedra lavrada, que te ofereci. Por isso, Virgem gloriosa, Mãe de grande piedade, não olhes meus pecados, mas, Senhora, por tua bondade vê como morro injustamente, pois tu sabes a verdade deste fato que me atribuem. Se eu não sou culpado, mostra aqui teu milagre, ai, Virgem santa perfeita, advogada dos pecadores, vida de todos os santos. Se tu, Senhora poderosa, em algum momento um pouco foste servida por mim, faze isto que te rogo.”]

(Cantiga 355, v. 84 – 98)

Esses exemplos demonstram que a recategorização tem a função de retomar um item

lexical com predicações modificadoras ou com outro termo. Além disso, tem a função de

explicar, esclarecer, enfatizar um aspecto importante do objeto de discurso sem que isso

prejudique o processo referencial. De acordo como Koch (2001), no uso de expressões nominais

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referenciais, a escolha do nome-núcleo do SN e de seus modificadores é um fator responsável

pela orientação argumentativa do texto. Nota-se, claramente, que a função de recategorização

pode ser realizada, nos processos de referenciação, por meio do nome-núcleo ou pelo acréscimo

de modificadores.

O autor dispõe de uma série de expressões linguísticas, que são escolhidas de acordo

com o sentido que se pretende construir. Dessa forma, ele pode, por meio de recategorizações,

expandir ou modificar o estatuto referencial ou a carga informativa do referente introduzido na

cadeia textual, no caso aqui analisado, o referente Santa Maria.

Por meio da repetição de tais estratégias, estabiliza-se o modelo textual, que é

continuamente reelaborado por meio de novas referenciações. Assim, “endereços cognitivos”

já existentes podem ser, a todo momento, modificados ou expandidos. Com isso, desdobra-se

o referente pelo acréscimo de novas categorizações ou avaliações.

Percebe-se que os objetos a que o discurso faz referência são dinâmicos e são

construídos no decorrer do processo discursivo. Na atividade de referenciação, os interlocutores

constroem os referentes, e a recategorização desses referentes, pelo uso de uma expressão

referencial com retomada, é capaz de revelar a orientação argumentativa do autor do texto.

4.4 Anáforas não correferenciais

Conforme foi visto no capítulo anterior, as anáforas não correferenciais permitem

apresentar como conhecidos conteúdos que não foram mencionados anteriormente no texto,

mas podem ser ancorados no universo textual. Dessa forma, eles são interpretados com base

em dados introduzidos anteriormente no discurso. De um lado, têm-se as anáforas indiretas que

não se estabelecem por uma condição léxico-estereotípica, mas por uma relação de inferência,

com base no conhecimento de mundo dos interlocutores. Por outro lado, as anáforas

associativas podem ser interpretadas referencialmente em relação a dados introduzidos no

cotexto. Neste trabalho, considero as anáforas indiretas e as anáforas associativas subgrupos

que integram o conjunto das anáforas não correferenciais.

No corpus analisado, foram encontradas 30 ocorrências de anáforas não

correferenciais. Passo agora à apresentação de alguns exemplos e análise dos mesmos.

Apresento abaixo um exemplo retirado da cantiga 339, que narra como Santa Maria

protegeu uma nau que estava correndo perigo. Essa nau teve seu casco rompido, e muita água

entrou na embarcação. Os tripulantes fizeram oração aos santos, mas um homem disse que eles

deveriam rogar à Virgem Maria. Assim eles fizeram, e Santa Maria os salvou.

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(21) (...) E logo que chegou

a nav’, o maestre dela catou

per u entrara a agu’ e achou

tres peixes engatoados jazer

Na nave (...) [E logo que chegou o mestre à nau, procurou por onde entrara a água e achou três peixes encastoados na nau (...)]

(Cantiga, 339, v. 55 – 60a)

O tipo de anáfora exemplificado acima, pautado em relações semânticas inscritas nos

SNs definidos, estabelece uma associação instaurada no léxico, por meio de aspectos

conceituais, que representam o conhecimento de mundo armazenado na memória. Nesse caso,

observa-se a relação entre nave e maestre. O SN o maestre dela tem suporte no cotexto

precedente, já que em uma nave existe sempre um maestre responsável pela tripulação. Essa

anáfora é classificada por Kleiber (2001) como anáfora associativa funcional, pois trata-se de

uma entidade (maestre) que desempenha uma função no âmbito da outra entidade (nave). Ou

seja, o termo maestre só é saturado referencialmente através da relação que estabelece com o

antecedente nave.

Para Marcuschi (2010), esse tipo de anáfora é ancorado em representações conceituais

armazenadas em modelos mentais denominados frames, cenários, scripts, etc., que representam

conhecimentos de mundo armazenados na memória de longo prazo do interlocutor.

Corresponde, portanto, ao que o autor denominou anáfora indireta baseada em esquemas

cognitivos e modelos mentais. Para ele, essa anáfora pode estar, ou não, baseada em uma

relação semântica entre os termos, ou seja, a introdução de um referente novo repousa sobre

um elo convencional numa espécie de ampliação de conhecimentos semânticos.

Observe-se, agora, o exemplo abaixo, da cantiga 351:

(22) E porend’ aquela gente se quisera yr enton;

mas chegou ũu ome boo, que lles diss’ esta razon:

“Vaamos catar a cuba e tiremo-ll’ o tapon

mais de ffond’, e per ventura pod’ y algun pouc’ aver.”

[E por isso aquelas pessoas quiseram então ir embora, mas chegou um homem bom que lhes disse esta sentença: “Vamos olhar a cuba e tirar-lhe a rolha, por acaso, mais no fundo pode haver um pouco [de vinho].”]

(Cantiga 351, v. 35 – 38)

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De acordo com a posição de Kleiber, a apresentação do antecedente ativa no

interlocutor um conhecimento estereotipado do referente e de suas propriedades, ou seja, a

ligação entre os elementos é pré-estabelecida no léxico. No exemplo acima, a ligação entre a

cuba e o tapon é realizada do “todo para a parte”, numa relação meronímica, uma vez que o

tapon pode ser marcado semanticamente como “uma parte de”. Nesse processamento anafórico,

exige-se por parte dos interlocutores conhecimento partilhado, a partir do qual se pode

depreender a ligação parte-todo na associação. Marcuschi (2010) denomina esse tipo de anáfora

como aquela baseada em relações semânticas inscritas nos SNs definidos. Para ele, esse é o tipo

mais frequente de anáfora indireta.

Vejamos outro exemplo, da cantiga 306, o qual demonstra a relação léxico-

estereotipada defendida por Kleiber:

(23) Aly ést’ hũa omagen da Virgen que non á par

pintada ena parede, e como a saudar

veo o angeo do ceo, per que s’ ouve d’ e[n]prennar

ela de Spirito Santo logo sen neũu lezer.

E tan bon maestre era o pintor que a pintou,

que fezo que semellasse que quando a saudou

o angeo, como logo atan toste s’ enprennou

[Ali há uma imagem da Virgem que não tem par pintada na parede, e como veio o anjo do céu para saudá-la, pelo que ela se engravidou do Espírito Santo sem demora. E tão bom mestre era o pintor que a pintou, que fez que parecesse que quando a saudou o anjo, logo imediatamente ela se engravidou]

(Cantiga 306, v. 20 - 27)

Nesse exemplo, o elemento anafórico o pintor instaura-se como um referente novo que

tem como antecedente o predicador Aly est’ hũa omagen ... pintada. A menção do termo pintada

é suficiente para que suas respectivas funções actanciais sejam disponibilizadas, isto é, a

evocação de uma imagem pintada implica a existência de um pintor. De acordo com Marcuschi,

esse tipo de anáfora é baseado nos papéis temáticos dos verbos.

Tomando as quatro categorias de anáforas associativas defendidas por Kleiber, não foi

encontrado nenhum caso de anáfora associativa locativa no corpus analisado.

Por outro lado, Charolles (1994), a partir de uma concepção discursiva da anáfora

associativa, não considera que essa relação referencial seja estabelecida por meio de aspectos

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semânticos das expressões lexicais. Para ele é o discurso que impõe a relação associativa e

conduz à interpretação da expressão como associada a uma informação antecedente. Em

seguida, apresento exemplos que ilustram essa posição. O exemplo abaixo, da cantiga 347,

demonstra como o conhecimento discursivo impõe os elementos necessários que levam o leitor

a encontrar a interpretação apropriada:

(24) Desto direi ũu miragre que en Tudia aveo,

e porrey-o con os outros, ond’ un gran livro é cheo,

de que fiz cantiga nova con son meu, ca non alleo,

que fez a que nos [a]mostra por yr a Deus muitas vias.

[Sobre isso contarei um milagre que aconteceu em Tudia, feito por aquela que nos mostra caminhos para ir até Deus; e o colocarei com os outros, em um grande livro que está cheio deles; e desse milagre fiz cantiga nova, com som meu, não alheio.]

(Cantiga 347, v. 5 – 8)

Observa-se no exemplo acima uma associação com os outros milagres narrados e

apresentados nas Cantigas de Santa Maria, já que somente se pode interpretar o item anafórico

com referência à obra de D. Afonso X. Esse tipo de anáfora se vincula a conhecimentos prévios

ativados no momento do processamento discursivo. Conforme apontam diversos autores, a

atividade referencial não é um “vale-tudo”, há limites que são dados pela viabilidade contextual.

O processo referencial está sujeito aos interesses do produtor, mas, ao mesmo tempo, busca

facilitar o acesso à informação para ser compreendido e aos interesses do interlocutor, que busca

pistas textuais para a ancoragem necessária à interpretação da expressão referencial.

Os exemplos acima, bem como os seguintes, demonstram que a interpretação do

elemento anafórico não correferencial deve apoiar-se em informação contextuais, que servem

como âncoras atreladas aos conhecimentos de mundo do leitor.

Como pôde ser observado no exemplo (11), apresentado anteriormente na seção 4.2,

retirado da cantiga 306 e transcrito abaixo, o item angeo do ceo faz referência à anunciação do

anjo Gabriel, fato bíblico que requer um conhecimento específico sobre a história da Virgem

Maria.

Aly ést’ hũa omagen da Virgen que non á par

pintada ena parede, e como a saudar

veo o angeo do ceo, per que s’ ouve d’ e[n]prennar

ela de Spirito Santo logo sen neũu lezer.

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[Ali há uma imagem da Virgem que não tem par pintada na parede, e como veio o anjo do céu para saudá-la, pelo que ela se engravidou do Espírito Santo sem demora.]

Nos exemplos (25), da cantiga 337, e (26) da cantiga 353, abaixo apresentados, têm-

se outros casos de ancoragem extratextual. Para Marcuschi (2010), essas anáforas são ancoradas

no conjunto de conhecimento textual. Trata-se de anáforas que exigem estratégias inferenciais

para sua interpretação.

A cantiga 337 narra como Santa Maria protegeu um menino sobre quem havia caído

um cavalo. Seu pai, com medo de que ele morresse, gritou muito alto pedindo o socorro da

Virgem Maria:

(25) E ynd’ en aquel cavalo, ouv’ assi de contecer

que dũa muit’ alta ponte foi o menynno caer

e o cavalo con ele, e ouveron de morrer.

