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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Thamires Pandolfi Cappello Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: a disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Thamires Pandolfi Cappello

Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: a disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2017

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Thamires Pandolfi Cappello

Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: a disposição sobre o próprio corpo

como um direito fundamental

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação da Profa. Dra. Carolina Alves de Souza Lima.

São Paulo

2017

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Banca Examinadora

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À minha família, especialmente à minha mãe Maria Cristina, ao meu pai Roberto e

ao meu irmão Italo, por todo amor, apoio, carinho, compreensão e parceria durante

esse trajeto.

Ao meu noivo e futuro marido Marcos Vinicius, pela parceria e pelo trajeto

acadêmico que trilhamos juntos durante o curso do mestrado.

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AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço à minha orientadora, Professora Carolina Alves de Souza Lima, pelos valiosos ensinamentos ao longo do curso do Mestrado na PUC/SP; por toda paciência, confiança e orientações fundamentais à conclusão do presente trabalho. Além de toda amizade, atenção, dedicação e carinho que tornaram o curso do mestrado e a confecção do presente trabalho uma experiência construtiva de crescimento acadêmico, profissional e pessoal.

Agradeço ao professor Roberto Dias, por toda transmissão de conhecimento, discussões acadêmicas, paciência, pelo apoio e pelas críticas apresentados no exame de qualificação e, principalmente, pela excelência do crédito de direitos fundamentais, que possibilitou não só o incentivo para adentrar no tema do presente trabalho, como também a formação estrutural e conceitual dos temas estudados.

Agradeço ao professor Vidal Serrano Jr., por toda transmissão de conhecimento, pela análise e pelas sugestões apontadas no exame de qualificação assim como por todo apoio durante o curso do mestrado.

Agradeço imensamente à minha família, especialmente minha mãe Maria Cristina, meu pai Roberto e meu irmão Ítalo, por todo apoio, amor e compreensão despendidos durante esse trajeto.

Agradeço ao meu noivo e futuro marido Marcos por todo apoio, amor, compreensão, carinho despendidos não só ao longo desse curso, mas no nosso dia-a-dia, e, principalmente, por estar ao meu lado, trilhando em conjunto, esse caminho acadêmico.

Agradeço a todo o corpo docente do mestrado da PUC/SP que fez parte da trajetória acadêmica.

Agradeço aos colegas de curso que participaram da trajetória do mestrado, os quais, cada qual com sua contribuição, se tornaram parte dessa história.

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A menos que a ciência abra a dimensão da nossa própria interioridade, ela não se

tornará uma matéria total, uma coisa completa, ela permanecerá parcial, seus pontos de vista irão permanecer apenas

meias verdades.

A ciência se tornará de tremenda importância se ela adicionar a

subjetividade, se ela adicionar métodos de meditação aos métodos de

concentração.

(OSHO)

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CAPPELLO, Thamires Pandolfi. Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: A disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental. Dissertação de Mestrado em Direito. Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2017. 188p.

RESUMO

A pesquisa clínica de medicamentos constitui procedimento obrigatório para o desenvolvimento farmacêutico e para registro de novos fármacos no Brasil. Trata-se de testes realizados em seres humanos saudáveis e/ou com determinada patologia, a fim de verificar os possíveis efeitos de determinada substância com potencial terapêutico no organismo humano. Dentre as suas quatro fases, a Fase I é realizada com indivíduos saudáveis que colocam à disposição dos pesquisadores seus corpos, os quais passam a ser analisados, após a administração de substâncias ainda não testadas em organismo humano, através de exames diagnósticos e demais procedimentos médico-científicos. Diante disso, verifica-se que o ato de dispor do próprio corpo para a submissão a estudos clínicos de medicamentos, após o consentimento livre e esclarecido, consiste em um ato baseado na liberdade individual, no viés da autonomia da vontade, que pode, entretanto, colocar em risco a saúde e a integridade física do participante. Nota-se que diversos direitos fundamentais são envolvidos nessa seara, implicando, inclusive, em evidente colisão a ser solucionada pela ponderação. É nesse contexto que o presente trabalho se desenvolve com o objetivo central de verificar se a disposição sobre o próprio corpo para pesquisas clínicas configura um direito fundamental individual com base no livre desenvolvimento da personalidade e com a finalidade de promoção da saúde coletiva e do desenvolvimento científico nacional. Palavras-chave: Pesquisa Clínica de Medicamentos. Testes em seres humanos. Disposição sobre o próprio corpo. Direitos fundamentais. Direito à saúde. Direitos ao desenvolvimento científico, tecnológico e inovação.

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CAPPELLO, Thamires Pandolfi. Clinical Research of Medications in Brazil: The disposal of own body as a fundamental right. Master's Dissertation in Law. Program of Post-Graduate Studies in Law. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2017. 188p.

ABSTRACT

Clinical research on medicines is a mandatory procedure for pharmaceutical development and registration of new drugs in Brazil. These tests are performed in healthy humans and/or with a certain pathology, in order to verify the possible effects of a substance with therapeutic potential in the human organism. Among its four phases, Phase I is performed with healthy individuals who provide researchers with their bodies, which are analyzed after the administration of substances not yet tested in a human body, through diagnostic tests and other procedures medical-scientific. Therefore, it is verified that the act of disposal of own body for submission to clinical trials of medicines, after free and informed consent, consists of an act based on individual freedom, on the bias of the autonomy of the will, which may, however, endanger the health and physical integrity of the participant. It is noted that several fundamental rights are involved in this area, implying, even, an evident collision to be solved by weighing. It is in this context that the present work is developed with the central objective of verifying that the disposal of own body for clinical research constitutes an individual fundamental right based on the free development of the personality and for the purpose of promoting collective health and national scientific development.

Keywords: Clinical Research of Medications. Tests on humans. Disposal of own body. Fundamental rights. Right to health. Rights to scientific, technological and innovation development.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AMM Associação Médica Mundial

ANS Agência Nacional de Saúde

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CF Constituição Federal

CFM Conselho Federal de Medicina

CNS Conselho Nacional de Saúde

CONEP Comitê Nacional de Ética em Pesquisa

DDCM Dossiê de Desenvolvimento clínico do medicamento

DUDH Declaração Universal de Direitos Humanos

FDA Food and Drug Administration

GCP Guidelines for Good Practice

ICH International Conference on Harmonization

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

MS Ministério da Saúde

NIH National Institute of Health

OMC Organização Mundial do Comércio

OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

P&D Pesquisa e Desenvolvimento

PDI Pesquisa e Desenvolvimento e Inovação

PICDP Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e

Culturais

RDC Resolução da Diretoria Colegiada

Redbioética/

Unesco

Rede Latino-americana e do Caribe de bioética da Unesco

SNVS Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

SUS Sistema Único de Saúde

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TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property

Rigths

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13   PARTE I – DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS ................................... 19   CAPÍTULO 1 – CONCEITO E DEFINIÇÕES ............................................................ 19  CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MEDICAMENTOS E DA EXPERIMENTAÇÃO COM SERES HUMANOS ...................................................... 24  2.1 CÓDIGO DE NUREMBERG ................................................................................ 33  

2.2 DECLARAÇÃO DE HELSINQUE ........................................................................ 37  

CAPÍTULO 3 – DA PESQUISA CLÍNICA NO BRASIL: ASPECTOS GERAIS ....... 48  3.1 O DESENVOLVIMENTO FARMACÊUTICO DOS MEDICAMENTOS ................ 50  

3.1.1 A fase clínica: A experimentação em seres humanos e os direitos dos

participantes .............................................................................................................. 55  

3.2 A AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA ..................... 60  

3.3 ÉTICA EM PESQUISA: BIOÉTICA E O SISTEMA CEP/CONEP ....................... 65  

PARTE II – O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS: O DIREITO À SAÚDE E AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO .......................................................... 76   CAPÍTULO 4 – DO DIREITO À SAÚDE ................................................................... 77  4.1 A SAÚDE: CONCEITO E ALCANCE .................................................................. 77  

4.2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 .......................... 81  

4.2.1 Da legislação infraconstitucional sobre direito à saúde .................................... 85  

4.3 DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO HUMANO: SISTEMA INTERNACIONAL

DE DIREITOS HUMANOS ........................................................................................ 86  

4.4 DIREITO À SAÚDE: NORMA DE CONTEÚDO JURÍDICO OBJETIVO-

SUBJETIVO ............................................................................................................... 90  

CAPÍTULO 5 – DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ................................................................................ 97  5.1 CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO ............................................................. 97  

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5.2 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E

INOVAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ........................................... 102  

CAPÍTULO 6 – A INTERDEPENDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE E DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ............ 110  6.1 A PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS COMO FORMA DE FOMENTO

DA SAÚDE E DO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E

INOVAÇÃO .............................................................................................................. 114  

PARTE III – A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO - NOS ESTUDOS CLÍNICOS DE MEDICAMENTOS - COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL ......... 117   CAPÍTULO 7 – O CORPO HUMANO COMO ELEMENTO INTEGRANTE DO DIREITO À VIDA, À SAÚDE, À INTEGRIDADE FÍSICA E AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ................................................................................................. 119  CAPÍTULO 8 – DA DISPOSIÇÃO DO CORPO HUMANO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................................................................................ 128  8.1 O ATO DE DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO PARA ESTUDOS

CLÍNICOS VERSUS A RENÚNCIA DE DIREITOS ................................................. 134  

8.2 A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO COMO UM DIREITO

FUNDAMENTAL ...................................................................................................... 141  

8.2.1 Autonomia da vontade: o livre desenvolvimento da personalidade e o

consentimento livre e esclarecido ........................................................................... 151  

8.3 RESOLUÇÃO DE DIRETORIA COLEGIADA 466/2012: A DISPOSIÇÃO SOBRE

O PRÓPRIO CORPO MEDIANTE COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA ...................... 156  

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 167  REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 175  

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INTRODUÇÃO

“Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”1. Trata-se de

uma característica intrínseca ao ser humano e capaz de impulsionar, por meio da

curiosidade, a evolução da humanidade. O ser humano busca, incansavelmente,

saciar seu desejo de novidade, de mudar as coisas e de compreender as lacunas

existentes, independentemente de suas utilidades. A curiosidade busca sempre um

novo fim, para que depois de alcançado seja possível galgar nova jornada ao

encontro de novos desafios2.

“A impermanência humana junto ao que está próximo”3, ou seja, junto ao

conhecido, pode ser considerada a gênese da ciência e de sua evolução. A

inquietação humana para saciar questões até então indecifráveis é responsável pela

capacidade de criação inovadora da sociedade. Ao analisarmos a trajetória histórica

do ser humano, é possível atribuir sua curiosidade à conquista dos mais variados

inventos responsáveis não só pela evolução da espécie, mas também pela melhoria

na qualidade de vida, em seus aspectos científicos e sociais, principalmente no que

tange à ampliação contínua da longevidade.

Desde a descoberta do fogo, da penicilina, até os mais modernos

métodos diagnósticos e terapêuticos, a pesquisa científica almeja encontrar a cura e

o tratamento para as doenças que ceifam a saúde dos homens. Busca-se,

primordialmente, aumentar a longevidade, na esperança de prorrogar um dos

eventos ainda imbatíveis pelo ser humano: a chegada da morte.

Nesse sentido, buscar tratamento e alcançar a cura para as mais diversas

doenças e deficiências consiste no ponto propulsor da pesquisa científica, nos

âmbitos da medicina e da farmácia. Todavia, a busca desenfreada para suprir a

curiosidade no campo médico-científico já protagonizou verdadeiras atrocidades. E

embora essa busca tenha sido eficaz para a evolução científica, marcou, com horror,

a história da ciência, a exemplo das diversas experiências vivenciadas no nazismo. 1 ARISTÓTELES. Metafísica (Livros I e II). Trad. Vicenzzo Cocao. São Paulo: Abril Cultural, 1984, Capítulo I. 2 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá C. Shuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, § 36. 3 Id.

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Vale destacar que a evolução científica, no que concerne a profilaxia e

terapia de doenças, tem, na descoberta de novos medicamentos e de novas

vacinas, seu alicerce principal. É por meio do desenvolvimento farmacêutico que se

torna possível o tratamento de doenças, antes fatais ao ser humano. Nesse viés, as

indústrias farmacêuticas privadas e os laboratórios públicos destacam-se como

fomentadores não só do desenvolvimento científico, mas também do direito à saúde.

O desenvolvimento de novos medicamentos integra grande parte do

desenvolvimento nacional, sendo responsável pela circulação de vultosos valores

econômicos. Em 2015, estima-se, segundo dados da IMS Health disponibilizados

pelo Sidusfarma, que o mercado farmacêutico movimentou cerca de

R$44.685.118,227 em vendas4.

Não se pode negar o interesse econômico das indústrias farmacêuticas,

detentoras das maiores tecnologias de inovação. O universo farmacêutico,

permeado pelo direito de exploração de patentes, é o sustentáculo do capitalismo no

âmbito científico. Entretanto, é importante destacar que, ao mesmo tempo em que

sustentam os interesses privatistas, os direitos de propriedade intelectual fomentam,

em sua outra face, interesses públicos e coletivos, ou seja, trazem consigo o

progresso científico e o atendimento dos interesses sociais para a promoção da

saúde em todas suas acepções.

Dessa forma, a indústria farmacêutica, tendo em vista seu poder

econômico, figura hoje como a protagonista do desenvolvimento de novos

medicamentos. Isso porque o trajeto percorrido por uma nova molécula inovadora,

partindo da bancada dos laboratórios até chegar ao consumidor final, leva em torno

de 15 anos de desenvolvimento e requer o investimento de aproximadamente U$802

milhões5.

O desenvolvimento de novas tecnologias farmacêuticas engloba desde

testes in vitro, teste em animais, até sua última etapa, que consiste em testes com

seres humanos. Esse longo percurso, repleto de etapas, tem como finalidade

comprovar a eficácia e a segurança dos medicamentos que serão utilizados pela

sociedade. 4 Sidusfarma. Disponível em: <http://sindusfarma.org.br/cadastro/index.php/site/ap_indicadores>. Acesso em: 13 jun. 2016. 5 Tufts Center For The Study Of Drug Development, Disponível em: <http://csdd.tufts.edu/research/research_milestones>. Acesso em: 26 maio 2016.

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O teste de medicamento em seres humanos – a chamada Pesquisa

Clínica – constitui uma etapa obrigatória para o desenvolvimento de novo

medicamento6, exigida pela legislação sanitária vigente e fiscalizada pelos órgãos

regulatórios responsáveis pelo controle da saúde pública nacional.

Com a evidente necessidade de utilizar o corpo humano para fins de

desenvolvimento científico, é possível temer os possíveis abusos à dignidade

humana. Pois, conforme brevemente mencionado, a trajetória dos estudos com

seres humanos foi marcada por um histórico nebuloso, às sombras dos campos de

concentração do nazismo. Episódio da história que, embora repugnante,

encaminhou a humanidade para uma concepção de dignidade da pessoa humana,

com a consagração do Código de Nuremberg.

É certo que muitos avanços no campo do direito e da bioética foram

alcançados para proteger o ser humano e inibir a coisificação do corpo. Atualmente,

o desenvolvimento científico submete-se, tanto na ordem nacional quanto na

internacional, a limites protetivos dos direitos humanos – os limites ao chamado

biopoder7.

Mesmo diante do atual sistema de proteção de direitos humanos e da

consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento primordial do

Estado de Direito, a pesquisa com seres humanos requer ampla discussão,

merecendo atenção dos estudiosos do direito, da ciência e da bioética, sobretudo

porque, em evidente negligência legislativa, a regulamentação nacional sobre o

tema se dá por normas administrativas, emanadas no âmbito da discricionariedade

estatal.

6 Não só para os novos medicamentos, como também para nova indicação terapêutica; nova via de administração; nova concentração; nova forma farmacêutica; ampliação de uso; nova posologia; novas associações; ou qualquer alteração pós-registro que requeira dados clínicos, incluindo renovação de registro (RDC 9/2015 Anvisa). 7 “o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 286).

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Há repleta gama de aspectos éticos e jurídicos que permeiam esse

assunto. Os voluntários escolhidos para participar das pesquisas clínicas de

medicamentos se sujeitam, mediante consentimento, a procedimentos clínicos

diversos, muitas vezes invasivos, que poderão configurar a heterocolocação8 em

perigo. Ou seja, há, nesse caso, a disposição sobre o próprio corpo para realizar

procedimentos que poderão ensejar consequências ainda desconhecidas pela

ciência.

O foco primordial repousa nos direitos fundamentais dos participantes de

pesquisa clínica, especialmente no que se refere ao direito à saúde e à integridade

física. Cediço é que grande parte das pesquisas clínicas é realizada com indivíduos

acometidos pela moléstia que se pretende tratar. Entretanto, o cenário se altera

quando adentramos o âmbito da pesquisa clínica de Fase I9, realizada com pessoas

saudáveis.

Na submissão de seres humanos saudáveis a pesquisas com

medicamentos, o indivíduo dispõe de seu corpo e, eventualmente, de seu estado de

saúde em prol do desenvolvimento científico e do fomento da saúde coletiva. A

problemática se amplia com o advento da Resolução de Diretoria Colegiada RDC

466/2012, do Conselho Nacional da Saúde (CNS), que retirou dos estudos de Fase I

e dos testes de bioequivalência10 a gratuidade da participação.

Tal modificação, que revogou a normativa anterior de 1996, teve como

fundamento a grande dificuldade de se promover pesquisa Fase I no Brasil, haja

vista que, sem incentivo pecuniário, a quantidade de voluntários saudáveis era

escassa. Nota-se, nesse ponto, uma autorização – via norma administrativa – para

conceder compensação pecuniária aos indivíduos saudáveis, que, em contrapartida,

irão dispor dos seus corpos e da sua saúde.

8 Diferentemente da autocolocação em perigo, a heterecolocação configura um ato no qual o indivíduo, mediante consentimento, permite que terceiros criem determinado risco para ele. 9 E também nos casos de testes de bioequivalência realizados com seres humanos. 10 “Os estudos de biodisponibilidade relativa/bioequivalência (BRD/BE) são estudos clínicos conduzidos após o término da proteção patentária, com o objetivo de avaliar a extensão e a velocidade de absorção do fármaco contido em uma formulação teste (candidata a genérico, similar ou produto novo) em relação a uma formulação referência designada pelo órgão regulador” (VIEIRA, Nelson Rogério; CAMPOS, Daniel Rossi de. Manual de Bioequivalência. São Paulo: Dendrix, 2011. p. 81).

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Importante verificar que a submissão a essas pesquisas deverá ocorrer

com o pleno exercício de outro direito fundamental: o direito à liberdade, no viés da

autonomia da vontade. O direito à liberdade constitui expressão máxima de um

Estado de Direito, concedendo aos indivíduos legitimidade para direcionar suas

vidas e seus bens em conformidade com as convicções individuais e com o

desenvolvimento da própria personalidade, não sendo, todavia, absoluto11.

É nesse viés que o objeto do presente trabalho se fundamenta. Busca-se

analisar os direitos fundamentais envolvidos na realização da pesquisa clínica de

medicamentos, evidenciando eventuais colisões entre direitos, para que seja

possível verificar a legitimidade ética e constitucional do instituto da disposição sobre

o próprio corpo perante a ordem jurídica brasileira.

A importância do presente estudo se justifica, pois a integridade física do

corpo humano e a manutenção da saúde são direitos fundamentais que devem ser

protegidos pelo Estado. Entretanto, no exercício da liberdade individual, os

indivíduos podem optar por atos que talvez afetem tanto a integridade do corpo

como o estado de saúde. Nessas hipóteses, em que a liberdade individual, no viés

de autonomia da vontade, impõe-se sobre a integridade física do corpo e da saúde,

evidencia-se uma colisão de direitos fundamentais.

O ato de disposição sobre o próprio corpo para a participação de estudos

clínicos enquadra-se na colisão apresentada e será, portanto, objeto de estudo do

presente trabalho. O objetivo é verificar seu enquadramento como um direito

fundamental autônomo, fundamentado no direito à liberdade, da ótica da autonomia

da vontade. Com isso, deverá ser analisada a colisão entre o direito à saúde

individual – a integridade física do corpo – versus o direito à liberdade – no viés da

autonomia da vontade.

Tanto o direito à saúde e ao corpo quanto o direito à liberdade deverão, a

priori, ser protegidos pelo Estado. Vale ressaltar que a colisão a ser analisada é

restrita ao âmbito das pesquisas clínicas de medicamentos, realizadas sob o manto

do desenvolvimento científico e do fomento à saúde pública e coletiva.

11 BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 226-272.

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Visa-se, portanto, a abordar, da ótica constitucional, os aspectos éticos e

jurídicos envolvidos nos estudos clínicos de medicamentos, a fim de verificar se há

fundamentos jurídicos que asseguram a disposição sobre o próprio corpo como um

direito fundamental. Nessas circunstâncias, pretende-se abordar também a

constitucionalidade – ou não – da disposição sobre o corpo mediante compensação

pecuniária.

Para tanto, a presente dissertação será dividida em três partes. A Parte I

analisará os aspectos gerais relacionados à Pesquisa Clínica de medicamentos no

Brasil; a Parte II cuidará especificamente dos direitos fundamentais que constituem o

sustentáculo da pesquisa clínica de medicamentos: direito à saúde e direito ao

desenvolvimento científico; a Parte III discorrerá sobre o direito à disposição sobre

próprio corpo, a fim de verificar seu enquadramento no âmbito legal e ético, e tratará

da análise sobre a constitucionalidade da disposição do corpo, mediante

compensação pecuniária, da ótica do ordenamento jurídico nacional e da sua

importância para o fomento da saúde coletiva.

A pesquisa desenvolvida no presente trabalho, no que tange à

metodologia empregada, será de natureza dogmática, abrangendo seus três

desdobramentos – analítico, empírico e normativo – mediante análise da legislação

nacional e internacional aplicável ao tema, com respaldo primordial em resoluções

administrativas do Conselho Nacional de Saúde, normas de direito e legislação

específica. Busca-se, primordialmente, através da revisão da doutrina pertinente ao

tema, solucionar os questionamentos propostos ao longo do trabalho.

Ao final, será apresentada uma conclusão sobre os principais aspectos

acima elencados, com vistas a oferecer uma crítica fundamentada ao ordenamento

jurídico atual, que rege a Pesquisa Clínica de medicamentos no Brasil, a fim de

contribuir juridicamente para o progresso do desenvolvimento científico nacional, sob

a égide da proteção dos direitos fundamentais, especialmente no que concerne ao

respeito à dignidade da pessoa humana.

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PARTE I – DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS

CAPÍTULO 1 – CONCEITO E DEFINIÇÕES

A Pesquisa clínica de medicamentos – também conhecida por: ensaio

clínico12, estudo clínico, pesquisas biomédicas, pesquisas com seres humanos,

clinical trials –, representa uma etapa fundamental para a garantia de qualidade,

eficácia13 e segurança14 dos fármacos. Para que um medicamento possa ser

comercializado e distribuído ao público final, com a garantia de manutenção da

saúde pública, a pesquisa clínica configura etapa obrigatória exigida pela maioria

das agências reguladoras reconhecidas ao redor do mundo.

Nos termos das normas vigentes, a demonstração da eficácia e da

segurança de um medicamento (para aprovar tanto sua comercialização ou uma

nova indicação) é condição sine qua non para que seja distribuído à sociedade. A

pesquisa clínica mostra-se o único meio eficaz para a obtenção dessas

demonstrações. Os resultados obtidos nesses estudos determinam a autorização, o

registro e a comercialização de um medicamento.15

12 Neste trabalho, os termos mencionados serão utilizados como sinônimos, porém, alguns autores diferenciam as expressões pesquisa clínica, estudo clínico e ensaio clínico, sendo o último como estudos ou experimentos realizados para novos medicamentos em seres humanos. Cf.: LIMA, Jaderson S. et al. Pesquisa clínica: fundamentos, aspectos éticos e perspectivas. Revista da Socerj, Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 225-232, out., 2003. Disponível em: <http://www.rbconline.org.br/wp-content/uploads/a2003_v16_n04_art01.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2016. 13 Eficácia significa a capacidade de medicamento de atingir o efeito terapêutico visado. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br>. Acesso em: 23 abr. 2016. 14 Por segurança entendemos ser a informação sobre possível relação causal entre um evento adverso e um medicamento, sendo que tal relação é desconhecida ou foi documentada de forma incompleta anteriormente. 15 Boas Práticas Clínicas: Documento das Américas. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/boaspraticas_americas.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2016.

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Etimologicamente, a palavra pesquisa vem do latim perquirere e significa

buscar com afinco. O prefixo per- significa intensificativo e, quando acrescido de

quaerere, significa indagar, cuja origem está na palavra quaestio: busca, procura,

problema.16 No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa encontramos como

definição do vocábulo pesquisa: “conjunto de atividades que têm por finalidade a

descoberta de novos conhecimentos no domínio científico, literário, artístico, etc.”,

ou ainda, “investigação ou indagação minuciosa”17 Já a palavra clínica, por sua vez,

segundo o Dicionário Houaiss, significa a “prática ou o exercício da medicina”.18

Em uma conceituação meramente semântica, pesquisa clínica consiste

na investigação realizada por instrução médica em pacientes com o objetivo de

ampliar o conhecimento sobre algo – doença, medicamento ou método diagnóstico.

Ao contextualizar, é possível afirmar que pesquisa clínica consiste em uma pesquisa

de cunho médico a ser realizada com seres humanos.

A Conferência Internacional sobre Harmonização de Requisitos Técnicos

para o Registro de Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH), trouxe, através

do Documento das Américas de Boas Práticas Clínicas19, a seguinte conceituação:

Um ensaio clínico é um estudo sistemático de medicamentos e/ou especialidades medicinais em voluntários humanos que seguem estritamente as diretrizes do método científico. Seu objetivo é descobrir ou confirmar os efeitos e/ou identificar as reações adversas ao produto investigado e/ou estudar a farmacocinética dos ingredientes ativos, de forma a determinar sua eficácia e segurança.20

16 Consultório Etimológico. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/pergunta/pesquisa-72/>. Acesso em: 23 abr. 2016. 17 Pesquisa. In: HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1483. 18 Clínica. HOUAISS. Dicionário..., 2009, p. 480. 19 IV Conferência Pan-americana para Harmonização da Regulamentação Farmacêutica realizada na República Dominicana em março de 2005. 20Anvisa. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/boaspraticas_americas.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2016.

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21

A Pesquisa Clínica de medicamentos é considerada, portanto, uma das

etapas do desenvolvimento do medicamento na qual substâncias com potencial

terapêutico serão testadas e avaliadas em seres humanos, podendo ser em

indivíduos saudáveis ou em indivíduos acometidos por determinada patologia, a

depender da fase da pesquisa. Busca-se, primordialmente, analisar a qualidade, a

segurança e a eficácia de determinada substância no organismo humano.

Em uma visão global, a normativa da União Europeia afirma que:

‘Estudo Clínico’ significa qualquer investigação relacionada com seres humanos destinada: (a) a descobrir ou verificar os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos farmacodinâmicos de um ou mais medicamentos;(b) a identificar quaisquer reações adversas a um ou mais medicamentos; ou (c) a estudar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a excreção de um ou mais medicamentos; com o objetivo de apurar segurança e/ou eficácia desses medicamentos.21

A legislação da França, no art. R. 1121-1 do Decreto no 2006/477, de 26

de abril de 2006, apresenta a definição de pesquisas biomédicas:

Art. R. 1121-1 - Qualquer ensaio clínico de uma ou mais drogas que busque descobrir ou verificar os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos farmacodinâmicos, ou que busque estudos de suas absorções, sua distribuição, seu metabolismo e sua excreção com objetivo de averiguar sua segurança ou eficácia.22

No site oficial da agência americana Food and Drug Administration (FDA), o pesquisador William Thomas Beaver descreve a função dos estudos clínicos:

21 Regulamento (UE) 536/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014. Disponível em: <http://ec.europa.eu/health/files/eudralex/vol1/reg_2014_536/reg_2014_536_pt.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2016. 22 Tradução nossa do original: “Art. R. 1121-1 - Les recherches biomédicales portant sur un médicament sont entendues comme tout essai clinique d'un ou plusieurs médicaments visant à déterminer ou à confirmer leurs effets cliniques, pharmacologiques et les autres effets pharmacodynamiques ou à mettre en évidence tout effet indésirable, ou à en étudier l'absorption, la distribution, le métabolisme et l'élimination, dans le but de s'assurer de leur innocuité ou de leur efficacité”.

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22

A função do ensaio clínico controlado não é a ‘descoberta’ de um novo medicamento ou terapia. Descobertas são feitas no laboratório animal, por observação acaso, ou à beira do leito por um médico aguda. A função do ensaio clínico controlado formal é de separar o punhado de descobertas que se revelem verdadeiros avanços na terapia de uma legião de pistas falsas e impressões clínicas não verificáveis, e delinear de forma científica o âmbito e as limitações que acompanham a eficácia de medicamentos.23

No Brasil, as Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que

tratam especificamente sobre pesquisa com seres humanos – a Resolução de

Diretoria Colegiada (RDC) 466/2012 e a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC)

9/2015, apresentam a seguinte definição, respectivamente:

Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, tenha como participante o ser humano, em sua totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos.24

Ensaio clínico – pesquisa conduzida em seres humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia.25

23 Tradução nossa do original: “The function of the controlled clinical trial is not the "discovery" of a new drug or therapy. Discoveries are made in the animal laboratory, by chance observation, or at the bedside by an acute clinician. The function of the formal controlled clinical trial is to separate the relative handful of discoveries which prove to be true advances in therapy from a legion of false leads and unverifiable clinical impressions, and to delineate in a scientific way the extent of and the limitations which attend the effectiveness of drugs”. FDA. Disponível em: <http://www.fda.gov/aboutfda/whatwedo/history/overviews/ucm304485.htm#_edn2>. Acesso em: 22 abr. 2016. 24 Resolução 466/2012 CNS. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html>. Acesso em: 26 abr. 2016. 25 Resolução 9/2015 CNS. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/c3dc820047823081b0a7fbfe096a5d32/rdc0009_20_02_2015.pdf?MOD=AJPERES>. Acesso em: 26 abr. 2016.

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23

Pesquisa clínica de medicamentos é, portanto, a pesquisa realizada, por

profissional habilitado, em seres humanos saudáveis e/ou doentes, de forma

individual ou coletiva, para a verificação dos efeitos clínicos, farmacológicos e/ou

farmacodinâmicos, a fim de determinar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a

excreção de determinada(s) substância(s) no organismo humano, objetivando

comprovar a qualidade, a eficácia e a segurança de um medicamento novo ou de

eventual melhoria, alteração e/ou inovação proposta aos medicamentos já

disponíveis no mercado.

No conceito de pesquisa clínica é necessário englobar também os

chamados estudos de bioequivalência26, realizados para comprovar a equivalência

farmacêutica entre medicamentos referência27, medicamentos genéricos28 e

similares.29

26 “Estudos de Biodisponibilidade/Bioequivalência (BD/BE) de medicamentos: consiste na comparação de parâmetros farmacocinéticos ou farmacodinâmicos entre medicamento teste e medicamento de referência ou comparador”. Sendo: “medicamento de referência: medicamento comparador cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto à Anvisa”; “Medicamento teste: medicamento submetido ao estudo de BD/BE que é comparado ao a um medicamento de referência/comparador”; e, “Medicamento comparador: medicamento com o qual o medicamento teste será comparado, podendo ser referência ou outro definido pela Anvisa” (RDC 56/2014 Anvisa). 27 “Medicamento de Referência: produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto ao órgão federal competente, por ocasião do registro” (Lei 9.787/99). 28 “Medicamento Genérico: medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI” (Lei 9.787/99). 29 “Medicamento Similar: aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca” (Lei 9.787/99).

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24

CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MEDICAMENTOS E DA EXPERIMENTAÇÃO COM SERES HUMANOS

A exploração do mundo farmacêutico pode ser evidenciada desde os

primórdios das sociedades. Historiadores e arqueólogos reconhecem indícios da

manipulação de fármacos oriundos do período arcaico e do período clássico.

Embora nessa época fosse evidente a predominância da magia e da religião em

relação às doenças30, foram encontradas grandes contribuições para o universo dos

medicamentos.

Por exemplo, expedições arqueológicas encontraram nas ruínas de

Nippur, que corresponde ao período de 4000 e 1500 a.C, da civilização

mesopotâmica, tabelas de argila com caracteres coniformes descrevendo mais de 8

mil receitas empíricas com 30 elementos na forma de princípios ativos, além de

processos farmacêuticos diversos, como infusões, ebulições, filtrados, unções etc.

Esta tabela, traduzida e publicada em 1940, ficou conhecida como A Antiga

Farmácia do Nippur.31

No Egito antigo, a medicina se relacionava com aspectos sobrenaturais.

Era composta por mito, superstição e diversos tratamentos práticos medicinais. Os

médicos acreditavam que o Deus Toth era o responsável por indicar os

medicamentos eficazes para cada doença. As revelações eram registradas nos

templos de Sais ou Heliópolis.32 A civilização egípcia, por volta de 4300 a.C.,

também contribuiu para a farmacologia com anotações posteriormente encontradas

em papiros.33

30 DIAS, José Pedro Souza. A farmácia e a história: Uma introdução a história da farmácia, da farmacologia e da terapêutica. Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, 2005. p.10. 31 JOHNSON, Adriana Patrícia Acuña. Historia de la farmacia y de la profisión farmacéutica desde la perspectiva del medicamento. In: NOVAES, Maria Rita Garbi; LOLAS, Fernando; SEPÚLVEDA, Alvaro Quezada (Orgs). Ética e fármacia: uma abordagem latinoamericana em saúde. Brasília: Thesaurus, 2009. p. 63. 32 ROONEY, Anne. A história da medicina: das primeiras curas aos milagres da medicina moderna. São Paulo: M. Books, 2013. p. 103. 33 O papiro consiste numa planta aquática do Rio Nilo (espécie de junco), da qual os antigos egípcios usavam o talo para fabricar um tipo de papel (a palavra papel é originada da palavra papiro), no qual se escreviam com uma pena de junco. Disponível em: <http://www.egipto.com.br/papiro/>. Acesso em: 26 abr. 2016.

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O Papiro de Ebers (1500 a.C), o Papiro de Kahun (1850 a.C.) e o Papiro

de Hearst (1600 a.C.) –, revelam os segredos de medicação. Alguns continham

cerca de 810 prescrições e 700 remédios destinados à cura das mais diversas

enfermidades, desde mordida de cobra, contraceptivos em forma de supositórios até

febre puerperal.34 Grande parte da farmácia egípcia foi incorporada, posteriormente,

por Hipócrates e Dioscórides.

Por volta dos anos de 430 a 429 a.C, Hipócrates, até hoje conhecido

como o pai da medicina, teve grande influência no universo dos medicamentos. Sua

teoria sobre o equilíbrio dos humores trouxe a utilização de técnicas e de

medicamentos para a manutenção da saúde. Hipócrates entendia que o corpo

humano era formado por quatro humores: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a

bílis negra, procedentes, respectivamente, do coração, do cérebro, do fígado e do

baço. Para a manutenção do equilíbrio entre os humores do corpo, Hipócrates

recomendava boa dieta e bom estilo de vida, tratamento com drogas e, por último,

cirurgias.35

Como formas terapêuticas utilizavam-se sangrias, sanguessugas, drogas

vegetais e animais. Já àquela época, Hipócrates aconselhava seus seguidores a

mastigar as folhas de salgueiro para alívio de dores e de febre. A folha de salgueiro,

na atualidade, é a matéria-prima principal da Aspirina, sintetizada, em 1853, pelo

químico francês Charles Fréderic Gerhardt.36

Dioscórides destacou-se entre os povos greco-romanos, reunindo todo o

conhecimento farmacológico de seu tempo na obra De materia medica – uma fonte

de suma importância que permaneceu em uso até a Renascença37 – a qual possuía

cinco volumes que descreviam os usos medicinais de ervas, plantas, óleos e

minerais.

35 ROONEY, Anne. A história da medicina, 2013, p. 111. 36 Ibid., p. 116. 37 JOHNSON in: NOVAES; LOLAS; SEPULVEDA, Ética e farmácia, 2009, p. 69.

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Em Alexandria, por volta de 162 d.C, Galeno, fortemente influenciado

pelos postulados filosóficos de Platão e Aristóteles e pelas raízes da medicina

hipocrática, dedicou-se a formular a farmacologia racional. Sistematizou seus

estudos na obra Sobre o Método Terapêutico38 e deu origem à chamada farmácia

galênica, sendo considerado o pai da alopatia.

Galeno (131-201 d.C), médico do imperador Marco Aurélio, retomou o trabalho sistemático de Dioscórides (1º século da Era Cristã) e realizou uma súmula dos conhecimentos médicos e terapêuticos da época, desenvolvendo o que foi considerado por muitos séculos o mais completo sistema de terapêutica medicinal por meio de extratos de plantas e de outros produtos naturais.39

Na China foi encontrado, em uma tumba lacrada de 168 a.C, um

manuscrito com a descrição de ervas e óleos, conhecido como Receitas Para

Cinquenta e Duas Doenças. O lendário imperador Shen Nung escreveu o Divino

Clássico de Raízes-Ervas do Produtor, que incluía 365 remédios derivados de

plantas, animais e minerais, formando a primeira farmacopeia chinesa.40

Dessa forma, é inconteste que a sede pela cura de doenças é inerente à

natureza humana. O saber científico na sociedade moderna é fruto de testes e

estudos realizados por nossos antepassados, mesmo que a finalidade não fosse, de

fato, tão evidente à época. A descoberta terapêutica da cegueira noturna, doença

causada pela insuficiência de Vitamina A, representa um exemplo de que muitas

descobertas não foram realizadas intencionalmente.

Nesse caso, um médico da antiga Suméria prescrevia aos seus pacientes

que apresentavam sintomas de cegueira noturna, a ingestão de fígado animal, sem

saber que fígado é rico em Vitamina A41 – a responsável pela melhora dos sintomas

de cegueira noturna e, por esse motivo, os pacientes que faziam toda a dieta

prescrita apresentavam melhora nos sintomas.42

38 JOHNSON in: NOVAES; LOLAS; SEPULVEDA, Ética e farmácia, 2009, p. 70. 39 SILVA, Maurício Rocha. Fundamentos da Farmacologia. São Paulo: Edart; Brasília: INL, 1973. p. 5. v. 1 40 JOHNSON in: NOVAES; LOLAS; SEPULVEDA, Ética e farmácia, 2009, p. 69. 41 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 120. 42 Id.

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27

Dessa forma, o trajeto histórico, desde os povos ancestrais até as

descobertas mais reconhecidas pela ciência, como a descoberta do primeiro

antibiótico – a penicilina, por Alexandre Fleming em 1928, posteriormente, em 1935,

a da sulfonamida, por Gerhard Domagk, até a descoberta da bactéria criada

geneticamente para a fabricação de insulina em 1977, demonstram que a história da

medicina e da farmácia sempre caminharam em conjunto com a história da

humanidade, proporcionando, cada vez mais, longevidade à espécie.

São muitas as descobertas realizadas pelos homens no campo da

medicina. Mas para a confirmação da veracidade de todas as descobertas

realizadas muitos testes com seres humanos precisaram ser realizados. A utilização

do corpo humano – vivo ou morto – para fins científicos também tem origem nos

nossos ancestrais mais antigos.

Na antiguidade grega cadáveres humanos eram considerados um

poderoso remédio. O já citado Papiro de Ebers (1500 a.C) revela que o cérebro

humano consistia um ótimo remédio para lesão nos olhos43. Celsus, no Século I,

anunciou que tomar o sangue, ainda quente, de um gladiador recém-assassinado

poderia curar a epilepsia.44 No século XVI, Paracelso, também um defensor do

sangue humano, defendia que os corpos de pessoas assassinadas de forma rápida

e violenta eram uma fonte valiosa de medicamentos.45

Paracelso defendia um posicionamento mais rebelde em relação aos

demais estudiosos do assunto, valorizando a experimentação como forma de

combate das doenças. Silva afirma que: “A atitude de rebeldia de Paracelso

certamente contribuiu para o advento de uma medicina menos dogmática e mais

aberta à crítica da observação e da experiência”46.

