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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP MARIA PATRICIA VANZOLINI FIGUEIREDO NÊMESIS O PAPEL DA VINGANÇA NO DIREITO PENAL DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

MARIA PATRICIA VANZOLINI FIGUEIREDO

NÊMESIS

O PAPEL DA VINGANÇA NO DIREITO PENAL

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

MARIA PATRICIA VANZOLINI FIGUEIREDO

NÊMESIS

O PAPEL DA VINGANÇA NO DIREITO PENAL

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em Direito

das Relações Sociais sob a orientação do

Prof. Dr. Oswaldo Henrique Duek

Marques.

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

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Ao Professor Duek,

nenhuma gratidão será suficiente.

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AGRADECIMENTOS

O ponto de chegada traz em si a marca de cada passo da caminhada. E a cada passo

tive a sorte de contar com o inestimável apoio dos mais generosos companheiros de

estrada. Eles fazem parte dessas páginas de modo que é preciso agradecê-los

nominalmente.

Agradeço aos funcionários da Secretaria da PUC, nomeadamente ao Rui e ao Rafael,

que tantas vezes auxiliaram-me com as questões institucionais dessa empreitada

acadêmica.

Agradeço ao Prof. Eduardo Dias, que fez parte da minha banca de qualificação e me

concedeu indicações valiosas a respeito de Direitos Humanos.

Agradeço ao Prof. Guilherme Madeira, por ter sido tão solidário e por ter me

iluminado quanto aos temas afetos ao processo penal.

Agradeço ao Prof. Oswaldo Giacoia, que generosamente aceitou receber-me e que

com seu profundo conhecimento revelou-me uma dimensão filosófica até então

desconhecida.

Agradeço à Profa. Marina Vanzolini, brilhante antropóloga (e irmã) por ter me

propiciado o aporte etnográfico fundamental para a construção desse estudo.

Agradeço ao Prof. Gustavo Junqueira, por ter compartilhado comigo seus saberes e

sua experiência e agradeço duplamente, por ter possibilitado o começo de tudo,

apresentando-me a essa pessoa excepcional que é o Prof. Duek.

E, antes mesmo de tudo começar, agradeço ao Alexis, que fez tanto por mim que fica

difícil dizer. Por ter me transmitido a paixão e a coragem para caminhar, por ter

estado comigo durante toda a jornada, dividindo o fardo, incentivando a cada

instante, por ter segurado a minha mão e não ter soltado.

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De fato, enquanto o puro e o impuro permanecem distintos, pode-se

limpar mesmo as maiores máculas. Quando eles se confundem, nada mais

pode ser purificado. (René Girard)

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FIGUEIREDO, Maria Patricia Vanzolini. Nêmesis – o papel na vingança no Direito

Penal. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014. (Tese de

Doutoramento em Direito das Relações Sociais).

Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Henrique Duek Marques.

RESUMO

O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir

de uma perspectiva jurídica e etnográfica, com apoio, sobretudo, na obra de René

Girard. O trabalho inicia-se com uma distinção conceitual entre função e finalidade,

que será determinante para situar os planos em que se desenvolverão os argumentos

utilizados. Passa-se à análise crítica das teorias preventivas, com o objetivo

desmistificar os variados discursos baseados na prevenção. A seguir, analisam-se

duas possíveis alternativas às teorias preventivas, quais sejam, as teorias retributivas

e a teoria garantista de concebida Ferrajoli, apontando-se também seus defeitos e

inconsistências. A partir dessa desconstrução é possível passar a construir uma

proposta alicerçada na investigação arqueológica sobre as origens e perfis da

violência, bem como das estratégias concebidas para geri-la. Nesse passo, exploram-

se primeiro, a genealogia da violência e a eclosão da crise mimética. Depois, os

métodos preventivos (rigidez dos costumes, guerra, sacrifício) e curativos (vingança

privada e pena judicial) de gestão da violência, culminando-se com a demonstração

de que a função da pena coincide com a realização da vingança. No último capítulo,

estabelece-se, conectada com a função, a finalidade da pena, que é a realização da

vingança evitando-se a deflagração da crise mimética e delineia-se em traços gerais

como essa finalidade pode ser alcançada.

Palavras-chave: Finalidades da pena. Teorias da pena. Vingança. Sacrifício.

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FIGUEIREDO, Maria Patricia Vanzolini. Nêmesis – the role of vengeance in

criminal law. Sao Paulo: Pontifical Catholic University of Sao Paulo, 2014. (Dr.

Thesis)

Adviser: Prof. Dr. Oswaldo Henrique Duek Marques.

ABSTRACT

The included study is intended to investigate the functions and purposes of the

penalty from a legal and ethnographic perspective, with support , especially in the

work of René Girard. The work begins with a conceptual distinction between

function and purpose that will determine the plans in place that will develop the

arguments used. Passes to the critical analysis of preventive theories, aiming to

demystify the varied discourses based on prevention. Next, we analyze two possible

alternatives to preventive theories, namely, the retributive theories and the Ferrajoli

theory, also pointing out its flaws and inconsistencies. From that deconstruction can

spend to build a grounded in archaeological research on the origins of violence and

profiles, as well as strategies designed to manage it proposed. In this step, it first

explores the genealogy of violence and the outbreak of mimetic crisis. Then

preventive methods (rigidity of customs, war, sacrifice) and curative (private revenge

and judicial pen) management of violence, culminating with the statement that the

function of the sentence coincides with the completion of vengeance. In the last

chapter, it is stated, connected with the function, the purpose of punishment, which is

the realization of revenge avoiding the outbreak of mimetic crisis and is outlined in

general terms how this purpose can be achieved.

Keywords: Purpose of punishment. Theories of punishment. Revenge. Sacrifice.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

PARTE I: TEORIAS DA PENA .............................................................................. 16

INTRÓITO: FUNÇÃO E FINALIDADE ................................................................... 16

CAPÍTULO 1: O MITO DA PREVENÇÃO .............................................................. 20

1. Teorias preventivas ou relativas .......................................................................... 22

1.1. Uma história da prevenção ........................................................................... 23 1.2. Modalidades de prevenção ........................................................................... 43

1.2.1. Prevenção geral e a instrumentalização do indivíduo ........................... 43

1.2.1.1. Prevenção geral negativa - FEUERBACH .................................... 44 1.2.1.2. Prevenção geral positiva - JAKOBS, MIR PUIG, HASSEMER ... 50

a) Prevenção geral positiva fundamentadora .......................................... 50 b) Prevenção geral positiva limitadora .................................................... 56

1.2.2. Prevenção especial e a pena indeterminada .......................................... 58 1.2.2.1. Prevenção especial positiva - LISZT ............................................. 60 1.2.2.2. Prevenção especial negativa ........................................................... 66

1.2.3. Neo-preventivismo gerencialista, new penology e o grande

encarceramento ............................................................................................... 69

2. Teorias ecléticas - ROXIN .................................................................................. 71

CAPÍTULO 2: PARA ALÉM DA PREVENÇAO ..................................................... 82

1. Teorias retributivas ou absolutas ......................................................................... 82

1.1. Retribuição moral – KANT .......................................................................... 82 1.2. Retribuição jurídica – HEGEL ..................................................................... 88 1.3. Neo-retributivismo anglo-saxônico - HIRSCH ............................................ 90 1.4. Neo-retributivismo romano-germânico – ZACZYK ................................... 95

2. Teoria garantista - FERRAJOLI ....................................................................... 102

2.1. Apresentação .............................................................................................. 102

2.1.1. Parâmetros epistemológicos ................................................................ 103 2.1.2. Crítica metaética às teorias da pena .................................................... 106 2.1.3. Lineamentos teóricos .......................................................................... 108

2.2. Crítica ......................................................................................................... 111

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PARTE II – A VINGANÇA E O DIREITO PENAL ........................................... 116

CAPÍTULO 3: ARQUEOLOGIA DA VIOLÊNCIA ............................................... 116

1. A natureza da conflitividade humana ................................................................ 116

1.1. A violência essencial .................................................................................. 116

a) A hipótese de BURKET ............................................................................ 116 b) A hipótese de FREUD .............................................................................. 120 c) A hipótese de GIRARD ............................................................................ 123

1.2. A vingança infinita ..................................................................................... 126 1.3. A crise mimética ........................................................................................ 128

1.4. O bode expiatório ....................................................................................... 129

2. A cultura da violência ....................................................................................... 131

2.1. Meios preventivos ...................................................................................... 132 a) Rigidez dos costumes ................................................................................ 132 b) Guerra ....................................................................................................... 134

c) Ritos sacrificiais ........................................................................................ 135 2.2. Meios curativos .......................................................................................... 143

a) Sociedades sem Estado: indiferença, composição, sistema vindicativo .. 143 b) Sociedades com Estado: sistema “judiciário” ........................................... 150

CAPÍTULO 4: NÊMESIS ........................................................................................ 165

1. O desafio das teorias negativas ......................................................................... 168

1.1. A proposta abolicionista ............................................................................. 168 1.2. Teoria agnóstica - ZAFFARONI ............................................................... 176

2. A moderna cultura da violência ........................................................................ 178

2.1 Meios preventivos ....................................................................................... 179 2.2. Meios curativos .......................................................................................... 183

2.1.1 Retributividade ..................................................................................... 185 2.1.2. Minimalismo ....................................................................................... 187 2.1.3. Ritualística ........................................................................................... 189 2.1.4. Humanidade ........................................................................................ 195

3. A vingança e a Constituição .............................................................................. 206

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 209

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 213

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INTRODUÇÃO

Malgrado o cuidado que sempre se deva ter quando se trata de generalizações,

é possível afirmar-se, com elevado grau de certeza, que a violência é um ingrediente

comum a todas as comunidades humanas. O conteúdo semântico da violência é

diversificado, mas a sua existência formal parece difundir-se no tempo e no espaço e

atingir todas as sociedades passadas e presentes, próximas e remotas.

Em face desse elemento, tão constante quanto perturbador, os homens

articularam diferentes respostas. Uma dessas respostas é a pena estatal, que consiste

na imposição, por parte de um poder centralizado, de um ato violento ao autor da

violência. Essa não é a única estratégia possível, pois há comunidades humanas que

não dispõem nem de Estado e nem de pena e que organizaram outros mecanismos

para gerir a questão da violência. No entanto, nas sociedades modernas – ditas

civilizadas – a pena estatal assumiu protagonismo absoluto.

Portanto, sendo a violência um dado necessário e a pena um dado contingente

deve-se naturalmente questionar: é legítima essa estratégia de articulação da

violência? O que dá ao Estado o direito de impor violência aos seus cidadãos em face

de atos de violência praticados por eles?

Trata-se de uma indagação profunda e complexa, imbricada com as grandes

áreas do saber sobre o homem: a Filosofia, a Antropologia, a Política, a Psicologia e

naturalmente o Direito. E, como é comum acontecer com as questões existenciais, a

procura dessa resposta tende a provocar frustração e perplexidade: a enormidade da

pergunta dá origem a uma infinidade de conclusões, muitas contraditórias e, não raro,

parciais e acanhadas demais diante o tamanho da interrogação. Mas ainda que

provavelmente jamais se vá chegar a uma resposta definitiva e inteiramente

satisfatória, a questão sobre as finalidades da pena permanece no horizonte da ciência

penal obrigando-a a avançar.

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As tentativas de resposta a essa pergunta constituem o que se costuma chamar

de “teorias da pena”. Tais teorias podem ser desde logo separadas em dois grupos: (a)

teorias positivas, justificacionistas ou legitimadoras e (b) teorias negativas, agnósticas

ou deslegitimadoras.

Os modelos justificacionistas são ordinariamente divididos entre teorias

preventivas (ou relativas), teorias retributivas (ou absolutas) e teorias mistas, que

tentam conciliar e compor as duas primeiras. Por diferentes que sejam entre si, todas

as teorias justificacionistas compartilham uma visão positiva da pena, vale dizer,

entendem que a pena, apesar da natureza violenta que a constitui, tem alguma virtude,

acarreta algum beneficio à sociedade e que essa virtude é o que dá ao Estado

legitimidade para aplicá-la (jus puniendi).

Os modelos negativos não reconhecem na pena nenhuma virtude e

compreendem-na como mero exercício de poder violento. Entendem que não há que

se buscar qualquer fundamento de legitimidade para a punição estatal. Sob essa

perspectiva, não há algo como um direito de punir (jus puniendi) mas apenas um

poder de punir (potestas puniendi). Dessa forma, o Direito Penal, enquanto sistema

punitivo, não tem nenhuma finalidade, e, enquanto ciência da punição, tem como

única finalidade limitar ao máximo o exercício daquele poder.

O estado atual da questão é uma clara predominância das teorias

justificacionistas de cunho preventivista, ou das teorias mistas com ênfase na

prevenção. Quanto às teorias retributivas, a visão geral é a de que foram

historicamente superadas em virtude de sua fragilidade conceitual insuperável,

sobretudo em dois aspectos: i) o caráter metafísico da premissa sobre a qual se

sustentam, representada por uma ou outra ideia abstrata e arbitrária de justiça; ii) a

inutilidade da consequência que instituem, voltando-se a um passado cuja reparação é

impossível.

De fato, as teorias retributivas defrontam-se com um problema até hoje

intransponível: como fundamentar a retribuição? Em suma, porque, em nome de que,

é preciso ou desejável retribuir?

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Fato é que as teorias retributivas (mesmo em suas versões modernas) jamais

conseguiram refutar de forma convincente a acusação de serem tautológicas e

contaminadas por uma perspectiva metafísica incompatível com a racionalidade

exigida da atuação política no contexto de um Estado de Direito secular. Por isso

quedaram associadas à irracionalidade, presas no obscuro passado pré-iluminista e

ligadas ideologicamente ao dogma religioso ou ao absolutismo estatal. O que delas

ainda se pode aproveitar, consente-se, é no máximo o limite negativo que asseguram,

plasmado na ideia de proporcionalidade entre o crime e castigo, o que resolve o

problema de quando a pena não pode ser aplicada, mas nada esclarece a respeito de

se, porque e quando a pena deve ser aplicada.

Em contraste com esse modelo tido como arcaico e obsoleto, as teorias

preventivas apresentam-se como uma evolução. O espírito racional, laico e

pragmático postula que a pena só se justifica se houver uma finalidade concreta e

orientada ao futuro, e essa finalidade deve ser a prevenção de novos delitos. A

separação entre direito e moral, entre direito e religião, própria do ambiente

iluminista, foi o cenário e o impulso para o florescimento de uma perspectiva

utilitarista da pena e na visão ilustrada a utilidade deveria consistir precisamente na

prevenção de crimes futuros.

A partir de então, as teorias preventivas ou relativas consagraram sua posição

central nos modelos teóricos de justificação do jus puniendi, posição que mantém, em

grande medida, até os tempos atuais. Foram encampadas por quase todas as

colorações e ideologias, desde as mais à direita (para as quais funcionam como

fundamento de legitimidade dos movimentos law and order, centrados na defesa

social) quanto as mais à esquerda (constituindo a base da fala humanitária alicerçada

na ressocialização do condenado).

Embora tenham sido desde sempre alvo de inúmeros questionamentos, o fato

é que a cada obstáculo que encontraram em seu caminho as teorias relativas

responderam criando novos desdobramentos e ramificações (prevenção geral

negativa, especial negativa, especial positiva, geral positiva) mas sempre mantendo

como fio condutor a ideia de prevenção, tal e qual um rio que fosse contornando os

acidentes geográficos e com isso se tornasse cada vez mais caudaloso.

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O resultado é, atualmente, uma predominância da teorias preventivas ditas

ecléticas que reúnem, de forma aditiva ou dialética, todas as finalidades preventivas

já concebidas, em um todo mais ou menos articulado, assumindo-se que o Direito

Penal previne crimes de todas aquelas maneiras: ameaçando com a pena ou

reforçando valores sociais (na fase da cominação legislativa e da aplicação judiciária)

e ressocializando ou neutralizando o infrator (na fase de execução). Nesse contexto o

caráter retributivo é, por vezes, referido, mas apenas como um elemento externo para

conferir limites e proporcionalidade ao resultado dessa composição. Mesmo como

limite, como instrumento que permite o ajuste entre a pena e a culpabilidade, a

validade das teorias retributivas é hoje posta em dúvida e a ideia de

“proporcionalidade” é por vezes considerada tão mítica e artificial quanto a própria

noção de “justiça”: afinal, como medir a equivalência entre a subtração de uma

carteira e um ano de reclusão?

No Código Penal Brasileiro a ideia de prevenção vem estampada no artigo 59,

com a redação que lhe foi dada pela lei 7.209/84 (na redação original do Código de

1940 não havia alusão aos critérios de necessidade e suficiência da pena para a

reprovação e prevenção do delito). A prevenção dos delitos é oficialmente

considerada como o propósito fundamental da aplicação da pena. Quanto ao termo

“reprovação”, entendo que não há como interpretá-lo como “retribuição”. “Retribuir“

e “reprovar” têm sentidos inteiramente diversos. Enquanto a retribuição denota uma

ação exterior e tem o sentido objetivo de compensar, reprovação é a expressão de um

desvalor, de um sentimento ou juízo de desaprovação. De forma que, segundo esse

ponto de vista, pode-se dizer que o Código Penal Brasileiro acolhe expressamente

uma finalidade preventiva e uma finalidade “reprovativa”, sendo que essa última está

muito mais próxima da ideia de prevenção geral positiva (reafirmação de valores

ético-jurídicos) do que do conceito de retribuição.

A hegemonia das teorias preventivas é, no entanto, um edifício imponente,

mas instável e com inúmeros pontos de fragilidade.

A pesquisa desenvolvida por FOUCAULT, RUSCHE e KIRCHHEIMER,

BARATTA, PAVARINI, dentre outros tantos representantes da criminologia crítica,

revela que a ideologia preventiva assumiu o lugar de destaque que hoje ocupa a partir

do surgimento da sociedade liberal e construiu-se imbricada na própria estrutura

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dessa sociedade como parte fundamental das estratégias de dominação, não através

da redução do crime, mas ao contrário, através da produção da delinquência. O

desdobramento da ideia de prevenção em submodalidades (geral, especial, positiva,

negativa), que ora se separam em teorias absolutamente distintas, ora se fundem e

coordenam-se das mais diversas maneiras, jamais foi capaz de elidir esse fato

fundamental: o Direito Penal não pode, não quer e efetivamente não realiza

prevenção criminal.

De outra mão, cada submodalidade de prevenção engendra certo número de

problemas específicos: a instrumentalização do indivíduo, a tendência ao terror penal,

ao Direito Penal simbólico, a dissolução da fronteira entre culpabilidade e

periculosidade, a tendência à pena indeterminada ou à segregação perene, dentre

tantos outros que podem e são há muito tempo apontados pelos juristas, sociólogos e

filósofos, modernos e antigos.

E esses múltiplos defeitos teóricos, provenientes de origens diversas,

confluem todos para um mesmo destino: o claro e muito real potencial autoritário

embutido na ideologia preventivista.

O discurso da prevenção tem sido reiteradamente utilizado como base e razão

para práticas abusivas de recrudescimento irracional das sanções (tanto no âmbito

legislativo quanto no judiciário) sempre sob o argumento, politicamente correto e

imbatível perante a opinião pública, de combate à criminalidade. A adoção da

ideologia preventiva, sob a forma de uma nova penologia pragmática e de cariz

abertamente defensivista presta-se perfeitamente a dar fundamento e lastro à

espetacular demanda por punição que (por razões que certamente mereceriam outro

estudo) grassa na sociedade brasileira (e certamente não só nela).

A pretexto de prevenção geral negativa elevam-se as penas em abstrato ao

sabor do clamor midiático, com absoluto descaso à proporcionalidade cardinal ou

ordinal (como foi o caso da exasperação da pena para o crime de corrupção passiva,

pela lei 10.763/03); por prevenção geral positiva mantém-se a punição de condutas

mesmo quando a pena revela-se, na prática, absolutamente inidônea para evitar o seu

cometimento (ex vi, a incriminação do aborto); em nome da prevenção especial

positiva, dificulta-se o acesso aos institutos da execução penal com base em

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misteriosos diagnósticos de periculosidade (continua sendo possível negar o direito à

progressão de regime e o livramento condicional com base no exame criminológico,

como se se tratasse de um método “científico” de medição do grau de reabilitação do

condenado); com lastro na prevenção especial negativa determinados condenados são

“neutralizados”, ainda que isso implique em tratamento cruel equivalente à tortura

(como no nosso conhecido regime disciplinar diferenciado).

Em suma as teorias preventivas apoiam-se em um fundamento transcendente

ao ordenamento e aparentemente racional, mas sem efetiva sustentação empírica,

além de conduzirem a um modelo autoritário e desproporcional de Direito Penal. As

teorias retributivas, que podem chegar a conclusões mais razoáveis, apoiam-se em

um fundamento imanente e autorreferente e só podem justificar-se externamente por

meio de um ato de fé em uma particular noção de justiça.

Há assim uma lacuna que o presente estudo pretende contribuir para colmatar,

propondo uma nova visão da finalidade da pena construída a partir da análise e do

diálogo com as fontes que nos são asseguradas pela ciência histórica, pela

sociobiologia e pela antropologia. Orientado a esse escopo, o trabalho será

desenvolvido em duas partes decompostas em cinco capítulos. Cada qual, em regra,

será articulado em torno de um autor de base aos quais agregarei outros aportes

teóricos:

A Parte I, intitulada “Teorias da Pena” será dedicada à exposição do

problema que serve de base para o estudo: a insuficiência das teorias da pena até hoje

propostas. Essa parte será composta por três segmentos.

O Introito cuida de esclarecer sinteticamente os parâmetros epistemológicos

que orientarão o trabalho, notadamente os conceitos de função, finalidade e

consequências da pena.

No Capítulo 1, intitulado “O Mito da Prevenção”, abordarei as teorias

preventivas e as teorias ecléticas com ênfase na prevenção, porque são as que

correspondem ao entendimento dominante e que tem provocado sérias deformações

na estrutura do Direito Penal, apoiando-me sobretudo no pensamento de MICHEL

FOUCAULT.

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No Capítulo 2, intitulado “Para além da Prevenção” examinarei enfoques

alternativos às teorias preventivas, notadamente as teorias retributivas clássicas e

modernas, e a teoria proposta pelo modelo garantista de FERRAJOLI, demonstrando

seus equívocos ou insuficiências.

Na Parte II, intitulada “A Vingança e o Direito Penal” passarei à construção

da minha hipótese de trabalho e à exposição da tese proposta. Essa parte será

composta por dois segmentos.

No Capítulo 3, intitulado “Arqueologia da Violência” exporei minha hipótese

de trabalho: o Direito Penal tem como função realizar a vingança e como finalidade

fazê-lo de forma a evitar a deflagração da crise mimética. Minha construção terá

como alicerce principal a obra de RENÉ GIRARD.

No Capítulo 4, intitulado “Nêmesis” apresentarei minha tese: de forma a

cumprir sua finalidade o Direito Penal deve comportar, no mínimo, quatro

características que lhe conferem a sacralidade necessária para realizar a vingança e ao

mesmo tempo, evitar a indiferenciação violenta, quais sejam: retributividade,

minimalismo, ritualização e respeito aos direito humanos.

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PARTE I: TEORIAS DA PENA

INTRÓITO: FUNÇÃO E FINALIDADE

Em linhas gerais a proposta desse trabalho é fornecer alguma contribuição

para a resposta a uma indagação eterna e fundamental para a ciência do direito, qual

seja: “porque punir?”. A resposta a essa pergunta tem interesse prático imediato, pois

uma vez que os fins condicionam os meios, no sistema penal é o “porque” que

determina o “quando” e o “como” punir, ou seja, toda a dogmática penal e mesmo as

escolhas politico-criminais devem ser funcionalizadas a um determinado fim que se

possa identificar.

Para que a questão “porque punir?” possa operar como fundamento de

legitimidade e também vetor para a edificação do sistema penal, é evidente que ela

deve encarnar uma perspectiva externa ao ordenamento positivo. Em outras palavras,

quando se pergunta “porque punir?” a resposta não há de ser “porque foi praticada

uma conduta tipificada como crime”. A indagação situa-se no terreno metajurídico e

questiona a legitimidade do sistema penal a partir de fora.

No entanto, mesmo considerando-se essa perspectiva externa, a pergunta

“porque punir?” pode ser enunciada em dois sentidos diversos.

Pode ser feita no plano da experiência empírica (no plano do ser) e indagar

porque se pune, ou seja, porque as sociedades humanas que empregam um modelo

punitivo penal efetivamente o fazem ou, em um perfil mais modesto, porque a nossa

sociedade utiliza o Direito Penal. A essa questão de cunho ontológico, empírico e

descritivo chamarei de função da pena.

Mas a pergunta “porque punir?" também pode ser feita em sentido diverso, no

plano da prescrição normativa (no plano do dever ser) e indagar porque se deve punir

ou, por outras palavras, porque a punição deve ser valorativamente considerada um

bem que justifica que ela seja convertida em um direito de punir do Estado (jus

puniendi)? A essa questão de cunho deontológico, valorativo e prescritivo chamarei

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de finalidade da pena. É possível dessa forma defender-se que a pena não tenha

nenhuma finalidade (é o que faz a teoria agnóstica, por exemplo), mas não se poderia

sustentar que ela não possui função.

Por fim, um último conceito exige esclarecimento. Quaisquer que sejam suas

funções e suas finalidades, a cominação e a imposição da pena carregam consigo

sempre múltiplas decorrências, efeitos primários ou colaterais que se verificarão no

plano empírico e que podem ser axiologicamente desejáveis ou indesejáveis.

Chamarei esses efeitos de consequências da pena.

Essa sintética aclaração conceitual põe a nu então um problema

metodológico: em que plano será desenvolvido o presente trabalho?

A separação entre ser e dever-ser, instituída por HUME, consolidada por

KANT1 (que postulou não apenas a cisão, mas a incomunicabilidade desses dois

planos), chancelada por RADBRUCH2 e KELSEN3, foi encampada pelo pensamento

positivista sob a forma de um dogma inquestionável. Não causa espanto que seja essa

a posição defendida ferrenhamente por FERRAJOLI4, que extensamente expõe os

inúmeros equívocos aos quais a confusão entre esses dois planos podem conduzir.

Ocorre que, se mesmo no campo jus filosófico a aplicação absoluta da Lei de

Hume é questionável 5 , no campo específico da penologia ela é especialmente

1 Como se sabe, na Crítica da Razão Pura Kant, em face da pergunta ”o que posso conhecer?”

estabelece a incognoscibilidade do ser. Mas na Critica da Razão Prática ao ver-se confrontado com a

questão “o que devo fazer?” afirma que a lei moral, independentemente do ser, impõe-se ao querer

humano. Cf. Jacy de Souza Mendonça. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2006,

p. 398. 2 “A filosofia de Kant já nos ensinara ser impossível extrair daquilo que é aquilo que vale, que é

direito, que deve ser”. Apud Jacy de Souza Mendonça. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo:

Quartier Latin, 2006, p. 399 3 “Do fato de que uma coisa é não se pode deduzir que uma coisa deve ser, assim como do fato de que

uma coisa deve ser não se pode deduzir que uma coisa é”. Apud Jacy de Souza Mendonça. Curso de

Filosofia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 399-400. Por essa razão é que o fundamento

de validade de uma norma só pode ser buscado em outra norma hierarquicamente superior. 4 Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2010, p. 299-300. 5 Isso por ser o direito um objeto diferenciado dos objetos naturais e mesmo dos demais objetos

culturais: um objeto cuja própria essência é deontológica e prescritiva. De modo que a separação entre

ser e dever ser, que se traduz, nesse contexto, na separação entre direito e moral não é tarefa simples,

mesmo para um positivista convicto como Ferrajoli. Quando, em seu modelo constitucionalista

garantista, faz o ordenamento incorporar uma dimensão axiológica através da consagração

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18

inadequada. Nessa área que se debruça sobre um tema tão sensível como é a violência

do Estado sobre o cidadão, buscando explicá-la, fundamentá-la, modelá-la, delimitá-

la, o alheamento entre o empírico e o normativo é insustentável. Explicar porque a

pena existe, sem que essa explicação possa ter qualquer impacto sobre a formulação

de finalidades valorativamente positivas, resulta em um retrato estéril e de interesse

prático nulo (ao menos para a ciência jurídica). Buscar legitimá-la normativamente,

ignorando sua real função resulta de um castelo de cartas, sem sustentação. Nos dois

casos há um prejuízo palpável: perde-se todo potencial ativo, criativo, transformador

da realidade contido no pensamento.

O próprio FERRAJOLI, que denomina “ideológicas” todas as propostas que

misturam inadvertidamente o ontológico e o deontológico, o descritivo e o

prescritivo, admite que, em alguma instância esses mundos devem-se tocar.

Comentando as críticas formuladas a partir do ponto de vista empírico e destinadas

ao mundo normativo, FERRAJOLI conclui: “Existe um único caso em que elas são

pertinentes, qual seja, quando argumentam não apenas com a não realização, mas sim

com o fato de que o objetivo indicado é irrealizável empiricamente” 6. Ou seja,

embora ser e dever ser pertençam a planos distintos (o fatos das coisas serem de

determinada maneira não vincula de forma alguma a forma que elas devem ser) há

um ponto de intersecção: quando a finalidade prescrita pelo dever ser mostra-se

inteiramente irrealizável no mundo do ser.

Sem descuidar dos perigos da falácia naturalista (tomar como dever ser o que

é afirmando: “se a pena é assim, é porque assim deve ser”) e da falácia normativista

(tomar como ser aquilo que deve ser afirmando: “se a pena deveria ser isso, então é

isso”) creio que essa concessão, proveniente de um dos mais aguerridos defensores

do positivismo formalista, dá abertura a outros pontos de contato.

constitucional de direitos fundamentais, por exemplo, instituindo a cisão entre vigência e validade,

embora, segundo sua própria visão, mantenha-se no marco do positivismo, abre espaço, no mínimo,

para a retomada da discussão a respeito da relação entre esses dois campos. Como afirma Maria

Iglesias Vila “a dificuldade que de uma maneira ou de outra o positivismo segue enfrentando é a de

admitir a incorporação de uma dimensão substantiva de validade jurídica sem admitir ao mesmo tempo

uma conexão necessária entre direito e moral.” Maria Iglesias Vila. “El Positivismo en el Estado

Constitucional”. In: Miguel Carbonell e Pedro Salazar. Garantismo – estúdio sobre el pensamento

jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 90. (Tradução livre). 6 Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoría do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2010, p. 303.

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19

Até mesmo porque o conceito de “irrealizável empiricamente” é dotado de

uma falsa objetividade. Salvo situações tão extremas quanto desimportantes será

difícil constatar essa condição nos termos absolutos que parecem ser exigidos por

FERRAJOLI. Caso o objetivo normativamente proposto seja a eliminação de todas a

violência é fácil perceber que ele é plenamente irrealizável, mas caso o objetivo seja a

redução significativa das taxas de criminalidade ou, de forma ainda mais difusa, dos

atos de agressão (e quantas variáveis, inclusive valorativas, introduzem-se nessa

asserção), haverá certamente um grande espaço para dúvida e muito pouca

objetividade.

De forma que, insista-se, com o cuidado devido para não confundir o

descritivo com o prescritivo, por outro lado não é possível nem recomendável

desconectar essas duas perspectivas, mas ao contrário, conclusões profícuas só

podem surgir da comunicação e do diálogo entre elas. O lugar desse trabalho situa-se

exatamente nesse espaço de comunicação. Em suma, na Parte I desse trabalho, as

criticas às teorias da pena serão lançadas tanto de um ponto apoio empírico quanto do

ponto de apoio normativo. E na Parte II apresentarei uma construção alicerçada

diretamente sobre um fundamento empírico, mas que ira condicionar a seguir, uma

segunda construção, sobre um fundamento normativo. Embora essas duas

construções situem-se em planos diferentes, parto da premissa teórica de que tais

planos são e devem ser comunicáveis.

Colocadas as premissas, passarei a examinar as doutrinas e discursos que

procuram justificar as finalidades da pena.

