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ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE ANÁFORAS NOMINAIS INDIRETAS E GÊNEROS TEXTUAIS Daniela Zimmermann Machado (Mestre, UFPR, [email protected]) RESUMO: Neste trabalho, analisamos as anáforas nominais indiretas (AIs) presentes em diferentes gêneros de “redação de vestibular” (no argumentativo, no de transposição do discurso direto-indireto e no analítico-descritivo), observando, ainda, que elementos lingüístico-textuais sustentam tais gêneros. Os textos analisados foram escritos por vestibulandos da UFPR, anos de 2007 e 2008. Concluímos que há relação entre AI e gênero textual, porém essa relação não é homogênea. Nos textos caracterizados pelo gênero argumentativo, as AIs representam argumento de quantidade (Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)), além de manterem a unidade temática. No gênero de transposição do discurso, as AIs indicam a argumentação do sujeito entrevistado e não do candidato-autor do texto. E no gênero analítico-descritivo, as AIs comprovam a existência da sequência descritiva, com cadeias anafóricas que se identificam com o procedimento de aspectualização de Adam (2001). As AIs intervêm na constituição dos diferentes gêneros textuais, podendo indicar diferentes fenômenos lingüísticos nos textos. PALAVRAS-CHAVE: gênero, texto, anáfora indireta. ABSTRACT: In this study, we analyze the indirect nominal anaphora (IA) present in different genres of vestibular redaction (in argumentative, in the transposition of indirect-direct speech and in the analytic-descriptive), observing that textual-linguistic elements support such geners. The text analyzed were written by vestibular applicants of the UFPR, in 2007 and 2008. We conclude that there is a relation between IA and textual gener, however, this relation is not homogeneous. In the text characterized by the argumentative gener, the IA’s represent quantity argument (Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)), and in addition, they keep the thematic unit. In the transposition of speech, the IA’s indicate the argumentation of the interviewed subject, and not of the author-applicant of the text. And in the analytic-descriptive gener, the IA’s verify the existence of the descriptive sequence, with anaphoric chains that identify themselves with the aspectization procedure of Adam (2001). The IA’s interfere in the constitution of different textual geners, which may indicate different linguistic phenomena in the texts. KEYWORDS: genre, text, indirect anaphora. 1 Introdução

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ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE ANÁFORAS NOMINAIS INDIRETAS E GÊNEROS

TEXTUAIS

Daniela Zimmermann Machado (Mestre, UFPR, [email protected])

RESUMO: Neste trabalho, analisamos as anáforas nominais indiretas (AIs) presentes em diferentes gêneros de “redação de vestibular” (no argumentativo, no de transposição do discurso direto-indireto e no analítico-descritivo), observando, ainda, que elementos lingüístico-textuais sustentam tais gêneros. Os textos analisados foram escritos por vestibulandos da UFPR, anos de 2007 e 2008. Concluímos que há relação entre AI e gênero textual, porém essa relação não é homogênea. Nos textos caracterizados pelo gênero argumentativo, as AIs representam argumento de quantidade (Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)), além de manterem a unidade temática. No gênero de transposição do discurso, as AIs indicam a argumentação do sujeito entrevistado e não do candidato-autor do texto. E no gênero analítico-descritivo, as AIs comprovam a existência da sequência descritiva, com cadeias anafóricas que se identificam com o procedimento de aspectualização de Adam (2001). As AIs intervêm na constituição dos diferentes gêneros textuais, podendo indicar diferentes fenômenos lingüísticos nos textos. PALAVRAS-CHAVE: gênero, texto, anáfora indireta.

ABSTRACT: In this study, we analyze the indirect nominal anaphora (IA) present in different genres of vestibular redaction (in argumentative, in the transposition of indirect-direct speech and in the analytic-descriptive), observing that textual-linguistic elements support such geners. The text analyzed were written by vestibular applicants of the UFPR, in 2007 and 2008. We conclude that there is a relation between IA and textual gener, however, this relation is not homogeneous. In the text characterized by the argumentative gener, the IA’s represent quantity argument (Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)), and in addition, they keep the thematic unit. In the transposition of speech, the IA’s indicate the argumentation of the interviewed subject, and not of the author-applicant of the text. And in the analytic-descriptive gener, the IA’s verify the existence of the descriptive sequence, with anaphoric chains that identify themselves with the aspectization procedure of Adam (2001). The IA’s interfere in the constitution of different textual geners, which may indicate different linguistic phenomena in the texts. KEYWORDS: genre, text, indirect anaphora.

1 Introdução

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre alguns dos aspectos discutidos na minha pesquisa

de mestrado, intitulada Anáforas nominais indiretas em gêneros “redação de vestibular”,

orientado pela professora Teresa Cristina Wachowicz. Minha proposta agora é apresentar

alguns dos resultados encontrados na pesquisa a fim de colocar em discussão assuntos como:

referenciação textual e gêneros textuais, e, ainda, a argumentatividade dos textos.

Para tanto, selecionei três propostas do vestibular da UFPR, trabalhadas na dissertação, uma

de cada um dos gêneros tratados: o argumentativo, o de transposição do discurso direto-

indireto e o analítico-descritivo. O objetivo deste trabalho é discutir sobre a relação existente

entre anáforas nominais indiretas (doravante AIs) e os gêneros textuais.

Partimos do pressuposto dialógico da linguagem de que todo texto é argumentativo, baseado

na retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005). Por conta disso, tentamos também

entender a construção argumentativa dos textos e, consequentemente, dos gêneros textuais.