43 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 123. 44 Ibid., p. 124. 45 Ibid., p. 125. 46 SILVA, M. Fundamentos da Farmacologia, 1973, p. 5.

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O valor terapêutico das substâncias descobertas ao longo dos anos foi

consagrado pela tradição de uso e pela observação dos médicos. O conhecimento

da anatomia humana, através de dissecação de cadáveres, enfrentou longo trajeto

até a sua legalização. Muitas sociedades antigas47 proibiam a dissecação dos

corpos humanos, pois acreditavam que a alteração do estado físico pós-morte

poderia prejudicar o trajeto espiritual dos mortos. Diante dessa situação, grande

parte do conhecimento anatômico era oriundo da dissecação de animais.48

São Tomás de Aquino (1225-74) quebrou alguns paradigmas ao afirmar

que no dia do julgamento final a alma e o corpo se tornariam um só, e que a

alteração do corpo físico não influenciaria na ressureição49. Superadas as crenças

religiosas, as dissecações passaram a ser grandes espetáculos públicos tanto para

a punição de criminosos como para fins acadêmicos. Em 1316, Mondino dei’Luzzi da

Itália, foi o primeiro a publicar um manual prático de anatomia.50

A necessidade dos anatomistas por corpos gerou grande demanda. Os

corpos se tornavam cada vez mais escassos, tanto que a Grã-Bretanha publicou a

Lei do Assassinato de 1752, a qual permitiu que o corpo de todos os criminosos

executados fosse destinado às pesquisas. Porém, após a reforma jurídica do século

XIX, houve grande redução das execuções por crimes.51

A escassez de corpos para pesquisas fomentou a venda de cadáveres

contrabandeados. Túmulos eram constantemente roubados e diversos assassinatos

começaram a ocorrer. Na Grã-Bretanha, por exemplo, entre os anos 1827 e 1828, o

caso do imigrante Willian Burke ganhou destaque. Willian Burke, em coautoria com

seu amigo Willian Hare, cometeu cerca de 17 assassinatos, a fim de vender os

corpos à Escola Médica da Universidade de Edinburgh.52

47 “Embora os embalsamadores egípcios removessem órgãos enquanto mumificavam corpos, aparentemente o conhecimento deles não era compartilhado com os médicos. Além disso, nem a medicina chinesa nem a Indiana nos Sec. VI a.C, tampouco a primeiros cristãos e também os muçulmanos permitiam a dissecação de corpos de seres humanos” (ROONEY. A história da medicina, 2013. p. 120). 48 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 26. 49 Ibid., p. 28. 50 Ibid., p. 29. 51 Ibid., p. 31. 52 Id.

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Concomitantemente à realização das dissecações de corpos, muitos

experimentos se realizaram em seres humanos vivos objetivando entender o

funcionamento do corpo e de seu metabolismo. Um caso muito famoso ocorreu em

1822 no Estado do Michigan, nos Estados Unidos da América, com o cirurgião

Willian Beaumont.

Willian Beaumont realizou uma cirurgia em um militar franco-canadense,

Alexis St. Martin, que havia sido ferido por um tiro na região abdominal. Embora o

rapaz tenha sido salvo pela cirurgia, restou uma sequela permanente em forma de

fístula no abdômen, a qual concedia acesso direto ao sistema digestivo53. O médico,

em comum acordo com o paciente, observou durante nove anos, através de uma

sonda, o funcionamento da digestão. O médico conseguiu comprovar ao longo de

sua experiência a presença de ácido hidroclorídrico na digestão humana,

comprovando, portanto, o caráter químico do processo digestivo.54

Muito embora o caso narrado tenha ocorrido através de livre

consentimento, a história da experimentação com seres humanos não seguiu os

passos da liberdade individual e, muitas vezes, foi utilizada por inescrupulosos atos

contra a raça humana. Por outro lado, diversos médicos e cientistas realizaram

experimentos consigo mesmos, ocasionando, em alguns casos, a própria morte.

O médico inglês, Willian Stark, por volta dos anos de 1760, testou dietas

restritivas até morrer de escorbuto55 aos 29 anos56. O gastroenterologista

australiano, Barry Marshall, ganhou o Prêmio Nobel ao ingerir a bactéria

Heliocobacter pylori e comprovar, em si mesmo, que ela era a causadora de úlceras

no estômago57. E muitas outras pesquisas foram realizadas, ao longo dos anos, em

involuntários, ou seja, sem o consentimento dos envolvidos, que, em muitos casos,

eram escravos e/ou pessoas em estado de completa vulnerabilidade.

53 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 44. 54 Ibid., p. 44. 55 Doença provocada pela ausência de Vitamina C. 56 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 204. 57 Id.

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A primeira execução de pesquisa clínica clássica ocorreu em 1747 com o

médico naval inglês James Lind, que buscava a cura do escorbuto. Ele separou os

marinheiros58 acometidos pela doença em seis pares, e tratou cada qual com uma

substância diferente. Verificou que o par que recebeu duas laranjas e um limão por

dia, se recuperou rapidamente. A doença passou a ser controlada com a distribuição

de uma porção de suco de limão aos marinheiros59.

Com o crescimento exacerbado da necessidade dos pesquisadores por

mais corpos, o lado obscuro da pesquisa clínica começou a transparecer. Escravos

eram habitualmente utilizados para diversos experimentos repugnantes. Quando

adoeciam, seus senhores os levavam aos hospitais, que, em vez de cobrar pelo

tratamento, solicitavam a utilização dos escravos para fins de pesquisas.60

Existiam casos de compras de escravos realizadas diretamente por

hospitais e centros de pesquisas com um único fim: testes científicos. Os

experimentos consistiam desde a contaminação proposital de doenças, como sífilis e

malária, até a submissão à altas temperaturas dentro de fornos para a verificação da

tolerância do corpo humano ao calor.61

Na época da escravidão, os escravos eram considerados verdadeiras

cobaias de laboratório.

Vê aquela casa? Aquela casa grande de tijolos aparentes? Descendo a rua? Eles costumava levar os mortos para lá Enrolados em um longo lençol branco. E às vezes quando um negro parava. Querendo saber quem morreu, Pegavam um taco E lhe davam um golpe na cabeça. E arrastavam o pobre negro morto frio Por aquele corredor Para investigar seu fígado – luzes – Sua moela e a vesícula. Tiram as mãos e os pés daquele negro – Seus olhos, cabeça e tudo, E quando os estudantes terminam Nada restou.62

58 Doença muito comum em marinheiros que ficavam por anos em viagens com dieta restritiva e isenta de vitamina C. 59 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 203. 60 Ibid., 2013, p. 206. 61 Id. 62 Apud ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 207.

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O ápice da experimentação científica se deu com o advento da Guerra

entre Japão e China (1930-1945) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). É

possível verificar que a experimentação com seres humanos está encoberta pelas

sombras dos campos de concentração. Ao analisar um breve relato das condições

sub-humanas a que foram submetidos os prisioneiros de guerras e os judeus, é

possível enumerar uma lista repugnante de experimentos que realizados sob a

justificativa de promoção do desenvolvimento da ciência.

Paul Mcneill, em sua obra Ethics and politics of human experimentation,

reuniu uma vasta documentação com a descrição dos eventos ocorridos no século

XVIII. A lista conta com experiências que vão desde a submissão de militares

saudáveis à transfusões de sangue infectado por tifo, à contaminação proposital de

sífilis e outras doenças até amputações de membros, com e sem anestesia, para

verificação da eficácia de substâncias anestésicas.63

Na Guerra entre China e Japão os prisioneiros eram submetidos a testes

com armas biológicas, desidratação até à morte, congelamento de membros,

exposição à radiação, além da troca de sangue com animais.

Os campos nazistas também ficaram conhecidos como os locais onde

experiências macabras eram realizadas com os judeus. A submissão de crianças à

desnutrição para averiguação da tolerância do corpo à fome era algo comum;

Mulheres submetidas à esterilização mediante Raio X ou, então, a fecundações

artificias com sêmen de animais. Foram realizadas diversas infecções propositais de

tuberculose, tifo, malária entre outras doenças de interesse dos pesquisadores.

Diversos testes eram realizados sem qualquer padrão ético ou respeito à

dignidade da pessoa humana. É possível afirmar que os campos nazistas reduziram

os homens a coisas, sem qualquer piedade. Congelamentos de pessoas realizados

em tanques, aquecimentos coletivos em fornos, técnicas cirúrgicas desnecessárias e

sem anestesia, ferimentos por estilhaços, administração de venenos para estudar

seus efeitos letais, testes aplicando corantes químicos em olhos de presos na

tentativa de mudar suas cores, experiências com gêmeos, entre outros testes de

interesses científicos.

63 MCNEILL, Paul Murray. Ethics and politics of human experimentation. United Kingdom: Cambridge University Press, 1993. p. 17.

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Um evento chocante, amplamente difundido, foi a experiência realizada

com um grupo de ciganos submetidos à ingestão apenas de água do mar. O objetivo

era apurar a tolerabilidade do corpo humano à agua salgada. Relatos demonstram

que as pessoas foram encontradas lambendo os ladrilhos recém-lavados na ilusão

de sanar a desidratação extrema.64 Muitas descobertas foram obtidas à custa da

tortura de outros seres humanos.

Ao final da Guerra, muitos médicos e pesquisadores foram julgados pelo

Tribunal de Nuremberg e condenados pelos crimes cometidos. Desse passado

obscuro e como resposta aos horrores cometidos no período, surgiu a consciência

mundial sobre a dignidade da pessoa humana e sobre ética em pesquisa. Com o

advento do Código de Nuremberg, e posteriormente da Declaração de Helsinque,

foram estabelecidos os princípios éticos para a pesquisa com seres humanos, que

trouxeram como objetivo principal a imposição de alguns limites às pesquisas

científicas.

A história comprovou que existe um lado obscuro por trás da curiosidade

científica. Os interesses desmedidos da ciência levaram a experiências desumanas,

com a redução da condição humana a cobaias laboratoriais. Entretanto, não se pode

negar que passos foram dados e, com eles, a consciência ética, social e jurídica de

que avanços científicos não poderão se sobrepor à dignidade da pessoa humana e

aos direitos individuais.

Nesse sentido, é importante mencionar as conquistas alcançadas pelo

Código de Nuremberg (1947), pela Declaração Universal dos Direitos Humanos

(1948), pela Declaração de Helsinque (1964), pelo Pacto Internacional sobre os

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), pelo Pacto Internacional sobre os

Direitos Civis e Político (1966), pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano

e os Direitos Humanos (1997), pela Declaração Internacional sobre os Dados

Genéticos Humanos (2003), e pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos

Humanos (2004). Todos esses diplomas consagraram valores fundamentais no que

tange ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana e o dos direitos do

homem de uma forma universal.

64 Casos Desconhecidos. Disponível em: <http://www.fatosdesconhecidos.com.br/as-terriveis-experiencias-medicas-do-nazismo/>. Acesso em: 22 abr. 2016.

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No contexto do presente estudo, com fito de complementar o trajeto

histórico proposto no presente capítulo, passaremos a analisar dois diplomas que

compõe, indubitavelmente, a história da pesquisa clínica no Brasil e no mundo: O

Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque.

2.1 CÓDIGO DE NUREMBERG

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instaurou-se no Palácio

da Justiça de Nuremberg, Alemanha, uma corte de juízes americanos incumbidos

dos julgamentos pelos crimes cometidos pelos nazistas, conhecido como o Tribunal

de Nuremberg.

Foram 12 casos julgados pelo Tribunal de Nuremberg. O primeiro deles,

realizado em 1947, objetivou o julgamento dos crimes praticados pelos médicos

nazistas, diretamente relacionados às atrocidades cometidas na realização de

experimentos com seres humanos. Como resposta aos crimes cometidos, o Tribunal

elaborou um conjunto de preceitos éticos a serem observados na condução de

pesquisas com seres humanos. Esse conjunto de princípios ficou conhecido como

Código de Nuremberg.

A realização de pesquisas envolvendo seres humanos ficou, após a

publicação do Código de Nuremberg, subordinada ao respeito da autonomia da

vontade individual. O consentimento livre e esclarecido do participante de pesquisa

se tornou condição precípua para a condução de estudos clínicos65, e a

possibilidade de se retirar do estudo, a qualquer tempo, uma liberdade garantida.66

65 “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e

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Firmaram-se condições específicas para a condução de experimentos

dessa natureza. O Código buscou impor limites à ciência desenfreada, determinando

que o experimento não poderá ser realizado “de maneira casuística ou

desnecessariamente”67, ou ainda, “sem o conhecimento prévio da evolução da

doença através de testes realizados com animais”68.

Como padrões éticos que visam resguardar a dignidade da pessoa

humana, o Código de Nuremberg trouxe a necessidade de impedir sofrimentos,

danos desnecessários, possibilidade de morte ou invalidez permanente69, além de

exigir a proporcionalidade entre o risco aceitável e o problema que o pesquisador,

pessoa cientificamente qualificada, pretende resolver. Embora os preceitos éticos

concedidos pelo Código tenham buscado garantir o respeito à dignidade da pessoa

humana na condução de experimentos científicos, os efeitos esperados não foram

prontamente alcançados.

Debora Diniz e Marilena Corrêa explicitam que as diretrizes éticas de

Nuremberg não foram capazes de sensibilizar os médicos para o respeito

necessário no uso de seres humanos em pesquisa clínica70 e, ao explicar os

possíveis motivos dessa falha, citam Rothman (1991) que aduz:

O julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg recebeu pouca cobertura da imprensa e, antes da década de 70, o próprio código raramente era citado ou discutido nas revistas médicas. Pesquisadores e clínicos americanos aparentemente consideravam Nuremberg irrelevante para seu próprio trabalho.71

responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente” (CÓDIGO de Nuremberg, 1947). 66 “O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento” (CÓDIGO de Nuremberg, 1947). 67 Código de Nuremberg, 1947. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/nuremcod.htm.> Acesso em 10 de dezembro de 2016. 68 Id. 69 “Exceto quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento” (CÓDIGO de Nuremberg, 1947). 70 DINIZ, Débora; CORRÊA, Marilena. Declaração de Helsinque: relativismo e vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 17, v. 3, p. 679-688, maio-jun., 2001. 71 ROTHMAN, David. Making the Invisible Visible. Strangers at the Bedside. Washington, DC: Basic. 1991. In: DINIZ; CORRÊA. Cad. Saúde Pública, 2001, p. 680.

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Com o decorrer do tempo notou-se que os preceitos de Nuremberg não

foram amplamente incorporados ao mundo científico, eram vistos, todavia, como

aplicáveis somente às atrocidades vivenciadas no nazismo, ou seja, só diziam

respeito à medicina nazista, e não ao médico comum. Esse fato se tornou ainda

mais evidente com o acontecimento do Caso Tuskegee, ocorrido após o Código de

Nuremberg.

O Caso Tuskegee, consistiu na condução de um estudo clínico que

“envolveu 600 homens negros, sendo 399 com sífilis e 201 sem a doença, da cidade

de Macon, no estado do Alabama”72. O estudo objetivava observar a evolução da

doença sem a administração de tratamento. Goldim relembra que, em 1929, já havia

sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos,

relatando mais de 2 mil casos de sífilis não tratados.73 Ou seja, os objetivos do Caso

Tuskegee não eram essenciais.

Com isso, foi possível observar que mesmo sob a égide do Código de

Nuremberg, o qual estabeleceu padrões éticos para a condução de experimentos

com seres humanos, diversos indivíduos morreram no transcurso desse estudo pela

impossibilidade de acesso ao tratamento, diga-se, que já existia.

Complementa Goldim:

A partir da década de 50 já havia terapêutica estabelecida para o tratamento de sífilis, mesmo assim, todos os indivíduos incluídos no estudo foram mantidos sem tratamento. Todas as instituições de saúde dos EEUU receberam uma lista com o nome dos participantes com o objetivo de evitar que qualquer um deles, mesmo em outra localidade recebesse tratamento. A inadequação do estudo foi seguindo o padrão conhecido como ‘slippery slope’, isto é, uma inadequação leva a outra e o problema vai se agravando de forma crescente. Da omissão do diagnóstico se evoluiu para o não tratamento, e deste para o impedimento de qualquer possibilidade de ajuda aos participantes.74

72 GOLDIM José Roberto. O Caso Tuskegee: quando a ciência se torna eticamente inadequada. 1999. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm>. Acesso em: 22 abr. 2016. 73 Id. 74 Id.

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Em 1997, ainda estavam vivas 8 pessoas e o governo americano se

desculpou publicamente pelo ocorrido.75 O filme Cobaias, do diretor Joseph Sargent

(1997), tentou demonstrar o drama vivenciado pelos pacientes.

Entre outros exemplos ocorridos, a Síndrome da Talidomida76 nos anos

60, conhecida por ocasionar o nascimento de diversos bebês acometidos por

Focomelia77. Cerca de 20 mil mulheres foram submetidas a testes clínicos para a

eficácia da talidomida, mas sem o consentimento adequado. Estima-se que de 10

mil a 20 mil bebês em mais de 40 países foram afetados.78

Note-se que as diretrizes éticas estabelecidas pelo Código de Nuremberg

não foram incorporadas no ethos científico dessa época, o qual permaneceu com as

premissas praticadas no regime nazista.

Em 1966, Henry Beecher publicou um trabalho histórico no The New

England Journal of Medicine, levantando 22 estudos clínicos acometidos por graves

infrações éticas.79 Volnei Garrafa relembra dois casos relatados por Beecher em seu

estudo, em um deles foi introduzido, em pacientes idosos hospitalizados, células

hepáticas cancerosas, à revelia do consentimento desses indivíduos, informados

que receberiam apenas “células”.

Noutro estudo clínico, com o fito de estudar anticorpos tumorais, o tumor

de uma menina portadora de melanoma foi transplantado para a sua mãe,

devidamente esclarecida e informada, com a omissão do quadro terminal da criança,

a qual morreu um dia após o enxerto. A mãe faleceu 455 dias após o transplante.80

75 CANDIOTTO, César. Biopoder e racismo político: uma análise a partir de Michel Foucault. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis. Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 20-38, jul/dez. 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/viewFile/1807-1384.2012v9n2p20/23512>. Acesso em: 21 jun. 2016. 76 Talidomida, medicamento desenvolvido na Alemanha, em 1954, inicialmente como sedativo. A droga era dada às mulheres grávidas para combater os sintomas do enjoo matinal. Associação de portadores de Síndrome de Talidomina. Disponível em: <http://www.talidomida.org.br/>. Acesso em: 10 de jul. 2016. 77 Trata-se de uma síndrome caracterizada pela aproximação ou pelo encurtamento dos membros junto ao tronco do feto – tornando-os semelhantes aos de uma foca. 78 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 207. 79 BEECHER, Henry. Ethics and clinical research. New England Journal of Medicine, 1966, n. 274, p. 1354-1360, June 16, 1966. Disponível em: <http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM196606162742405>. Acesso em: 25 abr. 2016. 80 GARRAFA, Volnei; PRADO, Mauro Machado do. Alterações na Declaração de Helsinque – a história continua. Revista Bioética, 2007, n. 15, v. 1, p. 11-25, p. 514.

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A publicação de Beecher se deu em 1966, dois anos após a Declaração

de Helsinque (1964), entretanto, os relatos descritos faziam referência às pesquisas

realizadas tanto à revelia da Declaração recém-editada de Helsinque, como também

do Código de Nuremberg. Beecher pretendeu comprovar que as origens do

totalitarismo científico81 permaneciam vigentes mesmo no período pós-guerra e que,

em diversos estudos, os interesses da ciência permaneciam se sobrepondo à

dignidade da pessoa humana e aos princípios éticos até então conquistados.

2.2 DECLARAÇÃO DE HELSINQUE

Transcorridos mais de 15 anos da fixação das diretrizes éticas para a

pesquisa com seres humanos pelo Código de Nuremberg, notou-se que muitos de

seus preceitos necessitavam ser consolidados, haja vista que diversas pesquisas

permaneciam sendo conduzidas com evidente violação aos direitos e à dignidade

dos pacientes.

Nesse contexto, a Associação Médica Mundial (AMM) na 18ª Assembleia

Médica Mundial – realizada em Helsinque, na Finlândia, tendo por base os preceitos

do Código de Nuremberg, aliados aos princípios basilares da Declaração de

Genebra (1948) 82 – lançou, em 1964, a primeira versão da Declaração de Helsinque

sobre “Os princípios éticos para a pesquisa médica envolvendo seres humanos”83.

81 “O que denota esse entendimento e mostra-se extremamente importante é o fenômeno totalitário em si – como fenomena (aquilo que se mostra, revela ou manifesta consciência) – que não ocorre apenas no plano político, podendo surgir, como todas ou algumas das suas características, em qualquer atividade humana que pressuponha a possibilidade de uma imposição total, de conceitos e de valores, independendo de qualquer dependência ou participação da sociedade em que se manifesta” (GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 71). 82 A Declaração de Genebra foi aprovada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Genebra, 1948, sofrendo alterações em 1968, 1984, 1994, 2005 e 2006. A declaração foi concebida como uma revisão modernizadora dos preceitos morais do Juramento de Hipócrates e tem sido utilizada em vários países na solenidade de recepção aos novos médicos inscritos na respectiva Ordem ou Conselho de Medicina. Disponível em: <http://www.anm.org.br/conteudo_view.asp?id=1178&descricao=Hist%C3%B3rias+da+Associa%C3%A7%C3%A3o+M%C3%A9dica+Mundial>. Acesso em: 25 abr. 2016. 83 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque I. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

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Tendo em vista as reuniões anuais realizadas pela AMM, a Declaração de

Helsinque passou por 7 revisões (1975, 1983, 1989, 1996, 2000, 2008 e 2013) além

de duas notas de esclarecimentos (2002 e 2004). A última versão da Declaração é

fruto da 64ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, realizada no Brasil,

na cidade de Fortaleza, em outubro de 2013.

A Declaração de Helsinque é considerada referência ética mundial para a

condução de pesquisas com seres humanos. O texto original consolidou os

preceitos trazidos pelo Código de Nuremberg, consagrando cinco princípios para a

condução de pesquisas clínicas.

• A pesquisa clínica deve se adaptar aos princípios morais e

científicos que justificam a pesquisa médica e ser baseada em

experiências de laboratório e com animais ou em outros fatos

cientificamente determinados

• A pesquisa clínica deve ser conduzida somente por pessoas

cientificamente qualificadas e sob a supervisão de alguém

medicamente qualificado

• A pesquisa não pode ser legitimamente desenvolvida a menos que a

importância do objetivo seja proporcional ao risco inerente à pessoa

exposta

• Todo projeto de pesquisa clínica deve ser precedido de cuidadosa

avaliação dos riscos inerentes em comparação aos benefícios

previsíveis para a pessoa exposta ou para outros

• Precaução especial deve ser tomada pelo médico ao realizar a

pesquisa clínica na qual a personalidade da pessoa exposta é

passível de ser alterada pelas drogas ou pelo procedimento

experimental.84

A essencialidade do consentimento livre e esclarecido dos participantes

permaneceu como base de todo e qualquer estudo clínico, além da responsabilidade

do médico na preservação da vida e da integridade física dos participantes das

pesquisas. 84 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque I. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

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Conforme já mencionado, diversas revisões foram realizadas ao longo

dos anos, com a finalidade de adequar os parâmetros éticos à realidade vivenciada

no campo científico. Na revisão de 1975 85, entre outras alterações, foi contemplada

a ampliação da segurança dos participantes, determinando que os estudos a serem

realizados, além de previamente testados em animais, deveriam ter o amparo da

literatura científica, devendo toda a responsabilidade dos estudos recair sob o

médico investigador.

O conceito de participantes passou a considerar, além das pessoas

enfermas, os voluntários sadios. Ficou estabelecida a submissão prévia de um

protocolo de pesquisa, com a descrição do projeto de estudo, às comissões de

éticas independentes. Para fins de publicação, ficou consagrada a responsabilidade

do investigador pela exatidão dos dados, sendo vedada a publicação de estudos

realizados fora dos parâmetros éticos. Foi determinada, ainda, a superioridade dos

interesses dos participantes aos interesses da ciência e da sociedade, sendo dever

dos pesquisadores a garantia da privacidade, da saúde e da integridade física e

psíquica dos participantes. E, por fim, acrescentou- se a preocupação com o com o

meio ambiente e com o bem-estar dos animais utilizados nas pesquisas pré-clínicas.

Na Declaração de Helsinque III de 1983, foi acrescentada a necessidade

de concessão de consentimento por parte das crianças “sempre que a criança for de

fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele

fornecido pelo seu guardião legal”86. Na revisão de 1989 (Declaração de Helsinque

IV), tendo em vista a preocupação crescente com o poder econômico e político das

indústrias farmacêuticas – principais patrocinadoras de pesquisa clínica –,

acrescentou-se a necessidade de submissão prévia dos projetos aos comitês de

ética87 em pesquisas independentes, enfatizando-se, porém, que essa

independência se daria tanto em relação ao pesquisador quanto ao patrocinador.

85 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque II. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin2.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016. 86 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque III. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin3.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016. 87 Os primeiros Comitês de Ética em Pesquisa brasileiros foram criados pelo Conselho Nacional de Saúde somente em 1996. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/docs/doc_ref_eticapesq/cadernos%20conep%207.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2016.

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Mesmo diante das diretrizes éticas estabelecidas pela Declaração de

Helsinque, muitos estudos continuavam a ser realizados em condições

preocupantes do ponto vista ético. Essa preocupação recaiu, principalmente, em

relação às populações economicamente vulneráveis, ou seja, sobre os indivíduos

dos países em desenvolvimento.

Para elucidar melhor a pertinência da preocupação da comunidade

bioética, vale destacar que, ao final do século XX, foi realizado um estudo clínico

com a droga AZT88 em mulheres africanas grávidas e portadoras do vírus HIV. A

população teste chegou ao total de 17 mil participantes. O estudo visava analisar se

um tratamento de curta duração (mais barato que o existente até então) já seria

efetivo para inviabilizar a transmissão do vírus ao bebê.

Apesar de no país patrocinador da pesquisa já existir um tratamento

eficiente em reduzir a transmissão em cerca de 75% dos casos, os ensaios

conduzidos na África, na Ásia e mesmo na América Latina (República Dominicana)

utilizaram grupos-controle tratados com placebo89, 90..A população foi dividida em

dois grupos. Um grupo observacional com a administração do tratamento teste; o

segundo grupo que, em tese, deveria receber o tratamento de longa duração para

fins de comparação (grupo controle).

Entretanto, por avaliação de custos, em vez do grupo controle receber o

tratamento de longa duração, foi administrado placebo, ou seja, substância isenta de

efeitos terapêuticos. Dessa forma, a maioria dos bebês que nasceu do grupo

controle, sem administração de substância ativa, era portadora do vírus HIV.

Obteve-se como resultado que o tratamento curto era 50% menos eficaz que o

tratamento longo, porém, 50% mais eficaz que a isenção de tratamento. 91

88 Princípio ativo do AZT, a zidovudina, é atualmente o agente inicial de escolha para o tratamento da infecção por HIV em pacientes com contagem de CD4 inferiores a 500/mm3. Informações retiradas da bula no medicamento. 89 Placebo é a formulação sem efeito farmacológico, administrada ao participante do ensaio clínico com a finalidade de mascaramento ou de ser comparador (Definição RDC 9/2015 Anvisa). 90 GARRAFA, Volnei; LORENZO, Claudio. Helsinque 2008: redução da proteção e maximização de interesses privados. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 55, n. 5, p. 514, set/out.2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ramb/v55n5/10.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2016. 91 CAPONI, Sandra. A biopolítica da população e a experimentação com seres humanos. Revista Ciência & Saúde Coletiva, n. 9, v. 2, abril-jun., 2004, p. 451.

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A não observância da Declaração de Helsinque demonstrou o surgimento

de um relativismo ético em relação às populações de países pobres e

negligenciados92. Nas palavras de Márcia Angell, “os pesquisadores violaram os

princípios de Helsinque e demonstraram possuir um desprezo desumano pelo bem

dos pacientes”93. O uso desregrado do placebo ocasionou mortes desnecessárias e

injustificáveis, evidenciando a permanência do desprezo pelo ser humano em prol

dos interesses científicos e econômicos das indústrias do ramo.

Nessa época, em conjunto com o advento de um relativismo ético, surgiu

o chamado double standard de pesquisa. Considerar a existência de um double

standard de pesquisa significa afirmar que em países ricos, onde exista legislação

rígida sobre pesquisa clínica, a Declaração de Helsinque e os padrões éticos devem

ser rigorosamente respeitados. Enquanto, por outro lado, em países pobres, em

desenvolvimento, com população vulnerável sem acesso aos medicamentos, as

pesquisas podem ser realizadas mediante infração ética, a qual jamais ocorreria no

país desenvolvido.94

A expressão ‘double standard’ referida às pesquisas clínicas surgiu no contexto científico internacional a partir de dois estudos patrocinados pelo National Institute of Health (NIH) dos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e publicadas no final dos anos 1990, gerando acalorados debates por todo mundo.95

92 Para complementar, Garrafa e Lorenzo (2004) afirmam: “Menos de um ano depois deste episódio, outra pesquisa sobre HIV/AIDS desenvolvida em países pobres voltou a gerar fortes polêmicas. O projeto foi desenvolvido com o objetivo de delinear os fatores de risco associados à transmissão heterossexual do HIV-Tipo 1, buscando determinar se doenças sexualmente transmissíveis aumentavam o risco de infecção pelo vírus 17 e a relação entre carga viral e transmissão heterossexual do HIV-1 18. Neste estudo, centenas de pessoas com HIV foram observadas sem tratamento durante até 30 meses, além de que o estudo não proporcionou informações precisas aos participantes. Vale ressaltar que estudos deste tipo são geralmente aprovados por comitês de revisão ética tanto do país onde se realiza a pesquisa como no país que os patrocina”. 93 GARRAFA; LORENZO, Revista da Associação Médica Brasileira, 2004, p. 514. 94 Id. 95 Id.

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A questão passou a ser conhecida como “a questão do duplo standard”96,

contando com diversos argumentos contrários e favoráveis ao possível relativismo

ético. Em defesa do relativismo ético, apresentaram-se argumentos afirmando que

os padrões éticos humanos não são absolutos e devem levar em conta o contexto

social e econômico dos países onde são realizados. Considerando que a pesquisa

clínica a ser realizada em países pobres com população vulnerável tende a ser um

benefício à população sorteada para receber o tratamento, os demais indivíduos –

grupo placebo – permaneceriam no estado a que seu país os relega, ou seja, sem

tratamento.97

Tal posicionamento, além de representar apenas interesses privados e

capitalistas das instituições patrocinadoras de estudos clínicos, configura o

retrocesso de todas as conquistas até então alcançadas pela Declaração de

Helsinque na defesa da universalização dos direitos humanos em pesquisa clínica.

Nas palavras de Marcia Angell: “Os padrões éticos não devem depender de onde a

pesquisa é realizada e os investigadores assumem ampla responsabilidade pelo

bem-estar dos sujeitos inscritos em seus estudos – responsabilidade análoga à dos

estudos clínicos”98.

Diante desse cenário, muito se preocupou com os argumentos

apresentados para flexibilização da Declaração de Helsinque, os quais perderam as

razões técnicas para se respaldarem em questões econômicas apenas99. Na

alteração da Declaração de Helsinque de 1996100, foi regulamentado o uso do

placebo a fim de evitar que pessoas tivessem seus tratamentos negligenciados,

limitando-se, portanto, o uso de placebo apenas para casos em que não existam

métodos diagnósticos ou terapêuticos comprovados.101

96 GARRAFA; LORENZO, Revista da Associação Médica Brasileira, 2004, p. 514. 97 GARRAFA; PRADO. Revista Bioética, 2007, p. 11-25. 98 ANGELL, Marcia apud GARRAFA; PRADO. Revista Bioética, 2007, p. 16. 99 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Código Civil brasileiro na pesquisa com seres humanos. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 116-146, jul./out., 2015. 100 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque V. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/helsin5.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016. 101 Em qualquer estudo médico deve ser garantido o melhor método corrente de diagnóstico e terapia para cada paciente - incluindo os do grupo-controle, se houver esse grupo no estudo. Isto não exclui o uso de placebos inertes em estudos onde não existam métodos diagnósticos ou terapêuticos comprovados (Declaração de Helsinque V)

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A Declaração de Helsinque, novamente revisada em 2000, deu origem a

sua quinta versão. Mesmo diante da permanência das pressões relacionadas ao uso

do placebo, visando permiti-lo nos países onde não existiam métodos diagnósticos

ou terapêuticos comprovados, bem como as tentativas camufladas das indústrias

farmacêuticas americanas na flexibilização dos standards éticos102, a nova versão

manteve a mesma diretriz ética anterior em relação ao uso do placebo: manteve a

proibição de seu uso quando existentes métodos diagnósticos ou terapêuticos

comprovados em qualquer país.

Em 2004, na 55ª Assembleia Médica Mundial realizada em Tóquio, a

pressão contra as diretrizes éticas da Declaração de Helsinque aumentou e foram

reiterados argumentos já suscitados nas reuniões anteriores desde 2000. Os

argumentos recaiam, principalmente, contra os seguintes pontos da Declaração:

Recordando: o ponto 19, refere que a pesquisa só se justifica se houver expectativa de que a população envolvida seja beneficiada pelos resultados; o 29 define que a utilização do placebo em grupos-controle somente se justifica quando não houver tratamento eficaz conhecido para o problema em estudo; e o 30 diz respeito ao compromisso de que ao final do estudo todos os participantes devem ter assegurado o acesso aos melhores métodos comprovados profiláticos, diagnósticos e terapêuticos identificados na pesquisa.103

Diante da resistência internacional para a flexibilização das diretrizes

éticas descritas, os Estados Unidos da América (EUA) retiraram a sua adesão à

Declaração de Helsinque. As pesquisas norte-americanas passaram a ser guiadas

pelas Guidelines for Good Practice (GCP) e pelas normas internas do país.104 A

agência Food and Drug Administration (FDA) permitiu, portanto, a condução de

ensaios clínicos com o uso do placebo em vez do uso comparativo com o melhor

padrão de cuidado médico existente.105

102 GARRAFA; PRADO. Revista Bioética, 2007, p. 18. 103 Ibid., p. 19. 104 KOTTOW, Miguel. De Helsinque a Fortaleza: una Declaración dessangrada. Revista Bioética. Brasília, v. 22, n. 1, p. 28-33, abril, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422014000100004>. Acesso em: 25 abr. 2016. 105 SOUSA, Maria Sharmila A.; FRANCO, Mirian; MASSUD FILHO, João. A nova declaração de Helsinque e o uso de placebo em estudos clínicos no Brasil: a polêmica continua. Revista de Medicina, São Paulo, 2012, jul.-set., n. 91,v. 3, p. 178-88.

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Em outubro de 2008, finalmente, na 59ª Assembleia Anual da AMM,

realizada em Seul, na Coréia, as mudanças para a flexibilização das diretrizes éticas

foram contempladas. A Declaração de Helsinque de 2008, entre outras

alterações106, flexibilizou o uso do placebo, fato este que gerou grande controvérsia

internacional e trazendo maiores implicações para a proteção e a defesa dos

interesses das populações socialmente vulneráveis.107

A nova redação autorizou nova hipótese para o uso do placebo, que

passou a ser permitido não apenas quando “não existir comprovadamente melhor

intervenção”, mas também quando “houver razões metodológicas convincentes e

cientificamente sólidas para o uso do placebo e sendo que os que receberem o

placebo não estarão sujeitos a nenhum risco de dano sério ou irreversível”.

Subsequentemente, a AMM aprovou a sexta revisão da DoH em Seul (2008), cujas mudanças notadamente importantes quanto ao parágrafo 32, responsável por lidar com o conturbado assunto dos placebo-controles, corroboraram para cristalizar tal polêmica. A resposta da AMM a tais pressões de contextualização de sua norma ética ao padrão atual de desenvolvimento e produção científica industrial farmacêutica foi de que agora a nova intervenção experimental deverá ser testada contra a ‘comprovadamente melhor intervenção existente’, exceto quando não existir esta comprovadamente melhor intervenção, ou quando houver razões metodológicas convincentes e cientificamente sólidas para o uso do placebo e sendo que os que receberem o placebo não estarão sujeitos a nenhum risco de dano sério ou irreversível.108

As novas alterações causaram grande repercussão nos países Latino-

americanos, especialmente no Brasil, que se posicionou contrário às alterações da

6ª versão da Declaração de Helsinque.109 A Rede Latino-americana e do Caribe de

Bioética da Unesco (Redbioética) aprovou a Declaração de Córdoba sobre Ética nas

Pesquisas com Seres Humanos que propôs a países, governos e organismos

dedicados à bioética e aos direitos humanos rechaçar a 6ª versão da Declaração de

106 Além da alteração em relação ao uso do placebo, a Declaração de Helsinque de 2008 reconheceu a vulnerabilidade não só dos indivíduos, mas das populações que participam das pesquisas, determinando a consulta prévia aos líderes dessas comunidades; regulamentou os biobancos e biorrepositórios; determinou a publicação de todos os estudos, inclusive dos inconclusivos, em banco de dados público. 107 GARRAFA; LORENZO. Revista da Associação Médica Brasileira, 2004, p. 517. 108 SOUSA; FRANCO, MASSUD FILHO. Revista de Medicina, 2012, p. 178-88. 109 TOMASEVICIUS FILHO. Revista de Direito Sanitário, 2015, p. 123.

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Helsinque, sugerindo a condução das pesquisas clínicas nos termos da Declaração

Universal sobre Bioética e Direitos Humanos110 da Unesco.111

O Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou contrário às

alterações realizadas na Declaração e, através da Resolução 1.885/2008112, impôs

limitações éticas aos médicos brasileiros quanto ao uso de placebo, proibindo

expressamente a participação do profissional médico nos ensaios clínicos com uso

de placebo quando houver tratamento efetivo para a doença pesquisada.113

Considerando o decidido na Assembleia Geral de 2008 da Associação Médica Mundial, realizada nos dias 15 a 18 de outubro, em Seul – Coreia do Sul, que alterou o artigo 29 da Declaração de Helsinki, permitindo o uso de placebo mesmo havendo tratamento reconhecidamente eficaz, por razões metodológicas; Considerando não haver evidências científicas que justifiquem a complacência ética adotada no uso de placebo pela alteração da atual Declaração de Helsinki; Considerando a não aprovação pela representação médica brasileira das alterações propostas para a nova redação do artigo 29 da Declaração de Helsinki (revisão 2004), renumerado para o artigo 32 na Assembleia de Seul, Coreia do Sul; Considerando o decidido em sessão plenária de 23 de outubro de 2008.

Resolve: Art. 1º É vedado ao médico vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas envolvendo seres humanos, que utilizem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.114

110 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2016. 111 GARRAFA; LORENZO. Revista da Associação Médica Brasileira, 2004, p. 517. 112 Posicionamento reiterado pela Resolução 1.931/2009 (CFM) que aprovou o Código de Ética Médica. 113 SCHLEMPER JUNIOR, Bruno Rodolfo. O placebo e a Declaração de Pachuca: letras mortas? Revista de bioética (Impr.), 2014, n. 22, v. 3, p. 462-70. 114 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.885, de 23 de outubro de 2008. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2008/1885_2008.htm>. Acesso em: 26 abr. 2016.