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CAPÍTULO 1: O MITO DA PREVENÇÃO

A tradicional classificação das teorias justificacionistas ou legitimadoras da

pena distingue dois grandes grupos de discursos de fundamentação: teorias

retributivas ou absolutas (diz-se, dirigidas ao passado e autorreferentes) e preventivas

ou relativas (diz-se, dirigidas ao futuro e utilitárias). A esses se soma um terceiro, o

das teorias ecléticas ou mistas (que constituem uma fusão das duas primeiras,

compreendendo e integrando múltiplas finalidades).

Apesar das grandes diferenças entre elas, partilham todas uma característica

comum, na medida em que atribuem à pena uma fundamentação positiva, apontando

a punição como um direito do Estado (jus puniendi) justamente por corresponder a

algum tipo de bem:

Todos os discursos de justificação que caracterizam o Direito Penal

dogmático e a criminologia como ciências modernas, exatamente por

serem projetos epistemológicos fruto da Ilustração, atribuem virtudes

civilizatórias à sanção penal e, a partir de expectativas otimistas, projetam

instrumentos de concretização. 7

A despeito das consideráveis diferenças sistemáticas (common law e civil

law), regionais, geopolíticas e nacionais, pode-se afirmar que, de forma geral, o

discurso penal moderno é claramente marcado pela predominância das teorias

preventivas ou com ênfase na prevenção. Em oposição às teorias retributivas, elas são

apontadas como mais racionais e humanas, basicamente pelo fato de atribuírem à

incomoda violência da pena um fundamento pragmático e uma finalidade

socialmente útil, que é a promoção da segurança. De fato costuma-se assumir que

“prevenção“ e pena “útil” é o par que se contrapõe a “retribuição” e “pena justa”,

sendo que, em certo sentido, a própria utilidade acaba sendo incorporada como um

critério de justiça (a conhecida ideia de que a pena só é justa se for necessária, só é

justa se for útil). A relação entre prevenção e utilidade esteve presente desde o início

7 Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 146. Em oposição aos modelos justificacionistas situam-se as teorias deslegitimadoras ou

negativas, formuladas a partir das considerações da criminologia crítica, que recusam qualquer

finalidade ou valor positivo à pena. Elas serão abordadas no Capitulo 4 desse trabalho.

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e encontra-se no fundo de toda a legitimação das teorias preventivas. A pena

preventiva é boa por ser útil. A pena retributiva é má (considera-se) por ser inútil.

Vincular utilidade exclusivamente às teorias preventivas é um claro equívoco

que deve ser afastado de plano. Mesmo teorias retributivas podem ver na retribuição

uma utilidade e é perfeitamente sustentável que a pena tenha uma finalidade

socialmente útil ainda que inteiramente diversa da prevenção de delitos futuros. A

nota característica das teorias preventivas, portanto não é a utilidade, mas a utilidade

específica de prevenir crimes futuros, vale dizer, a finalidade de representar um papel

central nas políticas de segurança pública. Esse papel é hoje largamente aceito e a

ideia de que a pena estatal tem como missão evitar a prática de crimes 8 é

profundamente arraigada na consciência comunitária, a ponto de ter se tornado quase

que um axioma, uma verdade tão evidente que não necessita de qualquer prova ou

análise. Consente-se, por vezes, que o Direito Penal não seja a única estratégia,

admite-se, até mesmo, que talvez não seja a melhor estratégia, mas a opinião geral

permanece sendo a de que, se existe alguma razão para a existência do Direito Penal,

essa razão só pode ser a prevenção de delitos futuros. Embora a ideia que subjaza às

teorias preventivas não seja nova9, o seu florescimento, no seio do iluminismo, parece

credenciá-la moralmente para além de qualquer discussão. Além disso, seus objetivos

são tão legítimos e sua eficácia (ao menos como parte das estratégias e recursos

estatais para a erradicação do crime, ao menos como ultima ratio, a ratio extrema,

mas ainda assim necessária) é tão evidente, que não há muito animo em questioná-

los. Referindo-se à ideia de prevenção, com acerto ZACYZIK afirma:

8 Não pretendo incorrer no ingênuo equivoco de identificar “crime” com “violencia, mas, de outra

mão, não é o propósito desse trabalho explorar as distancias e diferencas entre esses dois conceitos, o

que exigiria uma incursão no terreno da criminologia que não será possivel realizar aqui. 9 Já em Platão: “- O ateniense: No que respeita a danos e ganhos injustos no caso em que alguém tem

ganho sobre o outro atuando injustamente para com ele, todos os casos passíveis de cura temos que

curar, considerando-os como doentes de alma. E deveríamos afirmar que nossa cura para a injustiça

reside nessa direção… - Clinias: Que direção? - O ateniense: Esta: sempre que alguém comete

qualquer ato injusto de grande ou pequena gravidade, a lei o instruirá e absolutamente o compelirá no

futuro a não mais ousar deliberadamente cometer tal ação, ou ao menos, a cometê-la com cada vez

menor frequência, além de pagar pelo dano provocado. Efetuar tal coisa, seja por ação ou discurso, por

meio de prazeres e dores, honras e desonras, multas em dinheiro e recompensas em dinheiro, e em

geral por quaisquer meios empregáveis para fazer as pessoas odiarem a injustiça e amar, ou ao menos

não odiar a justiça é precisamente a função das mais nobres leis.” Platão. As Leis. Bauru: Edipro, 1999,

p. 369.

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22

O Direito Penal do século XX, especialmente quando catalogava a si

mesmo como ordenamento „moderno‟, converteu essa ideia em algo

sagrado – em um artigo de fé – em torno do qual não se deve mais dar

voltas, a não ser que se queira converter realmente no oposto do que é em

essência, isso é, em algo verdadeiramente acientífico. 10

No presente capítulo colocarei à prova esse dogma e investigarei o

desenvolvimento histórico bem como as características das teorias preventivas e das

teorias polifuncionais com ênfase na prevenção de forma a apurar se, de fato, a pena

deve ter essa finalidade.

Um último comentário é necessário a respeito da ordem de exposição das

teorias. Não obedecerei à sequência cronológica mais ou menos exata na qual tais

teorias surgiram. Ao invés, principiarei pela análise e crítica das teorias preventivas e

ecléticas com ênfase na prevenção, porque atualmente hegemônicas e porque é delas

que advém os maiores problemas para o controle do poder punitivo. No capítulo

seguinte passarei a examinar as eventuais alternativas, quais sejam, as teorias

retributivas e as teorias negativas da pena, de forma a esclarecer se essas seriam

opções válidas e sustentáveis ao modelo preventivo.

1. Teorias preventivas ou relativas

As teorias preventivas grosso modo, assumem que a pena: (a) tem como

fundamento a promoção da segurança e, portanto, tem uma finalidade socialmente

útil (e por isso são chamadas relativas, em oposição às teorias retributivas, chamadas

absolutas em virtude de sua configuração autorreferencial); (b) essa finalidade é

evitar que as condutas ilícitas sejam ou voltem a ser praticadas.

É consenso a ideia de que a teoria da prevenção ganhou consistência no bojo

de um movimento político mais abrangente, a reforma penal da Ilustração,

constituído pelo esforço para se conferir racionalidade e limites ao que antes parecia

mero emprego da força, exercício do poder divino e absoluto do monarca sobre a vida

10

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado de

Colombia, 2010, p. 121. (Tradução livre).

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e a morte dos seus súditos, dito de outra forma, o esforço em direção à humanização

e racionalização do Direito Penal.

Mas é de se questionar se esse é, de fato, o princípio e fundamento do Direito

Penal iluminista e, principalmente, é preciso verificar como aqueles ideais

desenvolveram-se e modificaram-se ao longo dos séculos XIX e XX. Nesse passo,

presta grande contribuição a análise de FOUCAULT acerca da mudança na prática

governamental no século XVIII e que pode explicar, ou por em relevo, aspectos

geralmente desconsiderados à respeito do nascimento e consolidação da teoria

preventiva 11.

1.1. Uma história da prevenção

Segundo FOUCAULT, durante os séculos XVI e XVII a racionalidade

governamental regia-se por um princípio chamado pelo autor de “razão de Estado”,

cujo objetivo era, sinteticamente, a consolidação, enriquecimento e fortalecimento do

Estado. 12

Pautada por esses objetivos a razão de Estado fundava-se sobre três pilares: o

mercantilismo, enquanto modelo econômico; o aparato diplomático-militar como

política externa e o estado de polícia, enquanto política interna. 13

A racionalidade governamental moldada pela razão de Estado e baseada no

mercantilismo instituía portanto uma dicotomia.

11

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 12

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 06. 13

Segundo o autor, o mercantilismo consistiu no sistema de produção e circulação comercial cujos

princípios eram o enriquecimento do Estado pela acumulação monetária; o fortalecimento do Estado

pelo crescimento da população e a manutenção do Estado em situação de permanente concorrência

com as potências estrangeiras. O estado de polícia consiste na regulamentação indefinida do país, no

âmbito interno. A política externa é pautada pela “organização de um aparato diplomático militar cujo

objetivo é exatamente manter a pluralidade dos Estados fora de qualquer absorção imperial e de tal

modo que certo equilíbrio possa se estabelecer entre eles, sem que finalmente unificações do tipo

imperial possam se dar através da Europa.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo:

Martins Fontes, 2004, p. 08.

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24

De um lado, a limitação dos objetivos externos. Ao contrário do que havia

acontecido na Idade Média, o projeto do soberano no século XVII não era assumir,

perante os outros Estados europeus, a posição unificadora de um império global.

Admitia-se que cada Estado tivesse seus interesses e o direito de defendê-los e, dessa

forma, devia haver entre eles um equilíbrio de forças que justamente impedisse que o

fortalecimento exacerbado de um ameaçasse a existência dos outros. 14

Mas de outro lado, e como contrapartida necessária do primeiro, a razão de

estado implica a ilimitação no âmbito da política interna. Para que o Estado possa

conservar-se forte e estável, para que possa manter-se em equilíbrio concorrencial

com os outros Estados, é preciso que no âmbito interno haja uma regulamentação

rígida da vida dos súditos, como e quanto devem produzir, o preço de compra e

venda das mercadorias, em suma um controle extenso e minucioso de toda a

atividade produtiva interna15. A essa configuração FOUCAULT denomina “Estado de

polícia”, corolário interno da razão de Estado.

Apesar de a política interna característica da razão de Estado possuir objetivos

ilimitados, correlatos dos objetivos limitados da política externa, isso não significa

que não havia uma perpétua tentativa de limitá-la, que não tenha havido o

desenvolvimento de estratégias e mecanismos que buscavam estabelecer limites ao

Estado de polícia. Dentre esses mecanismos está o direito, ou seja, essa razão de

limitação do poder de polícia é encontrada, sobretudo, na razão jurídica16. Se durante

a Idade Média o direito teve participação fundamental na multiplicação e

consolidação do poder real central, a partir do século XVII e no bojo da razão de

Estado que surge nesse momento, o direito vai assumir papel contrário, como ponto

de apoio para a limitação do Estado de polícia.

A busca de contenção do poder interno ilimitado da razão de Estado a partir

do direito desenvolve-se segundo argumentos diversos, mas todos eles reconduzíveis

14

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 09. 15

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 10. 16

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 10.

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25

à ideia de que a barreira deve provir de um obstáculo anterior e externo ao próprio

Estado, seja o direito originário, seja o direito natural, seja o contrato social 17

.

HOBBES, por exemplo, apesar de ser um dos mais importantes teóricos do

absolutismo e defender o poder ilimitado do monarca, ainda assim reconhece que

determinados direitos não são transferidos por ocasião do pacto, tais como o direito

de resistência para preservar a própria vida e o direito de evitar a morte, os ferimentos

e o cárcere. 18

O denominador comum das teorias jurídicas desse período é que a ideia de

que a limitação que se impunha à razão de Estado operava de fora para dentro, era

externa a essa mesma razão. Sendo assim, tais teorias desempenhavam um papel

puramente negativo, limitativo e não positivo ou constitutivo da racionalidade

governamental à qual se opunham, pois só entravam em cena quando o Estado

houvesse ultrapassado esses limites, tornando-se assim um governo ilegítimo. Em

suma, o direito e as instituições jurídicas eram exteriores à razão de Estado 19.

No século XVIII, em decorrência das profundas transformações políticas,

econômicas e sociais experimentadas pelos Estados europeus (notadamente: o

aumento da riqueza e dos meios produtivos, o forte crescimento demográfico, a

reconfiguração do modo de produção, das relações de trabalhos e do poder político

etc.) produziu-se uma significativa modificação na governamentalidade estatal 20.

17

Segundo Foucault “A partir do século XVI e durante todo o século XVII vamos ver desenvolver-se

toda uma série de problemas, de polêmicas, de batalhas jurídicas, em torno, por exemplo, das leis

fundamentais do reino, leis fundamentais do reino essas que os juristas vão objetar a razão de Estado

dizendo que nenhuma prática governamental, nenhuma razão de Estado, pode justificar o seu

questionamento. Elas existem, de certo modo antes do Estado, pois são constitutivas do Estado e, por

conseguinte, por mais absoluto que seja o poder do rei, ele não deve, diz certo número de juristas,

tocar nessas leis fundamentais. O direito constituído por essas leis aparece assim fora da razão de

Estado e como princípio dessa limitação.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo:

Martins Fontes, 2004, p. 11-12. Noutro momento pontua: “Temos também a teoria do direito natural e

direitos naturais que fazem valer como direitos imprescritíveis, que nenhum soberano, como quer que

seja, pode transgredir”. Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004,

p. 12. E, a seguir: “Temos ainda a teoria do contrato celebrado entre os indivíduos para constituir um

soberano, contrato que comporta certo número de cláusulas a que o soberano deveria submeter-se pois,

precisamente, por força desse contrato, e das cláusulas formuladas nesse contrato, que o soberano se

torna soberano.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 12. 18

Oswaldo Henrique Duek Marques. “Reflexos Penais do Liberalismo”. In: Revista Conhecimento

Prático Filosofia. São Paulo: Escala, n. 29, 2011. Bimestral, p. 59. 19

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 13. 20

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 14.

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26

Essa modificação consistiu justamente na instauração de uma limitação

interna, intrínseca à lógica de governo, uma “regulação interna da racionalidade

governamental” 21 e que se opõe à regulação externa do período antecedente22

.

Essa nova razão governamental crítica ou, como diz FOUCAULT, essa crítica

interna da razão governamental, não vai mais girar em torno do direito ou da

usurpação ou legitimidade do soberano. Em substituição ao direito, o instrumento

intelectual, a forma de cálculo e de racionalidade que possibilitou a emergência de

uma autorregulação interna foi a economia-política 23

.

21

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 14. 22

Em primeiro lugar, a regulação interna da governamentalidade moderna tem como característica ser

uma limitação de fato e não jurídica, prescrita pelo direito, ainda que o direito venha a transcrevê-la

sob a forma de regras que devam ser respeitadas. (Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São

Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15). Em segundo lugar, a regulação interna, mesmo sendo uma

limitação de fato, é uma limitação geral (Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo:

Martins Fontes, 2004, p. 15). Em terceiro lugar, regulação interna significa que o princípio dessa

limitação deve ser baseado nos próprio objetivos do governo. (Michel Foucault. Nascimento da

Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 16). Em quarto lugar, regulação interna significa que

essa limitação da razão governamental não se inscreve no governado, delimitando nele uma parte de

liberdade que não possa ser tocada pelo governo, mas inscreve-se na própria prática governamental,

delimitando o que deve e o que não deve ser feito. Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São

Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 17. 23

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 18. Porque e como

a economia política possibilitou assegurar a autolimitação da razão governamental no século VIII?

Primeiro: a economia política, ao contrário do direito no período antecedente, desenvolveu-se dentro

da razão de Estado, aloja-se no bojo do próprio âmbito dos objetivos que a razão de Estado havia

estabelecido para a arte de governar, uma vez que os objetivos propostos pela economia política são

exatamente aqueles da razão de Estado, vale dizer, o enriquecimento do Estado, o crescimento

simultâneo ajustado da população, por um lado, e dos meios de subsistência, por outro lado, de

garantir de forma conveniente e proveitosa a concorrência entre os Estados, a manutenção de uma

equilíbrio entre os Estados que a concorrência possa promover. “Ou seja, ela retoma muito

exatamente os objetivos que eram os da razão de Estado, e que o Estado de polícia, que o

mercantilismo, que a balança europeia, haviam tentado realizar.” Michel Foucault. Nascimento da

Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 20. Segundo: a economia política não se opunha à

autonomia política e ao poder ilimitado intrínsecos à razão de Estado, posto de início, a reflexão

econômica conclui pela necessidade de um despotismo total (posição contrária portanto, daquela

ocupada pelo direito). Também dessa perspectiva a razão da economia política não se apresenta como

inversão ou crítica externa, mas aparece em linha de continuidade em relação à razão do Estado: “A

primeira economia política é, bem entendido, a dos fisiocratas, e vocês sabem que os fisiocratas

(tornarei sobre isso posteriormente) concluíram, a partir de sua análise econômica, que o poder político

deveria ser um poder sem limitação externa, sem contrapeso externo, sem fronteira vinda de outra

coisa senão ele próprio, e é isso que eles chamaram de despotismo.” Michel Foucault. Nascimento da

Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 20. Terceiro: a economia política não se debruça,

como o direito fazia, sobre a questão da legitimidade do Governo, analisado sob o pano de fundo de

direitos naturais ou históricos, mas preocupa-se com os efeitos e desdobramentos intrínsecos da prática

governamental: “Ela não as encara sob o prisma da origem, mas sob o de seus efeitos, não se

perguntando, por exemplo: o que autoriza o soberano a cobrar impostos?, mas simplesmente: quando

se cobra um imposto, quando se cobra esse imposto nesse momento dado, de tal categoria de pessoas

ou de tal categoria de mercadorias, o que vai acontecer? Pouco importa ser esse direito legítimo ou

não, o problema é saber quais efeitos ele tem e se são positivos ou negativos.” Michel Foucault.

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27

Ao lado da autolimitação, a economia política introduziu na racionalidade

governamental no século XVIII a questão da verdade, de forma que as práticas

governamentais passaram a ser pensadas a partir de parâmetros que permitirão julgá-

las como boas ou ruins não mais em função de leis ou princípios morais, mas em

função de leis “naturais”, ou seja, de proposições submetidas elas próprias ao

parâmetro do verdadeiro ou falso, e esse giro reconfigura a questão central sobre a

arte de governar. O bom governo é o governo conforme a sua natureza intrínseca.

A relação entre o aparecimento da economia política, regime de verdade e a

modificação da razão governamental é articulada pelo mercado 24

. É nele que se

constitui um padrão de verdade em face do qual as práticas governamentais poderão

ser julgadas corretas ou erradas.

Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 21. Quarta: o tipo de análise levada à

cabo pela economia política descobre processos e regularidades que permitem identificar, no âmbito

interno, uma naturalidade da prática governamental, ou seja, permite perceber a natureza própria da

prática governamental: “Assim, por exemplo, é uma lei da natureza, explicarão os economistas, a de

que a população, por exemplo, se desloca para os salários mais elevados, é uma lei da natureza que

uma tarifa aduaneira protetora dos altos preços dos meios de subsistência afeta fatalmente algo como a

escassez alimentar.” (Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.

22). Quinta: a economia política pode assegurar a autolimitação da razão governamental no século

VIII pois, ao descobrir a naturalidade da prática governamental, permite julgar as operações concretas

de governo em termos de adequação ou não adequação a essa naturalidade, e essa adequação ou

inadequação vão implicar não em legitimidade ou ilegitimidade, mas em sucesso ou fracasso do

governo. De forma que o paradigma do sucesso, o paradigma utilitarista, portanto, substitui o

paradigma da legitimidade: “Se ela atropelar essa natureza, se não a levar em conta ou se for de

encontro às leis estabelecidas por essa naturalidade próprias dos objetos que manipula, vai haver

imediatamente consequências negativas para ela mesma, em outras palavras, vai haver sucesso ou

fracasso, que agora são o critério da ação governamental, e não mais a legitimidade ou ilegitimidade.”

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 22-23. 24

Até o século XVIII o mercado era, segundo o autor, um lugar de justiça, um lugar de jurisdição, um

lugar cujo papel era permitir um arranjo para que os produtos fossem distribuídos na comunidade, sem

fraudes e a um preço justo. “Esse sistema – regulamentação, justo preço, sanção de fraude – fazia

portanto que o mercado fosse essencialmente, funcionasse realmente como um lugar de justiça, um

lugar em que devia aparecer na troca e se formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o

mercado era um lugar de jurisdição.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins

Fontes, 2004, p. 43. A partir do século XVIII, no entanto, o mercado aparece, não como sendo um

lugar de justiça, mas como sendo um lugar que obedece e deixa transparecer mecanismos naturais, leis

naturais, que possibilitam a formação de um preço natural, um lugar, portanto, de veridição. “O

mercado, quando se deixa que ele aja por si mesmo de acordo com a sua verdade natural, digamos

assim, que permite que se forme certo preço que será metaforicamente chamado de preço verdadeiro,

que às vezes também será chamado de justo preço, mas que não trás consigo, em absoluto, essas

conotações de justiça.” As causas dessa passagem do mercado jurisdicional ao mercado como

instância de veridição são múltiplas, segundo Foucault, que conclui: “digamos, de maneira geral que

temos aqui, nessa história do mercado jurisdicional, depois veridicional, um desses incontáveis

cruzamentos entre jurisdição e veridição que é, sem dúvida, um dos fenômenos fundamentais na

história do Ocidente moderno.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins

Fontes, 2004, p. 47.

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28

Para que o mercado possa formular a sua verdade é preciso deixá-lo funcionar

segundo suas próprias leis, livre da interferência governamental. Essa nova

racionalidade governamental, fundada na autolimitação interna formulada em termos

de veridição consiste naquilo que FOUCAULT denomina liberalismo 25 ou, como diz

o autor em passagem posterior, “naturalismo” 26

.

Pois bem, embora a razão liberal implique um sistema de autolimitação

interna, fundada na economia política e especialmente no mercado como lugar de

veridição, ainda assim essa autolimitação teve que ser formulada em termos de

direito ou, de outra forma, o direito público deve acoplar-se a economia política para

formular, em termos de lei a respeitar, a autolimitação de fato do governo sob a razão

liberal 27

.

Como o direito poderá elaborar juridicamente a limitação ao governo imposta

pela verdade formulada pela economia política? FOUCAULT identifica duas vias: a

primeira é chamada pelo autor de axiomática, jurídico-dedutiva. A segunda chamada

de utilitarista, radical, ou ainda indutiva.

A formulação da limitação governamental pela via axiomática ou

rousseauniana centra atenção no direito (e não no governo) e a partir da definição dos

direitos do homem, da distinção entre aqueles que podem ou não ser objeto de cessão,

estabelece a fronteira que delimita o governo e a soberania. Sob essa perspectiva, a

25

Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 27. 26

“Se retomarmos as coisas um pouco mais de longe, se as retomarmos na sua origem, vocês verão

que o que caracteriza essa nova arte de governar de que lhes falava é muito mais o naturalismo do que

liberalismo, na medida em que, de fato, essa liberdade de que falam os fisiocratas, Adam Smith etc., é

muito mais a espontaneidade, a mecânica interna e intrínseca dos processos econômicos do que uma

liberdade jurídica reconhecida como tal para os indivíduos. Até em Kant que afinal não é tão

economista assim, que é muito mais um jurista, vocês viram que a paz perpétua é garantida não pelo

direito, mas pela natureza.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes,

2004, p. 83-84. 27

Foucault traz inúmeras demonstrações históricas dessa articulação entre direito e economia política:

“Os primeiros economistas eram ao mesmo tempo juristas e gente que colocava o problema do direito

público. Beccaria, por exemplo, teórico do direito público essencialmente sob a forma do Direito

Penal, também era economista. Adam Smith: basta ler a Riqueza das Nações, nem é preciso ler os

outros textos de Adam Smith para ver que o problema do direito público atravessa inteiramente toda a

sua análise. Bentham, teórico do direito público, era ao mesmo tempo economista e escreveu livros de

economia política”. Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.

52.

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29

lei é concebida como expressão da vontade coletiva acerca justamente dos direitos

que foram cedidos e dos direitos que foram reservados. A liberdade é entendida

como o exercício dos direitos fundamentais que não tenham sido objeto de cessão.

No contexto do século XVIII a via axiomática é, por assim dizer, uma via

clássica, na medida em que nela o direito configura-se da mesma forma e exerce

papel semelhante ao que exercia na razão de Estado durante o século XVII, ou seja,

está em linha de continuidade com a forma de limitação da razão de Estado, no

período anterior.

A via utilitarista ou radical parte do próprio governo e da prática

governamental e, a partir dos limites inerentes à sua natureza e aos seus objetivos,

formula juridicamente tais limitações, definindo a governamentalidade adequada ou

desejável com base em um critério de utilidade. Ou seja, a partir da natureza da

prática governamental e dos mecanismos naturais que regem seus objetos, enuncia-se

juridicamente quando e como o governo deve atuar. Nesse contexto a liberdade é

concebida como simples independência dos governados em relação ao governo,

independência pautada sempre por critérios de utilidade.

Esses dois sistemas heterogêneos e baseados em fundamentos distintos, a via

axiomática e a via utilitarista, conviveram e complementaram-se durante o decorrer

do século XVIII. No entanto, segundo FOUCAULT, o sistema utilitarista

preponderou e manteve-se forte, enquanto o sistema axiomático enfraqueceu, de

modo que é essa (a utilitarista) a linha de tendência que passou a caracterizar a

governamentalidade liberal e o direito público a partir de então.

A propósito é interessante perceber como a coexistência da via axiológica

rousseuniana (lógica do direito) e da via utilitarista (lógica da economia política)

apresenta-se de forma paradigmática na obra de BECCARIA, que por sinal era

economista, tendo em 1769 obtido a cátedra de Scienze Camerali e Economiche em

Milão.

Por todo o texto de BECCARIA revela-se a lógica da economia e da

matemática e sobressai a questão da utilidade:

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30

Se qualquer um, repito, quiser honrar-me com suas críticas não comece,

portanto, por supor em mim princípios destruidores ou da virtude ou da

religião, enquanto demonstrei tais não serem os meus princípios; e ao

invés de fazer-me incrédulo ou sedicioso, procure descobrir-me um lógico

ruim ou um político inadvertido; não trema a cada proposição que sustenta

os interesses da humanidade; convença-me ou da inutilidade ou do dano

político que poderia nascer dos meus princípios, faça-me ver a vantagem

das práticas recebidas. 28

Sobre a proporcionalidade entre o crime e a pena, ao lado do argumento

axiológico, segundo o qual à escala de gravidade das condutas (medida sempre pela

danosidade social) deve corresponder a gravidade das penas, necessariamente29

, se

posta o argumento utilitário:

Se uma pena igual é destinada a dois delitos que desigualmente ofendem a

sociedade, os homens não encontrarão um obstáculo mais forte para

cometer o maior delito, se junto com este encontrarem uma maior

vantagem. 30

Sobre as penas cruéis, ao lado das razões morais que as desautorizam, há

também que se considerar a sua inutilidade, posto que não apenas não evitam mas, ao

contrário, fomentam a prática de crimes, por diversas razões: primeiro, porque os

homens tendem a modificar ou a não querer aplicar penas previstas em leis

demasiadamente cruéis, motivo pelo qual a severidade pode conduzir à impunidade.

31

A própria impunidade nasce da atrocidade dos suplícios. Os homens são

restritos a certos limites, assim no bem como no mal, e um espetáculo

muito atroz para a humanidade não pode ser senão um passageiro furor,

28

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 36-37. 29

“Se a geometria fosse aplicável às infinitas e desconhecidas combinações das ações humanas,

deveria haver uma escala correspondente de penas, que descesse da mais forte à mais fraca, mas

bastará o sábio legislador assinalar os pontos principais, sem turbar a ordem, não decretando aos

delitos de primeiro grau as penas do último” Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo:

Quartier Latin, 2005, p. 48. 30

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 49. 31

Oswaldo Henrique Duek Marques. “Reflexos Penais do Liberalismo”. In: Revista Conhecimento

Prático Filosofia. São Paulo: Escala, n. 29, 2011. Bimestral, p. 52.

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31

mas nunca um sistema constante como devem ser as leis que, se são

verdadeiramente cruéis, ou se alteram ou a fatal impunidade nasce das

próprias leis. 32

Segundo, porque a crueldade das penas incute no criminoso o impulso de

evitar, por qualquer meio, ser apanhado, o que também favorece, ao invés de

dissuadir, a prática de crimes.

A própria atrocidade da pena faz com que se atreva tanto mais a evita-la,

quanto maior é o mal ao qual vai ao encontro; faz com que se cometam

mais delitos, para fugir de uma pena só. 33

Terceiro, porque a exacerbada crueldade termina por anestesiar o medo e

como que acostuma os homens à ideia da crueldade:

A medida que os suplícios tornam-se mais cruéis, os ânimos humanos, que

como os líquidos se colocam sempre em nível com os objetos que os

circundam, endurecem, e a força viva das paixões faz com que, depois de

cem anos de cruéis suplícios a roda amedronte tanto quanto a prisão. 34

A crítica de BECCARIA à pena de morte desenvolve-se também por essa via

dupla. Por um lado, ela não encontra arrimo no pacto social. Mas por outro, a pena de

morte perde da prisão perpétua no quesito utilidade: a morte do delinquente é um

espetáculo passageiro e menos terrível do que o exemplo longo e reiterado da

privação da liberdade em um ser humano que, além disso, por seu trabalho, poderá

recompensar a ofensa causada à sociedade.

Não é a intensidade da pena que faz mais efeito sobre o ânimo humano,

mas a extensão dela; porque a nossa sensibilidade é mais fácil e

estavelmente movida pelas mínimas mas replicadas impressões, do que

por um forte mas passageiro movimento. 35

32

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 84. 33

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 83. 34

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 84 35

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 87.

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32

Nesse tema vê-se tanto a coexistência entre as duas vias, a axiomática e a

utilitarista, quanto a preponderância da segunda. É que embora a vida seja um direito

fundamental em tese inalienável e que, como se disse, a pena de morte não encontre

arrimo no pacto social, BECCARIA defende a sua aplicação segundo um critério de

utilidade ou necessidade, admitindo-a quando o delinquente, mesmo preso, conserve

relações que possam por em perigo a segurança do Estado. 36

A morte de um cidadão não se pode crer necessária senão por dois

motivos: O primeiro, quando ainda que privado da liberdade ele tenha tais

relações e tal potência que interesse à segurança da nação; segundo,

quando a sua existência possa produzir uma revolução perigosa na forma

de governo estabelecida. 37

Também nessa linha bifurcada segue a crítica à tortura. É por um lado

repudiada por configurar crueldade e extrapolar a pena prevista para o crime - via

axiomática 38

. Mas também o é por ser inútil como meio de prova – seja para a

obtenção de confissão, para a delação de cúmplice ou para a descoberta de outros

delitos que possam ter sido cometidos pelo réu. Sob tortura um inocente frágil pode

confessar falsamente a prática de um crime, enquanto um criminoso mais forte

poderia resistir e não confessar. 39

O interrogatório de um réu é feito para conhecer a verdade, mas se essa

verdade dificilmente descobre-se na aparência, no gesto, na fisionomia de

um homem tranquilo muito menos descobrir-se-á em um homem no qual

as convulsões de dor alteram todos os sinais pelos quais, do rosto da maior

parte dos homens, transpira alguma vez, a seu malgrado, a verdade. 40

36

Oswaldo Henrique Duek Marques. “Reflexos Penais do Liberalismo”. In: Revista Conhecimento

Prático Filosofia. São Paulo: Escala, n. 29, 2011. Bimestral, p. 53. 37

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 86. 38

“Qual é, portanto, aquele direito, senão aquele da força, que dá o poder a um juiz de dar uma pena a

um cidadão, enquanto se duvida se ele é culpado ou inocente? Não é novo esse dilema; ou o delito é

certo ou incerto; se certo, não lhe convém outra pena senão a estabelecida pela lei e inútil são os

tormentos, porque inútil a confissão do réu; se é incerto, consequentemente não se deve atormentar um

inocente, porque tal é, segundo a lei, um homem cujos delitos não provaram.” Cesare Beccaria. Dos

delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 63-64. 39

Oswaldo Henrique Duek Marques. “Reflexos Penais do Liberalismo”. In: Revista Conhecimento

Prático Filosofia. São Paulo: Escala, n. 29, 2011. Bimestral, p. 52. 40

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 67.