Mais o padr’ abriu a boca e a Virgen foi chamar,

Dizend’ a mui grandes vozes: “Val-me, Reynna Sennor,”

Enton a Virgen beeita, que seu Fillo Salvador

tiia ontre seus braços, ouve da voz tal pavor

como quando Rei Herodes lle quis seu Fillo matar.

E mandou a esses santos que o fossem acorrer

que y estavan, e ela foi o seu Fill’ asconder

con medo daquel braado, que o non podes[s]’ aver

Rei Herodes, e porende foi logo passar o mar.

[E indo o menino naquele cavalo, assim aconteceu que ele caiu de uma ponte muito alta, e com ele, o cavalo; e ambos morreram. Mas o pai, abrindo a boca, chamou a Virgem. E disse em altas vozes: “Socorre-me, Senhora Rainha.” Então a Virgem bendita, que tinha seu Filho Salvador entre os braços, teve tal pavor daquela voz como quando Rei Herodes quis matar seu Filho. E esses santos que aí estavam, ela os mandou que o fossem socorrer, enquanto ela foi esconder seu Filho com medo daquele brado, para que Rei Herodes não pudesse pegá-lo. E por isso logo foi passar o mar.]

(Cantiga 337, v. 30 – 38)

(26) E de tal razon com’ esta vos direi, se vos prouguer,

miragre que fez a Virgen, que sempre nosso ben quer,

per que ajamos o reyno de seu Fill’, ond’ a moller

primeira nos deitou fora, que foi malament’ errar

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En comer hũa maçãa, que ante lle defendeu

Deus que per ren non comesse, e porque dela comeu

e fez comer seu marido Adan, logo lles tolleu

o reino do Parayso e foy-os end’ eixerdar.

[E sobre isso vos contarei, se vos agradar, um milagre que fez a Virgem, que sempre quer nosso bem, para que tenhamos o reino de seu Filho, de onde nos tirou a primeira mulher, que mal errou ao comer uma maçã, que antes Deus lhe proibira de comê-la por nada, e porque dela comeu e fez seu marido Adão comer, logo lhes tirou o reino do Paraíso e por isso os deserdou.]

(Cantiga 353, v. 6 – 14)

No exemplo (25), o autor exige que o leitor tenha conhecimento de um fato ocorrido

após o nascimento de Jesus. Quando Rei Herodes ficou sabendo do nascimento do menino,

mandou que fossem mortas todas as crianças que tivessem menos de dois anos. Maria, com

temor, fugiu para o Egito com o menino. Além disso, é preciso que o leitor saiba que as crianças

mortas nesse episódio são invocadas como “santos inocentes” pela igreja. A par de todo esse

conhecimento é que o leitor é capaz de interpretar o item a esses santos. Tal como observado

por Marcuschi (2010), como esse tipo de anáfora não está ligado a relações semânticas inscritas

no léxico, elas exigem um esforço cognitivo maior em seu processamento.

No exemplo (26), a expressão a moller primeira faz referência a Eva. Essa informação

está ancorada ao mesmo tempo no conhecimento armazenado na memória dos interlocutores,

mas também é desencadeado por informações cotextuais. Na 2ª estrofe, o autor relata fatos

como comer uma maçã, seu marido Adão e ser expulso do Paraíso que remetem a Eva.

Os exemplos aqui analisados remetem a tipos diferentes de ancoragem textual.

Conforme apontam Apothéloz e Richeiler-Béguelin (1999), a origem da informação prévia,

necessária à interpretação do item anafórico, pode estar em foco, ou no cotexto, ou no

conhecimento partilhado. De qualquer maneira, é imprescindível que a informação presente na

memória dos interlocutores promova as costuras necessárias ao entendimento do texto.

Vemos que nos exemplos (21), (22) e (23) a informação era identificável no cotexto,

pelas relações existentes entre nave – maestre, cuba – tapon, pintada – pintor. Já os exemplos

(24) e (25) requerem informações que não são identificáveis no cotexto, mas são compartilhadas

entre os interlocutores: o leitor precisa ter conhecimento da obra de D. Afonso X e saber que as

crianças mortas pelo Rei Herodes são invocadas como santos. No exemplo (26), a informação

necessária é engatilhada por elementos do cotexto precedente, que ajudam a construir a

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interpretação requerida: a mulher comeu a maçã, ofereceu-a ao marido, que se chamava Adão,

e, por isso, foram ambos expulsos do Paraíso.

A partir desses exemplos e do corpus estudado, nota-se que as C.S.M. apresentam uma

riqueza de estruturas anafóricas que permitem acrescentar informações novas ao texto,

ancoradas em informações compartilhadas entre os interlocutores.

Além disso, as anáforas não correferenciais encontradas no corpus são constituídas

por um SN definido que mantém com a âncora uma relação com base em conhecimentos

semânticos e conhecimentos armazenados na memória do interlocutor.

Pela análise aqui apresentada, fica evidente que as anáforas não correferenciais sofrem

uma certa dependência interpretativa, de modo que o referente é apresentado como conhecido,

ou como identificável, embora ele não tenha sido explicitamente designado.

Dessa forma, juntamente com Zamponi (2003), acredito que a dimensão discursivo-

interacional, bem como os aspectos cognitivos (que englobam tanto a memória e sua

organização, como o funcionamento da produção/recepção do discurso), são imprescindíveis

para a interpretação da anáfora não correferencial, uma vez que esses fatores devem ser

necessariamente considerados quando se pretende definir o fenômeno. Afinal, o objeto de

discurso é construído, reconstruído, reavaliado dentro da dinamicidade que constitui o discurso.

Assim sendo, não creio que as anáforas não correferenciais possam ser circunscritas apenas à

perspectiva semântica, de acordo com a qual as relações devem estar previstas no léxico,

cabendo ao discurso apenas confirmar essas relações. No entanto, não desconsidero a

importância do conhecimento semântico, penso que a anáfora não correferencial deve ser

interpretada com base no conhecimento semântico e no conhecimento enciclopédico. Conforme

postula Charolles (1999), nesse tipo de anáfora, o referente é recuperado mais por causa de

interpretação pertinente do que por fatores semânticos. Pode-se afirmar, então, que o discurso

impõe os elementos necessários que levam à interpretação apropriada.

4.5 Síntese

Pela análise das cantigas que compõem o corpus, foi possível observar que as anáforas

correferenciais sem recategorização são realizadas preferencialmente por pronomes de 3ª

pessoa e por repetição, total ou parcial, do mesmo item lexical. Já as anáforas correferenciais

recategorizadoras são feitas principalmente por descrições nominais, sendo a maioria delas

referentes a Santa Maria.

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A referenciação textual, ao instaurar e manter os objetos de discurso, pode ser vista

como suporte da construção do sentido do texto. Observando as C.S.M. nota-se que a introdução

e manutenção de referentes envolve a interação e, principalmente, os propósitos do autor. A

interpretação referencial torna-se, então, crucial para o entendimento da anáfora, ou seja, a

anáfora está diretamente relacionada aos procedimentos de determinação e identificação do

referente. Isso implica considerar que o texto é tecido por referentes que configuram a

progressão textual numa rede em que se destacam as relações anafóricas.

Quanto às anáforas não correferenciais, no corpus pesquisado, elas corroboram a

afirmação de que esse tipo de anáfora introduz um objeto de discurso novo como se fosse

conhecido, que é interpretado graças a informações contextuais e que o elemento anafórico

encontra sua interpretação no universo de conhecimentos partilhados entre os interlocutores.

Da tipologia organizada por Kleiber (2001), apenas não foram encontrados casos de anáforas

associativas locativas. Quanto à tipologia de anáforas indiretas elaborada por Marcuschi (2010),

não foi observado nenhum caso de anáfora realizada por pronome introdutor de referente, ou

seja, nenhum emprego de pronome sem antecedente explícito no cotexto.

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5 OS ENCAPSULAMENTOS NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA

Como já mencionado no capítulo 3, o encapsulamento anafórico é primariamente uma

paráfrase resumidora de conteúdos do cotexto precedente. Como formas remissivas, os

encapsulamentos cumprem também importante papel na organização do texto, uma vez que

além de introduzir referentes, eles podem operar mudanças de tópico.

Passo agora à apresentação de exemplos de anáforas encapsuladoras colhidos no

corpus aqui analisado. Será possível observar como elas contribuem para a manutenção

temática, funcionando como intermediárias entre a informação velha e a informação nova.

Como existe uma diferença estrutural entre o início da cantiga e o corpo da mesma, empreendi

a análise das partes separadamente. Primeiramente serão apresentados e analisados exemplos

retirados da parte inicial da cantiga, ou seja, do conjunto título-ementa, refrão e estrofes iniciais

e, na sequência, exemplos encontrados no corpo das cantigas. Por fim, analisa-se o emprego do

item onde operando como elemento encapsulador.

Com a apresentação e análise dos exemplos, busca-se observar como o

encapsulamento anafórico cria novos referentes no texto, que se configuram como pontos

cruciais responsáveis pela coesão textual e pela organização do discurso.

5.1 O encapsulamento anafórico nas estrofes iniciais

Segundo já apontado por Leão (1997), Canedo (2000), Nogueira (2001) e outros mais,

as cantigas marianas de D. Afonso X possuem uma estrutura narrativa básica, que pode ser

sintetizada da seguinte maneira:

1 título-ementa (em prosa), contendo o resumo do assunto tratado;

2 refrão, apresentando o tema;

3 sequência de estrofes compostas de louvores ou narrativas, segundo o gênero da cantiga

(“de loor” ou “de miragre”)

Nesse último gênero, cantigas de milagre, em geral as duas primeiras estrofes

costumam servir de reforço à ementa, anunciando, numa ação prospectiva, o milagre a ser

narrado.

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Ao apresentar esse tipo de estrutura (título-ementa, refrão e estrofes iniciais), o autor

estabelece um quadro de referência geral, que suscita no ouvinte/leitor determinadas

expectativas que, de certa maneira, servem para dirigir a interpretação esperada. Vejamos um

exemplo, no seguinte excerto inicial da cantiga 301:

(1) COMO SANTA MARIA DE VILA-SIRGA TIROU UN ESCUDEIRO DE PRIJON, QUE

O TIINNAN EM CARRON PERA MATAR.

Macar faz Santa Maria miragres dua natura,

muitas vezes y os cambia por mostrar ssa apostura.

E daquest’ un gran miragre demostrou hũa vegada

a Virgen em Vila-Sirga, na sa egreija onrrada,

por un escudeiro preso que ena prijon rogada

a ouve que o livrasse daquela prijon tan dura.

[COMO SANTA MARIA DE VILLA-SIRGA TIROU DA PRISÃO UM ESCUDEIRO, QUE TINHAM EM CARRON PARA MATAR.

Embora Santa Maria faça milagres de uma natureza muitas vezes os muda para mostrar sua nobreza.

E sobre isso um grande milagre fez a Virgem uma vez em Vila-Sirga, na sua igreja honrada, por um escudeiro preso que lhe havia rogado que o livrasse daquela prisão tão dura.]