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Em outubro de 2013, na cidade de Fortaleza, no Ceará, com o advento da

64ª Assembleia Geral da AMM, consagrou-se a sétima e última revisão da

Declaração de Helsinque115. Entre as alterações, foram definidas: (i) encorajamento

dos profissionais de outras áreas à adesão dos princípios dispostos na Declaração;

(ii) apresentação de relatórios finais (ao final dos estudos) aos Comitês de Ética; (iii)

substituição do termo “populações” para “ grupos”; e, por fim, e mais controvérsia (v)

permissão do uso de intervenção menos efetiva que a mais bem comprovada nos

grupos controle, ressalvada a necessidade de cuidados e atenção a possível

exposição a riscos adicionais por não recebimento da intervenção mais adequada.116

A última alteração tornou-se objeto de grande polêmica. Há tempo as

flexibilizações relacionadas ao uso do placebo e das substâncias administradas aos

grupos-controle vinham causando desconforto às comunidades médicas brasileiras.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) apresentou críticas veementes sobre as

alterações realizadas.117

No mesmo ano, em novembro de 2013, a Confederação Médica Latino-

Americana e do Caribe (Confemel) – entidade médica não governamental criada em

1997, sem fins lucrativos, com o objetivo, entre outros, de atuar a favor da saúde das

populações, do ponto de vista humano, científico, tecnológico e político, composta

por Brasil118, México, Argentina, Chile, Colômbia e Peru, através da Assembleia

Geral Ordinária realizada na cidade de Pachuca, no México119 – emitiu a Declaração

de Pachuca sobre a revisão de Helsinque, a qual rechaçou as mudanças efetuadas

na Declaração de Helsinque, recomendando, inclusive, a reprovação de estudos que

violem os preceitos éticos.

115 Declaração de Helsinque. Disponível em: <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVersionRev.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2016. 116 TOMASEVICIUS FILHO. Revista de Direito Sanitário, 2015, p.124. 117 Id. 118 Por parte do Brasil, integram a Confemel os três entes médicos nacionais: Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira e Federação Nacional dos Médicos. 119 SCHLEMPER JUNIOR. Revista de bioética, 2014, p. 462-70.

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a) Pese al trabajo de las Asociaciones miembro de CONFEMEL y FIEM en el grupo de trabajo sobre la revisión de la Declaración de Helsinki y el reconocimiento a algunas modificaciones logradas, se reafirma en todos sus términos la Declaración de Bogotá, adoptada por la XV Asamblea Ordinaria de CONFEMEL donde se “rechaza rotunda y unánimemente cualquier investigación médica en seres humanos que utilice el placebo cuando exista una medicación de eficacia demostrada para la patología en estudio. Las poblaciones pobres y vulnerables, discriminadas por su falta de recursos no pueden ser sometidas a investigaciones biomédicas que cuenten con niveles de seguridad inferiores a los aplicados a las sociedades con mayor desarrollo.

b) En relación al punto 28, vinculados al consentimiento informado, se entiende que se comprometió el principio ético del consentimiento y la realidad legal del mismo, no garantizando el respeto a principios y derechos fundamentales como la dignidad, la libertad e intimidad de los seres humanos c) En lo que refiere al punto 33, la utilización de placebo cuando existen intervenciones probadas y efectivas es contraria a los principios y valores de la profesión y de la ética médica.120

Embora exista controvérsia sobre alguns pontos da Declaração de

Helsinque, especialmente no que tange ao uso do placebo, é inegável a importância

universal dos preceitos éticos construídos ao longo da história para a pesquisa

clínica com seres humanos. A contribuição dos princípios éticos e morais trazidos

pela Declaração de Helsinque é, ainda hoje, a fonte normativa de diversos países,

no que tange às pesquisas médico científicas, para a efetivação da dignidade da

pessoa humana.

O Brasil adota como diretriz ética a resolução do Conselho Nacional de

Saúde (CNS), RDC 466/2012121, a qual aduz expressamente em seu preâmbulo o

atendimento dos preceitos da Declaração de Helsinque, nas versões 1964, 1975,

1983, 1989, 1996 e 2000. Evidencia-se, portanto, a exclusão expressa das duas

últimas versões (2008 e 2013), pelos motivos que foram apresentados.

120 Declaración de Pachuca sobre la Revisión de Helsinki. Disponível em: <http://www.confemel.com/test/wp-content/uploads/2015/07/declaracion_helsinki.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2016. 121 RESOLUÇÃO 466/2012 : “Considerando os documentos internacionais recentes, reflexo das grandes descobertas científicas e tecnológicas dos séculos XX e XXI, em especial a Declaração de Helsinque, adotada em 1964 e suas versões de 1975, 1983, 1989, 1996 e 2000; o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966; a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997; a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003; e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2004”

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CAPÍTULO 3 – DA PESQUISA CLÍNICA NO BRASIL: ASPECTOS GERAIS

Em que pese o longo trajeto histórico da pesquisa com seres humanos, a

pesquisa clínica no Brasil foi regulamentada tão somente em 1996, por meio da

publicação da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) do Conselho Nacional de

Saúde (CNS) 196/1996, posteriormente revogada pela RDC 466/2012, atualmente

vigente. Em vigor, temos a Lei 10.973/2004, que versa de forma geral sobre o

incentivo às pesquisas científicas, sem menção específica às pesquisas clínicas.

No Brasil, ainda não existem leis que versem sobre o tema. Está em

trâmite no legislativo, entretanto, o Projeto de Lei 200/2015 que busca regulamentar

a condição da pesquisa clínica no país. Enquanto o legislativo permanece inerte no

que tange à publicação de lei, a regulamentação fica a encargo das resoluções

administrativas do Ministério da Saúde, especificamente as atuais RDC 466/2012 e

RDC 9/2015.

Embora evidente a lacuna legislativa, o Brasil realiza um número

considerável de estudos clínicos, regidos pelas normas administrativas da Anvisa.

Nos registros disponíveis no banco de dados do Clinical Trials, plataforma

gerenciada pelo Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano (NIH) até outubro de

2015, dos 216.305 estudos registrados no mundo, 4.992 estudos clínicos foram

registrados pelo Brasil122. O Brasil lidera o ranking de estudos clínicos registrados

pela América Latina.

No Brasil, a realização de estudos clínicos é obrigatória para a

concessão, em território nacional, de registro de novo medicamentos e sempre que

houver: nova indicação terapêutica; nova via de administração; nova concentração;

nova forma farmacêutica; ampliação de uso; nova posologia; novas associações e

qualquer alteração pós-registro que requeira dados clínicos, incluindo renovação de

registro.

122 Clinical Trials. Disponível em: <https://clinicaltrials.gov/ct2/search/map/click?map.x=36&map.y=237>. Acesso em: 26 maio 2016.

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Por configurar etapa obrigatória exigida pelos órgãos sanitários para

registro de medicamentos no país, a pesquisa clínica é fiscalizada e autorizada pela

Anvisa, agência reguladora responsável pela concessão de autorização prévia, que

é concedida por meio do chamado comunicado especial (CE). Além da fiscalização

por parte da Anvisa, os estudos clínicos também são submetidos a um processo de

análise ética que se dá pela submissão dos projetos aos Comitês de Ética em

Pesquisa, conhecido como Sistema CEP/Conep – ambos serão analisados mais

adiante.

Os projetos de pesquisa clínica são compilados em um protocolo de

pesquisa, que consiste no conjunto de documentos que descreve a pesquisa e seus

aspectos fundamentais, desde informações relativas aos participantes, aos

patrocinadores e investigadores até as informações pertinentes relacionadas aos

objetivos, desenhos, metodologias, considerações estatísticas e organização dos

estudos que pretendem ser realizados.123

O protocolo de pesquisa deverá contemplar, entre outros aspectos, os

países que participarão do estudo, o número de pacientes que serão incluídos no

estudo; os critérios de inclusão e exclusão para a seleção dos participantes; o

número e a frequência de consultas e exames que serão realizados; a medicação

que será estudada, a dose, forma de administrar; os possíveis efeitos colaterais; a

duração do estudo e os indicativos dos aspectos econômicos e mercadológicos do

medicamento.124

A RDC 466/2012 determina que o protocolo de pesquisa seja submetido à

revisão ética do Sistema CEP/Conep antes de ser submetido à Anvisa. Após o

parecer ético pelo CEP, toda a documentação relacionada ao estudo será submetida

à Anvisa através do Dossiê de Desenvolvimento Clínico do Medicamento (DDCM). A

submissão se dá por intermédio da Plataforma Brasil, atualmente a base nacional e

unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos. Esta plataforma

permite que as pesquisas sejam acompanhadas em seus diferentes estágios.125

123 RDC 466/2012 e RDC 9/2015. 124 Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica. Disponível em: http://www.sbppc.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=18&Itemid=41>. Acesso em: 29 maio 2016. 125 Plataforma Brasil. Disponível em: <http://aplicacao.saude.gov.br/plataformabrasil/login.jsf>. Acesso em: 26 maio 2016.

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Enfim, para adentrarmos no universo da pesquisa clínica, com a

descrição de suas etapas e procedimentos, é necessário abordar, brevemente,

aspectos essenciais sobre o medicamento e seu desenvolvimento, desde o projeto

de inovação até o registro junto aos órgãos sanitários responsáveis.

Ante a grande amplitude que o tema requer, o presente trabalho

restringirá a análise dos medicamentos e, consequentemente, da pesquisa clínica ao

âmbito dos novos medicamentos. Lembrando, todavia, que a pesquisa clínica

também é realizada com medicamentos já disponíveis no mercado, como é o caso

dos genéricos e similares que passam por estudos clínicos de bioequivalência e dos

estudos pós-registros, chamados de Fase IV.

Por tais motivos, a abrangência do estudo terá como ponto focal os

requisitos e os procedimentos relacionados à introdução de novos medicamentos no

país.

3.1 O DESENVOLVIMENTO FARMACÊUTICO DOS MEDICAMENTOS

Quando se fala em saúde, principalmente no que tange a sua

manutenção e garantia à população, os medicamentos ocupam posição fundamental

na consecução dos fins sociais. Trata-se de bem de primeira necessidade,

imprescindível à concretização da saúde pública, individual e coletiva. Como afirma

Campilongo, os medicamentos “constituem elemento importante da política sanitária

do Estado. Produto de primeira necessidade, os fármacos transcendem os direitos

civis para alcançar o patamar de coisa pública”126.

126 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política de Patentes e o Direito de Concorrência. In: PICARELLI, Márcia Flávia Santini (Org). Política de patentes e saúde humana. São Paulo: Atlas, 2001. p. 135-136.

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Com isso, mesmo que ocupem, na atual ordem econômica, a posição de

propriedade privada, podendo ser resguardados pela propriedade industrial através

do instituto da patente127, os medicamentos possuem ao mesmo tempo natureza

social, ante sua função terapêutica e a evidente fundamentalidade para o direito à

saúde. Vislumbra-se, portanto, a existência de natureza híbrida, dotada, de um lado,

das características dos bens de consumo e, de outro, das características de coisa

pública, social e coletiva. Reconhece-se aos medicamentos tanto a importância

econômica quanto a importância social.

É justamente pelo reconhecimento da vertente social dos medicamentos

que o Estado atrai para si a obrigação de controle e fiscalização de todo o processo

produtivo, englobando, inclusive, a seara das pesquisas, do desenvolvimento e da

inovação. O Estado torna-se o responsável não só pelo controle e pela fiscalização

da segurança e da qualidade dos medicamentos comercializados no país, como

também pela autorização de registro dos novos medicamentos.

A natureza de coisa pública traz ao Estado a obrigação de conceder à

população acesso aos medicamentos essenciais para a manutenção do direito à

saúde, garantindo primordialmente a qualidade e a segurança. Nas palavras de

Campilongo: “Há, portanto, necessidade de maior controle, zelo, atenção, por parte

do Estado, nas políticas de preço, distribuição e fiscalização, entre outros fatores

que interfiram ou passam interferir no acesso aos medicamentos.”128

Por outro lado, o reconhecimento do viés econômico dos medicamentos,

coloca as indústrias farmacêuticas como protagonistas da inovação no setor,

responsáveis, inclusive, pela circulação de vultosos recursos financeiros e

intelectuais ao redor do mundo. Esse protagonismo privatista no desenvolvimento de

novos fármacos decorre dos elevados custos para a promoção das pesquisas de

inovação nessa área.

127 A Lei 9.279/96 introduziu ao ordenamento jurídico brasileiro a proteção das invenções de medicamentos. 128 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política de Patentes e o Direito de Concorrência. In: PICARELLI, Márcia Flávia Santini (Org). Política de patentes e saúde humana. São Paulo: Atlas, 2001. p. 135-136.

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Estima-se, segundo o Tufts Center for Study os Drugs Development

(Boston), que o processo de desenvolvimento de um novo medicamento pode

alcançar investimentos de até U$ 802 milhões.129 Isso sem considerar o decurso

temporal que pode ultrapassar 15 anos de pesquisa e desenvolvimento até a

aprovação e o registro pelos órgãos estatais. Todo esse investimento se dá em um

cenário de total insegurança técnica, haja vista que não existem certezas científicas

nesse setor.

Não existem garantias de que uma nova substância e/ou molécula possa

se tornar um fármaco inovador viável, seguro e eficaz no organismo humano. São

muitas as possibilidades de insucessos, considerando as mais diversas

inviabilidades técnicas. Segundo Nelson Vieira, “estima-se que para cada 10 mil

novas moléculas, somente uma chegará ao mercado como medicamento”130. Tal

situação faz com que todo investimento seja considerado de alto risco, dificilmente

passível de aporte público.

Cabe ao Estado, portanto, o cumprimento de seus deveres constitucionais

de incentivo às pesquisas e ao desenvolvimento farmacêutico através de políticas

públicas. Concerne ao poder estatal, também, o dever de regulamentar o setor bem

como de exigir diversos testes e procedimentos para que um medicamento seja

viável e seguro para comercialização no território nacional. A competência para

registro de medicamentos é do Ministério da Saúde, e ocorre por intermédio da

Anvisa, responsável pela concessão e pela fiscalização dos registros de

medicamentos131 no país.

129 Tufts Center for Study os Drugs Development. Disponível em: <http://csdd.tufts.edu/research/research_milestones>. Acesso em: 26 maio 2016. 130 VIEIRA; CAMPOS. Manual de Bioequivalência, 2011. 131 Lei 6.360/1976: “Art. 12. Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”.

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A Anvisa ocupa papel fundamental na emissão de resoluções diretivas

que norteiam as condições e os requisitos que os laboratórios – públicos e privados

– devem seguir na hipótese de requerimento de registro de um novo medicamento

no Brasil. É nesse cenário que a pesquisa clínica de medicamentos está inserida,

constituindo uma das etapas fundamentais, exigidas pelos órgãos sanitários, para o

desenvolvimento e a comercialização de fármacos, cuja função basilar reside na

comprovação da eficácia e da segurança dos medicamentos que serão distribuídos

para a população.

A Lei 6.360/1976, que dispõe sobre as condições de vigilância sanitária a

que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e

correlatos, determina, em seu art. 16, que o registro dessas substâncias no território

nacional, dadas as suas características sanitárias, medicamentosas ou profiláticas,

curativas, paliativas, ou mesmo para fins de diagnóstico, fica sujeito, além do

atendimento das exigências próprias – no caso, as resoluções administrativas, ao

cumprimento dos seguintes requisitos:

(i) comprovação científica e de análise, para reconhecimento da

segurança, eficácia com a identidade, atividade, qualidade, pureza e

inocuidade necessárias;

(ii) para medicamentos novos, informações e comprovações sobre sua

composição e seu uso, para avaliação de sua natureza e

determinação do grau de segurança e eficácia necessários;

(iii) apresentação, quando solicitada, de amostras para análises e

experiências que sejam julgadas necessárias pelos órgãos

competentes do Ministério da Saúde.132

132 “Art. 16. O registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dadas as suas características sanitárias, medicamentosas ou profiláticas, curativas, paliativas, ou mesmo para fins de diagnóstico, fica sujeito, além do atendimento das exigências próprias, aos seguintes requisitos específicos: I - que o produto obedeça ao disposto no artigo 5º, e seus parágrafos. II - que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias; III - tratando-se de produto novo, que sejam oferecidas amplas informações sobre a sua composição e o seu uso, para avaliação de sua natureza e determinação do grau de segurança e eficácia necessários; IV - apresentação, quando solicitada, de amostra para análises e experiências que sejam julgadas necessárias pelos órgãos competentes do Ministério da Saúde; V - quando houver substância nova na composição do medicamento, entrega de amostra acompanhada dos dados químicos e físico-químicos que a identifiquem; VI - quando se trate de droga ou medicamento cuja elaboração necessite de aparelhagem técnica e específica, prova de que o estabelecimento se acha devidamente equipado e mantém pessoal habilitado ao seu manuseio ou contrato com terceiros para

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Atualmente, o registro de novos medicamentos é regulamentado pela

Resolução de Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC) 136/2003, que exige, além de

outros requisitos, a satisfação de quatro etapas fundamentais:

(i) etapa formal: consiste na apresentação de documentos, como bula,

proposta de embalagem, estimativa de preços, documentos da

empresa e outros;

(ii) etapa técnica: consiste na apresentação de todos os estudos físicos e

químicos pertinentes, como estudos de estabilidade, controle de

qualidade, teste de impurezas e outros;

(iii) etapa pré-clínica: consiste em comprovação e satisfação de estudos

pré-clínicos, geralmente realizados com animais, para a averiguação

da toxicidade aguda, subaguda e crônica, toxicidade reprodutiva,

atividade mutagênica e potencial oncogênico;

(iv) etapa clínica: consiste na realização dos estudos clínicos de fases I, II

e III.133

No que tange à cronologia técnica e operacional os estudos pré-clínicos

serão realizados antes dos testes com seres humanos. Os estudos pré-clínicos

serão realizados com animais, após os testes in vitro, para a verificação da

toxicidade da substância com potencial terapêutico, objeto de pesquisa. O objetivo

principal desta etapa reside na obtenção das informações preliminares sobre a

atividade farmacológica em organismos vivos, na determinação do grau de

segurança e, ainda, na classificação dos primeiros efeitos adversos, com a fixação

das doses adequadas para a administração em seres humanos.

essa finalidade; VII - a apresentação das seguintes informações econômicas: a) o preço do produto praticado pela empresa em outros países; b) o valor de aquisição da substância ativa do produto; c) o custo do tratamento por paciente com o uso do produto; d) o número potencial de pacientes a ser tratado; e) a lista de preço que pretende praticar no mercado interno, com a discriminação de sua carga tributária; f) a discriminação da proposta de comercialização do produto, incluindo os gastos previstos com o esforço de venda e com publicidade e propaganda; g) o preço do produto que sofreu modificação, quando se tratar de mudança de fórmula ou de forma; e h) a relação de todos os produtos substitutos existentes no mercado, acompanhada de seus respectivos preços”. 133 Anvisa. RDC 136/2003,

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Segundo dados da Anvisa, mais de 90% das substâncias estudadas

nesta fase são eliminadas por não alcançarem uma atividade farmacológico-

terapêutica ideal ou por apresentar condições que serão, eventualmente,

demasiadamente tóxicas aos seres humanos134. Superados os testes pré-clínicos,

após apurado o grau de toxicidade da substância com potencial terapêutico, inicia-se

a fase clínica para estudo com seres humanos.

3.1.1 A fase clínica: A experimentação em seres humanos e os direitos dos

participantes

A etapa clínica do desenvolvimento dos medicamentos diz respeito

propriamente ao tema central do presente trabalho: a pesquisa clínica. É nessa fase

que a substância com potencial terapêutico passará a ser testada em seres

humanos, podendo ser, a depender da fase da pesquisa, em indivíduos saudáveis

ou em indivíduos acometidos por determinada patologia. Busca-se, primordialmente,

analisar qualidade, segurança e eficácia de determinada substância no organismo

humano, após superados os critérios de toxicidade delimitados na fase pré-clínica.

Os estudos clínicos de medicamentos podem ser desenvolvidos em

quatro fases diferentes135, que variam de acordo com o objetivo da pesquisa e com a

população participante. No estudo de Fase I, um medicamento será testado pela

primeira vez em um ser humano, geralmente saudável, objetivando avaliar as vias

de administração, as doses, a segurança e a interação com outras drogas. Trata-se

do primeiro estudo em seres humanos com um novo princípio ativo ou uma nova

formulação: “Estas pesquisas se propõem estabelecer uma evolução preliminar da

segurança e do perfil farmacocinético e quando possível, um perfil

farmacodinâmico”136.

134 Anvisa. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/def.htm>. Acesso em: 20 maio 2016. 135 Anvisa. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/def.htm>. Acesso em: 07 mar. 2016. 136 Id.

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Na Fase II, também chamada de Estudo Terapêutico Piloto, há a

participação de 100 a 200 indivíduos portadores da doença estudada, ou seja,

pacientes. O objetivo, além de ampliar dados sobre a segurança, consiste em

demonstrar o potencial terapêutico da medicação: a sua eficácia para a cura de

determinada doença. Segundo a Anvisa, são objetivos do estudo Fase II:

Os objetivos do Estudo Terapêutico Piloto visam demonstrar a atividade e estabelecer a segurança a curto prazo do princípio ativo, em pacientes afetados por uma determinada enfermidade ou condição patológica. As pesquisas realizam-se em um número limitado (pequeno) de pessoas e frequentemente são seguidas de um estudo de administração. Deve ser possível, também, estabelecer-se as relações dose-resposta, com o objetivo de obter sólidos antecedentes para a descrição de estudos terapêuticos ampliados.137

O Estudo Fase III constitui uma análise de larga escala, em múltiplos

centros, com diferentes populações de pacientes para demonstrar eficácia e

segurança, com número mínimo de 800 pacientes acometidos por determinada

doença. São estudos realizados em grandes e variados grupos de pacientes visando

determinar o resultado do risco/benefício do uso, a curto e longo prazo, das

formulações do princípio ativo testado.

Exploram-se nesta fase o tipo e perfil das reações adversas mais frequentes, assim como características especiais do medicamento e/ou especialidade medicinal, por exemplo: interações clinicamente relevantes, principais fatores modificatórios do efeito tais como idade etc.138

Por fim, a Fase IV ocorre após o registro do medicamento junto aos

órgãos sanitários. Dessa forma, a Fase IV não constitui requisito para registro de

medicamentos no país. Trata-se de estudo para acompanhamento do uso de

determinado medicamento, proporcionando o alcance de dados adicionais sobre

segurança, eficácia do produto e eventos adversos.

137 Anvisa. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/def.htm>. Acesso em: 30 maio 2016. 138 Id.

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Estas pesquisas são executadas com base nas características com que foi autorizado o medicamento e/ou especialidade medicinal. Geralmente são estudos de vigilância pós-comercialização, para estabelecer o valor terapêutico, o surgimento de novas reações adversas e/ou confirmação da frequência de surgimento das já conhecidas, e as estratégias de tratamento.139

Ao adentrarmos na fase clínica, além dos órgãos regulatórios envolvidos,

no caso a Anvisa e o Sistema CEP/Conep (mais adiante abordados em suas

peculiaridades), existe o envolvimento das indústrias farmacêuticas que, geralmente,

ocupam o papel de patrocinadores dos estudos clínicos, por serem, na maioria dos

casos, aos interessados no registro de medicamentos. Os patrocinadores possuem

seus deveres e suas responsabilidades delimitados na RDC 466/2012 e na RDC

9/2015. São responsáveis por todo e qualquer dano sofrido pelos participantes

durante a realização de um estudo clínico, devendo arcar, inclusive, com todas as

despesas despendidas pelos participantes a título de trajeto, alimentação, estadia

etc.

Os investigadores, geralmente profissionais médicos ou da saúde, são os

responsáveis pelo desenvolvimento do estudo nos aspectos técnicos e éticos,

devendo supervisionar toda a equipe e objetivando zelar pelo cumprimento de todos

os preceitos regulatórios e das diretrizes do protocolo. Os participantes, sujeitos

passivos da pesquisa clínica, são escolhidos através de critérios de inclusão e

exclusão previamente delimitados no protocolo de pesquisa. Esta seleção se baseia

em características específicas da droga, do estudo, da doença alvo, ou ainda do

grupo etário pretendido.

Os participantes estão resguardados pelo princípio da dignidade humana

e pelos direitos constitucionais fundamentais – liberdade, autonomia, saúde,

integridade física. Sendo-lhes assegurados, ainda direito a: privacidade e anonimato;

informação e esclarecimentos; autonomia; recusa inócua; desistência; indenização e

ressarcimentos; acesso ao investigador e aos comitês de ética em pesquisa, e

principalmente direito de salvaguarda da integridade física.140

139 Anvisa. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/def.htm>. Acesso em: 30 maio 2016. 140 Sociedade Brasileira dos Profissionais de Pesquisa. Disponível em: <http://www.sbppc.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=17&Itemid=40>. Acesso em: 30 maio 2016.

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58

No que diz respeito a privacidade e anonimato, terá o participante a

garantia de que todas as informações pessoais não serão divulgadas sem

autorização. Durante todo o estudo sua identidade se dará por inicias, data de

nascimento ou qualquer outro código específico. No que concerne a esclarecimento

e informações é assegurado ao participante o acesso às informações dos

procedimentos que serão realizados e do andamento bem como o esclarecimento

de toda e qualquer dúvida a respeito da condução do estudo clínico. O participante

deverá, inclusive, ter acesso irrestrito ao pesquisador responsável, sendo-lhe

assegurado fácil acesso aos comitês de ética em pesquisa.

O direito à autonomia se refere à ampla liberdade de tomar decisões

diretamente relacionadas a sua participação no estudo, assegurando-se o respeito

irrestrito a suas crenças, opiniões e costumes. Além disso, o participante possui o

direito de recusar qualquer procedimento ou ainda desistir do estudo clínico e

interromper sua participação a qualquer momento, sem estar sujeito a prejuízos. O

participante deverá ser indenizado por todo e qualquer dano que venha a sofrer

durante o estudo, sendo assegurado, ainda, o ressarcimento de despesas pessoais

oriundas de sua participação.

Por fim, a salvaguarda de sua integridade é o direito de maior importância

na condução de uma pesquisa clínica. O interesse da ciência não poderá, em

hipótese alguma, ser superior a integridade física, saúde e vida do participante. Na

remota hipótese de danos que possam interferir na vida, na saúde ou na integridade

física do participante, o estudo deverá ser imediatamente interrompido.

É importante considerar, ainda, a função social e humanitária das

pesquisas clínicas, pois estão diretamente relacionadas com a vida e a saúde de

seus participantes e da sociedade à qual se aplica. Por esse motivo, os órgãos

regulatórios responsáveis abrigaram em algumas de suas normativas o dever de

atenção aos casos de saúde excepcionais, como no caso da responsabilidade pós-

estudo, e dos programas de acesso expandido e uso compassivo, regulamentados

pela RDC 38/2013, que os define e os diferenciam da seguinte forma:

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VIII - programa de acesso expandido: programa de disponibilização de medicamento novo, promissor, ainda sem registro na Anvisa ou não disponível comercialmente no país, que esteja em estudo de fase III em desenvolvimento ou concluído, destinado a um grupo de pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que ameacem a vida e sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados;

IX - programa de fornecimento de medicamento pós-estudo: disponibilização gratuita de medicamento aos sujeitos de pesquisa, aplicável nos casos de encerramento do estudo ou quando finalizada sua participação;

X - programa de uso compassivo: disponibilização de medicamento novo promissor, para uso pessoal de pacientes e não participantes de programa de acesso expandido ou de pesquisa clínica, ainda sem registro na Anvisa, que esteja em processo de desenvolvimento clínico, destinado a pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que ameacem a vida e sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país.

A função social e humanitária da pesquisa clínica justifica-se por seu

papel fundamental de disponibilizar à população avanços científicos capazes de

proporcionar a melhoria na saúde e na qualidade de vida dos cidadãos e, por esse

motivo, em casos excepcionais, como os acima descritos, há a obrigação de

atenção e atendimento para com a saúde individual.

O universo da pesquisa clínica é dotado de diversas peculiaridades

diretamente relacionadas aos direitos individuais e sociais constitucionalmente

consagrados. Embora a importância do assunto seja evidente, a inércia legislativa

permanece latente em pleno século XXI. As normas administrativas, mesmo que

desprovidas de força legislativa, regulamentam os aspectos essenciais de forma

razoável. Fato que configura um ponto de atenção aos estudiosos do direito e

consolidam, ainda mais, a importância de fiscalização e atuação da Anvisa e do

Sistema CEP/Conep.

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3.2 A AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA

O direito à saúde, consagrado na Seção II do Título: Da ordem social,

especificamente, nos arts. 196 a 200 da Constituição Federal (CF) de 1988, tem

como escopo incumbir o Estado da obrigação de promoção da saúde em sentido

amplo a toda a população, de forma universal e integral. Para tanto o constituinte

determinou que o direito à saúde deve ser promovido pelo Estado por meio da

integração de uma série de ações e de serviços públicos que se efetivam por uma

rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, basilado em três

diretrizes fundamentais: (i) descentralização, com direção única em cada esfera de

governo; (ii) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas,

sem prejuízo dos serviços assistenciais; (iii) participação da comunidade.

O direito à saúde foi consagrado por norma programática e com isso

depende de diversos instrumentos para sua efetivação. Entre as competências

constitucionais do sistema único de saúde encontra-se a de “executar as ações de

vigilância sanitária e epidemiológica bem como as de saúde do trabalhador”.141

Dessa forma, a vigilância sanitária constitui obrigação constitucional imposta ao

Estado e diretamente relacionada ao direito à saúde.

A fim de atender e regulamentar o preceito constitucional, a Lei

8.080/1999 – Lei Orgânica da Saúde - criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e

dispôs “sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a

organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras

providências”. A norma previu diversas ações para promoção da saúde, entre elas, a

vigilância sanitária, que integrou o campo de atuação do SUS.142

141 Art. 200, II, CF/88 142 “Art. 6º. Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I - a execução de ações: a) de vigilância sanitária”.

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Conceitua-se vigilância sanitária, nos termos da Lei 8080, como:

[...] um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.143

É nesse contexto que a Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999, em seu art.

1º, instituiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), criado para atender

aos fins dispostos na Lei 8.080/1990. Para a coordenação do SNVS a Lei criou,

também, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Com isso, o SNVS e a

Anvisa são integrados, para todos os fins, ao SUS.

A Anvisa (criada pela Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999 e

posteriormente regulamentada pelo Decreto 3.029, de 16 de abril de 1999) trata-se

de autarquia sob regime especial integrante da administração indireta, criada pelo

art. 3º144 da referida Lei, com personalidade jurídica de direito público e vinculada ao

Ministério da Saúde (MS). É considerada uma agência reguladora, pois exerce, por

intermédio de sua autonomia e de seu poder de polícia, o poder de intervenção no

domínio econômico, podendo regular e fiscalizar as atividades econômicas

particulares.

É dotada de independência administrativa, de estabilidade de seus

dirigentes e de autonomia financeira. A Anvisa tem por finalidade institucional

promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da

produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância

sanitária e também dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a

eles relacionados bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.145

143 Art. 6º, § 1º, da Lei 8080/1999. 144 “Art. 3º. Fica criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro no Distrito Federal, prazo de duração indeterminado e atuação em todo território nacional”. 145 Art. 6º da Lei 9.782/1999.

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É detentora do chamado poder de polícia, que consiste na atividade da

administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade,

regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público

concernente a: segurança, higiene, ordem, costumes; disciplina da produção e do

mercado; exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou

autorização do Poder Público; tranquilidade pública ou respeito à propriedade e aos

direitos individuais ou coletivos.146

Dessa forma, através de medidas de controle a Anvisa tem o poder de

fiscalização – normatização e regulação – dos abusos dos direitos individuais

privados e públicos, sempre que nocivos ou contrários ao bem-estar social, à saúde

pública, ao desenvolvimento e à segurança nacional147. Diversas são as

competências da Anvisa disciplinadas na Lei 9.782/99 e no Decreto 3.029/99,

entretanto para o presente trabalho nos importa atentar ao que diz respeito a

pesquisas cientificas, competência regulatória e fiscalização e concessão de registro

dos medicamentos.

Nesse sentido, compete à ANVISA: fomentar e realizar estudos e

pesquisas no âmbito de suas atribuições; estabelecer normas, propor, acompanhar

e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária; estabelecer

normas e padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes,

metais pesados e outros que envolvam risco à saúde; conceder registros de

produtos, segundo as normas de sua área de atuação; proibir a fabricação, a

importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e

insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à

saúde; fomentar o desenvolvimento de recursos humanos para o sistema e a

cooperação técnico-científica nacional e internacional; monitorar a evolução dos

preços de medicamentos, equipamentos, componentes, insumos e serviços de

saúde.

146 Poder de Polícia segundo o Código Tributário Nacional. Art. 78: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. 147 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 134.

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O exercício de suas funções compreende os bens e os produtos

submetidos à fiscalização sanitária, quais sejam: medicamentos de uso humano,

suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias; alimentos,

inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos

alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de

medicamentos veterinários; cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes;

saneantes destinados à higienização, desinfecção ou desinfestação em ambientes

domiciliares, hospitalares e coletivos; conjuntos, reagentes e insumos destinados a

diagnóstico; equipamentos e materiais médico-hospitalares, odontológicos e

hemoterápicos e de diagnóstico laboratorial e por imagem; imunobiológicos e suas

substâncias ativas, sangue e hemoderivados; órgãos, tecidos humanos e

veterinários para uso em transplantes ou reconstituições; radioisótopos para uso

diagnóstico in vivo e radiofármacos e produtos radioativos utilizados em diagnóstico

e terapia; cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produto fumígero, derivado

ou não do tabaco; quaisquer produtos que envolvam a possibilidade de risco à

saúde, obtidos por engenharia genética, por outro procedimento, ou ainda

submetidos a fontes de radiação.

Nota-se, portanto, que o fomento e a realização de pesquisas científicas

relacionadas à saúde pública bem como a análise de todo o processo de registro de

um novo medicamento, desde os relatórios dos estudos pré-clínicos até a

autorização e a fiscalização dos estudos clínicos, por serem diretamente

relacionados às substancias com alto potencial ofensivo à saúde pública nacional,

estão sob a égide da Anvisa.

No que tange à pesquisa clínica de medicamentos a Anvisa ocupa papel

primordial tanto na concessão de autorização prévia para a realização dos estudos

com seres humanos como na regulamentação do setor, que, na atualidade, é regida

apenas por resoluções administrativas. Essa autorização prévia se dá mediante a

emissão de um comunicado especial que autoriza o início dos estudos, após a

análise de todo o dossiê, com a documentação exigida nas normas administrativas,

incluindo o parecer de aprovação dos aspectos éticos pelo Comitê de Ética em

Pesquisa responsável (CEP).

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Essa análise prévia vai ao encontro das funções e diretrizes que

fundamentam a Anvisa, haja vista ser tema delicado, que, repita-se, possui alto

potencial ofensivo à saúde da população. A garantia da qualidade e da segurança

dos medicamentos é função inerente à Anvisa. A lei instituidora da Anvisa (Lei

9.782/99) e, consequentemente, da Lei Orgânica da Saúde (LOS – Lei 8080/99),

visam garantir e fiscalizar todo e qualquer procedimento relacionado à saúde

pública, com finalidade primordial de buscar a segurança e a qualidade dos

medicamentos, visando fomentar e concretizar os direitos à saúde em sentido

amplo.

A pesquisa clínica, como já mencionado anteriormente, tem como base

reguladora as RDC’s 466/2012 e 9/2015. Estas normas foram emanadas em

consonância com os incisos III e IV do art. 7º e inciso III do art. 15º da Lei 9.782/99,

que estabelecem a competência normativa da Anvisa para o estabelecimento de

atos normativos, relacionados a sua área de atuação.

Importante observar nesse ponto que o Estado delega às agências

reguladoras o poder normativo para conceituar, delimitar e explicar conceitos

jurídicos indeterminados pela Lei, especialmente sobre critérios de ordem técnica

relacionados aos assuntos de tamanha especificidade. Nas palavras de Murillo

Giordan Santos, esse poder possui tamanha importância, pois:

A lei, muitas vezes, utiliza conceitos jurídicos indeterminados, cujo sentido tem que ser definidos por órgãos técnicos especializados. Por exemplo, a Lei n.º 9.782/99, que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, dá a ela competência para estabelecer normas e padrões sobre ‘limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam risco à saúde’ (art. 7º, IV); a Agência, dentro de seus conhecimentos técnicos, vai poder, licitamente, sem inovar na ordem jurídica, baixar ato normativos definindo ‘contaminantes’, os ‘resíduos tóxicos ’, os ‘desinfetantes’, etc., e estabelecendo os respectivos padrões e limites. Trata-se de conceitos indeterminados que a agência vai tornar determinados. Ele não está inovando na ordem jurídica, mas explicitando o sentido dos vocábulos contidos na lei.148

148 SANTOS, Murilo Giordan. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Comentários à Lei n.º 9.782/99 e ao Decreto n.º 3.029/99. São Paulo: Atlas, 2015. p. 19.

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É certo e inegável que todo o ato, seja fiscalizador, seja normativo,

executado pela Anvisa será regido pelos princípios basilares do direito administrativo

que submetem à Administração Pública, seja ela direta, ou indireta: legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência149. Dessa forma, a Anvisa é o

órgão estatal vinculado ao Ministério da Saúde responsável pela fiscalização, pelo

controle e pela normatização das pesquisas clínicas no Brasil.

Entretanto, por mais que seja, conforme a legislação vigente,

competência da Anvisa a anuência prévia para a realização de estudos com seres

humanos, os aspectos relacionados à ética em pesquisa ficam a cargo do Sistema

CEP/Conep, que auxiliam a Anvisa na análise dos critérios relacionados a ética e

bioética.

3.3 ÉTICA EM PESQUISA: BIOÉTICA E O SISTEMA CEP/CONEP

O universo das pesquisas científicas, levando em consideração todo o

trajeto histórico já abordado, demostrou claramente que a curiosidade dos seres

humanos ultrapassa os próprios fins propostos pelos avanços da ciência – de

melhoria e progresso na saúde e no bem-estar da humanidade. O reflexo perverso

dos campos de concentração, consagrados pelas maiores atrocidades contra a

espécie humana, levou à conscientização mundial, através do Código de Nuremberg

e da Declaração de Helsinque, sobre a necessidade de imposição de princípios

éticos capazes de limitar e nortear todo desenvolvimento da ciência, retirando desta

o totalitarismo150, e devolvendo ao “homem a sua natureza de fim em si mesmo”151.

149 CF/1988: “art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”. 150 Conforme menciona Garcia, “O que denota esse entendimento e mostra-se extremamente importante é o fenômeno totalitário em si – como fenômeno (aquilo que se mostra, revela ou manifesta consciência) – que não ocorre apenas no plano político, podendo surgir, como todas ou algumas das suas características, em qualquer atividade humana que pressuponha a possibilidade de uma imposição total, de conceitos e de valores, independendo de qualquer dependência ou participação da sociedade em que se manifesta” (GARCIA. Limites da ciência, 2004, p. 71).

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Durante um longo período histórico a ciência portou-se como um flagelo

de poder totalitário, capaz de subjugar a natureza humana em nome do progresso,

sob o fundamento da busca insaciável dos avanços do conhecimento. Foi

consagrado o totalitarismo científico152 fundado na máxima de Maquiavel de que os

fins justificam os meios. Tratou-se, portanto, de evidente paradoxo, sob o qual os

fins justificadores sacrificavam a si mesmos para se autoconsagrarem. Em outras

palavras, sacrificou-se o ser humano e sua dignidade, utilizando-o como meio, para

alcançar o fim de progresso e melhoria da vida humana – evidente incoerência.

A retomada do ser humano e de sua dignidade nas máximas de Kant,

considerando a dignidade como premissa basilar, nas vertentes do ser humano

como um fim em si mesmo, é ideal para combater toda e qualquer possibilidade

pretendida pelo biopoder153. Os preceitos éticos e o reconhecimento da dignidade da

pessoa humana como base da construção científica são capazes de retomar a

coerência e o equilíbrio propostos pela busca da ampliação do conhecimento

humano, visando a longevidade e o bem-estar da humanidade.