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33

A duração mínima necessária das prisões cautelares e a celeridade na

aplicação da pena em substituição à sua severidade, aspectos geralmente destacados

como reveladores do espírito humanitário que perpassa a obra de BECCARIA, são

desenvolvidos à luz do paradigma utilitarista, e fundados tantos no cálculo

econômico quanto em uma apreciação de justiça, planos que em certa medida

inclusive se sobrepõem: “Quanto mais a pena for rápida e mais próxima do delito

cometido tanto mais justa e tanto mais útil será.” 41

Como não poderia deixar de ser, toda essa mundivisão reflete diretamente

sobre a questão da finalidade da pena:

Mas quais serão as penas convenientes a esses delitos? A morte é uma

pena verdadeiramente útil e necessária para a boa ordem e para a

segurança da sociedade? A tortura e o tormento são justos e obtém o fim a

que se propõem as leis? Qual é a melhor maneira de prevenir delitos? As

mesmas penas são igualmente úteis em todos os tempos? Qual influência

elas têm sobre os costumes? Esses problemas merecem ser resolvidos com

aquela precisão geométrica a cuja névoa dos sofismas, a sedutora

eloquência e a tímida dúvida não podem resistir. 42

A ideia da pena como prevenção, que toma corpo nesse contexto, é a

consagração da via utilitária:

Da simples consideração das verdades até aqui expostas é evidente que o

fim das penas não é o de atormentar ou afligir um ser sensível, nem de

desfazer um delito já cometido. (...) O fim portanto não é outro que o de

impedir que o réu cometa novos danos aos seus cidadãos e de demover os

outros de fazerem o mesmo. Aquelas penas, portanto, e aquele método de

infligi-las deve ser eleito de tal forma que, observada, causará uma

impressão mais eficaz e mais durável sobre o ânimo dos homens, e a

menos tormentosa sobre o corpo do réu. 43

Pois bem, durante o século XVIII a via utilitarista convive com a via

axiológica em uma relação complementar. Ao lado da liberdade “liberal” como

41

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72. 42

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 56. 43

Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 57.

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34

simples autonomia da sociedade e do mercado em relação ao governo (laissez faire),

há a liberdade como direito “fundamental” não cedido pelo cidadão no pacto social, e

a voz dos teóricos da liberdade, ROUSSEAU, LOCKE, KANT, ecoa e se plasma em

documentos como Declaração do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração da

Virgínia (1776). Mas ao longo do século XIX, a partir do momento em que o

liberalismo se firma e a burguesia recém-chegada ao poder passa a necessitar de um

discurso conservador e reacionário para estabilizar-se, a via utilitarista vai sem

dúvida suplantando a axiológica e dando origem a outras decorrências a uma

transfiguração no sentido das principais bandeiras da reforma penal.

Como se viu, a razão liberal, tendo a veridição do mercado como base e o

cálculo utilitarista como jurisdição de fato, é assim chamada porque tem na liberdade

seu tema central. Liberdade já bem entendida como relação de independência e

autonomia dos mecanismos próprios da política econômica, e não como núcleo de

direitos fundamentais reservado ao indivíduo e que deve ser respeitado. Nesse sentido

o governo liberal precisa da liberdade para funcionar de acordo com seus objetivos (a

liberdade do mercado, a liberdade da propriedade, por exemplo). É, portanto, um

consumidor de liberdade e por isso mesmo deve ser um fabricador de liberdade, um

gestor e um organizador da liberdade. Ou seja, o governo liberal preocupa-se em

garantir as condições para que as partes da sociedade sejam livres (no sentido

supraindicado) e em zelar para que essa liberdade não seja destruída. No entanto,

paradoxalmente, a missão de promover, fabricar, garantir e gerir liberdade implica a

imposição de limitações e restrições à própria liberdade. Em outras palavras, a

produção contínua da liberdade tem um custo, e esse custo chama-se segurança. 44

44

“Qual vai ser então o princípio de cálculo desse custo de fabricação da liberdade? O princípio de

cálculo é, evidentemente, o que se chama de segurança. Ou seja, o liberalismo, a arte liberal de

governar vai ser obrigada a determinar exatamente em que medida e até que ponto o interesse

individual, os diferentes interesses – individuais, no que tem de divergentes uns dos outros,

eventualmente de opostos – não constituirão um perigo para o interesse de todos. Problema de

segurança: proteger o interesse coletivo contra os interesses individuais. Inversamente, a mesma coisa:

será necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que puder se revelar, em relação a eles,

como um abuso vindo do interesse coletivo. É necessário também que a liberdade dos processos

econômicos não seja um perigo, um perigo para as empresas, um perigo para os trabalhadores. A

liberdade dos trabalhadores não pode se tornar um perigo para a empresa e para a produção. Os

acidentes individuais, tudo o que possa acontecer na vida de alguém, seja doença, seja esta coisa que

chega de qualquer modo, que é a velhice, não podem constituir um perigo nem para os indivíduos nem

para a sociedade Em suma a todos esses imperativos – zelar para que a mecânica dos interesses não

provoque perigo nem para os indivíduos nem para a coletividade – devem corresponder estratégias de

segurança que são, de certo modo, o inverso da própria condição de liberdade. A liberdade e a

segurança, o jogo liberdade e segurança, é isso que está no âmago dessa nova razão governamental

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35

Na governamentalidade liberal do século XIX o binômio liberdade e

segurança ocupa lugar central, e dessa relação surge também como tema fundamental

e característico dessa nova razão, como par complementar e necessário ao conceito de

segurança, a noção de perigo. Isso não quer dizer, evidentemente, que haja, na

sociedade liberal, uma quantidade maior de perigo do que havia sob a razão de

Estado (uma quantificação comparativa que, de todo modo, é impossível, da mesma

forma que é impossível compararem-se as quantidades de liberdade em cada uma

delas). Quer dizer que na sociedade liberal os indivíduos experimentam sua vida e a

realidade através do filtro dicotômico segurança/perigo e por isso enxergam

vividamente sua condição como continuamente exposta a riscos, de forma que se

constitui, na sociedade liberal, uma verdadeira cultura política do perigo.45

A técnica para gerir e controlar as fontes de perigo, promover segurança e

ordenar a multiplicidade de homens e a multiplicação dos mecanismos de produção

são as disciplinas. Por isso, a sociedade liberal torna-se também uma sociedade

disciplinar46.

O surgimento da sociedade disciplinar burguesa e o papel que o Direito Penal

irá desempenhar na sua estrutura são explorados por FOUCAULT no célebre “Vigiar

e Punir” 47 . O mesmo tema é desenvolvido nas conferencias quatro e cinco

condensadas em “A Verdade e as Formas Jurídicas” 48.

O que ocorre no século XIX e que determina que a sociedade torne-se uma

sociedade disciplinar? E que o Direito Penal torne-se uma peça chave nessa

cujas características gerais eu lhes vinha apontando. Liberdade e segurança – é isso o que vai animar

internamente, de certo modo, os problemas do que chamarei de economia de poder própria do

liberalismo.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 89. 45

Segundo Foucault, toda uma educação do perigo surge então no século XIX: “Seja, por exemplo, a

campanha do início do século XIX sobre as caixas econômicas, vocês vêem o aparecimento da

literatura policial e do interesse jornalístico pelo crime a partir de meados do século XIX; vocês vêem

todas as campanhas relativas à doença e à higiene. Vejam tudo o que acontece também em torno da

sexualidade e do medo da degeneração: degeneração do indivíduo, da família, da raça, da espécie

humana. Enfim, por toda parte vocês vêem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a

condição, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem a cultura

do perigo.” Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 90-91. 46

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 35ª 2008, p. 179. 47

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 179. 48

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau, 2011.

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36

sociedade disciplinar, afastando-se totalmente dos ideais de limitação e legalidade do

século XVIII, defendidos pelo próprio BECCARIA?

Essa transformação (multifatorial, evidentemente) tem a ver, sobretudo, com o

aumento demográfico, por um lado, e com a modificação da materialidade da riqueza,

pelo outro. Antes do capitalismo a riqueza era constituída basicamente por terras,

moeda ou letras de cambio. Agora, a riqueza está nas máquinas, matérias primas,

mercadorias:

Ora, essa nova fortuna constituída de estoques, matérias-primas, objetos

importados, máquinas, oficina etc., está diretamente exposta a depredação.

Toda essa população de gente pobre, de desempregados, de pessoas que

procuram trabalho, tem agora uma espécie de contato direito, físico, com a

fortuna, com a riqueza. 49

O aumento quantitativo e qualitativo dos meios de produção e da população

produz uma importante modificação no perfil das ilegalidades: a ilegalidade popular

diminui a pressão sobre os corpos (ilegalidade de sangue) ou sobre o Estado

(ilegalidade de direitos, como o contrabando e a luta contra o fisco) e passa a recair

sobre os bens, como a pilhagem e o roubo 50. Na mesma proporção recrudesce a

intolerância contra a ilegalidade dirigida à propriedade, sobretudo a propriedade

comercial ou industrial como portos, grandes armazéns, oficinas etc.51

Esse novo cenário passou a demandar então uma maior eficiência no controle

dessas fontes de perigo, maior eficácia e regularidade na segurança da propriedade e

que eram incompatíveis com o sistema penal do antigo regime, cuja severidade

extrema era indissociavelmente ligada à irregularidade, descontinuidade, incerteza e à

tolerância em relação a uma grande quantidade de ilegalidades 52.

49

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 100. 50

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 65. 51

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 72. 52

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed.Petrópolis: Vozes, 2008, p. 67.

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37

Nesse contexto o Direito Penal se suaviza, por um lado, mas pelo outro se

expande e se aprofunda, torna-se uma justiça mais eficiente e bem distribuída, mais

homogênea e regular e que se entranha mais profundamente no corpo social53.

E como deve ser o Direito Penal nessa sociedade que FOUCAULT chama de

disciplinar, em oposição à sociedade propriamente penal 54 do período anterior? O

Direito Penal sofre uma virada inesperada, imprevista no projeto dos reformadores do

século XVIII. Imerso nesse novo quadro ele muda em basicamente dois aspectos: i) o

crime transforma-se em periculosidade; ii) a pena converte-se em prisão.

Em primeiro lugar o próprio Direito Penal muda de função. Afasta-se da sua

função original de punição (conforme à sua origem vindicativa) e afasta-se também

dos limites traçados pelos teóricos do século XVIII, como o principio da legalidade e

de culpabilidade pelo fato:

Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre

se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei,

mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que

estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. Assim a grande

noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a

escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção

de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela

sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não

ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva mas das virtualidades de

comportamento que elas representam.55

Em segundo lugar, surge a pena de prisão. A pena de prisão, no século XVIII,

não era, por assim dizer, uma sucessora natural dos suplícios, ela não era utilizada

largamente e nem era defendida pelos primeiros reformadores. Como afirma

FOUCAULT categoricamente: “A prisão não pertence ao projeto teórico de reforma

da penalidade do século XVIII. Surge no início do século XIX como uma instituição

de fato, quase sem justificação teórica.” 56

53

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 84.

54 Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3

a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 86.

55 Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3

a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 85.

56 Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 179.

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38

Mas se a prisão não constava dos projetos teóricos dos reformadores, se é uma

instituição fática de onde ela surgiu? FOUCAULT nos dá indicação da gênese da

prisão como punição, e que se casa perfeitamente com a sua natureza disciplinar. A

prisão tem uma origem policial. Mas ela passa a ser usada como punição por força de

um instituto extrajudiciário chamado lettres-de-cachet57. A lettre-de-cachet era uma

ordem do rei a uma pessoa individualmente, através da qual se podia obriga-la a fazer

algo, exila-la ou mesmo prende-la indefinidamente, a título de punição, mas sem que

houvesse processo judiciário. As lettres-de-cachet muitas vezes eram solicitadas

pelos cidadãos aos rei para resolver conflitos diversos, inclusive os provenientes das

emergentes e conturbadas relações de trabalho capitalistas. FOUCAULT descreve

que:

A primeira greve da história da França que pode ser assim caracterizada

foi a dos relojoeiros, em 1724. Os patrões relojoeiros reagiram a ela

localizando os que eles consideravam líderes e em seguida escreveram ao

rei solicitando uma lettre-de-cachet que logo foi enviada. Algum tempo

depois o ministro do rei quis anular a lettre-de-cachet e libertar os

operários grevistas. Foi a próprio corporação dos relojoeiros que então

solicitou ao rei que não libertasse os operários e fosse mantida a lettre-de-

cachet. 58

Vê-se então que a prisão teve desde a origem uma função disciplinar

fortemente imbricada com a função punitiva. A intenção era menos punir os

relojoeiros por terem violado a lei (o que não era o caso) mas sim neutralizar a fonte

de perigo que eles representavam.

A prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua

origem precisamente nessa prática para-judiciária da lettre-de-cachet,

utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos. Quando uma

lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era

enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Ela colocado na

prisão e nela deveria permanecer por um tempo não fixado previamente.

Raramente a lettre-de-cachet dizia que alguém deveria ficar preso por seis

57

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 96.

58 Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3

a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 98

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39

meses ou um ano, por exemplo. Em geral, ele determinava que alguém

deveria ficar retido até nova ordem, e a nova ordem só intervinha quando

a pessoa que requisitara a lettre-de-cache afirmasse que o individuo

aprisionado tinha se corrigido. Esta ideia de aprisionar para corrigir, de

conservar a pessoa presa até que se corrija, essa ideia paradoxal, bizarra,

sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento

humano, tem origem precisamente nessa prática. 59

A prisão, portanto, que não havia sido concebida pelos reformadores do

século XVIII, é incorporada ao direito penal de fora para dentro. Não é o Direito

Penal que dá à sociedade, através da prisão, o modelo de disciplina, mas a sociedade

disciplinar que se apropria da punição criminal para, nesse terreno, cultivar a sua

expressão mais aguda. E se sua origem é disciplinar, sua forma o é ainda mais

claramente. A prisão e suas celas é a reunião de todas as disciplinas: o quartel, a

escola, a fábrica e o claustro. A prisão ideal não é mais a masmorra, mas o moderno

panóptico: a tradução arquitetônica da vigilância ininterrupta e portanto, de absoluta

sujeição. Essa prisão é a condensação do sonho da sociedade disciplinar60

. Uma

prisão que não tem como objetivo punir os corpos, mas assumir o controle sobre as

almas desviantes.

As relações entre a prisão e capitalismo, ou entre prisão e disciplina são tão

profundas e extensas que será impossível esgotá-las no âmbito deste estudo. Aqui

bastará dizer que, partindo-se do discurso dos reformadores, de Beccaria, por

exemplo, segundo o qual objetivo do Direito Penal é reduzir a criminalidade, desde

cedo se percebeu que a pena de prisão era contraindicada. Todos os argumentos que

até hoje se levantam e que podem ser sintetizados na constatação de que a prisão, por

inúmeras e comprovadas razões, afasta o condenado da possibilidade de reinserção

social e, sendo assim, conduz à reincidência e se constitui como fator criminógeno

foram “descobertos” já no início do século XIX. E contra eles, o contra argumento

também permanece, em grande medida, o mesmo: o remédio para a ineficácia da

prisão está sempre na reforma prisional que consiste basicamente em um retorno e

59

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 98.

60 “A prisão, figura concentrada e austera de todas as disciplinas, não é um elemento endógeno no

sistema penal, definido entre os séculos XVIII e XIX. O tema de uma sociedade punitiva e de uma

semiótica geral da punição que sustentou os códigos „ideológicos‟- beccarianos ou benthamnianos –

não fazia apelo ao uso geral da prisão. Essa prisão vem de outro lugar – dos mecanismos próprios a um

poder disciplinar.” Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 214.

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40

ampliação do projeto disciplinar da prisão, a reativação do projeto disciplinar como

forma de superar a inoperância do projeto disciplinar 61.

E mesmo sob uma saraivada de críticas, a prisão atravessou o século XIX, o

XX e entra no século XXI, reinando ainda absoluta, como a pena por excelência para

os crimes graves (e outros nem tanto), produzindo os mesmo efeito, mas sem que se

vislumbre o que possa substituí-la. A partir dessa constatação, FOUCAULT formula

a pergunta essencial: Esse pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento

da prisão? 62

A hipótese levantada pelo autor é bem conhecida: talvez a função da prisão na

sociedade disciplinar não seja reduzir a ilegalidade, (decerto que se fosse esse o

objetivo, a distribuição dos meios de produção ou, no mínimo, a redução da

exploração laboral seriam medidas muito mais eficazes) mas produzir a figura

marcada, taxada e etiquetada da delinquência e com ela melhor gerir e controlar a

ilegalidade:

O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser

substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a

delinquência, tipo especificado, forma política ou economicamente menos

perigosa – talvez até utilizável – de ilegalidade; produzir os delinquentes,

meio aparentemente marginalizado mas centralmente controlado; produzir

o delinquente como sujeito patologizado. O sucesso da prisão: nas lutas

em torno da lei e das ilegalidades, especificar uma “delinquência” 63

.

Resumindo tudo o que foi dito, extrai-se da construção crítica de FOUCALT

que os elementos que estiveram na base da constituição da ideia de prevenção são: i)

o utilitarismo, esse entendido especificamente como a subordinação do direito à

lógica da economia política ii) enaltecimento da segurança como valor fundamental e

desenvolvimento de uma cultura do perigo, criando-se então o ambiente necessário e

a justificativa moral e política para iii) a sofisticação e o aprimoramento dos

mecanismos de controle no qual o Direito Penal exercerá papel central após sofrer um

61

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 223. 62

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 226. 63

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 230.

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41

mutação quantitativa (ele se alastra e cobre todos os campos da atividade humana) e

qualitativa (disseminação da prisão ao invés da eventualidade do suplicio); iv)

configuração da delinquência, como categoria identificável e politicamente

manipulável.

Curiosamente, todas essas características, identificadas por FOUCAULT na

origem da nova configuração do Direito Penal sob a governamentalidade liberal do

século XIX apresentam-se com absoluta atualidade nos séculos XX e XXI sob uma

capa aparentemente moderna. Traçando-se um grosseiro paralelo entre o passado e o

presente, esse representado, por exemplo, pelo defensivismo fundamentalista da new

penology, pode-se identificar: i) o raciocínio econômico, gerencialista e atuarial

voltado a ponderações de custo / benefício em detrimento de direitos fundamentais;

ii) a propagação da cultura do perigo, intensificação da sensação de insegurança, com

penetração cada vez mais eficiente através dos veículos de comunicação de massa e a

supervalorização da segurança como bem fundamental superior às liberdades

individuais e que justifica plenamente o seu cerceamento; iii) a extensão do controle

penal sobre todos os atos da vida privada, inclusive através da incriminação crescente

de condutas não lesivas (expansão, administrativização, antecipação da tutela penal);

iv) preocupação com a identificação e neutralização de grupos de risco ou classes

perigosas - o sem teto, o sem terra, o favelado, o traficante ou usuário de drogas, o

reincidente e, na realidade europeia e norte americana, o muçulmano, o terrorista, o

estrangeiro (forte influência do Direito Penal de autor, medidas preventivas sem base

factual etc.).

Assim, malogradas as boas intenções dos reformadores, o germe do

autoritarismo contamina a fonte e o fundo da ideia de prevenção da violência através

do Direito Penal e é dela inextirpável. Todo o Direito Penal baseado na ideia de

prevenção (seja geral, seja especial) tende a tornar-se expansivo, descontrolado, e

autoritário.

Um sistema sancionatório preventivo e / ou utilitaristicamente orientado

não pode senão invocar um modelo particular de Direito Penal: aquele

fundado sobre a periculosidade. Melhor: apenas no interior do Direito

Penal da periculosidade é que se justifica e se pode compreender um

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sistema de penas úteis (...) Desfeito em definitivo o nó da retribuição, a

pena progressivamente se distancia do porto seguro de um Direito Penal

do fato e da culpa, para alcançar o mar aberto e se impulsionar cada vez

mais, com suas novas vestes de pena útil, rumo às margens de um Direito

Penal da periculosidade64

.

Essa ideia de que o Direito Penal serve para prevenir a prática de atos de

violência, cuja falsidade se vê desde a origem mas que interessa manter viva e

presente posto que justifica e legitima científica e moralmente a violência da pena e

permite a configuração da delinquência, tem ainda atualmente uma última

desvantagem. Ela desonera o Estado do dever de tomar medidas efetivas que

poderiam reduzir de fato reduzi-la.

Depositar no Direito Penal a expectativa de controle da violência provoca, por

um lado, a hipertrofia e distorção desse sistema (expansão da criminalização,

aumento das penas, redução das garantias) e por outro a atrofia das instâncias sociais

e políticas que teriam condições reais de desenvolver estratégias eficazes para esse

fim.

Atribuir à pena a missão de conter a criminalidade gera, portanto, uma

deformidade sistêmica: por um lado incha-se e expande-se o Direito Penal, pelo

outro, atrofia-se a Política Criminal. O resultado é que a discussão, as expectativas,

os esforços e os recursos comunitários e estatais são investidos em terreno estéril.

Deposita-se no Direito Penal a esperança de redução da criminalidade e como não se

cumpre e nem se poderia cumprir tal promessa a frustração empurra na direção de

hipertrofia do Direito Penal, aumento da criminalização e diminuição de garantias

individuais num círculo vicioso que se retroalimenta sempre. Dai se explica que a

defesa do Direito Penal mínimo, levada a cabo por certos setores da academia, tenha

ínfima penetração social, pois partindo do dogma preventivo, do postulado de que o

Direito Penal tem como finalidade prevenir e conter a criminalidade, tão repetido,

introjetado e reafirmado na consciência de todos, como não desejá-lo mais e mais e

mais? E de fato, com esse apelo tão falso quanto irresistível a teoria preventiva

ganhou uma imensa adesão, tal como identifica ZAFFARONI: “Os tradicionais

64

Massimo Pavarini e André Giambernardino. Teoria da Pena e Execução Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2012, p. XVI.

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43

discursos jurídico, criminológico, policial, penitenciário, judicial e político

proclamam o fim e a função preventiva do sistema penal.” 65

Portanto, esse deslocamento da expectativa de prevenção criminal na direção

do Direito Penal nada tem de inócuo, de um engano pueril e sem consequências. Ao

contrário, produz resultados danosos visíveis, vale dizer, o recrudescimento do

próprio Direito Penal, como se ele fosse o remédio para sua própria ineficácia e o

esvaziamento das medidas de prevenção criminal extrapenal. Essa é a aporia das

teorias preventivas: a prevenção é o raciocínio que permite ao Direito Penal fracassar

sempre e apesar disso, por causa disso, expandir-se ao infinito.

Até o momento analisei a evolução e os problemas da teoria preventiva a

partir de uma perspectiva geral. Ocorre que cada uma das modalidades de prevenção

comporta ainda um número adicional de inconvenientes, que passarei a expor.

Quando se afirma que as teorias preventivas instituem que a finalidade do

Direito Penal é a prevenção de delitos futuros, essa prevenção visa dois destinatários

diversos: os demais membros da sociedade e o próprio autor do crime. Daí que as

teorias ora focam em um ora em outro, classificando-se tradicionalmente como

prevenção geral e prevenção especial. Cada uma delas desenvolveu-se em um sentido

negativo, baseado na dissuasão e intimidação e no sentido positivo, baseado na

implementação ou reforço de uma pauta de valores.

Com plena consciência das dificuldades e imprecisões de qualquer sistema de

classificação de ideias, passarei a seguir a uma breve exposição dessas vertentes

examinando sobretudo os problemas ínsitos a cada uma delas.

1.2. Modalidades de prevenção

1.2.1. Prevenção geral e a instrumentalização do indivíduo

65

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro - volume I:

parte geral. 7a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 69.

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44

A teoria da prevenção geral postula que a pena reduz a ocorrência de crimes

dirigindo seus efeitos sobre os membros da sociedade em geral e não sobre o autor do

crime ao qual ela está sendo aplicada. Logo de início tal concepção choca-se com

uma questão fundamental, para a filosofia mas também para a política, qual seja, a

instrumentalização do indivíduo.

Trata-se de um problema conceitual incontornável pois a pena termina por ser

aplicada para provocar um efeito positivo ou negativo nos demais. Do ponto de vista

prático, é a abertura para o abuso legislativo e judicial e para o emprego de “punições

exemplares” que, de molde a tornarem-se mais eficientes como exemplo, são por via

de regra acompanhadas da intensa exposição do réu. Do ponto de vista filosófico, a

ideia do homem como ser pertencente ao reino dos fins é internamente incompatível

com esse desdobramento. Em “Fundamentação para uma Metafísica dos Costumes”

reside a conhecida máxima kantiana, paradigma da supremacia da via axiológica

sobre qualquer consideração de cunho utilitarista:

Eu sustento o seguinte: o homem e em geral todo o ser racional existe

como um fim em si mesmo, não simplesmente como um meio para ser

utilizado arbitrariamente por essa ou aquela vontade, ao contrário, em

todas as suas ações, dirigidas a ele mesmo ou a outros seres racionais o

homem deve ser considerado sempre ao mesmo tempo como um fim.66

Além dessa questão de fundo, muitas outras podem ser levantadas, e será

recomendável distinguir aquelas endereças à chamada prevenção geral negativa e à

prevenção geral positiva.

1.2.1.1. Prevenção geral negativa - FEUERBACH

Historicamente, a primeira concepção sistematizada da prevenção criminal

como finalidade do Direito Penal coincidiu com o próprio nascimento da moderna

ciência penal na Alemanha. Na obra de ANSELM VON FEUERBACH, podem ser

encontrados os primeiros indícios de estruturação de um conceito analítico de crime,

66

Kant. Fundamentación para una Metafisica de las Costumbres. Madrid: Alianza, 2008, p. 114.

(tradução livre)

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45

como ação antijurídica, prevista em uma lei penal67 bem como a famosa ideia da

coação psicológica, base da teoria da prevenção geral negativa:

§13 Todas as contravenções tem sua causa psicológica na sensualidade, na

medida em que a concupiscência do homem é o que impulsiona o homem

a, por prazer, cometer a ação. Esse impulso sensual pode ser cancelado,

com condição de que cada um saiba que ao seu fato há de seguir,

ineludivelmente, um mal que será maior que o desgosto emergente da

insatisfação de seu impulso ao fato. §14 Para fundar a convicção geral

acerca da vinculação necessária entre esses males e as injúrias, será

mister: I) que uma lei a estabeleça como necessária consequência do fato

(cominação legal). Para que a imaginação de todos assente na realidade

esta conexão ideal da cominação deverá também II) Mostrar-se essa

relação na realidade cujo efeito é que apenas a contravenção tenha

ocorrido, deverá ser infligido o mal que a ela se conecta. A coação

psicológica se configura, pois, mediante a efetividade harmônica dos

poderes legislativo e executivo no comum objetivo intimidatório. 68

Inspirada pela perspectiva iluminista e baseada no conceito de livre arbítrio,

pedra angular daquela que veio a ser chamada escola clássica, a teoria de

FEUERBACH parte da premissa de que os homens são impelidos ao crime por um

impulso de prazer e esse impulso pode ser nulificado se à pratica do crime ligar-se o

desprazer da pena. O homem, livre e racional que é, naturalmente procurará afastar-se

da dor provocada pela pena abstendo-se da prática delitiva. Importa, sobretudo, a

ameaça ou cominação da pena dirigida à comunidade em geral; a real aplicação da

sanção ao indivíduo concreto tem como objetivo apenas confirmar, na consciência

social, o valor e a seriedade da ameaça.

A antiga tese de FEUERBACH do Direito Penal como instrumento de

intimidação para prevenção do crime se apresentada ainda hoje como uma obviedade

e a opinião geral a ela adere prontamente, considerando evidente o fato de que a

ameaça da pena intimida os membros da comunidade, desestimula a prática de delitos

e, portanto, reduz a criminalidade. Haja vista o fato de que a resposta pronta e

automática do Estado a toda e qualquer demanda por redução da criminalidade (da

67

Juarez Tavares. Teorias do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 12. 68

Anselm V. Feuerbach. Tratado de Derecho Penal común vigente en Alemania. Buenos Aires:

Hamurabi, 1989, p. 60. (Tradução livre).

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46

corrupção ao latrocínio) é sempre a elevação e endurecimento das penas, resposta que

se funda nesse dogma não explicado: ameaçados por penas maiores os potenciais

criminosos desistirão de seus crimes. A impressionante aderência desse uso

simbólico do Direito Penal encontra raízes, pelo menos em um plano mais

superficial, na intuição do dogma preventivo.

Mas trata-se uma falsa intuição, que não resiste à análise critica de suas

premissas e que, por outro lado, conduz a consequências perigosas.

Em primeiro lugar, o mecanismo de coação psicológica que sustenta toda a

ideia de prevenção geral negativa só tem aplicação (se é que tem) a uma espécie

muito limitada de crimes e de agentes, quais sejam, aos crimes que respondem ao

cálculo lógico 69. E a imagem ilustrada do homem livre e racional é uma premissa

metafísica contraditada pela realidade.

E mesmo quanto ao calculador racional, são inúmeras as variáveis que

integram essa complexa contabilidade: além das abstratas vantagens do crime e

desvantagens da pena, a real possibilidade de ser punido, o tempo esperado entre a

prática do crime e uma eventual punição, intensidade da necessidade, a degradação

ou não das condições atuais de vida, a autoimagem, a forma de inserção na

comunidade, o ambiente social e cultural, dentre outros incontáveis e

personalíssimos. Dessa forma, o agente pode, incorporando no seu cálculo de custo-

benefício a real possibilidade de ser descoberto, ou ainda, o impacto de uma eventual

punição sobre suas atuais condições de vida, chegar muito racionalmente à conclusão

de que vale a pena praticar o crime.

Nesse ponto, razão assiste a GUNTHER segundo quem os poucos resultados

empíricos a respeito da eficácia da prevenção geral negativa demonstram que o

controle policial possui um efeito intimidatório mais relevante do que a ameaça ou

execução da pena: “As pessoas evitam dirigir alcoolizadas menos em razão da

69

Heiko H. Lesch. La Función de la Pena. Madrid: Dykinson, 1999, p. 27.

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47

proibição dessa conduta pela lei penal ou da ameaça de punição do que em razão do

fato de, naquela noite, no caminho de casa, a polícia estar realizando uma „batida‟”. 70

Em segundo lugar, a crença generalizada no efeito intimidatório da pena

parece ser inversamente proporcional à qualquer comprovação concreta do efeito

intimidatório da pena. Como nota GUNTHER, não raro aqueles que defendem a

eficácia da intimidação empregam como exemplos experiências sociais próximas, do

cotidiano familiar e da educação de crianças, transferindo-os para a pena estatal, o

que claramente não é possível. E, de outra mão, a célebre cena dos batedores de

carteira, que se aproveitavam justamente dos espectadores com olhos fixos nos

terríveis martírios e nas execuções públicas para praticar com maior êxito seus furtos,

ensina justamente o contrário71.

Fato é que a eficácia do efeito de intimidação jamais foi comprovada, como

reconhece peremptoriamente BARATTA:

A função de prevenção geral negativa (objetiva a dissuasão dos potenciais

infratores), na qual se baseia grande parte do consenso que ainda goza o

sistema penal no sentido comum pode ser considerada, por sua vez uma

hipótese empiricamente não verificada e impossível de sê-lo. 72

Sob o prisma da teoria da prevenção geral negativa, jamais se poderá ter

certeza de que a ameaça funcionou, vale dizer, de que crimes realmente deixaram de

ser praticados porque os potenciais criminosos sentiram-se intimidados por ela. Do

ponto de vista da prevenção geral negativa, na verdade, a única certeza que se pode

ter, e certeza absoluta, é de que a ameaça não funcionou, a cada crime que tiver sido

praticado, a cada vez que o Direito Penal for chamado a atuar, como reconhece

JAKOBS:

70

Klaus Gunther. Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 63 71

Klaus Gunther. Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva,

2009 p. 63. 72

Alessandro Baratta. “Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal - Lineamentos de uma

teoria do bem jurídico”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 05. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1994, p. 17/18.