(Cantiga 301, ementa, refrão, 1ª estrofe)

Pode-se observar, pelo exemplo acima, a estrutura característica das cantigas de

milagre: inicia-se com o título-ementa, espécie de resumo do assunto a ser tratado, em seguida

vem o refrão, que enuncia o tema da cantiga, na maioria das vezes um artigo de fé ou um

conselho de validade permanente (LEÃO, 1997). Na sequência, são apresentadas as estrofes

laudatórias ou de milagre, conforme a espécie da cantiga. No exemplo em questão, a primeira

estrofe se inicia pela anáfora encapsuladora E daquest’, que remete ao conteúdo do refrão,

deixando claro para o leitor que aí se encontra a razon do milagre que será narrado. Dessa

forma, o autor consegue, desde o início, instigar a curiosidade do ouvinte/leitor e garantir a sua

atenção. Vejamos outro exemplo da cantiga 308:

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(2) COMO SANTA MARIA GUARIU ENA ÇIBDADE DE RARA UA MOLLER

YDROPICA.

De todo mal pod’ a Virgen a quena ama sãar,

sol que am’ a Deus, seu Fillo, que soub’ ela muit’ amar.

E dest’ un mui gran miragre vos quer’ eu ora mostrar

que mostrou en hũa vila que Rara soen chamar,

qu’ é em terra de Sosonna, e per com’ oý contar,

por hũa moller a Virgen, que non ouve nen á par.

[COMO SANTA MARIA CUROU UMA MULHER HIDRÓPICA NA CIDADE DE RARA.

De todo mal pode a Virgem curar aquele que a ama, desde que ele ame a Deus, seu Filho, que ela soube muito amar. E sobre isso um grande milagre vos quero agora contar que a Virgem, que nunca teve nem tem par, fez por uma mulher em uma vila que é chamada Rara, e que está na terra de Sosonna, como eu ouvi contar.]

(Cantiga 308, ementa, refrão, 1ª estrofe)

Essa função de retomada do título-ementa e do refrão tem como marcador linguístico

preferencial o elemento demonstrativo, a maioria neutro como desto, poren e daquesto, que,

deslocado, para o início da estrofe, resume o que foi dito anteriormente e antecipa o

acontecimento miraculoso a ser narrado. Esse item contribui para o estabelecimento da coesão

textual, remetendo-nos ao tema expresso no refrão e instituindo, ao mesmo tempo, a estratégia

de antecipação do milagre a ser contado.

Percebe-se, a partir da análise empreendida, que a primeira estrofe cumpre papel

crucial no estabelecimento da coesão entre o título-ementa, o refrão e o restante da cantiga. Em

30, das 50 cantigas analisadas, há a presença de um elemento encapsulador na primeira estrofe

e, em 27 dessas ocorrências, aparece o pronome demonstrativo. Uma análise do emprego dos

pronomes demonstrativos nas anáforas encapsuladoras demonstra que eles são bastante

recorrentes no corpus em questão. Observe-se os exemplos abaixo das cantigas 309 e 345:

(3) ESTA É COMO SANTA MARIA VEO EN VISON EN ROMA AO PAPA E AO

EMPERADOR E DISSE-LLES EN QUAL LOGAR FEZESSEN A EIGREJA.

Non deven por maravilla teer en querer Deus Padre

mostrar mui grandes miragres pola beeita sa Madre.

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Dest’ un fremoso miragre vos direi que foi verdade

que mostrou Santa Maria en Roma, nobre cidade,

eno tempo que ja era tornada en creschandade,

por acrecentar a lee de Deus, seu Fill’ e seu Padre.

[ESTA É COMO SANTA MARIA APARECEU EM SONHO EM ROMA O PAPA E AO IMPERADOR E DISSE-LHES EM QUAL LUGAR FARIAM A IGREJA. Não devem ter como milagre que Deus Pai queira realizar grandes milagres pela sua Mãe bendita.

Sobre isso vos contarei um formoso milagre realmente acontecido feito por Santa Maria em Roma, nobre cidade, na época em que já estava convertida ao Cristianismo, por ter aceito a lei de Deus, seu Filho e seu Pai.]

(Cantiga, 309, ementa, refrão, 1ª estrofe)

(4) COMO SANTA MARIA MOSTROU EN VISON A UU REI E A HUA REYA COMO

AVIA GRAN PESAR PORQUE ENTRARON MOUROS A SA CAPELA DE XEREZ.

Sempr' a Virgen groriosa faz aos seus entender

quando en algũa cousa filla pesar ou prazer.

E desta gran maravilla ũu chanto mui doorido

vos direi que end' aveo, sol que me seja oydo,

que conteceu en Sevilla quando foi o apelido

dos mouros como gãaron Xerez con seu gran poder.

[COMO SANTA MARIA MOSTROU, EM SONHO, A UM REI E A UMA RAINHA O SEU GRANDE PESAR, POR QUE ENTRARAM MOUROS EM SUA CAPELA EM XEREZ. A Virgem gloriosa sempre faz entender aos seus, quando, em alguma coisa, sente pesar ou prazer.

E sobre este grande milagre, que então aconteceu em Sevilha, eu vos direi, desde que me ouçais. Houve um pranto muito lastimoso, quando se deu a revolta dos mouros, que ganharam Xerez, com seu grande poder.]

(Cantiga 345, ementa, refrão, 1ª estrofe)

Em (3), há a ocorrência de uma anáfora encapsuladora composta pelo demonstrativo

dest’, que confere estatuto de referente ao conteúdo expresso anteriormente e orienta o foco de

atenção do leitor. Já em (4), a expressão anafórica tem em sua composição um pronome

demonstrativo este e um modificador gran, que enfatizam que a avaliação feita para maravilla

está ligada ao contexto narrativo. A organização dessa porção textual se dá pelo

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encapsulamento, que sumariza a informação anterior e deixa clara a posição do autor quanto ao

que será narrado.

A presença do pronome demonstrativo na anáfora encapsuladora confere estatuto de

referente ao conteúdo resumido e orienta o foco de atenção do leitor. É importante ressaltar que

a escolha do demonstrativo para recuperar o contexto anterior demonstra uma intervenção do

enunciador a fim de “operar uma nova apreensão do referente, que passa, desse modo, a se

distinguir de outros da mesma categoria” (MAINGUENEAU, 2001, p. 187).

Não apenas a primeira estrofe da cantiga desempenha a função de reforçar o tema

anunciado no título-ementa ou proclamado no refrão. Isso também acontece na segunda e até

na terceira estrofe, porém menos recorrente que na primeira. Em 20 cantigas do corpus

analisado há elemento encapsulador na segunda estrofe e, em 9 cantigas, ele aparece na terceira.

Esses números demonstram a preferência por fazer a retomada do título-ementa e do refrão o

mais próximo possível dessas partes. Isso justifica o menor número de encapsulamentos na

terceira estrofe. Abaixo apresento um exemplo de encapsulamento realizado na segunda estrofe

da cantiga 306:

(5) [C]OMO SANTA MARIA FEZ CONVERTER UN EREGE EN ROMA QUE DIZIA

QUE SANTA MARIA NON PODIA SEER VIRGEN E AVER FILLO.

Por gran maravilla tenno de null’ ome s’ atrever

a dizer que Deus non pode quanto xe quiser fazer

E com’ é om’ atrevudo en querer saber razon

por que fezo Deus as cousas que non eran ant’ e son

ora, muit’ é de mal siso; ca as obras de Deus non

son pera saber-sse todas, nen pode per ren ser.

E daquest’ un gran miragre aveo, per com’ oý,

a ũu herege en Roma, e contan que foi assi,

dũa omagen que era da Virgen, com’ aprendi,

pintada ena eigreja, como vos quero dizer.

[COMO SANTA MARIA, EM ROMA, CONVERTEU UM HEREGE QUE DIZIA QUE ELA NÃO PODIA SER VIRGEM E TER FILHO. Tenho como grande milagre nenhum homem se atrever a dizer que Deus não pode fazer tudo quanto quiser. E como o homem é atrevido em querer saber a razão por que Deus fez as coisas, que não existiam antes e existem agora, também é sem juízo; pois as obras de Deus não são para serem todas conhecidas, nem pode por nada ser.

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E a esse respeito um grande milagre aconteceu a um herege em Roma, como ouvi, e contam que foi assim, como fiquei sabendo, de uma imagem da Virgem, que era pintada na igreja, como vos quero contar.]

(Cantiga 306, ementa, refrão, 1ª e 2ª estrofes)

Nesse exemplo, o encapsulamento feito pelo pronome demonstrativo neutro daquest’

sumariza todo um trecho anterior e demonstra a complexidade da interpretação de

encapsulamentos como esse. Embora auxilie na progressão textual, pode-se perguntar que

objeto de discurso é construído pelo pronome. Acredito haver as seguintes possibilidades: uma,

a de existir uma referência ao refrão, ou seja, daquest’ refere-se ao grande milagre aludido no

refrão. Outra possibilidade é a do demonstrativo se referir à primeira estrofe e ao fato de o

homem não ter que saber sobre todas as obras de Deus. Pode-se também interpretar o pronome

demonstrativo como encapsulador de todo o conjunto: refrão e primeira estrofe. Em qualquer

um dos casos, a escolha feita pelo leitor parece não afetar a progressão textual.

Observe-se agora um exemplo, da cantiga 313, com elemento encapsulador na terceira

estrofe:

(6) ESTA É DA NAVE QUE ANDAVA EN PERIGOO DO MAR, E OS QUE ANDAVAN

EN ELA CHAMARON SANTA MARIA DE VILA-SIRGA, E QUEDOU LOGO A

TORMENTA.

Ali u todo-los santos non an poder de põer

consello, pono a Virgen, de que Deus quiso nacer.

Ca razon grand’ e dereito é de mais toste prestar

sa graça ca d’outro santo, pois que Deus quiso fillar

sa carn’ e fazer-se ome por nos per ela salvar,

e feze-a de virtudes font’ e deu-lle su poder.

E poren dizer-vos quero dela un miragr’, e sei

que loaredes seu nome; aynda vos mais direi:

connoceredes de certo que sabença do gran Rei,

seu Fillo, de pran á ela por tal miragre fazer.

Aqueste miragre fezo, assi com’ aprendi eu,

a Virgen Santa Maria de Vila-Sirga con seu

poder; e parad’ y mentes e ren non vos seja greu,

ca eu de loar seus feitos ei sabor e gran prazer.

[ESTA É SOBRE O NAVIO QUE ESTAVA EM PERIGO NO MAR, E OS QUE ESTAVAM NELA CHAMARAM SANTA MARIA DE VILA-SIRGA, E A TORMENTA PAROU.