Trataremos de três noções teóricas de grande amplitude: o interacionismo sociodiscursivo

(doravante ISD), a argumentação e as AIs (vistas nesta pesquisa enquanto elementos de

análise, elementos que organizam a constituição interna dos textos, sendo um dos elementos

constituintes dos gêneros).

Este artigo está organizado da seguinte maneira: começamos apresentando/descrevendo as

três propostas de vestibular trabalhadas. Após, apresentamos a revisão da literatura, dividida

em duas seções: O ISD e o estudo dos gêneros e As anáforas nominais indiretas e os gêneros

textuais. Paralelamente a essas etapas, traremos reflexões sobre a argumentatividade dos

textos a partir da teoria retórica. Procuramos amarrar essas três noções, tentando refletir sobre

as possíveis relações entre elas. Acreditamos que, a partir de uma concepção ISD, que traz a

noção de adequação entre atividade social e ação de linguagem, é possível pensarmos na

argumentação, uma vez que, para que haja argumentação é fundamental que haja acordo entre

orador e auditório, autor e leitor, portanto, essas teorias se combinam em certo ponto. Por fim,

discutiremos sobre a referenciação textual, analisando a forma como a AI interfere na

constituição dos diferentes gêneros textuais.

Podemos demarcar os seguintes resultados: nos textos caracterizados pelo gênero

argumentativo, as AIs representam argumento de quantidade do tipo quase-lógico (Perelman e

Olbrechts-Tyteca (2005)), além de manterem a unidade temática. No gênero de transposição

do discurso, as AIs indicam a argumentação do sujeito entrevistado e não do candidato-autor

do texto, isso é analisado a partir do uso dos verbos dicendi, com base nos estudos de Fiorin

(2005). E, no gênero analítico-descritivo, as AIs comprovam a existência da sequência

descritiva, com cadeias anafóricas que se identificam com o procedimento de aspectualização

e de relação, de Adam (2001). Concluímos que as AIs intervêm na constituição dos diferentes

gêneros textuais, porém não de forma homogênea, podendo indicar diferentes fenômenos

lingüísticos nos textos.

1.1 Descrição das propostas trabalhadas

Os dados da presente pesquisa são textos escritos por vestibulandos da UFPR, nos anos de

2007 e 2008. Selecionamos textos referentes a três propostas (vide anexo), cujas descrições

seguem abaixo:

a) Na primeira delas, retirada da prova da UFPR/2007, é apresentada ao candidato uma

entrevista entre um repórter da revista IstoÉ e o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral,

Marco Aurélio Mello. A partir da leitura da entrevista (gênero indicado), solicita-se ao

candidato que ele apresente seu ponto de vista sobre a questão – o fim do voto obrigatório –,

sustentando-o com argumentos. A produção desses textos deve pertencer ao gênero textual,

que estamos chamando, de “redação de vestibular” argumentativo.

b) Na segunda questão, retirada da prova da UFPR/2008, é apresentada ao candidato uma

entrevista, publicada no jornal Folha de São Paulo, entre Silvia Colombo, repórter, e Eric

Hobsbawm, historiador. Pede-se ao candidato que ele transponha o texto de discurso direto

(do gênero entrevista) para o discurso indireto. O texto, resultado desta proposta, pertence ao

que chamamos gênero “redação de vestibular” de transposição do discurso direto-indireto.

c) Na terceira questão analisada, retirada da prova UFPR/2008, é apresentado um gráfico

sobre as taxas de fecundidade nas regiões brasileiras, entre os anos de 1991 e 2000. Solicita-se

aos vestibulandos que, a partir da interpretação do gráfico, façam uma comparação entre os

índices de fecundidade das cinco regiões brasileiras. O comando da questão solicita uma

comparação, a partir dos dados contidos no gráfico que, consequentemente, gera a produção

de um texto pertencente ao gênero textual “redação de vestibular” analítico-descritivo.

Trabalhamos com uma proposta de cada gênero de “redação de vestibular” selecionado: o

argumentativo, o de transposição do discurso direto-indireto e o analítico-descritivo. Para a

realização deste trabalho, selecionamos 100 textos de cada questão. Neste artigo, em função

da organização, apresentaremos a análise de uma redação de cada um dos gêneros tratados. O

trabalho é de cunho qualitativo e tenta refletir sobre: o estudo do gênero - descrição dos textos

analisados bem como dos gêneros que os caracterizam-; análise dos elementos que sustentam

a argumentação dos gêneros; análise dos elementos constitutivos de cada um dos gêneros,

levantamento e análise das anáforas nominais indiretas em cada gênero trabalhado.

2 Revisão Bibliográfica

Trabalharemos nesta seção com três importantes noções textuais, são elas: 1) o ISD, tratando

aqui diretamente do estudo do gênero; 2) a argumentação, enfocando a pressuposição de que

todo texto é argumentativo e 3) a referênciação textual, especificamente o estudo das anáforas

nominais indiretas. Começamos por discutir sobre o estudo dos gêneros, a partir da concepção

de linguagem assumida, o ISD, em seguida, discutiremos sobre o estudo das anáforas

nominais indiretas, contemplando o estudo da argumentação sempre que relevante.

2.1 O ISD e o estudo dos gêneros

Algumas questões que se colocam, ao analisarmos os textos dos candidatos são: como olhar

para esses textos? O que levar em consideração no momento da análise? Neste trabalho,

assumimos a concepção de linguagem interacionista sociodiscursiva, que considera a

linguagem como algo historicamente construído, resultado da interação social, e não como

algo isolado, individual. Para dar conta destas questões, começamos por entender a teoria

interacionista sociodiscursiva, de Bronckart (1999) e a base de sua teoria, o interacionismo

social.