151 “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio” (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela - Lisboa: Edições 70, 2007. p. 68). 152 Termo utilizado por Garcia para explicitar que “O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI. Assim o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual ‘a ciência (se tornou) um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza” (GARCIA. Limites da ciência, 2004, p. 68). 153 Expressão utilizada por Foucault, segundo aula transcrita no Caderno Mais! da Folha de São Paulo, para se referir aos “fenômenos fundamentais do século 19 foi, é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico” e explicitar que “Que quer dizer, de fato, direito de vida e de morte? Não, é claro, que o soberano pode fazer viver como pode fazer morrer. O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um direito de espada. Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver. O que, é claro, introduz uma dissimetria flagrante. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs27069905.htm>. Acesso em: 28 maio 2015.

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É por esse motivo que os critérios de apuração nacionais e internacionais

relacionados à ética em pesquisa são de suma importância para a validação e a

continuidade da pesquisa clínica, com fim de alcançar o objetivo primordial de

proteção dos participantes, seus interesses fundamentais e, principalmente, sua

dignidade como ser humano.

Sem adentrarmos nas mais diversas discussões filosóficas sobre as

acepções do conceito de ética, temos, nas palavras de Nicola Abbagnano, que:

Ética: em geral, ciência da conduta, existindo duas concepções fundamentais dessa ciência. Primeira, que a considera como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim, quando os meios, da natureza do homem; Segunda, que considera como ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta.154

A ética torna-se, assim, um instrumento direcionador das condutas

humanas na realização de pesquisas científicas a fim de resguardar valores

historicamente conquistados, como o respeito à dignidade da pessoa humana, a

autonomia da vontade, a integridade física dos participantes, a ponderação risco e

benefício, etc.

Dentro da necessidade de compatibilizar a ética e as ciência biológicas,

tendo em vista a especificidade do ramo científico, nasce a bioética, conceituada

pela Encyclopedia of Bioethics como “o estudo sistemático da conduta humana no

âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e princípios

morais”155. Nas palavras de Maria Helena Diniz, configura nova disciplina:

A bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humana, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado desconhecimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e Sonora.156

154 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 442. 155 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Loyola, 1996. p. 43. 156 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n.º 10.406 de 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002.

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Por meio da bioética, quatro princípios éticos foram consagrados para a

consecução de toda e qualquer pesquisa médico-científica: o respeito à autonomia;

a não maleficência; a beneficência e a justiça157, que implica exigência de

tratamento justo, equitativo e apropriado a todos os indivíduos. Consagrados,

inclusive, pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco,

2005.

Os princípios trazidos pela bioética, consagrados nas normas regulatórias

que versam sobre pesquisa clínica de medicamentos, apontam o pilar da condução

ética dos estudos com seres humanos. O princípio da autonomia, por exemplo,

guarda grande relação com o âmago da pesquisa clínica, qual seja, o consentimento

livre e esclarecido. Por meio deste princípio, a decisão individual no que concerne ao

início, interrupção ou término de um estudo, seja ela qual for, deverá ser respeitada.

A autonomia individual consiste na expressão da dignidade humana, por

configurar o respeito do livre desenvolvimento da personalidade baseado na

liberdade individual. O princípio da beneficência retrata a obrigação ética de

maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. Assim como o princípio da não-

maleficência estabelece universalmente o não prejuízo ou riscos ao

paciente/participante, visando reduzir ao máximo ações indesejáveis e riscos

adversos graves. Deriva do juramento hipocrático primum non nocere, que significa:

primeiro não prejudicar158.

Já o princípio da justiça possui relação com a equidade, ou seja, retrata a

imposição ética de tratamento igualitário e de acordo com crenças, moral e

costumes de cada indivíduo; além de trazer a necessidade de utilização equilibrada

de todos os recursos buscando, sempre, maior efetividade para o maior número de

pessoas. Por isso, os princípios da bioética devem ser respeitados em todo e

qualquer estudo clínico, por representarem valores fundamentais de proteção dos

participantes de pesquisa.

157 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Principles of Bioemdical Ethics. 4. ed. New York: Oxford, 1994. p. 100-103. 158 “Usarei meu poder para ajudar os doentes com o melhor de minha habilidade e julgamento; abster-me-ei de causar danos ou de enganar a qualquer homem com ele” (BEAUCHAMP; CHILDRESS. Principles of Biomedical Ethics, 1994, p. 189).

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Além disso, no que se refere aos aspectos éticos, a Declaração de

Helsinque, já abordada anteriormente, consagra a necessidade de revisão ética de

todos os protocolos de pesquisa que envolvam seres humanos para apuração dos

mais diversos aspectos éticos.

O protocolo deve ser submetido para consideração, comentário, recomendação e, quando for apropriado, aprovação de um comitê de revisão ética especialmente instituído para tanto, que deve ser independente em relação ao investigador, patrocinador e qualquer outro tipo de influência indevida.159

Dessa forma, toda pesquisa clínica terá seus aspectos éticos revisados e

amplamente analisados. Necessidade justificada segundo as palavras de Fernando

Lolas:

O principal objetivo da supervisão ética da investigação em sujeitos humanos é evitar a exploração. Isso supõe uma análise de riscos, danos e benefícios (proporcionalidade), um respeito da vontade e autonomia das pessoas e uma consideração dos benefícios sociais da investigação. Uma boa investigação harmoniza o apropriado (segundo o estado de arte), o bom (por fazer bem a quem realiza a atividade e a quem recebe seus efeitos) e o justo (seus benefícios se distribuem equitativamente a toda sociedade).160

O consenso de todo aparato ético resultou, na ordem internacional, na

elaboração da Conferência Internacional da Harmonização do International

Conference on Harmonization of Techincal Requirements for Research of

Phamaceuticals for Human Use (ICH), intitulado Guidelines on Good Clinical Practice

(GCP) de 1996, a fim de harmonizar as normas éticas de pesquisas com seres

humanos.

159 Associação Médica Mundial. Declaração de Helsinque. Disponível em: http://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/declaracao_de_helsinque.pdf .Acesso em 10 de dezembro de 2016. 160 LOLAS. In: NOVAES; LOLAS; SEPÚLVEDA (Orgs). Ética e Farmácia, 2009, p. 251.

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No Brasil, no que tange à observância do quesito ética em pesquisa, foi

criado o Sistema CEP/Conep, pela Resolução 1/1988 do Conselho Nacional de

Saúde (CNS), posteriormente revisado pela Resolução 196/1996, revogada pela

atual Resolução 466/2012.161

Todas as pesquisas com seres humanos deverão observar fundamentos

éticos, tais como: a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e sua

autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de

contribuir e de permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação

expressa, livre e esclarecida; b) ponderação entre riscos e benefícios tanto

conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o

máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos; c) garantia de que danos

previsíveis serão evitados; d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual

consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação

sócio-humanitária.162

Segundo o Guia Operacional para Comitês de Ética da ONU/BIRD/OMS,

é função dos Comitês de Ética em Pesquisa “contribuir para salvaguardar a

dignidade, direitos, segurança e bem-estar dos potenciais ou efetivos participantes

de pesquisas” mediante “independente, competente e ágil revisão da ética dos

estudos propostos”163. A análise minuciosa de todos os critérios elencados no

protocolo, incluindo critérios de inclusão e exclusão de indivíduos, bem como as

condições do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) são realizadas pelo

Comitês de Ética em Pesquisa.

161 Há resoluções complementares que tratam sobre o tema: Resolução n.º 251/97 que normatiza as pesquisas com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos; a Resolução nº 292/99 referente à pesquisa com cooperação estrangeira; para as pesquisas conduzidas na área de reprodução humana tem-se a Resolução n.º 303/00; a Resolução n.º 304/00 refere-se às pesquisas com povos indígenas e a recente Resolução Complementar n.º 340/04 diz respeito à área de genética humana. 162 RDC 466/2012, item III. 163 Operational Guidelines for Ethics Committees That Review Biomedical Research. OMS, Genebra, 2000. Disponível em <http://www.who.int/tdr/publications/publications/pdf/ethics.pdf>. Acesso em: 28 maio 2016.

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Dessa forma, no Brasil, nos termos descritos na RDC 466/2012 o Sistema

CEP/Conep forma um sistema que utiliza mecanismos, ferramentas e instrumentos

próprios de inter-relação, para um trabalho cooperativo que visa, especialmente, à

proteção dos participantes de pesquisa do Brasil, de forma coordenada e

descentralizada, sendo o responsável pela revisão ética de todos os estudos clínicos

realizados no país, mesmo que parcialmente.

Todas as pesquisas envolvendo seres humanos devem ser submetidas à

apreciação do Sistema CEP/Conep, que, após uma revisão ética associada à

análise científica, decidirá pelo prosseguimento ou a adequação dos critérios dos

estudos. Compete aos CEP, nos termos da RDC 466/2012:

[...] avaliar protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, com prioridade nos temas de relevância pública e de interesse estratégico da agenda de prioridades do SUS, com base nos indicadores epidemiológicos, emitindo parecer, devidamente justificado, sempre orientado, dentre outros, pelos princípios da impessoalidade, transparência, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, dentro dos prazos estabelecidos em norma operacional, evitando redundâncias que resultem em morosidade na análise; desempenhar papel consultivo e educativo em questões de ética; e elaborar seu Regimento Interno.

Já ao Conep compete, nos termos da RDC 466/2012:

[...] examinar os aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, como também a adequação e atualização das normas atinentes, podendo, para tanto, consultar a sociedade, sempre que julgar necessário; estimular a participação popular nas iniciativas de Controle Social das Pesquisas com Seres Humanos, além da criação de CEP institucionais e de outras instâncias, sempre que tal criação possa significar o fortalecimento da proteção de participantes de pesquisa no Brasil; registrar e supervisionar o funcionamento e cancelar o registro dos CEP que compõem o Sistema CEP/CONEP; analisar os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, emitindo parecer, devidamente justificado, sempre orientado, dentre outros, pelos princípios da impessoalidade, transparência, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, dentro dos prazos estabelecidos em norma operacional, evitando redundâncias que resultem em morosidade na análise; fortalecer a participação dos CEP por meio de um processo contínuo de capacitação, qualificação e acreditação; coordenar o processo de acreditação dos CEP, credenciando- os de acordo com níveis de competência que lhes possibilitem ser delegadas responsabilidades originárias da CONEP; analisar e monitorar, direta ou indiretamente, no prazo estipulado em normativa, os protocolos de pesquisa que envolvam necessidade de

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maior proteção em relação aos seus participantes, em especial os riscos envolvidos. Deve, nesse escopo, ser considerado sempre em primeiro plano o indivíduo e, de forma associada, os interesses nacionais no desenvolvimento cientifico e tecnológico, como base para determinação da relevância e oportunidade na realização dessas pesquisas; analisar e monitorar, direta ou indiretamente, protocolos de pesquisas com conflitos de interesse que dificultem ou inviabilizem a justa análise local; analisar, justificadamente, qualquer protocolo do Sistema CEP/CONEP, sempre que considere pertinente; e analisar, em caráter de urgência e com tramitação especial, protocolos de pesquisa que sejam de relevante interesse público, tais como os protocolos que contribuam para a saúde pública, a justiça e a redução das desigualdades sociais e das dependências tecnológicas, mediante solicitação do Ministério da Saúde, ou de outro órgão da Administração Pública, ou ainda a critério da Plenária da CONEP/CNS.

Sempre que o estudo clínico envolver as chamadas áreas temáticas

deverá haver análise pela Conep, a saber: genética humana; reprodução humana:

manipulação de gametas, pré-embriões, embriões e feto; e medicina fetal, quando

envolver procedimentos invasivos; equipamentos e dispositivos terapêuticos, novos

ou não registrados no País; novos procedimentos terapêuticos invasivos; estudos

com populações indígenas; projetos de pesquisa que envolvam organismos

geneticamente modificados (OGM), células-tronco embrionárias e organismos que

representem alto risco coletivo, incluindo organismos relacionados a eles, nos

âmbitos de: experimentação, construção, cultivo, manipulação, transporte,

transferência, importação, exportação, armazenamento, liberação no meio ambiente

e descarte; protocolos de constituição e funcionamento de biobancos para fins de

pesquisa; pesquisas com coordenação e/ou patrocínio originados fora do Brasil,

excetuadas aquelas com copatrocínio do Governo Brasileiro; ou ainda, projetos

que, a critério do CEP e devidamente justificados, sejam julgados merecedores de

análise pela Conep.

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A divisão das áreas temáticas é justificada pelo antigo coordenador do

Conep, William Saad Hossne, segundo o qual:

[...] estas áreas foram consideradas especiais porque costumam trazer à tona dilemas éticos importantes, muitas vezes sem consenso na sociedade e com maiores repercussões para os sujeitos da pesquisa. Por isso mesmo foi atribuída à CONEP a apreciação final desses projetos, após a avaliação do CEP institucional, como forma de o CEP contar com o respaldo da Comissão Nacional e também como forma de conhecer concretamente as situações mais frequentes e mais importantes a serem contempladas nas normas específicas que incumbe a ela elaborar.164

A eficiência e o papel protetor dos CEP foram justificados pela própria

Conep em Relatório de Atividades publicado em 2005 em seu portal:

A eficácia do sistema pode ser avaliada pelo seu papel protetor, considerando os diversos atores: os sujeitos, os pesquisadores, os patrocinadores e o próprio governo. Em diversos países têm sido denunciados abusos escandalosos, mobilizando a opinião pública mundial. Verificou-se, no entanto, que o Brasil não foi incluído nas matérias da imprensa internacional que mencionaram locais onde a falta de normas e estruturas de controle social levaram a exploração de populações mais vulneráveis. Com os projetos que não foram aprovados em 2004, cerca de 30.000 sujeitos foram protegidos de participação em situações desfavoráveis. Além disso, considerável proporção de sujeitos foi protegida pelas modificações nos protocolos, exigidas antes da aprovação final dos projetos aceitos após atendimento de pendências:165

Importante considerar a atuação fundamental dos profissionais de saúde,

especialmente os pesquisadores médicos, que atuam nas pesquisas clínicas de

medicamentos como responsáveis pelos estudos e possuem sua atuação ética

regulamentada pelo CFM que dispõe, no Capítulo XII do Código de Ética Médica,

entre os arts. 99 a 106, as normas relevantes direcionadas às experiências

científicas com seres humanos.

164 Cadernos de Ética em Pesquisa, n. 3, jul. 1999, p. 4. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/materialeducativo/cadernos/caderno03.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2016. 165 Sistema CEP – Conep - 9 anos (1996 a 2005) disponível no site oficial do Conselho Nacional de Saúde: <http://conselho.saude.gov.br/Web_comissoes/conep/index.html>. Acesso em: 28 maio 2016.

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De forma resumida, estas normas determinam: a vedação de participação

de estudos que atentem contra a dignidade humana, contra a autonomia da vontade

individual e que possam causar danos e prejuízos a saúde, vida e integridade dos

participantes, de determinada comunidade, ou que violem os preceitos do TCLE,

sendo dever do profissional médico a atuação dentro das normas vigentes e dos

princípios bioéticos estabelecidos.166

166 É vedado ao médico: “Art. 99. Participar de qualquer tipo de experiência envolvendo seres humanos com fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade humana.

Art. 100. Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente.

Art. 101. Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa.

Parágrafo único. No caso do sujeito de pesquisa ser menor de idade, além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão.

Art. 102. Deixar de utilizar a terapêutica correta, quando seu uso estiver liberado no País.

Parágrafo único. A utilização de terapêutica experimental é permitida quando aceita pelos órgãos competentes e com o consentimento do paciente ou de seu representante legal, adequadamente esclarecidos da situação e das possíveis consequências.

Art. 103. Realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e esclarecê-la sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo de proteção à saúde pública, respeitadas as características locais e a legislação pertinente.

Art. 104. Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais.

Art. 105. Realizar pesquisa médica em sujeitos que sejam direta ou indiretamente dependentes ou subordinados ao pesquisador.

Art. 106. Manter vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas, envolvendo seres humanos, que usem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.

Art. 107. Publicar em seu nome trabalho científico do qual não tenha participado; atribuir-se autoria exclusiva de trabalho realizado por seus subordinados ou outros profissionais, mesmo quando executados sob sua orientação, bem como omitir do artigo científico o nome de quem dele tenha participado.

Art. 108. Utilizar dados, informações ou opiniões ainda não publicados, sem referência ao seu autor ou sem sua autorização por escrito.

Art. 109. Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesses, ainda que em potencial.

Art. 110. Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado”.

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Atualmente, os estudos clínicos são analisados, no que tange aos

aspectos éticos, bioéticos, técnicos e regulatórios, pela Anvisa e pelo Sistema

CEP/Conep, com o fito de resguardar todos os valores preceituados na legislação

sanitária vigente e nos tratados internacionais relacionados ao tema. O parecer

consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa é requisito fundamental para a

submissão do estudo à análise pela Anvisa.

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PARTE II – O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS: O DIREITO À SAÚDE E AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO

Superados os aspectos técnicos, normativos e éticos relacionados a

pesquisa clínica de medicamentos no Brasil e para que seja possível adentrarmos

no cerne do presente trabalho, é essencial uma abordagem sobre os principais

direitos constitucionais que fundamentam a execução das pesquisas com seres

humanos. Dessa forma, a pesquisa clínica relaciona-se diretamente com dois

direitos fundamentais: os direitos à saúde – dos participantes e da coletividade – e o

direito ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação.

Vale lembrar que o presente trabalho se restringirá à análise dos direitos

fundamentais dos participantes de pesquisa fase I, a qual, apenas para

recordarmos, é realizada com seres humanos saudáveis, que se submetem a

diversos procedimentos terapêuticos e diagnósticos, que podem alterar seu estado

de saúde, em prol do fomento da saúde coletiva e do desenvolvimento científico do

país e do mundo.

A segunda parte do presente trabalho cuidará, portanto, do direito à

saúde e do direito ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, com o

objetivo de conceituar e de delimitar os principais aspectos na ordem nacional,

principalmente no que tange à fundamentalização desses direitos corolários ao

princípio da dignidade humana, ao direito à vida e ao desenvolvimento e ao

progresso da humanidade.

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CAPÍTULO 4 – DO DIREITO À SAÚDE

4.1 A SAÚDE: CONCEITO E ALCANCE

O paradigma saúde versus doença cristalizou a ciência médica por um

longo período da história. A saúde como oposto de doença se mostrava uma

conceituação óbvia do ponto de vista prático, além de ser “conceitualmente

confortável e metodologicamente viável”167. Entretanto, denominar saúde como a

mera ausência de doença mostra-se uma ideia um tanto quanto ultrapassada,

desprovida do alcance real que o conceito pressupõe. A esse respeito, a opinião de

Almeida Filho, médico epidemiologista é esclarecedora:

Não há qualquer base lógica para uma definição negativa de Saúde, tanto no nível individual quanto no coletivo, mesmo em suas versões aparentemente mais avançadas e completas. [...] Em uma perspectiva rigorosamente clínica, portanto, a Saúde não é o oposto lógico de doença e, por isso, não poderá de modo algum ser definida como ausência de doença.168

Como demonstração da superação da ideia de saúde como ausência de

doença a conceituação apresentada pela OMS em 1946 alargou, evidentemente, o

conceito de saúde ao considerar “saúde como um estado de completo bem-estar

físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”169.

In verbis:

167 ALMEIDA FILHO, Naomar de. O conceito de saúde e a vigilância sanitária. Brasília: Anvisa, 2000. p. 6. 168 Ibid., p. 7-8. 169 Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 10.dez.2016.

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[...] um estado de completo bem-estar, físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde constitui um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.170

Este conceito, muito embora criticado171, possibilitou a abertura de novos

caminhos para a consagração não apenas da saúde humana, mas também da vida

digna e saudável. As críticas fundamentaram-se na ideia de que o conceito

apresentado pela OMS era irreal, ultrapassado e unilateral172, ou seja, dotado de

tamanha subjetividade que o impossibilitava de conceder delimitação prática,

restringindo-o a uma utopia.

Embora criticado, não há como negar a evolução e a amplitude do

conceito trazido pela OMS. Contemporaneamente, a ideia de saúde está

diretamente relacionada ao completo bem-estar físico, mental e social, porém, de

uma forma dinâmica. Trata-se, hoje, na visão de alguns autores, de um processo

construtivo do chamado estado de bem-estar, o qual não é estático, tampouco

universal. O conceito de saúde poderá ser, ainda, regionalizado a depender da

cultura, dos dados epidemiológicos e demais condições de determinada sociedade.

Dessa assertiva, é possível afirmar que “a saúde é, pois, um processo

que se constrói”.173 Trata-se, portanto, da “busca contínua pelo ‘equilíbrio entre

influências ambientais, modos de vida e os vários componentes’”174. Nesse mesmo

sentido, Claude Dejours, ao afirmar que não existe o estado completo de bem-estar,

define que saúde deve ser entendida como a busca constante de tal estado.175

170 Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html . Acesso em 10.dez.2016. 171 “Em 1946, talvez buscando uma terapêutica para o zeitgeist depressive do pós-guerra, a Organização da Saúde reinventou o nirvana e chamou-o de saúde” (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 7). 172 Id. 173 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: abordagem sistêmica, risco e democracia. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 2, n. 1, 2001, p. 31. 174 ROCHA, Júlio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: LTr, 1999. p. 43. 175 DEJOURS, Christopher. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde ocupacional, n. 14, v. 54, p. 7-11, 1986.

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O alcance do conceito de saúde possui extensão que supera o âmbito

médico e fisiológico e envolve, por consequência, a interação com outros setores da

vida dos indivíduos. Inclui-se na ideia de saúde a interação e o equilíbrio com o meio

social, o meio ambiente, o meio cultural e o corpo físico, conforme preceitua

Alessandro Seppilli que define saúde como “a condição harmoniosa de equilíbrio

funcional, físico e psíquico do indivíduo integrado dinamicamente no seu ambiente

natural e social”176.

Tantos são os âmbitos que envolvem a saúde que a Declaração Universal

dos Direito do Homem, em seu art. 25, apresenta que:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social.

A Lei 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde (LOS), em seu

art. 3º, dispõe no mesmo sentido ao determinar que saúde é a conjunção de

diversos setores da vida individual e social.

Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

176 BERLINGUER, Giovanni. A doença. São Paulo: Cebes; Hucitec, 1988. p. 34.

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De tal sorte, conceituar saúde restringindo-a a mera profilaxia, tratamento

e controle de doenças configura um grande equívoco. Muito diferente disso, a saúde

possui um conceito polifacético177, dividido em três faces prontamente detectáveis:

individual, coletiva e de desenvolvimento. No conceito adotado por Sueli Gandolfi e

Vidal Serrano, diferentemente de alguns autores que preceituam a existência de

apenas duas faces ao conceito de saúde – individual e coletiva –, temos que a

saúde apresentar-se-á com três faces determináveis:

[...] a saúde depende, ao mesmo tempo, de características individuais físicas e psicológicas, mas, também do ambiente social e econômico, tanto daquele mais próximo das pessoas, quanto daquele que condiciona a vida dos Estados. O que obriga afirmar que, sob a ótica jurídica, a saúde deverá inevitavelmente implicar aspectos individuais, sociais e de desenvolvimento.178

Reconhece-se, portanto, o caráter individual, coletivo e de

desenvolvimento da saúde, sendo que seu alcance se prolifera nas três esferas

mencionadas. No viés individual, nota-se que a saúde se relaciona diretamente com

variados direitos individuais, não há de se falar em direito a vida digna, por exemplo,

se não houver a consagração de uma vida saudável. O caráter individual evidencia-

se pelo acesso a tratamentos individualizados, métodos diagnósticos, assistência

farmacêutica, assim como a qualidade de vida e bem-estar individuais.

Da mesma maneira, não há de se falar em vida saudável coletiva se não

houver assistência integral e universal em saúde com a devida assistência médica e

farmacêutica bem como políticas de saneamento básico e meio ambiente. Nesse

viés, a saúde possui caráter coletivo ao mesmo tempo que permanece latente sua

face individual.

177 Cf. expressão em: DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JR., Vidal Serrano. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010. 178 DALLARI; NUNES JR. Direito sanitário, 2010, p. 11.

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A promoção e a manutenção da saúde possuem, ainda, um viés de

desenvolvimento que visa a consagração da vida saudável das presentes e futuras

gerações, no que tange ao desenvolvimento científico de novas tecnologias e novos

fármacos, responsáveis pela cura das doenças que ainda acometem a humanidade.

Nesse sentido, entende-se saúde como a possibilidade de novas tecnologias e

tratamentos eficazes na manutenção da qualidade de vida dos indivíduos.

Dessa forma, a saúde apresenta um conceito amplo, dotado de faces que

se interceptam com diversos outros conceitos e direitos. É fácil assimilar, por

exemplo, o conceito de saúde ao de vida, de dignidade, de liberdade e de

desenvolvimento. Há uma interpendência entre os conceitos citados, o que nos leva

a concluir que o alcance do conceito de saúde irradia para além do âmbito médico-

científico: trata-se de um bem individual e coletivo reivindicável, de natureza

multifacetária, e que pressupõe a busca pelo estado de bem-estar físico, psíquico,

social e de desenvolvimento.

Diante de todas as ponderações entende-se como saúde o estado

harmônico entre o bem-estar físico, psíquico, social, ambiental e de

desenvolvimento, que permite a fruição da liberdade individual, a autodeterminação

da personalidade e o gozo de uma vida digna e saudável. Ter direito à saúde, seja

em sua vertente individual, ou coletiva, pressupõe a busca constante desse estado

de bem-estar, mesmo que inatingível em sua integralidade.

4.2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Como já mencionado anteriormente o reconhecimento do direito à saúde

como direito humano se consagrou com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos (DUDH) de 1948, e também com instituição da OMS, criada justamente

para consolidar o nível máximo de desenvolvimento em saúde de todos os povos.

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No âmbito nacional, nos anos 80, o Brasil enfrentava a chamada Reforma

Sanitária, a qual teve como objetivo principal a reformulação do modelo

assistencialista vigente para um novo sistema de caráter universal, que elevasse,

inclusive, o direito à saúde ao patamar de direito. Durante a VIII Conferência

Nacional de Saúde as bases do foram estabelecidas e posteriormente reconhecidas

pela CF/ 1988, em conjunto com a integralidade e a universalidade do direito à

saúde.179

Os direitos sociais fundamentais previstos a partir do art. 6º da CF/1988 (e

de forma sistemática em diversos outros arts.)180, concretizaram uma nova

organização política que unificou e consolidou a dignidade da pessoa humana como

princípio basilar. A CF/1988 brasileira foi a primeira a dispor sobre o direito à saúde

de forma integral e universal. Configurou um marco democrático nacional de respeito

a vida, dignidade e garantias dos direitos fundamentais. Nas palavras de

Marmelstein, o texto constitucional de 1988 representou “a certidão de nascimento

de uma democracia tardia, mas sempre aguardada”181.

O direito à saúde constitui um direito social fundamental expressamente

retratado no Título II da CF, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. No rol do

Capítulo III – Dos direitos sociais, especificamente no art. 6º, o direito à saúde é

garantido como direito fundamental ao lado dos demais direitos sociais ao

estabelecer que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o

trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a

proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma

desta Constituição”.

Para a efetivação do disposto no art. 6º, a CF/1988 estabeleceu no

Capítulo II, destinado à Seguridade Social, a obrigatoriedade estatal na promoção de

um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,

destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência

social”182.

179 TRETTEL, Daniela Batalha. Planos de saúde na visão do STJ e do STF. 1. ed. São Paulo: Verbatim, 2010. p. 59. 180 § 2º do art. 5º da CF/1988. 181 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008. p. 66. 182 Art. 194, CF/88.

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Os objetivos da seguridade social consistem na universalidade da

cobertura e do atendimento; na uniformidade e na equivalência dos benefícios e nos

serviços às populações urbanas e rurais; na seletividade e distributividade na

prestação dos benefícios e dos serviços; na irredutibilidade do valor dos benefícios;

na equidade na forma de participação no custeio; na diversidade da base de

financiamento; no caráter democrático e descentralizado da administração, mediante

gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos

aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

A Seção II – Da Saúde, desse mesmo Capítulo, tratou, no art. 196 da

saúde como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e

ao acesso universal e igualitário a ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

Da leitura do artigo supramencionado é possível extrair que o legislador

constituinte determinou quatro premissas fundamentais: (i) a saúde é um direito de

todos, apontando desde o início o seu caráter universal; (ii) a saúde é um dever do

Estado; (iii) o direito à saúde será concretizado mediante políticas públicas, sociais e

econômicas com o objetivo de redução do risco de doença e de outros agravos; (iv)

o direito à saúde é dotado de um acesso universal e igualitário, visando sua

promoção, proteção e recuperação.

Em seguida, o art. 197183 estabelece que todos os serviços e as ações

relacionadas à saúde possuem relevância pública e, mais uma vez, atribui ao Estado

a obrigação de regulamentar, fiscalizar e controlar a matéria que poderá ser

realizada diretamente pelo Poder público ou por intermédio de terceiros do direito

privado.

183 “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.

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No conceito constitucional de direito à saúde engloba-se, portanto, acesso

a: assistência médica e hospitalar, métodos diagnósticos, profiláticos e terapêuticos,

assistência farmacêutica, políticas sanitárias de meio ambiente e bem-estar, além de

pesquisa e desenvolvimento de novos métodos e terapias aptas a proceder o

tratamento e profilaxia de doenças. Além disso, o direito à saúde é regido por

princípios constitucionais extraídos do próprio texto constitucional: (i)

fundamentalidade; (ii) responsabilidade estatal; (iii) acesso universal e gratuito; (iv)

integralidade.184

A fundamentalidade diz respeito à natureza de direito fundamental sob a

qual o direito à saúde é revestido; a responsabilidade estatal nos remete ao dever

indeclinável do Estado de promoção e garantia de políticas públicas em saúde; o

acesso universal e gratuito relaciona-se, diretamente, ao fato de que todo e qualquer

cidadão, independentemente de sua situação financeira poderá ter acesso ao

sistema público de saúde, de forma gratuita.

Por fim, a integralidade se relaciona diretamente a toda extensão do

direito à saúde, preceituando que o dever do Estado não poderá ser limitado,

tampouco dividido, deverá englobar todas as vertentes de saúde, seja individual,

coletiva, ou de desenvolvimento. Nesse sentido a assistência integral engloba

prevenção, tratamentos, assistência farmacêutica, evolução tecnológica, políticas de

saneamento básico, reintegração social etc.

É possível afirmar, assim, que a pesquisa clínica de medicamentos, por si

só, é fomentadora do preceito constitucional acima analisado. A realização de

pesquisas, cujo objetivo é o desenvolvimento de medicamentos eficazes e seguros,

coaduna com os fins constitucionais de direitos à saúde para toda a população.

184 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, p. 64-70.

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4.2.1 Da legislação infraconstitucional sobre direito à saúde

Com objeto claro de regulamentar “em todo o território nacional, as ações

e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente

ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado”, a Lei

8.080, de 19 de setembro de 1990, também conhecida como LOS, foi instituída a fim

de estabelecer a organização e o funcionamento dos serviços em saúde dispostos

no art. 197 da CF, e conceder efetividade ao direito à saúde no Brasil.

A LOS responsável pela criação do Sistema Único de Saúde – SUS, por

ela definido como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e

instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e

indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, é, atualmente a legislação

infraconstitucional responsável pela regulamentação da saúde no país, em conjunto

com a Lei 8.142/1990

A Lei n° 8.142/90 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão

do SUS e das transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da

saúde.

Existem, ainda, outros instrumentos importantes na regulamentação da

saúde no campo infraconstitucional, são as chamadas Normas Operacionais

(NOBS), que definem as estratégias que reorientam a operacionalidade do SUS.

Apresentam como objetivos principais: a indução e o estímulo de mudanças,

aprofundamento e reorientação na implantação do SUS, definição de novos

objetivos estratégicos, regulamentação das relações entre gestores e, por fim,

normatização do SUS.

Além disso, vale relembrar as já citadas Lei 9.782/99 e a Lei 9.961/00

responsáveis, respectivamente, pela criação da Anvisa e da Agência Nacional de

Saúde (ANS). Estão vigentes, também, outras normas que tratam de saúde e de

suas vertentes a depender do alcance, por exemplo, a Lei de Inovação, a Lei de

Biossegurança, a Lei dos Genéricos, Lei de Incentivo a pesquisa, Lei de Registro de

Medicamentos, entre outras.

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4.3 DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO HUMANO: SISTEMA INTERNACIONAL

DE DIREITOS HUMANOS

O reconhecimento do direito à saúde na ordem internacional no patamar

de direitos humanos enfrentou um trajeto histórico que influenciou, posteriormente,

as constituições nacionais dos países. Tal reconhecimento se deu efetivamente com

a DUDH de 1948. Entretanto, desde 1902, reconhece-se a existência do escritório

Pan-Americano de Saúde, considerado a organização internacional mais antiga de

saúde, posteriormente sucedido pelo Comitê Sanitário Internacional, responsáveis

pela contenção de epidemias mundiais como a cólera e a praga.185

Nessa época, todavia, o conceito de saúde ainda estava restrito ao

paradoxo saúde-doença. Apenas em 1944, com o Presidente Franklin D. Roosevelt,

o direito à saúde foi reconhecido publicamente como uma liberdade fundamental

para a existência dos seres humanos, o que se deu com a publicação da Second Bill

of Rights dos Estados Unidos da América: “Among these are: […] The right to

adequate medical care and the opportunity to achieve and enjoy good health”186, 187.

Porém, a partir da criação da OMS, em 1946, que o direito à saúde

começou a ser delineado como direito fundamental dos seres humanos. O

documento de sua constituição dispôs, já no preâmbulo, a quebra do paradigma de

saúde como oposto de doença, concedendo ao direito à saúde amplitude e patamar

de direito humano fundamental.

185 ESQUIVEL. Carla Liliane Esquivel; Friedrich Tatyana Scheila. A gênese da Globalização da saúde e a internacionalização do direito à saúde. Revista de direito sanitário, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 46-67, nov. 2014/fev. 2015, p. 51. 186 US History. Disponível em: <http://www.ushistory.org/documents/economic_bill_of_rights.htm>. Acesso em: 08 jun. 2016. 187 Tradução nossa: “Entre elas estão: O direito à assistência médica adequada e a oportunidade de alcançar e gozar de boa saúde”.

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A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.

Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.

A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados.

Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos.

O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum.

O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento.

A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde.

Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos.

Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas.

Aceitando estes princípios com o fim de cooperar entre si e com os outros para promover e proteger a saúde de todos os povos, as partes contratantes concordam com a presente Constituição e estabelecem a Organização Mundial da Saúde como um organismo especializado, nos termos do artigo 57 da Carta das Nações Unidas.188

Em seguida, em 1948, foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU a

DUDH, que delineou, além do direito à saúde, diversos direitos e liberdades

individuais e sociais, em especial, a consagração do ideal de dignidade humana.

188 Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 8 jun. 2016.

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No mesmo viés, e também de suma importância, surgem dois diplomas

internacionais, firmados na esfera ONU, que corroboraram com a consolidação dos

direitos humanos no âmbito internacional, o Pacto Internacional sobre os Direitos

Civil e Políticos (PIDCP)189, relacionado a proteção de direitos individuais, e o Pacto

Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)190,

direcionado aos Estados. Ambos, além de outras diversas disposições, sustentam o

bem-estar social e a melhoria nas condições de vida, incluindo a saúde e a

medicalização, como direitos humanos fundamentais.

Existem, além do DUDH, PIDCP e do PIDESC, diversos outros diplomas

internacionais que versam e consagram o direito à saúde na categoria de direito

humano, como, por exemplo: a Convenção para a eliminação de todas as formas de

discriminação racial (1965), Declaração de Alma-Ata (1978), Convenção de

Discriminação contra as Mulheres (1979), Carta de Ottawa para promoção da saúde

(1986), Convenção dos Direitos das crianças ( 1989), Carta Social Europeia e Carta

Africana de Direitos dos Homens e dos Povos ( 1981), Protocolo adicional dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), Declaração de Conferência

Internacional de Promoção da Saúde (1992), Declaração de Viena na Conferência

Mundial sobre Direitos Humanos (1993), Carta do Caribe para promoção da Saúde

(1993), Protocolo de Cartagena (2000), além do Regulamento Sanitário

Internacional, entre outros.

É importante destacar, nesse sentido, o Comentário Geral 14 sobre o

direito à saúde, elaborado pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

que tece os aspectos importantes sobre o art. 12 do PIDESC. Nesse documento,

foram explicadas as dimensões do direito à saúde, estabelecendo que este direito

compreende o usufruto de instalações, bens, serviços, hospitais, clínicas, ambiente

de trabalho saudável, supondo a acessibilidade física, econômica e informativa a

todos os bens e os serviços de saúde. Além disso, estabeleceu a garantia de

qualidade médica e científica.191

189 Pacto Internacional sobre os Direitos Civil e Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 8 jun. 2016. 190 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso em: 8 jun. 2016. 191 RAPOSO, Vera Lucia. Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo: Almedina, 2010. p. 16.

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Nesse documento, a amplitude do conceito do direito à saúde, no que

tange especialmente a assistência farmacêutica e acessibilidade a medicamentos,

evidencia que não basta a simples acessibilidade aos medicamentos, mas sim a

acessibilidade à fármacos que possuem eficácia, qualidade e segurança atestadas.

Evidencia-se, portanto, a necessidade de se evitar a entrada no mercado de

medicamentos que não satisfaçam elevados padrões de qualidade.

É nesse contexto que diplomas internacionais também relacionados a

pesquisa clínica e desenvolvimento farmacêutico ganham importância na proteção e

na concretização do direito à saúde no âmbito internacional, como os já

mencionados: Declaração de Helsinque, Good Clinical Reserach Practice (GCP) e

Declaração de Pachuca.

Destaca-se, ainda, a relevância da Organização Mundial do Comércio

(OMC) e sua constante regulação dos acordos multilaterais relacionados ao

comércio, principalmente o de produtos de interesse da saúde, como os

medicamentos, por exemplo.

Reconhece-se essa relevância, principalmente no que tange ao Acordo

sobre os Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio

(TRIPS) que dispõe, além de outros aspetos de propriedade intelectual, sobre as

patentes dos produtos de saúde, inclusive farmacêuticos. Posteriormente, a

Declaração de Doha concedeu interpretação ao TRIPS, estabelecendo que toda e

qualquer interpretação desse diploma internacional deve ser direcionada para a

proteção da saúde pública e a viabilização do acesso aos medicamentos,

demonstrando, mais uma vez, a importância da saúde como direito humano

universal.

3. Reconhecemos que a proteção à propriedade intelectual é importante para a produção de novos medicamentos. Reconhecemos, ainda, as preocupações com seus efeitos sobre os preços. 4. Concordamos que o acordo TRIPS não impede medidas de proteção à saúde pública. Desse modo, ao mesmo tempo que reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS deve ser interpretado para a proteção da saúde pública e viabilização do acesso aos medicamentos.192

192 Acordo sobre os Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS), 1994.

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Evidentemente não se mostrou possível esgotar, no presente capítulo,

todos os diplomas internacionais que versam sobre saúde. Entretanto, os principais

mencionados já demonstram a caracterização do direito à saúde como direito

humano.

4.4 DIREITO À SAÚDE: NORMA DE CONTEÚDO JURÍDICO OBJETIVO-

SUBJETIVO

O direito à saúde está inserido, hoje, na categoria de direitos

fundamentais sociais. Os direitos sociais são frutos de uma conquista histórica,

posterior à conquista dos direitos fundamentais da liberdade. Com isso, os direitos

sociais decorrem do welfare state, que trouxe a ideia de que todo o indivíduo, desde

o seu nascimento, tem direito a um conjunto de bens e serviços que devem ser

oferecidos e garantidos pelo Estado, de forma direta ou indireta.

Fruto dos abusos do capitalismo industrial e do liberalismo ilimitado, os

direitos sociais nasceram das diversas reivindicações da classe operária que se

rebelevam contra as relações trabalhistas desumanas.