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48

A objeção principal não se refere, portanto, à justificação da ameaça que

leva a cabo Feuerbach, mas da sua idoneidade para conseguir o fim

proposto, quer dizer, que fique absolutamente excluída toda forma de

ofensa dentro do Estado, diga-se de passagem, um fim cujo fracasso é

demonstrado por cada fato delitivo que se comete.73

De fato, se os hipotéticos crimes não praticados não atestam, com segurança,

o sucesso da prevenção, os reais crimes praticados atesta com segurança o seu

fracasso mas essa afirmação, paradoxalmente, ao invés de conduzir ao abandono da

estratégia do Direito Penal (com função preventiva) leva ao oposto, a uma demanda

por mais Direito Penal, como se o problema não fosse a sua inoperância essencial,

mas um déficit quantitativo. Há mais de cem anos, CARRARA percebeu:

A intimidação acarreta uma inflação constantemente progressiva das

penas, pois a prática do delito, ao demonstrar de maneira positiva que o

culpado não sentiu temor pela sanção, conduz ao convencimento de que

para impor temor às pessoas é preciso aumenta-la. 74

O problema, no entanto, vai além da falta de comprovação empírica de

eficácia da prevenção geral. O que se pode constatar, a partir dos dados da realidade,

é a efetiva comprovação empírica da falta de eficácia dessa estratégia, na medida em

que o aumento e endurecimento das penas não acarreta a redução da ocorrência de

crimes. Não obstante todas as dificuldades envolvidas na colheita e manipulação de

dados estatísticos, o fato é que, como afirma SALO DE CARVALHO “os dados de

encarceramento contemporâneo em praticamente todo o Ocidente possibilitam

comprovar a inexistência de relação causal entre (a) aumento das penas e diminuição

de crime e (b) descriminalização e aumento da criminalidade” 75.

73

Günther Jakobs. La pena estatal: significado y finalidade. Madrid: Civitas, 2006, p 125/126.

(Tradução livre). 74

Francesco Carrara. Programma del corso di Diritto Criminale. 8ª ed. Firenze: Casa Editrice Libraria

Fratelli Cammelli, 1897, p. 592. (Tradução livre). 75

Como pontua o autor “isso não significa dizer que para algumas pessoas a pena não tenha um

importante efeito simbólico inibidor. A dúvida posta pela criminologia crítica em relação ao

fundamento dissuasivo é a de que o fenômeno da pena é apenas um fator (provavelmente o menos

importante) dentre as inúmeras circunstâncias que influenciam a prática ou abstinência de atos

ilícitos”. Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 69.

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49

Em terceiro lugar, e diretamente ligado às proposições anteriores, a teoria da

prevenção geral conduz inevitavelmente à expansão incontrolável do Direito Penal

(como aliás todas as teorias baseadas na prevenção), por duas razões:

Uma, porque institui o rompimento inevitável da relação entre a gravidade ou

danosidade social do fato e a imposição da pena uma vez que, como mecanismo de

dissuasão, a razão da pena deve ser o impulso criminoso do agente e não o dano

causado com o crime. Observa LESCH:

A teoria de Feuerbach descuida totalmente o dano do fato para o

ordenamento social, posto que mede a vantagem potencial do delinquente

e trata de contrapor a essa vontade um mal. Se todo o fato punível

supusesse um cálculo, uma ponderação, no sentido de Feuerbach,

deveriam-se formular os tipos penais não segundo a importância do delito,

segundo os bens jurídicos protegidos, e sim segundo a importância, o

peso, dos impulsos para o delito. Dito de outra maneira: se o que se trata é

de eliminar os estímulos para o delito, o mal tem que ser de maior

envergadura do que a vantagem que se obtenha com o fato,

independentemente dos danos sociais causados com o fato. Por isso, pode

surgir uma grande desproporção entre dano social e quantum da pena. 76

Consequência essa, a propósito, recusada pelo próprio espírito liberal de

FEUERBACH, que no entanto, não tinha como escapar-lhe, como afirma JAKOBS:

Feuerbach incorre no mesmo erro em que Kant já havia caído

previamente: esse, como já se assinalou, começa sua fundamentação de

talião com uma simetria com o dano que sofre a vítima e a pena; o dano

que se causa a outro cidadão é algo que o autor realiza contra si mesmo.

Kant, no entanto, gira então inesperadamente em direção ao dano à

vigência da norma e abandona com isso o único solo em que pode

fundamentar o Talião com sua simetria perceptível aos sentidos. A

Feuerbach acontece algo parecido: começa argumentando com o motivo

concreto de um autor para atentar contra um direito, mas acaba tomando

em consideração para o marco penal a importância do dano social e, em

consequência, não conhece nenhuma pena de bagatela em caso de

76

Heiko H. Lesch. La Función de la Pena. Madrid: Dykinson, 1999, p. 26. (Tradução livre).

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50

assassinato, nem nenhuma pena que aniquile a existência no caso de um

pequeno furto. 77

Duas porque, se por um lado, rompe com a “culpabilidade”, pelo outro a

teoria da prevenção geral assume compromisso sanguíneo com a “segurança”, esse

bem supremo, esse estado idílico em que o homem moderno sonha entrar, em que se

pode viver na certeza de estar a salvo da morte ou da privação. E por esse flanco

infiltra-se todo o potencial autoritário que, sob o aplauso de todos os que se enxergam

como vítimas potenciais, conduz ao terror penal.

Na verdade o único remédio para essa inconveniente tendência ao terror

inerente à teoria da prevenção geral negativa é a imposição de um limite externo,

representado pelo princípio da culpabilidade, tal como propõe ROXIN com sua teoria

mista dialética. Faremos a crítica às teorias polifuncionais no momento oportuno,

mas desde logo cabe destacar que, nesse ponto, a abordagem que proponho apresenta

vantagem, porque nela a proporcionalidade e o respeito ao indivíduo são intrínsecos e

na verdade, constituem o cerne da própria teoria e não um elemento externo.

O impacto da pena sobre os membros da comunidade pode ser de tipo

negativo, ou seja, intimidação e dissuasão. Mas, ao lado dessa ideia, surge outra, um

segundo tipo de efeito positivo e que talvez possa então, prestar-se a justificar a pena.

É a ideia, antiga, na verdade, da prevenção geral positiva.

1.2.1.2. Prevenção geral positiva - JAKOBS, MIR PUIG,

HASSEMER

a) Prevenção geral positiva fundamentadora

A ideia da pena como instrumento de restabelecimento da ordem social não é

nova. Apenas a título de exemplo, CARRARA já afirmava que a finalidade primária

77

Günther Jakobs. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 126/127.

(Tradução livre).

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51

da pena era o restabelecimento da ordem externa da sociedade. 78

Mas é a partir de WELZEL, atrelada ao desenvolvimento dogmático da teoria

finalista da conduta, que a ideia do Direito Penal como forma positiva de reforçar os

valores ético-sociais começou a adquirir consistência.

A ideia de prevenção geral positiva assume, no entanto, a sua forma mais

sofisticada no pensamento de JAKOBS.

A teoria da pena de JAKOBS sofreu significativas modificações, desde a sua

primeira versão, em 1976. Nessa primeira fase JAKOBS defende que a principal

finalidade da pena é a influência psicológica dos membros da sociedade para que

continuem confiando na norma, ou seja, para que continuem fieis ao direito.79

O caráter psicológico da pena, no entanto é renegado em uma segunda fase, já

em seu Manual de Parte Geral e na qual ganha destaque o aspecto radicalmente

normativo da teoria de JAKOBS. Sob esse prisma, a pena tem como função reafirmar

a estabilidade normativa e a vigência da norma, confirmado assim a identidade social.

Assim se põe também em relevo como há de entender-se a pena enquanto

reação a um conflito: a pena – como a infração da norma – não deve ser

considerada apenas como um acontecimento exterior (pois então pareceria

apenas a sucessão irracional de dois males), mas também a pena significa

algo, quer dizer, significa que a significação do comportamento infrator

não é determinante e que o determinante segue sendo a norma. (...)

Correlativamente a essa localização da infração da norma e da pena na

esfera do significado, e não das consequências externas da conduta, não

pode considerar-se missão da pena evitar lesões a bens jurídicos. Sua

missão é reafirmar a vigência da própria norma, devendo equiparar-se,

para esse efeito, vigência e reconhecimento. (...) Resumindo: a missão da

pena é a manutenção da norma como modelo de orientação para os

contatos sociais. 80

78

Francesco Carrara. Programma del corso di Diritto Criminale. 8ª ed. Firenze: Casa Editrice Libraria

Fratelli Cammelli, 1897, p. 590. 79

É a posição estampada em seu texto Schuld und Prävention, publicado em 1976 e que se manteve

até o final da década de 80. 80

Günther Jakobs. Derecho Penal - Parte General. 2a ed. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 13-14.

(Tradução livre)

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52

Em uma terceira fase, no entanto, JAKOBS abandona o plano puramente

normativo da fase anterior e incorpora a necessidade fática de apoio ou consolidação

cognitiva81

, materializada na ideia de dor penal:

Um delito desorienta, e posto que não é somente um ataque a uma norma

qualquer, meramente imaginada, mas a uma norma que faz parte da

realidade da sociedade, o efeito de desorientação se produz em uma dupla

dimensão: ataca o caráter vinculante do normativo, na medida em que o

autor o considera irrelevante no seu caso, e perturba a consolidação

cognitiva da norma vinculante porque o fato mostra (uma vez mais) que

tem que se contar com descumprimentos da norma. Há que reagir-se

frente a ambas as dimensões: a parte simbólica da pena, seu significado

como contradição se dirige contra a afirmação de que não se trata de uma

norma vinculante, e a consolidação cognitiva se mantém porque a dor

penal transforma o acontecimento em um empreendimento fracassado

(quer dizer, a demonstração de que o delito não apenas merece a pena não

é somente uma função latente da pena; nessa medida, reviso no presente

trabalho minha posição mantida até o presente momento.) 82

Em sua versão mais recente, portanto, a teoria de JAKOBS conjuga dois fundamentos

para a pena: a reafirmação contrafática da norma e a consolidação cognitiva.

A teoria da prevenção positiva, tal como concebida por JAKOBS, conduz a uma

encruzilhada conceitual.

Se mantida no plano estritamente normativo, a ideia de reafirmação

contrafática sequer pode ser considerada uma teoria preventiva (no sentido clássico

da prevenção de crimes futuros). Mantendo-se fiel à sua matriz idealista hegeliana,

aproxima-se muito mais de uma concepção retributiva (como a de Hegel mesmo) do

que preventiva, como explica o próprio JAKOBS:

Em Hegel – ao menos naquela entre suas fundamentações da pena que é

aqui ressaltada – a dor é também um elemento simbólico, significa algo, a

81

Jakobs expressamente reconhece sua mudança de posição no prólogo da tradução para a língua

espanhola de La pena estatal: significado y finalidad, p. 12. 82

Günther Jakobs. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 12. (Tradução

livre).

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53

saber, que a máxima configurada pelo autor é irrelevante; sendo relevante

a do ordenamento jurídico. O fato e a pena são tomados em seu

significado comunicativo, o fato como afirmação de que o Direito não é

vinculante, e de que o autor desfruta do estado de natureza hobbesiano, a

pena como contradição, com o conteúdo de que unicamente o Direito pode

constituir ponto de partida da comunicação. Com essa contradição a

estrutura da sociedade fica confirmada, de modo que se executa uma

sequência que não corresponde nem ao „punitur, ne peccetur‟, nem ao

„punitur quia peccatum est‟: o olhar se dirige ao futuro, como no „ne

peccetur‟, mas não se trata de que não ocorram futuros delitos – um

propósito que, levado a sério, é totalitário em vários sentidos -, senão de

manter a vigência da norma. 83

Uma teoria da prevenção positiva assim concebida tem que renunciar ao

objetivo de causar impacto negativo sobre a suposta motivação criminosa (não

verificável, não comprovável, e que se situa no plano ontológico), substituindo-o pelo

efeito normativo de reafirmar a validade do ordenamento jurídico (plano normativo).

E essa cisão entre o plano ontológico e o normativo faz com que, para o observador

situado no primeiro o Direito Penal apareça como meramente simbólico, no sentido

pejorativo daquilo que é uma ilusão, um engano, uma falácia. É a crítica de

BARATTA:

concomitantemente ao declínio das concepções instrumentais da

prevenção, observa-se um novo interesse em relação às funções

simbólicas sobre as quais eram baseadas as clássicas teorias

„declaratórias‟ da pena, a partir de Emilé Durkheim, e que agora são outra

vez propostas no âmbito da teoria da „prevenção geral positiva‟ ou

„prevenção-integração‟, principalmente na Alemanha” (...) “A teoria da

prevenção geral positiva é, portanto, uma teoria da função simbólica do

Direito Penal, no sentido de que as funções indicadas se relacionam

diretamente com a expressão dos valores assumidos pelo ordenamento e

com a afirmação da validade das normas, confirmação esta simbólica e

não empírica, por ser independente da quantidade de infrações e da sua

redução. 84

83

Günther Jakobs. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 133/134.

(Tradução livre). 84

Alessandro Baratta. “Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal - Lineamentos de uma

teoria do bem jurídico”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais.nº 05. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1994, p. 21.

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54

No mesmo sentido, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS:

Na verdade, a função de prevenção geral positiva é fenômeno

contemporâneo ao Direito Penal simbólico, produzido pela pressão

corporativista de sindicatos, associações de classes, partidos políticos,

organizações não governamentais etc., representado pela criminalização

de situações sociais problemáticas nas áreas da economia, da ecologia, da

genética e outras, em que o Estado não parece interessado em soluções

reais, mas em soluções penais simbólicas, com frequente subordinação de

direitos humanos a exigências de funcionalidade do sistema econômico,

ecológico etc.85

Mas como se viu, na última versão de sua teoria, JAKOBS abandona o terreno

puramente normativo e volta a transitar entre ele e o mundo real. Constata que a mera

reafirmação contrafática no mundo normativo não é suficiente para que o direito

possa funcionar na sociedade como sistema de orientação de condutas. De forma que,

embora cindidos, o mundo normativo e o mundo empírico voltam a comunicar-se

necessariamente, já que é apenas nesse contato que se produz o “direito vigente”, vale

dizer, o direito como efetivo sistema de orientação dos comportamentos sociais:

Mencionarei a respeito da vigência do Direito três pontos de partida: (1) o

Direito vigente é a relação entre as pessoas considerada como correta –

pura normatividade; (2) o Direito vigente é a relação entre pessoas que é

passível de ser considerada como correta, ou ao menos como plausível,

que é praticada na maioria das vezes – normatividade realizada; (3) o

Direito vigente consiste nas regras de relação praticadas na maioria das

vezes entre os seres humanos. – pura faticidade. 86

A partir daí, JAKOBS explica a razão pela qual o segundo desses pontos de

partida é o correto e porque uma abordagem puramente normativa é insuficiente.

Quanto à vitima:

85

Juarez Cirino dos Santos. Teoria da Pena – fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

Lúmen Juris, 2005, p. 31-32. 86

Günther Jakobs. Teoría Funcional de la pena y de la culpabilidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 31.

(Tradução livre).

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55

A orientação para a vítima que essa ordem (baseada na pura

normatividade) oferece igualmente só poderá ser normativa. Assim, por

exemplo, frente à pergunta de como proceder com uma valiosa bicicleta

esportiva com a qual se chegou à Universidade, a resposta será a seguinte:

„Esteja onde estiver, não deverá ser furtada e se apesar disso o for, o

ladrão deverá ser punido etc.‟ A pessoa que formulou essa pergunta age

conforme essa resposta e coloca sua bicicleta sem assegurá-la com o

cadeado; é furtada, mas a resposta foi correta; pois não deveria ser furtada,

e o ladrão, que desapareceu sem rastro, deve ser punido etc. 87

E também quando ao autor:

O autor já pode orientar-se por uma norma quando a aceita como

corretamente fundamentada. No entanto, posto que o espírito é forte, mas

a carne é fraca – sabedoria bíblica – o autor não respeitará uma norma que

seja correta mas que ainda não está estabelecida na realidade social; ao

menos não a respeitará com alguma confiabilidade. É necessária uma

disposição prática à persecução penal em caso de necessidade, inclusive a

impor realmente a pena etc. para proporcionar à norma força frente a

todos. Sem cimentação cognitiva, inclusive uma norma otimamente

fundamentada não regerá mais na realidade social que um desejo

vinculante. 88

A introdução do componente cognitivo ao plano normativo (normatividade

realizada), no entanto, provoca uma modificação dramática no sentido da teoria.

Assumi-lo é na verdade retornar à ideia de prevenção geral negativa (pois se associa a

vigência normativa à concreta dissuasão dos criminosos potenciais que, em face e por

causa da norma, desistirão de seus crimes), um propósito que, nas palavras do próprio

JAKOBS levado a sério, é totalitário em vários sentidos89

, além de indemonstrável e

inclusive desmentido empiricamente.

87

Günther Jakobs. Teoría Funcional de la pena y de la culpabilidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 32.

(Tradução livre). 88

Günther Jakobs. Teoría Funcional de la pena y de la culpabilidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 34.

(Tradução livre). 89

Günther Jakobs. La pena estatal: significado y finalidade. Madrid: Civitas, 2006, p. 133/134.

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56

Mas a ideia de cimentação cognitiva não apenas gira a teoria 180 graus, na

direção da prevenção geral negativa, ela o faz de forma intensa e radical, conduzindo

a ideia de prevenção negativa à sua mais extrema consequência, pois, se a função do

Direito Penal é reforçar a vigência normativa, mas isso só se consegue com o apoio

cognitivo da realidade, qual seja, com o real controle do crime, então aqueles que não

podem oferecer segurança cognitiva concreta estão fora do alcance do Direito Penal,

ao menos do Direito Penal convencional. Para aqueles (seja lá quem forem) que (por

qualquer critério que se escolha) não garantam segurança cognitiva há o Direito Penal

do inimigo que consiste basicamente em uma razão de guerra ou de polícia

sobreposta ao Direito.

Na teoria de JAKOBS, a aliança entre prevenção negativa, por um lado, e uma

visão ainda essencialmente normativa e intrassistemática, descolada de valores

externos ao ordenamento (bem jurídico, valorização da pessoa – e não do sistema –

como portadora de uma dignidade fundamental), pelo outro, dá origem ao fruto mais

venenoso. A semente autoritária que sempre existiu no fundo da teoria preventiva,

encontra seu melhor terreno para germinar.

b) Prevenção geral positiva limitadora

Até agora abordei uma vertente da teoria da prevenção geral positiva que pode

ser chamada de fundamentadora, cujos defeitos foram abundantemente enunciados. É

preciso no entanto mencionar uma segunda modalidade de prevenção geral positiva,

nomeada limitadora ou integradora, e que apresenta características distintas.

Sob essa ótica a prevenção geral positiva não substitui nem se soma à

prevenção geral negativa, mas mantém com ela uma relação dialética, limitando-a. É

que a manutenção da fé no direito e no ordenamento (escopo da prevenção geral

positiva) só é alcançada se as penas não são draconianas, se é respeitado o princípio

da legalidade e da culpabilidade bem como todos os limites constitucionais

conformadores do Direito Penal no Estado Democrático de Direito.90

90

Santiago Mir Puig. Estado, Pena y Delito. Montevideo: BdeF, 2006, p. 62.

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57

Na Espanha essa concepção peculiar da prevenção geral positiva como freio

ao potencial de terror penal contido na prevenção geral negativa, foi desenvolvida por

MIR PUIG:

O conceito de prevenção geral positiva será oportuno se se entende que há

de integrar todos esses limites harmonizando suas contradições recíprocas:

se se entende que uma razoável afirmação do Direito Penal em uma

Estado social e democrático de direito exige o respeito a ditas limitações.91

Também SILVA SANCHEZ encampa essa concepção, embora considere

duvidoso que a prevenção geral positiva realmente tenha repercussão no momento de

se concretizar os princípios garantistas individuais cuja salvaguarda constitui um fim

essencial do Direito Penal.92

Na Alemanha HASSEMER defende posição similar:

A teoria da pena tem colocar os interesses preventivos me uma relação

normativa, justificando-os e limitando-os também ao mesmo tempo. Uma

aspiração dessa classe poderia quiçá conseguir-se com uma teoria da

prevenção geral positiva, para que a pena não seja pura adaptação (e muito

menos intimidação) mas sim a afirmação pública e o asseguramento das

normas fundamentais (inclusive das normas formalizadoras que

recomendem em alguns casos a descriminalização, a prudência, a proteção

jurídica frente à informática, o perdão, o esquecimento.) 93

No Brasil merece destaque a posição de DUEK MARQUES que defende a

adoção da teoria da prevenção geral positiva, com fundamento, inclusive, no

ordenamento jurídico brasileiro:

No caso da legislação brasileira, se interpretado o artigo 59 do Código

Penal, em consonância com os princípios contidos na Constituição de

1988, alicerçada na dignidade da pessoa humana, pode-se concluir que

ficou estabelecida para a pena a teoria da prevenção geral, em sua versão

91

Santiago Mir Puig. Estado, Pena y Delito. Montevideo: BdeF, 2006, p. 66. (Tradução livre) 92

Jesús-Maria Silva Sánchez. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: Jose Maria

Bosch, 1992, p. 240. (Tradução livre). 93

Winfried Hassemer. Persona, Mundo y Responsabilidad – Bases para una teoria de la imputación

en Derecho Penal. Santa Fé de Bogotá: Temis S. A., 1999, p 12. (Tradução livre).

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58

limitada aos princípios constitucionais, de reforçar os valores contidos

na norma penal.94

De todas as teorias preventivas, as já estudadas e as que o serão na sequência,

essa me parece a única sustentável. O escopo de limitar a tendência autoritária da

prevenção geral negativa é inquestionavelmente correto e a vantagem dessa teoria é

conseguir fazê-lo desde dentro, ou seja, desde a própria ideia de prevenção, e não a

partir de um ponto exterior. Nesse ponto a perspectiva integradora coincide com a

minha própria visão, que será desenvolvida nos capítulos quatro e cinco. Postular que

o Direito Penal tem, no seu próprio bojo a finalidade de reafirmar o respeito aos

direitos fundamentais, inclusive os do réu é uma importante mudança de paradigma

com a qual concordo integralmente.

A meu ver, a fragilidade dessa teoria está na sua própria natureza limitadora e

não fundamentadora: a prevenção geral positiva, assim entendida, não tem existência

autônoma. Por não ser fundamentadora, e sim limitadora, seu sentido é negativo. Em

suma, ela não se presta a justificar a existência do Direito Penal, mas, ao contrário,

presta-se a limitar um Direito Penal já existente e fundamentado alhures. Dizer que a

pena estatal serve para reafirmar os direitos do cidadão em face do poder punitivo do

Estado termina não esclarecendo porque esse poder punitivo existe ou deve existir,

nem porque ele seria legitimo. Dessa forma, a teoria integradora acaba tendo que

incorporar a ideia de prevenção geral negativa, cujos vícios e defeitos já foram

devidamente debatidos ou permanecer em um âmbito de autorreferência, padecendo

do mesmo problema das teorias retributivas.

1.2.2. Prevenção especial e a pena indeterminada

A teoria da prevenção especial centra esforços sobre o próprio autor do crime:

o objetivo da pena é impedi-lo ou dissuadi-lo de delinquir novamente. Responde-se

assim à crítica insuperável segundo a qual as teorias da prevenção geral, quaisquer

que sejam, instrumentalizam o indivíduo na medida em que a pena aplicada a ele

serve na verdade a outros.

94

Oswaldo Henrique Duek Marques. Fundamentos da Pena. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2008, p. 148.

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59

Cria-se, de outra mão, novo perigo: mais uma vez, e como em toda e qualquer

teoria preventiva, rompe-se a relação de proporcionalidade entre danosidade do crime

e pena. Mas se na prevenção geral esse rompimento conduzia, no limite, ao terror

penal, aqui ele redunda, necessariamente, na temerária substituição do conceito de

culpabilidade pelo de periculosidade, com ao menos duas consequências desastrosas:

(a) A falta de justificação para a punição quanto a delitos que, pelo conjunto

das circunstâncias, não serão repetidos pelo agente. A respeito, ROXIN traz o

exemplo dos crimes praticados nos campos de concentração:

Tais assassinos vivem hoje, em sua maioria, discreta e socialmente

integrados, não necessitando portanto de „ressocialização‟ alguma, nem

tampouco existe da sua parte o perigo de uma reincidência ante o qual

deveriam ser intimidados e protegidos. 95

O mesmo se diga da punição dos genocidas dos regimes autoritários da

América Latina: que espécie de prevenção especial justificaria a punição do ditador

Augusto Pinochet, por exemplo?

(b) Na mesma linha, mas em sentido inverso, a indeterminação temporal da

pena que, convertida em uma espécie de “medida de segurança” só deve cessar

quando tiver “curado“ ou “neutralizado“ o agente, o que pode acontecer a qualquer

momento e inclusive nunca, ficando portanto o cidadão a mercê do poder do Estado.

É precisamente nesse segundo aspecto que consiste o potencial autoritário,

antidemocrático e, sobretudo, o germe da incontrolabilidade do poder punitivo. Já

nas palavras de PLATÃO:

O ateniense: (...) Mas em relação a todos aqueles que o legislador perceber

que são irrecuperáveis (incuráveis) em relação a essas matérias, que

penalidade deverá ele promulgar, e que lei? O legislador compreenderá

que em todos esses casos não apenas é melhor para os próprios infratores

não viverem mais como se revelará também duplamente benéfico aos

95

Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3ª ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 21-22.

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60

outros que eles deixem a vida, o que servirá tanto como advertência para

que os outros não ajam injustamente quanto para livrar o Estado de

indivíduos perversos, de sorte que ele necessariamente aplicará a morte

como punição por seus crimes em casos desse tipo, e desse tipo

exclusivamente. 96

Tal como a prevenção geral, a especial também se subdivide em positiva e

negativa. Analisarei a seguir mais especificamente os perfis e os defeitos de cada uma

delas:

1.2.2.1. Prevenção especial positiva - LISZT

A prevenção especial positiva foi o grande discurso de fundamentação da

pena durante todo o século XX, sucedendo a prevenção geral negativa e

correspondendo a uma segunda fase da modernidade penal. Com diferenças de

concepção entre si, são, no entanto, importantes representantes da ideia de prevenção

especial positiva: na Itália, com o positivismo criminológico, LOMBROSO (1835-

1909), FERRI (1856-1929) e GAROFALO (1851-1834); na Espanha, com o

correcionalismo, CONCEPCIÓN ARENAL (1820-1893) e DORADO MONTERO

(1861-1919), na Alemanha, com o positivismo sociológico, FRANZ VON LISZT

(1851-1919) 97 . Veja-se a propósito explicação de VON LISZT a respeito das

finalidades da pena:

A pena é coação. Se dirige contra a vontade do delinquente, deteriorando

ou destruindo bens jurídicos nos quais sua vontade encontrara

corporização. Como coação a pena pode ser de dupla natureza: (a) Coação

96

Platão. As Leis. Bauru: Edipro, 1999, p. 369/370. 97

“Quando Liszt, ao final do século XIX, obteve sua cátedra, a filosofia idealista de Kant e Hegel já

havia sucumbido e o naturalismo dominava as ciências filosóficas em geral, e a ciência jurídico penal

em particular. O comportamento humano, a sociedade em geral, era vista de uma perspectiva técnico-

causalista, sob o prisma das ciências naturais; o comportamento encontrava-se, em suas causas

internas e externas, predeterminado. Em correspondência com essa mecanização de todo o pensamento

as ciências da vida social transformaram-se em uma física social; a ciência do Direito Penal, em

concreto, em uma espécie de engenharia social. Pressupõe-se que só quando um Homem conhece as

leis da natureza pode modificá-las para seu proveito ou, ao menos, adaptar-se a elas para que não lhe

acarretem maiores danos. Transferindo-se para as possibilidades de convivência humana isto significa:

a regularidade do comportamento humano baseada nas Leis da Natureza concede a possibilidade de

que, modificando seu entorno, seus costumes, sua educação e em geral, tudo o que influiu na sua vida,

o Homem pode ser melhorado”. Günther Jakobs. Teoría Funcional de la pena y de la culpabilidad.

Madrid: Civitas, 2006, p. 31/32. (Tradução livre).

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indireta, mediata, psicológica ou motivação. A pena oferece ao

delinquente os motivos que lhe faltam, que são adequados a operar como

dissuasivos para a prática de delitos. Ela multiplica e fortalece os motivos

existentes. Opera como artificial adequação do delinquente à sociedade,

(i) por correção, quer dizer, transplante e fortalecimento de motivos

altruístas, sociais; (ii) por intimidação, quer dizer, por implantação e

fortalecimento de motivos egoístas, mas coincidentes, em seus efeitos,

com os motivos altruístas. (b) Coação direta, imediata, mecânica ou

violência. A pena é sequestro do delinquente, transitória ou persistente

neutralização, expulsão da comunidade ou isolamento dentro dela.

Aparece como artificial seleção do individuo socialmente inapto. 98

A teoria da prevenção especial positiva deve sua força e consistência, em um

primeiro momento, às ideias da escola positiva italiana cujo objeto (o delinquente e a

descoberta das causas da criminalidade) e método (empírico indutivo) davam

subsídio à crença de que, uma vez descobertas as causas e condições individuais ou

sociais que implicavam o surgimento do comportamento criminoso era possível

modifica-las e com isso, reorientar o cidadão em direção à normalidade.

Parte-se do pressuposto de que o crime é resultado de uma multiplicidade de

fatores que em última análise produzem uma falha comportamental no indivíduo.

Acredita-se que esse indivíduo, na maioria dos casos, pode ser consertado, curado ou

ajustado e que a pena estatal tem como missão operar esse ajuste e confia-se que ela

está apta a fazê-lo. Em oposição à imagem ilustrada do homem como sujeito livre e

racional, a teoria da prevenção especial repousa sobre a imagem diametralmente

oposta, qual seja, do homem como objeto condicionado e determinado pelas

circunstâncias, endógenas e exógenas, que o impelem, inescapavelmente, ao crime.

Uma segunda circunstância marcante do século XX contribuiu de forma

significativa para o desenvolvimento do modelo correcionalista: a gradativa

substituição de uma configuração puramente liberal de Estado por uma configuração

mais ou menos próxima do Estado de bem-estar social (welfare state). O modelo de

um Estado-providencia, ativo na persecução de seus objetivos, casou-se

perfeitamente com a ideia de uma intervenção direta e positiva sobre o criminoso,

98

Franz von Liszt. La idea del Fin en el Derecho Penal. Valparaiso: Edeval, 1984, p. 112. (Tradução

livre).

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62

que através da imposição e, acima de tudo, da execução da pena, pudesse nele

produzir uma reforma moral e preencher o déficit de socialização (penal welfare).

Todo esse contexto deu força e corpo à ideia de que a pena estatal tem como

fundamento a prevenção de futuros delitos através da melhoria do homem, de forma

que a prevenção especial tornou-se a principal teoria de justificação da pena no

século XX. Revitalizada, a partir da década de 50, pelo movimento da Nova Defesa

Social capitaneado por MARC ANCEL, a teoria da prevenção especial foi

incorporada à maioria das codificações ocidentais. Sob esse influxo, por exemplo, a

lei de execução penal brasileira, de 1984, é inteiramente marcada pelo viés

correcionalista, desde o seu artigo 1º99, passando por inúmeros institutos, como o

exame criminológico, a comissão técnica de avaliação, dentre outros.

No entanto, o fato é que a teoria da prevenção especial positiva traz em si um

potencial autoritário ainda mais perigoso do que a teoria da prevenção geral,

justamente porque se dá vestes de cientificidade e humanitarismo, camuflando até

esconder por completo tudo o que há de brutalidade no exercício do poder punitivo.