Sobre o interacionismo social, Vygotsky (1984) afirma que as propriedades específicas das

condutas humanas (físico e psíquico) são resultados de um processo histórico de socialização,

que só foi possível pela emergência e pelo desenvolvimento da linguagem. O interacionismo

social interessa-se, segundo Bronckart (1999), pelas condições as quais desenvolveram

formas particulares de organização social, ao mesmo tempo ou sob o efeito do surgimento da

linguagem. Ou seja, pensar na linguagem é pensar em algo culturalmente e socialmente

compartilhado pelos membros de uma comunidade.

Partindo para um ponto central no entendimento e circulação dos gêneros, que se relaciona

com o que é social e cultural, abordamos a distinção entre os conceitos de atividade social e

ação de linguagem, discutidos por Bronckart (1999). Esses conceitos provêm dos trabalhos de

Leontiév (1984) e de Habermas (1999), respectivamente, e também contribuem para a

consolidação da perspectiva interacionista sociodiscursiva.

Bronckart (1999) apóia-se nas teorias de Leontiév (1984), para tratar da atividade social.

Segundo este autor, atividade pode significar as organizações funcionais de comportamentos

dos indivíduos, através das quais eles têm contato com o ambiente e podem adquirir

conhecimento sobre este mesmo ambiente, ou seja, a atividade se relaciona com o ambiente,

com o contexto situacional onde está acontecendo a interação. Segundo Machado (2004):

Cada atividade é constituída de ações, condutas que podem ser atribuídas a um agente particular, que são

motivadas e orientadas por objetivos que implicam a representação e a antecipação de seus efeitos na atividade

social (MACHADO, 2004, p. 23)

Por meio da citação, podemos inferir que há uma relação entre a atividade e a ação. Esses

conceitos compartilham de uma mesma situação, relacionando-se, e possibilitando o

estabelecimento de uma comunicação (linguagem). De forma simplificada, a atividade é o

espaço onde a ação (o comportamento humano/ linguagem) acontece. Segundo Dolz e

Schneuwly (2004) “a atividade pode ser também definida como um sistema de ações” (p.73).

Ocupando-nos, agora, do estudo da ação, podemos destacar que Bronckart (1999) elege a

ação da linguagem a partir dos estudos de Habermas (1999) sobre o agir comunicativo. O agir

comunicativo refere-se à dimensão da forma como a atividade é caracterizada, uma vez que a

cooperação dos indivíduos na sociedade é regulada e mediada por interações verbais. Essas

interações são efetivadas no coletivo, na relação entre os indivíduos e atuam em diferentes

formas de representação, que Habermas (1999) denomina de mundos representados. Em

nosso estudo, essa noção ganha tamanha importância, uma vez que estamos analisando as

produções dos candidatos do vestibular como textos que resultam de interações sociais; os

mundos representados explicam e organizam as relações interpessoais que podem se

estabelecer.

Os mundos representados são formas a que os signos (linguagem comum) podem remeter, e

são em número de três: o mundo objetivo (ambiente físico); o mundo social (organização das

tarefas); e o mundo subjetivo (auto-reflexão, relação entre indivíduo e sua tarefa). Entendendo

os mundos representados, vemos que eles contribuem para a compreensão do termo ação, pois

é nessas três formas que as ações constituem-se. É importante destacar que ao mudar o mundo

objetivo, muda-se o mundo social e o subjetivo, modificando também a ação de linguagem

atuante. Os mundos representados determinam a atividade e, conforme Schneuwly (2004), os

gêneros do discurso prefiguram as ações de linguagem possíveis em uma determinada

atividade.

Esses dois conceitos teóricos, ação e atividade, representam, na prática, a possibilidade de

circulação dos gêneros. É com as ações humanas em atividade que os gêneros se

desenvolvem. No caso das propostas do vestibular, podemos dizer que cada uma das

propostas leva o candidato a se inserir em uma determinada atividade social, que direciona a

realização de uma determinada ação de linguagem. E essa ação estará relacionada à atividade

social, adequando-se ao gênero proposto.

Sobre gêneros, Schneuwly & Dolz (2004) apresentam:

pelo fato de que o gênero funciona num outro lugar social, diferente daquele em que foi originado, ele sofre,

forçosamente, uma transformação. Ele não tem mais o mesmo sentido; ele é, principalmente, sempre (...) gênero

a aprender, embora permaneça gênero para comunicar. (...). Trata-se de colocar os alunos [e os vestibulandos]

em situações de comunicação que sejam o mais próximas possível de verdadeiras situações de comunicação, que

tenham um sentido para eles, a fim de melhor dominá-las como realmente são, ao mesmo tempo sabendo, o

tempo todo, que os objetivos visados são (também) outros. (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 81) [adaptação

nossa]

Vemos que as características apresentadas acima, sobre o gênero escolar, adéquam-se ao

gênero “redação de vestibular”. No caso do vestibular da UFPR, embora sejam propostas que

simulam situações reais, propõem ao candidato o desenvolvimento de habilidades, inserindo-o

em condições de produção semelhantes às reais. Nas questões, são apresentadas ao

vestibulando, indicações (das intenções) que devem orientar sua produção. Por exemplo: o

que escrever (carta, resumo etc), para quem escrever (leitores de algum jornal ou revista,

coordenadores etc), em que/para qual veículo “supostamente” escrever (jornal, revista etc).

Neste ponto, podemos apontar alguns elementos centrais no trabalho a partir do gênero, que

ajudam a compreender melhor as condições de escrita, são eles: funções, propósitos, ações e

conteúdos. Marcuschi (2008) apresenta alguns critérios para nomeação e distinção dos

gêneros, que muito se relacionam com esses elementos: forma estrutural, propósito

comunicativo, conteúdo, meio de transmissão, papéis dos interlocutores, contexto situacional.