Com o final da Segunda Guerra Mundial e o surgimento de concepções

éticas sobre a natureza humana, os direitos humanos foram consagrados pela

DUDH de 1948, a qual, pautada nos pilares já defendidos na Revolução Francesa –

igualdade, fraternidade e solidariedade –, preocupou-se, também, com a promoção

do progresso social e da melhoria nas condições de vida. A Declaração – DUDH,

originou a nova geração de direitos humanos, consagrando os direitos sociais193.

193 “Artigo XXII Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade; Artigo XXIII. 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses. Artigo XXIV. Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas. Artigo XV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de

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Em 1966, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto

de Direito Civis e Políticos ratificaram a importância dos direitos sociais bem como

sua interdependência com os direitos de liberdade individual. A fundamentalidade e

a correlação entre as garantias individuais e os direitos sociais ficou expressa no

preâmbulo do Pacto:

Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal de Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.194

No que tange ao Brasil, a primeira abertura social ocorreu com a

Constituição de 1824195, a qual, por sua vez, possuía natureza assistencialista,

porém, sem a consagração dos direitos sociais propriamente ditos. Apenas em

1934, fruto do movimento constitucionalista, que a Constituição de 1934 teve o

“propósito de fincar pedras fundamentais do Estado Social de Direito”196, com a

instituição da Justiça do Trabalho. Entretanto, tal Constituição teve breve vigência

sendo derrubada pela Constituição de 1937, de caráter autoritário.

assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. Artigo 26. 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que sera ministrada a seus filhos.” 194 Preâmbulo do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direito Civis e Políticos de 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990.../d0591.htm>. Acesso em: 20 set. 2016. 195 XXXI. “A Constituição também garante os socorros públicos” (Constituição de 1824). 196 NUNES JR., Vidal Serrano. A cidadania Social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 61-62.

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A Constituição de 1946 renovou o viés social, instituindo novos direitos

sociais importantes, todavia, logo foi substituída pela constituição da ditadura militar

de 1967, que, embora contivesse a disposição sobre os direitos sociais, tal eficácia

vinculava-se a uma futura legislação integradora.197

A consagração dos direitos sociais de forma ampla se deu com a

Constituição de 1988, a qual submeteu o Estado à prestação de uma atividade

positiva com vistas a proporcionar a todos os indivíduos a garantia de

disponibilidade das condições mínimas de sobrevivência.198

Nesse ínterim, os direitos sociais fundamentais, dentre os quais se situam

os direitos a saúde, moradia, educação, trabalho, previdência, configuram um dos

elementos caracterizadores do Estado Democrático de Direito, cuja premissa é a

promoção da justiça social e das diversas garantias de direitos fundamentais sociais,

todos fundados na dignidade da pessoa humana, que, em conjunto, compõe o

núcleo essencial constitucional.199

Utilizando-se da conceituação de Vidal Serrano, os direitos sociais

figuram como:

[...] um subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, por meio de atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade.200

197 NUNES JR., Vidal. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 61-62. 198 OLIVEIRA, Márcio Dias de. Direito fundamental à saúde e suas faces: uma análise conjunta à irretroatividade do direito fundamental social à saúde. In: GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Coords). Direitos fundamentais da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição brasileira. Birigui, SP: Boreal, 2008. p. 201-220. 199 MATIAS, João Luis Nogueira (Coord). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009. 200 NUNES JR., A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 61-62.

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Aos direitos sociais, muitas vezes, é erroneamente atribuída uma

natureza restritiva de direitos prestacionais, o que implica em um reducionismo

capaz de comprometer o alcance e eficácia desses direitos. Como bem assevera

Serrano, os direitos sociais ora possuem a vertente prestacional, ora de abstenção

estatal e ora de regulamentação. 201

O que de fato não se pode negar é que os direitos sociais: (i) possuem

um caráter fundamental, uma vez que são direitos intrínsecos ao ser humano e, sem

o mínimo vital dos direitos sociais, nenhuma das liberdades individuais pode ser

amplamente exercida; (ii) trazem em sua essência a aspiração ética que parte da

premissa de que todos que participam da sociedade devem ter direito a uma parcela

dos frutos por ela produzidos; (iii) possuem perspectiva normativa, reguladora e

prestacional.202

Logo, a natureza do direito à saúde não pode ser limitada a de direitos

prestacionais positivados meramente por normas programáticas. Trata-se de direito

muito mais abrangente, capaz de configurar um direito subjetivo individual, inclusive

em iminente intersecção com os direitos e as garantias individuais. A natureza

subjetiva individual desse direito é evidente e subsiste em conjunto com sua

natureza objetiva prestacional.

Consoante assevera Kelsen, uma norma de direito subjetivo concede ao

indivíduo “o poder jurídico de se valer, através de uma ação o não cumprimento de

um dever jurídico”203. Entretanto, existe a dificuldade no reconhecimento das normas

que impõem prestações estatais como direitos subjetivos. Já Roberto Dias explica

que tal dificuldade surge “porque postular judicialmente a implantação de uma

política social, daria ensejo à judicialização da política, questão problemática do

ponto de vista da legitimidade democrática e da tradição separação dos poderes”204.

201 NUNES JR., Vidal Serrano. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 63. 202 Ibid., p. 65. 203 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 152. 204 DIAS, Roberto. O Direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 64.

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A dimensão objetiva do direito à saúde, diretamente relacionada a sua

faceta coletiva e de desenvolvimento, é de fácil reconhecimento. Marcelo Duque

esclarece que a dimensão objetiva implica na imposição de uma obrigação ao

Estado para a prática de determinada conduta, “seja proibindo ou dificultando a

realização de intervenções em determinados direitos dos cidadãos, seja obrigando-

lhe à prática de uma proteção efetiva”205.

Trata-se da obrigação do Estado de promoção, segurança, preservação

do direito à saúde, seja por uma ação positiva (prestacional), seja por uma ação

negativa (de não intervenção). Porém, não se pode negar a dimensão subjetiva do

direito à saúde, ainda mais quando relacionada a sua esfera individual. Dessa forma,

é possível reconhecer, nesse caso, um duplo caráter do direito à saúde, sendo,

portanto, dotado de duas dimensões que se confundem: a objetiva e a subjetiva ou,

em outras palavras, em direitos de defesa e em direitos prestacionais. Isso porque,

ainda nas palavras de Duque, “o conteúdo objetivo dos direitos fundamentais não

configura oposição ao seu caráter subjetivo”206.

Ao mencionar que as duas dimensões se confundem se pretende

referenciar a interdependência das dimensões subjetivas e objetivas, em que sem a

última a primeira pode não existir. O direito à saúde concede aos indivíduos direitos

subjetivos de exigir do Estado a manutenção e a não intervenção no seu bem-estar

físico, psíquico e social, ao passo que, impõe ao Estado a obrigação de promoção

da saúde pública, através de políticas de desenvolvimento e de implementação de

serviços.

Sem a atuação positiva do Estado o direito a saúde, vida e dignidade

humana podem restar totalmente prejudicados, dotando o indivíduo do direito de

exigir, mediante ação judicial, a ação positiva estatal. Oportuno citar o acórdão do

Supremo Tribunal Federal, lembrado por Roberto Dias207, que reconhece o caráter

subjetivo e objetivo do direito à saúde:

205 DUQUE, Marcelo Schenk. Direitos Fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 127. 206 DUQUE. Direitos Fundamentais, 2014, p. 124. 207 DIAS, Roberto. O Direito fundamental à morte digna, 2012, p. 6.

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O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.208

O direito à saúde como direito social, portanto, transpõe em seu conteúdo

mínimo uma fusão com os direitos e as garantias individuais. Os direitos

fundamentais, entre outras características, são indivisíveis e compõem uma unidade

sistêmica. Diante disso, é possível vislumbrar no direito à saúde tanto a natureza de

direito fundamental social como a de direito fundamental individual. Porque é inviável

reconhecer o direito à vida, por exemplo, sem a efetivação de tratamentos eficazes

em caso de doença. Ora, para a concretização do direito à vida, o direito à saúde é

indispensável, podendo-se valer da afirmação de que, sem o direito à saúde, nesta

hipótese, o direito à vida é amplamente violado.

Diante desse racional é possível concluir que, em relação ao conteúdo

essencial de cada direito social, especialmente o direito à saúde, existe íntima

relação com os direitos individuais, dotados de subjetividade. Restringir a

positivação dos direitos sociais, especialmente no que se refere à saúde, às normas

programáticas, consiste no mesmo que lhes retirar o caráter subjetivo

interdependente com as liberdades e as garantias fundamentais. É o mesmo que

afirmar que não passam de “aleluias jurídicos”, burlando, assim, a noção do Estado

de Direito, que submete o administrador à lei.209

208 Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial n.º 887.844/RS, relator ministro Humberto Martins, j. 24.10.2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000103463&base=baseAcordaos>. Acesso em: 02 set. 2016. 209 NUNES JR. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 61-62.

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Isso porque a aplicação de direitos sociais, no que se refere ao mínimo

vital, não pode ficar à mercê das políticas públicas. Por esse motivo, alguns direitos

sociais são positivados por mais de uma forma, transformando-se, ao longo do texto

constitucional, em direitos subjetivos passíveis de reclamação. Com isso, é possível

afirmar que a CF/1988, no que tange à positivação dos direitos sociais, utilizou as

seguintes formas de positivação:

(i) Normas consagradoras de finalidades a serem cumpridas pelo

Poder Público;

(ii) Atribuição de direitos subjetivos públicos de fruição autônoma e

imediata por qualquer indivíduo;

(iii) Garantias institucionais;

(iv) Cláusulas limitativas do poder econômico, predispostas à

busca do equilíbrio em relações socioeconômicas marcadas por

desigualdade entre as partes;

(v) Normas projectivas, normas de conformação social dos

institutos jurídicos fundantes da ordem econômica capitalista.210

Não é se pretende aqui abordar o viés da positivação dos direitos sociais.

No entanto, é importante fomentar a consciência de que a limitação do direito à

saúde a normas programáticas retira-lhe o conteúdo essencial que, muito embora

seja fruto de políticas públicas, também tem seu viés intimamente relacionado aos

direitos e às garantias individuais. O direito à saúde como direito fundamental

abarca, portanto, desde o estabelecimento de obrigações indeclináveis, destinadas

ao Estado, até o direito subjetivo individual, correlacionado às garantias individuais.

210 NUNES JR. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 61-62.

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CAPÍTULO 5 – DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO

5.1 CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO

Francis Bacon, no século XVII, já considerava a ciência indispensável ao

bem-estar do ser humano e a tecnologia como necessária a sua vivência sobre a

terra211. Afirmando, ainda, “que o mundo moderno não tem como escapar à ideia de

que a ciência e a técnica estão ligadas ao desenvolvimento social, econômico e

educacional”212.

A ciência, a tecnologia e a inovação integram o ethos do desenvolvimento

científico de uma determinada sociedade. Trata-se de prática milenar, responsável

pelo progresso do ser humano e por sua evolução biológica, social e histórica. Na

descoberta e no aprimoramento dos primeiros artefatos, tais como as ferramentas

de pedra, a roda e o metal, já estavam presentes os primeiros resquícios de ciência.

O termo ciência deriva do latim scientia, que significa conhecimento.

Etimologicamente consiste no “saber”; no “modo de conhecimento que procura

formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas – tanto quanto possível, com

o auxílio da linguagem matemática – leis por meio das quais se regem os

fenómenos”.213 Trata-se do modo pelo qual o ser humano explora, conhece e

descreve os fenômenos da natureza e do universo.

Segundo a UNESCO, “a ciência é o conjunto de conhecimentos

organizado sobre os mecanismos de causalidade dos fatos observáveis, obtidos

através do estudo objetivo dos fenômenos empíricos”214.

211 OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. 2. ed. Belos Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 284. 212 BACON apud MIGUEL, Jorge. Curso de direito constitucional. 2. ed. Atlas, 1991. p. 309. 213 Ciência. In: MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 31. 214 UNESCO. Recommendation Concerning the International Standardisation of Statistics on Science, 1978. In: Frascati Manual, Paris: OECD, 1993.

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A ciência aliada à técnica origina a tecnologia objetivando

primordialmente unir a teoria e a prática, o conhecimento e a ação. A tecnologia,

assim como a ciência, também pode ser conceituada como o conjunto de

conhecimento de uma sociedade, entretanto, esse conjunto estará diretamente

aplicado nas artes industriais, causando, por consequência, impactos diretos na

sociedade.

Nas palavras de Dálcio Roberto dos Reis “a tecnologia fundamenta-se

nos métodos e conhecimentos científicos, compreendendo o domínio dos materiais

e processos, úteis para a solução de problemas técnicos e para a fabricação de

produtos”215. Segundo o autor, ainda é impossível isolar a ciência da tecnologia, pois

a evolução e a transformação da sociedade está diretamente relacionada ao

processo cíclico ciência, técnica, indústria e sociedade.216

Contudo, restringir a tecnologia à mera aplicação da ciência também não

parece o melhor caminho a seguir. Embora o ciclo de interdependência entre elas

seja evidente na evolução da sociedade, conforme afirmou Reis, ciência e tecnologia

são conceitos complementares, porém, com objetos distintos. A razão trabalhada na

ciência não é a mesma razão trabalhada na tecnologia.

A razão, que nas palavras de Whitehead217, consiste em “promover a arte

da vida”, pode ser diferenciada em duas vertentes quanto a sua função: a primeira,

relacionada à transformação dinâmica da vida dos homens para “transformar uma

boa existência em uma existência ainda melhor”; a outra, com a finalidade de buscar

a compreensão dos fenômenos da vida e das realidades existentes, “o progresso de

uma melhor compreensão”. A primeira relaciona-se com a tecnologia. A segunda,

por sua vez, à ciência.

215 REIS, Dalcio Roberto dos. Gestão de inovação tecnológico. São Paulo: Manole, 2013. p. 35.

216 Ibid., p. 35. 217 WHITEHEAD, Alfred North. A função da razão. Brasília: UnB, 1985. p. 21-22.

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O trabalho contínuo da evolução da ciência e da tecnologia nos últimos

séculos deve-se ao fato da união entre a razão especulativa da ciência na busca

teórica tanto com a razão prática da tecnologia quanto com as diversas

metodologias de aplicação218. Como fruto da interdependência da ciência e da

tecnologia nasce a inovação tecnológica, recentemente incorporada ao texto

constitucional pela Emenda Constitucional no 85, de 26 de fevereiro de 2015, na

categoria de direito fundamental.

A inovação consiste, segundo conceito exposto na Lei da Inovação (Lei

10.973, de 2 de dezembro de 2004), na introdução de novidade ou aperfeiçoamento

no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou

processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou

características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em

melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho.

A inovação tecnológica219 representa o principal instrumento de

mudanças e evolução da sociedade atual. Consiste no modo pelo qual o

conhecimento técnico científico é produzido, aplicado, incorporado, transferido e

difundido aos serviços e produtos. Tem o condão de trazer não só a aplicabilidade

prática dos conhecimentos científicos, como o faz a tecnologia, como vai mais além:

proporciona a aplicação em larga escala do desenvolvimento técnico-científico para

que este seja prontamente incorporado à vida dos indivíduos.

Os medicamentos inovadores quando dotados de inovação radical

constituem um exemplo evidente de ciência, tecnologia e inovação. Ciência, pois os

medicamentos, evidentemente, são objeto de um estudo teórico capaz de

determinar as ações terapêuticas ou as possíveis alterações cabíveis; tecnologia,

pois a teoria das pesquisas é efetivamente aplicada nas bancadas dos laboratórios

que viabilizam as modificações necessárias e as adequações para a realização das

ideias pensadas; Por fim, de inovação, pois, quando viáveis para transferência em

grande escala, são distribuídos aos indivíduos visando incorporar um novo produto à

sociedade.

218 GARCIA. Limites da ciência, 2004, p. 38. 219 Deve-se diferenciar inovação de invenção, sendo que esta última está relacionada às ideias, do campo científico, de mudança ou criação de um novo processo, sistema ou produto. Já a inovação relaciona-se diretamente com o potencial de comercialização e aplicação da invenção na sociedade.

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É possível afirmar que a sociedade contemporânea se encontra no ápice

de seu desenvolvimento científico e tecnológico. As grandes indústrias possuem

núcleos especializados em Pesquisa e Desenvolvimento e Inovação (PDI) capazes

de mover vultosos recursos financeiros, tecnológicos e humanos a favor dos

avanços na área.

Inegável, porém, que o processo de inovação possui relação direta com o

sistema capitalista e os meios de consumo da sociedade. O poder tecnológico das

grandes indústrias são, hoje, os detentores do núcleo do sistema de inovação do

país. É nesse contexto que alguns cuidados devem ser tomados, pois a confusão da

essência do ethos da ciência com os interesses econômicos pode desvirtuar as

finalidades pela qual a ciência e a tecnologia foram e são utilizadas: a melhoria

constante da qualidade da vida humana.

Nesse sentido, Miranda afirma:

Hoje quem dirige e controla a pesquisa científica é o poder tecnológico, situado fora, inclusive, dos grandes centros de pesquisa, como as universidades. Estas perderam, em grande parte, o senso de ciência como pesquisa livre e com autonomia e se tornaram referência de pesquisas encomendadas por centros de tecnologia, feitas, inclusive, sem que os cientistas jamais saibam de sua finalidade.220

O fato de vivermos em uma época luminosa no campo científico não nos

permite o esquecimento de que toda luminosidade traz em sua outra face resquícios

de ensobreamento que podem recair, nas palavras de Whitehead, em um

“obscurantismo espesso da natureza humana”221.

220 MIRANDA, Angela Luiza. Da natureza da tecnologia: uma análise filosófica sobre as dimensões ontológica, epistemológica e axiológica da tecnologia moderna. 2002. 161f. Dissertação (Mestrado) – Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR). 221 WHITEHEAD. A função da razão, 1985, p. 21-22.

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Maria Garcia destaca que há

[...] impetrado no campo científico um pragmatismo imediatista e uma ética dos resultados ponderando um processo (aparentemente) sem fim, rumo aos três níveis básicos da ambição humana: riqueza, status e poder, com todas as consequências conhecidas pela Humanidade.222

É por esse motivo que corroboramos com o entendimento de Whitehead

ao afirmar que o progresso no campo da ciência, da tecnologia e da inovação deve

ser acompanhado de um avanço proporcional na sabedoria humana, a fim de

distinguir os limites da ciência e a consecução dos seus fins.

Todavia, esse aspecto de conhecimento vai sendo gradualmente deslocado para um segundo plano pelo aspecto de poder manipulador da ciência. [...] Portanto, quando pretendemos considerar a influência da ciência sobre a vida humana, é necessário que levemos em conta três aspectos, que estão mais ou menos ligados entre si. O primeiro, é a natureza e a finalidade do conhecimento científico; o segundo, é o maior poder de manipulação que resulta da técnica científica; o terceiro, e último, são as mudanças na vida social e nas instituições tradicionais que fatalmente resultarão das novas formas de organização exigidas pela técnica científica. A ciência como conhecimento é a razão fundamental dos outros dois aspectos, pois todos os efeitos que produz resultam do conhecimento conseguido por ela. Até agora, o homem se viu impedido de concretizar suas esperanças por ignorar os meios de realizá-los. Mas, à medida que a sua ignorância vai desaparecendo, ele se torna cada vez mais capaz de transformar, no sentido que julgar melhor, o seu meio ambiente, o seu meio social e o seu próprio ser. Enquanto o homem for sensato, esta sua nova força pode ser benéfica, mas será contraproducente se for néscio. Por conseguinte, para que uma civilização científica seja uma boa civilização, é preciso que o aumento do conhecimento humano seja acompanhado por um aumento de sabedoria.223

222 GARCIA. Limites da ciência, 2004, p. 40. 223 WHITEHEAD. A função da razão, 1985, p. 21-22.

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5.2 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E

INOVAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Desenvolver nos remete à ideia de crescimento, progressão, aumento,

melhora. No significado da palavra, desenvolver é fazer crescer ou crescer, tornar

maior, mais forte.224 Desenvolvimento, por sua vez, é ato ou efeito de desenvolver,

crescimento ou expansão gradual, a passagem gradual de um estágio inferior a um

estágio mais aperfeiçoado, progresso, extensão, prolongamento, amplitude.225

Em uma sociedade o desenvolvimento se relaciona diretamente com a

situação político-econômico e social, dividindo, inclusive, a depender de critérios

internacionais, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)226, os países em

desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos.

O direito ao desenvolvimento ganhou patamar de direito humano

fundamental através da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986,

que considerou o ser humano como “o sujeito central do desenvolvimento e deveria

ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento”227, e ainda que o

direito ao desenvolvimento representa:

[...] um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.228

224 HOUAISS. Dicionário…, 2009, p. 648. 225 Ibid. 226 Segundo o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento: “O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde”. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/IDH/DH.aspx>. Acesso em: 18 de jun. 2016. 227 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Infradesenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html>. Acesso em: 20 set. 2016. 228 Id.

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A amplitude do direito ao desenvolvimento como direito humano é muito

superior ao do direito ao desenvolvimento científico e tecnológico, o qual pode ser

incorporado como parte do direito ao desenvolvimento, haja vista que também é

fundamental para o progresso e a evolução das sociedades, no que tange a saúde,

qualidade de vida, dignidade da pessoa humana assim como ao crescimento

econômico e industrial de um país.

O direito ao desenvolvimento científico, tecnológico e inovação também é

dotado de fundamentalidade, típica dos direitos fundamentais, dada sua correlação

direta com o direito à saúde e ao desenvolvimento das nações. No âmbito

constitucional, a primeira carta a trazer a disposição sobre a ciência – a Constituição

de 1937 – dispunha em seu art. 128:

A arte, a ciência e o seu ensino são livres à iniciativa individual e à de associações ou pessoas coletivas, públicas e particulares. É dever do Estado contribuir, direta ou indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas ou de ensino.229

Em sequência, a Constituição de 1946 versou, de forma branda, sobre a

promoção dos institutos de pesquisas em seu art. 174: “O amparo à cultura é dever

do Estado. A lei promoverá a criação de institutos de pesquisas, de preferência junto

aos estabelecimentos de ensino superior”230.

As Constituições de 1967 e 1969 também dispunham, de forma discreta,

sobre o incentivo no campo científico e tecnológico: “As ciências, as letras e as artes

são livres, ressalvado o disposto no § 8º do art. 153. O Poder Público incentivará a

pesquisa e o ensino científico e tecnológico”231. As Constituições anteriores,

portanto, dispunham sobre a liberdade da ciência e sobre o dever do Estado de

apoiar a pesquisa, sem conceder um tratamento especial ao tema.

229 Constituição Federal de 1937. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao37.htm . Acesso em 10 de novembro de 2016. 230 Constituição Federal de 1946. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao46.htm .Acesso em 10 de novembro de 2016. 231 Constituição Federal de 1969. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao69.htm .Acesso em 10 de novembro de 2016.

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A Constituição de 1988, por sua vez, foi o primeiro texto constitucional

brasileiro a reservar um capítulo exclusivo à ciência e a tecnologia, sendo

incorporada posteriormente, através da Emenda 85 de 2015, a inovação. É no

Capítulo IV do Título da Ordem Social, especificamente nos artigos 218 e 219 da

CF/1988 que se encontram delimitados os deveres do Estado para com a ciência,

tecnologia e inovação, consagrando o dever estatal com o desenvolvimento

científico e tecnológico do país.

Pela primeira vez na história constitucional do Brasil foi reconhecida a

importância da ciência e tecnologia para o desenvolvimento da sociedade. No

mesmo sentido, afirma Miguel:

Pela primeira vez em toda história Constitucional brasileira é reservado à Ciência e Tecnologia um capítulo especial. Ciência é o conjunto dos conhecimentos humanos baseados na pesquisa. Tecnologia é o conjunto de conhecimento eficaz para uma atividade. Não é possível admitir um grupo humano, sem qualquer desenvolvimento tecnológico, ainda que primitivo e rudimentar.232

Denota-se da leitura do texto legal que ao Estado foi atribuída a função de

promover e incentivar o desenvolvimento científico e tecnológico e o sistema de

inovação do país. O legislador optou pela proclamação dos dois verbos – promoção

e incentivo – justamente para conceder maior amplitude à finalidade da norma, pois,

conforme afirmam Ives Gandra Martins e Celso Ribeiro Bastos: “Quem promove

incentiva. Quem incentiva promove. Nem toda promoção, todavia, implica incentivos

materiais, muito embora todo incentivo material implique forma de promoção.

Preferiu o constituinte utilizar-se de dois termos”233.

232 MIGUEL. Curso de direito constitucional, 1991, p. 309. 233 MARTINS, Ives Gandra; BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 848; 849. v. 8.

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O art. 218234 deixa clara a distinção entre ciência e tecnologia ao

mencionar que ambos são de responsabilidade do Estado. Distingue, ainda, os

propósitos do desenvolvimento científico e os da pesquisa e da capacitação

tecnológica. Entretanto, há um vínculo indissolúvel com o princípio da República,

disposto no art. 3º da CF: II – garantir o desenvolvimento nacional. Ainda nas

palavras de Martins e Bastos:

O art. 218 abre o Capítulo IV do Título VIII, dedicado à ordem social. O capítulo cuida da ciência e da tecnologia. Os temas são de sentido comum. Toda tecnologia decorre da evolução da ciência no setor, e toda ciência, voltada para a tecnologia, é tecnologia científica, razão pela qual os temas possuem certa equivalência. Mas nem toda ciência é tecnologia e nem toda tecnologia aplicada é ciência, muito embora a tecnologia em si mesma seja uma decorrência da evolução científica. Daí resulta a distinção pretendida pelo constituinte, ao cuidar como se de dois ramos se tratasse.

O dispositivo volta-se à função do Estado, que é aquela da promoção do desenvolvimento.

Cabe ao Estado promover e incentivar as atividades nesse campo.235

234 “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.

§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.

§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.

§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.

§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.

§ 5º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.

§ 6º O Estado, na execução das atividades previstas no caput, estimulará a articulação entre entes, tanto públicos quanto privados, nas diversas esferas de governo.

§ 7º O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput”. 235 MARTINS; BASTOS. Comentários à Constituição do Brasil, 2004, p. 848; 849.

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Diante do artigo mencionado é possível extrair que o Estado promoverá e

incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa no campo da ciência e da

tecnologia, promoverá a habilitação de pessoas a consecução desse fim bem como

para o gozo dos avanços tecnológicos, enfim, promoverá meios eficazes para o

alcance da tecnologia aplicada.236 Nesse sentido, Martins e Bastos destacam:

A primeira atividade cuja promoção e incentivo o Estado deve propiciar é a do desenvolvimento científico. Por desenvolvimento científico ‘lato sensu’ há de se entender tudo aquilo que o estudo da ciência pode proporcionar, sem qualquer limitação, inclusive o desenvolvimento tecnológico. Na dicção constitucional, é o mais lato possível o sentido pretendido.

[...]

Promover é incentivar, por outro lado, a pesquisa tecnológica. Isto é, no campo da ciência, aquela pesquisa voltada para a tecnologia. A tecnologia depende fundamentalmente da pesquisa, muito embora até no campo das ciências sociais se fale em pesquisas, com a apropriação da palavra por juristas, economistas etc., sem contestação de índole doutrinária. Por fim, como decorrência da pesquisa tecnológica, o Estado promoverá a “capacitação tecnológica”, isto é, a habilitação das pessoas para o exercício dos avanços tecnológicos, para seu uso e para seu proveito. Em outras palavras, a tecnologia aplicada é objetivo colimado pelo Estado, no capítulo dedicado à ciência e tecnologia”.237

Nos § 1º e § 2º do mencionado artigo é possível observar a preocupação

do legislador em conceder um objetivo ao desenvolvimento científico e tecnológico,

afirmando que a pesquisa se mostra essencial para o bem público e para o

progresso da ciência e que “a pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente

para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema

produtivo nacional e regional”.

236 MARTINS; BASTOS. Comentários à Constituição do Brasil, 2004, p. 848; 849. 237 Id.

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Pinto Ferreira, de forma crítica, escreve sobre esse ponto:

A pesquisa tecnológica deve voltar-se preferencialmente para a solução dos problemas brasileiros e o desenvolvimento do sistema produtivo tanto nacional como regional. [...] A inteligência brasileira vive profundamente alienada, usando-se tal conceito de alienação como o de divórcio da realidade. Buscam-se teorias estrangeiras para a solução dos problemas nacionais, com evidente insucesso”238

Os § 3º e § 4º são diretamente relacionados aos recursos humanos

envolvidos no desenvolvimento científico e tecnológico, com alcance

socioeconômico. Pois, como é cediço, a área científica, além de recursos

financeiros, necessita de grandes investimentos na área de recursos humanos para

a capacitação de indivíduos aptos a promoverem os fins desse setor. Neste sentido,

Wolgran Junqueira Ferreira esclarece:

A regra contida neste parágrafo é de grande alcance socioeconômico. Deverá lei ser editada pelo Congresso Nacional, prever apoio e estímulo às empresas que: a) invistam em pesquisa; b) invistam na criação de tecnologia adequada ao País; c) invistam na formação e aperfeiçoamento dos recursos humanos; d) concedam participação dos empregados nos ganhos econômicos resultantes da produtividade do trabalho.239

O § 4º traz a ideia de incentivos fiscais às empresas, possíveis

concessões de créditos, isenções, por exemplo, os dispostos na Lei 10.973/2004240.

A ideia é que o Estado reduza encargos financeiros como forma de incentivar as

pesquisas científicas e fomentar as inovações, as quais, por si só, já demandam alto

investimento.

238 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. Saraiva, 1995. p. 205. v. 7 239 FERREIRA, Wolgran Junqueira. Comentários à Constituição de 1988. São Paulo: Julex, 1989. p. 1106. v. 3 240 Essa Lei dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências.

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O art. 219241 da CF/1988 preceitua o fortalecimento do mercado interno

nacional, no quesito de desenvolvimento científico e tecnológico e inovação, a fim de

viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e

a autonomia tecnológica do País. É o mercado nacional, portanto, o destino do

incentivo descrito no art. 219.

Em 2015, através da Emenda Constitucional, de 26 de fevereiro de 2015,

os artigos que versam sobre ciência e tecnologia foram alterados para contemplar o

instituto da inovação como essencial ao desenvolvimento nacional. De certo, a

inovação já estava prevista, mesmo que implicitamente, nos artigos constitucionais

anteriores, haja vista que as pesquisas científica e tecnológica tendem a fomentar a

inovação. Entretanto, a emenda trouxe um marco de suma importância ao incluir no

texto constitucional a inovação como instituto autônomo, passível de incentivo do

Estado.

Foi atribuída ao Estado a responsabilidade de estímulo das entidades

públicas e privadas responsáveis por ciência, tecnologia e inovação. O

fortalecimento da inovação passou a ser objetivo de promoção e incentivo para que

os parques e polos tecnológicos nacionais possam, cada vez mais, atuar como

inventores, proporcionando à sociedade a criação, absorção, difusão e transferência

de tecnologia em diversos setores.

241 “Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015)

Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei (Incluído pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015).

Art. 219-B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015) § 1º Lei federal disporá sobre as normas gerais do SNCTI. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015) § 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios legislarão concorrentemente sobre suas peculiaridades”.

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A Emenda 26 alterou a redação do § 2º do art. 213, permitindo o apoio

financeiro do Poder Público a universidades e instituições de educação profissional e

tecnológica destinadas a pesquisas para inovação científica e tecnológica.

Por fim e de suma importância para o presente trabalho, a Emenda

Constitucional alterou o artigo 200, inciso V, da Constituição Federal, que versa

sobre as atribuições do Sistema Única de Saúde, para contemplar que cabe ao

SUS, em sua área de atuação, incrementar desenvolvimento científico e tecnológico

e, também a Inovação.

A pesquisa clínica de medicamentos é fundamental para o

desenvolvimento científico e tecnológico no país, consistindo etapa fundamental

para a viabilização de inovações no setor. Dessa forma, cabe ao SUS o incremento

no setor dos fármacos.

É evidente a importância constitucional do direito à ciência, tecnologia e

inovação na consecução dos demais direitos fundamentais e para as finalidades do

Estado no desenvolvimento nacional. A pesquisa clínica de medicamento, conforme

amplamente exposto, está amparada e tem como fundamentos jurídicos basilares,

indubitavelmente, os direitos constitucionais à saúde e ao desenvolvimento

científico.

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CAPÍTULO 6 – A INTERDEPENDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE E DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO

A promoção e a garantia do direito à saúde refletem, por consequência, a

ideia de avanços no campo da ciência capazes de fomentar, cada vez mais,

melhorias na qualidade de vida dos seres humanos. Desvincular a saúde do

conceito de desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação constitui grave

equívoco capaz de reduzir o alcance desse direito, amplamente abordado no

Capítulo quatro deste trabalho.

Evidente que uma das funções do desenvolvimento científico é a

inovação no campo da saúde humana, especialmente quando se fala em

medicamentos e inovações farmacêuticas, diagnósticas e profiláticas. Vários são os

pontos de intersecção entre o direito à saúde e o desenvolvimento científico,

podendo, inclusive, estabelecer-se uma correlação de existência, uma vez que não

há promoção de saúde sem efetivos avanços no campo da ciência, os quais são os

responsáveis por proporcionar e viabilizar a profilaxia e a cura de diversos males

que, ainda no Século XXI, ceifam a saúde e vida dos cidadãos.

As chamadas doenças negligenciadas242, por exemplo, embora antigas,

ainda acometem mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo e ameaçam a

saúde de outros milhões.243 São moléstias que enfraquecem populações já

empobrecidas que não alcançaram condições de saneamento básico e higiene

razoáveis; caracterizando-se como negligenciadas pela evidente falta de

242 Segundo o conceito dos Médicos sem Fronteiras temos que doenças negligenciadas são “doenças tratáveis e curáveis que afetam, principalmente, populações com poucos recursos financeiros que, justamente por isso, não despertam o interesse da indústria farmacêutica. Os métodos de tratamento e diagnóstico dessas doenças são antigos e inadequados e demandam investimento em pesquisa e desenvolvimento para se tornarem mais simples e efetivos. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde classifica 17 enfermidades como doenças negligenciadas. Entre elas estão: calazar, doença do sono, dengue, esquistossomose, tarcoma, doença de Chagas, etc. A população pode contribuir com a disseminação de informações, engrossando o coro liderado por organizações não governamentais a favor do investimento em pesquisa e desenvolvimento voltados para essas doenças. Além disso, é possível engajar-se com a causa acompanhando o desenrolar de políticas públicas, pressionando agências internacionais e governos a agirem. Médicos sem Fronteiras”. Disponível em: <http://www.msf.org.br/noticias/o-assunto-e-doencas-negligenciadas#sthash.TKFqjKc5.dpuf>. Acesso em: 01 maio 2016. 243 Primeiro relatório da OMS sobre doenças tropicais negligenciadas. Disponível em: <http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/>. Acesso em: 28 abr. 2016.

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desenvolvimento terapêutico e profilático e por estarem à margem do interesse das

grandes indústrias do setor.

Em que pese o setor de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) estar em

plena expansão, algumas doenças, que ainda acometem as populações vulneráveis

de países em desenvolvimento, permanecem sem movimentação no quesito de

melhoramento terapêutico e profilático. Isso por que estas doenças se proliferam em

condições precárias de saneamento básico e são latentes em países de clima

tropical. Nota-se que ante o desinteresse da ciência, a saúde acaba por ficar à

mercê do capitalismo industrial.

As doenças negligenciadas244 são, de fato, um exemplo que demonstra

cabalmente, que, havendo desvinculação arbitrária entre os fins do desenvolvimento

científico e o direito à saúde, haverá também evidente desrespeito constitucional no

que tange ao dever estatal na garantia da saúde de forma integral e universal.

No mais, nos termos da Declaração de Viena (1993) todas as pessoas

possuem o direito de participação nos avanços da ciência e de seus benefícios,

demonstrando, mais uma vez, que os fins da ciência estão diretamente relacionados

aos interesses individuais, coletivos e sociais, especialmente quando relacionados à

qualidade de vida e saúde.245

O art. 200, inciso V246 da CF deixa expresso que constitui uma atribuição

do SUS a promoção e o incentivo do desenvolvimento científico, tecnológico e de

inovações na área de saúde. Ora, o desenvolvimento científico e a saúde

pressupõem finalidades concomitantes entre si. Desta forma, o desenvolvimento

científico é parte integrante da promoção do direito à saúde, sendo, inclusive,

fundamental para o alcance efetivo de seus fins. Como pontos de intersecção e

interdependência podemos elencar:

244 No Brasil, o Ministério da Saúde considera como doenças negligenciadas: chagas, malária, geo-helmintíase, dengue, tracoma, leishmaniose, tuberculose, esquistossomose e hanseníase. 245 Todas as pessoas têm direito a usufruir dos benefícios decorrentes do progresso científico e suas aplicações. A Conferência Mundial sobre Direitos do Homem refere que alguns progressos, nomeadamente no campo das ciências biomédicas e da vida e da tecnologia de informação, podem ter consequências potencialmente adversas na integridade, na dignidade e nos direitos humanos do indivíduo, e apela à cooperação internacional para garantir o respeito cabal dos direitos do homem e da dignidade da pessoa humana nesta área de preocupação universal. 246 “Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação”.

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i) a saúde humana, a qualidade de vida dos seres humanos e o

progresso das presentes e futuras gerações é o objeto primordial

tanto do direito à saúde como do desenvolvimento científico;

ii) o desenvolvimento científico é essencial para a promoção e o alcance

do direito à saúde no que tange a viabilização de novas técnicas

profiláticas e terapêuticas;

iii) a pesquisa tecnológica e o desenvolvimento científico deverão, nos

termos da CF, se voltar preponderantemente para a solução dos

problemas brasileiros,247 incluindo-se dentre esses problemas, a

saúde;

iv) a desvinculação do desenvolvimento científico dos fins primordiais da

promoção da saúde acarreta, consequentemente, insuficiência na

prestação integral e universal da saúde pelo Estado.

Dessa forma, há interdependência entre os direitos no que tange ao

alcance de seus próprios objetivos. Entretanto, não há como negar a possibilidade

de existência de colisão entre saúde e desenvolvimento científico. As colisões nessa

esfera originam-se, principalmente, quando evidenciado o abuso tanto de um lado

quanto do outro.

O desenvolvimento científico desenfreado pode acarretar a violação direta

da saúde e da dignidade dos seres humanos no âmbito individual, no meio

ambiente, e, ainda, em última hipótese, no caso de manipulações genéticas que

possam impor riscos às futuras gerações. Nessa hipótese, a liberdade científica

entrará diretamente em colisão com o direito à saúde dos indivíduos e da

coletividade.

247 “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. § 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional”.

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A historicidade não nos deixa mentir. Tal fato ocorreu na medicina nazista

em tempos de guerra, onde o desenvolvimento científico feriu, além do direito à

saúde, diversos direitos individuais, incluindo o massacre da dignidade humana em

prol de um avanço desenfreado. Nessas hipóteses, a dignidade da pessoa humana

e o direito à saúde individual apresentam-se como limitadores do desenvolvimento

científico, que, assim como outros direitos fundamentais, não é absoluto.

Da mesma forma, o direito à saúde não pode se sobrepor de maneira

absoluta ao desenvolvimento científico. Exemplifiquemos. É cediço que, na

atualidade, o desenvolvimento científico, especialmente no campo dos

medicamentos, é propulsionado pelo direito industrial, na figura das patentes, que

possibilitam ao inventor o monopólio temporário de suas invenções. Muito se

questionou acerca dos empecilhos que as patentes farmacêuticas causam ao

acesso dos medicamentos à população, principalmente, às mais carentes.