Resumirei aqui os problemas da teoria da prevenção especial positiva em três

linhas fundamentais: quanto ao fundamento de legitimidade; quanto à eficácia;

quanto às consequências.

Em primeiro lugar, é de se questionar qual o fundamento de legitimidade de

um projeto de adestramento de cidadãos adultos e capazes, de disciplina ou ortopedia

moral do cidadão, de que fala insistentemente FOUCAULT em Vigiar e Punir. Ou

perguntar, como faz ROXIN: “o que legitima a maioria da população a obrigar a

minoria a adaptar-se aos modos de vida que lhe são gratos? De onde nos vem o

direito de poder educar e submeter a tratamento contra a sua vontade pessoas

adultas?” 100. É inegável a violência subjacente a um projeto de “normalização” e

“cura” ou mesmo “reeducação” compulsórios. E mesmo que seja acolhida a ideia

correcionalista sob o viés de um “programa mínimo”, falar-se em autonomia e

99

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal

proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. 100

Claus Roxin. Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3ª ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 22.

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63

voluntariedade no âmbito de uma situação de controle e dominação absolutos, como

é a execução da pena, é quase que uma ficção. Além disso, ainda que defendido com

a melhor das intenções o projeto ressocializador só pode ser legitimamente concebido

em um número diminuto de situações:

A ressocialização só pode ser bem sucedida quando a causa do

comportamento desviante estiver realmente ligada ao delinquente e a

problemas na sua socialização e quando as terapias e ofertas de ajuda

foram adequadas para eliminar essas causas ou diminuir seus efeitos. No

entanto, quando as causas se relacionarem a uma estrutura social injusta,

discriminatória e criadora de desvantagens ou a um sistema jurídico

ilegítimo (por exemplo, as Leis de Nuremberg, Apartheid) ou cujas

normas impõe condutas não razoáveis, então a ressocialização se torna

adestramento ou disciplinamento externo.101

Em segundo lugar, quanto à eficácia desse método: a criminologia crítica, a

partir das décadas de 70 e 80, cuidou de expor e comprovar aquilo que já era sentido

e percebido desde sempre, a completa ineficácia da pena (sobretudo a de prisão) para

a melhoria e reinserção social do condenado. A percepção largamente difundida da

prisão como escola do crime, do presidiário como alguém essencialmente perigoso, e

do egresso como um marginal irrecuperável demonstram a ausência de ressonância

da tese da ressocialização no âmbito social, realidade que é amplamente reconhecida

pelo discurso jurídico, principalmente o proveniente dos setores mais críticos da

academia: a desclassificação social objetiva, que reduz as chances de futuro

comportamento legal; formação subjetiva de autoimagem de criminoso habituado à

punição; desintegração social do condenado provocada pela perda do trabalho, laços

familiares, afetivos e sociais; deformações psíquicas e emocionais produzidas pelo

subcultura da prisão; processo de desculturação ou seja desaprendizado de valores e

normas da convivência social e aculturação ou aprendizado de valores e normas de

sobrevivência na prisão e, como consequência de tudo isso, a seletividade

desencadeada pela prognose negativa da condenação anterior, vale dizer, o

mecanismo de retroalimentação representado juridicamente pela reincidência, que é

101

Klaus Gunther. Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 68.

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64

diretamente proporcional ao tempo de permanência na prisão 102, tudo isso é sabido e

consabido. Por outras palavras, é já antiga a percepção de que a pena não somente

não ressocializa, mas dessocializa e, aprofundando radicalmente a situação de

exclusão, converte-se em importante fator criminógeno:

[...] nos últimos anos se tem posto em evidência que os sistemas penais,

em lugar de „prevenir‟ futuras condutas delitivas se convertem em

condicionantes de ditas condutas, ou seja, de verdadeiras „carreiras

criminais‟. Becker e outros autores descreveram a forma em que opera o

etiquetamento ou labelling, como se produz uma „profecia que se auto-

realiza‟, como se amplia o âmbito da violência mediante a segregação que

reforça a assunção de um „rol desviado‟ por parte de pessoas com

personalidade lábil (a auto-identidade desviada), como a segregação

institucional gera o fenômeno de prisionalização e despersonalização,

como o processo de marginalização costuma iniciar-se na própria infância

e projetar-se até o futuro, como a criminalização limita as possibilidades

laborais etc. 103

Em terceiro lugar, quanto à consequência que institui: a teoria da prevenção

especial positiva, ao romper com a relação pena / culpabilidade e estabelecer a

vinculação pena / ressocialização também implica o sério risco da ampliação

desmesurada do jus puniendi, da supressão dos limites ao poder punitivo estatal.

A substituição do conceito de culpabilidade pelo de periculosidade

(consequência inevitável da teoria da prevenção especial positiva) e a dissolução da

fronteira entre pena e medida de segurança faz com que aqui o risco da pena

indeterminada (em quantidade e qualidade) seja ainda mais grave do que na teoria da

prevenção geral negativa porque a sanção/tratamento torna-se um bem, não apenas

para a sociedade, mas para o próprio “paciente”, além de um imperativo médico

científico, de modo que não há nenhum argumento que justifique a sua limitação a

priori.

102

Juarez Cirino dos Santos. Teoria da Pena – fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

Lúmen Juris, 2005, p. 28. 103

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro- volume I:

parte geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 69.

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65

Ademais, o conceito de periculosidade (enquanto prognóstico de que o

indivíduo tem probabilidade de vir a praticar novos delitos) não é pernicioso apenas

porque institui a indeterminação da pena mas também, e não menos importante, por

ser ele mesmo absolutamente indeterminado, carente de qualquer mecanismo

objetivo de verificabilidade e por isso mesmo, sem possibilidade de refutação. Para

SALO DE CARVALHO:

No interior do modelo correcionalista, a categoria periculosidade adquiriu

uma alta funcionalidade na resolução dos problemas apresentados na

execução da pena, exatamente em função dessa porosidade. Isso porque a

maleabilidade conceitual permite vincular qualquer disfuncionalidade

conceitual do condenado – nos âmbitos orgânico, afetivo, familiar ou

disciplinar – à possibilidade da prática de delitos futuros, situação que cria

uma ferramenta ótima de controle (carcerário) da individualidade.104

Embora o Brasil, tal como os países de tradição romano-germânica, jamais

tenha acolhido o modelo correcionalista na sua forma mais radical (tal como o

fizeram os países de common law) e o apego ao princípio da legalidade não tenha

permitido jamais grassar, no nosso direito positivo, a pena quantitativamente

indeterminada, o fato é que o conceito de periculosidade ganhou enorme espaço e

repercussão. E o curioso na jurisprudência brasileira é o sistema de dois pesos e duas

medidas que se costuma adotar: se durante o processo, o réu é considerado culpável e

portador do mais genuíno livre arbítrio (desconsiderando-se completamente as

condicionantes sociais e pessoais), na execução ele passa a ser considerado perigoso,

sempre para efeitos in pejus, como, por exemplo, a negativa de direitos como

progressão de regime, livramento condicional ou saída temporária, a manutenção da

possibilidade de exigência do exame criminológico para a sua concessão ou a

imposição do regime disciplinar diferenciado.

Além disso, a ideia de que o direito se presta à cura, conduz imediatamente o

pensamento à questão: o que fazer com os incuráveis?

104

Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p 83.

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66

A preocupação de LISZT com a reincidência e a sua proposta de tratamento

dos criminosos catalogados como irrecuperáveis, permanecem assustadoramente

atuais:

A eliminação da periculosidade, concebo-a da seguinte forma: o código

penal deveria determinar – da mesma forma que os parágrafos 244 e 245

do Código vigente – que uma terceira condenação por um dos delitos

mencionados acima (furto, roubo, extorsão, estelionato, incêndio, dano,

atentados sexuais e corrupção de menores) levaria a uma reclusão por

tempo indeterminado. A pena seria cumprida em comunidade em recintos

especiais (presídios). Ela consistiria em uma „servidão penal‟, sob a mais

severa obrigação de trabalho e a maior exploração possível da força de

trabalho. Como sanção disciplinatória, a pena corporal seria quase

inevitável. Uma perda obrigatória e perpetua dos direitos civis e

honoríficos deveria assinar o caráter incondicionalmente desonroso da

pena. A reclusão individual só operaria como sanção disciplinar

combinada com reclusão em câmara escura e jejum estrito. 105

Por fim, a adoção do modelo correcionalista provoca impactos negativos e

autoritários também sobre a dogmática penal, na medida em que representa um giro

em direção ao Direito Penal do autor, em detrimento do Direito Penal do fato. Os

reflexos dessa guinada vão desde a tipificação de atitudes internas e atos

preparatórios que possam, supostamente, revelar um índice inaceitável de

periculosidade até a supervalorização de circunstâncias de caráter pessoal que,

mesmo desvinculadas do fato objeto do processo, passam a justificar um incremento

da punição (ex vi a agravação da pena pela reincidência, que o nosso Supremo

Tribunal Federal insiste em considerar constitucional).

1.2.2.2. Prevenção especial negativa

A ideia de prevenção especial negativa emprega o mesmo raciocínio que a

prevenção geral negativa: tanto quanto os delinquentes “potenciais” também o

delinquente “real” irá sentir-se intimidado pela dolorosa experiência da pena e, numa

105

Franz von Liszt. La idea del Fin en el Derecho Penal. Valparaiso: Edeval, 1984, p. 121/122.

(Tradução livre).

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67

lógica um tanto o quanto behaviorista, cuidará de afastar-se da conduta (crime) que

leva à dor (pena).

Mas há também um segundo sentido, menos psicológico e mais concreto, em

que se pode entender a prevenção especial negativa: a mera manutenção do

condenado no cárcere consiste, aos menos durante o tempo de duração da pena, a

neutralização do potencial de risco que ele representa para a comunidade.

A desilusão com a prevenção especial positiva proporcionou o ambiente para

que o discurso da prevenção especial negativa, sobretudo nesse segundo aspecto,

ganhasse força:

A crise do projeto de reconstrução do condenado como força de trabalho

útil, sintetizada no famoso „nothing works‟ de Martinson, está na origem

da atual transformação da prisão em instrumento de pura deterrence,

reduzido à prevenção especial negativa de segurança e de incapacitação do

preso. 106

A teoria da prevenção especial negativa, no entanto, não é sustentável, sob

nenhum de seus aspectos.

Como intimidação, atribui-se à pena a missão de evitar que o agente pratique

novos crimes, por medo de voltar a experimentar a dor da pena. No entanto, a

premissa desse raciocínio (o agente calculador tal e qual se viu na teoria da prevenção

geral negativa) é desmentida repetidamente pela realidade. E como se viu nos

comentários à prevenção especial positiva, a pena revela-se como fator criminógeno

na vida do cidadão já que, por incontáveis razões, empurra-o em direção à prática de

outros delitos, e não o contrário.

Como neutralização, a teoria da prevenção especial negativa apoia-se no fato

de que, durante a execução da pena o agente não poderá praticar delitos. Dessa forma

a pena converte-se em custódia policial (e nesse sentido, nem há mais falar em

fundamento da “pena”), por meio da qual o risco representado pelo autor do delito é

106

Juarez Cirino dos Santos. Teoria da Pena – fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

Lúmen Juris, 2005, p. 26.

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68

inocuizado, pelo bem da segurança social107. É um discurso de incrível apelo nos dias

atuais, sobretudo em sociedades que desenvolveram um perceptível traço de paranoia

e acreditam que a segurança pode ser alcançada pelo Direito Penal. E é intrigante

como esse raciocínio simplista e claramente equivocado pode encontrar tantos

adeptos, mesmo dentre as fileiras supostamente esclarecidas.

Não é possível “neutralizar-se“ o crime ou o criminoso dessa forma.

Não é possível de fato (empiricamente). É evidente, a partir de uma

perspectiva apenas um pouco mais ampla do que a das vidas isoladas, que a

neutralização dos criminosos individuais é uma estratégia completamente ineficaz

para reduzir índices de criminalidade na sociedade. Em grande parte do mercado da

ilegalidade, entrelaçado que é no próprio tecido social e com causas que nele

entranham raízes profundas, os contraventores individuais são fungíveis e se alguém

é temporária ou permanentemente afastado é rapidamente substituído por outro, de

forma que, independentemente dos atores, a encenação prossegue sendo exatamente a

mesma (vejam-se os resultados das cruzadas modernas no estilo war on drugs que se

convertem em um infinito e embaraçoso enxugar de gelo – infelizmente com muitas

vítimas). Dessa forma, a finalidade de contenção da criminalidade através da

prevenção especial negativa consiste, na melhor das hipóteses, em uma inaceitável

ingenuidade.

Não é possível de direito (axiologicamente). Um Estado Democrático de

Direito e que reconhece a dignidade humana como valor fundamental não pode

possuir como missão simplesmente excluir alguns de seus membros da comunidade

jurídica. Como muito bem pontua GUNTHER: “a dignidade humana não é um

princípio que protege seu titular apenas em casos de conflitos simples e leves com o

Estado e a comunidade. Ela foi historicamente conquistada em conflitos nos quais

sua concessão foi absolutamente dolorosa para os envolvidos.” 108

107

Klaus Gunther. Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 81. 108

Klaus Gunther. Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 82.

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69

A prevenção especial negativa conduz à mais alta potencia o caráter de

violento da pena, e rompe com todo e qualquer limite que se poderia impor ao

poderio estatal sobre o cidadão que, nessa perspectiva, é completamente coisificado e

como tal pode ser destruído como um empecilho na consecução da meta de

segurança: se a função da pena é neutralizar o criminoso, porque não a pena de

morte? Porque não a pena perpétua? Trata-se de uma fundamentação que legitima

toda e qualquer violência estatal, o que é mais do que suficiente para comprovar seu

caráter autoritário e antidemocrático.

1.2.3. Neo-preventivismo gerencialista, new penology e o grande

encarceramento

A partir dos anos 80 do século passado o descrédito da mítica correcionalista,

sobretudo nos seus aspectos mais auspiciosos e iluminados (embora igualmente

míticos) de viés humanitário, filantrópico e reabilitador, deu origem a um

pensamento preventivo de natureza diversa, obediente à lógica gerencial e modelado

pelo cálculo atuarial.

Firmada a premissa de que o Direito Penal tem como finalidade reduzir os

índices de criminalidade (a premissa preventiva em essência, da qual derivam todas

as nefastas consequências até aqui expostas), a preocupação, do ponto de vista

gerencial, não é mais a legitimação moral tanto dos fins quanto dos meios, mas

simplesmente como fazê-lo, como entregar o resultado com a máxima eficiência.

Nesse contexto a questão dos fundamentos de legitimidade da pena deixa de

ser objeto de preocupação jurídica e filosófica e passa a operar de baixo para cima,

não mais a partir de uma construção teórica mas ao contrário, a partir do senso

comum e da opinião popular:

A nova ideia de pena trazida por tal perspectiva frequentemente parece

vulgar de tão simples, mas por outro lado não aprecia a autocelebração em

dissertações acadêmicas. Ela é expressa na fala das pessoas comuns, e

atinge a essas diretamente através das palavras dos políticos e

prevalentemente dos meios de comunicação de massa. Porém, difundem-

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70

se e acabam por se articular em retóricas que também encontram – ou

buscam encontrar – uma legitimação científica. Obviamente, não falta

quem se aventure cientificamente na empreitada. Difunde-se cada vez

mais, hoje, uma cultura populista da pena, que talvez pela primeira vez

coloca a questão de uma punição socialmente acordada “desde baixo.” 109

A instrumentalização da pena na gestão da criminalidade própria dessa penologia

populista e tecnocrática passa a obedecer somente a uma (suposta) lógica de

eficiência: antevisão dos riscos sociais (agora pensados segundo o método securitário

do cálculo probabilístico em termos grupos sociais problemáticos e não mais apenas

em termos de periculosidade individual) e intervenções profiláticas e propositalmente

duras. Todas as modalidades de autoritarismo combinam-se justificadas pelo culto da

eficiência: endurecimento das leis, encarceramento perpétuo, pena de morte,

supervalorização de aspectos pessoais, dentre os quais a reincidência, identificação e

neutralização dos potencialmente perigosos, processos secretos e sem garantia.

Ocorre que esse Estado de eficiência não é um Estado de direito, é um Estado de

polícia.

Nos Estados Unidos esse modelo se plasma, politicamente, no dogma da tolerância

zero. Justifica-se conceitualmente a partir de teorias que procuram dar lastro

acadêmico àquela máxima (ex vi, a teoria das janelas quebradas). E insere-se no

ordenamento jurídico positivo através de leis do tipo three-strikes and you’re out!. 110

A resposta penal pronta e especialmente intensa, com o objetivo de que mesmo

infrações leves não se disseminem e degenerem em descontrole social, ainda que

vestida em roupagem moderna, corresponde na verdade, a uma reativação da mais

antiga ideia de prevenção, qual seja, a prevenção geral negativa, cuja premissa é a

ideia de que o indivíduo (que na nova penologia é substituída pelo grupo de risco)

potencialmente criminoso opera um cálculo racional na base do custo benefício. A

hipótese, a mesma na qual se baseou FEUERBACH, com uma customização

(pseudo) científica e moderna e que passa a ser vendida e consumida massivamente

109

Massimo Pavarini e Andre Giambernardino. Teoria da Pena e Execução Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2012, p. 47. 110

Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 103.

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71

pela população é a seguinte: o sujeito elege o crime tal e qual o consumidor elege

suas compras: pensando na vantagem que lhe advirá. Caso a conduta lhe prometa

maior desvantagem que ganho, naturalmente ele desistirá dela.

Por isso mesmo todos aqueles prognósticos sombrios anunciados já por

CARRARA vem a se confirmar, mais de um século depois, absolutamente exatos.

Os efeitos dessa nova forma peculiar de conceber a prevenção geral

negativa (dissuasão) são, evidentemente, o aumento das penas em abstrato

e o acréscimo dos índices de encarceramento concreto. Ao estabelecer

uma relação de simetria entre crime e pena, aliando fenômenos de

naturezas distintas, qualquer elevação nos índices de delito provoca, como

resposta natural e necessária, o aumento da quantidade e substancialização

das formas de punir. Paradigmática, nesse aspecto, a experiência da

densificação do punitivismo norte-americano com revitalização da pena de

morte e da prisão perpétua, mormente nos estados que adotaram a política

do three-strikes.111

Inicia-se aí o círculo vicioso tendente ao expansionismo infinito, tal como foi

apontado no início desse texto: vende-se a ideia, lastreada no raciocínio economicista

aparentemente científico, de que o recrudescimento da punição conduzirá à redução

da criminalidade (ao mesmo tempo em que se abandona à sombra a discussão sobre

as estratégias que poderiam efetivamente fazê-lo) e como a promessa não se cumpre,

promete-se mais e mais e mais. Cria-se assim a nítida e generalizada impressão de

que o Direito Penal é sempre insuficiente, impressão muito verdadeira, diga-se de

passagem, mas que, paradoxalmente, por mais que se amplie e intensifique, só dá

voltas sobre si mesma, sem nunca sair do lugar, sem nunca chegar ao entendimento

de que o Direito Penal jamais será capaz de cumprir essa promessa.

2. Teorias ecléticas - ROXIN

A reiterada percepção dos defeitos das todas as teorias preventivas deu origem

a teorias de compromisso, que buscam justificar a pena a partir de múltiplas

111

Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 106.

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72

finalidades preventivas e inclusive agregando-se, por vezes, também um aspecto

retributivo, que lhe possa servir de limite.

O principal representante da teoria eclética é CLAUS ROXIN, de forma que

me ocuparei aqui da teoria tal como por ele concebida.

Como se sabe, a questão da finalidade da pena tem importância central no

sistema penal concebido por ROXIN, cujos esforços dirigiram-se justamente à

construção de uma teoria do delito a partir da perspectiva da política criminal, vale

dizer, a partir dos fins do Direito Penal. Por isso mesmo, desde o inicio de sua

trajetória acadêmica, na década de 60 do século passado, até os dias de hoje, essa

questão tem sido objeto privilegiado de sua investigação, cujo resultado é uma

construção teórica que ocupa lugar destacado entre as modernas teorias da pena.

No hoje clássico texto Sentido e Limites da Pena Estatal 112, publicado pela

primeira vez em 1966, ROXIN constata que “se reduzirmos a ilimitada literatura

filosófica e jurídica as suas proposições fundamentais veremos que até hoje não

propuseram mais que três soluções” 113, sendo elas retribuição, prevenção especial

positiva e prevenção geral negativa. A partir da análise crítica dos fundamentos e

deficiências dessas teorias clássicas edifica sua teoria unificadora.

Ao logo das décadas de pesquisa e reflexão, tanto o ponto de partida quanto as

linhas centrais da concepção de ROXIN permaneceram essencialmente inalteradas.

No texto publicado em 2001, nomeado Cambio en la teoria de los fines da la pena114

continua a afirmar que “em que pesem todas as modificações fundamentais da

constituição estatal e das relações sociais, há séculos sempre tem sido oferecidas as

mesmas três concepções que disputam predomínio na discussão científica, na

legislação e na justiça penal” 115 para, ao final, expor sua própria teoria eclética,

apresentando-a, agora com ainda mais convicção, porque iluminada pelo

desenvolvimento jurídico e social de novas formas de sanção.

112

Claus Roxin. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3ª ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 15 a 47 113

Claus Roxin. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3ª ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 114

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 71. 115

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 71. (Tradução livre).

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73

Para ROXIN a finalidade do Direito Penal é garantir as condições mínimas de

convivência social e apenas quando outras medidas menos agressivas não forem

capazes de assegurá-las.

Significa que, em primeiro lugar, a finalidade legítima do Direito Penal é

garantir que se mantenham as condições mínimas para a coexistência pacífica dentre

os indivíduos, coexistência que estaria irremediavelmente ameaçada se fosse

permitido que cada um lesasse, a seu bel prazer, os interesses dos outros:

Se fosse possível, impunemente, matar ou lesar a integridade física de

alguém, levar os seus pertences ou, usando a má-fé, enriquecer-se

indevidamente a partir de seu patrimônio, a coexistência pacífica dos

cidadãos estaria previamente excluída, uma guerra desesperada de todos

contra todos, a autojustiça, a anarquia e a insegurança seriam a

consequência. 116

A partir desse ponto inicial ROXIN propõe, em lugar das tradicionais teorias

da pena (retributivas e preventivas) a posição conhecida como unificadora ou

eclética.

Necessário que se refaça, então, muito brevemente, o caminho trilhado por

ROXIN, desde a crítica das teorias clássicas até a construção da teoria unificadora e

sua “modernização”.

Segundo ROXIN, a teoria retributiva, apesar da vantagem de impor ao poder

punitivo o limite da culpabilidade, desatende à função atribuída ao Direito Penal

(qual seja, a inibição de comportamentos socialmente nocivos) ao exigir a punição do

infrator mesmo em situações em que, “no caso concreto, a punição não é necessária

para a preservação da paz social, apresentando até mesmo efeitos socialmente

nocivos, o que contraria a função do Direito Penal, que se limita à proteção de bens

116

Claus Roxin. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey,

2007, p. 06.

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74

jurídicos” 117. Em segundo lugar, a ideia de retribuição não transmite para a execução

penal nenhum conceito apropriado a possibilitar ao agente uma vida livre de pena no

futuro, apenas conduz ao ressentimento e à insensibilização, favorecendo, portanto, a

reincidência, ao invés de preveni-la. Por fim a abordagem puramente ideal,

metafísica, da teoria retributiva, contraria a função social da pena.

A teoria da prevenção especial é a que melhor se compatibiliza com a função

social do Direito Penal (tal como desenhada por ROXIN), na medida em que

concebe, como finalidade da pena, impedir que o agente pratique novos crimes, seja

através da neutralização pelo aprisionamento, seja pela intimidação (prevenção

especial negativa) seja pela chamada ressocialização (prevenção especial positiva).

Contra ela levantam-se duas críticas importantes: o perigo das penas ilimitadas (mas

que podem ser consideradas necessárias para a prevenção de futuros delitos) ou, de

outro lado, uma limitação inconveniente da punibilidade:

Ocorre que, para ser coerente, ela também deveria deixar impune o

assassino quando não existir nenhum perigo de reincidência (o que pode

muito bem ser o caso de se cometer o fato típico em virtude de uma

situação de conflito), porém isso é dificilmente aceitável se considerarmos

as pessoas lesadas e a coletividade. 118

Sobre a teoria da prevenção geral, tanto negativa quanto positiva, também ela

está em conformidade com a função social do Direito Penal, a tutela subsidiária de

bens jurídicos, com a vantagem de explicar porque a punição seria necessária, mesmo

que não houvesse o risco de reincidência pessoal do infrator. A crítica que remanesce

é a mesma lançada à prevenção especial: a ideia de prevenção geral não fornece uma

limitação da medida da pena. O imperativo preventivo pode conduzir a penas

draconianas e cada vez mais duras, incompatíveis com os princípios de um Estado de

117

Claus Roxin. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey,

2007, p. 10. 118

Claus Roxin. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey,

2007, p. 11. A crítica, no entanto, parece inconsistente em face da função atribuída por Roxin ao

Direito Penal (proteção subsidiária de bens jurídicos). Dessa perspectiva, atendidos tanto a

culpabilidade quanto a função de tutela de bens jurídicos do Direito Penal, qual o inconveniente de

deixar impune o assassino? O inconveniente, cuja existência se intui e que o próprio Roxin reconhece

(“se consideramos as pessoas lesadas e a coletividade”) da impunidade de crimes “irrepetíveis”, em

que não haja perigo nem de reincidência pessoal do autor e nem de contágio pela coletividade, só pode

ser convincentemente explicado por uma teoria retributiva.

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75

Direito liberal. Além disso, a execução de uma pena que visasse a intimidação da

sociedade infringiria a própria dignidade humana e tenderia menos à socialização do

que a própria execução retributiva. Além disso, argumenta-se a impossibilidade de

qualquer comprovação empírica da eficácia da prevenção geral negativa: é duvidosa a

indemonstrável relação entre a pena estatal e a diminuição da violência.

A partir dessas críticas ROXIN concebe sua própria teoria como uma síntese

entre prevenção e justiça, como uma teoria da união, segundo a qual a pena só é

legítima quando é preventivamente necessária e, ao mesmo tempo, é justa 119, sendo

que, nessa relação, tem preponderância e exerce papel positivo a prevenção

(sobretudo a especial) enquanto que a retribuição tem papel secundário e negativo

(limitação).

Uma pena absoluta, que renuncia a finalidades de prevenção e unicamente

– tomando a expressão de Maurach – demonstre a „majestade do Direito

desprendida de objetivos‟, não apenas não coadunaria com a tarefa social

do Direito Penal, como tampouco seria compatível com as base de uma

Constituição democrática. É que a pena constitui uma intervenção estatal

grave e, como tal, precisa de uma legitimação jurídica que não pode

consistir em uma ideia metafísica de compensação retributiva da

culpabilidade mas somente na sua idoneidade e necessidade para cumprir

com tarefas estatais (no caso concreto, um controle seguro da

criminalidade). 120

A teoria da união construída por ROXIN sofre duas críticas principais:

A primeira, por tentar reunir artificialmente elementos heterogêneos e

oriundos de sistemas jusfilosóficos diversos (prevenção geral, prevenção especial,

retribuição).

A essa objeção responde ROXIN:

119

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena” In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 71. 120

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena” In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 71. (Tradução livre).

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76

Quando as coisas são vistas assim, então a exigência de uma necessidade

preventiva de pena, da mesma forma que sua limitação pela medida justa

da culpabilidade estão conectadas pelas bases da teoria do Estado de uma

democracia respeitosa aos direitos humanos. Logo uma „teoria da união‟,

que vincula da maneira exposta prevenção e justiça, ao contrário do que se

diz ocasionalmente, não constitui uma vinculação eclética de questões

heterogêneas. Persistir em uma justificação cumulativa é a única

possibilidade plausível de fundamentar suficientemente a potestade

punitiva estatal. 121

A segunda crítica é de que a teoria da união não é capaz de sanar, por adição,

os defeitos das teorias preventivas individualmente consideradas.

Em resposta a ela, ROXIN procura resgatar e defender uma diversificação ou

modernização dos aspectos preventivos que compõe os fins da pena. A ideia é de que

o avanço frutífero da teoria da pena pode advir menos dos altos níveis da teoria

abstrata (que se mantém essencialmente a mesma, desde o iluminismo), do que do

olhar sobre a realidade social e sobre as novas formas de sanção.

Quanto à prevenção especial, que teve posição proeminente na teoria da pena

do pós-guerra, seu descrédito atual deve-se, segundo ROXIN, ao fracasso da pena

privativa de liberdade como instrumento de ressocialização. Nada disso, no entanto,

depõe contra a finalidade preventiva especial em si mesma, mas sim contra o uso

amplo e disseminado da pena de prisão:

Por isso, não é uma correta via político-criminal desqualificar a prevenção

especial. Ao contrário se recomenda, precisamente por razões de

prevenção especial, evitar a privação da liberdade tudo o que permita a

sua compatibilização com as exigências de prevenção geral. Na prática,

significa que tem que ser introduzidas alternativas à privação da liberdade

e outras medidas sociais promotoras de uma ressocialização ou pelo

menos que não a prejudiquem. 122

121

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 73. (Tradução livre). 122

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 75/76. (Tradução livre).

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

77

Nessa linha, as penas alternativas à prisão, como, por exemplo a compensação

da vítima por parte do autor e o trabalho comunitário oferecem muito mais

oportunidades preventivo-especiais que as privações da liberdade. 123 Além disso, na

medida em que implicam um compromisso ativo do condenado, recolocam-no como

parte ativa da realização do fim da pena, ao invés de objeto ao qual cabe apenas

suportá-la passivamente, o que também constitui uma relevante mudança de

perspectiva.124

Quanto à prevenção geral, ROXIN anota que a própria substituição da ideia

de prevenção geral negativa (enquanto intimidação – não demonstrável - dos

cidadãos potencialmente criminosos) pela de prevenção geral positiva (enquanto

sensação de segurança e de inquebrantabilidade do ordenamento jurídico transmitida

a todos os cidadãos fieis ao direito) já configura uma mudança e um avanço na teoria

da prevenção geral. Além disso, segundo ROXIN, no âmbito da própria prevenção

geral positiva pode haver uma maior diversificação, que corresponde à já comentada

noção de prevenção geral positiva limitadora ou integradora:

Podem diferenciar-se três distintos efeitos: em primeiro lugar, o efeito de

aprendizagem que alcança o Direito Penal pondo à vista, de maneira

ilustrativa, as regras sociais básicas, cuja violação não se pode aceitar; em

segundo lugar, o efeito de confiança que resulta quando o cidadão vê que

o Direito se impôs; e, em terceiro lugar, o efeito de pacificação que se

produz quando uma violação criminal do direito é resolvida mediante a

intervenção estatal e se restabelece a paz jurídica. 125

Não obstante essa possibilidade de diversificação da teoria da prevenção

geral, com importantes repercussões político-criminais (como impor o limite da pena

123

Com todas as reservas devidas aos argumentos estatísticos, sobretudo àqueles que não apontam

suas fontes, é interessante contrapor à afirmação de Roxin o “dado“ trazido por Pavarini, segundo

quem “onde se teve a humildade de se verificar, em determinados períodos de tempo, os índices de

reincidência de uma amostra a condenados a penas e medidas alternativas em relação a outra amostra

composta apenas por quem cumprira uma pena de privação da liberdade, sob condições gerais

similares, constatou-se variações nos índices de reincidência entre os dois grupos nem sempre

significativas estatisticamente. Massimo Pavarini e Andre Giambernardino. Teoria da Pena e

Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 21. 124

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 86. 125

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 79/80. (Tradução livre).