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Ali onde todos os santos não podem prestar socorro, presta-o a Virgem, de quem Deus quis nascer. Porque de grande razão e justiça é que ela mais depressa que qualquer outro santo empreste sua graça, pois Deus quis tomar a sua carne e fazer-se homem para nos salvar, e a fez fonte de virtudes e deu-lhe seu poder. E por isso vos quero contar um milagre dela, e sei que louvareis seu nome; ainda mais vos direi: conhecereis de certo que sabedoria do grande Rei, seu Filho, sem dúvida ela tem para tal milagre fazer. Este milagre fez, assim como eu fiquei sabendo, a Virgem Santa Maria de Vila-Sirga com seu poder; e prestai atenção nisso e não vos será difícil, pois eu tenho alegria e grande prazer de louvar seus feitos.]

(Cantiga 313, ementa, refrão, estrofes iniciais)

O exemplo acima demonstra bem a função das estrofes iniciais no cancioneiro

mariano. As três primeiras estrofes cumprem, nesse caso, o papel de estabelecer o elo entre o

título-ementa, o refrão e o restante da cantiga. Além disso, elas são espaços em que o autor

apresenta esclarecimentos acerca do milagre que será narrado, mas, antes de tudo, é o lugar

preferencial em que o autor exorta os poderes da Virgem e esclarece por qual motivo ela foi

digna de recebê-los.

Nesse exemplo, observe-se a presença do termo razon na primeira estrofe, que

estabelece o elo entre o refrão e a cantiga. Esse termo é muito recorrente nas estrofes iniciais,

sua função será detalhada mais adiante. Na segunda estrofe, o elemento poren, cuja tradução é

por isso, retoma a primeira estrofe, estabelecendo a coesão entre as partes iniciais da cantiga.

Esse elemento fornece ao leitor instruções de conexão com a porção precedente do texto que

deve ser tomada como referência. Na terceira estrofe, a expressão aqueste miragre funciona

como uma paráfrase resumidora para o restante do texto. Esse é um exemplo prototípico de

expressões rotuladoras, que, em geral, são descritas como sintagmas nominais com núcleos

precedidos de demonstrativo ou de artigo definido e acompanhados ou não de qualificadores.

Além disso, a presença do demonstrativo possibilita uma definição mais precisa do elemento

anteriormente apontado no contexto.

Na segunda estrofe, o autor anunciou que contaria un miragre feito pela Virgem e que

ela possuía a sabedoria de Deus para realizar tal miragre. Na terceira estrofe, o autor retoma

todo esse assunto com o grupo nominal aqueste miragre. De acordo com Maingueneau (2001,

p. 187), a escolha do grupo nominal com determinante demonstrativo “designa de maneira

direta um referente apresentado como próximo do ato de enunciação”, uma vez que o

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demonstrativo exerce função localizadora, fornecendo instruções sobre a localização do

referente no texto. Além disso, o pronome demonstrativo distingue o referente de outros

referentes pertencentes à mesma categoria. Nesse caso, ao usar aqueste miragre o autor

seleciona um milagre específico entre vários outros.

Ainda considerando o exemplo acima, nota-se que o elemento encapsulador aqueste

miragre aparece em um ponto nodal no texto, funcionando como recurso de interpretação

intratextual. Dessa forma, ele retoma uma porção textual precedente e possibilita a continuidade

do tema, contribuindo para a progressão temática do texto e evitando uma ruptura brusca entre

as estrofes iniciais e o restante da cantiga.

Como aludido anteriormente, outro elemento encapsulador muito recorrente nas

estrofes iniciais das cantigas é razon. Segundo Montoya (1987), razon é vastamente usado nas

Cantigas e é difícil encontrar uma acepção apropriada que traduza o valor semântico desse

termo. De acordo com o glossário elaborado pelo filólogo Walter Mettman, razon significa

“matéria, tema, assunto, conteúdo, história”. Trata-se de um termo genérico, cujo sentido

necessita ser determinado pelo texto. Observe-se o exemplo abaixo, retirado da cantiga 351:

(7) ESTA É COMO SANTA MARIA ACRECENTOU O VYO NA CUBA EN ARCONADA,

HUA ALDEA QUE É PRETO DE PALENÇA.

A que Deus avondou tanto que quiso dela nacer,

bem pode avondar as outras cousas e fazer crecer.

E desta razon miragre [mui] fremoso vos direi,

que mostrou Santa Maria, com’ eu en verdad’ achei,

na eigreja d’ A[r]conada, hũ’ aldeã que eu sey

que é preto de Palença; e oyde-m’ a lezer.

[ESTA É COMO SANTA MARIA COLOCOU VINHO NA CUBA EM ARCONADA, UMA ALDEIA PERTO DE PALENÇA. A que Deus tanto favoreceu que dela quis nascer, bem pode favorecer as outras coisas e fazê-las crescer.

E sobre este tema vos contarei milagre muito formoso, que fez Santa Maria, como eu achei em verdade, na igreja de Arconada, uma aldeia que, como se sabe, é perto de Palença; e ouvi-o de mim sem pressa.]

(Cantiga 351, ementa, refrão, 1ª estrofe)

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O termo razon sumariza o segmento anterior do texto, ou seja, o refrão, transformando-

o em objeto de discurso e criando, assim, a possibilidade de progressão textual. Esse termo

exige uma realização lexical no contexto e requer que o leitor opere a interpretação não só da

expressão em si, como também da informação cotextual.

Montoya (1987) observa que a posição preferencial para esse elemento são os versos

iniciais. Além disso, o contexto e a posição ocupada pelo termo expressam uma íntima relação

entre refrão e razon. O refrão contém um pensamento de caráter moral ou religioso que possui

uma relação com o conteúdo da cantiga. O termo razon é um modo de orientar a leitura da

cantiga como se significasse “aquilo que foi dito acima”.

Pelo que se pode constatar, a função das estrofes iniciais nas cantigas de milagre é, em

geral, diferente das demais estrofes, uma vez que lhes cabe estabelecer a coesão entre o título-

ementa, o refrão e o restante da cantiga além de antecipar, em forma de resumo, o acontecimento

miraculoso que será narrado. Assim, nessa parte das cantigas, os elementos encapsuladores

cumprem uma importante função organizadora: marcar que o autor está mudando para uma fase

seguinte da narrativa. Ao encapsular a informação anterior é possível preservar a continuidade

tópica, colocando informação nova dentro de um esquema dado.

5.2 O encapsulamento anafórico nas estrofes narrativas

Por meio do encapsulamento anafórico, o autor de um texto pode recategorizar

segmentos textuais, acrescentar modificadores avaliativos, assegurar a integração semântica

entre as partes do texto e indicar como o leitor deve interpretá-las. Essas diferentes funções

exercidas pelo encapsulamento possibilitam a organização sequencial do texto de modo a tornar

seu processamento mais claro, além de conduzir o leitor à interpretação desejada pelo autor.

Passo agora a analisar exemplos colhidos de estrofes que compõem o corpo das

cantigas, para além das estrofes iniciais. Busco observar os tipos de encapsulamentos

comumente utilizados pelo autor e suas respectivas funções no processamento discursivo-

textual.

Nas estrofes narrativas do corpus aqui analisado, foram encontrados 177

encapsulamentos anafóricos, retrospectivos e prospectivos. A tabela abaixo apresenta o número

de ocorrência desses encapsulamentos:

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Tabela 1 – Tipos de encapsulamento anafórico

Pronome demonstrativo 107 61%

SN com presença de pronome demonstrativo 46 26%

SN sem pronome demonstrativo 11 6%

Onde - Articulador discursivo 13 7%

Total 177 100%

Observe-se que o pronome demonstrativo está presente em 87% dos encapsulamentos

encontrados no corpus, ora é usado apenas o pronome demonstrativo, ora ele compõe o SN. O

uso do pronome demonstrativo garante a integração semântica entre as sequências textuais, uma

vez que auxilia na localização do referente. Assim, ele contribui para a manutenção e progressão

tópica do texto.

O exemplo abaixo, da cantiga 305, ilustra o papel desempenhado pelo demonstrativo.

Nas estrofes iniciais, o autor solicita que o interlocutor preste atenção no milagre que será

narrado, apresenta a beneficiária do milagre, uma pobre mulher pecadora, que confessa seus

pecados a um frade e pede que ele registre tudo em uma carta.

(8) E el deu-lla de tal guisa, mandando-lle que fezesse

serviç' a Santa Maria per que sa mercee ouvesse,

e ja[j]ũas[s]’ as sas festas e oysse seus sermões.

Tod’ esto lle pos en carta, e des i ar seelou-a;

e a moller mui de grado a fillou e pois guardo[u]-a

en seu seo, e tan toste pera ssa casa levou-a.

[E ele [o frade] deu-lhe a carta, mandando que ela prestasse serviço a Santa Maria para que tivesse sua misericórdia, que jejuasse em suas festas, e que ouvisse seus sermões.

Tudo isso ele pôs na carta, e também a lacrou; e a mulher, muito agradecida, a pegou, depois guardou-a no seu seio e logo para sua casa a levou.]

(Cantiga 305, v. 16 – 22)

A expressão tod’ esto sumariza as instruções dadas pelo frade e colocadas na carta,

quais sejam: prestar serviço à Virgem, jejuar e ouvir sermões. Dessa forma, o autor se vale do

encapsulamento não só para fazer remissão a uma parte do texto, mas também para indicar a

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localização da sequência antecedente que estava sendo encapsulada e garantir a integração

semântica entre essas sequências.

Nas estrofes finais dessa mesma cantiga, o autor novamente utiliza o encapsulamento

anafórico para retomar porções textuais. Para melhor entendimento, apresento uma paráfrase

da sequência da cantiga: a pobre mulher pedia esmolas e onde quer que fosse levava consigo a

carta, mas ela sofria muita fome e muito frio. Um dia, ela chegou em uma cidade e encontrou

um cambiador que fazia troca de moedas. A mulher então pediu a ele uma esmola em nome de

Nossa Senhora, e ele disse que não era possível. Ela então mostrou-lhe a carta que possuía, e o

cambiador disse que daria em dinheiro o que a carta pesasse. A mulher, confiando na Virgem,

permitiu que o homem colocasse a carta na balança. A carta pesou tanto que o cambiador

precisou de outra balança, maior que a primeira. Ele colocou dois bolsões cheios de ouro e

prata, mas a carta pesou muito mais.

(9) Quand’ o cambiador viu esto pediu por Santa Maria

mercee que sse leixasse do peso, e lle daria

quant’ ela do seu quisesse, per que sempre viviria

ben e avondadamente. E molleres e barões,

Quantos este feito viron, tan toste lle consellaron

que o fezess’ e foi feito; e log’ a Virgen loaron

por tan fremoso miragre, e con prazer choraron

todos, geollos ficados con mui grandes devoçoes.

[Quando o cambiador viu isso pediu misericórdia a Santa Maria para que se esquecesse do peso, e ele lhe daria do seu quanto ela quisesse, para que sempre vivesse bem e em abundância. E mulheres e homens, quantos viram esse feito, logo lhe aconselharam que o fizesse e assim foi feito. Logo à Virgem louvaram por tão formoso milagre, e com prazer todos choraram, fincando no chão os joelhos com grande devoção.]