Contudo, embora não seja o objeto deste trabalho discutir a função das

patentes, não é correto afirmar que o instituto das patentes farmacêuticas é lesivo ao

direito à saúde, salvo na ocorrência de abusos legalmente previstos. Tal afirmação,

além de desproporcional, vai na contramão do direito à saúde, uma vez que sem o

instituto haveria evidente paralisação do desenvolvimento cientifico do setor que

perderia seus incentivos econômicos, fundamentais para o financiamento das

pesquisas de alto custo e elevado risco. A supressão de direitos patentários levaria,

a longo prazo, à impossibilidade de promoção do próprio direito a saúde.

Ocorre que o direito à propriedade, inclusive o da propriedade intelectual,

é constitucionalmente vinculado à função e ao interesse social, conforme incisos

XXII,248 XXIII249 e XXIX250 do art. 5º da CF/88. E é a função social a responsável pelo

equilíbrio socioeconômico dos monopólios. Foi com base na função social da

propriedade que foi consagrada a chamada Licença Compulsória, a qual autoriza o

248 “XXII – é garantido o direito de propriedade”. 249 “XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”. 250 “XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.”

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Estado, em casos de emergência nacional ou interesse público – entre outras

hipóteses –, declarar de ofício o licenciamento de uma patente.251

Dessa forma, evidente que na ocorrência de colisões entre os direitos ora

analisados, a proporcionalidade se apresenta como solução mais adequada,

utilizando-se da análise de adequação, necessidade e proporcionalidade

propriamente dita.

6.1 A PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS COMO FORMA DE FOMENTO

DA SAÚDE E DO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E

INOVAÇÃO

A pesquisa clínica de medicamentos é parte essencial do

desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação no que tange ao fomento e à

viabilidade de medicamentos com segurança e qualidade garantidos. Não há

dúvidas de que a pesquisa clínica, ao mesmo tempo em que promove e compõe

uma das etapas do desenvolvimento cientifico no setor dos fármacos, se mostra

fundamental para a promoção e o fomento do direito à saúde.

A saúde, como já exaustivamente tratado nos capítulos anteriores, possui

um alcance amplo que engloba desde métodos profiláticos e terapêuticos até

questões sanitárias de meio ambiente, lazer e qualidade de vida. Nesse sentido, a

garantia de comercialização e distribuição de medicamentos seguros e eficazes, em

consonância com as normas sanitárias, é reflexo do direito à saúde

constitucionalmente garantido.

251 “Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular” (Lei 9.276/96).

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Com isso, ao se falar em pesquisa clínica de medicamentos surgem dois

âmbitos de atuação: promoção da saúde coletiva – com evidente reflexo na saúde

individual; e a promoção do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação.

Nota-se, que ao mesmo tempo em que a saúde e a ciência apresentam pontos de

interdependência, a pesquisa clínica pode ser colocada no ponto de intersecção

entre os dois direitos, de forma a promover simultaneamente as duas finalidades.

Porém, ao adentrarmos no universo da pesquisa clínica é possível

observar que, quanto a saúde propriamente dita e a sua promoção, a análise deve

ser realizada sob duas dimensões: a da saúde individual e a da saúde coletiva.

A realização de pesquisas com seres humanos, especialmente em seres

humanos saudáveis – pesquisa de Fase I – importará, consequentemente, na

disposição sobre o corpo dos participantes em prol da pesquisa científica que

poderá, eventualmente, proporcionar a promoção da saúde coletiva.

Adentraremos, portanto, em um âmbito delicado, no qual haverá a

disposição do corpo do participante em prol dos avanços da ciência com a finalidade

de promoção da saúde coletiva. Porém, vale lembrar que o direito à saúde, como

bem explorado no Capítulo quatro do presente trabalho, consiste em um direito

fundamental multifacetário que engloba, além da esfera individual, as esferas

coletivas e de desenvolvimento. Neste sentido, a disposição sobre o próprio corpo

atuará diretamente na esfera individual da saúde do participante, o que, por

conseguinte, importará no fomento da esfera coletiva e de desenvolvimento.

A pesquisa clínica de medicamentos tem como finalidade primordial a

inovação de medicamentos com segurança, qualidade e eficácia asseguradas.

Evidentemente o fomento à inovação nesse setor implica na promoção da saúde

coletiva, uma vez que novas soluções terapêuticas poderão ser disponibilizadas,

proporcionando o tratamento e a prevenção de doenças e de seus sintomas.

A conclusão a que se chega é que sem a realização das pesquisas

clínicas de medicamentos, o direito à saúde seria integralmente prejudicado em suas

três esferas. Isto porque sem o fomento à inovação de medicamentos o direito à

saúde, em seu viés de desenvolvimento, restaria inerte de progresso no setor

farmacêutico, o que ocasionaria, por sua vez, um déficit no progresso de novas

terapias, influenciando na saúde coletiva como um todo e refletindo, também, na

saúde individual.

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Dessa forma, a disposição sobre o próprio corpo, que ocorre para que a

pesquisa clínica seja efetivada, proporciona, por consequência, o fomento e a

manutenção do direito à saúde em suas três vertentes, assegurando tanto a

dimensão objetiva quanto a subjetiva.

É nesse cenário que se inicia a Parte III do presente trabalho, com a

premissa fundamental de que a pesquisa clínica de medicamentos, principalmente

as de fase I – indivíduos sadios – necessitará da disposição do corpo humano. Ou

seja, o participante, no exercício da autonomia da vontade, colocará à disposição do

pesquisador o seu corpo para que sejam analisados os efeitos de uma substância,

ainda não testada no organismo humano. Por esse motivo, passaremos a analisar

se a disposição sobre o próprio é – prima facie – no mundo jurídico, um direito

fundamental individual, baseado na autonomia da vontade.

A pesquisa científica cada vez mais evolui e apresenta ao mundo jurídico

novos desafios. Muitos são os direitos fundamentais envolvidos, ao mesmo tempo

em que há grande fragilidade na fiscalização e no cumprimento dos preceitos éticos

e regulamentares. Por esse motivo, a ética e o direito se fazem tão importantes para

a interpretação e a concessão de diretrizes quando o assunto é a vida humana e

suas vertentes.

Iniciamos a próxima parte do presente trabalho com a premissa descrita

no artigo publicado em Bulletin of the World Health Organization:

Se o sistema de pesquisa em saúde de um país pode ser considerado o ‘cérebro’ do seu sistema de saúde, então a ética constitui a sua ‘consciência’. É imperativo que sistemas de saúde operem segundo as mais altas aspirações éticas e de justiça distributiva.252

252 BUTTHA, A. 2002. Bulletin of the World Health Organization. CNPq/PRE/AEI 2002. Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. Censo 2002. Disponível em: <http://www.who.int/bulletin/en/>. Acesso em: 10 out. 2016.

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PARTE III – A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO - NOS ESTUDOS CLÍNICOS DE MEDICAMENTOS - COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

Superados os aspectos técnicos e legais relacionados à pesquisa clínica

de medicamentos, amplamente discutidos nas Parte I e II, é possível afirmar que a

submissão de seres humanos a pesquisas científicas implica (especificamente nas

pesquisas de fase I – com indivíduos saudáveis) na disposição sobre o próprio

corpo, com eventual comprometimento de um estado de saúde atual para um estado

de saúde supostamente incerto, que pode ou não resultar na diminuição da

integridade física anterior.

Não se pode perder de vista que os possíveis efeitos e resultados no

organismo humano são parcialmente previsíveis do ponto de vista científico, uma

vez que diversos estudos com a substância teste são previamente realizados,

contando, inclusive, com testes em organismos vivos e em diferentes espécies

animais. Os testes pré-clínicos são realizados nos termos da normativa ética e

administrativa vigente como forma de mitigar riscos de toxicidade nos seres

humanos e de garantir uma margem de segurança. Entretanto, é impossível prever

com exatidão as possíveis reações do organismo humano, pois as reações

biológicas são relativas e individuais, podendo desencadear eventos não previstos

e/ou resultados desconhecidos pelos pesquisadores.

Evidentemente, ao verificar o cenário onde se realiza a pesquisa clínica

de medicamento de Fase I, é possível afirmar que há, por parte do participante, a

colocação do seu corpo à disposição dos pesquisadores, os quais observarão, por

meio de exames e testes, os efeitos de uma substância nova com potencial

terapêutico. Por óbvio, diante de todo arcabouço regulatório e ético já apresentado

anteriormente, o ato de disposição do corpo e a sua manipulação pelos

pesquisadores são limitados por exigências rígidas de segurança que visam a

manutenção da saúde, integridade física e, principalmente, da vida dos

participantes.

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Verifica-se, assim, que o ato de dispor do corpo é uma decisão única e

exclusiva dos participantes, os quais após serem informados e esclarecidos sobre os

procedimentos e seus riscos, consentirão, através de sua liberdade individual e do

exercício da autonomia da vontade, a disposição sobre o seu corpo. Por força da

autonomia da vontade, exercida mediante a assinatura do Termo de Consentimento

Livre e Esclarecido, o indivíduo colocará o seu corpo à disposição dos estudos

científicos, que promoverá, por via indireta, a saúde coletiva e o desenvolvimento

nacional científico.

Nasce, portanto, evidente colisão entre direitos fundamentais, uma vez

que a disposição sobre o corpo poderá ensejar uma diminuição da saúde e da

integridade física – direitos fundamentais do participante –, porém, que será exercida

com bases no direito à liberdade, no viés da autonomia da vontade e do livre

desenvolvimento da personalidade, também considerados direitos fundamentais do

participante.

É nesse contexto que a Parte III do presente trabalho se desenvolve a fim

de analisar os aspectos constitucionais envolvidos no ato de disposição sobre o

próprio corpo para pesquisas clínicas de medicamentos, verificando, ainda, se tal ato

poderá ser considerado um direito fundamental oriundo da colisão dos direitos acima

suscitados. A Parte III buscará, portanto, analisar, em um primeiro momento, a

localização do corpo humano no ordenamento jurídico, para que seja possível a

construção jurídica do direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo,

encontrando, para tanto, suas fontes, seus fundamentos e seus limites

constitucionais.

Vale lembrar que o objeto do presente trabalho se restringe ao âmbito da

pesquisa clínica de medicamentos e que toda a construção racional dos

fundamentos jurídicos, inclusive a realização da ponderação de direitos, baseou-se

nessa realidade. Desta forma, toda e qualquer conclusão deverá ser interpretada

sob a ótica aqui proposta, sem qualquer caráter extensivo, por argumentação ou por

analogia, a outros casos que não os estudos clínicos de medicamentos.

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CAPÍTULO 7 – O CORPO HUMANO COMO ELEMENTO INTEGRANTE DO DIREITO À VIDA, À SAÚDE, À INTEGRIDADE FÍSICA E AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

O vínculo entre a existência dos indivíduos – seus atos – e o corpo

humano é uma afirmação intuitiva, além de óbvia, por configurar, prima facie, um

liame indissociável. A existência humana ocorre no momento presente através da

expressão material do corpo. A vida humana pressupõe, portanto, o corpo, ou seja,

aquele que a materializa e é capaz de promover a interação e a modificação da

natureza.

Na concepção hegeliana, por exemplo, o corpo configura a matéria

orgânica da consciência capaz de interagir com a matéria inorgânica através do

trabalho. Nesse sentido, o corpo é representado como o elemento biológico do ser

humano, composto por seus diversos elementos físicos que constroem, quando em

contato com a parte inorgânica – a parte externa –, uma relação existencial.253

Ou ainda como bem salienta Luísa Neto ao relembrar os ensinamentos de

Aristóteles, Descartes, Leibniz, Kant e Sartre sobre o corpo humano:

Este corpo que foi para ARISTÓTELES uma realidade limitada por uma superfície, para DESCARTES em última análise um espaço cheio, para LEIBNIZ um conjunto ou soma de mónadas, para KANT uma realidade separável em fenomênica e dinâmica, e que J.P SARTRE definia como “o que o meu corpo é para mim contrariamente em relação à objectividade e alterabilidade que tem qualquer corpo enquanto tal.254

253 Nesse sentido, Hegel afirma “Um objeto tal, que tem em si o processo na simplicidade do conceito, é o orgânico. É ele essa absoluta fluidez que se dissolve a determinidade através da qual seria somente para outro. A coisa inorgânica tem a determinidade como sua essência, e por esse motivo só junto com outra coisa constitui a plenitude dos momentos do conceito; e portanto se perde ao entrar em movimento. Ao contrário, na essência orgânica todas as determinidades, mediante as quais está aberta para o outro, estão reunidas sob a unidade orgânica simples. Nenhuma delas, que se relacione livremente com outro, emerge como essencial; e por isso em sua relação mesma, o orgânico se conserva” (HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; USF, 2003. p. 188-189). 254 NETO, Luísa. O direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo: relevância da vontade na configuração do seu regime. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 445.

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Há muitas discussões filosóficas a respeito da distinção do corpo e da

alma255 como também da pessoa e do corpo. Por este motivo, a conceituação de

corpo humano pode parecer, em um primeiro momento, complexa. Todavia, sem

adentrarmos nessas discussões, o conceito de corpo humano apresentado por

Carlos Bittar nos parece adequado para o presente trabalho. O corpo humano

poderá ser definido como “o instrumento pelo qual a pessoa realiza a sua missão no

mundo fático”256 e que configura “o suporte físico ou substrato material da pessoa

singular”257.

Verifica-se uma distinção entre pessoa e corpo humano, sendo este

último a materialização do primeiro. No caso, o corpo humano poderia ser

enquadrado como um elemento sui generis de direito, disposto implicitamente em

uma vasta gama de dispositivos do ordenamento jurídico, integrando, inclusive, o

núcleo essencial de diversos direitos fundamentais. Neste sentido, pode-se citar a

essencialidade do corpo humano no núcleo do direito à vida, à saúde e à integridade

física, podendo configurar, em alguns casos, um pressuposto de existência.

O corpo humano é condição sine qua non para o desenvolvimento da

vida, ressalvada a vida do embrião.258 A vida é protegida constitucionalmente como

direito fundamental no art. 5º, caput da CF259. De ampla conceituação na doutrina, o

direito à vida possui tanto sua acepção negativa (de proteção do ser humano contra

a morte) como também a acepção positiva (de promoção e garantia da vida digna).

O princípio da dignidade humana positivado pelo art. 1º, caput da CF

abrange de forma sistemática todo o arcabouço constitucional que garante o gozo

da vida digna, incluindo para sua eficácia o direito à liberdade, os direitos sociais,

como saúde, educação, alimentação, o direito à integridade física e mental

relacionados ao corpo humano etc.

255 As discussões que versam sobre o tema remontam a Aristóteles, Platão passando por Locke, Freud, Lacan etc. 256 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 82. 257 Ibid., p. 108. 258 Nesse caso, o corpo humano está em desenvolvimento, porém, não deixa de ser considerado como o corpo, ressalvadas suas peculiaridades. 259 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

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Nas palavras de Paulo Gonet Branco e Gilmar Mendes:

[...] proclamar o direito à vida responde a uma exigência que é prévia ao ordenamento jurídico, inspirando-o e justificando-o. Trata-se de um valor supremo na ordem constitucional, que orienta, informa e dá sentido último a todos os demais direitos fundamentais.260

O valor supremo acima mencionado é concretizado no mundo fático pela

expressão do corpo humano.

Observa-se a mesma relação de coexistência verificada entre direito à

vida e corpo humano, quando considerado o direito à saúde. A saúde e suas

diversas facetas – individual, coletiva e de desenvolvimento261 – pressupõe a

existência do corpo humano. Quando considerada a promoção, a garantia ou a

proteção da saúde, há, necessariamente, uma relação direta ou indireta com o corpo

humano no aspecto físico, psíquico ou mental. Dessa forma, o corpo humano passa

a ser um elemento integrante do direito à saúde, configurando, também nesse caso,

um pressuposto de existência deste direito.

Neste raciocínio, considerando os seres humanos em relação a vida,

saúde e corpo é possível afirmar que: sem vida, não há saúde; sem saúde coloca-se

em risco a vida; porém, sem o corpo não há saúde e, tampouco, vida. A recíproca,

entretanto, não é verdadeira, pois mesmo sem vida e sem a saúde, o corpo pode

ainda existir bem como sua proteção jurídica post mortem262.

Diante desta interdependência existencial é possível sustentar que o

corpo é um objeto de direito sui generis, ou seja, uma realidade biológica em si

mesma, que não pode ser confundida com a pessoa sob pena de recair em um

reducionismo não só conceitual, como jurídico. A diferenciação mostra-se clara: a

pessoa consiste no ser autônomo, desde o nascimento com vida – detentor de

direitos e de obrigações perante o ordenamento jurídico e a sociedade civil, até a

sua morte263, enquanto o corpo é a sua expressão física, concreta e externa.

260 BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 256. 261 Conceito apresentado no Capítulo 4. 262 A Lei 9.434/1997, por exemplo, trata sobre a doação de órgãos também após a morte. 263 Segundo o art. 6º do Código Civil brasileiro, a pessoa natural deixa de existir com a morte. “Art. 6º. A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”.

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Diogo Costa Gonçalves esclarece que pessoa é “qualquer homem que

exista independente do seu estado, circunstância ou aparência e que só deixará de

ser quando pura e simplesmente deixar de ser”264. A qualidade de pessoa é inerente

ao nascimento com vida e, como isso, cada pessoa será dotada de individualidade

como sendo um ser “único, autônomo, dotado de características próprias, e que a

diferenciará de outras pessoas, como ela é”265.

Em um primeiro momento pode causar certo desconforto a afirmação de

que o corpo humano é um objeto de direito. Tal insegurança conceitual é oriunda de

toda evolução jurídica e social que, após de diversas atrocidades, concretizou nos

pilares do Estado de Direito o princípio da dignidade da pessoa humana como forma

de proteger a humanidade contra as mais perversas afrontas aos seres humanos,

tais como: torturas, escravidão, campos de concentração, experimentações em

seres humanos desmedidas até a utilização do corpo como instrumento de

pagamento e objeto de cumprimento de obrigações.

Entretanto, superadas as conquistas históricas, a dignidade da pessoa

humana se consolidou para garantir a impossibilidade de “coisificação” do ser

humano e de seu corpo. E, por este motivo, unificar o corpo à pessoa pode

configurar, na contramão, uma afronta à própria dignidade individual, uma vez que a

pessoa jamais poderá ser objeto de disposição, porém, o corpo, quando colocado

como objeto de direito, talvez o possa ser, desde que fundado nos pilares da

liberdade.

Como bem afirma Luísa Neto, “de facto, e no fundo não é o corpo que

está protegido e fora do comércio, mas a pessoa, abstração jurídica definida pelos

atributos, eles mesmos abstratos que se estima constituíres a trama da dignidade

humana”266.

264 GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e Direitos da Personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. p. 43. 265 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 100. 266 NETO, L. O direito fundamental…, 2004, p. 427.

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Com isso, conforme já preceituava o filósofo Merleau-Ponty, o ser

humano é o dono do seu corpo: “Eu o tenho numa posse indivisa e conheço a

posição de cada um dos meus membros por um esquema corporal em que eles

estão todos envolvidos”267. Nesse mesmo sentido, René Dekkers268 afirma que o

corpo humano “não se confunde com o ser humano: é a sua carapaça”.

Ao considerar, portanto, o corpo humano como um objeto de direito sui

generis, necessário é localizá-lo no ordenamento jurídico. Como bem assevera

Valentino Capelo de Sousa é necessário questionar o conteúdo juscivilístico bem

como constitucional do corpo humano:

Qual, porém, o conteúdo do bem juscivilístico do corpo humano? É, antes de mais, como a vida, uma realidade biológica que o direito reconhece e protege em si mesma. Assim, através daquele bem jurídico são protegidos não apenas o conjunto corporal organizado, mas inclusivamente os múltiplos elementos anatômicos que integram a constituição físico-somática e o equipamento psíquico do homem, bem como as relações fisiológicas decorrentes da pertença de cada um desses elementos a estruturas e funções intermédias e ao conjunto do corpo, nomeadamente quando se traduzem num estado de saúde físico-psíquica.269

No atual ordenamento jurídico brasileiro, por não haver menção expressa

a respeito, a proteção do corpo humano se dá de forma implícita, A figura da

integridade física como direito fundamental corrobora para uma interpretação

sistemática que permite atribuir ao corpo humano proteção de sua integralidade e

incolumidade física.

Walter Moraes leciona que a proteção do corpo humano se dá, no atual

ordenamento jurídico, na forma de direito somático, o qual inclui a proteção de suas

partes e de sua funcionalidade. Porém, salienta que “o ordenamento brasileiro não

contém uma norma geral de direito ao corpo”, complementando que a “disciplina

desse direito se encontra espalhada pela legislação”270.

267 MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. p. 114. 268 DEKKERS, René. Le corps humain et le droit. Journées Belges, Tome XXVI, 1975, Dalloz, p.1. 269 SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995. p. 133. 270 MORAES, Walter. Direito ao corpo. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, n. 2. Belo Horizonte: Nova Fase, 1996, p. 192.

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A proteção conferida à integridade física, embora não possa ser

confundida com o corpo humano enquanto objeto de direito sui generis, tem amparo

constitucional e infraconstitucional, que pode ser definida nas palavras de Bittar:

De grande expressão para a pessoa é também o direito à integridade física, pelo qual se protege a incolumidade do corpo e da mente. Consiste em manter-se a higidez física e a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-la, como direito oponível a todos.271

Na esfera constitucional, por exemplo, há diversas referências diretas e

indiretas ao direito à integridade física: o direito à vida (art. 5º, caput); o direito à

saúde (art. 6º, caput); a vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante

(art. 5º, III); a vedação à pena de morte, salvo nos casos de guerra declarada; as

penas de caráter perpétuo, cruéis e os trabalhos forçados (art. 5º, XLVII); o direito à

integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX), todos constituem direitos que

guardam em si a proteção da integridade física e, consequentemente, a proteção do

corpo humano.

O direito penal traz a proteção da vida e da integridade física ao definir os

crimes de homicídio, lesão corporal, maus tratos (arts. 121 a 136). A Lei 9.434/1997,

que disciplina a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de

tratamento e transplantes, também remete à proteção do corpo humano. E o já

mencionado Código Civil, por sua vez, descreve as hipóteses de disposição do

corpo nos arts. 13 e 14.

No que tange à pesquisa clínica de medicamentos, todas as resoluções

nacionais e os tratados internacionais272 de conduta ética e normativa estabelecem

critérios rígidos sobre a proteção do corpo e da integridade física dos participantes,

corroborando, ainda mais, com a tutela do corpo humano e sua integridade.

271 BITTAR. Os direitos da Personalidade, 2001, p. 72. 272 Legislação amplamente discutida na Parte II deste trabalho.

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Conforme é possível extrair dos dispositivos mencionados, o

ordenamento jurídico e os tratados internacionais de direitos humanos trazem a

proteção e o resguardo da integridade física e consequentemente a proteção do

corpo humano, visando, nas palavras de Pontes de Miranda, “a incolumidade

anatômica, o direito de não ser contagiado, envenenado ou ter cessado seu

movimento”273 assim como a proteção da vida e a primazia da dignidade humana.

Embora exista a proteção já atribuída ao corpo na figura da integridade

física, o corpo humano é, conforme já mencionado, um objeto de direito sui generis,

que compõe os bens “individualíssimos” das pessoas e constitui a expressão de

individualidade e da personalidade de cada ser humano durante a vida. Tem sua

gênese na dignidade da pessoa humana como expressão do livre desenvolvimento

da personalidade.

Sua natureza sui generis deriva dos elementos peculiares que o

compõem e que o caracterizam como um sistema complexo. Nas palavras de

Heloisa Helena Barboza, o corpo humano traz três dimensões distintas e que

merecem apreço: (i) a estável individual: relacionada com a identificação física do

indivíduo; (ii) coletiva: relacionada à identificação social do indivíduo; (iii) dinâmica:

aquela que está em constante transformação. O corpo, nesse caso, configura um

processo complexo que expressa a materialidade da identidade de cada ser humano

e traz em si a personalidade e a subjetividade de cada um.274

Esse processo complexo – o corpo humano –, integra, em conjunto com

os demais direitos da personalidade, como nome, imagem, honra, sigilo, intimidade,

intelectualidade, etc.275, o rol “mínimo essencial ao pleno desenvolvimento da

personalidade de todos os seres humanos”276. É, ainda, elemento inseparável do

273 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000. p. 46. v. VII 274 BARBOZA, Heloisa Helena. Disposição do próprio corpo em face da bioética: o caso dos transexuais, In: GOZZO, Débora; LIGIERA, Wilson Ricardo (Orgs). Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 133. 275 Nesse sentido, “Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos” (BITTAR. Os direitos da Personalidade, 2001, p. 01). 276 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito da Personalidade: aspectos essenciais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 94.

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direito ao livre desenvolvimento da personalidade277, capaz de permitir ao ser

humano a concretização, de forma livre, da sua individualidade. Fazendo com que

“cada ser humano seja dotado de uma individualidade biológica própria que lhe

confere uma dimensão física e psíquica exclusiva, única, irrepetível, distinta de todos

os demais”278.

Embora o corpo humano seja parte integrante dos direitos da

personalidade, o rol enunciativo do Capítulo II – Dos direitos da Personalidade do

Código Civil nada dispõe a esse respeito, salvo sobre as hipóteses de disposição do

corpo (que serão analisadas mais à frente) e estão dispostas nos arts. 13 e 14,279

que, por si só, já demonstram que o corpo humano integra o rol dos direitos da

personalidade.

É possível concluir, portanto, que o corpo humano é um objeto de direito

sui generis, que, além de compor o núcleo essencial do direito à vida, à saúde e à

integridade física, o que lhe concede natureza constitucional de direito fundamental,

é, por sua vez, integrante dos direitos da personalidade, direitos estes definidos por

Adriano Marteleto Godinho como:

277 O direito ao livre desenvolvimento da personalidade é uma contribuição do direito alemão definido como “Sendo um direito do indivíduo desenvolver sua personalidade de forma livre, sem a intervenção de terceiros, agindo ou deixando de agir de acordo com sua convicção” (MIRANDA, Felipe Arady. O direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. In: Revista do Instituto do Direito Brasileiro. Disponível em: <http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2013_10_11175_11211.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2016). 278 OTERO, Paulo. Pessoa humana e Constituição: contributo para uma concepção personalista do direito constitucional. In: CAMPOS, Diogo Leite de; CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu (Coords). Pessoa Humana e Direito. São Paulo: Almedina, 2009. p. 362. 279 “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”.

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Os direitos da personalidade são atributos que decorrem da dignidade humana e preenchem o sentido da personalidade das pessoas naturais. Há, contudo, que se estabelecer um importante recorte: apenas podem ser considerados direitos da personalidade aqueles que digam respeito à essência das pessoas, isto é, os que tocam diretamente a personalidade, tendo o Código Civil brasileiro dedicado seus arts. 11 a 21 à disciplina dessa categoria, ainda que aqueles direitos expressamente referidos neste diploma encerrem um rol meramente enunciativo.280

Ao considerar o corpo humano como um direito da personalidade,

derivado da dignidade humana, serão a ele atribuídas as seguintes características:

inatos (inerentes à condição humana), oponíveis erga omnes (contra o estado e

contra terceiros); imprescritíveis, vitalícios, extrapatrimoniais, atípicos (não disposto

expressamente na legislação como um direito), intransmissíveis e irrenunciáveis.281

É importante ressaltar que o corpo humano como objeto de direito,

embora seja integrante dos direitos da personalidade, possui, também, devido a sua

fundamentalidade para a concretização dos direitos fundamentais constitucionais,

natureza de direito fundamental, demonstrando, mais uma vez, sua natureza sui

generis.

Dessa forma, superada a delimitação do corpo humano no mundo jurídico

questiona-se se o indivíduo, detentor de seu corpo, é, também, dotado do direito de

colocá-lo à disposição dos pesquisadores para a realização das pesquisas clínicas

de medicamentos, o que passaremos a analisar no próximo capítulo.

280 GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao próprio corpo: direitos da personalidade e os atos de limitação voluntária. Curitiba: Juruá, 2015. p. 411. 281 GODINHO. Direito ao próprio corpo, 2015, p. 412.

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CAPÍTULO 8 – DA DISPOSIÇÃO DO CORPO HUMANO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Conforme abordado no capítulo anterior, o corpo humano é um objeto de

direito sui generis de titularidade da pessoa nele materializado e que traz consigo a

manifestação da individualidade de cada indivíduo. Por esse motivo, o exercício da

autonomia da vontade de forma plena é essencial para a manifestação genuína da

dignidade da pessoa humana.

Através do corpo humano e das expressões, alterações e modificações

nele realizadas ao longo da vida, a pessoa é capaz de se expressar no mundo de

uma forma única, livre e inerente à sua natureza. Desta forma, é fundamental que

cada indivíduo tenha a liberdade de estabelecer uma relação livre com o seu próprio

corpo.

Ao entendermos fundamental o exercício de tal liberdade, é evidente que

surja o questionamento sobre a possibilidade de disposição sobre o próprio corpo.

Será que no exercício pleno da autonomia da vontade poderá o indivíduo dispor de

seu corpo e executar ações que entenda pertinentes, como tatuagens,

esterilizações, sadomasoquismo e prostituição? Ou ainda será que poderá dispor o

seu corpo a terceiros, como é o caso da doação de órgãos e das pesquisas clínicas

de medicamentos?

De fato, a ideia de indisponibilidade do corpo vem sendo mitigada à

medida que a sociedade e o direito evoluem. O ordenamento jurídico prevê algumas

hipóteses de disposição do corpo, mediante o exercício da autonomia da vontade.

Além das previsões legais, há, consagrado na sociedade, algumas práticas que

configuram evidente disposição do corpo e que não são coibidas pelo ordenamento

vigente. Não se pretende, por óbvio, esgotar o tema e definir uma posição

consolidada para todas as hipóteses acima mencionadas, porque o tema é amplo,

complexo e controverso.

O Código Civil brasileiro prevê, nos arts. 13 e 14, que os atos de

disposição do corpo são permitidos para depois da morte e até mesmo em vida

desde que não importem na diminuição permanente da integridade física ou não

forem contrários aos bons costumes, ressalvado o transplante. In verbis:

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Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

A doação e o transplante de órgãos, regulamentados pela Lei 9.434/1997,

é exatamente a exceção disposta no parágrafo único do mencionado art. 13.

Referida lei teve como objetivo principal atender ao mandamento constitucional

contido no art. 199, § 4º da CF, que preleciona:

§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

A lei traz a autorização legal para a disposição de partes do corpo de

determinado indivíduo – vivo ou morto – para fins de transplante ou tratamento de

uma terceira pessoa. Com fins amplamente altruísticos, o transplante de órgãos

consiste na ablação ou a retirada de um órgão de um determinado organismo

humano para a recolocação em outro organismo com a finalidade de que ele

desempenhe as funções anteriormente desempenhadas no corpo anterior e que,

com isso, seja possível o restabelecimento ou a melhora da saúde de outra

pessoa.282

282 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 213.

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O transplante possui diversas espécies, podendo ser: (i) autotransplante:

quando há deslocamento de órgãos ou tecidos de uma parte do corpo para outras

partes do mesmo corpo; (ii) isotransplante: quando o transplante é realizado entre

pessoas geneticamente semelhantes, como irmãos gêmeos univitelinos; (iii)

alotransplante: realizado entre pessoas do mesmo gênero, com caracteres genéticos

diversos, entre pessoas vivas ou pela retirada de órgãos post mortem; (iv)

xenotransplante: realizado entre seres de espécies diferentes, ou seja, entre animais

e humanos.283

A mencionada lei não tratou de substâncias regeneráveis, tais como,

sangue284, esperma e óvulo285. Entretanto, a doação de sangue, esperma e óvulos

não deixa de possuir a mesma natureza de disposição do corpo inerente à doação

de órgãos, porém, sua tratativa é diferenciada tendo em vista o menor grau de riscos

envolvidos nos procedimentos de coleta, transplante e nos aspectos de

regeneração.

Nota-se, portanto, que no caso da doação de órgãos, a disponibilidade do

corpo está sujeita à livre manifestação de vontade do doador, que, através do

consentimento livre e esclarecido, dispõe de partes do seu corpo para fins

meramente altruísticos de preservação da vida e da saúde de outrem, mesmo que

isso importe, em alguns casos, na redução permanentemente da integridade física.

A doação de órgão é legítima do ponto de vista legal. Embora haja

redução, mesmo que permanente da integridade física do doador, há a preocupação

de que sua saúde e sua vida permaneçam resguardadas. Esse ato, mesmo que

responsável pelo “enfraquecimento” do estado anterior de saúde do doador, tem por

finalidade a saúde e preservação da vida de outrem. Nesse caso, observa-se uma

ponderação de valores muito similar ao cenário das pesquisas clínicas de

medicamentos.

283 BANDEIRA, Ana Claudia Pirajá. Consentimento no transplante de órgãos à luz da Lei 9.434/97 com alterações posteriores. Curitiba: Juruá, 2001. p. 33-34. 284 A Lei 10.205/2001 é a responsável pela regulamentação da coleta, processamento, estocagem, distribuição e a aplicação do sangue e de seus componentes e derivados. 285 Lei 9.434/97. “Art. 1º. A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo”.

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A doação de órgãos e sua legitimidade têm bases fixas na autonomia da

vontade, sendo o consentimento livre e esclarecido do doador pressuposto de

existência e validade. O ato de doação de órgãos é revogável antes da

concretização final do transplante, sendo a manifestação de vontade do indivíduo e

o seu esclarecimento essenciais. Além disso, só poderá ser realizada uma doação

de órgãos quando se tratar de

[...] de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.286

A disposição do corpo para fins de transplante, além de um direito do

doador, constitui, também, um ato de solidariedade, que acaba por fomentar,

indiretamente, a saúde pública do país, pois, traz consigo a intenção de proteger a

vida, a saúde e a dignidade de outros cidadãos. Há grande similaridade com o

cenário das pesquisas clínicas de medicamentos, salvo por um ponto importante:

ainda não há, para os estudos clínicos, legislação sobre o tema.

Por esse motivo, conforme se verá mais adiante, o nascimento do direito

à disposição do corpo para estudos clínicos se dará por analogia e pela ponderação

dos direitos fundamentais envolvidos, entretanto, é importante verificar que tanto a

doação de órgãos quanto a disposição do corpo para pesquisa clínica, ressalvadas

as peculiaridades, possuem fundamentos na autonomia da vontade e no princípio da

solidariedade.

Além do doação de órgãos existem outros casos, não rechaçados pelo

ordenamento jurídico, em que o indivíduo, no exercício da sua autonomia da

vontade, dispõe do próprio corpo. A esterilização, por exemplo, também pode ser

mencionada como uma forma de disposição sobre o corpo, uma vez que é uma

medida que compromete a integridade física, reduzindo uma de suas

funcionalidades. A escolha pela esterilização é um ato consentido baseado no livre

286 § 3º do art. 9º da Lei 9.434/1997.

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desenvolvimento da personalidade e de autodeterminação de vida individual. Nas

palavras de Wanderby Panasco, a esterilização consiste em:

[...] realizar, através de técnicas especiais, cirúrgicas ou não, no homem ou na mulher, o impedimento do trânsito do espermatozóide e do óvulo e até suprimir a espermatogênese e a ovogênese, com o objetivo de não ser permitida a fecundação.287

A Lei 9.263/1996, que trata sobre planejamento familiar e regulamenta o §

7º do art. 226288 da CF, determinou, em seu art. 10º, as circunstâncias para a

admissão da esterilização voluntária.

Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:

I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;

II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.

O ato de decidir livremente sobre a esterilização consiste, desde que

fundado no livre desenvolvimento da vida e da personalidade, em um ato legítimo de

disposição sobre o próprio corpo.

Neste mesmo sentido, a prática da chamada “barriga de aluguel”, que,

embora ainda ignorada pela legislação vigente, sendo objeto de regulamentação

pela Resolução 2.013/13 do CFM e objeto de discussão nos Projetos de Lei

1.184/03 e 2.855/97, consiste em uma prática amplamente realizada no Brasil. A

referida resolução exige a gratuidade do ato, entretanto, há alguns relatos de que tal

prática é realizada de forma onerosa. Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa

287 PANASCO, Wanderby Lacerda. A responsabilidade civil, penal e ética dos médicos. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 253. 288 “§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

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descrevem casos em que mulheres colocaram seus úteros à locação em troca de

valores que chegam a até dez mil dólares289.

Existem muitos exemplos de práticas que podem configurar uma

disposição individual sobre o próprio corpo, cada qual com sua peculiaridade que

deve ser analisada de acordo com o caso concreto. Além dos exemplos aqui

citados, vale apenas lembrar, sem adentrar no mérito, dos atos de disposição

relacionados às cirurgias de alteração de sexo, negativas de tratamentos médicos,

prostituição e sadomasoquismo, tatuagens, colocação de piercings, atividades de

risco e até o consumo de drogas.

Diversos são os atos que remetem à disposição e à utilização do corpo

humano. Entretanto, o presente trabalho busca analisar especificamente os

subsídios inerentes à disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental

para a realização de pesquisas clínicas de medicamentos, que, diante de fim

altruístico, possuí íntima relação com o fomento da saúde coletiva.

O tema traz certa complexidade por não ser objeto de regulamentação

legislativa até o momento, sendo inteiramente regulamentado pelas resoluções

administrativas do CNS, com amparo nos tratados internacionais. Dessa forma,

tendo em vista a falta de regulamentação é possível afirmar que a pesquisa clínica

de medicamentos não estaria em consonância com § 4º do art. 199 da CF, que

exige legislação expressa para regulamentar as condições e os requisitos que

facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de

transplante e de pesquisa.

Entretanto, pretende-se averiguar por meio de uma análise sistemática do

ordenamento jurídico constitucional, com base na analogia e na ponderação de

direitos fundamentais os fundamentos que consolidam a disposição sobre o próprio

corpo para pesquisas clínicas de medicamentos, buscando, por fim, verificar a sua

natureza jurídica e a existência de um status de direito fundamental.

289 BERLINGUER; GARRAFA. O Mercado humano, 2001, p. 70.

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8.1 O ATO DE DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO PARA ESTUDOS

CLÍNICOS VERSUS A RENÚNCIA DE DIREITOS

A possibilidade de renúncia aos direitos fundamentais representa um

tema muito discutido na doutrina constitucional. José Afonso da Silva, ao atribuir

características aos direitos fundamentais, por exemplo, leciona que os direitos

fundamentais são, por natureza, inalienáveis, indisponíveis e irrenunciáveis.290

Entretanto, a ideia da irrenunciabilidade vem sendo mitigada e as características

outrora pregadas aos direitos fundamentais, colocadas em discussão. É possível

verificar uma maior flexibilidade quando o assunto é a renúncia aos direitos

fundamentais.

No que tange à definição de renúncia, Jorge Reis Novais afirma que a

renúncia consiste em:

[...] enfraquecimento voluntário de uma posição jurídica individual protegida por uma norma de direito fundamental, determinado por uma declaração de vontade do titular que o vinculou juridicamente a aceitar o correspondente alargamento da margem de actuação da entidade pública [privada] face às prestações que decorriam daquela posição.291

Nota-se que, diferentemente do direito privado, no qual a renúncia é tida

como um “acto voluntário pela qual uma pessoa perde um direito de que é titular”292,

na esfera dos direitos fundamentais, segundo o conceito de Novais, a renúncia

implicaria tão somente em um enfraquecimento temporário de uma posição jurídica

de vantagem, perante o estado ou terceiro, de acordo com a autonomia individual.293

290 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 181. 291 NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 285. v. 1 292 PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. Coimbra: Almedina, 1995. P. 848. 293 A conceituação da renúncia a direitos fundamentais mostra-se de difícil delimitação não sendo possível encontrar um conceito fechado e unânime. Por esse motivo, não será objeto do presente trabalho adentrar neste cunho da discussão, adotando-se, a princípio, a conceituação acima exposta apenas para fins de diferenciação do objeto central de estudo: a disposição sobre o próprio corpo.