Em nosso estudo, fazemos uma breve abordagem no que concerne aos critérios: propósito

comunicativo, conteúdo, papéis dos interlocutores e contexto situacional. O primeiro deles, o

propósito comunicativo, advindo dos trabalhos de Swales (1990), tem a ver com as escolhas

do conteúdo (assunto) e do estilo. Segundo Swales (1990) (apud Marcuschi (2005)):

é o propósito comunicativo que conduz às atividades lingüísticas da comunidade discursiva, é o propósito

comunicativo que serve de critério prototípico para a identidade do gênero e é o propósito comunicativo que

opera com o determinante primário da tarefa. (SWALES, 1990, p. 10)

Ou seja, o propósito comunicativo se relaciona com as intenções de cada texto e a partir dele é

possível definir um determinado gênero. Por exemplo, é o propósito de informar alguém

sobre algo, ou solicitar algo a alguém, ou mesmo posicionar-se sobre algo que faz com que a

carta se constitua enquanto gênero. O segundo aspecto, o conteúdo, relaciona-se ao assunto

apresentado pelo texto. Por exemplo, na carta de solicitação, na carta de desculpas, o

conteúdo diz respeito ao assunto tratado no texto. O aspecto papéis dos interlocutores tem a

ver com - quem escreve e para quem se escreve – e é central no reconhecimento do gênero,

podendo ser relacionado com as estratégias táticas (o estilo, o léxico e o grau de formalidade),

as escolhas feitas pelo autor do texto.

O último dos aspectos é o contexto situacional, que tem a ver com o meio onde determinado

texto circula. Esse termo é bastante amplo, pois engloba o local, os interlocutores envolvidos,

as intenções. Podemos dizer que as escolhas, a adequação na construção do texto e do gênero

está atrelada à argumentação, uma vez que, a argumentação requer acordo entre os

participantes da interação e entre a atividade e a ação.

Outra informação importante no estudo do gênero é a noção de pré-constructo. Para

Schneuwly & Dolz (2004), os gêneros podem ser entendidos enquanto “um instrumento

psicológico no sentido vygotskyano do termo” (p.22), ou seja, um instrumento pré-construído

na mente humana, o que não significa dizer que se trata de algo inato e sim de algo já

conhecido, já vivenciado, ou seja, historicamente construído e culturalmente compartilhado

entre os membros de uma comunidade. Isso significa que, mesmo antes da realização de uma

determinada atividade, temos um conhecimento pré-estabelecido do gênero ao qual a

atividade pertencerá (um pré-construto do gênero). Saberemos como agir (comportar-nos) em

dada situação, mesmo que a situação ainda não tenha acontecido. No caso das propostas do

vestibular, o que se pretende é testar determinadas habilidades dos vestibulandos, como

redigir cartas, opinar, interpretar gráficos. Segundo Gruginski et al. (2003), sobre a prova

discursiva do vestibular da UFPR:

(...) no lugar de produzir extensos textos de caráter geralmente dissertativo, como nas propostas de outros

vestibulares, os candidatos produzem pequenos textos de modo a revelar suas habilidades específicas de escrita:

o resumo, a carta, a transposição de discurso direto-indireto, a tradução em prosa de dados numéricos (...).

(GRUGINSKI et al., 2003, p. 316)

A partir dessa reflexão, podemos estabelecer que é na ação de linguagem realizada em

determinada atividade social, que o gênero se constitui. E que no reconhecimento,

interpretação e produção dos gêneros é fundamental que haja adequação entre produtor e

interlocutor e entre espaço de realização e ação de linguagem.

Passamos ao estudo da referenciação textual, tentando compreender de que forma as anáforas

indiretas podem contribuir na organização textual e constituição dos gêneros.

2.2 As anáforas nominais indiretas e os gêneros textuais

O ponto que trataremos agora versará sobre os processos de referenciação, mais

especificamente, sobre alguns dos elementos que organizam e estruturam o texto, garantindo a

sua constituição interna e de forma mais geral, a constituição dos gêneros textuais, uma vez

que existe relação entre AI e gêneros.

Esta seção dedica-se de forma mais específica ao estudo das marcas lingüísticas,

exclusivamente das AIs, que estarão presentes nos textos dos vestibulandos. Antes de nos

atermos nos processos de referenciação, consideramos importante fazermos algumas

anotações sobre a referenciação textual. E a primeira delas diz respeito à distinção entre os

termos referência e referenciação. Para pensarmos nessa questão, apoiamo-nos,

principalmente, nas reflexões apresentadas por Cavalcante (2005), Koch (2005), Marcuschi &

Koch (2002), Mondada & Dubois (2003) sobre a referenciação textual, relacionando-a com

um aspecto central, abordado nos estudos de Bronckart (1999): o mundo ordinário e o mundo

discursivo. (p. 153)

Na distinção entre referência e referenciação o que importa é o fato de estarmos tratando de

referentes que estão ou no mundo ou no texto. No texto, na unidade do discurso, temos a

representação dos referentes, os chamados objetos-do-discurso, e nesse sentido, estamos

tratando da referenciação textual. Aos elementos do mundo, tratamos de referência.

Uma alusão possível e que contempla a abordagem do ISD, é a relação entre a noção de

referente e mundo ordinário e a noção de referenciação e mundo discursivo. A noção de

referenciação na verdade trata da articulação entre o mundo ordinário e o mundo discursivo.

Bronckart (1999) formula a distinção entre os dois mundos (ordinário e discursivo) para

pensar na relação entre linguagem e mundo, e entre atividade social e ação de linguagem. Para

o teórico, o mundo representado pelos agentes humanos equivale ao mundo ordinário e os

mundos virtuais criados pelas atividades de linguagem, ao mundo discursivo.