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78

justa, já que as penas draconianas são prejudiciais para o efeito de confiança e

pacificação jurídica da pena) ROXIN defende a preponderância do papel da

prevenção especial sobre a geral, e assume que a primeira tem uma relação muito

menos estreita com a pena, já que está vinculada a um delito já cometido e a um autor

concreto. Já a prevenção geral pretende ser efetiva antes do cometimento do delito e

impedi-lo. E essa atribuição, na realidade, a de prevenir delitos futuros, só em

pequena parte pode ser desempenhada pelo Direito Penal.126

A maior carga preventiva radica no controle social efetuado pela polícia, o

qual se leva a cabo, em parte, mediante a luta preventiva da criminalidade

no marco de investigações contra autores ainda desconhecidos. O meio

mais efetivo de prevenção geral não é o Código Penal ou a justiça penal,

mas a densidade do controle, quer dizer, uma vigilância mais intensa da

população. (...) Para a teoria dos fins da pena resulta disso o entendimento

de que a prevenção geral também pode alcançar-se com métodos

extrapenais (não somente de controle, mas também por exemplo de

pedagogia social ou assegurando-se tecnicamente os objetos de perigo), de

maneira que uma política criminal eficaz tem que ir muito além do Direito

Penal.127

A defesa da teoria da união vem ainda sustentada por outra ideia: ao lado da

diversificação da manifestação concreta das clássicas teorias da pena, também a

diversificação da ênfase que recai sobre cada uma delas nas diferentes etapas da

realização do Direito Penal. 128

Assim que, na etapa legislativa da cominação de pena aos delitos o acento

recai sobre a prevenção geral, tanto negativa (enquanto intimidação), quanto positiva

(enquanto aprendizagem):

As cominações penais têm, enquanto não se tenha produzido o delito, uma

função exclusivamente preventivo-geral. Nesse estágio, entre todas as

126

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 80. 127

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 80/81. (Tradução livre). 128

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In:La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 82.

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79

forma de aparição da prevenção geral somente atuam o – escasso – efeito

intimidatório e o efeito a aprendizagem. 129

Como ambas as funções exigem que os tipos sejam compreensíveis e

definidos, revela-se a estreita ligação entre a prevenção geral e o princípio da

legalidade (nullum crimen sine lege), sublinhada já por FEUERBACH.

ROXIN reconhece novamente, no entanto, que as necessidades preventivo-

gerais presentes na cominação das penas ultrapassam em muito o âmbito do Direito

Penal. Por um lado, como já dito, a função prevenção geral negativa é desempenhada

com mais eficiência pela polícia e pelas instâncias de controle social do que pelo

suposto temor despertado pela ameaça penal. Por outro lado, quanto à prevenção

geral positiva, a aprendizagem das regras elementares de ética social não pode ser

deixada à mera leitura do Código Penal: a escola deve incluir em seu plano

pedagógico o ensino de comportamentos socialmente competentes, o que pode

prevenir delitos de melhor maneira que os esforços posteriores da execução penal

que, com frequência, não são capazes de compensar os déficit sociais. 130

Na etapa judicial de imposição das sanções acentuam-se tanto a função de

prevenção geral quanto a de prevenção especial, embora a ênfase em uma ou outra

possa variar segundo a gravidade do delito. É que, nessa etapa, configura-se uma

relação inversamente proporcional entre a gravidade do crime e as necessidades de

prevenção geral (nos aspectos de confiança e pacificação): Quanto mais grave o

delito mais a prevenção geral exige que a pena corresponda completamente à medida

da culpabilidade. Ao contrário, quanto a delitos médios ou leves as necessidades de

prevenção geral são menos exigentes, de modo que a sanção pode quedar abaixo dos

limites da culpabilidade, por razões de prevenção especial:

Então aqui, tal como desenvolvi ao princípio como consequência da teoria

da pena, a pena pode quedar-se abaixo da medida da culpabilidade e

podem ser empregados todos os benefícios que se baseiem na

possibilidade de suspensão condicional da pena, reparação civil,

129

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 82. (Tradução livre). 130

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 83.

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

80

reconciliação e trabalho comunitário. É que os delitos menores perturbam

a paz social de maneira comparativamente leve e uma reintegração social

do delinquente serve mais à segurança pública do que um rigor promotor

da reincidência. 131

Por fim, na etapa da execução da pena o acento recai apenas sobre a

prevenção especial, enquanto função de ressocialização, abandonando-se por

completo os efeitos preventivos gerais, especialmente a intimidação, que em épocas

passadas imprimiam às penas a feição de suplicio público. Trata-se porém de função

de difícil cumprimento, como reconhece o próprio ROXIN:

Certamente, devido aos déficits de realização já mencionados e devido aos

prejuízos de toda pena privativa de liberdade, até o momento não se pode

alcançar, na medida desejada, a finalidade da execução penal. Isto levou a

que na Alemanha somente em 6% das condenações se estabeleça o

cumprimento de uma pena privativa de liberdade e a realização seja

praticada mais evitando do que executando a pena privativa de liberdade.

132

Não obstante, segundo o autor é ainda importante que se empreendam sérios

esforços de ressocialização especialmente aos presidiários que cumpram penas de

longa duração. 133

Malgrado a importância e consistência da teoria de ROXIN o fato é que seu

raciocínio multifuncional não logra resolver os problemas levantados em relação às

teorias isoladas. Na prática, a reunião das teorias, ao contrário de superar os seus

defeitos, potencializa-os, na medida em que, aceitas todas aquelas finalidades

(intimidar, reforçar valores, reabilitar o cidadão etc.) os riscos do descontrole da

ingerência estatal são maximizados. É exatamente o cenário que se tem atualmente:

aumentam-se as penas em abstrato a pretexto de prevenção geral, criam-se

empecilhos para o gozo de direitos da execução em nome da prevenção especial,

131

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 83. (Tradução livre). 132

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 85. (Tradução livre). 133

Claus Roxin. “Cambio en la teoría de los fines de la pena”. In: La Teoría del Delito en la discusión

actual. Lima: Grijley, 2007, p. 85.

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81

pune-se o autor de crimes pontuais e de difícil repetição em nome da justiça e dessa

forma a demanda punitivista acha-se permanentemente justificada. O honesto

reconhecimento das limitações inerentes à prevenção geral (cujos efeitos são

escassos) e especial (cuja realização até hoje não se alcançou) não impede que tais

fundamentos, uma vez que legitimados no bojo da teoria da pena, continuem

produzindo os efeitos nocivos já apontados. Ao fim e ao cabo, o fato é que a teoria

eclética de ROXIN continua acreditando (ainda que essa crença seja agora turvada

pelo dado de realidade) na prevenção geral e especial e considerando ambas como

objetivos legítimos e possíveis (em alguma medida) para a pena, reativando portanto

discursos já deslegitimados.

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82

CAPÍTULO 2: PARA ALÉM DA PREVENÇAO

Afastada a hipótese preventivista, restam outras perspectivas a serem

examinadas. Uma vez mais esclareço que a opção metodológica sobre a ordem de

apresentação das teorias não obedeceu à cronologia, mas, ao menos em certa medida,

à relevância e à penetração de cada qual atualmente. O discurso preventivista, como

se viu, é dominante, mas não se pode descartar a importância, dentro e fora da

academia, da perspectiva retributivista. Por fim encerrarei esse capítulo abordando a

teoria garantista. Embora, estritamente, ela devesse estar localizada no capitulo

correspondente à prevenção, optei por tratá-la em separado, porque o relevante na

proposta de FERRAJOLI para o desenvolvimento da tese aqui apresentada é

justamente o aspecto que não coincide com a visão preventiva tradicional.

1. Teorias retributivas ou absolutas

As teorias retributivas são alcunhadas absolutas, pois são supostamente

autorreferenciais, vale dizer, não perseguem nenhuma finalidade externa a elas

mesmas, não possuem como objetivo outra coisa senão a sua própria realização. Isso

é uma verdade parcial. Uma teoria, por assim dizer, retributiva pura, de fato não

concede nenhuma outra explicação para a pena além da clássica quia peccantum. Mas

é possível enxergar-se a retribuição como parte de uma finalidade extrínseca, ainda

que tal finalidade não seja a prevenção de delitos futuros.

Ainda assim, fato é que a dinâmica autorreferente e a dificuldade de (ou

renuncia a) encontrar uma finalidade socialmente útil tem sido uma característica

presente nos principais modelos retributivos, tal como foram desenvolvidos ao longo

da história e dos quais passarei agora a tratar.

1.1. Retribuição moral – KANT

A mais perfeita ideia da pena como retribuição moral foi construída pela

filosofia kantiana e é a partir dela, também, que se estabelece a dicotomia insuperável

entre valores morais e o utilitarismo.

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83

Em Crítica da Razão Pura (1781) KANT havia desenvolvido a ideia

fundamental para toda a sua filosofia: a possibilidade de formulação de juízos

sintéticos apriorísticos, que permitem o conhecimento dos objetos enquanto

fenômenos (não a coisa em si) através unicamente do emprego da razão. Com isso,

estabelece a premissas para a resposta à pergunta “o que posso conhecer?”. 134

Em Crítica da Razão Prática (1788), a seu turno, KANT passa a se ocupar

com a questão de como compreender os postulados da moral, de como responder à

pergunta: “como devo agir?”. Questão que é mais desenvolvida na Fundamentação

da Metafísica dos Costumes e depois em Metafísica dos Costumes (1797), sua obra

filosófico-jurídica capital. 135

Apoiando-se na distinção entre nômeno e fenômeno, KANT desenvolve a

ideia de que o homem tem de si uma perspectiva dupla: como pertencente ao mundo

sensível (fenômeno), vê-se submetido às leis da natureza, estranhas a si

(heteronímia); como pertencente ao mundo inteligível (nômeno), vê-se submetido à

lei moral, da qual ele próprio é legislador (autonomia).136

A lei moral posta pela vontade do ser racional é expressa na conhecida

fórmula: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se

torne lei universal”. Essa lei, posta pela vontade do ser racional e a qual essa mesma

vontade encontra-se subordinada de forma vinculante (imperativa) apodítica e

universal, constitui o imperativo categórico da moral. Imperativo categórico porque

com ele não se quer alcançar nenhum outro fim (imperativo hipotético). Ao obedecer

a essa lei, a ação moral é simplesmente a expressão de uma vontade autônoma (que

obedece à sua própria lei). É também uma ação livre, tanto em um sentido negativo

(posto que independente das leis naturais), quanto em um sentido positivo (posto que

em conformidade com sua própria legislação).

134

Nathália Bautista Pizarro, na introdução à obra de Rainer Zaczyk, Libertad, Derecho y

Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2010, p. 34. 135

Nathália Bautista Pizarro, na introdução à obra de Rainer Zaczyk, Libertad, Derecho y

Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2010, p. 34. 136

Imannuel Kant. Fundamentación de la metafísica de las costumbres. Madrid: Alianza, 2002, p.

148.

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84

Estabelecida a distinção entre lei da natureza (heterônoma) e a lei da liberdade

(autônoma, enquanto relação entre o sujeito racional e o imperativo categórico que

ele próprio legisla), KANT postula uma segunda separação, dividindo a lei da

liberdade em lei ética e lei jurídica. A diferença é que a primeira exige que o

fundamento interno da ação coincida com a lei da liberdade, ou seja, afeta o aspecto

interno da ação, enquanto a segunda somente se preocupa com o seu aspecto exterior.

É a partir desse caráter externo que se poderá verificar a legalidade da ação. É

justamente porque se ocupa do caráter externo da ação, o qual, internamente, pode

não estar de acordo com a lei da liberdade, que a lei jurídica tem caráter coercitivo 137.

Para KANT, “o direito é o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de

um pode conciliar-se com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da

liberdade” 138. Dessa forma uma ação será conforme o direito na medida em que

permite a liberdade do arbítrio de cada um segundo a lei universal, e será ilegal

quando prejudicar a liberdade do outro, segundo essa mesma lei. 139 E, em

decorrência, será legal, porque conforme a lei universal, a ação que se contrapõe ao

obstáculo à liberdade, ou seja, será legal a coação.

No Estado de Direito (KANT reconhece uma etapa pré-jurídica do Estado), as

normas que compõe o ordenamento jurídico, na medida em que correspondem à

vontade geral, não constituem um sistema alheio ao sujeito mas lhe são próprias e

ditadas pela razão. Dessa forma a pena é um imperativo categórico pois não pode ter

outro fundamento senão o fato de que o sujeito violou a lei que lhe era própria. Com

a imposição necessária da pena obtém-se a justa compensação do crime, pune-se

quem delinque tão somente para cumprir-se esse mandado da justiça.

A lei da punição é um imperativo categórico e infeliz aquele que rasteja

através das tortuosidades da doutrina da felicidade a fim de descobrir algo

que o libere da punição ou, ao menos, reduz sua quantidade pela vantagem

que promete, de acordo com as palavras farisaicas: „É melhor que um

137

Nathália Bautista Pizarro, in: Rainer Zaczyk,. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena.

Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2010, p. 42/43. 138

Rainer Zacyzik. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 147 139

Nathália Bautista Pizarro, in: Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena.

Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2010, p. 44.

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85

homem morra do que pereça um povo inteiro‟. Se a justiça desaparecer

não haverá mais valor algum na vida do seres humanos sobre a terra 140

Qualquer outro fundamento ou finalidade implica considerar a pena um

imperativo hipotético e, por outro lado, tratar o sujeito como meio, como objeto e não

como fim. A mais contundente metáfora dessa posição é estampada no conhecido

exemplo dos ilhéus:

Mesmo se uma sociedade civil tivesse de ser dissolvida pelo assentimento

de todos os seus membros (por exemplo, se um povo habitante de uma

ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), o último assassino

restante na prisão teria, primeiro, que ser executado, de modo que cada um

a ele fizesse o merecido por suas ações, e a culpa sanguinária não se

vinculasse ao povo por ter negligenciado essa punição, uma vez que de

outra maneira o povo pode ser considerado como colaborador nessa

violação pública da justiça.141

Segundo a perspectiva kantiana, portanto, qualquer teoria relativa da pena é

absolutamente inconcebível.

A punição imposta por um tribunal (poena forensis) distinta da punição

natural (poena naturalis) na qual o vício pune a si mesmo e que o

legislador não considera – jamais pode ser infligida meramente como um

meio de promover algum outro bem a favor do próprio criminoso ou da

sociedade civil. Precisa sempre ser a ele infligida somente porque ele

cometeu um crime, pois um ser humano nunca pode ser tratado apenas a

título de meio para fins alheios ou ser colocado entre os objetos de

direitos, as coisas: sua personalidade inata o protege disso, ainda que

possa ser condenado à perda de sua personalidade civil. Ele deve

previamente ter sido considerado punível antes que se possa de qualquer

maneira pensar em extrair de sua punição alguma coisa de útil para ele

mesmo ou seus concidadãos.142

140

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4a ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 166-167.

(Tradução livre). 141

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4a ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 168-169.

(Tradução livre) 142

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4a ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 166. (Tradução

livre).

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86

O raciocínio estritamente retributivo marca não só a fundamentação da pena

como também a sua medida: se a conduta ilícita consistiu na afetação da liberdade

alheia o justo é que se afete a liberdade do criminoso, exatamente na mesma medida.

Em consequência, KANT defende expressamente a adoção da lei de talião:

Mas que tipo e que quantidade de punição correspondem ao princípio e

medida da pena pública? Nada além do princípio da igualdade (na posição

do ponteiro na balança da justiça), inclinar-se não mais para uma lado do

que para o outro. Em conformidade com isso, seja qual for o mal

imerecido que infliges a outra pessoa no seio do povo, o infliges a ti

mesmo. Se o insultas, insultas a ti mesmo; se furtas dele, furtas de ti

mesmo; se o feres, feres a ti mesmo; se o matas, matas a ti mesmo. Mas

somente a lei de talião (jus talionis) – entendida, é claro, como aplicada

por um tribunal (não por teu julgamento particular) – é capaz de

especificar definitivamente a qualidade e a quantidade de punição; todos

os demais princípios são flutuantes e inadequados a uma sentença de pura

e estrita justiça, pois neles estão combinadas considerações estranhas. 143

E inclusive a pena de morte resta plenamente justificada. Curiosa a resposta

de KANT à posição de BECCARIA, seu contemporâneo, a respeito desse aspecto:

Opondo-se a isso o Marques de Beccaria, movido por sentimentos

compassivos de afetada humanidade (compassibilitas) apresentou sua

asserção de que qualquer pena capital é equivocada porque não poderia

estar contida no contrato civil original, pois se estivesse, todos os

integrantes de um povo teriam que haver consentido em perder a vida em

caso de ter assassinado um outro indivíduo (do povo), ao passo que é

impossível para qualquer um consentir com tal coisa porque ninguém pode

dispor de sua própria vida. Isto não passa de sofística e de artimanha

jurídica. Ninguém é objeto de punição porque a quis, mas porque quis uma

ação punível, pois não constitui punição se aquilo que é feito a alguém é o

que ele quer, e é impossível querer ser punido. Dizer que quero ser punido

se assassino alguém é dizer nada mais do que me submeto, juntamente com

todos os outros, às leis, que naturalmente também serão leis penais se

houver qualquer criminoso em meio ao povo. Na qualidade de um co-

legislador ao ditar a lei penal, é possível que eu não possa ser a mesma

143

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4a ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 167. (Tradução

livre).

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87

pessoa que, como súdito, é punida de acordo com a lei, pois como alguém

que é punido, a saber, como criminoso, não é possível que eu possa ser uma

voz na legislação (o legislador é sagrado). Consequentemente, quando

redijo uma lei penal contra mim mesmo na qualidade de criminoso, é a

razão pura em mim (hommo noumenon) legislando com respeito a direitos,

que me sujeita, como alguém capaz de perpetrar o crime, e assim, como

uma outra pessoa (homo phaenomenon), à lei penal, junto com todos os

demais numa associação civil. Em outras palavras, não é o povo (cada

indivíduo nele encerrado) que dita a pena capital, mas o tribunal (a justiça

pública) e, assim, um outro indivíduo distinto do criminoso; e o contrato

social não contém nenhuma promessa de deixar-se punir, e, deste modo,

dispor de si mesmo e da própria vida, isto porque se a autorização para

punir tivesse que ser baseada na promessa do transgressor, no seu querer

deixar-se punir, teria também que lhe caber julgar a si mesmo punível e o

criminoso seria o seu próprio juiz. O ponto capital do erro nesse sofisma

consiste em sua confusão do próprio julgamento do criminoso (que tem

necessariamente que ser atribuído à sua razão) de que ele tem que perder

sua vida com uma resolução da parte da vontade para tirar sua própria vida,

e assim em representar como unidos em uma única mesma pessoa o

julgamento sobre um direito e a realização deste direito. 144

O pensamento kantiano apresenta o inegável mérito de detectar o perigo

embutido nas teorias relativas que surgiam à época e que, inspiradas pela filosofia

utilitarista, munidas de um discurso, como escreve KANT “de afetada humanidade”,

poderiam conduzir à coisificação do ser humano. Até hoje, quem quer que fale sobre

dignidade humana e proporcionalidade em Direito Penal achará em KANT seu

bastião.

Entretanto o alicerce teológico no qual se funda sua premissa, bem como a

severidade das consequências às quais conduz, fizeram com que a teoria kantiana da

pena, na sua pureza, fosse abandonada.

De fato, tal como foi concebida a teoria kantiana parece insustentável nos dias

atuais (e considerando as distâncias que a separam de nós, seria estranho se fosse

diferente). É desnecessário explicar que fundamentar qualquer instituto jurídico em

144

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4a ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 172 (Tradução

livre).

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um dogma religioso é absolutamente inconcebível nos Estados laicos modernos. De

outra mão, a cega adoção do jus talionis presta-se a legitimar graus de violência

estatal dificilmente compatíveis com os ordenamentos constitucionais democráticos.

Os defensores do neo-retributivismo, no entanto, sobretudo na Alemanha,

consideram possível desenvolver uma fundamentação jurídica da pena partindo de

conceitos essenciais do pensamento kantiano e desenvolvendo-os, de modo que tais

objeções possam ser superadas. Examinarei essas propostas mais adiante.

1.2. Retribuição jurídica – HEGEL

Da introdução de Princípios da Filosofia do Direito (1820) consta a frase

lapidar que sintetiza a filosofia hegeliana: “O que é racional é real e o que é real é

racional” 145. Com ela se expressa a superação da perspectiva subjetiva da filosofia

kantiana que conduzirá finalmente à sobreposição entre direito e moralidade. A

primeira parte da obra citada ocupa-se justamente do Direito Abstrato e é nela que se

situa a questão do delito e da pena.

No contexto do exacerbado idealismo construído por HEGEL o delito não

ofende apenas a individualidade da vítima ou viola um imperativo moral, ele

constitui uma violação à própria ordem jurídica. Dessa forma, aquele que pratica o

crime, por exemplo, um furto ou um homicídio, não nega simplesmente o direito

particular do ofendido sobre a vida ou a propriedade, mas nega o direito em geral,

nega o direito de todos (inclusive o seu próprio) à vida ou à propriedade.

Enquanto negação do direito, o delito constitui uma contranorma e é, como

tal, uma nulidade, uma negação de si mesma (assim, quem mata está enunciado que

ninguém tem direito à vida, nem mesmo ele próprio). A pena é a negação da

contranorma representada pelo crime, é portanto a negação da negação, ou seja, a

afirmação do direito.

145

G.W. Friedrich Hegel. Principios da la Filosofia del Derecho. Barcelona: Edhasa, 2005, p. 59.

(Tradução livre).

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

89

Nem crime nem pena devem ser concebidos em termos morais subjetivos de

mal e bem, mas como termos de uma relação dialética entre o justo e o injusto. E

como forma de recompor o direito, do qual todos participam, inclusive o criminoso, a

pena dignifica-o como ser racional. Conforme HEGEL

Se se considera o delito e a sua supressão, ou seja, a pena, simplesmente

como um prejuízo, parecerá por certo como irracional querer um mal

simplesmente porque já existia um mal anterior. Nas diversas teorias sobre

a pena – da prevenção, ameaça, intimidação, correção, etecetera – esse

caráter superficial de malignidade é suposto como elemento primordial, e

o que, ao contrário, deve resultar, se considera de modo igualmente

superficial como um bem. No entanto, não se trata de mal e nem deste ou

daquele bem mas sim, de uma forma específica, do justo e do injusto. (...)

Nessa discussão a única coisa que importa é que o delito deve ser

eliminado, não como a produção de um prejuízo, mas como a violação de

um direito. 146

A teoria hegeliana é alvo de críticas similares àquelas dirigidas à teoria

kantiana.

Por um lado, a ausência de finalidade socialmente útil tornaria a violência da

pena pura irracionalidade incompatível com os Estados laicos e democráticos.

Por outro, critica-se a “metafísica” (no sentido pejorativo) relação de

causalidade que une o delito e a pena em termos de vinculação lógica necessária sob

o signo do conceito de justiça que, além de vago, é também indemonstrável (na

medida em que nada permite constatar empiricamente que a pena de fato “neutralize”

o crime).

Por fim, há a possibilidade de, a partir dessa ideia de contraposição ou

neutralização, justificarem-se pelo talião punições exacerbadas e incompatíveis com

maioria das ordem constitucionais atuais.

146

G.W.Friedrich Hegel. Princípios da la Filosofia del Derecho. Barcelona: Edhasa, 2005, 185/186.

(Tradução livre).

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90

Não obstante, assim como KANT, HEGEL também é a base para construções

teóricas modernas de relevo, como a teoria da prevenção geral positiva de JAKOBS

(já examinada) e de todos os seus principais discípulos que pouco dele dissentem.

1.3. Neo-retributivismo anglo-saxônico - HIRSCH

Darei agora um salto temporal dos séculos XVIII e início do século XIX para

a segunda metade do século XX. O século XIX e a primeira metade do século XX

foram dominados pelo paradigma da prevenção, primeiro sob a forma de prevenção

geral negativa e a seguir sob a forma de prevenção especial positiva, de modo que

durante esse período os discursos retributivos, embora não tenham jamais

desaparecido, permaneceram eclipsados. Foram a deformações geradas pelo modelo

preventivo e ao final a própria falência desse modelo que deram a eles novo impulso.

Nos países de civil law o pensamento correcionalista encontrou contraponto

no princípio da legalidade. Nos países de common law, no entanto, o impacto foi

mais radical e degenerou, muitas vezes, em um altíssimo grau de indeterminação

legal e judicial das penas:

A ideologia dominante nos Estados Unidos até o início dos anos setenta

era a ideologia reabilitadora. Como é sabido, de acordo com esse ideal,

nem a lei nem o juiz podem determinar o tempo exato de condenação, já

que o tempo de pena depende da evolução da pessoa condenada no

interior da instituição. Em consequência, a lei, em geral, se limita a

estabelecer um marco muito indeterminado (que pode ser desde

estabelecer apenas a prisão, ou prisão de um ano a perpétua) para cada

delito. 147

A indeterminação das penas, levada as cabo de forma drástica no sistema

anglo-saxão, não apenas cria o problema da falta de limites ao poder do Estado sobre

o cidadão, mas também conduz a um quadro punitivo carente de coerência ou

proporcionalidade, haja vista a enorme disparidade dentre condenações por delitos

semelhantes decorrente da visão pessoal de cada juiz e das autoridades penitenciárias,

147

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998. p 11/12. (Tradução livre).

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91

visão essa inescapavelmente turvada por preconceitos de toda sorte, tais como raça,

classe social do apenado ou quaisquer outros.

Por isso é compreensível que tenha sido justamente nesses países (e não

naqueles de tradição romano-germânica) que tenha eclodido com mais intensidade o

movimento em prol da determinação das penas, no bojo do qual se situa a teoria neo-

retributivista do just desert ou teoria do justo merecimento.

Em 1976 ANDREW VON HIRSCH, um dos principais expoentes do

retributivismo moderno, escreve Doing Justice 148 , livro que contém a primeira

exposição sistemática da teoria do merecimento. Nessa obra o autor parte justamente

da crítica às condenações indeterminadas (indeterminate sentencing) e à falta de

limites objetivos e prévios para a intervenção estatal e propõe um retorno ao

paradigma da proporcionalidade entre o delito e a pena a das sentenças legalmente

determinadas. A maior preocupação desse modelo é a criação de mecanismos que

permitam concretizar o princípio da proporcionalidade da forma mais objetiva e

mensurável possível. Para tanto, o autor desenvolve os conceitos de

proporcionalidade ordinal (aquela que permitirá equilibrar os crimes dentro da uma

escala pré-determinada, guardando as relações de congruência, incongruência e

espaçamento entre eles) e cardinal (que permite estabelecer os limites da própria

escala – conceito que, justamente por não ser relacional, apresenta a maior

dificuldade conceitual) que devem guiar os legisladores e juízes como forma de

atingir aquele objetivo. A partir da década de 80 alguns Estados americanos (sendo

pioneiro o Estado de Minnesota) estabelecem comissões penológicas com a

incumbência de elaborar planilhas (sentencing guidelines) que, vinculando o tipo de

crime aos antecedentes do agente, determinassem o tipo e a quantidade de pena. O

modelo das guias penológicas foi adotado a partir de então por cerca de metade dos

Estados americanos. 149

A proposta neo-retributivista é muitas vezes acusada de fundamentar

teoricamente o movimento punitivista e o espetacular aumento do encarceramento na

148

Andrew Von Hirsch. Doing Justice. 4a ed. Nova York: Hill and Wang, 1980.

149 Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 13.

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92

sociedade americana a partir da década de 80. Contudo penso que a crítica não

procede.

De fato, parte dos opositores do modelo reabilitador professava um discurso

autoritário e criticavam o correcionalismo por considerá-lo excessivamente brando

(em virtude do largo e discricionário uso do probation), ineficiente e dispendioso.

Certo também que, em um contexto já contaminado pela crescente demanda punitiva

a proposta de maior determinação legal das penas tende a resultar na fixação de penas

determinadas mais severas. Mas o fato de ter sido cooptada pelos movimentos

punitivistas não significa que a teoria da pena merecida seja em si ou tenha um

potencial especialmente conservador ou autoritário.

Ao contrário, a teoria do merecimento nasceu da necessidade de conter o

arbítrio estatal, que, impulsionado pela sanha preventivista, não parecia encontrar

limites. Relata HIRSCH que Doing Justice foi escrito por requisição do Comitê para

o Estudo da Prisão, um grupo fundamentalmente acadêmico e de tendência liberal. E

nesse contexto o princípio da proporcionalidade foi apresentado como um meio para

restringir o poder de punir estatal e para limitar o emprego de sanções severas, na

medida em que se defendia que as penas baseadas em predições de periculosidade

eram inadmissíveis. 150

De fato, a teoria proposta por HIRSCH é expressamente reducionista. Em

Doing Justice o autor já propunha uma escala cardinal em que a prisão estava

limitada a crimes graves (os praticados com violência bem como os casos mais

graves de crimes do colarinho branco) e mesmo para esses a privação da liberdade

deveria durar até o máximo de três anos, exceto para o homicídio, em que cinco anos

seria o limite 151. As penas não prisionais deveriam ser consideradas em si mesmas e

não como alternativas à prisão, de forma que, para grande parte dos delitos (leves e

médios) elas fossem a única opção do juiz152. Da mesma forma, defendia que o

descumprimento dessas penas não deveria conduzir à aplicação da prisão salvo em

casos extremos, notadamente aqueles em que o descumprimento consistisse em si

150

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 140. 151

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 80. 152

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 100.

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93

mesmo na prática de outro delito grave o suficiente para receber pena de prisão 153.

HIRSCH propõe abertamente, em face da realidade atual, uma política de redução

gradual, contínua e global de todas as penas, até que se atingisse o ponto de virada e

começasse a haver um significativo aumento na taxa de criminalidade 154.

Ainda, a corroborar a visão de que a teoria do merecimento tinha como

fundamento a limitação do poder punitivo, ELENA LARRAURI conta que as guias

penológicas foram elaboradas por comissões especiais que, embora dotadas de força

legislativa, eram independentes do poder legislativo, justamente para evitar a tentação

política de elevar as penas a cada vez em que existisse uma onda de medo ou de

indignação popular155.

Ocorre que os poderes legislativos dos Estados, para atender às demandas do

eleitorado ou contentar certos grupos de pressão, passaram a editar leis para aumentar

a severidade das penas originalmente estabelecidas pelas comissões penológicas para

determinados crimes (sobretudo para os crimes relacionados ao consumo, posse e

tráfico de drogas) e impedir a imposição de penas distintas da prisão. Além disso,

também por pressão popular (organizada no movimento denominado true sentencing)

e com apoio (inclusive financeiro) do Governo Federal, vários Estados aprovaram

leis que eliminaram a possibilidade de livramento condicional, impondo o

cumprimento de 85% da condenação 156.

Tais movimentos de endurecimento, embora derivados também da crítica ao

modelo reabilitador, não são decorrentes e nem guardam relação necessária com a

proposta neo-retributivista. Na verdade estão muito mais alinhados à teoria da

prevenção geral e especial negativas e ao modelo neo-preventivista que, como já

visto, encampa sem pudores a neutralização de sujeitos e grupos perigosos como fim

legítimo da pena, rompendo com o princípio da proporcionalidade e permitindo a

punição exacerbada mesmo para crimes leves, nos moldes das leis popularmente

153

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 108. 154

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 183. 155

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 13. 156

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 13-14.

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94

denominadas three strikes and you’re out, aprovadas em boa parte dos Estados

americanos a partir da década de 90 157 .

Por isso concordo inteiramente com ELENA LARRAURI quando afirma que

“em última instância, é a ideologia da prevenção geral o que permite justificar a

severidade dos castigos.” 158

O problema da teoria da pena merecida tem natureza diversa, e é o mesmo

que constitui o calcanhar de Aquiles de todos os discursos retributivos anteriores: a

dificuldade de fundamentação. Pois, ou se admite um fundamento inteiramente

autorreferencial e metafísico (como em KANT e HEGEL) ou deve-se procurar uma

razão externa.

Para o autor, o castigo expressa reprovação e por isso deve ser proporcional

ao grau de reprovabilidade do comportamento delitivo. Mas tal afirmação suscita

novamente as perguntas: Porque se deve reprovar? Porque se deve fazê-lo com a

pena? Eis a resposta de HIRSCH:

A censura considera à vitima. Ela não somente foi lesionada, mas

ofendida pelo ato culpável de alguém. Por isso não é suficiente reconhecer

que a lesão ocorreu e expressar simpatia (como seria apropriado se alguém

tivesse sofrido um dano em uma catástrofe natural). A censura, ao dirigir a

desaprovação à pessoa responsável, reconhece que o dano à vitima

ocorreu por culpa do outro. A censura também considera ao causante.