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Luísa Neto afirma que a renúncia consiste em um “acto unilateral com o

qual o titular de uma posição de poder dele se despoja voluntariamente”294. Gomes

Canotilho, por sua vez, no que concerne à renúncia a direitos fundamentais, leciona

que não se trata de renúncia a direito propriamente dita, mas sim de “limitação

voluntária ao exercício de alguns direitos”, devendo ser respeitado, outrossim, o

núcleo substancial do direito material.295

Nesse mesmo sentido, Jorge Miranda defende que a renúncia a direitos

fundamentais deve ser entendida como o não exercício temporário e pontual de um

determinado direito e afirma que “ao não invocar o seu direito fundamental perante

as entidades públicas, nomeadamente, comprometendo-se, em geral, a não exercer,

temporariamente ou pontualmente, algumas pretensões, faculdade ou poderes

incorporados no seu direito”296.

Dessa forma, a renúncia poderá ser entendida como um exercício do

próprio direito fundamental, apresentando-se como uma forma de não exercício

temporário desse direito com evidente enfraquecimento da posição de vantagem

inerente aos direitos fundamentais, porém, sem que o direito seja, de fato,

aniquilado.

Segundo a visão dworkiana, os direitos fundamentais dotaram os

indivíduos de trunfos contra o Estado e contra a maioria.

Direitos individuais são trunfos políticos que os indivíduos detêm. Os indivíduos têm direitos quando, por alguma razão, um objetivo comum não configura uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que, enquanto indivíduos, desejam ter ou fazer, ou quando não há uma justificativa suficiente para lhes impor alguma perda ou dano.297

294 NETO, Luísa. O direito fundamental…, 2004, p. 372. 295 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e a teoria da constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2006. p. 464. 296 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 1998, p. 385. 297 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, 2002, p. XV.

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Jorge Reis Novais, ao mencionar o conceito de Dworkin, aduz que “ter um

direito fundamental, em Estado de Direito, equivale a ter um trunfo num jogo de

cartas”298. Estaria o indivíduo ileso de ameaças contra o seu direito fundamental,

seja pelo Estado, seja pela maioria dos demais cidadãos. Dentro dessa visão, não

faria qualquer sentido ser dotado de um trunfo se não houvesse a possibilidade de

utilizá-lo conforme a própria conformação de vida.299

Nesse sentido, ao defender a renúncia a direitos fundamentais, Novais

conclui que:

[...] a renúncia é também uma forma de exercício do direito fundamental, dado que, por um lado, a realização de um direito fundamental inclui, em alguma medida, a possibilidade de se dispor dele, inclusive no sentido da sua limitação, desde que esta seja uma expressão genuína do direito de autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade individual.300

Nesse viés, tendo como conceito de renúncia a direitos fundamentais o

enfraquecimento temporário desses direitos por opção do titular, no exercício da sua

autonomia da vontade, sendo esse ato considerado o exercício do próprio direito

que se renuncia, porém em sua outra face, questiona-se se o ato de dispor o próprio

corpo aos pesquisadores de um estudo clínico configura um ato renúncia a direitos

fundamentais.

A princípio, pode não parecer pertinente diferenciar o ato de disposição

do corpo do ato de renúncia. Entretanto, ao analisar o cenário da pesquisa clínica de

medicamentos temos que, diante de toda a legislação outrora analisada, há diversos

critérios éticos e normativos que prezam pela saúde, pela vida, pela dignidade e pela

integridade física dos participantes como pressupostos essenciais para a realização

de um estudo clínico.

298 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 17-18. 299 DIAS; CAPPELLO. Revista de Bioética e Derecho, 2016, p. 85-­‐101. 300 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais, 2006, p. 235.

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137

Dito isso, e tendo como premissa as conclusões adotadas anteriormente

de que o corpo humano é um objeto de direito sui generis, o indivíduo que coloca o

seu corpo à disposição de um estudo clínico não necessariamente estaria

renunciando aos seus direitos fundamentais à saúde, ao corpo, à integridade física

ou à vida, visto que o cenário aqui exposto em muito se diferencia dos casos de

renúncia de direitos fundamentais.

Pois, a pesquisa clínica, como já amplamente discutido, é uma exigência

estatal relacionada a questões de ordem pública, que visam a disponibilização de

medicamentos com qualidade, segurança e eficácia comprovadas. Ora, sem

pesquisa clínica não há comercialização de medicamentos uma vez que o único

método para atestar segurança e eficácia de novas substâncias terapêuticas são os

testes realizados em organismo vivos, incluindo o organismo humano.

Por ser uma exigência estatal todos os preceitos de segurança e de

garantia dos direitos fundamentais dos participantes devem estar devidamente

assegurados com uma margem de segurança relativamente alta. Com isso, a

disposição sobre o corpo não pressupõe, necessariamente, um enfraquecimento de

direitos, uma vez que a própria normativa ética e regulatória prevê que devem ser

asseguradas a saúde, a integridade, a vida e a dignidade dos participantes. Sendo

condição precípua a interrupção de todo e qualquer estudo clínico em caso de

ameaça a alguns desses. Ou seja, na remota hipótese de ameaça aos direitos dos

participantes, a pesquisa deve ser imediatamente interrompida com o devido

cuidado médico para o imediato restabelecimento da saúde do participante

lesionado.

Além disso, as pesquisas clínicas são realizadas em ambientes

controlados durante todo o procedimento por médicos e profissionais qualificados, o

que garante que, ao ser verificado qualquer indício de lesão permanente ao corpo e

à saúde dos participantes, haja a imediata interrupção do procedimento e o início

das práticas para o restabelecimento do estado anterior.

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138

Isso não significa que não haverá, em alguns casos, eventualidades que

poderão acarretar lesões graves ou até mesmo a morte301. Situações como essas

são pontuais e críticas e existem em todo e qualquer procedimento de risco,

inclusive na doação de órgãos, nas cirurgias estéticas ou até mesmo na prática de

esportes radicais. O que se deve ter em mente é que o ato de disposição sobre o

corpo para os estudos clínicos de medicamentos é munido, inicialmente, por um

sentimento de solidariedade pessoal, que implicará na assunção de certos riscos

pessoais em prol da humanidade como um todo.302

Conforme amplamente exposto anteriormente quando da apresentação

de todo arcabouço ético e regulatório que envolve as pesquisas clínicas no país,

todos os estudos realizados no país devem respeitar a autonomia da vontade e a

dignidade dos participantes, zelando pelos princípios da beneficência e da não

maleficência e, devem ser autorizados somente após a devida ponderação entre os

benefícios individuais e sociais versus os riscos existentes, sendo certo, entretanto,

que não serão permitidas pesquisas que impliquem em evidente risco a saúde,

integridade física, vida ou dignidade dos participantes.303

Neste sentido, Adriano Marteleto Godinho afirma:

São diversas as disposições da Resolução em pauta, de cunho ético e científico, quem impedem a sujeição de voluntários a experimentos contrários ao primado da dignidade da pessoa humana ou que representem acentuados riscos à saúde e à vida dos investigados.304

301 “Um voluntário teve morte cerebral após testar um analgésico, derivado da maconha em Londres em janeiro de 2016. Além desse caso, em 2006, seis voluntários – até então saudáveis – foram internados em um hospital, em Londres, com disfunção múltipla dos órgãos, após a primeira etapa dos testes da substância TGN1412, destinado a tratar um tipo de leucemia e artrite reumatoide. Poucos minutos após receber a droga, os voluntários começaram a apresentar sintomas que evoluíram para o colapso dos órgãos. Após meses no hospital, todos receberam alta, mas a avaliação dos médicos indicava que eles sofreriam consequências pelo resto da vida”. Revista Época. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/01/o-risco-dos-testes-de-novas-drogas.html>. Acesso em: 20 nov. 2016. 302 ENGELHARDT, Tristram. Fundamentos da Bioética. Trad. José A. Ceschin. São Paulo: Loyola, 1998. p. 408-409. 303 Cf.: Item III.1 da Resolução RDC 466/2012. 304 GODINHO. Direito ao próprio corpo, 2015, p. 349.

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De fato, ao adentrar em uma pesquisa clínica de medicamentos, os

participantes305 terão algumas de suas posições jurídicas enfraquecidas, porém tão

somente no que tange aos riscos abstratos, uma vez que o direito à saúde, à

integridade física e à vida permanecem com o núcleo inalterado, devendo ser,

inclusive, ponto central de proteção em toda e qualquer pesquisa clínica de

medicamentos.

Não é porque um participante aceitou participar de determinado estudo

clínico que seus direitos foram simplesmente enfraquecidos a ponto de

prevalecerem os interesses científicos. Muito pelo contrário, a saúde e a vida do

participante, em todo procedimento, deve prevalecer sobre o interesse de

continuidade da pesquisa, devendo haver, inclusive, imediata interrupção ao

primeiro sinal de risco à integridade física. É esse o posicionamento adotado por

Adriano Marteleto Godinho, que afirma que:

Ao primeiro sinal de possíveis riscos à saúde, as pesquisas devem ser suspensas; consumados quaisquer danos, terão os voluntários direito à assistência imediata e integral e à respectiva indenização, prerrogativa esta que não poderá em nenhuma hipótese ser renunciada pelo sujeito de pesquisa ou suprimida por clausula contidas no consentimento firmado, consoante já ressalvado.306

A renúncia nesse caso não se opera, haja vista que não há, a priori, o não

exercício da saúde, da vida ou até mesmo da integridade física, mas sim, e apenas,

uma “doação” e/ou colocação do corpo à disposição da pesquisa, sem que haja, em

nenhuma hipótese, renúncia da saúde, da vida e da integridade física que devem, a

todo momento, ser resguardadas.

O corpo, nesse caso, será objeto de estudo para a realização de exames

diagnósticos e demais testes, com fim de observação dos efeitos de determinada

substância com potencial terapêutico. Poderão ser realizados estudos de processos

fisiológicos, bioquímicos ou patológicos visando uma resposta biológica específica;

testes controlados de medidas diagnósticas, preventivas ou terapêuticas; estudos

projetados para determinação de consequências quando da submissão a

305 Ressalta-se que o tema é restrito aos participantes saudáveis da fase I da pesquisa clínica de medicamentos. 306 GODINHO. Direito ao próprio corpo, 2015, p. 349.

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determinada substância; ou ainda estudos relativos a comportamentos humanos

ligados à saúde e ao ambiente.307

A disposição temporária do corpo recai no mesmo pressuposto do da

doação de órgãos, uma vez que tem finalidade altruística de fomentar a saúde

coletiva da humanidade. Dessa forma, cumpre diferenciar, para fins de conclusões

posteriores do presente trabalho, o ato de renúncia a direitos fundamentais do ato de

disposição sobre o corpo para estudos clínicos.

O objeto central da pesquisa remonta à ideia de que a disposição do

corpo para a participação de estudos clínicos é um direito fundamental de cada

indivíduo, sem importar, todavia, na renúncia de sua saúde, integridade física e vida.

Trata-se de uma disposição temporária, em que o sujeito permanece na titularidade

de todos os seus direitos fundamentais.

Nas palavras de Jorge Reis Novais, a submissão do corpo à pesquisa

clínica quando baseada na plena autonomia da vontade, não afronta o princípio da

dignidade da pessoa humana.

Quando alguém aceita submeter-se a experiências de teste de um medicamento de que ainda se desconhecem todos os efeitos e que pode, eventualmente, provocar danos irreversíveis, não se pode, sem mais dizer que há violação do princípio da dignidade da pessoa humana. É que a conclusão pode ser válida quando se trate de um recluso ou de um soldado que, a troco de uma hipotética melhoria das suas condições de reclusão ou de prestação de serviço militar, pode estar a pôr em risco as possibilidades do seu auto-desenvolvimento, mas já será, no mínimo, duvidosa, quando se trate de um doente infectado com vírus do HIV que vê nesta experiência a última tentativa de salvar a própria vida.308

Com isso, retomando as conclusões do capítulo sete do presente

trabalho, de que o corpo humano é um objeto de direito sui generis, é possível

afirmar que em sua outra face habita o direito de dispor, com base na livre

manifestação da vontade e no livre desenvolvimento da personalidade sem

renunciar, entretanto, aos direitos fundamentais à saúde, à integridade física, à vida

e ao princípio da dignidade da pessoa humana.

307 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 140. 308 NOVAIS, Jorge. In: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas constitucionais…, 1996, p. 139.

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Se o indivíduo dotado de autonomia da vontade e adepto ao princípio da

solidariedade optar por colocar seu bem fundamental – o seu corpo – à disposição

das pesquisas clínicas, terá em contrapartida, a princípio, todos os seus direitos

fundamentais resguardados, nos termos da legislação ética e regulatória vigente.

O art. 13 do Código Civil, já analisado anteriormente, impede qualquer ato

de disposição do corpo que importe na diminuição permanente da integridade física

ou afronte os bons costumes, ressalvado o transplante de órgãos. Nota-se que o ato

de disposição sobre o corpo para pesquisa clínica de medicamentos não importa, a

priori, na redução permanente da integridade física. Além disso, é uma questão de

ordem pública para a manutenção da saúde nacional.

Desta feita, o ato de disposição sobre o corpo para fins de estudos

clínicos não é proibido pela legislação vigente e tem seu berço constitucional no

direito à liberdade. Com isto, o ato de disposição sobre o próprio corpo aos estudos

clínicos de medicamentos configura o exercício pleno do direito ao corpo humano e

da autonomia da vontade, tendo como fonte constitucional a ponderação de valores,

com base na regra da proporcionalidade, que será analisada a seguir.

8.2 A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO COMO UM DIREITO

FUNDAMENTAL

A realização de pesquisas clínicas de medicamentos configura uma

questão de saúde pública nacional. Conforme já mencionado, para que seja

realizada e aceita é necessário que, impreterivelmente, indivíduos saudáveis

coloquem seus corpos à disposição dos pesquisadores, mediante o exercício do

livre consentimento informado e esclarecido. Trata-se, portanto, de uma expressão

da autonomia de vontade individual, com base no princípio da solidariedade e no

altruísmo, devidamente amparados pelo CF no art. 3º, inciso I309, com vistas de

fomentar a saúde coletiva e o desenvolvimento científico nacional.

309 “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” e também o art. 13º da Declaração Universal sobre Bioética e

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No tópico anterior ficou demonstrado que o ato de disposição sobre o

próprio corpo para pesquisas clínicas de medicamentos pode ser juridicamente

aceito, tendo como óbice apenas a falta de legislação especial. Porém, em uma

análise sistemática do ordenamento jurídico e com a aplicação da analogia, inclusive

em relação a doação e transplante de órgãos, verifica-se que não há elementos que

justifiquem eventual proibição de realização de estudos clínicos no país, tanto

porque as normas de cunho ético e regulamentar bem como a atuação das agências

reguladoras e dos comitês de ética em pesquisa asseguram a manutenção de todos

os direitos constitucionais dos participantes.

Contudo, para que seja possível justificar, no mundo jurídico, a existência

do ato de disposição sobre o próprio corpo para estudos clínicos de medicamentos

como um direito fundamental, torna-se necessária uma análise aprofundada dos

fundamentos constitucionais que sustentam a gênese desse direito e lhe concedem

o caráter fundamental.

O desenvolvimento científico e a promoção da saúde coletiva,

constitucionalmente assegurados, por si só já fornecem subsídios capazes de

justificar a necessidade da realização das pesquisas clínicas no Brasil, tanto porque

sem os estudos clínicos de medicamento a saúde de toda a coletividade seria,

irreparavelmente, prejudicada.

Segundo João Álvaro Dias, a solidariedade social também já seria

suficiente para justificar a disposição do corpo para fins de estudos clínicos. Afirma o

autor que “a finalidade de solidariedade social, só por si, seria capaz de justificar,

havendo consenso, o perigo das diminuições físicas, ainda que permanentes,

sempre que sejam respeitados certos limites objectivos”310.

Direitos Humanos, de 2004, segundo a qual “a solidariedade entre os seres humanos e a cooperação internacional nesse sentido devem ser incentivadas” (grifo nosso). 310 DIAS, João Álvaro. Procriação assistida e responsabilidade médica, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, n. 21, 1996, p. 327.

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De certo, o corpo humano é um direito personalíssimo do ser humano.

Reiterando as conclusões obtidas no Capítulo sete, consiste na expressão da

individualidade do ser humano no mundo exterior, sendo a manifestação da

personalidade e do livre desenvolvimento da vida nas bases da dignidade da pessoa

humana. O direito à sua disposição para estudos clínicos decorreria, portanto, do

exercício da autonomia da vontade e do livre desenvolvimento da personalidade em

consonância com a própria conformação de vida.

Para que se sustente no mundo jurídico o nascimento do direito à

disposição sobre o próprio corpo para estudos clínicos de medicamentos, é certo

que o princípio da solidariedade e a necessidade de desenvolvimento científico não

são, por si só, suficientes. Isso porque, o problema transcende a coletividade e

repousa nos direitos essenciais do ser humano: saúde, corpo, vida e liberdade.

Evidencia-se uma colisão entre direitos fundamentais. Ao colocar o

próprio corpo à disposição dos pesquisadores verifica-se que, se considerados os

possíveis riscos de lesão, o direito à saúde individual e à integridade física do corpo

poderiam sofrer um impacto relevante. Com isso, a necessidade de manutenção

destes direitos entra em colisão direta com o direito à liberdade no viés da

autonomia da vontade.

A pessoa que consente sua participação em um estudo clínico de

medicamentos é dotada tanto do direito à saúde e à integridade física do corpo

quanto do direito à autonomia da vontade como expressão da sua dignidade

humana. Ou seja, torna-se necessário avaliar até que ponto o Estado deve intervir

na autonomia da vontade individual a fim de impedir atos que poderão abalar a

saúde e a integridade física dos indivíduos.

Vale lembrar que a colisão apresentada se desenvolve em prol do

fomento da saúde coletiva e do desenvolvimento científico nacional. Embora seja de

grande relevância a necessidade de fomento à saúde coletiva e o desenvolvimento

científico, é importante esclarecer que a colisão aqui analisada não repousa nesses

direitos, que, para o presente caso configuram, apenas, a motivação da realização

dos estudos clínicos sem, necessariamente, colidirem com a autonomia individual ou

com a saúde dos participantes, uma vez que a decisão da participação repousa

única e exclusivamente na esfera individual de cada pessoa.

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Nesse cenário, a colisão existente que deve ser analisada encontra-se

entre a necessidade de preservação do direito à saúde e da integridade física versus

a liberdade de escolha individual para dispor do corpo, que será utilizado em prol da

saúde coletiva da humanidade. Verifica-se, portanto, uma colisão entre o direito à

saúde individual – e a integridade física do corpo – versus o direito à liberdade, no

viés da autonomia da vontade. Considerando que o direito à liberdade, nesse caso,

poderá permitir que o indivíduo opte, conscientemente, por ações que possam

prejudicar tanto o corpo quanto a saúde. Ou seja, tanto o direito à saúde e ao corpo

quanto o direito à liberdade deverão, a priori, ser protegidos pelo Estado.

E é dessa colisão, por meio da aplicação da regra da proporcionalidade,

que poderá nascer um novo direito: o direito à disposição sobre o próprio corpo para

estudos clínicos de medicamentos. A colisão, nesse caso, atuará como fonte de

direito fundamental, por força do art. 5º, § 2º, da CF311.

Neste sentido, afirma Roberto Dias que:

A colisão de direitos fundamentais pode criar novos direitos, veiculados por regras, ou seja, tais choques podem dar origem ao Direito, ser fontes do Direito. Eles nascem em razão da colisão e por expressa autorização do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, mais do que isso, podem ser tratados como direitos subjetivos, na medida em que seu titular tem a faculdade de exigir da pessoa obrigada o cumprimento do dever expresso em tal regra por meio de um processo judicial.312

Dessa forma, evidenciada a colisão entre o direito à saúde – integridade

física do corpo- e o direito à liberdade – autonomia da vontade, necessária será a

aplicação da regra da proporcionalidade para o encontro da solução jurídica. Os

direitos fundamentais poderão, em diversas situações, entrar em colisão.

Consideraremos, para todos os fins, o termo colisão de direitos englobando

311 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 312 DIAS, Roberto. O direito fundamental à morte digna, 2007, p. 201.

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hipóteses de colisão propriamente dita bem como de concorrência de direitos

fundamentais.313

A colisão entre direitos fundamentais configura, evidentemente, uma

antinomia de normas. Segundo Norberto Bobbio, para que seja verificada uma

antinomia entre normas é necessário que as duas normas pertençam aos mesmos

ordenamentos jurídicos e que tenham o mesmo âmbito de validade: temporal,

espacial, pessoal e material.314

O direito à saúde e ao corpo, assim como o direito à autonomia da

vontade são direitos fundamentais cristalizados na CF com fundamento no princípio

da dignidade da pessoa humana. Atuam no ordenamento jurídico como princípios

garantidores do Estado de Direito e são, portanto, mandamentos de otimização315,

os quais, quando em colisão, deverão ter a análise nas bases da ponderação.

Neste sentido, Alexy:

A colisão entre princípios deve ser solucionada de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com princípio e, de acordo com o outro permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, bem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinada condição.316

313 Marcelo Schenk Duque diferencia conflito e concorrência de direitos fundamentais mencionando que “o primeiro caso tem-se um direito fundamental ao lado do outro, em situação de incidência conjunta e não oposição; no segundo, um direito fundamental contra o outro, em um verdadeira situação de conflito” (DUQUE. Direitos Fundamentais, 2014, p. 211). 314 BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste dos Santos. Brasília: UnB, 1997. p. 81. 315 Nesse sentido, “O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 93.) 316 ALEXY. Teoria dos direitos fundamentais, 2015, p. 93.

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Dessa forma, a solução para a colisão entre princípios se dará pela

aplicação da regra da proporcionalidade317 e de suas sub regras: adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A regra da proporcionalidade traz consigo a função de manutenção do

Estado de Direito e a de garantia do núcleo essencial dos direitos fundamentais.

Tem como fundamento garantir que toda e qualquer interferência na esfera

individual se dê única e exclusivamente quando realmente necessário, de forma

adequada e na medida certa – proporcional, com vistas de evitar lesões aos direitos

fundamentais. Nesse sentido, Suzana de Toledo Barros leciona:

O princípio da proporcionalidade, como uma das várias ideias jurídicas fundantes da Constituição tem assento justamente aí, nesse contexto normativo no qual estão introduzidos os direitos fundamentais e os mecanismos de respectiva proteção. Sua aparição se d´å a título de garantia especial, traduzida na exigência de que toda intervenção estatal nessa esfera se dê por necessidade, de forma adequada e na justa medida, objetivando a máxima eficácia e otimização dos vários direitos fundamentais.318

A aplicação da regra da proporcionalidade se dará através da aplicação

de três sub regras: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação visa verificar se o meio escolhido é o instrumento adequado para a

obtenção de um fim juridicamente legítimo.319 A necessidade consiste em verificar se

os meios escolhidos são realmente necessários, com vistas de assegurar que o

meio escolhido é, de fato, o menos onerosos para o alcance do fim pretendido:

exige-se uma análise comparativa entre os meios existentes320.

317 Há grande divergência doutrinária sobre o enquadramento da proporcionalidade como regra, princípio ou postulado. Não se pretende adentrar no mérito da discussão. Adotaremos, para fins do presente trabalho, a proporcionalidade como regra. Nesse sentido Carolina Alves de Souza Lima afirma: “Diante do conceito de princípio como comando de otimização, que pode ser cumprido em diferentes graus, constata-se que a proporcionalidade não poder ser compreendida na categoria dos princípios, já que não pode ser atendida em vários graus” (LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009. p. 155). 318 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 95. 319 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 325. 320 DIAS, Roberto. O direito fundamental à morte digna, 2012, p. 54.

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E, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito exige uma ponderação

entre o ônus versus o benefício. Deverá ser analisado, nesse momento, o peso

concreto de cada direito e a importância dos direitos envolvidos versus os benefícios

e os prejuízos decorrentes da medida pretendida.

Nas palavras de Willis Santiago:

[...] princípio da proporcionalidade pode ser entendido como um mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental em situação de conflito com outro (s), na medida do jurídico e faticamente possível, traduzindo um conteúdo que reparte em três princípios parciais: a adequação, a exigibilidade e a proporcionalidade em sentido estrito321

Importante salientar que, conforme afirma Virgílio Afonso da Silva, as sub

regras são aplicadas por subsidiariedade, ou seja, iniciam-se na adequação e

apenas se positivo o resultado será autorizada a análise da próxima sub regra. In

verbis:

A análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não estiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade.322

Dessa forma, configurada a colisão, passemos a analisar, conforme a

regra da proporcionalidade acima exposta, o presente caso concreto: a colisão entre

a proteção do direito à saúde individual e à integridade física do corpo versus o

direito à liberdade, no pleno exercício da autonomia da vontade.

No que tange à adequação, temos que a finalidade primordial da pesquisa

clínica de medicamentos é o fomento da saúde pública nacional com o objetivo de

proporcionar a inovação dos medicamentos com segurança e eficácia comprovadas.

De certo, o teste com seres humanos é requisito fundamental para que a eficácia e a

segurança de uma nova substância sejam asseguradas.

321 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade. In: LEITE, George Salomão. Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 245. 322 SILVA, Virgilio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002. p. 34. v. 798.

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A regulamentação atual exige, para fins de novos registros de

medicamentos no país, entre outras coisas, a realização de pesquisa clínica com

resultados satisfatórios. Além disso, a pesquisa clínica atende aos mandamentos

constitucionais que visam garantir a saúde integral da população e o

desenvolvimento científico nacional. Observa-se, portanto, que os fins buscados são

juridicamente legítimos e o meio escolhido, qual seja, a disposição sobre o corpo

humano, com base no exercício da autonomia da vontade, o meio adequado para o

alcance desse fim.

No que tange à necessidade reitera-se os argumentos acima expostos

para concluir que não há, até o presente momento, outro meio eficaz e menos

oneroso para o alcance dos fins propostos. A pesquisa clínica de medicamentos é,

ainda, o meio mais eficaz de comprovação e de verificação dos efeitos e das

reações que novas substâncias possam causar no organismo humano.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito visa a ponderação entre os

riscos e os benefícios que serão ocasionados na cedência de um direito ao outro. No

presente caso, conforme amplamente abordado, a saúde individual e a integridade

física do corpo deverão ser resguardadas como elemento nuclear da pesquisa

clínica. Embora o corpo humano de determinado indivíduo esteja à disposição para

testes, isso não implica, necessariamente na diminuição de seu estado de saúde, o

qual deverá ser constantemente monitorado com critérios de segurança elevados.

Trata-se de uma disposição temporária, que, se for utilizada em

consonância com todos os princípios éticos e regulatórios, tende a assegurar a

saúde, a integridade física e a vida dos participantes em sua integralidade, não

importando em diminuição permanente dessa condição. Por outro lado, a autonomia

da vontade é a expressão da dignidade da pessoa humana, no que tange ao livre

desenvolvimento da personalidade e a própria conformação de vida.

O indivíduo que, respaldado pela solidariedade social, por sua própria

conformação de vida, entender que a disposição de seu corpo implicará no fomento

da saúde coletiva, deverá ter sua vontade respeitada. Nesse ponto, eventual

supressão da autonomia da vontade importaria em um paternalismo estatal com

afronta à dignidade da pessoa humana. A intervenção na esfera individual da

liberdade, nesse caso, configuraria afronta muito superior ao suposto risco de lesão

à saúde e a integridade física. Conclui-se que o quesito proporcionalidade em

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sentido estrito foi devidamente atendido, devendo a autonomia da vontade

prevalecer em face do direito à saúde e ao corpo, os quais, repita-se, deverão ser

amplamente observados pelos pesquisadores, nos termos das normas vigentes.

Verifica-se, portanto, que há, nesse caso, prevalência do direito à

liberdade, como expressão da dignidade da pessoa humana e do livre

desenvolvimento da personalidade. O exercício da liberdade que garante o direito de

dispor o próprio corpo aos estudos clínicos de medicamentos demonstra-se

adequado, necessário e proporcional, sendo certo que o direito à saúde e o direito à

integridade física do corpo, embora temporariamente “enfraquecidos” devido aos

riscos abstratos, permanecem com o núcleo essencial intocável.

Dessa colisão e fruto da autonomia da vontade, do livre desenvolvimento

da personalidade e da autoconformação de vida nasce o direito à disposição sobre o

próprio corpo para pesquisas clínicas de medicamentos.

Necessário considerar, também, intrínseco na natureza dessa colisão, um

peso social, coletivo e humanitário muito forte. Além disso, a obrigatoriedade estatal

de proteção do direito à saúde permanece latente na concretização dos requisitos

normativos e éticos estabelecidos. Não se verifica, nesse caso, uma prevalência

absoluta da autonomia da vontade em face do direito à saúde e do direito à

integridade física do corpo, pois tais direitos permanecem resguardados. Ocorre,

outrossim, o respeito a um novo direito intrinsicamente relacionado com a autonomia

da vontade: o direito de dispor do próprio corpo.

Seria incoerente, do ponto de vista jurídico e social, a proibição da

disposição sobre o corpo para estudos clínicos de medicamentos. A forma como o

indivíduo utiliza o seu corpo ao longo da vida deve estar estritamente correlacionada

com sua autoconformação, seus valores, seus anseios, suas crenças e suas

vontades, devendo ser respeitados, obviamente, o núcleo essencial do direito à vida

e da dignidade da pessoa humana.

Qualquer atuação paternalista que imponha limites à disposição sobre o

corpo, sem que tais limites estejam fundados em direitos fundamentais sobre-

valentes, configura uma afronta direta à dignidade da pessoa humana, afetando o

gozo da vida plena e digna, indo na contramão de todos os princípios constitucionais

até então conquistados.

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Dessa forma, diante da colisão proposta, a qual também atua como uma

fonte de direito, reitera-se: nasce o direito fundamental à disposição sobre o próprio

corpo com base na autonomia da vontade como expressão do livre desenvolvimento

da personalidade e, principalmente, consolidado pelo princípio da dignidade da

pessoa humana.

Como todos os demais direitos fundamentais, o direito à disposição sobre

o próprio corpo também não é absoluto, tendo um núcleo essencial baseado na

saúde, vida e dignidade humanas, o qual não poderá ser violado, sob pena de

afronta ao próprio direito. Assim como os demais direitos da ordem constitucional,

também poderá entrar em colisão com outras posições jurídicas, o que implicará

nova ponderação de acordo com o caso concreto, ou seja, aquele que deseja

impugnar o direito à disposição sobre o corpo terá o ônus da argumentação para

sustentar tal impugnação.323

O exercício do direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo

encontra limites intrínsecos diretamente relacionados a vida, saúde e dignidade da

pessoa humana. Não será válido, por exemplo, qualquer ato de disposição sobre o

próprio corpo que importe na “coisificação” do ser humano, transpondo-o à figura de

objeto da ciência. Por esse motivo, é importante que fique claro que toda

fundamentação do presente estudo é limitada ao âmbito da pesquisa clínica de

medicamento, consolidado por um arcabouço ético e regulatório capaz de

proporcionar a proteção da vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana de

todos os indivíduos que, através do exercício da autonomia da vontade, consentirem

a disposição de seus corpos.

Qualquer outro argumento que verse sobre a disposição do corpo como

um direito fundamental para outros casos concretos, deverá ser submetido à regra

da proporcionalidade, com fito de avaliar sua validade e existência no mundo

jurídico.

323 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais, 2006, p. 239.

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Por fim, após a ponderação realizada no âmbito dos direitos fundamentais

dos participantes dos estudos, é importante considerar a importância social das

pesquisas clínicas de medicamentos. A pesquisa clínica é uma imposição estatal

para o fomento da saúde. O direito à saúde, dentre todas as suas facetas, possui o

viés individual, coletivo e de desenvolvimento. Com isso, para que o mandamento

constitucional disposto no art. 6º da CF seja atendido em sua integralidade, tanto a

saúde individual quanto a saúde coletiva devem ser asseguradas e promovidas

através do desenvolvimento. O direito à disposição sobre o próprio corpo atua como

instrumento fundamental para que seja possível atender ao mandamento imposto

pelo constituinte originário no quesito saúde e desenvolvimento científico. Dessa

forma, a pesquisa clínica de medicamentos traz consigo tanto o nascimento do

direito à disposição sobre o próprio corpo como também o fomento da saúde

coletiva, resguardado, entretanto, o respeito a autonomia da vontade, ao livre

desenvolvimento da personalidade e, principalmente, ao princípio da dignidade da

pessoa humana.

8.2.1 Autonomia da vontade: o livre desenvolvimento da personalidade e o

consentimento livre e esclarecido

O direito à disposição sobre o próprio corpo tem por base primordial a

autonomia da vontade, a qual, no âmbito das pesquisas clínicas de medicamentos, é

exercida pela formalização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A autonomia da vontade é a expressão do direito à liberdade constitucionalmente

assegurada art. 5º, caput da CF.

O direito à disposição sobre o próprio corpo é intrinsicamente relacionado

com o direito à liberdade. Conforme afirma Carlos Alberto Bittar, a liberdade consiste

em “poder a pessoa direcionar suas energias, no mundo fático, em consonância com

a própria vontade, no alcance dos objetivos visados, seja no plano pessoal, seja no

plano negocial, seja no plano espiritual”324.

324 BITTAR. Os direitos da personalidade, 2006, p. 106.

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José Afonso da Silva, por sua vez, conceitua a liberdade como:

O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoa, de sua felicidade. É boa, sob esse aspecto, a definição de Riviero: ‘a liberdade humana é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal’. Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoa.325

A liberdade, por sua vez, está intrinsicamente ligada ao princípio da

dignidade da pessoa humana. Não há dignidade humana sem o pleno exercício da

liberdade, da autodeterminação no mundo, ou ainda, sem o exercício da livre

manifestação da personalidade. Como afirma Hannah Arendt, “somente quando o

quero e o posso coincidem, a liberdade se consuma”326.

Como isso, o direito à liberdade traz consigo todo o arcabouço

relacionado ao direito à vida digna. Efetiva o ser humano como senhor de si, dotado

de poderes que lhe proporcionam guiar a própria vida de acordo com o que acredita

ser o ideal para si. Isaiah Berlin sintetiza que o ser humano deseja desempenhar seu

papel humano através da liberdade:

Desejo que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo, e não de forças externas de qualquer tipo. Desejo ser um instrumento de meus próprios atos de vontade, e não dos de outros homens. Desejo ser um sujeito e não um objeto. Ser movido pela razão, por objetivos conscientes, que são meus, e não por causas que me afetam como que de fora. Desejo ser alguém e não ninguém, um agente – decidindo e não deixando que outros decidam – guiado por mim mesmo e não influenciado pela natureza externa ou por outros homens como se eu fosse uma coisa, um animal ou um escravo incapaz de desempenhar um papel humano.327

325 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 236. 326 ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 208. 327 BERLIN. Estudos sobre a humanidade, 2002, p. 229-230.

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Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias, “a liberdade do homem é uma

liberdade que importa decisão, não no sentido de eleição de uma entre diversas

possibilidades de ação, mas no de decisão de ele e sobre ele: o homem determina a

sua ação através da livre decisão sobre si mesmo”328.

Do direito à liberdade deriva a autonomia da vontade que nada mais é do

que o exercício pleno da autodeterminação, sendo a concretização da liberdade

pessoal e individual de agir e tomar decisões de acordo com suas crenças, opiniões,

vontades e valores. Trata-se do reconhecimento de que todas as pessoas possuem

um valor incondicional e são capazes, por si só, de determinar o próprio destino.329

Prezar pela autonomia da vontade requer “reconhecer o direito desta

pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em valores e

crenças pessoais”330. A autonomia da vontade pressupõe, portanto, o respeito e a

garantia de que todo e qualquer indivíduo tenha o direito de autogovernar a própria

vida, sendo capaz de efetivar escolhas e opções, sem interferências e imposições

externas, de acordo com o que julgue ideal para si mesmo. Trata-se do livre

desenvolvimento da personalidade.

Representa, ainda, a configuração de que o Estado de Direito, no qual

estamos inseridos, não tem espaço para o exercício de um paternalismo impositivo

de convicções morais e éticas rígidas destinadas aos indivíduos. O paternalismo,

como assevera Berlin – baseado nos pensamentos de Kant –, é despótico “não

porque seja mais opressivo do que a tirania manifesta, brutal”, mas por ser um

“insulto a minha concepção de mim mesmo como ser humano”331.

Para que uma pesquisa clínica de medicamentos possa ser realizada, a

autonomia da vontade é um requisito sine qua non, formalizado pelo TCLE. A

disposição sobre o próprio corpo para fins de estudos clínicos só terá validade se o

participante estiver devidamente informado e esclarecido sobre todos os riscos,

benefícios, exames, substâncias a serem utilizadas, direitos, deveres etc. Com isso,

o TCLE terá como função primordial munir o participante de informações

328 DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. Coimbra: Livraria Almeida, 1989. p. 186. 329 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. 330 BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica, 2002, p. 143. 331 BERLIN. Dois conceitos de liberdade, p. 259.

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suficientemente esclarecedoras para que ele próprio possa decidir,

conscientemente, sobre a sua submissão a alguma pesquisa, sem que terceiros

possam obrigá-lo a assim o fazer.

O direito à disposição sobre o corpo só poderá ser exercido se todas as

informações a respeito dos procedimentos forem devidamente transmitidas aos

participantes, pois a informação correta, clara e inteligível constitui o núcleo

essencial do consentimento esclarecido. Caso contrário, a autonomia da vontade

não terá qualquer subsídio de validade para sustentar o direito à disposição sobre o

corpo.

Todo voluntário que aceita participar dos estudos clínicos deve ser

devidamente informado sobre todo o procedimento332, receber informações claras e

inteligíveis - que serão explicadas por profissionais habilitados, e a descrição dos

riscos e dos benefícios envolvidos. Após todo o esclarecimento ocorrerá o aceite e

consentimento do participante por meio da sua declaração de vontade que se

formalizará com a assinatura de um TCLE333 que estabelecerá, além das

informações mencionadas, os cuidados necessários para o desenvolvimento do

estudo. O TCLE, além de ser obrigatório, tem por finalidade a observância ao

princípio da dignidade da pessoa humana e o estrito respeito à autonomia da

vontade de forma livre e esclarecida.

Vale lembrar que, historicamente, o direito ao consentimento334 remonta a

uma decisão inglesa, de 1767, no caso Slater versus Baker & Stapleton. Como

relata André Gonçalo Dias Pereira, o tribunal inglês responsabilizou dois médicos

que, sem o consentimento do paciente, quebraram um osso da perna de um

enfermo “com vistas a tratar uma fratura mal consolidada, colocando um aparelho

ortopédico”335.

332 Cf.: Resolução 466/2012 Conselho Nacional da Saúde - item III.2. 333 Ibid., item II.23. 334 Cf.: DIAS, Roberto. O Direito fundamental à morte digna, 2007, p. 174 et. seq. 335 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente: estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 57.

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No início do século XX, o Poder Judiciário norte-americano passou a

discutir a autonomia das pessoas no tocante aos cuidados com a saúde e, em 1914,

no caso Scholoendorff versus Society of New York Hospital, ficou assentada a

ilicitude do comportamento do médico – e a consequente possibilidade de se pleitear

indenização –, no caso de adoção, sem o consentimento do paciente, de um

procedimento cirúrgico.336

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as Constituições europeias

proclamaram o respeito à dignidade da pessoa humana e, em 1947, surge, no

Código de Nuremberg, o conceito de “consentimento voluntário”337. Como uma

resposta às atrocidades cometidas por médicos nos campos de concentração

nazistas338 tal Código passou a disciplinar os direitos das pessoas submetidas a

experimentos,

Mas a expressão “consentimento informado” foi utilizada, pela primeira

vez, em 1957, nos Estados Unidos da América, no caso Salgo versus Leland

Stanford Jr. University Board of Trustees, quando um Tribunal da Califórnia decidiu

que o médico deve revelar os fatos ao paciente para que ele preste um

“consentimento informado”. Segundo o juiz Bray, o médico não pode ocultar

qualquer fato nem minimizar os riscos inerentes a um procedimento médico com

vistas a obter o consentimento do paciente.339

Dessa forma, no contexto das pesquisas clínicas de medicamentos, a

autonomia da vontade será formalizada pelo TCLE. A decisão de exercer o direito à

disposição sobre o próprio corpo se dará no pleno exercício da liberdade, ou seja,

por motivos e razões individuais de acordo com a própria conformação de vida.