O mundo ordinário é o mundo onde o autor do texto está e coincide com o mundo real do

autor. Podemos frisar que a referência está para o mundo ordinário. Já o mundo discursivo

pode ser analisado a partir de duas instâncias: na primeira, o mundo discursivo tem a ver com

as situações de sentido que são construídas no discurso em dada situação (entram aqui os

casos figurativos, as abstrações, os sentidos construídos no texto). A segunda instância diz

respeito aqueles sentidos compartilhados entre determinados grupos de interlocutores, em

determinadas situações específicas (BRONCKART, 1999). As duas instâncias referem-se à

construção das coordenadas gerais do mundo discursivo e à especificação das relações

existentes entre a situação das instâncias de agentividade em ação nesse mundo discursivo e

os parâmetros físicos da ação de linguagem que se desenvolve no mundo ordinário. Podemos

frisar que quando pensamos em texto, estamos pensando em textos que são caracterizados por

gêneros.

Afirmamos que, no tratamento do mundo discursivo (que está mais para a referenciação) é

inerente pensar no mundo ordinário, ou seja, nas diferentes condições que caracterizam a

atividade social, o que significa dizer que o mundo a que o sujeito pertence não é deixado de

lado no estudo da referenciação. O ISD considera a relação entre texto e questões/condições

externas/sociais. Podemos dizer, portanto, que a referenciação está na articulação entre esses

dois mundos (o ordinário e o discursivo).

Importante destacar que os elementos de referenciação são selecionados pelo autor do texto e

tal seleção pode implicar em indício argumentativo. Vemos, ainda, que é possível fixar,

também neste ponto, uma relação com o ISD, uma vez que, ao considerarmos o estudo da

referenciação textual, estamos sugerindo também, uma relação entre elementos do texto e do

mundo (do contexto).

Após levantada a discussão da distinção entre referência e referenciação, centramos no estudo

da referenciação, enquanto marca lingüística. Começamos por entender a distinção entre

anáforas diretas (processos de correferenciação) e anáforas indiretas (processos de não

correferenciação). As anáforas diretas retomam referentes previamente introduzidos, trata-se

de um processo de reativação de referentes prévios (MARCUSCHI, 2001). Tomando como

exemplo um trecho de texto retirado do corpus de pesquisa, temos: “A comparação entre as

taxas de fecundidade – número de filhos por mulher – nas diferentes regiões do Brasil (...)”.

Observamos que “número de filhos por mulher”, embora esteja funcionando como um aposto

explicativo vem a retomar a expressão “taxas de fecundidade”, trata-se do mesmo referente,

por isso esse processo é caracterizado pela correferenciação (anáfora direta). Já as anáforas

indiretas, definidas por Marcuschi (2005) como “estratégia endofórica de ativação de

referentes novos” (p.217) dizem respeito às expressões nominais definidas ou pronomes

interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um antecedente explícito no texto.

Neste trabalho, centramo-nos no estudo desse tipo de processo.

Podemos reconhecer as seguintes características deste recurso textual, das anáforas indiretas:

1) inexistência de uma expressão antecedente ou subseqüente explícita para retomada e

presença de uma expressão ou contexto semântico-base decisivo para a interpretação de AI; 2)

ausência de relação de correferência entre a âncora e a AI; 3) a interpretação da AI se dá com

a construção de um novo referente (ou conteúdo conceitual) e não como uma busca ou

reativação de elementos prévios por parte do receptor. Por exemplo: “A adoção do voto

facultativo pode fazer crer que haveria uma alienação das pessoas a respeito do processo

político e uma redução do número de eleitores.”

No exemplo, a expressão “processo político” funciona como âncora para a expressão “número

de eleitores”. “Número de eleitores” é introduzido no discurso, mas previsível pela temática

do texto. Vemos que neste caso não ocorre substituição ou retomada de um mesmo referente e

sim introdução de um elemento novo, que está relacionado à âncora (elemento previamente

apresentado).

Acreditamos que, a partir do estudo das anáforas nominais indiretas, podemos

marcar/estabelecer relações com a constituição do gênero, uma vez que, a construção da

referenciação e da progressão do sentido no texto, pode estar vinculada as escolhas do autor

do texto, da construção desse texto. Veremos como isso pode acontecer, na seção seguinte.

3 Análise e discussão dos resultados

Antes de partirmos para a análise das produções dos candidatos, é interessante discutirmos um

pouco sobre as propostas do vestibular, uma vez que são nelas que encontramos as condições

de produção, ou seja, o que escrever e para quem escrever. São nas propostas podemos definir

a atividade social a qual o candidato deve estar inserido. Sobre as análises, algumas questões

precisam ser postas: durante a análise novas questões teóricas irão surgir e à medida que

forem aparecendo, traremos alguns elementos teóricos explicativos.

As propostas encontram-se em anexo, vamos dar início pela análise da primeira, referente à

questão 6, prova UFPR/2007.

Nesta proposta, o vestibulando deve opinar sobre a temática referente ao fim do voto

obrigatório, a partir da leitura de um trecho da entrevista apresentada. O texto-base ─ trecho

de entrevista entre Marco Aurélio Mello e um repórter da revista IstoÉ ─ situa o leitor num

mundo discursivo tal que o faz refletir sobre questões políticas. O repórter indaga Mello

(presidente do Tribunal Supremo Eleitoral) e este se mostra favorável ao fim do voto

obrigatório. A partir dessas informações, é possível pensar em um público alvo interessado

pelo assunto. A presente proposta é típica do gênero argumentativo-dissertativo escolar, o

vestibulando deve apresentar sua opinião e sustentá-la com argumentos (é isso que o pré-

construto do gênero o designa a fazer). A proposta testa a habilidade de persuasão do

candidato.