(Cantiga 305, 14ª e 15ª estrofes)

No excerto acima, o pronome esto retoma as duas estrofes anteriores e encapsula a

informação, transformando-a em objeto de discurso. Já o SN este feito pode ser caracterizado

como uma anáfora resumitiva, pois a retomada não se dá de forma direta, mas através da

ativação de elementos discursivos. Esse SN sumariza as informações expressas ao longo da

cantiga. O emprego do pronome demonstrativo no encapsulamento anafórico demonstra o

processo pelo qual um item anafórico pode ativar um objeto de discurso, a partir de informações

cotextuais, sem estabelecer entre eles uma relação de correferência. Esse mecanismo permite

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conferir estatuto de referente ao conteúdo resumido no encapsulamento e orientar o foco de

atenção do leitor.

O encapsulamento anafórico é muito usado nas cantigas quando o autor quer recuperar

a fala de algum personagem, como se pode atestar no exemplo abaixo, da cantiga 351, que narra

como Santa Maria colocou vinho em uma cuba:

(10) E porend’ aquela gente se quisera yr enton;

mas chegou ũu ome boo, que lles diss’ esta razon:

“Vaamos catar a cuba e tiremo-ll’ o tapon

mais de ffond’, e per ventura pod’ y algun pouc’ aver.”

Enton log’ aquela gente aa cuba sse chegou,

e o que lles diss’ aquesto ben per cima a catou

e achou-a toda chea e a todos la mostrou,

e porend’ a Virgen santa fillaron-ss’ a beeizer.

[E por isso aquelas pessoas quiseram ir embora, mas chegou um homem bom que lhes disse esta sentença: “Vamos olhar a cuba e tirar-lhe a rolha, mais no fundo, por acaso, pode haver aí um pouco [de vinho].” Então logo aquelas pessoas aproximaram-se da cuba e o homem que lhes dissera aquilo olhou-a bem por cima, encontrou-a toda cheia e a todos a mostrou; e por isso começaram a bendizer a Virgem santa.]

(Cantiga 351, 7ª e 8ª estrofes)

Note-se que com o pronome demonstrativo aquesto o autor retoma a fala do homem

que havia sido apresentada na estrofe anterior. Como já dito, essa estratégia foi bastante

recorrente no corpus analisado.

Outro lugar em que comumente se encontra encapsulamentos nas cantigas observadas

é na parte final, cumprindo o papel de recuperar todo o conteúdo da cantiga como meio de

justificar os louvores que devem, segundo o autor, ser dados à Virgem. É o que se pode observar

no exemplo abaixo da cantiga 335:

(11) E deste miragre todos deron mui grandes loores

aa Virgen groriosa, que é Sennor das sennores,

que mostra grandes miragres sempre aos peccadores,

por fazer que sejan bõos e se partan de maldade.

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[E por esse milagre todos deram grandes louvores à Virgem gloriosa, que é Senhora das senhoras, que sempre faz grandes milagres aos pecadores, para fazer que sejam bons e que se apartem da maldade.]

(Cantiga 335, 21ª estrofe)

Essa cantiga narra a conversão de um gentio. Trata-se de um homem que não

acreditava em Deus, mas que era caridoso e dava aos pobres mais do que podia. Um dia a

Virgem, com seu Filho nos braços, apareceu para ele e pediu-lhe o que comer. Porém o homem

já havia dado tudo o que tinha aos pobres. A Virgem insistiu e ele foi procurar nas arcas se

havia sobrado um pouco de farinha. Do pouco que tinha ele fez uma papa e, quando foi entregá-

la à mulher, não a encontrou. O homem então mandou que seus servos fossem procurar uma

mulher com seu filho pela vizinhança. Mas eles não conseguiram encontrá-los. Quando o

homem retornou, viu que suas arcas estavam tão cheias de trigo, cevada e farinha que ele

poderia alimentar toda a cidade. O homem então foi até os cristãos, contou o fato e perguntou

se havia entre eles uma imagem de uma mulher com o filho nos braços. Os cristãos responderam

que tinham a imagem da Virgem gloriosa e levaram o homem até a igreja para vê-la. Quando o

gentio viu a imagem, pediu que fosse batizado, o que logo foi feito. Então todos deram louvores

à Virgem por esse milagre.

Note-se que a expressão e deste miragre encapsula o conteúdo de toda a cantiga. Essa

é uma estratégia muito utilizada pelo autor das cantigas para sumarizar tudo o que foi narrado

e justificar o fato de que os homens devem sempre louvar a Madre de Deus.

Apresento agora a cantiga 345 completa14 a fim de exemplificar como o

encapsulamento anafórico, ao apontar para uma porção textual, representa uma atividade de

compreensão textual:

(12) COMO SANTA MARIA MOSTROU EN VISON A UU REI E A HUA REYA COMO AVIA

GRAN PESAR PORQUE ENTRARON MOUROS A SA CAPELA DE XEREZ.

Sempr' a Virgen groriosa faz aos seus entender

quando en algũa cousa filla pesar ou prazer.

E desta gran maravilla ũu chanto mui doorido

vos direi que end' aveo, sol que me seja oydo,

que conteceu en Sevilla quando foi o apelido

dos mouros como gãaron Xerez con seu gran poder.

14 A tradução da cantiga 345 foi feita por Fransmarina Lourenço Assunção integrante do grupo de estudo das

Cantigas de Santa Maria da PUC-MG.

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Enton el Rei Don Affonso, fillo del Rei Don Fernando,

reinava, que da Reynna dos ceos tiia bando

contra mouros e crischãos maos, e demais trobando

andava dos seus miragres grandes que sabe fazer.

Este dous anos avia, ou ben tres, que gaannara

Xerez e que o castelo de crischãos ben pobrara;

pero a vila dos mouros como y estava leixara,

e aveo que por esto a ouvera pois a perder.

Ca os mouros espreitaron quando el Rei ben seguro

estava deles, e toste foron fazer outro muro

ontr' o castel' e a vila, muit' ancho e fort' e duro;

e daly os do castelo fillaron-s' a conbater

Tan feramente, en guisa que ũu ric-ome onrrado

muito, que dentro jazia, e Don Nun' era chamado,

con peça de cavaleiros, foi de tal guisa coitado,

que al Rey enviou logo que o mandass' acorrer.

El Rei quand' oyu aquesto, fez logo toda sa oste

mover, e ar mandou logo sacar seu pendon mui toste

de Sevilla, e ssa tenda e cozynna e reposte,

querend' yr aquela noite a Guadeyra mãer.

E el estand' en aquesto, ar veo-ll' outro mandado

de Don Nuno, que lle disse de com' estava cercado

e que per seu corpo fosse ll' acorrer; se non, pagado

per outr' ome non seria. E el Rei foi aprender

Que esto que ll' enviava dizer que o ajudasse,

que por al nono fazia senon que, quando chegasse

el Rei a Xerez, que logo o castelo ll' entregasse,

que per dereit' e per foro non devia a seer.

Quand' el Rey oyu aquesto, connoceu as maestrias

con que ll' andava, e logo fillou sas cavalerias

que ll' enviou en acorro, e foron y en dous dias;

e tan toste que chegaron, foi-os logo a veer.

E el disse-lles que grande prazer con eles avia,

mais que aquele castelo per ren teer non podia

e que per nulla maneira en el morrer non queria,

e a eles rogou muito que o fossen receber.

Eles, quand' oyron esto, atal acordo tomaron

que leixassen no castelo poucos omes; e leixaron

maos e tan mal guisados, e assi o aguisaron

que ante de meio dia s' ouv' o castel' a perder.

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138

E prenderon quantos eran en ele sen demorança,

e britaron a capela da que é noss' anparança,

e fillaron a omagen feita a ssa semellança

e foron pola queimaren, mais sol nunca pod' arder.

Aa ora que aquesto fazian, ben en Sevilla

jazia el Rey dormindo na sesta; e maravilla

viu en sonnos, com' aquela que é de Deus Madr' e Filla

oya ena capela de Xerez vozes meter.

E tragia en seus braços ũu tan fremoso minyo

que mais seer non podia, pero era pequenyn[n]o;

e correndo aa porta da capela mui festyo

viia con el fugindo, ca viia fog' acender

Dentro e de grandes chamas arder toda a capela.

E porend' ela changendo se chamava: “Ai, mesela,

se perez' este minyo, que é cousa atan bela,

querria eu mil vegadas ante ca ele morrer.”

E a el Rey semellava que lle dizia: “Uviade

e, por Deus, este minyo que trag' en braços fillade

que o non queim' este fogo, e sequer a mi leixade;

ca se ele ficar vivo, eu mal non posso aver.”

El Rei, quand' aquest' oya, foi logo fillar correndo

ao meny' e à Madre do fogo que muit' ardendo

estava a grandes chamas. E el chorand' e gemendo

despertou daqueste sonno e fillou-o a dizer

A sa moller a Reynna, que jazia eno leito

cabo del, e este sonno lle contava tod' a eito.

E ela lle respondia ben de dereit' en dereito:

“Outro tal ei eu sonnado, | que vos quero retraer.”

[E] enton lle contou todo aquel sonno que sonnara,

e como a Santa Virgen ben do fogo a chamara

que lle tiras[s]' o minyo, e que ela os tirara

ambos do fogo e 'n salvo os fora enton põer.

Logu' el Rey e a Reya por aquesto entendudo

ouveron que o alcaçar de Xerez era perdudo

e a omagen da Virgen avia mal recebudo,

e porende se fillaron daquesto muit' a doer.

Mas depois a poucos dias quiso Deus que gaannada

Xerez este Rei ouvesse e de crischãos pobrada,

e a omagen da Virgen ena capela tornada

con mui gran precisson fosse, segun devia seer.

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139

E el Rey e a Reynna e seus fillos, que veeron

y con eles, a Deus graças porende mui grandes deron.

E quantos aqueste feito oyron pois e souberon,

o nome da Santa Virgen fillaron a beeizer.

[COMO SANTA MARIA MOSTROU, EM SONHO, A UM REI E A UMA RAINHA O SEU GRANDE PESAR, POR QUE ENTRARAM MOUROS EM SUA CAPELA EM XEREZ. A Virgem gloriosa sempre faz entender aos seus, quando, em alguma coisa, sente pesar ou prazer. E sobre este grande milagre, que então aconteceu em Sevilha, eu vos direi, desde que me ouçais. Houve um pranto muito lastimoso, quando se deu a revolta dos mouros, que ganharam Xerez, com seu grande poder. Reinava, então, Dom Afonso, o filho do Rei Dom Fernando, o qual tinha da rainha do céu um partido contra mouros e maus cristãos, e também trovava sobre os grandes milagres que ela sabe fazer. Havia bem dois ou três anos, este rei conquistara Xerez e povoara bem o castelo de cristãos; no entanto, a vila dos mouros, que lá já estava, ele a deixara e aconteceu, que, por isso, haveria de perdê-la depois. Porque, quando o rei estava bem seguro a respeito deles, os mouros o espreitaram e, imediatamente, fizeram outra muralha larga, forte e resistente, e dali puseram-se a combater os do Castelo tão violentamente, que um muito honrado rico homem, chamado Dom Nuno ,que ficara dentro do castelo com um grupo de cavaleiros, foi de tal modo ferido, que logo mandou pedir socorro ao rei. O rei, quando ouviu aquilo, fez mover toda a sua oste, e também logo mandou tirar rapidamente seu estandarte de Sevilha, sua tenda, sua cozinha, seus pertences, pois queria ir passar aquela noite em Guadeyra e lá permanecer. E estando o rei nisso, também lhe veio outro recado de Dom Nuno, dizendo-lhe como estava sitiado e que fosse socorrê-lo em pessoa, pois não ficaria agradecidose outro homem fosse. E o rei entendeu que aquilo que lhe mandava - que o ajudasse, que quando chegasse a Xerez, logo o Castelo lhe confiasse - não o faria; por direito e por costume não devia fazê-lo. Quando o rei ouviu isso, percebeu as artimanhas que lhe preparavam, e logo chamou suas cavalarias, que enviara em socorro; e nisso passaram-se dois dias. E assim que chegaram, o rei foi vê-los.