Dessa forma, a intervenção no corpo do participante de um estudo clínico de

medicamentos, após o seu consentimento, configura o respeito pleno ao direito à

liberdade e ao livre desenvolvimento da personalidade.

336 PEREIRA, André. O consentimento informado..., 2004. p. 57. 337 BETANCOR, Joana Teresa. El testamento vital. In: Eguzkilore – Cuaderno del Instituto Vasco de Criminologia, San Sebastián, n. 9, p. 98, dez., 1995; PEREIRA, André, 2004, p. 59-60. 338 Cf.: DIAS; CAPPELLO. Renúncia a direitos…, 2016, p. 37. 339 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado..., 2004, p. 62-63; SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo: bioética e a lei, implicações médico-legais, São Paulo: Ícone, 1998. p. 96-97; BETANCOR. Eguzkilore, 1995, p. 98.

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Neste sentindo Luísa Neto afirma que a:

[...] intervenção num âmbito alheio que se produz em virtude do consentimento da pessoa legitimada para o outorgar supõe uma forma de auto-organização da própria existência garantida pela Constituição através do direito à liberdade de ação enquanto expressão do livre desenvolvimento do indivíduo.340

O direito à disposição sobre o próprio corpo, nesse caso, tem suas raízes

na liberdade e na autonomia da vontade – protegidas constitucionalmente – e ao

mesmo tempo no princípio da solidariedade social e no altruísmo também previstos

no texto constitucional, como, por exemplo, no art. 3º, inciso I341.

8.3 RESOLUÇÃO DE DIRETORIA COLEGIADA 466/2012: A DISPOSIÇÃO SOBRE

O PRÓPRIO CORPO MEDIANTE COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA

O direito à disposição sobre o próprio corpo, conforme anteriormente

abordado, é um direito fundamental do ser humano e possui pilares na autonomia da

vontade individual. Para que a expressão da autonomia da vontade seja legítima,

deve ser manifesta de forma livre, por agente capaz, isenta de coação ou quaisquer

fatores que possam influenciar na subjetividade do consentimento.

As pesquisas clínicas de medicamentos realizadas com indivíduos

saudáveis – Pesquisas de Fase I ou de bioequivalência – antes da edição da

Resolução 466/2012 CNS, possuía o requisito da gratuidade342, ou seja, os

voluntários não recebiam nenhuma contrapartida pecuniária para a participação,

ressalvado o ressarcimento343 das despesas com alimentação e transporte.

340 NETO, Luísa. O direito fundamental..., 2004, p. 327. 341 “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”. 342 A RDC 196/1996 revogada pela RDC 466/2012 continha a vedação de todo o tipo de remuneração: “II.10 - Sujeito da pesquisa - é o(a) participante pesquisado(a), individual ou coletivamente, de caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração”. 343 “RDC 196/1996 – Revogada. II.13 - Ressarcimento - cobertura, em compensação, exclusiva de despesas decorrentes da participação do sujeito na pesquisa”.

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Em 2012, com a publicação na nova Resolução do Conselho Nacional de

Saúde sobre o tema - RDC 466/2012, além das diversas modificações, o texto do

item II.10 foi alterado com vistas de incluir a autorização de pagamento de uma

compensação pecuniária aos participantes das pesquisas clínicas de medicamento

de Fase I e de bioequivalência. O Texto anterior dispunha que: “II.10 - Sujeito da

pesquisa - é o(a) participante pesquisado(a), individual ou coletivamente, de caráter

voluntário, vedada qualquer forma de remuneração”(RDC 196/1996).

E, com a alteração da RDC 466/2012, passou a dispor que:

II.10: participante da pesquisa – indivíduo que, de forma esclarecida e voluntária, ou sob o esclarecimento e autorização de seu(s) responsável(eis) legal(is), aceita ser pesquisado. A participação deve se dar de forma gratuita, ressalvadas as pesquisas clínicas de Fase I ou de bioequivalência.

Diante desta autorização concedida por resolução administrativa, as

pesquisas clínicas de medicamentosa realizadas com seres humanos saudáveis

perderam a obrigatoriedade de gratuidade. Ou seja, além do ressarcimento dos

gastos com alimentação e deslocamento, o participante passou a receber uma

contrapartida pecuniária em troca da sua participação.

Essa alteração traz à tona um tema muito delicado e complexo, o qual

merece certa reflexão. A alteração e a consequente autorização expressa de

compensação pecuniária aos participantes, foi formalizada por intermédio de uma

resolução administrativa, norma de status jurídico infralegal. As justificativas trazidas

para a referida autorização fundamentaram-se no fato de que a compensação

pecuniária poderia ampliar a realização de pesquisas clínicas de fase I no país, , as

quais, por falta de voluntários, estavam prejudicadas344, implicando,

consequentemente, em um baixo índice de inovação no setor farmacêutico nacional.

344 Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apontam que apenas 4% das pesquisas clínicas realizadas no Brasil são de fase 1. As de fase 2 representam 22%, as da fase 3 são 63% e as de fase 4 são 11%, o que demonstra o baixo grau de inovação da indústria nacional. BASSETE, F. Governo quer atrair pesquisa clínica liberando pagamento de voluntários. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 jan., 2013. Vida. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,governo-quer-atrair-pesquisa-clinicaliberando-pagamento-de-voluntarios,986076,0.htm>. Acesso em: 24 nov. 2016.

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Carlos Gadelha, secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da

Saúde na época da publicação da RDC 466/2012, em reportagem concedida ao

Jornal Estado de São Paulo salientou que as alterações propostas ampliariam as

pesquisas de inovação para o Brasil, em especial as de Fase I. Afirmou, inclusive,

que: “Vai permitir que a gente seja dinâmico em pesquisa clínica e que a gente

proteja quem participa”345.

Com essa política, a gente permite atrair o núcleo de conhecimento mais central do processo de inovação em saúde. Justamente por apenas 4% das pesquisas de fase 1 acontecerem no Brasil, a gente tinha de intervir nessa etapa. Estamos atuando no gargalo crítico da pesquisa que não é feita no Brasil, utilizando um instrumento para incentivar que ela seja feita.346

A captação de indivíduos saudáveis dispostos a dispor de seus corpos

para experimentação de novas drogas, com consequências incertas e com base

meramente na solidariedade social e no altruísmo, é uma tarefa difícil. Por esse

motivo, a compensação teria o condão de compensar o tempo despendido e os

eventuais desconfortos, aos quais os participantes são submetidos: internações,

exames, espera etc.

Nas palavras de Sabbatini, o valor a ser pago aos participantes não

equivaleria a uma remuneração propriamente dita, mas teria, outrossim, um condão

de ressarcimento mais criterioso, incluindo os desconfortos e o tempo despendido

pelo participante saudável:

Quanto ao fato de que os voluntários recebem dinheiro para se submeter a experimentos, embora isso possa parecer chocante, é uma norma seguida por todos os órgãos internacionais, e pelo próprio governo brasileiro, que recomendam que isso seja feito para assegurar a qualidade e a isenção do estudo. São cobertos os gastos do voluntário não só com transporte e alimentação, mas também com o tempo perdido, que pode ser bastante significativo.347

345 O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,governo-quer-atrair-pesquisa-clinicaliberando-pagamento-de-voluntarios,986076,0.htm>. Acesso em: 24 nov. 2016. 346 O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,governo-quer-atrair-pesquisa-clinicaliberando-pagamento-de-voluntarios,986076,0.htm>. Acesso em: 24 nov. 2016. 347 SABBATINI, Renato. Ética e experimentação, Correio Popular, 2 dez., 1993, Opinião, p. 2.

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Além da justificativa de fomento às pesquisas clínicas de fase I no país,

os fundamentos também encontram base nas práticas internacionais. O pagamento

de voluntários sadios para a participação de estudos clínicos é amplamente adotado

no Estado Unidos da América, por exemplo.

O FDA, órgão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do

governo dos EUA, responsável pelo registro de medicamentos no território

americano, estabelece critérios a serem adotados no quesito compensação dos

participantes. Não consideram que o pagamento seja uma remuneração

propriamente dita, mas sim um “incentivo ao recrutamento de voluntários”. No site

oficial do FDA é possível encontrar a seguinte explicação a respeito do tema:

Sujeitos às vezes são pagos por sua participação em pesquisa, especialmente nas fases iniciais de investigação de medicamentos e outros desenvolvimentos biológicos. O pagamento pela participação dos sujeitos de pesquisa nos estudos clínicos é considerado um incentivo de recrutamento. Incentivos financeiros são mais frequentemente usados quando os benefícios à saúde dos sujeitos são remotos ou inexistentes. A compensação é oferecida aos voluntários pelo tempo que será requerido durante o estudo clínico e pelo nível de desconforto associado ao medicamento/procedimento sob teste. A quantia a ser paga é determinada pelo tempo dedicado ao estudo e ao nível de incomodo causado pelo procedimento médico ou cirúrgico relacionado ao estudo. As informações referentes aos valores e à programação dos pagamentos, assim como qualquer possível custo para os voluntários que participam de um estudo, são discutidos com os participantes potenciais durante o processo de consentimento informado e documentado no formulário correspondente.348

Desde 1954, o NIH, instituto de pesquisa norte-americano considerado

um dos mais avançados centros de pesquisa médica do mundo,349 pratica o

Programa de Voluntários Sadios, responsável pela mobilização de 3.500 pessoas

por ano destinadas às pesquisas de medicamentos, esclarece, em relação à

compensação concedida aos voluntários que:

348 FDA. Disponível em: <http://www.fda.gov/drugs/developmentapprovalprocess/conductingclinicaltrials/default.htm>. Acesso em: 23 nov. 2016; tradução nossa. 349UNICAMP. Disponível em: <http://www.prp.rei.unicamp.br/portal/modules.php?name=Content&pa=showpage&pid=47>. Acesso em: 25 nov. 2016.

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O NIH compensa voluntários pelo tempo empregado no estudo clínico e também pela inconveniência do procedimento. Há índices normais de compensação para o tempo dos voluntários; cabe ao investigador principal do estudo determinar os chamados índices de conveniência. Para ser compensado, o voluntario deve registra-se, fornecendo o número de identificação junto ao Seguro Social ou de recolhimento de imposto. O NIH informa ao Fisco uma compensação de US$ 600 a mais, enviando um informe de rendimento ao voluntario ao final de cada ano. 350

Verifica-se, portanto, que a justificativa da alteração da normativa

administrativa, além de fundamentos relacionados ao fomento de inovação e

incentivo à pesquisa, tomou por base a prática internacional. Entretanto, não se

pode ignorar o fato de que a legislação brasileira, principalmente na esfera

constitucional, em muito se difere da legislação americana.

A alteração proposta, embora devidamente fundamentada nos aspectos

sociais e científicos, não encontra fundamentos jurídicos. A norma infra legal traz

grande desconforto quando analisada de acordo com art. 199, § 4 da CF, segundo o

qual:

A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização (grifo nosso).

Verifica-se que a utilização para fins de pesquisas de toda e qualquer

parte do corpo humano e também de suas substâncias não pode ser objeto de

comercialização.351

350 NIH. Disponível em: <www.cc.nih.gov/participate/studies/healthy_vol_prg.shtml>. Acesso em: 25 nov. 2016. 351 Adotamos como conceito de comercialização o entendimento de Maria Helena Diniz que preceitua comercializar como: “1. colocar algo no comércio. 2. Criar objeto com possibilidade de ser explorado comercialmente, vendido, fabricado ou exposto, de modo que possa render dinheiro. 3. Rebaixar em qualidade, tornando a coisa comum para obter lucro”. DINIZ, Maria. Dicionário Jurídico, 2005, p. 782.

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O referido dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei

10.205/2001, que dispõe sobre captação, proteção ao doador e ao receptor – com

expressa proibição da remuneração pela doação, vedando, expressamente,

inclusive, a comercialização de coleta, processamento, estocagem, distribuição e

transfusão do sangue, de seus componentes e derivados.352

A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em

vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, se encontra disciplinada

pela Lei 9.434/1997, a qual, embora não faça referência a pesquisas, também é

dotada do critério gratuidade.353 A Lei ordinária também expressa a vedação de

qualquer tipo de comercialização do corpo humano ou de suas partes:

Código Penal: Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.

Nesse sentido, em uma análise sistemática, o ordenamento jurídico

parece não corroborar com a autorização trazida pela resolução administrativa do

CNS, uma vez que a intenção do legislador originário ao mencionar “vedado

qualquer tipo de comercialização”, em conjunto com a gratuidade imposta pela

legislação infraconstitucional que regulamentou o art. 199, § 4º da CF, nos remete à

ideia de que, quando se tratar de disposição do corpo e de suas partes, o

ordenamento jurídico brasileiro impõe o requisito gratuidade como condição

fundamental.

352 “Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a captação, proteção ao doador e ao receptor, coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, de seus componentes e derivados, vedada a compra, venda ou qualquer outro tipo de comercialização do sangue, componentes e hemoderivados, em todo o território nacional, seja por pessoas físicas ou jurídicas, em caráter eventual ou permanente, que estejam em desacordo com o ordenamento institucional estabelecido nesta Lei”. 353 “Art. 1º. A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei”.

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Isso porque vislumbra-se evidente intenção legislativa de evitar toda e

qualquer possibilidade de submissão do corpo humano e de suas partes à natureza

de bens e/ou mercadorias. Há, de fato, quem possa entender que a compensação

pecuniária disposta na resolução administrativa não implique necessariamente em

uma “comercialização”, mas seja uma compensação/retribuição pelo tempo

despendido e pelos infortúnios causados pelos procedimentos ao participante.

De qualquer forma, a discussão aqui proposta não visa analisar de forma

meramente gramatical o texto constitucional, busca-se, outrossim, uma análise

teleológica e sistemática. E, com isso, nos parece adequado arriscar que o

legislador buscou vedar a “coisificação” e a “precificação” do corpo humano, no

intuito de preservar a dignidade da pessoa humana.

Além disso, não nos parece legítimo, do ponto de vista jurídico, a

autorização de disposição sobre o corpo humano mediante compensação pecuniária

– matéria de cunho constitucional – ser emanada por uma norma administrativa,

infralegal. Trata-se de um tema com raízes constitucionais interligadas aos valores

basilares do Estado e, por esse motivo, a autorização emanada por um órgão

administrativo, desprovido de poder legislativo primário, torna tal disposição

arbitrária, ilegal, além de inconstitucional.

A situação social, econômica, política e jurídica do Brasil, por si só,

demonstra que o tema deve ser tratado de forma diferenciada. Os fundamentos

justificadores para tal autorização não podem ser dotados de um reducionismo e

baseados apenas na prática internacional e na necessidade de fomento das

pesquisas no território nacional.

Como bem observa Marcelo Corrêa:

No Brasil a questão da remuneração de sujeitos de pesquisa merece uma atenção especial, principalmente em virtude da má distribuição de renda. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país tem a segunda pior distribuição de renda, menor apenas que a do México.354

354 CÔRREA, Marcello. Brasil tem segunda pior distribuição de renda em ranking da OCDE. O Estado de São Paulo, São Paulo 19 mar. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/brasil-tem-segunda-pior-distribuicao-de-rendaem-ranking-da-ocde-7887116#ixzz2d28kvqiA>. Acesso em: 05 ago. 2016.

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163

O fator econômico em países em desenvolvimento, onde a distribuição de

renda é deficitária e os índices de desemprego elevados, pode transformar o corpo

humano em um objeto de comercialização, afetando diretamente a validade da

autonomia da vontade. Nas palavras de Ana Carolina Scarpelli “este direito, embora

fundamental, pode ser afetado, principalmente quando interesses maiores são

estabelecidos em países socioeconomicamente vulneráveis”.355

A grande desigualdade social que predomina no Brasil pode favorecer a

exploração de grande parte da população que, vivendo em condições desfavoráveis

e tendo diminuída a sua liberdade de escolha, passa a ser vulnerável aos interesses

econômicos de certos grupos.356

Em um país onde a situação econômica é crítica, o pagamento para a

submissão a estudos clínicos pode influenciar e atuar como agente coator, viciando

o consentimento do participante e, consequentemente, sua autonomia de vontade.

Como bem afirma Paulo Antonio de Carvalho:

[...] para alguns pesquisadores, a remuneração dos participantes afeta o modo como eles reconhecem os riscos e benefícios presentes em estudos clínicos, podendo induzi-los a aceitar maiores riscos e, consequentemente, inibindo a decisão livre, ou seja, a autonomia do sujeito.357

Roberto Abadie, autor do livro The Professional Guinea Pig, relata em sua

obra os motivos pelos quais as pessoas aceitam participar de estudos clínicos.

Descreve ainda que, em 1998, quando tinha 30 anos de idade aceitou fazer parte de

uma pesquisa científica em troca de mil dólares. Tomou essa decisão porque na

época precisava de dinheiro e esse era um meio fácil de obtê-lo: “Fui porque

precisava do dinheiro, fiquei apenas três dias e acabou. Sabia que dava para juntar

355 SCARPELLI, Ana C.; FERREIRA, Efigência F.; ZARZAR, Patrícia M. P. de A. Vulnerabilidade socioeconômica versus autonomia na pesquisa em saúde. Revista Bioética, n. 15, b. 2, p. 298-307, 2007. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/49/53>. Acesso: 17 maio 2016. 356 SCARPELLI; FERREIRA; ZARZAR. Revista Bioética, 2007, p. 298-307. 357 FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de caso. São Paulo: EPU, 1998. p. 520.

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164

dinheiro com isso porque morava com estudantes que ganhavam a vida desse

modo”358.

Em 2010 publicou o seu livro, no qual relatou, após vasta análise

antropológica do perfil dos participantes de pesquisas científicas, que o dinheiro

oferecido nos estudos representa um papel fundamental na decisão dos

entrevistados, principalmente nos ensaios de fase I. Descreveu que os voluntários

se sentiam equiparados a trabalhadores, pois não possuíam outras razões para a

participação nos estudos que não o dinheiro. Notou que o grupo apresentava

características semelhantes, composto por pessoas sem atividade remunerada fixa,

e que vislumbravam nessa atividade um modo fácil e rápido de obter alguma

vantagem pecuniária.359

Em entrevista concedida ao Jornal Estado de São Paulo, afirmou que

após seus estudos, pode concluir que “só os pobres aceitam ser cobaias humanas”,

dizendo que a situação se mostra muito mais crítica em um país como o Brasil,

porque a vulnerabilidade econômica e social existente e a fragilidade das instituições

comprometeriam o controle e a fiscalização dos procedimentos e tratativas.

Em um mundo perfeito, o altruísmo seria a melhor garantia de uma participação ética. Mas estamos longe disso. Ninguém quer testar uma droga experimental, passar pelo aborrecimento e pelos riscos, se pode comprar depois. Só os pobres topam ser cobaias humanas nos EUA. No Brasil, se o pagamento fosse legalizado, não seria diferente. A prática de pagar é problemática porque explora pessoas vulneráveis. Isso não é fácil num país como o Brasil, onde as instituições são fracas e a capacidade de monitorar desvios é insuficiente. É um problema complexo que precisa ser debatido de forma mais ampla.360

Certamente, a maior preocupação quando do enfretamento do tema é a

possibilidade de a recompensa pecuniária configurar uma indução indevida, ainda

mais em um país onde a vulnerabilidade de alguns grupos é tão acentuada.

Preocupa-se que o anseio por receber algum valor pecuniário em contrapartida à

disposição do corpo possa implicar negligência na hora da ponderação dos riscos.

358 O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,so-pobre-aceita-ser-cobaia-humana-imp-,725307>. Acesso em: 24 nov. 2016. 359 ABADIE, R. The professional Guinea Pig: big pharma and the risky world of human subjects. EUA: Duke University Press, 2010. 360 O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,so-pobre-aceita-ser-cobaia-humana-imp-,725307>. Acesso em: 24 nov. 2016.

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165

Reame, ao reconhecer a necessidade de incentivar as pesquisas

cientificas, questiona se retribuições financeiras seriam, de fato, a melhor estratégia

para engajar as pessoas. A remuneração poderá causar uma coação a ponto de os

riscos de danos serem ignorados, e isso não afeta apenas a autonomia individual,

mas também a obrigação do Estado e da sociedade de proteger os cidadãos de

condutas violadoras da sua saúde.361

São muitas as preocupações de ordem ética e jurídica que circundam o

tema. Há, evidentemente, um impasse entre a necessidade de fomentar as

pesquisas de Fase I no país e a necessidade de vedar a mercantilização do corpo

humano, buscando evitar, ainda, qualquer fator que possa viciar a autonomia da

vontade e o livre consentimento dos participantes.

Por esse motivo, o tema deveria, antes de aprovado por meio de norma

administrativa – emanada na discricionariedade estatal, ser avaliado e discutido no

âmbito legislativo, após consulta pública envolvendo profissionais multidisciplinares,

com o respaldo da bioética, do direito e da ciência. Inconcebível a ideia de que tal

autorização, a despeito da vedação expressa da CF, tenha sido emanada tão

somente por norma administrativa, sem qualquer regulamentação sobre os

procedimentos, valores, limites e condições.

Não se pretende afirmar que o pagamento nesses casos seja algo

inaceitável ou repugnante, porém, trata-se de um assunto que merece atenção do

legislativo brasileiro, uma vez que o dispositivo constitucional é claro e expresso.

Verifica-se a perpetuação de uma ação inconstitucional autorizada e praticada nos

termos de uma norma administrativa sem qualquer regulamentação legal.

Mostra-se inegável que, na hipótese de alteração legislativa neste

sentido, o Comitê de Ética em Pesquisa em conjunto com a Anvisa serão os

principais fiscalizadores das quantias pagas e deverão estipular limites para se evitar

ao máximo que essa prática se torne algo comercial.

361 REAME, N. K. Treating research subjects as unskilled wage earners: a risky business. Am J Bioeth. 2001; n. 1, v. 2, p. 53-4.

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Nas palavras de Lemmens, é de responsabilidade do comitê de revisão

ética a análise do montante da remuneração a ser pago com o fito de verificar se tal

pagamento tem o condão de se tornar uma indução indevida. Para o autor, deve-se

levar em conta a condição financeira do participante da pesquisa, seu nível

educacional e se há validade no consentimento.362

A ideia central é trazer à tona a necessidade de regulamentação do tema

ante a evidente inconstitucionalidade apresentada. Caso após um trabalho de

ponderação entenda-se pela necessidade irrefutável de compensação pecuniária

aos participantes sadios de pesquisa clínica, visando não só o incentivo para o

recrutamento, mas também a compensação da disponibilidade de tempo e dos

desconfortos sofridos, será necessária uma análise legislativa a fim de propor uma

regulamentação que proporcione limites assegurando que não haverá, de forma

alguma, a comercialização do corpo humano, ato expressamente vedado pela CF.

Além disso, vale lembrar que o exercício da autonomia da vontade,

amplamente discutido no item 8.3.1, está diretamente relacionado com a

autoconfomação de vida de cada indivíduo, o que implica na liberdade de

ponderação para a disposição sobre o próprio corpo, inclusive no quesito pecuniário.

Entretanto, em um país como o Brasil, onde a vulnerabilidade social e econômica

apresentam índices elevados, esse fator deve ser analisado com cautela.

Dessa forma, o presente tema demanda grande atenção ante aos valores

constitucionais envolvidos e, principalmente, pela evidente falta de legislação a

respeito. Deve-se evitar, em termos bioéticos e jurídicos, o retrocesso no que tange

à proteção de participantes de pesquisa clínica no Brasil.363

362 LEMMENS T, Elliott C. Justice for the professional guinea pig. Am J Bioeth. 2001; n. 1, v. 2, p. 51-2. 363 CUNHA, Thiago Rocha da; PORTO, Dora; MARTINS, Gerson Zafalon. Resolução CNS 466/12: uma crítica necessária. Brasília: CFM: 2013. p. 13.

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CONCLUSÃO

A experimentação científica em seres humanos foi, durante toda a história

da humanidade, ação fundamental para a concretização dos avanços nas áreas da

medicina, biologia e farmácia. No decorrer da história, principalmente antes da

concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, muitos abusos foram

cometidos em nome da ciência, considerando-a acima do próprio ser humano.

Esse cenário, conforme amplamente explorado nos primeiros capítulos do

presente trabalho, começou a ser alterado com o advento do Código de Nuremberg

e da Declaração de Helsinque, que trouxeram os princípios basilares de respeito a

dignidade da pessoa humana, saúde, integridade, autonomia e vida dos

participantes de pesquisas científicas. Esses princípios se tornaram as bases das

normas éticas e regulamentares que hoje norteiam o âmbito da experimentação com

seres humanos.

A pesquisa clínica de medicamentos no Brasil, regulamentada pela RDC

466/2012 e pela RDC 9/2015, embora carente de atuação legislativa, é condição

fundamental para a introdução de novos medicamentos no mercado, bem como para

a alteração dos já disponibilizados. Com isso, configura etapa obrigatória, exigida

pelos órgãos sanitários do país, essencial para a inovação e a manutenção da

qualidade dos medicamentos disponíveis no mercado nacional.

Constitui uma etapa clínica, ou seja, em seres humanos, realizada após

os estudos prévios em laboratório e/ou em animais, podendo ser classificada em

quatro fases diferentes. O objeto principal de análise do presente trabalho restringiu-

se à chamada pesquisa de Fase I, com indivíduos plenamente saudáveis.

A realização de pesquisa clínica no Brasil encontra fundamentação nos

direitos fundamentais constitucionalmente instituídos. Tem grande relação com o

desenvolvimento científico nacional, importando, consequentemente, na promoção

da saúde coletiva. Dessa forma, a pesquisa clínica de medicamentos é essencial

para o fomento e a preservação de dois direitos fundamentais que a sustentam, os

quais foram o ponto central da Parte II do presente trabalho: o direito à saúde e o

direito ao desenvolvimento científico, tecnológico e inovação.

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O direito à saúde como direito fundamental, conforme abordado também

na segunda parte do presente trabalho, além de possuir natureza de um direito

social, implica, impreterivelmente, a esfera subjetiva-individual, podendo possuir

natureza dúplice de direito objetivo-subjetivo. Além disso, o direito à saúde é

estruturado em três faces essenciais: individual, coletiva e de desenvolvimento. Por

esse motivo foi possível concluir que a pesquisa clínica de medicamentos é

fundamental para a manutenção do direito à saúde, sendo instrumento de fomento

das três faces apresentadas. Demonstrou possuir, também, intrínseca relação de

existência com o direito constitucional de desenvolvimento científico, tecnológico e

de inovação.

Verificou-se, entretanto, que para realizar pesquisas clínicas de

medicamentos com indivíduos saudáveis é necessária a disposição do corpo dos

participantes aos pesquisadores. Essa disposição do corpo, realizada pelo exercício

da autonomia da vontade individual, envolve a assunção de eventuais riscos à

saúde e à integridade física dos participantes. Ou seja, o participante da pesquisa,

após devidamente informado e esclarecido dos possíveis riscos de determinado

estudo, formaliza, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido (TCLE), o ato de disposição do seu corpo aos efeitos de substâncias

ainda não testadas em organismo humano.

Dessa forma, pontuou-se, com o presente estudo, que a pesquisa clínica

de medicamentos importa na submissão de um indivíduo saudável a estudos que

poderão – ou não – alterar seu estado de saúde atual. Ressaltou-se, entretanto, que

embora seja um ato regido por diversas normas procedimentais, éticas,

regulamentares, por tratados internacionais e fiscalizado pela Anvisa e pelos

Comitês de Ética em Pesquisa, não há, até o momento, ato legislativo nesse

sentido.

Esse ato, conforme foi possível verificar, pressupõe o exercício da

autonomia da vontade individual e funda-se no princípio da solidariedade, refletindo

diretamente no fomento da saúde coletiva e no desenvolvimento científico.

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Diante disso, a terceira e última parte do trabalho concedeu à pesquisa

clínica de medicamentos e ao consequente – e necessário – ato de disposição sobre

o próprio corpo um olhar jurídico, a fim de verificar a legitimidade da disposição do

corpo, bem como seu posicionamento no ordenamento jurídico. Foi possível concluir

que a disposição sobre o próprio corpo consiste em um direito fundamental

decorrente do direito à liberdade, no viés da autonomia da vontade, do livre

desenvolvimento da personalidade e da autoconformação de vida.

Tal conclusão foi fruto de uma construção lógica e jurídica que

considerou, inicialmente, o corpo humano como um objeto de direito sui generis,

que, além de direito autônomo, constitui o núcleo essencial do direito à vida, à

saúde, à integridade física, sendo, ainda, um direito da personalidade, que possibilita

que o ser humano se expresse em sua sociedade de forma única e individual, como

forma do exercício pleno da dignidade da pessoa humana.

Partindo da premissa do corpo humano como objeto de direito sui generis,

pode-se observar, no ordenamento jurídico nacional, a existência de

regulamentação que autoriza atos de disposição sobre o próprio corpo, a exemplo

da doação e do transplante de órgãos, constitucionalmente permitidos e

regulamentados pela legislação ordinária.

Porém, diferentemente do ato de disposição sobre o corpo para doação e

transplante de órgãos, a pesquisa clínica não detém legislação que a regulamente, a

ponto de amparar o mandamento constitucional do §4º do art. 199. Com isso, foi

preciso analisar, minuciosamente, se o direito à disposição sobre o próprio corpo

para fins de pesquisa clínica encontra subsídios que o enquadrem como um direito

fundamental constitucionalmente aceito.

Com isso, a construção do direito à disposição sobre o próprio corpo se

deu pela análise da colisão de direitos fundamentais individuais existentes na

pesquisa clínica de medicamentos. Isso porque, no que tange a proteção

constitucional concedida pelo Estado, verifica-se que é assegurada aos indivíduos a

proteção do direito à saúde e da integridade física do corpo. Ao mesmo tempo em

que lhes é garantido o direito à liberdade para atuar conforme sua autoconformação

de vida, nos ditames da autonomia da vontade e do livre desenvolvimento de sua

personalidade.

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No âmbito das pesquisas clínica de medicamentos, a colisão se origina ao

se analisar se os indivíduos, com base na autonomia da vontade, ou seja, no pleno

exercício do direito à liberdade, podem cometer atos que eventualmente causarão

danos à saúde e à integridade física do próprio corpo, uma vez que esses últimos

são tutelados pelo Estado. A submissão aos estudos clínicos, implica, via de regra,

suposto enfraquecimento – mesmo que abstrato – do estado atual de saúde e de

integridade física, prevalecendo, por consequência, o ato de vontade, a escolha

individual de dispor do próprio corpo, mesmo ciente dos riscos.

Trata-se de um paradoxo de obrigações estatais, no qual há, de um lado

a obrigação do Estado de proteger a saúde individual e do outro a obrigação do

Estado de não intervir na autonomia da vontade. Considerando ainda que, ao

mesmo tempo em que é dever do Estado proteger a vida, a saúde e a integridade

física dos indivíduos, existe, em contrapartida, o dever de fomentar e desenvolver o

setor farmacêutico para a promoção da saúde coletiva, que implicará, por via reflexa,

a saúde individual.

Diante da evidente colisão existente entre o direito à manutenção da

saúde e da integridade física do corpo versus o direito à liberdade como expressão

da autonomia da vontade, buscou-se verificar por meio da aplicação da regra da

proporcionalidade a legitimidade da submissão de indivíduos saudáveis a pesquisas

clínicas de medicamentos. Dessa análise, foi oportuno concluir que o direito à

disposição sobre o próprio corpo é um direito fundamental decorrente da solução da

colisão proposta e, principalmente, dos mandamentos constitucionais implícitos por

aplicação do §2º do art. 5º da CF.

Verificou-se, portanto, que há fundamentos jurídicos capazes de respaldar

o ato de disposição sobre o próprio corpo para estudos clínicos uma vez que esse

ato demonstrou-se adequado, necessário e proporcional. Além disso, ficou

demonstrado que os direitos à saúde e ao corpo permanecem com seus núcleos

essenciais intocáveis, sendo, inclusive, objeto central de proteção pelas normas

éticas e administrativas, o que corrobora, ainda mais, para a legitimidade jurídica do

ato de disposição sobre o próprio corpo para estudos clínicos de medicamentos.

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Por esse motivo, qualquer ação paternalista no sentido de coibir a

disposição sobre o próprio corpo para estudos clínico seria um tanto quanto

contraditória. Pois, mesmo que a ponderação de direitos apresentada tenha

demonstrado que há, nesse caso, prevalência da vontade individual, os direitos

fundamentais à saúde, integridade e vida permanecem como objeto central das

pesquisas, sendo certo que nenhum estudo poderá ter início ou continuidade em

caso de risco iminente à vida ou à saúde e à integridade dos participantes.

Embora haja um risco abstrato e presumido de lesão aos direitos

fundamentais à saúde e ao corpo, a autonomia da vontade como expressão máxima

da dignidade da pessoa humana prevalece. Porém, em contrapartida, ficou evidente

que o dever de manutenção de saúde, vida e integridade física permanece latente

em decorrência das normas éticas e regulamentares que respaldam as pesquisas

clínicas. Há, após a aplicação da regra de proporcionalidade, uma cedência –

somente parcial e temporária – do estado de saúde e do corpo do indivíduo. Não há,

nesse caso, a prevalência total de um direito sobre o outro.

Haverá, portanto, a disposição sobre o próprio corpo – nos pilares da

autonomia da vontade e do livre desenvolvimento da personalidade, de forma

temporária, sem que haja, entretanto, renúncia ao direito à saúde, integridade física

e vida, que deverá ser o âmago da atenção dos estudos clínicos, devidamente

fiscalizados pela Anvisa e pelos Comitês de Ética em Pesquisa – Sistema

CEP/Conep.

Nos fundamentos basilares da autonomia da vontade e de expressão da

dignidade da pessoa humana repousa o direito à disposição sobre o próprio corpo

para estudos clínicos, que, além de constituir o fundamento de fomento à saúde

coletiva, ao desenvolvimento científico e à solidariedade, imerge do direito à

liberdade individual, prezando pelo livre desenvolvimento da personalidade e da

autoconformação de vida.

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Por fim, o direito à disposição sobre o próprio corpo é um direito

fundamental constitucionalmente reconhecido nos termos do §2º do art. 5º, que,

assim como os demais direitos fundamentais, não é absoluto e encontra limites

intrínsecos na manutenção da saúde, da vida e, principalmente, no princípio da

dignidade da pessoa humana. Para que seja legítimo, deve estar pautado pelo

exercício da autonomia da vontade, através do TCLE, que deverá ser concedido de

forma livre, isenta de qualquer pressão ou coação.

Diante da necessidade primordial de consentimento livre e esclarecido, foi

objeto de estudo do último capítulo a alteração proposta pela RDC 466/2012, que

autorizou a compensação pecuniária dos participantes saudáveis. A alteração

proposta, embora inconstitucional, pois afronta os termos do § 4º do art. 199 da CF,

foi fruto de uma necessidade de incentivar as pesquisas de Fase I no Brasil, além de

ter grandes influências advindas das práticas internacionais.

Entretanto, tal ato não pode ser considerado legítimo, uma vez que

deverão ser considerados todos os aspectos sociais, políticos e econômicos do país

que poderão, eventualmente, devido tanto à vulnerabilidade de alguns grupos

quanto à fragilidade institucional nacional, implicar vício no consentimento dos

participantes dos estudos clínicos. Por essa razão, ao considerar a situação social,

política e econômica do Brasil, não nos parece uma alteração adequada do ponto de

vista jurídico, ético e social.

Observou-se que um tema de tamanha complexidade foi objeto de

regulamentação por meio de uma norma administrativa. Não nos parece adequado

um assunto que engloba tantos direitos fundamentais ficar à mercê da

discricionariedade estatal, ante a inércia legislativa. Com isso, a compensação

pecuniária concedida aos participantes de pesquisa clínica de Fase I, além de

ilegítima, é inconstitucional. Não se pretende afirmar que não haja fundamentos que

possam justificar tal medida, entretanto, buscou-se chamar a atenção dos

estudiosos do direito, da bioética, da ciência e da sociedade como um todo, para

que não haja um retrocesso no quesito proteção dos participantes de pesquisas

clínicas.

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Diante de todo o exposto, o presente trabalho trouxe as seguintes

conclusões:

♦ A pesquisa clínica de medicamentos é uma etapa essencial e

obrigatória ao fomento da saúde e do desenvolvimento científico

nacional, tendo sua base constitucional nesses direitos.

♦ A pesquisa clínica de medicamentos é responsável pelo fomento da

saúde coletiva e implica, consequentemente, ato de disposição sobre

o corpo humano.

♦ O ato de disposição sobre o próprio corpo para estudos clínicos é

um ato temporário de doação do corpo às pesquisas científicas que

não envolve, tendo em vista todo o arcabouço ético e regulatório, a

renúncia do direito a saúde, integridade física e vida dos participantes,

que permanecem sendo o ponto focal de proteção pelo Estado.

♦ A disposição sobre o próprio corpo é um direito fundamental

decorrente da autonomia da vontade individual, do livre

desenvolvimento da personalidade e da autoconformação de vida.

♦ O direito à disposição sobre o próprio corpo possui limites

intrínsecos relacionados ao direito a saúde, integridade fisica e vida

dos participantes.

♦ A compensação pecuniária destinada aos participantes configura

alteração normativa, emanada do poder discricionário do Estado,

ilegítima e inconstitucional, a qual deverá ser objeto de análise

legislativa com pareceres do direito, da bioética, da ciência, da

sociologia e da economia, tendo em vista a complexidade do tema, a

fim de evitar retrocesso na proteção dos participantes de pesquisas

científicas.

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Imprescindível reconhecer a fundamentalidade das pesquisas clínicas de

medicamentos para o desenvolvimento científico nacional, bem como para a

promoção e garantia da saúde individual e coletiva. O arcabouço regulatório e ético

atual estabelece normas e princípios capazes de conceder aos participantes a

segurança de seus direitos fundamentais, o que não elimina a necessidade de

legislação regulamentadora, haja vista a exigência constitucional disposta no §4ºdo

art. 199.

Evidente que a Anvisa e o Sistema CEP/Conep, ante a falta de legislação,

ganham maior importância na fiscalização de todos os estudos clínicos, a fim de

garantir que a condução das pesquisas esteja em consonância com os princípios

basilares da dignidade da pessoa humana e o respeito a autonomia, integridade,

saúde e vida de cada participante.

O ato de disposição sobre o próprio corpo para a realização de estudos

clínicos de medicamentos – de Fase I – configura um direito fundamental do ser

humano decorrente da interpretação sistemática da CF e devidamente justificado

pela regra da proporcionalidade. Entretanto, a compensação pecuniária advinda da

resolução administrativa, embora seja de suma importância para o incentivo das

pesquisas dessa natureza, deve ser analisada com cautela, tendo em vista a

vulnerabilidade e a fragilidade social e institucional do país, que poderá ceifar o

núcleo essencial do direito à disposição sobre o próprio corpo, qual seja: o

consentimento livre e esclarecido.

Para tanto, torna-se fundamental que, caso seja reconhecida a real

necessidade de compensação pecuniária, seja emanada pelo poder competente,

após estudo social, científico, legal, ético e econômico, uma legislação capaz de

estabelecer regras e limites, a ponto de que tal ato não configure real

comercialização do corpo humano, o que seria inconcebível pela expressa vedação

constitucional.

Mostram-se necessárias a proteção e a segurança de todos os direitos

dos participantes. Não se pode deixar cair no esquecimento todo o trajeto histórico

de construção de tal proteção, a fim de evitar qualquer retrocesso que, novamente,

subjugue a condição humana a mero objeto da ciência.

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