Nessa proposta os elementos que definem o gênero são:

a) o propósito comunicativo: mostrar sua opinião, convencer o outro de que sua idéia é válida

b) conteúdo: fim do voto obrigatório.

c) contexto situacional: aspecto que diz respeito às leis, eleições de um país.

Quanto aos demais elementos, interlocutores e estratégias táticas, a proposta não os explicita,

mas esses podem ser imaginados pelos escritores, como, por exemplo, pensar em leitores

interessados por política.

Fazendo referência ao mundo representado, do agir comunicativo, de Habermas (1999),

teríamos como mundo objetivo (a eleição), mundo social (quadro político, possíveis leitores)

e mundo subjetivo (a reflexão do candidato sobre o assunto/a ação de linguagem). O

candidato deve adequar-se ao mundo objetivo e social.

A partir dessas reflexões, vejamos à produção do candidato:

Texto 1:

Em ano eleitoral é visível a descrença e o desinteresse de boa parte dos brasileiros em exercer o dever do voto.

O fim do voto obrigatório seria um excelente caminho para uma melhora na política brasileira. Como afirma o

presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio Mello, se o voto não fosse encarado como um dever,

mas sim como um direito, selecionaríamos eleitores mais conscientes da importância da escolha do candidato.

Além disso, o número de eleitores que se omitem da escolha, anulando o voto, cairia significativamente. Assim

a política nacional, desacreditada pela população, receberia créditos.

Podemos observar, a partir das sentenças “o fim do voto obrigatório seria um excelente

caminho” e “se o voto não fosse encarado como um dever, mas sim como um direito,

selecionaríamos eleitores mais conscientes” evidencias da opinião do candidato, que se

demonstra favorável ao fim do voto obrigatório.

Quanto às anáforas, temos, em negrito, os elementos âncora e em sublinhado as anáforas

indiretas. Podemos estabelecer, portanto, as seguintes cadeias anafóricas: “ano eleitoral” e

“voto”, “voto obrigatório” e “política brasileira”, “Tribunal Superior Eleitoral” e “voto”,

“eleitores” e “escolha do candidato”, “o número de eleitores” e “escolha”, “a política

nacional” e “população”. Consideramos, nesta análise, a característica de que as anáforas são

binárias, a cada elemento âncora existe um elemento anafórico (Kleiber, 2001). Podemos

notar que as cadeias anafóricas destacadas são bastante similares às relações meronímicas

(todo/parte), porém podemos observar um diferencial, uma vez que no caso apresentado trata-

se de elementos bastante abstratos, e não temos uma relação de constituição e sim de

pertinência, como em conjuntos matemáticos, em que o elemento anafórico pertence ao

elemento âncora. Essa relação, na verdade, funciona como um argumento de quantidade do

tipo quase-lógico (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005), aproximando-se dos conjuntos

matemáticos. O candidato seleciona expressões dentro de um conjunto maior, e essas escolhas

indicam a argumentação do autor do texto.

Essa redação é caracterizada pelo gênero “redação de vestibular” argumentativo e as anáforas

indiretas sustentam a argumentação, além de manterem a unidade temática do texto.

Nesse tipo de gênero, portanto, as anáforas indiretas funcionam como elementos de

construção argumentativa, uma vez que a relação de referenciação retoma e constrói novos

sentidos, estabelecendo a argumentação do autor do texto.

Passando a análise da segunda proposta (em anexo), novamente começamos refletindo sobre a

proposta que a origina:

Nessa proposta, de transposição do discurso direto-indireto, o candidato, além do

conhecimento sobre as condições de produção do texto, precisa distinguir os dois tipos de

discursos ou modalidades de texto (direto e indireto), referido na própria questão do

vestibular. Por isso, antes de dar início à análise, consideramos interessante resgatar algumas

noções sobre essas modalidades. Para isso, mencionamos os trabalhos de Fiorin (2005) sobre

autoria.

Fiorin (2005), sobre o assunto, afirma que: “No caso do discurso indireto: há um enunciado

de um narrador e um enunciado de um locutor, ambos ditos pelo primeiro”, esse “narrador”

seria quem está transpondo o discurso, ou seja, o autor do texto. Fiorin afirma também que “O

discurso indireto é o enunciado em que, no interior da fala de um narrador, há a fala de um

locutor”. (p. 70) O autor do texto deve transpor o discurso, organizando-o, selecionando as

idéias que lhes pareçam mais importantes. Veremos, no texto, que essa seleção indica a

argumentação do autor do texto.

No discurso indireto, o discurso citado está subordinado à enunciação do discurso citante. O

enunciador dá sua versão sobre o texto que leu. Ainda segundo Fiorin, o discurso indireto

analisa o discurso ou o texto de outros, o que torna possível pensar na relação entre o discurso

pronunciado e um discurso anterior, estabelecendo aqui fortemente uma relação dialógica.

Na questão selecionada, é apresentada ao candidato uma entrevista impressa entre uma

repórter (Silvia Colombo) e um historiador (Eric Hobsbawm). Na entrevista, a repórter

pergunta ao historiador se ele acha que o imperialismo americano está enfraquecendo. Temos,

portanto, um assunto político que está sendo discutido. O candidato deve ler, interpretar as

respostas dadas pelo entrevistado, selecionando as idéias centrais, para, a partir disso,

organizar sua escrita, transpondo o que ele considera mais central.