Transmite-se-lhe uma mensagem que faz referência a seu ato, a saber, que

culpavelmente lesionou alguém e que se lhe desaprova por tê-lo feito. Se

espera algum tipo de resposta moral por sua parte – uma mostra de

preocupação, o reconhecimento do dano ou um propósito de emenda –

uma reação diferente seria, se a censura é justa – por si só criticável. 159

A resposta é, a meu ver, insuficiente. E suscita novas indagações: ainda que se

reconheça que a reprovação da faltas é um “dever moral”(?) porque é o Estado que

157

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 15. 158

Elena Larrauri. Control del delito y castigo em estados unidos: uma introducción para el lector

español. In: Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 16. (Tradução livre). 159

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 36. (Tradução livre).

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95

deve reprovar? E porque deve reprovar através da pena? Se a questão é tão somente

demonstrar censura não seria um índice tão ou mais claro de reprovação uma enfática

e dura admoestação pública?

A falta de respostas a essas perguntas obriga HIRSCH a admitir, junto à

finalidade retributiva, uma finalidade preventiva geral à pena, concebendo portanto

uma fundamentação dual do castigo penal:

A função preventiva da sanção consiste, penso, em prover razões de

prudência; razões que estão vinculadas e complementam as razões

normativas expressas na censura penal. O Direito Penal, através da

censura implícita em suas sanções, expressa que a conduta é má e com

isso prove ao agente razões morais para desistir. No entanto (dada a

falibilidade humana) ele pode se sentir tentado. O que o desestímulo da

prudência pode fazer é prover uma razão adicional – a prudência – para

resistir a tentação. 160

O que conduz a novos problemas, pois como já se viu, dentre todos os

defeitos das teorias preventivas talvez o principal seja que elas são naturalmente

incompatíveis com a ideia de proporcionalidade entre a conduta e a sanção, o que

demanda do autor considerável esforço para explicar como um escopo de prevenção

pode ser admitido no bojo de sua teoria sem o risco de se converter em um cavalo de

troia.

Desta forma, a tese neo-retributivista, tal como apresentada, parece

inadequada não por apresentar potencial especialmente autoritário ou fundamentar o

endurecimento penal (risco inclusive minimizado por ela) mas por carecer de uma

fundamentação autônoma consistente e que prescinda do recurso à consecução de

questionáveis objetivos morais ou normativos.

1.4. Neo-retributivismo romano-germânico – ZACZYK

Como se viu, nos países de civil law os efeitos da disseminação da perspectiva

correcionalista não foram sentidos com a mesma crueza que nos Estados Unidos e na

160

Andrew Von Hirsch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 39. (Tradução livre).

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96

Inglaterra. Ainda assim, a percepção das falhas das teorias relativas e dos seus efeitos

(por exemplo, a confusão entre periculosidade e culpabilidade que subjaz à adoção do

sistema duplo-binário na Alemanha) abriu espaço para uma retomada do discurso

retributivista, alicerçado sobre a construção filosófica legada pelo idealismo alemão

de viés kantiano e hegeliano. Exporei a seguir a posição de ZACZYK, destacado

representante dessa vertente na atualidade.

ZACZYK apoia sua concepção sobre a filosofia kantiana, sobretudo sob o

aspecto da constituição e do desenvolvimento da ideia de liberdade. O imperativo

categórico moral (“age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer

que ela se torne lei universal”) conduz à noção básica de liberdade ou

autodeterminação na medida em que o sujeito deve obedecer a uma lei da qual sua

própria razão e legisladora. Para ZACZYK, a liberdade é o único direito inato dos

homens enquanto seres racionais. Ocorre que, em um mundo finito a liberdade é

potencialmente violenta, pois a autodeterminação de um exclui a dos demais. Por

isso, os homens devem entrar em um estado civil, ou estado de direito público em

que cada um possa participar e ter assegurado em seu conteúdo o direito à liberdade.

O delito constitui uma lesão à liberdade alheia. E enquanto tal, pertence a um

“estado de natureza” (posto que o estado de direito público é a situação de garantia da

liberdade de todos). Mas, por outro lado, como acontecimento interpessoal entre dois

sujeitos racionais e que possuem a liberdade como direito inato, o delito não é um

mero fato empírico, mas tem em si uma natureza jurídica ou um caráter jurídico

provisório, ou seja, é jurídico, mesmo como negação. Ocorre que uma reação ao

delito não é possível no estado de natureza, porque então resultaria indeterminada em

seu fundamento e medida, mas deve necessariamente ser uma reação jurídica. Por

isso o delito deve ser considerado como o ponto de conexão entre o estado de

natureza e o estado de direito público161. É a vinculação entre o crime e a pena que

promove essa transição em que os direitos provisórios do estado de natureza tornam-

se peremptórios, permanentemente válidos e vigentes no estado de direito público.

Segundo ZACZYK, empregando as categorias kantianas, a lei penal é um juízo

161

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 126.

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97

sintético a priori que vincula dois termos e o terceiro elemento que promove essa

vinculação é justamente o estado de direito público 162.

O estado de direito público é constituído pelo conjunto de leis para um povo e

que representam a vontade da comunidade à qual pertence o próprio delinquente, de

forma que as lesões que ele inflige aos outros inflige a si mesmo. E essa repercussão

retroativa é revelada de maneira concreta pela lei penal, já que a pena constitui

exatamente uma redução correspondente da liberdade do agente163. Esse raciocínio

conduziu KANT à defesa da lei de talião, como expressão radical dessa relação.

ZACZYK, no entanto, sustenta que, a partir do próprio modelo kantiano, a ideia de

proporcionalidade não pode ser interpretada desse modo:

O princípio da retribuição não pode ser entendido como um princípio

material, porque isso reduz o problema a um acontecimento físico. Não se

trata de compensar com a pena a morte de um ser humano com a morte de

outro ser humano. A pena unicamente pode ser entendida como uma

instituição jurídica razoável e por esse motivo o princípio da Talião só

pode ser entendido como um princípio formal. A lesão ao direito contida

na morte de outro ser humano deve ser superada através da instituição da

pena. 164

ZACZYK, portanto, fundamentando-se sobre premissas kantianas,

desenvolve-as para além de KANT e, em alguns pontos, chegando à conclusões

contrárias a ele. O foco de sua teoria, de fato, é o papel central da liberdade do ser

humano que, por um lado, é incompatível com as todas as teorias preventivas e por

outro, também o é com algumas derivações do próprio KANT (como, por exemplo, a

defesa da pena de morte).

É interessante observar que as críticas às teorias retributivas, no mais das

vezes, são ataques endereçados diretamente às suas versões kantiana ou hegleliana,

com o que se faz a teoria retroagir duzentos anos, como se a partir de KANT e

162

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 127. 163

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 127. 164

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 128. (Tradução livre).

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98

HEGEL não tivessem havido avanços e desdobramentos. Mencione-se a seguinte

passagem de ROXIN:

Não obstante, a teoria da retribuição já não se pode sustentar hoje

cientificamente. [...] a finalidade do Direito Penal consiste na proteção

subsidiária de bens jurídicos, então, para o cumprimento dessa missão,

não é permitido servir-se de uma pena que de forma expressa prescinda de

todos os fins sociais. A ideia de retribuição exige também uma pena nos

casos em que, sobre a base da proteção de bens jurídicos, não seria

necessária, mas então a pena já não serve à missão do Direito Penal e

perde sua legitimação social. Dito de outra maneira: o Estado, como

instituição humana, não é capaz de realizar a ideia metafísica de justiça

nem está legitimado a isso. A vontade dos cidadãos o obriga a assegurar a

convivência do homem em paz e em liberdade; está limitado a essa tarefa

de proteção. A ideia de que se pode limitar ou suprimir um mal (o delito)

causando outro mal adicional (o sofrimento da pena), só é suscetível de

uma crença ou fé, à qual o Estado não pode obrigar ninguém, a partir do

momento em que já não recebe o seu poder de Deus, mas do povo.

Tampouco a tese de uma “culpabilidade” que tem que ser retribuída pode

fundamentar por si só a pena; a culpabilidade individual está ligada à

existência de uma liberdade de vontade cuja indemonstrabilidade a torna

inadequada como único fundamento das intervenções estatais. 165

Entendo que as críticas que rechaçam de plano e com um só golpe as teorias

retributivas modernas devem ser vistas com reservas. A uma porque a tão decantada

base metafísica (a própria conotação moderna e pejorativa do termo metafísica,

utilizado quase que como sinônimo de mística obscurantista, consiste em um

equívoco conceitual) e indemonstrável não é em absoluto exclusividade das teorias

absolutas. As relativas também se apoiam em uma premissa assaz indemonstrável,

que é a crença em que o Direito Penal possa evitar a prática de atos de agressão. A

duas porque vinculam ditas teorias a um modelo religioso que, embora fosse presente

na teoria kantiana, não é condição de validade para das teorias retributivas tal como

hoje são desenvolvidas. E a três porque as consequências mais indesejáveis da teoria

kantiana, a severidade das penas e o encampamento irrestrito da lei de talião, por

exemplo, também não são decorrências necessárias a partir das premissas que

165

Claus Roxin. Derecho Penal - parte general. 2a ed. Madrid: Civitas, 1997, p 84. (Tradução livre).

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99

suportam a teoria retributiva, como também já visto. Em resposta à crítica de ROXIN

manifesta-se ZACZYK:

Refletiu-se com suficiente profundidade sobre os conceitos quando em um

mesmo parágrafo se afirma, por um lado, que a liberdade de vontade é

indemonstrável e por isso, não se pode recorrer a ela para utilizá-la como

fundamento e, por outra parte, se afirma com a mesma segurança que a

vontade dos cidadãos obriga o Estado a assegurar a liberdade? Não é

exigir demais querer saber como pode acontecer de uma vontade cuja

liberdade não foi demonstrada obrigar o Estado a algo a respeito do que

não se pode saber nada confiável – devido à sua falta de liberdade? Além

disso, também não fica claro como essa vontade pode, sob esses

pressupostos, formar-se de maneira válida, e porque ela há de vincular o

Estado. 166

O que com isso quer ZACZYK demonstrar é que os conceitos empregados

por ROXIN em sua asserção (vontade, liberdade) não podem fundamentar-se

empiricamente mas, ao contrário, são conceitos meta-físicos 167 (no sentido

aristotélico, qual seja, não pertencentes ao mundo estritamente físico), ou seja,

comungam da mesma natureza metafísica que tanto se usa criticar nas teorias

absolutas.

A falha que a proposta de ZACZYK herda da teoria kantiana e que considero

realmente insuperável é que não se logra esclarecer, sequer metafisicamente, a

vinculação necessária entre crime e pena. Como admite o próprio ZACZYK:

Segundo Kant, a lei penal é um imperativo categórico. Essa formulação é

surpreendente, porque Kant introduziu o imperativo categórico nas obras

fundamentais para a filosofia prática e o fez no singular. O imperativo

categórico é um enunciado que rege incondicionalmente e que converte

uma ação em dever. Nessa definição, o imperativo categórico não é

simplesmente transladável ao direito. 168

166

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 91. (Tradução livre). 167

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 91. 168

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 105. (Tradução livre).

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

100

De fato em Fundamentação para uma Metafísica dos Costumes KANT é

categórico quanto a isso: “Assim pois o imperativo categórico é único e sem dúvida é

esse: „age somente segundo aquela máxima em relação à qual possas querer que se

converta em lei universal.‟” 169

Dessa forma, não se pode transportar a relação direta entre ação devida e o

imperativo categórico (age como se a máxima de tua ação pudesse ser

universalizada), que é uma relação que se dá no âmbito interno do sujeito, para a

relação entre crime e pena, ou seja, entre dois fatos externos e cujos sujeitos são

distintos.

Como essa lei fundamental da razão pura prática, como é chamado o

imperativo categórico em Critica da Razão Prática, não admite

reprodução nem multiplicação alguma, em Metafísica dos Costumes deve

entender-se a formulação de maneira diferente: a lei penal é uma máxima

prática que se impõe incondicionalmente. 170

Entretanto, que a lei penal seja um juízo sintético a priori (posto que é fruto

da razão) no qual estão unidos o fato e a pena não decorre que haja uma relação

necessária entre esses dois termos ou pelo menos, não se explica suficientemente essa

relação:

Quando Kant fala da lei penal como um imperativo categórico, o qual, não

obstante, tem que ser um imperativo jurídico-categórico, isso mostra que

através dele uma ação externa (o fato) se vincula incondicionalmente com

outra ação (a pena). No entanto é necessária uma fundamentação

autônoma dessa vinculação porque o conceito de pena não pode ser

derivado apenas do conceito de delito. 171

O problema dessa vinculação é abordado por ZACZYK da seguinte forma:

169

Kant. Fundamentación para una Metafisica de las Costumbres. Madrid: Alianza, 2008, p. 104.

(Tradução livre). 170

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 124. (Tradução livre). 171

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 105. (Tradução livre).

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

101

Ao problema geral da reação adequada ao fato e de sua fundamentação

podemos nos aproximar por meio de alternativas: não reagir ao fato está

descartado, pois para a comunidade jurídica ficaria claro que o estado de

paz existente antes do fato na verdade não estava garantido. Vingar o fato

seria uma simples reação emocional incompatível com a razão prática.

Igualmente seria impensável tratar o fato apenas como um acontecimento

entre o autor e a vítima e deixar-lhes a liberdade de regular novamente a

reação pois isso desconheceria que o fato punível não perturba

simplesmente uma relação ideal de duas partes que se pode compensar,

como acontece com o direito civil 172

.

Até esse ponto, no entanto, não se esclarece qual é a efetiva fundamentação

para a necessidade de reação penal desencadeada pelo fato. E logo a seguir ZACZYK

conclui:

As dificuldades que o próprio Kant encontrou na determinação da medida

da reação que deve ser imposta mostram que nessa parte do processo de

reflexão ainda não se alcançou total clareza; tampouco se determinou

completamente a relação básica entre o fato e a reação. 173

E acrescenta, em tom de resignação:

Pelo menos com Kant é claro que a consequência jurídica pena não pode

ser obtida a partir da experiência (por exemplo, de uma necessidade de

pena) mas tem que estar juridicamente justificadas, como todo motivo de

comportamento prático, antes da experiência: „todas as normas jurídicas

são normas a priori, pois são leis racionais‟. Resta aberta a questão de

porque a pena é consequência do fato punível. Kant tenta explicar uma

fundamentação desta relação por meio do imperativo categórico, não

obstante a pergunta prossegue sendo se essa é uma fundamentação sólida

para a uma ação jurídica.174

172

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 149-150. (Tradução livre). 173

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 151. (Tradução livre). 174

Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentación de la Pena. Bogotá: Universidad Externado

de Colombia, 2010, p. 151. (Tradução livre).

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102

E essa é uma pergunta que efetivamente a proposta de ZACYZIK não logra

responder.

2. Teoria garantista - FERRAJOLI

Em linhas gerais, e sem a pretensão de esgotar um assunto inesgotável, as

principais teorias justificacionistas são essas até aqui expostas, divididas em

preventivas e retributivas.

Quanto às teorias preventivas, pretendi demonstrar que, logo abaixo da

superfície do discurso oficial ou do imaginário popular o Direito Penal jamais se

prestou à prevenção de delitos futuros (da forma como preconizam aquelas teorias)

seja pela via da prevenção geral, seja pela via da prevenção especial. E, se por um

lado tais teorias respondem à pergunta “porque punir” com objetivos imorais ou

irrealizáveis (ne peccetur), de outra mão e por via de consequência a resposta à

pergunta “como punir” ganha uma dimensão ilimitada, autoritária e maximizante.

Já as teorias retributivas ou absolutas padecem do incontornável vicio da

petição de princípio e fornecem como justificação aquilo que deveria ser justificado.

Embora cheguem a uma resposta mais razoável à pergunta “como punir”, fazem-no à

custa de deixar inteiramente irrespondida à questão “porque punir” (quia peccantum)

remetendo-a à questão, que sequer é formulada, de “porque proibir”.

Nesse ponto, a teoria da pena relacionada ao sistema garantista de

FERRAJOLI, exposta com detalhes em Direito e Razão175, apresenta uma terceira

possibilidade de justificação e que traz ao debate um elemento chave para a tese

proposta e que por isso merece consideração especial.

2.1. Apresentação

175

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010.

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103

Para melhor compreensão da construção de FERRAJOLI, importa começar

esclarecendo os parâmetros epistemológicos do seu raciocínio. O rigor ditado pela

filiação juspositivista e a inflexível separação entre Direito e Moral impõe distinções

conceituais precisas.

2.1.1. Parâmetros epistemológicos

A perspectiva externa, descritiva, ontológica consiste na análise empírica,

sociológica e criminológica a respeito do ser do Direito Penal, de sua efetividade e do

papel que concretamente desempenha no cenário social. A essa perspectiva

FERRAJOLI denomina função do Direito Penal. Para descobrir essa função, de

acordo com critérios científicos de verdade ou falsidade, desenvolvem-se teorias de

explicação do Direito Penal. 176

A perspectiva externa, prescritiva, deontológica consiste na construção de

parâmetros de legitimação externa do Direito Penal, por meio de princípios

normativos exteriores ao direito positivo, ou seja, parâmetros de avaliação morais,

políticos ou utilitários metajurídicos, que possam definir a finalidade do Direito

Penal. Para enunciar essa finalidade, de acordo com critérios axiológicos, de

adequação ou inadequação elaboram-se doutrinas de justificação do Direito Penal. 177

A perspectiva interna, descritiva, jurídica, consiste na pesquisa, com base no

ordenamento jurídico positivo, acerca da motivação do Direito Penal estabelecida

pelo próprio direito posto. A partir daí se poderá aferir a validade ou legitimidade

interna dos institutos e práticas jurídicas perante esses princípios normativos ao

ordenamento positivo, critérios portanto intrajurídicos. 178

Os modelos descritivos (externos ou internos) são chamados de teorias e sua

meta é a explicação da realidade ou do direito. Os modelos prescritivos (externos)

são chamados de doutrinas e seu escopo é a justificação do direito.

176

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 199-200. 177

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 199. 178

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 199.

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104

A sobreposição desses planos, a confusão entre função (externo descritivo) e

justificação (externo prescritivo), por um lado, e motivação (interno descritivo), por

outro, implica sempre uma confusão entre direito e moral de tendência autoritária e

antigarantista. Às doutrinas presas nessa confusão metodológica FERRAJOLI chama

de ideologias.179

As ideologias dividem-se em ideologias naturalistas e ideologias

normativistas, conforma a ênfase recaia sobre um ou outro dos termos da confusão,

mas, em qualquer caso, a violação à Lei de Hume e a fusão entre ser e dever ser

impede a formulação de uma verdadeira doutrina da justificação, idônea a legitimar

ou deslegitimar o Direito Penal a partir de um ponto de vista axiológico exterior.

Para FERRAJOLI, a consistência lógica de uma doutrina de justificação

depende de sua capacidade de evitar as ideologias naturalistas ou normativistas.

A ideologia naturalista consiste na elevação do ser à condição de dever ser, ou

seja, a confusão entre função e finalidade. O modo de evitar-se a autojustificação

ideológica naturalista consiste em distinguir com clareza a finalidade e o meio para

atingi-la.

Em primeiro lugar, a finalidade pertence ao plano valorativo e deve ser

exterior ao direito, ou seja, deve ser um bem extrajurídico. Não pode ser imanente à

eventual função sociológica (a vingança ou o domínio social, por exemplo) nem

imanente ao próprio ordenamento positivo (a retribuição pela lesão jurídica à norma,

o reforço à fidelidade da norma, por exemplo). A finalidade é um bem eleito, a partir

de critérios axiológicos (e não critérios ontológicos de verdade e nem critérios

jurídicos de validade) e que se situa fora da esfera do direito.

Por outro lado, o meio para atingi-la deve ser reconhecido como um mal

jurídico isso é, como um custo humano e social gerido pelo direito e que, exatamente

em razão dessa característica deve ser justificado.

179

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 300.

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105

Apenas com esse arranjo garante-se à doutrina da justificação a autonomia do

ponto de vista axiológico externo, distinto daquele ponto de vista externo ontológico

e também daquele interno de tipo jurídico, e dessa forma pode ser afastada a petição

de princípio que sobrepõe justificação e explicação, a finalidade sob as funções ou

sob os efeitos jurídicos, o dever ser sob o ser do direito.

Uma doutrina não inconsistente de justificação da pena pressupõe,

portanto, a aceitação do postulado juspositivista de separação do direito da

moral, de modo que nem o delito seja considerado como um mal em si

quia prohibitum, nem a pena seja considerada um bem em si, quia

peccatum. Isto comporta o ônus de uma correlata doutrina de justificação

das proibições, de forma que as justificações das penas suponham aquelas

das proibições e não possam ser ofertadas sem uma preventiva

fundamentação ético-política dos bens tutelados pelas mesmas.180

A ideologia normativista consiste na elevação do dever ser à condição de ser,

ou seja, em assumir-se as justificações axiológicas como explicações empíricas,

tomar como descritivos modelos ou projetos normativos considerados justos.

Para evitar-se esse equívoco é preciso que, em primeiro lugar, os meios

jurídicos sejam efetivamente idôneos à realização dos fins determinados, de sorte que

a finalidade extrajurídica possa ser alcançada (embora nem sempre o seja

efetivamente) com o Direito Penal e não o possa sem ele. É isso o que permitirá,

fugindo-se da falácia normativista, aferir empiricamente se a doutrina

justificacionista é idônea a legitimar e também a deslegitimar experiências concretas.

Em segundo lugar, a outra medida necessária para se evitar a autojustificação

normativista é que os custos e benefícios do Direito Penal sejam homogêneos entre

si, de modo que possam ser comparados, considerando-se justificadas apenas aquelas

situações em que os custos sejam menores. Essa comparação permitirá determinar

não apenas a justificação, mas também orientar a quantidade e a natureza das penas,

de modo que representem um mal menor do que a falta de realização do fim

180

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed.. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 304.

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

106

proposto. Para isso é necessário que o Direito Penal incorpore a perspectiva daqueles

que sofrem as penas. Caso contrário custos, suportados com mais intensidade por um

lado, e benefícios, gozados exclusivamente pelo outro, são heterogêneos e portanto

incomparáveis.181 Não há como medir a vantagem ou desvantagem em uma situação

na qual a vantagem beneficia A e a desvantagem prejudica B. Além disso, essa

providência permite afastar a objeção moral kantiana, segundo a qual cada pessoa

constitui um fim em si mesma e nenhuma pode ser tratada como meio para fins

alheios. 182

2.1.2. Crítica metaética às teorias da pena

Com base nesses parâmetros epistemológicos é que FERRAJOLI desenvolve

uma crítica metaética das teorias da pena (que na verdade não são teorias, mas

doutrinas, conforme os critérios explanados) que aqui exporei resumidamente (não

tratarei das as críticas propriamente éticas pois elas coincidem, em grande parte, com

aquelas que já foram apresentadas nesse trabalho).

Segundo a classificação enunciada, tanto as teorias retributivas quanto da

prevenção geral positiva constituem ideologias naturalistas, na medida em que

confundem explicação com justificação. Que a retribuição ou o fortalecimento dos

sentimentos comunitários sejam uma função ou um efeito da pena não decorre que

essa deva ser sua finalidade.

Precisamente as doutrinas retributivistas e integracionistas são ideologias

naturalistas, vez que corroboram como objetivo o caráter retributivo e

funcional da pena, que é um fato, confundindo-lhes a motivação jurídica,

ou, pior ainda, a explicação da função com a justificação, e assim

deduzindo o dever ser do ser. 183

181

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 304. 182

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 304. 183

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 306.

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

107

Já a teoria da prevenção especial positiva, para a além de todas as incontáveis

críticas éticas que lhe possam ser lançadas, é alvo da crítica metaética que a identifica

como ideologia normativista, posto que toma a justificação axiológica por explicação

empírica:

Vice-versa, as doutrinas correcionalistas da prevenção especial são

ideologias normativistas, posto que conferem como função o objetivo

correcional da pena, aceitando-o aprioristicamente como satisfeito, mesmo

se de fato não for realizado ou irrealizável, e desta feita deduzindo o ser

do dever ser. 184

Segundo FERRAJOLI, a crítica metaética à teoria da prevenção geral e

especial negativa é menos intensa. Essa doutrina não decai à ideologia naturalista, na

medida em que elege como finalidade um benefício social relevante e externo ao

ordenamento jurídico. Mas, por outro lado, o objetivo de prevenir delitos, se tomado

isoladamente, é insuficiente para evitar a ideologia normativista, sob o aspecto da

heterogeneidade da relação custo benefício, o que também lhe rende a crítica ética de

violação à máxima kantiana, que impede a instrumentalização do indivíduo:

Mais complexa é a crítica metaética das doutrinas utilitaristas da

prevenção negativa, seja geral, seja especial. Diferentemente daquelas

retributivistas e daquelas da prevenção positiva, tais doutrinas têm o

mérito de dissociar os meios penais concebidos como males, dos objetivos

extrapenais idôneos a justificar-lhes. E esta dissociação é necessária: a)

para avaliar os custos representados pelas penas diante dos danos que

estas tem o objetivo de prevenir, b) impedir a autojustificação dos

primeiros em razão da confusão entre direito e moral, c) para tornar

possível a justificação, antes mesmo que das penas, das proibições penais,

com base em finalidades externas à pena e ao Direito Penal. Por mais

necessária que seja, essa condição não é todavia suficiente para embasar,

no plano metaético, critérios de justificação idôneos não apenas a

legitimar, mas também a deslegitimar as penas. E isso depende do fato de

que o objetivo justificante proposto, inclusive por essas doutrinas

utilitaristas, como dissemos no parágrafo 20.2, é somente a máxima

utilidade possível dos não desviantes e não também o mínimo sofrimento

184

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 307.

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108

necessário dos desviantes, de maneira que nenhuma pena resulta, em

princípio injustificada, não sendo de fato problematizado nem mesmo

tematizado o custo das penas suportado por quem, com ou sem razão a

este se submete. 185

Em suma, FERRAJOLI descarta, por defeitos lógicos de raiz, as teorias

retributivas e da prevenção positiva. Aceita parcialmente a teoria da prevenção

negativa, mas considera-a insuficiente. A partir desse ponto, apresenta sua proposta.

2.1.3. Lineamentos teóricos

Com base nos parâmetros epistemológicos fincados e nas críticas lançadas

FERRAJOLI constrói sua própria doutrina da justificação sobre uma dupla base.

Aceita o fundamento da prevenção geral negativa, mas o desdobra em duas

dimensões: a prevenção negativa de crimes e a prevenção negativa da vingança, ou

dito de outra forma, da reação violenta e descontrolada aos crimes. O autor assume

que, na ausência da pena estatal, o desviante e inclusive pessoas ligadas a ele,

estariam expostos à reação espontânea a selvagem da vingança e é essa segunda

violência que o Direito Penal deve também coibir.

Existe, entretanto, um outro tipo de objetivo, no qual o princípio da pena

mínima pode ser comissurado: trata-se da prevenção, mais do que dos

delitos, de um outro tipo de mal, antitético do delito, que normalmente é

negligenciado tanto pelas doutrinas justificacionistas como pelas

abolicionistas. Este outro mal é a maior reação – informal, selvagem,

espontânea, arbitrária, punitiva mas não penal – que, na ausência das

penas, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou

institucionais solidárias a ele. É o impedimento deste mal, do qual seria

vítima o réu, ou, pior ainda, as pessoas solidárias ao mesmo, que

representa, eu acredito, o segundo e fundamental objetivo justificante do

Direito Penal. Quero dizer que a pena não serve apenas para prevenir os

delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. Vem ameaçada e

infligida não apenas ne peccetur mas também ne punietur. Tutela não

apenas a pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra

reações informais públicas ou privadas. Nesta perspectiva a pena “mínima

necessária” de que falavam os iluministas – compreendido “pena” no

185

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Editora dos

Tribunais, 2010, p. 307.

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109

sentido genérico de reação aflitiva a uma ofensa – não é apenas um meio,

constituindo ela própria um fim, qual seja, a minimização da reação

violenta ao delito. E esse objetivo, diferentemente daquele da prevenção

de delitos, é também idôneo a indicar, em razão da sua homogeneidade

com o meio, o limite máximo da pena, além do qual não se justifica que

esta substitua as penas informais. 186

Embora a proposta de FERRAJOLI não descure da prevenção geral negativa

de delitos, a prevenção dos males dirigidos aos desviantes (ou a pessoas inocentes

ligadas a ele), sob a forma de uma reação informal arbitrária e desprovida de

controle, é o aspecto decisivo da sua construção, por inúmeras razões. Primeira: é a

parte efetivamente inovadora de seu pensamento em relação ao modelo clássico de

prevenção geral negativa, aspecto esse normalmente desconsiderado pelo discurso

científico e político. Segunda: do ponto de vista ético, é apenas essa segunda

finalidade que afasta a objeção kantiana segundo a qual o homem não pode ser

utilizado como meio para a consecução de fins que lhe são estranhos. Terceira: do

ponto de vista metaético, é apenas ela que torna possível escapar ao perigo da

ideologia normativista, de modo que custos e benefícios, orientados aos mesmos

destinatários, sejam medidos e comparados permitindo a legitimação ou

deslegitimação de ordenamentos concretos. Quarta: ainda do ponto de vista

metaético, a idoneidade do Direito Penal para impedir as reações informais ao delito

é muito mais clara do que a sua idoneidade para impedir a prática de crimes. Quinta:

do ponto de vista fenomenológico, apenas esse segundo aspecto pode conduzir o

Direito Penal a um modelo mínimo e garantista, uma vez que a prevenção geral

negativa, no sentido da prevenção de delitos, não fornece nenhum limite à

intensidade penal e, bem ao contrário, concede argumentos para um direito máximo e

no limite, para o terror penal legislativo (exasperação das penas em abstrato) e

judiciário (punições exemplares). No sentir de FERRAJOLI

Dos dois objetivos, é o segundo, normalmente negligenciado, o mais

característico e o que mais merece ser evidenciado. Em primeiro lugar

porque, enquanto dúbia a idoneidade do Direito Penal de satisfazer

eficazmente o primeiro – não se podendo desconhecer as complexas

razões sociais, psicológicas e culturais dos delitos, não neutralizáveis

186

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: 9Revista dos

Tribunais, 2010, p. 309.

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110

certamente apenas pelo temor das penas (em vez das vinganças) – é, ao

contrário, muito mais certa a sua idoneidade para satisfazer o segundo,

mesmo se somente por meio de penas modestas pouco mais que

simbólicas. Em segundo lugar porque, enquanto a prevenção dos delitos e

as exigências de segurança e de defesa social sempre estiveram no ápice

dos pensamentos do legislador e das demais autoridades públicas, o

mesmo não se pode dizer no que tange à prevenção das penas arbitrárias e

das garantias do acusado. Em terceiro lugar, e sobretudo, porque somente

o segundo objetivo, e não também o primeiro é, ao mesmo tempo

necessário e suficiente para fundar um modelo de Direito Penal mínimo e

garantista como aquele formalizado pelo nosso sistema SG. Mais ainda,

somente o segundo objetivo, ou seja, a tutela do inocente e a minimização

da reação ao delito, é válido para distinguir o Direito Penal dos outros

sistemas de controle social – de tipo policialesco ou disciplinar ou até

mesmo terrorista – que, de forma mais ágil e provavelmente mais

eficiente, teriam condições de satisfazer o objetivo da defesa social, em

relação ao qual o Direito Penal mais que um meio revela-se um custo, ou

ainda, em se desejando, um luxo próprio das sociedades evoluídas. 187

Essa dupla finalidade consiste, portanto, no atendimento dos interesses de

todos, não desviantes e desviantes. Os primeiros são protegidos do crime através da

ameaça penal. Os segundos são, paradoxalmente, protegidos da vingança através da

imposição da pena. Persegue-se, a um só tempo, duas finalidades distintas e

efetivamente colidentes, tanto assim que tais objetivos são representados pelas partes

em oposição no processo (acusação e defesa), articuladas segundo o princípio da

contraditório.