E disse-lhes que tinha grande prazer em estar ali com eles, mas que aquele castelo, não podia ter, e que, de modo algum, morrer nele não queria. Por isso, pediu-lhes muito que o fossem receber.

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140

Ao ouvirem isso, fizeram um acordo: deixariam no Castelo poucos homens, os piores e mais mal preparados, _ e assim de tal forma o fizeram _ que, antes de meio-dia, o Castelo foi perdido. E sem demora, prenderam quantos lá estavam, e quebraram a capela daquela que é a nossa esperança, e tomaram a imagem feita à semelhança dela, para queimá-la, mas ela sequer [no fogo] ardeu. Na hora em que isso faziam, em Sevilha, o Rei bem fazia a sua sesta, e, em sonhos, viu um milagre: como aquela que é de Deus Mãe e Filha, na capela, ouvia vozes gritando.

E trazia em seus braços um menino pequenino e tão formoso, que mais não podia ser. E vinha correndo, até a porta da capela, fugindo com ele, pois via o fogo alto e forte queimar toda a capela. E, por isso, chorando, ela clamava: “ai, desgraçada! Se morrer este menino, que é coisa tão bela, gostaria eu de morrer, em vez dele!” E ao rei, parecia que ela lhe dizia: “Correi, por Deus, tomai de mim este menino, que trago nos braços, para que este fogo não o queime; e a mim, apenas deixai-me, pois se ele continuar vivo, mal eu não ficarei. O rei, quando isso ouviu, foi logo correndo tirar o menino e a mãe daquele fogo, que ardia em grandes chamas. E chorando e gemendo, ele despertou daquele sonho e começou a contá-lo à sua mulher, a rainha, que estava no leito, perto dele. Este sonho ele lhe contava todo inteiro. E, imediatamente, ela lhe respondeu: “Outro igual eu sonhei que vos quero relatar”. E então contou-lhe todo aquele sonho que sonhara, e como a Santa Virgem chamava, para que lhe tirasse do fogo o menino; e ela a ambos os tirou e os pôs a salvo. O rei e a rainha, logo entenderam, por isso, que haviam perdido o castelo de Xerez, e que a imagem da Virgem havia recebido um dano, e por isso tiveram muita dor.

Mas poucos dias depois, quis Deus que esse rei ganhasse Xerez e a povoasse de cristãos, e a imagem da Virgem voltasse à capela, com grande procissão, conforme devia ser. O rei, a rainha e seus filhos, que lá foram com eles, deram graças a Deus, por isso. E depois, todos que esse feito ouviram e souberam, tomaram o nome da Santa Virgem e puseram-se a bendizê-lo.]

(Cantiga 345)

Essa cantiga narra um episódio da vida de D. Afonso X, no qual ele teve um

desentendimento com um homem rico chamado Dom Nuno, em Xerez, cidade localizada no

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Sul de Castela. Logo na primeira estrofe, como já demonstrado anteriormente, há a ocorrência

de uma anáfora encapsuladora que cumpre o papel de retomar o assunto apresentado no título-

ementa e o tema cantado no refrão.

Na sequência são apresentadas informações que darão suporte ao desenrolar da

narrativa e à compreensão do texto. Primeiramente, anuncia-se que o rei daquela época era Dom

Afonso, trovador fiel a Santa Maria. Em seguida, passa-se à narrativa dos fatos: Dom Afonso

havia conquistado Xerez fazia dois ou três anos e povoara o castelo com cristãos; mas havia na

redondeza uma vila de mouros. Nesse ponto da narrativa, é preciso que o leitor ative

conhecimentos prévios para a construção da cena. É necessário lembrar que o Sul da península

era domínio árabe e que os cristãos lutavam para reconquistar a região. Era época de vitórias e

perdas. Por isso, na quarta estrofe, o autor afirma que após um período de calmaria, em que o

rei estava seguro da conquista, os mouros voltaram a atacar o castelo. Então Dom Nuno pede

auxílio ao rei para que aquele castelo não fosse perdido. Para costurar toda essa narrativa inicial

ao que ainda será narrado, o autor usa o pronome demonstrativo aquesto, que sumariza todo o

trecho anterior. No entanto, mais uma vez, demonstra-se a complexidade da interpretação desse

tipo de encapsulamento. Pode-se perguntar qual objeto de discurso é construído por esse

pronome: ele encapsula toda a narrativa anterior, ou apenas o pedido de socorro de Dom Nuno.

De qualquer maneira, a escolha feita pelo leitor não prejudica a progressão textual, nem

tampouco a compreensão da cantiga.

O rei então começou a se arrumar a fim de partir para a luta, mandando movimentar

seu exército, tirar sua bandeira de Sevilha, sua tenda, sua cozinha, seus pertences para iniciar

sua ida a Xerez. Novamente, o leitor precisa acionar conhecimento enciclopédico para construir

a cena narrada. É preciso levar em conta como era difícil, na Idade Média, movimentar um

exército. Na sétima estrofe, o autor emprega a expressão en aquesto encapsulando toda a

informação referente à arrumação do rei. Note-se que essa anáfora encapsuladora identifica

informações cotextuais (a arrumação para a guerra) e contextuais (o conhecimento sobre a

dificuldade de se movimentar um exército), possibilitando a manutenção e progressão tópica

do texto.

Dom Nuno manda outro recado ao rei, pedindo que o mesmo fosse pessoalmente

ajudá-lo, pois ele estava sitiado. Na oitava estrofe, o emprego do pronome demonstrativo esto

encapsula esse pedido de Dom Nuno, mas também é um elemento catafórico ao explicar na

sequência da narrativa o sentido do pronome esto como âncora da informação precedente. Com

essa ativação ancorada, um novo objeto de discurso é introduzido com base em informação

anteriormente apresentada. Na cantiga, o pronome relembra qual era o pedido de Dom Nuno:

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que o rei o socorresse, pois assim que chegasse a Xerez o castelo lhe seria entregue. Em casos

assim, o pronome demonstrativo desempenha função dupla: encapsula um segmento anterior e

estabelece um novo referente que poderá constituir tema para enunciados subsequentes

(KOCH, 2010).

Porém não era costume que o castelo fosse devolvido assim com tanta facilidade. Na

nona estrofe, o pronome demonstrativo aquesto sumariza a conclusão do rei, tratava-se de uma

armadilha. No mesmo verso, o SN as maestrias resume em uma cápsula tudo o que se refere

às atitudes de Dom Nuno. Ao empregar esse SN, o autor orienta o leitor para a conclusão

desejada, ou seja, Dom Nuno era capaz de fazer artimanhas para enganar o rei.

O rei, então, chamou seu exército de volta e, assim que este chegou, ele foi conversar

com sua oste. Aqui, o narrador leva o leitor a imaginar a cena do rei discursando para seu

exército em busca de uma solução para o caso. O encapsulamento realizado por meio do

pronome demonstrativo esto, presente na décima primeira estrofe, estabelece a ligação entre o

discurso do rei e as providências que serão tomadas. Seriam enviados para aquele castelo

poucos homens, os piores e mal preparados.

Segue-se a narrativa do que acontecia no castelo de Xerez: a capela foi destruída e

queimada. No momento em que isso ocorria, o rei dormia e sonhava com a Virgem. O autor,

com o auxílio do pronome aquesto, na décima terceira estrofe, alinhava essas partes do texto.

Mais uma vez, encapsula a informação precedente à que se segue.

Em sonho, Santa Maria falou com o rei. O autor usa o pronome aquest’, na décima

sétima estrofe, para encapsular a fala da Virgem e apresentar qual atitude o rei tomou no sonho:

ele vai em socorro de Santa Maria e seu Filho. Então o rei acordou chorando e foi contar esse

sonho para a rainha.

O autor usa na décima oitava estrofe o SN este sonno para resumir o sonho do rei. Por

meio dessa sumarização, o SN retoma as estrofes anteriores que narram o sonho. O nome núcleo

do SN vem acompanhado do pronome demonstrativo que funciona como instrução para se

descobrir a informação-suporte do encapsulamento. Nessa mesma estrofe, aparece a expressão

outro tal que sumariza o sonho da rainha. Com essa expressão, o autor relaciona os sonhos do

rei e da rainha, cujo conteúdo coincidia.

Na estrofe seguinte, o SN todo aquel sonno introduz a narrativa feita pela rainha e,

mais uma vez, cumpre função dupla: rotula a porção de texto anterior e cria um objeto de

discurso que será tema dos versos seguintes.

Na vigésima estrofe, o pronome aquesto resume os sonhos que rei e rainha tiveram e

conduz à conclusão que eles tiraram do fato: haviam perdido o castelo de Xerez e a imagem da

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Virgem havia recebido algum dano. Novamente o pronome demonstrativo aquesto retoma e

encapsula toda essa informação.

Passados alguns dias o rei ganhou Xerez de volta, a povoou de cristãos e recolocou a

imagem da Virgem na capela. Por fim, na última estrofe, o SN aqueste feito resume todas as

informações anteriores e novamente demonstra a complexidade na interpretação que, por vezes,

o uso do demonstrativo pode causar. Esse SN pode estar encapsulando a estrofe anterior, que

narra que o rei ganhou Xerez de volta, ou pode se referir a todos os acontecimentos narrados na

cantiga.

A análise dessa cantiga demonstra que o encapsulamento anafórico é uma estratégia

muito produtiva na organização da informação e progressão tópica do texto. Os pronomes

demonstrativos, principalmente os neutros, abundantes nessa cantiga e no corpus, exercem a

função de fazer remissão a porções anteriores do texto, sem antecedente específico, resumindo-

as e criando novos objetos de discurso. Com isso, é possível ao autor do texto apresentar

informações e relacioná-las entre si sem repetir sequências já mencionadas. Além disso, o autor

indica como essas sequências devem ser compreendidas a fim de cumprir o propósito

pretendido, qual seja: dar louvores à Virgem pelas graças recebidas.

5.3.1 As expressões encapsuladoras prospectivas nas estrofes narrativas

Conforme apontado por Francis (2003), os SNs rotuladores podem realizar operações

prospectivas e retrospectivas. Os rótulos controlam o foco de atenção do leitor. Quando

prospectivas, as expressões rotuladoras cumprem um papel organizador e preditivo, pois

permitem ao leitor predizer a informação que se segue. Nas Cantigas também são utilizadas

expressões prospectivas para organizar as informações e construir a malha tópica do texto.