Podemos selecionar como elementos que tornam o texto caracterizado enquanto gênero:

a) propósito comunicativo (divulgar o pensamento do historiador)

b) conteúdo (o imperialismo norte-americano)

c) interlocutores (pessoas interessadas por questões políticas).

Enquanto mundos representados, podemos apontar: mundo objetivo (meio de divulgação –

revista – informação política); mundo social (questões políticas, econômicas e sociais sobre os

EUA); mundo subjetivo (reflexão sobre o imperialismo americano/ação de linguagem).

A partir desses dados contextuais, solicita-se ao candidato que ele transponha o texto do

discurso direto para o indireto. Nesse tipo de proposta não se espera um posicionamento e sim

uma adequação ao tipo de discurso, o indireto, além de um controle adequado das diferentes

vozes envolvidas no discurso. Veremos que as escolhas feitas pelo candidato constroem o

indício argumentativo do texto.

Vejamos o texto:

Texto 2:

O imperialismo norte-americano está falindo, afirma Eric Hobsbawm em seu livro mais recente

“Globalização, democracia e terrorismo”. Em entrevista à Folha de São Paulo, o historiador comenta sobre o

livro e afirma ser impossível controlar um estado sem que este aceite a dominação. A exemplo da guerra do

Iraque. Porém esta guerra não é a única causa do decaimento do projeto americano de dominação externa.

Fragilidades apontadas na economia interna, principal preocupação da população norte-americana, podem

provocar uma inversão no foco administrativo. Pode ser necessário substituir os projetos de dominação por

preocupações econômicas.

Neste texto, observamos que o candidato cumpre a proposta. Vemos que o candidato insere-se

no todo discursivo sugerido pela questão, contextualizando ao seu leitor que se trata da

transposição de uma entrevista. Ele apresenta o tema: “...Hobsbawm em seu livro mais

recente ‘Globalização, democracia e terrorismo’”. “Em entrevista à Folha de São Paulo, o

historiador comenta sobre o livro...”. A partir dessas sentenças, o leitor toma conhecimento do

texto-base, com o qual este texto está dialogando.

Há uma adequação ao que foi pedido, ele realiza a transposição do discurso direto-indireto,

fazendo uso dos verbos dicendi. A partir da construção do texto, podemos observar as

seguintes cadeias anafóricas: “imperialismo norte-americano” e “dominação”, “dominação” e

“guerra”, “projeto americano” e “dominação externa”, “economia interna” e “foco

administrativo”. Podemos observar que neste caso a temática que está sendo construída é a do

sujeito entrevistado e não a do autor do texto. Da mesma forma que na análise anterior, os

elementos de referenciação, mais especificamente, as anáforas indiretas representam escolhas

do sujeito entrevistado, que as utiliza como forma de construir seu posicionamento. Temos,

neste texto, argumentos de quantidade do tipo quase-lógico (todo-parte) e, ainda, podemos

observar que se trata de relações meronímicas, mas de cunho abstrato. Vemos o argumento

quase lógico entre “imperialismo norte-americano” e “dominação”, afinal faz parte do

conjunto “imperialismo norte-americano”, pensarmos em dominação; o segundo elemento

pertence ao primeiro.

As AIs, portanto, neste tipo de gênero também funcionam como indício argumentativo, mas

diferentemente da proposta anterior, neste caso, elas representma a argumentação do sujeito

envolvido na entrevista e não do autor do texto.

Por fim, passamos à análise do último texto trabalhado, referente à proposta 6 da UFPR/2008.

Nessa proposta, é apresentado ao candidato um gráfico ilustrativo das taxas de fecundidade

distribuídas por região brasileira entre os anos de 1991 e 2000. O candidato deve comparar os

índices entre as regiões. O candidato deve analisar os dados e em seguida fazer uma

comparação dos elementos que considerar mais representativos.

Começamos pela análise da posposta.

O meio social em que o gênero está circulando, a revista, faz uma delimitação dos possíveis

leitores. O candidato, ao descrever os dados, deve selecionar o que considerar mais

importante, tentando transmitir aos seus leitores o que ele observou/analisou, sem se esquecer

de realizar a comparação entre os elementos. O leitor deve imaginar que está escrevendo para

pessoas interessadas no assunto, ele não deve se dirigir a elas, mas deve estar ciente de seu

papel: apenas analisar e descrever os dados.

Fazendo menção ao estudo do gênero de texto, temos:

a) propósito comunicativo (informar realidades, no caso, índices de fecundidade);

b) como conteúdo (as taxas de fecundidade);

c) como interlocutores (interessados em questões sociais e econômicas, por ser material

retirada da revista Ciência Hoje, portanto, o público contempla leitores da revista).

A partir do domínio dessas informações, o candidato constrói seu texto, levando a um leitor o

conhecimento desses dados. Sobre os mundos representados, temos na proposta do vestibular,

referente ao texto-base, mundo objetivo (revista), mundo social (questões políticas,

econômicas e sociais), mundo subjetivo (comparação dos elementos).

Passamos a análise da produção do candidato:

Texto 3:

O gráfico publicado na revista Ciência Hoje, em setembro de 2005, expõe a evolução da taxa de fecundidade,

nos anos de 1991 e 2000, nas cinco regiões brasileiras. A região que apresentou a maior redução na taxa de

fecundidade, de 5 ou mais filhos, de 1991 para 2000, foi a Norte, que reduziu 18,8 pontos percentuais. Já a

região sul, que apresentou a menor redução de 1991 para o ano 2000, ainda sim manteve a menor taxa de 2,1

porcento em 1991 caiu para apenas 0,7 porcento em 2000. Analisando o ano de 2000, vê-se que a região com

maior taxa percentual de fecundidade, para menos que ou igual a 2,1 filhos, é a Sudeste, com 66,3 porcento e a

região que apresenta o menor dado, nesse aspecto, é a Norte, com 27,8 porcento dos entrevistados com 2,1 filhos

ou menos.