Abaixo apresento alguns exemplos colhidos no corpus analisado.

A cantiga 318 narra como Santa Maria se vingou de um clérigo que havia roubado a

prata da cruz. Esse milagre aconteceu em Fita (hoje Hita), uma vila perto de Toledo. Ali havia

um clérigo que aparentava ter grande devoção, mas possuía um coração cheio de maldade. Esse

religioso furtou da igreja uma cruz coberta de prata, raspou-a toda e deu a prata para uma

mulher. Num outro dia, ele foi à igreja, chorando, e mostrou a cruz a todos, fingindo que não

sabia de nada, disse que quem soubesse como aquilo havia acontecido e não contasse, seria

castigado por Deus e perderia a visão. Em seguida suplicou à Virgem Maria que mostrasse

quem tinha feito tal ato. Assim que disse isso, a Virgem o cegou e nenhum médico conseguia

curá-lo.

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(13) E outra lijon mui forte sen esto lle conteceu:

que se lle fez atan grande o nariz que lle deceu

sobre la boca, e d’ambas partes tanto s’ estendeu

que chegou aas orellas. E quen verdade quiser

Dizer: per ren non podia pouco nen muito comer,

se ant’ aquel nariz todo non ll’ alçassen, nen bever;

e mil vezes eno dia desejava de morrer.

Poren tenno por mui louco quen desto graças non der

Aa Virgen grorosa, Reynna esperital,

que non quis matar aqueste, mas pose-lle tal sinal

por que quantos lo pois vissen leixassen de fazer mal;

e dereit’ é que tal aja quena en pouco tever.

[E outra lesão muito forte além dessa lhe aconteceu: [a Virgem] lhe fez crescer um nariz tão grande que desceu sobre a boca e se estendeu tanto para os lados que chegou até as orelhas. E quem quiser a verdade dizer: de forma alguma não podia comer nem pouco nem muito, nem beber, se antes não lhe levantassem aquele nariz todo; e mil vezes por dia desejava morrer. Por isso tenho como louco quem não der graças à Virgem gloriosa, Rainha espiritual, que não quis matar aquele, mas pôs-lhe tal sinal para que quantos depois o vissem deixassem de fazer o mal; e é justo que tal [castigo] receba quem der pouco por ela.]

(Cantiga 318, 8ª, 9ª e 10ª estrofes)

O SN outra lijon mui forte permite ao leitor predizer a informação que se seguirá. A

escolha dos itens que compõem a expressão rotuladora é significativa, pois instrui o leitor sobre

como ele deve interpretar o segmento seguinte. O pronome outra traduz a ideia de que alguma

coisa a mais aconteceu com aquele religioso, ou seja, ela contribui para a acumulação de

significado no discurso. O nome nuclear lijon prediz a informação que virá a seguir, e o

modificador mui forte configura um juízo de valor do autor sobre o que havia acontecido. Esse

rótulo tem claramente um papel organizador que se prolonga por toda estrofe seguinte. Além

disso, ele está localizado na posição de tópico da estrofe, focalizando a informação nova. Assim,

ele pode ser retomado posteriormente no desenvolvimento do texto, uma vez que somente a

informação apresentada como nova pode ser prospectiva (FRANCIS, 2003). É o que acontece

na última estrofe, o autor retoma todo o conteúdo anterior com o SN tal sinal.

De acordo com Francis, a função do rótulo prospectivo é dizer ao leitor o que esperar,

uma vez que a motivação para seu uso ainda não foi fornecida. Veja-se o exemplo da cantiga

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351, que já foi mencionada anteriormente neste capítulo, como o autor deixa suspenso o que

será dito pelo homem:

(14) E porend’ aquela gente se quisera yr enton;

mas chegou ũu ome boo, que lles diss’ esta razon:

“Vaamos catar a cuba e tiremo-ll’ o tapon

mais de ffond’, e per ventura pod’ y algun pouc’ aver.”

[E por isso aquelas pessoas quiseram então ir embora, mas chegou um homem bom que lhes disse esta sentença: “Vamos olhar a cuba e tirar-lhe a rolha, mais no fundo, por acaso, pode haver aí um pouco [de vinho].”]

(Cantiga 351, 7ª estrofe)

Como afirma Francis, a lexicalização do rótulo prospectivo deve ser plenamente

realizada nas orações que se seguem e essas orações devem ser compatíveis com o rótulo. É o

que se pode observar no exemplo acima. O conteúdo de esta razon está lexicalizado nos versos

seguintes. Além disso, o núcleo do SN é um nome inespecífico e requer realização lexical no

contexto imediato, ou seja, sua especificação é uma escolha feita a partir de uma infinidade de

lexicalizações possíveis e é encontrada nas orações com que entra em relação.

No corpus aqui analisado, foram encontrados apenas 5 rótulos prospectivos, Mas,

apesar de poucos, eles corroboram a análise feita por Francis (2003), pois cumprem uma função

organizadora, mas também preditiva, uma vez que guiam o leitor dentro do espaço textual

controlando o foco de atenção. São importantes para a acumulação de significado no texto, pois

realizam sua lexicalização nas orações subsequentes. Por fim, são parte do foco da informação

nova e, por isso, podem ser retomados no desenvolvimento do texto transformando-se em um

novo referente textual.

5.4 O item onde como elemento encapsulador nas Cantigas de Santa Maria

Nas Cantigas de Santa Maria, o item onde chama a atenção por exercer funções

variadas. Conforme atesta Bittencourt (2006), é possível encontrá-lo no cancioneiro mariano

exercendo a função de pronome adverbial relativo com o sentido de “lugar donde” e “lugar

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onde”15. Abaixo apresento os exemplos citados pela autora seguidos das paráfrases também

feitas por ela, os quais atestam esse uso do elemento onde:

(15) Enton tod’ aquela gente que y juntada era

foron corrend’ aa casa ond’ essa voz veera,

e sacaron o menyo du o judeu o posera

viv’ e são, e dizian todos: “Que bon recende!”

[Então toda aquela gente que havia se juntado ali foi correndo à casa de onde viera essa voz e tiraram o menino, vivo e são, do lugar onde o judeu pusera. E todos diziam: “Como cheira bem!”]

(Cantiga 6, v. 72 – 75)

(16) E a tal vida usou

per u quer que andava

muito, que jajũou

nas feiras u mercava

mas pero nunca achou,

u quer que ele estava

quen lle fezesse nojo

ond’ ouvesse queixume.

[E [o mercador] levou esse tipo de vida por onde quer que fosse e jejuou nas feiras onde mercadava, mas nunca encontrou, onde quer que estivesse, que lhe fizesse onde houvesse queixume]

(Cantiga 116, 3ª estrofe)

Todavia, o que interessa ao presente trabalho é o aproveitamento desse item na

produção textual. O termo onde pode contribuir para a construção da malha tópica do texto.

Segundo Bittencourt (2006, p. 187), o onde “assumindo nuances semânticas de acordo com o

contexto em que era inserido, passou a ser um dos recursos mais constantes para “amarrar” as

diferentes passagens do relato empreendido”. A autora demonstra essa atuação do onde com o

seguinte exemplo (a paráfrase também foi elaborada pela autora):

(17) COMO SANTA MARIA GUARDOU UN MONGE DOS DIABOOS QUE O

QUISERAN TENTAR E SE LLE MOSTRARON EN FIGURAS DE PORCOS POLO

FAZER PERDER.

15 De acordo com a autora, o advérbio latino unde, forma originária de onde, significava ‘lugar donde’, ‘lugar de

origem’. Além disso, o latim contava com a forma ubi que indicava ‘lugar onde’, ‘no lugar em que’.

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A Santa Maria mui bon servir faz,

pois o poder ela do demo desfaz.

Onde aveo desto que en Conturbel

fez Santa Maria miragre mui bel

por un monge boo, cast’ e mui fiel,

que viu de diabres viir mui gran az.

[COMO SANTA MARIA LIVROU UM MONGE DOS DIABOS QUE O QUISERAM TENTAR, MOSTRANDO-SE A ELE EM FORMA DE PORCOS, A FIM DE FAZER COM QUE ELE SE PERDESSE. Aquele que serve a Santa Maria faz muito bem, pois ela desfaz o poder do demônio.

A propósito disso, aconteceu, em Canterbury, um milagre muito belo que Santa Maria operou em favor de um monge bom, casto e muito fiel, que viu se aproximar uma grande legião de demônios.]

(Cantiga 82, ementa, refrão, 1ª estrofe)

Segundo Bittencourt, nesse exemplo o elemento onde, da mesma forma que os

pronomes demonstrativos, não só é utilizado para marcar o início da narrativa, como também

para conectar as estrofes com o refrão. Dessa forma, ele serve para estabelecer o fio condutor

da narração.

No corpus que aqui analisamos, esse termo também foi encontrado atuando no

processamento discursivo-textual. No exemplo abaixo, retirado da cantiga 327, o item onde

aparece na primeira estrofe fazendo a ligação entre o título-ementa, o refrão e o restante da

cantiga conforme analisado anteriormente com o emprego do pronome demonstrativo:

(18) COMO SANTA MARIA GUARIU O CRERIGO QUE SE LLE TORNARAN AS

PERNAS ATRAS PORQUE FEZ UUS PANOS MEÕRES DUN PANO QUE FURTOU

SOBELO ALTAR.

Porque ben Santa Maria sabe os seus dões dar,

muito per faz grande folia quen lle vai o seu furtar.

Onde, se m’ oyr quiserdes, daquesto vos contarei

un miragre mui fremoso que fez a Madre do Rey

Jhesu-Crist’ en Odimira, como vos ora direi,

u ela fez ende muitos outros en aquel logar.

[COMO SANTA MARIA CUROU O CLÉRIGO QUE TEVE SUAS PERNAS ENTORTADAS PARA TRÁS PORQUE HAVIA FEITO UNS PANOS MENORES DE UM PANO QUE FURTARA DO ALTAR.

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Porque Santa Maria bem sabe suas graças dar, grande loucura faz quem lhe furta o que é dela.

Dessa forma, se me quiserdes ouvir, sobre isso vos contarei um milagre muito formoso que fez a Mãe do Rei Jesus Cristo, em Odimira, onde ela fez muitos outros, como eu agora vos direi.]

(Cantiga 327, ementa, refrão, 1ª estrofe)

O elemento onde sumariza o conteúdo anterior, contribuindo para o estabelecimento

da coesão textual entre as partes iniciais e a cantiga. Note-se também, no mesmo verso, a

presença do pronome demonstrativo aquesto (em daquesto), que cumpre o mesmo papel de

onde e reforça a intenção do autor de chamar a atenção para o episódio miraculoso que será

narrado.

O exemplo abaixo, da Cantiga 303, narra como a imagem de Santa Maria conversou

com uma menina que vivia no convento de Burgos. As primeiras estrofes apresentam o lugar

onde aconteceu o milagre e a beneficiária do mesmo, acrescentando a informação de que era

comum que as meninas criadas em um convento fizessem travessuras e que as freiras as

corrigissem. Abaixo apresento a terceira estrofe da cantiga:

(19) Onde daquesto aveo que hũa moça fazia

amiud' i travessuras que pesavam a ssa tia;

e castigava-a ende, ca mayor ben lle queria

ca ssi nen a outra cousa.

[Sobre isso aconteceu que uma menina sempre fazia travessuras que causavam pesar a sua tia; esta a castigava por isso, porque a queria muito bem, mais que a si própria ou a qualquer outra coisa.]

(Cantiga 303, 3ª estrofe)

Nessa estrofe, o item onde foi usado juntamente com o pronome demonstrativo

aquesto. Ambos cumprem a função de dar continuidade ao que estava sendo narrado na estrofe

anterior, retomando informações cotextuais importantes (as meninas do convento faziam

travessuras) e acrescentando informações novas.

Na estrofe seguinte narra-se como a menina tinha medo da tia e não ousava aparecer

perto dela quando fazia algo de errado, pois a tia a castigava duramente. A quinta estrofe, abaixo

transcrita, inicia-se com o item onde:

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(20) Onde un dia ll’ aveo que fez mui gran travessura,

por que aquela sa tia ouve dela gran rancura

e buscou-a por feri-la; mas ela, por sa ventura

bõa, foi-ss’ aa omagen da Virgen sen demorança.

[Assim um dia aconteceu que ela fez grande travessura, pelo que aquela sua tia sentiu muita raiva dela e procurou-a para poder feri-la, mas a menina, para sua sorte, foi até a imagem da Virgem sem demora.]

(Cantiga 303, 5ª estrofe)

Nesse caso o onde atua como um articulador textual que estabelece a ligação entre as

partes da narrativa, uma vez que aponta para uma porção de texto anterior e possibilita a

manutenção tópica.

No corpus analisado, considerando as estrofes iniciais e as estrofes narrativas, foram

encontradas 22 ocorrências do item onde operando como encapsulador. Esse item constitui

elemento remissivo importante que auxilia na organização da informação textual e na

progressão da narrativa. Conforme apontado por Bittencourt (2006), é possível constatar a

multifuncionalidade do elemento onde já nessa fase da língua, pois ora ele funciona como

pronome adverbial relativo, ora como conectivo inter-sentencial e outras vezes como

articulador discursivo-textual.

5.5 Síntese

Pela análise aqui empreendida, foi possível observar que as primeiras estrofes das

cantigas cumprem papel crucial no estabelecimento da coesão entre o título-ementa, o refrão e

as estrofes narrativas. Nas estrofes iniciais, a anáfora encapsuladora foi mais recorrente na

primeira estrofe do que na segunda ou terceira. Isso demonstra que o autor prefere fazer a

retomada do conteúdo do título-ementa e do refrão o mais próximo possível dessas partes. Além

disso, constatou-se que, na primeira estrofe, o autor preferencialmente usa um elemento

demonstrativo, que, deslocado para o início da estrofe, confere estatuto de referente ao conteúdo

resumido e orienta o foco de atenção do leitor.

Outro item recorrente nas estrofes iniciais é razon. Trata-se de um termo genérico que

exige uma realização lexical contextual e requer que o leitor realize não só a interpretação desse

item, como também da informação cotextual.

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Nas estrofes narrativas propriamente ditas, o elemento encapsulador também é

composto, preferencialmente, por pronome demonstrativo. Há nessas estrofes dois usos de

encapsulamento bastante recorrentes: para recuperar a fala de algum personagem e para

recuperar o conteúdo de toda a cantiga, a fim de justificar os louvores que devem ser prestados

à Virgem. Nesse último caso, o elemento encapsulador aparece nas estrofes finais.

Também foram observadas as expressões encapsuladoras prospectivas. Elas não são

numerosas, mas são suficientes para corroborar a análise de Francis (2003), pois cumprem a

função de organizar a informação textual, ao mesmo tempo que acumulam significado no texto

e são foco da informação nova.

Por fim, foi analisado o item onde, atuando no processamento discursivo-textual.

Assim como já havia sido observado por Bittencourt (2006), trata-se de um elemento

multifuncional importante para a organização macroestrutural do texto.

A análise do corpus demonstrou que a anáfora encapsuladora é uma estratégia bastante

produtiva na organização da informação tópica do texto.

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6 CONCLUSÃO

O objetivo desse trabalho foi analisar os processos de referenciação de um corpus

estabelecido a partir das Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso X, o Sábio.

Entender o texto como o lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, é

percebê-lo como espaço gerado pela (e na) relação entre os interlocutores. Assim sendo, a

língua não é algo acabado, mas sim fruto do trabalho das negociações que se processam no

espaço da interlocução entre os sujeitos. Procurou-se, então, ao longo do trabalho de pesquisa

e análise, reconhecer os mecanismos de referenciação e os processos que propiciaram ao leitor

produzir o sentido adequado.

Para isso, partiu-se de um levantamento teórico, que considerou a atividade discursiva

como ação conjunta, que envolve uma dimensão cognitiva e social. Nesse sentido, o ato de

referenciação tem uma dimensão construtiva e interacional.

Essa postura teórica possibilitou um olhar mais atento para a progressão referencial no

texto, pois por meio dessa progressão é que os referentes se encadeiam para o desenvolvimento

tópico e a construção do sentido. Da mesma forma, conferiu-se um sentido mais amplo ao termo

anáfora, ultrapassando a definição de “retomada de um item lexical anteriormente expresso” e

apontando outras configurações anafóricas possíveis. Assim, a anáfora não se limita a funcionar

apenas como um mecanismo de manutenção referencial, mas constitui um recurso de

progressão discursiva, visto que, ao remeter ou retomar um item anterior, ela se liga à dinâmica

textual-discursiva.

Nesse trabalho, foram analisadas as anáforas correferenciais e não correferenciais,

entendendo que haverá correferência sempre que duas expressões designarem o mesmo

referente. A partir do levantamento teórico, concluiu-se que a anáfora, ou resulta de uma

repetição ou substituição do antecedente, o que traduz uma anáfora correferencial, ou resulta

de processos inferenciais, de saberes partilhados, o que traduz uma anáfora não correferencial.

De qualquer maneira, essa noção implica a necessidade de se encontrar no texto ou na memória

discursiva a entidade pertinente para a interpretação.

Visando a alcançar os objetivos propostos, empreendeu-se a descrição e a

quantificação dos tipos de anáfora, para em seguida, analisar as funções cognitivo-discursivas

desses mesmos tipos no corpus selecionado.

Primeiramente, observou-se o emprego de anáforas correferenciais que não operam

recategorização do referente. Essa concepção de anáfora pressupõe a retomada de referentes

anteriormente expressos e é realizada por meio de pronomes de 3ª pessoa, por repetição total

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ou parcial do antecedente ou por meio de sinônimos ou quase-sinônimos. Nas cantigas

analisadas, esse tipo de anáfora foi o mais usado pelo autor. Foi possível notar que o autor deu

preferência às retomadas por pronomes e por repetição, e que houve poucos casos de retomadas

por sinônimos. Os referentes ativados e reativados ao longo do texto denunciam a intenção do

autor diante do seu projeto de dizer algo. A manutenção em foco de elementos previamente

introduzidos possibilita a construção de cadeias referenciais responsáveis pela progressão

textual, principalmente em cantigas que apresentam vários personagens. À medida que se

desenrola o texto, o autor realiza escolhas significativas e utiliza referentes que facilitam a

compreensão e contribuem para a construção do sentido pretendido.

Em seguida, analisou-se o uso de anáforas correferenciais recategorizadoras,

realizadas principalmente por expressões nominais, que possibilitam o acréscimo de novos

dados informacionais aos referentes. Chamou a atenção a variedade de descrições nominais que

o autor utiliza para recategorizar a figura de Santa Maria. Essas descrições traduzem aspectos

relacionados à virgindade, à santidade e às intervenções miraculosas realizadas por ela, além

de serem próprias para a propagação do culto à Virgem Maria. Na elaboração da imagem da

Virgem, o autor constrói e reconstrói esse referente, não apenas por meio de elementos

linguísticos, como também por meio de conteúdos inferenciais que são ativados a partir de

conhecimentos partilhados.

Analisou-se também o emprego das anáforas não correferenciais. Apesar de menos

numerosas, elas apresentaram uma riqueza de estruturas que permitem acrescentar informações

novas ao texto, ancoradas em informações compartilhadas entre os interlocutores. Esse tipo de

anáfora é, no corpus estudado, constituído por um SN definido que mantém uma relação com

a âncora baseada em conhecimentos semânticos e conhecimentos armazenados na memória do

interlocutor. Além disso, percebeu-se que o uso de estratégias de referenciação sem referente

explícito leva o leitor a se esforçar para estabelecer a continuidade referencial do texto com

base em relações semânticas, em conhecimentos partilhados, em esquemas cognitivos, entre

outros. Cumpre ressaltar que não foram encontrados casos de uso de forma pronominal sem

antecedente explícito.

Por fim, foram examinados os encapsulamentos e sua contribuição para a manutenção

temática, uma vez que funcionam como intermediários entre informação velha e informação

nova. Primeiramente, realizou-se a análise na parte inicial da cantiga, ou seja, do conjunto

título-ementa, refrão e estrofes iniciais e, em seguida, analisou-se o corpo da cantiga

propriamente dito.

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Pelo que se pôde constatar, a função das estrofes iniciais é de estabelecer a coesão

entre o título-ementa e o restante da cantiga, além de antecipar, em forma de resumo, o

acontecimento que será narrado. Assim, ressaltou-se a função organizadora dos elementos

encapsuladores nessa parte das cantigas: marcar que o autor está mudando para uma fase

seguinte da narração. Ao encapsular a informação anterior, o autor preserva a continuidade

tópica, colando informação nova dentro de um esquema dado.

Na análise das estrofes que compõem o corpo da cantiga, percebeu-se que os pronomes

demonstrativos, principalmente os neutros, exercem a função de fazer remissão a porções

anteriores do texto, resumindo-as e criando novos objetos de discurso. Essa estratégia

demonstrou-se muito produtiva na organização da informação e na progressão tópica do texto.

O uso de encapsuladores prospectivos guia o leitor dentro do espaço textual, controlando o foco

de atenção, além de ser importante para a acumulação do significado do texto, pois realiza sua

lexicalização nas orações subsequentes.

O item onde, operando como encapsulador, chamou a atenção por sua

multifuncionalidade. Esse elemento opera na remissão textual, auxilia na organização da

informação e na progressão da narrativa. Na fase do galego-português, ele funciona ora como

pronome relativo, ora como conjunção e outras vezes como articulador discursivo-textual.

Não foi possível esgotar a análise desse corpus, mesmo porque a riqueza das estruturas

encontradas demonstra que há muito mais a ser feito. A intenção maior aqui é divulgar o

cancioneiro religioso afonsino, contribuir para um maior conhecimento do português em sua

fase galego-portuguesa e, ainda, servir como ponto de referência para pesquisas que buscam

estudar a diversidade de recursos por meio dos quais fazemos a referenciação.

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