Neste texto1, observamos a contextualização do texto-base, o candidato apresenta indicações

de que se trata de uma análise de dados gráficos, quando expõe: “O gráfico publicado na

revista Ciência Hoje, em setembro de 2005, (...)”. Neste tipo de texto, o candidato não precisa

e nem deve expor sua opinião ou justificar as causas dos dados, ele apenas precisa analisar e

comparar. Podemos elencar as seguintes cadeias anafóricas: “taxa de fecundidade” e “filhos”,

“regiões brasileiras” e “Norte”, “região sul”, “Sudeste”, “Norte”. Nessas cadeias (aqui tidas

como não binárias) combinam-se com os procedimentos de aspectualização e de relação,

propostos na sequência descritiva, de Adam (2001).

Segundo Adam (2001), a operação de aspectualização é a mais comumente admitida como

base da descrição. A aspectualização tem a ver com a decomposição em partes e pode ser

perfeitamente correspondente às relações de anaforicidade, em que temos um elemento fonte

(todo) e partes (denominadas como aspectos) que a ele se referem. No caso do texto, temos

“taxas de fecundidade”, dessa informação, podemos descrever a situação dos “filhos” entre

outras, não especificadas pelo autor deste texto. Outro caso é a aspectualização que ocorre

1 Neste texto, temos um problema de pontuação que compromete um pouco a coerência do texto, mas como trabalhamos com uma amostragem significativa de textos (100 textos) sem necessariamente fazer distinções entre textos bons ou ruins, e sim entre textos que cumprem o que foi solicitado, consideramos relevante observar a utilização dos processos de referenciação nesses textos. Outra questão interessante que devemos chamar atenção, na análise, especificamente dos textos dessa proposta, é que não obedecemos à tendência da relação binária, proposta por Kleiber (2001), pois a forma como as anáforas estão organizadas combinam com os procedimentos de relação e aspectualização, de Adam (2001), conforme veremos.

entre “regiões brasileiras” e os aspectos “Norte”, “região sul”, “Sudeste”, “Norte”. Acontece

uma aspectualização das partes a serem descritas. Nesse caso a AI é equivalente ao elemento

todo e seus aspectos. Podemos estabelecer que entre “Norte”, “região sul”, “Sudeste” e Norte”

acontece o procedimento de relação, uma vez que se estabelece uma relação, como o próprio

nome supõe, entre elementos que são aspectualizados em relação ao elemento âncora.

O procedimento de relação estabelece a relação entre as propriedades do objeto. Essa relação

pode se dar por comparação, metáfora ou, ainda, meronímia. O procedimento de relação pode

ser entendido enquanto expansão descritiva do texto. Há a apresentação de elementos que vão

se relacionando e ampliando o sentido do objeto descrito.

Todas as escolhas, do que descrever, acaba por transparecer certo indício argumentativo.

Podemos dizer, que neste tipo de texto, caracterizado pelo gênero “redação de vestibular”

analítico-descritivo, as AIs comprovam a existência da sequência descritiva, uma vez que se

relaciona com os procedimentos de aspectualização e de relação, que se organizam da forma

apresentada para manter a descrição dos fatos/dados.

4 Conclusão

Procuramos, neste artigo, apresentar alguns dos resultados encontrados no trabalho de

dissertação, a fim de discutir sobre a relação entre os processos de referenciação, mais

especificamente, as anáforas nominais indiretas, e os diferentes gêneros textuais (o

argumentativo, o de transposição do discurso direto-indireto e o analítico-descritivo).

Concluímos que não existe uma equivalência homogênea entre as anáforas indiretas e os

gêneros, ou seja, a anáfora indireta não vai realizar sempre os mesmos fenômenos textuais.

Suas atuações variam de gênero para gênero e podemos afirmar, também, que seu papel vai

depender muito das condições de produção, ou mesmo, no caso de nosso estudo, das

propostas, da atividade social que está sendo estabelecida.

Os resultados nos levaram a constatar que, no gênero “redação de vestibular” argumentativo,

a anáfora indireta é condição para a argumentação, pelo uso dos argumentos de quantidade do

tipo quase-lógico (todo-parte). No gênero “redação de vestibular” de transposição do discurso

direto-indireto, as anáforas aparecem dentro da argumentação do sujeito entrevistado,

organizando a argumentação não do autor do texto, mas do sujeito presente no texto de

discurso direto (no caso, os participantes da entrevista). No gênero “redação de vestibular”

analítico-descritivo, as anáforas indiretas mantêm a seqüência textual descritiva, como

pudemos observar, com o uso dos processos de aspectualização e relação.

Vemos, então, que as AIs intervêm na constituição dos gêneros, mas de formas diferentes.

Assumindo a perspectiva do ISD, pudemos compreender o que faz um texto ser caracterizado

por determinado gênero e como um gênero caracteriza-se enquanto gênero, ou seja, que

condições sociais, intencionais garantem a compreensão, circulação e produção dos gêneros.

Por fim, notamos que, com o estudo da referenciação textual e dos gêneros textuais, além de

compreendermos melhor sobre a noção de texto, passamos por uma série de teorias que nos

auxiliam a compreender melhor muitos dos fenômenos da linguagem, entendendo que tais

fenômenos são realizados de diferentes formas na linguagem.

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6 ANEXOS

6. 1 Propostas:

6.2 Produções dos candidatos