A tarefa do Direito Penal, em suma, é minimizar a violência social advinda

tanto da eventual pratica da agressão, quanto do revide.

O objetivo geral do Direito Penal, tal como resulta da dupla finalidade

preventiva ora ilustrada, pode ser, em uma palavra, identificado como o

impedimento do exercício arbitrário das próprias razões, ou, de modo mais

abrangente, a minimização da violência na sociedade. Tanto o delito

quanto a vingança constituem exercício arbitrário das próprias razões. Em

ambos os casos ocorre um violento conflito solucionado mediante o uso

187

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 311.

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111

da força: da força do réu, no primeiro caso, da força do ofendido, no

segundo. E, em ambos os casos, a força é arbitrária e incontrolada não

apenas, como é óbvio, na ofensa, mas também na vingança que é, por

natureza, incerta, desproporcional, desregulada e, às vezes, dirigida contra

um inocente. A lei penal é voltada a minimizar esta dupla violência,

prevenindo, através da sua parte proibitiva, o exercício das próprias razões

que o delito expressa e, mediante sua parte punitiva, o exercício das

próprias razões que a vingança e outras possíveis reações informais

expressam. 188

2.2. Crítica

A teoria proposta por FERRAJOLI também é objeto de críticas, das quais irei

expor as principais:

A assunção da prevenção geral negativa, como fim idôneo a ser perseguido

pela ingerência penal continua sendo problemática e sua conjugação a outra

finalidade não elide os defeitos que lhe são inerentes, sobretudo a sua tendência

maximizante e autoritária, assinalada enfaticamente pelo próprio FERRAJOLI. Nesse

sentido aponta GIMBERNAT ORDEIG:

Apesar de sua crítica à prevenção geral negativa, Ferrajoli, de forma

inconsequente, retoma-a posteriormente para justificar a existência do

Direito Penal, acrescentando, como segundo critério, explicativo e

racional, essa existência com a qual o Direito Penal também preveniria

outra espécie de mal.189

A prevenção das reações informais como objetivo eticamente adequado, possível de

ser realizado e apto a assegurar a minimização do Direito Penal, também não escapa

às críticas oriundas, sobretudo, dos setores doutrinários agnósticos ou abolicionistas.

Duvidando do potencial garantista da proposta de FERRAJOLI (quanto à

prevenção das reações informais), SALO DE CARVALHO:

188

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2010, p. 311. 189

Apud Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 117.

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · RESUMO O incluso estudo tem por intenção investigar as funções e finalidades da pena a partir de uma perspectiva jurídica

112

Se uma das críticas apresentadas por Ferrajoli em relação aos modelos de

coação seria a tendência de um sistema penal se converter em um espécie

de terrorismo punitivo (Radbruch) – a inocorrência da percepção da

diminuição dos delitos levaria ao gradual aumento das penas -, a

associação à prevenção dos injustos castigos pode conduzir ao mesmo

raciocínio: a experiência social em relação às distintas formas de vingança

privada justificaria a expansão da punitividade. 190

E duvidando da própria idoneidade ou, inversamente, da necessidade empírica

da pena para o alcance do fim proposto, ZAFFARONI escreve:

O argumento iluminista da necessidade do sistema penal para prevenir a

vingança pública ou privada jamais se confirmou, pois no plano real ou

social que experiência indicaria que já parece estar bem demonstrada a

desnecessidade do exercício do poder do sistema penal para evitar a

generalização da vingança, porque o sistema penal só atua em

reduzidíssimo número de casos e a imensa maioria dos crimes impunes

não generaliza a vinganças ilimitadas. Ademais, na América Latina foram

cometidos cruéis genocídios que ficaram praticamente impunes, sem que

tenham ocorrido episódios de vingança massiva. 191

PAULO QUEIROZ 192 faz coro ao entendimento de ZAFFARONI e afirma

que inexiste uma relação necessária que liga crime e falta de repressão penal, por um

lado, à reação arbitrária, pelo outro. Há uma variedade de outros modos com que o

atingido pode reagir à agressão, tais como resignação, esquecimento, perdão, crença

na implacabilidade da "justiça divina", reparação, composição, terapia etc. Além

disso, normalmente as reações informais arbitrárias estão relacionadas a fatos dos

quais não se ocupa, em princípio, o direito penal: suspeitas de infidelidade conjugal,

cobrança de dívidas, disputas possessórias, atos de prostituição etc.

190

Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 117-118. 191

Apud Paulo Queiroz. “Justificativa do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli”. In: Rogério

Dultra Santos (org.) Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Diploma Legal,

1999, p. 14. 192

Paulo Queiroz. “Justificativa do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli”. In: Rogério Dultra

Santos (org.) Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Diploma Legal, 1999.

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113

De outra mão, a presença de repressão penal não implica a ausência de

reações informais arbitrárias, tais como atos de linchamento ou represália ao sujeito

ou a pessoas ligadas a ele, mesmo que preso, processado ou sentenciado. De modo

que as reações arbitrárias podem ocorrer a despeito do sistema penal.

Ademais, as reações informais arbitrárias podem ocorrer a pretexto da

intervenção penal, como se dá com prisões ilegais, tortura, execuções de suspeitos de

crimes graves por policiais etc.

Em determinados casos a ocorrência de violência entre cidadãos e atos de

retaliação ocorrem mesmo por causa da intervenção penal. É o que ocorre, por

exemplo, com relação ao tráfico de drogas, cuja criminalização gera o contexto em

que a disputa pelo monopólio do comércio clandestino fomentam inúmeros atos de

agressão e vingança.

Outro aspecto salientado por QUEIROZ é o fato de que não faz sentido

proclamar-se que o direito penal seja mais eficaz para prevenir reações informais

arbitrárias, uma vez que tais reações são também crimes (genocídio, homicídio,

lesões corporais, abuso de autoridade, violação de domicílio, ou, no mínimo,

exercício arbitrário das próprias razões). Por isso, prevenir reações arbitrárias e

prevenir delitos é em última análise, uma única e mesma coisa.

Por fim, segundo QUEIROZ o fim de prevenção de reações informais

violentas não é uma exclusividade do direito penal, é na verdade, a função do próprio

direito. Por isso a hipótese de FERRAJOLI não explica porque esse objetivo não

possa ser alcançado através de outros ramos do direito: civil, administrativa,

trabalhista.

Quanto à ideia de prevenção geral negativa de crimes, me parece adequada a

crítica. A profusa literatura questionando as bases dessa ideia já foi apresentada no

segundo capítulo desse trabalho de modo que apenas irei sistematizar os argumentos

principais que entendo não serem satisfatoriamente superados por FERRAJOLI:

Primeiro, do ponto de vista ético, não há como fugir ao fato de que essa doutrina

viola o imperativo moral kantiano. Segundo, do ponto de vista metaético, a

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114

idoneidade do meio penal para atingir o fim de prevenção de delitos, ou, dito de outra

forma, atos de agressão, não apenas é duvidosa (relembrem-se todos os argumentos

relacionados à ficção do calculador racional), como, ao contrário, é infirmada por

inumeráveis estudos que constatam o seu efeito positivamente criminógeno. Terceiro,

do ponto de vista fenomenológico, a doutrina em questão conduz sempre a um

movimento de intensificação da ameaça e da resposta penal. Por fim, deduzir a

finalidade preventiva geral negativa do caráter prescritivo das normas jurídicas,

inclusive as penais, parece um argumento estreito. De fato, se fosse possível operar

essa derivação e com tal singeleza, não teria nenhum cabimento toda a profunda e

importante discussão sobre as finalidades da pena à qual se dedicaram tantos

pensadores ao longo da história. Na constituição da norma penal, o tipo certamente

porta em si um indício da ilicitude e comunica aos destinatários as condutas

consideradas nocivas e não desejadas. Mas daí deduzir que a finalidade do Direito

Penal é impedir que tais condutas sejam praticadas é um salto lógico que não pode

ser dado sem escalas, pois depende de inúmeras considerações intermediárias,

inclusive sobre a legitimidade ética e a possibilidade prática desse comando. A

fórmula penal “matar alguém – reclusão de 6 a 20 anos” pode ser lida como a

revelação de uma finalidade completamente diversa e um tanto o quanto óbvia:

prescrever ao Estado a conduta positiva de poder (dever?) aplicar, àquele que mata,

uma pena de 6 a 20 anos de reclusão.

A segunda parte do argumento de FERRAJOLI, prevenção da resposta

informal à agressão, merece um exame mais detido. A sumária contestação de

ZAFFARONI, a meu ver, é insuficiente para descartá-lo de plano. Afirmar que, na

presença do sistema penal a existência de atos de agressão impunes não conduz a

uma escalada de vingança não equivale a dizer que na ausência de qualquer sistema

penal dar-se-ia o mesmo. Afirmar também que “o argumento iluminista da

necessidade do sistema penal para prevenir a vingança pública ou privada jamais se

confirmou, pois no plano real ou social que experiência indicaria que já parece estar

bem demonstrada a desnecessidade do exercício do poder do sistema penal para

evitar a generalização da vingança” 193 exige, para que não se converta em mera

193

Apud Paulo Queiroz. “Justificativa do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli”. In: Rogério

Dultra Santos (org.) Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Diploma Legal,

1999, p. 14.

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115

retórica, uma investigação um pouco mais aprofundada, com apoio em dados

concretos fornecidos pela etnografia e pela antropologia, a respeito da violência, da

vingança e do papel do Direito Penal nesse contexto, investigação à qual será

dedicado o próximo capítulo.

Sem compartir inteiramente com sua visão, a proposta de FERRAJOLI parece

interessante por duas razões. Uma, porque ousa revelar a proximidade entre pena e

vingança, tirando o véu dessa verdade incomoda e trazendo-a para a luz do dia. A

vingança volta ao palco. Duas, porque, tendo voltado ao palco, ela não é considerada

apenas um elemento de figuração, um fantasma dentre outros mortos dos quais se fala

sempre em tempo passado, mas ocupa nesse palco um lugar de destaque, servindo de

fundamento para a própria teoria ferrajoliana das finalidades da pena. Na tese que

proponho a vingança também desempenha um papel principal, à diferença de que

nela ela não encarna o vilão que deve ser expulso pelo herói (o Direito): caída a

máscara vê-se – ela é o herói. É o que tentarei demonstrar nas linhas seguintes.

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116

PARTE II – A VINGANÇA E O DIREITO PENAL

CAPÍTULO 3: ARQUEOLOGIA DA VIOLÊNCIA

A meu ver, a resposta à questão sobre a finalidade da pena pode beneficiar-se

de uma pesquisa de tipo histórico, etnológico, que permita compreender algo das

origens do fenômeno punitivo e dessa forma descobrir algo de sua natureza, algo que

os olhos focados apenas no recorte do tempo presente e já toldados pelas teorias e

ideologias não conseguem enxergar. E, contrariando a Lei de Hume, entendo que,

tomar essa perspectiva, que permitirá apreender a função da pena através da história é

determinante para que se possa, com consistência, estabelecer quais devem e podem

ser as suas finalidades.

Com esse objetivo tomarei como objeto de análise a violência humana e as

formas culturais de geri-la, dentre as quais se deve incluir a pena estatal.

1. A natureza da conflitividade humana

1.1. A violência essencial

A pena liga-se, indissociavelmente, à violência194. Alias, mais do que isso:

como visto, o discurso preventivista atribui à pena a missão de prevenir a prática de

atos violentos. Mas é possível uma sociedade humana pacífica? É o que procurarei

responder, abordando a questão a partir de três leituras antropológicas 195 distintas

mas complementares: a primeira ligada à biologia, em BURKET, a segunda ligada à

psicanálise, em FREUD e a terceira ligada à literatura e à mitologia, em GIRARD.

a) A hipótese de BURKET

194

Como já esclareci em momento anterior, não quero de forma alguma estabelecer uma identidade ou

coincidência conceitual entre os termos “crime” e “violencia”. Mas, de outra mão, me parece inegável

que o Direito Penal está relacionado à questão da violência por inumeras vias, inclusive pelo fato de

ele mesmo constituir violência, de modo que toda a discussão sobre a sua função e finalidade deve

incluir necessariamente essa perspectiva. 195

Deixarei de lado, nos limites desse trabalho, uma outra interessante linha de abordagem da questão

da agressividade, que é aquela propriamente psicanalítica, trabalhada, por exemplo, por Joel Birman

na obra intitulada Cadernos sobre o Mal (Joel Birman. Cadernos sobre o mal. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2009.), apontada também por Salo de Carvalho no texto “Freud Criminólogo”

(Rev. Dir. Psic., Curitiba, v. 1, n. 1, p. 107-137, jul./dez.2008) entre outras referencias.

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117

Começarei pelo exame da questão da violência sob a perspectiva da

antropologia com viés biológico de WALTER BURKET. Em Homo Necans 196

BURKET dedica-se à pesquisa histórica dos rituais religiosos e especificamente dos

ritos sacrificiais na Grécia antiga. A concepção de BURKET apoia-se em dados

arqueológicos que remontam à pré-história da humanidade e a partir deles o autor

busca explicar o surgimento e a universalidade dos ritos sacrificiais.

Segundo BURKET, o evento central da hominização foi a instituição da caça,

o surgimento do “primata caçador”, durante o Paleolítico. O comportamento

predatório, mais próximo das feras do que dos demais primatas, cujas características

foram desenvolvidas nesse período, é o que está na base tanto da agressividade

humana quanto da ambígua relação dos homens com a violência. A explicação de

BURKET é a seguinte.

Os primatas não eram biologicamente dotados para a caça. Os homens

tiveram que compensar essa deficiência natural com tecnologia e instituições

específicas, vale dizer, com cultura. Quanto à primeira, o aspecto fundamental foi o

desenvolvimento das armas, sem a quais os seres humanos pouco poderiam contra os

animais selvagens, e cujo manejo foi facilitado pela sua postura bípede. Quanto às

segundas, a mais importante transformação que a caça provocou foi o

desenvolvimento de uma ordem social baseada em um rigorosa separação sexual de

papéis. A atividade da caça, que requeria força e velocidade, foi reservada aos

homens. As mulheres, cujos corpos haviam se adaptado para o parto de filhos com

crânios cada vez maiores, não possuíam as habilidades para essa função, mas em

contrapartida, sua presença era fundamental para proteger a prole, cuja dependência é

muito mais intensa e prolongada na espécie humana do que em qualquer outra. Ao

contrário do que ocorre com os demais mamíferos, dentre os humanos o macho

assumiu com exclusividade o papel de caçador, enquanto à fêmea incumbiu

exclusivamente o cuidado com a cria.

Dado que a caça era uma atividade praticada coletivamente pelos homens do

grupo, os machos da espécie humana passaram a pertencer a dois sistemas apartados

196

Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983.

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118

embora em certa medida sobrepostos: o reino pacífico das mulheres e da família, e o

violento reino dos homens. Essa separação traduziu-se em uma existência tensionada

entre pares opostos: o dentro e o fora de casa, a segurança e a aventura, o amor e a

agressividade. Os meninos, em determinada idade, tinham de dar o difícil passo de

sair da esfera de mansuetude do mundo feminino e ingressar no mundo masculino,

um mundo do qual o centro era matar e confrontar a morte.

O desenvolvimento das armas dotou os homens de uma letalidade superior

àquela com a qual seus instintos estavam preparados para lidar. As inibições quanto

ao ato de matar foram minimizadas, pois ele agora podia fazê-lo à distância. Foram

minimizadas também pela própria educação. Era preciso abandoná-las, pelo bem da

caça. E o mais importante: era mais fácil matar um homem do que matar um animal

selvagem. Tanto assim que a prática do canibalismo não foi rara dentre os homens.

Desde o início a autodestruição colocou-se como um perigo à espécie humana. 197

BURKET reconhece que, dentre os animais predadores, há uma clara

distinção entre o comportamento agressivo voltado à caça e à alimentação e a

agressividade intraespecífica. Mas sugere que com a espécie humana essa separação

diluiu-se. Por quê? Por um lado, ao contrário de outros animais, “naturalmente”

caçadores, na sua transição para a caça os homens tiveram que superar a si mesmos,

foi uma transição que requereu o empenho de todas as suas reservas psíquicas. Por

outro, na espécie humana o prolongamento da infância e a dependência da prole

resultaram em uma exacerbação da sexualidade, de modo que os machos e fêmeas

pudessem permanecer atados e suportar o fardo dos cuidados com os filhos, e essa

exacerbação traz já consigo uma tendência pronunciada às lutas de corte e à

competição entre os machos. Como a caça era uma atividade de homens, a

conjugação desses fatores pode explicar a constituição do padrão incomum da

violência humana: o incremento tecnológico da letalidade, o estímulo à violência, a

supressão das inibições, por um lado, e a tendência à concorrência pelas mulheres em

virtude da exacerbação do impulso sexual por outro, são os ingredientes desse quadro

peculiar.

197

Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983, p.

18.

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119

O perigo da autodestruição pode ser manejado através das regras e interdições

culturais específicas: o estrito controle do uso da violência e das armas, a canalização

da agressividade intraespecífica para o exterior do grupo e o alívio na atividade

sangrenta e perigosa da caça. A ambiguidade envolveu o impulso violento e todas as

suas manifestações: é ele que traz a vida e o alimento, mas é ele também que traz a

morte e a destruição. A primeira instituição cultural conformada para controlar a

violência, sem extingui-la, para por sob controle essa força vital e moral, para

acomodar, mesmo que sob eterna tensão, essa dualidade, foi religião:

No choque causado pela visão do sangue correndo nós claramente

experimentamos o resquício de uma inibição biológica. Mas isso

precisamente é o que precisa ser superado porque os homens não podem

se permitir “não ver sangue” e são educados de acordo com isso.

Sentimentos de medo e culpa são as consequências naturais de ultrapassar

as próprias inibições. A tradição humana, sob a forma da religião,

claramente não tem como objetivo remover essa tensão. Ao contrário, ela

é propositalmente aumentada.198

Para BURKET a religião, sob sua forma primitiva e universal do sacrifício,

consiste basicamente na sacralização da violência, na expressão dos sentimentos

ambivalentes de adoração, respeito, temor e culpa em relação a ela, no

reconhecimento da sua posição ao mesmo tempo central mas apartada do mundo

cotidiano ou profano, de seu mistério e obscuridade, e na constituição rigorosa das

regras que devem cercá-la. O declínio da cultura sacrificial não significou,

lamentavelmente, a superação da violência inerente à espécie. A ferocidade do

homem contra o homem demonstrou não ter par na natureza, seja em intensidade,

seja em amplitude 199 e não apresentou, ao logo da breve história humana, nenhum

sinal de cansaço mas, ao contrário, arremete sempre, sob novas formas e com

redobrado vigor. A religião foi a primeira forma cultural criada para geri-la. Que

papel joga o Direito Penal nesse cenário é o que investigarei mais adiante.

198

Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983, p.

21. 199

Segundo Norbert Rouland “estimam-se em mais de 3,5 bilhões as perdas humanas humanas devidas

aos diferentes conflitos desde o inicio da humanidade (para uma população total compreendida entre

60 bilhões e 100 bilhoes).” Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes,

2008, p. 101.

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120

b) A hipótese de FREUD

Uma segunda abordagem da questão da violência humana e suas relações com

a constituição da sociabilização e das instituições é a proposta por FREUD, na

fronteira entre a antropologia e a psicanálise. No quarto ensaio de Totem e Tabu,

FREUD constrói sua explicação para as origens históricas do totemismo e, ao mesmo

tempo, do complexo de Édipo e, em última análise, da sociabilidade humana e das

instituições sociais e culturais que dela decorrem.

A construção de FREUD busca esclarecer a transição entre dois momentos

sucessivos da evolução humana: a horda primeva concebida por DARWIN e a

comunidade totêmica, erigida substancialmente sobre os tabus da proteção do animal

totêmico e da exogamia. Como se teria passado de um a outro estágio é a pergunta

que ele procura responder.

No modelo de DARWIN, derivado da observação do símios superiores,

também o homem, em seus estágios mais primitivos, teria vivido em pequenos

grupos dominados por um único macho, mais velho e mais forte, e que tinha para si

todas as fêmeas, impedindo que os outros machos tivessem com elas relações sexuais

ou mesmo expulsando-os da horda (como nos agrupamentos de gorilas em que um

único macho é visto no grupo). 200

Esse cenário descrito por DARWIN, no entanto, jamais foi objeto de

observação direta. As comunidades mais primitivas que se pode estudar

organizavam-se de forma diferente e apesar das particularidades de cada qual,

adotavam com grande uniformidade o totemismo (“o totemismo constitui uma fase

regular de todas as culturas” 201 ), configurando-se como clãs totêmicos. Os clãs

totêmicos, ao contrário da horda primeva de DARWIN, possuíam vários machos e

fêmeas, mas apresentavam uma peculiaridade: nenhum dos machos podia ter relações

sexuais com qualquer das fêmeas de seu clã, sendo essa a primeira regra do

totemismo, a exogamia. O vínculo entre os membros do clã é cimentado pelo totem,

200

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 131. 201

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 115.

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121

geralmente um animal, que é considerado um ancestral comum de todos eles, de onde

provém a segunda regra totêmica que é a proibição da morte do totem.

Se procurarmos penetrar até a natureza original do totemismo, sem

considerar acréscimos ou atenuações subsequentes, descobriremos que

suas características essenciais são as seguintes: Originalmente, todos os

totens eram animais, e eram considerados como ancestrais dos diferentes

clãs. Os totens eram herdados apenas da linha feminina. Havia uma

proibição de matar o totem (ou – o que em condições primitivas constitui

a mesma coisa – comê-lo). Os membros de um clã totêmico estavam

proibidos de ter relações sexuais uns com os outros. 202

FREUD dedica-se então a procurar como teria se dado a passagem de um

para o outro estado de coisas. Eis a hipótese freudiana:

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram

e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos,

tiveram coragem de fazê-lo, e foram bem sucedidos no que lhes teria sido

impossível fazer individualmente (algum avanço cultural, talvez o

domínio de uma arma nova, proporcionou-lhes um senso de força

superior). Selvagens canibais que eram não é preciso dizer que não apenas

matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora

sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e

pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles

adquirindo parte de sua força. 203

Após a morte do pai primevo, os sentimentos hostis contra o seu domínio

declinaram dando lugar à afeição e admiração antes recalcadas e que se expressaram

como sentimento de culpa e remorso. Da culpa dos irmãos originaram-se, em um

mecanismo que FREUD denomina “obediência adiada”, aquelas regras que o pai,

quando vivo, representava: preservar sua vida e não ter relações sexuais com as suas

mulheres. Além da culpa há também uma segunda razão pela qual os irmãos decidem

abrir mão do desejo de ter as mulheres do clã: é que eles percebem que a cobiça os

levará novamente à rivalidade que tornará impossível o viver comum.

202

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 115. 203

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 145.

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122

Após o parricídio o pai é divinizado, seu espírito plasma-se no totem (não é à

toa que o totem é considerado um ancestral comum, ele é o pai primevo), que se torna

intocável. A violenta morte do pai, por um lado, e a renúncia à volúpia e à

competição, por outro, são os movimentos que permitem a passagem da horda

primeva ao clã totêmico, e o modo violento pelo qual se deu essa transição explica os

tabus do totemismo: a veneração do totem, cuja vida deve ser preservada e a

proibição das relações sexuais dentro do clã.

Criaram-se assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus

fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam

inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo.204

A estrutura do chamado complexo de Édipo, ao qual FREUD faz referência, é

nas suas linhas mais gerais, bem conhecido de todos: trata-se do desejo de matar o pai

e tomar a mãe como esposa e que deve ser recalcado para permitir o adequado

desenvolvimento psíquico do indivíduo. O que FREUD sugere é que esse mecanismo

tem por base um fato antropológico concreto e corresponde a um episodio fundador:

o parricídio original que instituiu a transição de uma horda primitiva baseada na força

para uma comunidade totêmica organizada de forma complexa em torno de regras e

interdições culturais.

As regras do totemismo (proibição do parricídio e do incesto) só têm sentido

caso se admita que há nos homens uma inclinação à essas práticas. Não haveria razão

em proibir-se aquilo que as pessoas não desejassem fazer. Não há nenhuma sociedade

cujas leis proíbam os indivíduos de colocar as mãos no fogo ou que os obriguem a

comer e dormir. A lei só existe onde há um desejo contrário. Na concepção freudiana,

a morte do pai e o incesto são proibidos justamente porque os homens desejam

praticá-los mas, segundo sua hipótese heurística, perceberam que deveriam reprimir

esses desejos caso quisessem viver em comunidade. A existência e subsequente

repressão desses desejos, a morte do pai e a obediência aos tabus do totemismo, foi o

204

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 147.

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123

que permitiu a edificação da cultura humana, “os começos da religião, da moral, da

sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo” 205 escreve FREUD.

O modelo de FREUD pretende explicar não apenas os principais tabus do

totemismo, como também uma instituição central nas sociedades que o adotam: a

refeição totêmica.

Como já dito, uma das regras do totemismo é a proibição da morte do totem.

Mas, ao mesmo tempo em que a vida do totem é preservada, ela é também sacrificada

em ocasiões cerimoniais. Nessas ocasiões, que são parte fundamental do sistema

totêmico, o totem é morto e devorado pelo clã, em um cerimonial com regras próprias

que envolve ao mesmo tempo luto (“o luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma

desforra ameaçada” 206) e regozijo.

Feita a identificação entre o totem e o pai primevo é fácil divisar na refeição

totêmica a repetição e a consagração do parricídio original, com a mesma carga

emocional de ambivalência: o medo do revide, a alegria, a culpa.

Desejo, violência, interdição, reprodução ritualizada da violência, esses os

ingredientes com os quais se construiu a cultura e a sociabilidade para FREUD.

Vejamos agora como essa premissa pode ser ampliada até entrecruzar-se com o

problema da violência institucionalizada do poder estatal.

c) A hipótese de GIRARD

RENÉ GIRARD, em A violência e o Sagrado, com apoio em uma extensa

pesquisa sobretudo na mitologia grega e na literatura clássica, reforça e amplia a tese

freudiana, e formula a hipótese do desejo mimético, premissa de sua conhecida teoria

do bode expiatório. Para GIRARD o problema não está, como em FREUD, restrito à

rivalidade com o pai. O que existe é a relação conflitual decorrente do desejo em si.

205

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 158. 206

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 144.

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124

Segundo GIRARD todo o desejo é, por si mesmo, mimético. Explica-se: o

apetite, de cunho meramente biológico, sabe exatamente o que o satisfaz - é o instinto

que o indica, com toda a certeza. Já o desejo, descolado da matriz corpórea, não sabe

a priori o que desejar, não há um parâmetro interno que lhe diga a direção com

segurança. Sem a guia do instinto o desejo vagueia aqui e ali, até que alguém lhe

aponte o desejável, alguém lhe indique um objeto em se fixar. Esse alguém é o outro,

ou melhor, o desejo do outro.

Deseja-se o que é do outro e pelo simples fato de ser do outro. A posse do

outro sobre o objeto é justamente o que o torna desejável para mim. E por sua vez, o

meu desejo sobre o que lhe pertence cria nele o desejo de conservá-lo a todo custo.

Ao desejar o que o outro possui dou a ele a impressão de que vale a pena possuí-lo,

intensificando o seu próprio desejo. Portanto todo o desejo, pela sua própria natureza,

é mimético. Todo desejo depende de um modelo. Sob esse aspecto o desejo edípico

não é diferente dos demais, ele segue o mesmo padrão e se explica por uma

contingência evidente: por proximidade física e psíquica o primeiro modelo do desejo

é fornecido pelos pais. O filho não rivaliza com o pai porque deseja a mãe, ele deseja

a mãe porque ela é a esposa do pai e esse a deseja porque ela é a mãe do filho.

Se o desejo é sempre o desejo do que é do outro, então o desejo é também

violento. Se o desejo é a confluência de dois sujeitos sobre o mesmo objeto, então há

uma conflitualidade estrutural no desejo. Já que a natureza do desejo é ser a imitação

do desejo do outro, é ser mimético, ele é por isso mesmo, rivalitário e conflitivo. O

desejo é a marca da hominização, não fosse ele o homem estaria preso ao invariável

instinto animal. O desejo é o impulso evolutivo, a partir do qual se desenvolve toda a

cultura e toda a civilização. E nesse impulso está gravado o selo da violência. Da

violência essencial.

Como em FREUD, desejo e violência fazem parte de uma composição

indissociável. É curioso notar que o decálogo bíblico após proibir uma série de

condutas violentas (não matarás, não roubarás) termina por proibir o próprio desejo

(“não desejarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu

escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que

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125

pertença a teu próximo”) como que reconhecendo, nesse décimo e último

mandamento, que a enumeração das ações violentas é impossível, melhor proibir o

que está na base da violência, o desejo em si. Por essa razão os irmãos primevos

renunciam ao desejo pelas mulheres do clã. Mas nem sempre essa renúncia é

possível. E dessa forma a violência está sempre à espreita.

A violência gerada pelo desejo mimético é também ela especular. Os rivais

são o reflexo um do outro. Como é o desejo do outro que confere desejabilidade ao

objeto, no fim das contas o objeto é secundário. A questão passa a ser apenas a

rivalidade entre os dois que se imitam no elemento do desejo. No limite, a única

obsessão do dois oponentes consiste em vencer o adversário, mesmo que para isso

seja preciso inclusive destruir o objeto da disputa. No paroxismo da inveja, é mais

importante privar o inimigo do objeto do que tê-lo para si.

Uma vez deflagrada em um ponto da comunidade, a violência, que colheu e

igualou os rivais, tende a se espalhar como o fogo. Qualquer resposta à violência

implica o risco de fomentá-la. Mesmo reações a princípio pacíficas tornam-se

violentas: o violento desperta a ira dos que estão à sua volta. A melhor das intenções

não tem poder contra ela e é geralmente capturada e contaminada ao tocá-la:

Quando a violência se manifesta, há homens que se abandonam

livremente a ela, até mesmo com entusiasmo, enquanto outros tentam

impedir seus progressos. Com frequência, são exatamente estes últimos

que permitem o seu triunfo. 207

Tolerar ou não tolerar a intolerância, no fim das contas, conduz à vitória da

própria intolerância, e os meios de conter a violência, em última instância, são

sempre violentos e correm o sério risco de gerar mais violência. Se em uma escala

modesta a oposição parece apta a contê-la, a partir dali qualquer reação só lhe serve

de alimento.

Parece que sempre chega um momento no qual só é possível opor-se à

violência com uma outra violência; nesta ocasião, pouco importa ter

207

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 45.

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126

sucesso ou fracassar, pois é sempre ela que ganha. A violência tem

extraordinários efeitos miméticos, tanto diretos e positivos quando

indiretos ou negativos. Quanto mais os homens tentam controlá-la, mais

fornecem-lhe alimentos; a violência transforma em meios de ação todos os

obstáculos que se acredita colocar contra ela. Assemelha-se a uma chama

que devora tudo o que se possa lançar contra ela para abafá-la. 208

A mais clara imagem daquilo que retrata GIRARD é representada pela

vingança.

1.2. A vingança infinita

A natureza daninha e contagiosa da violência e a dificuldade de combatê-la

manifestam-se com clareza na figura ambivalente da vingança. A vingança é na

essência uma manifestação enfática de repulsa à violência: os homens consideram

uma obrigação vingar-se não por serem insensíveis ao homicídio, mas justamente por

que consideram o assassinato um ato odioso e inaceitável. A mesma lei que diz “não

matar” é a que diz que toda morte deve ser vingada. Não há porque vingar-se daquilo

que não se reprova.

Mas, de outro lado, é evidente que a vingança é ela própria violência e uma

violência portadora de um grau particularmente alto de destrutividade. ERICH

FROMM descreve-a da seguinte forma:

A destrutividade vingativa é uma reação espontânea a um sofrimento

intenso e não justificado infligido a uma pessoa ou aos membros de um

grupo com quem essa pessoa acha-se identificada. Difere da agressão

defensiva normal de duas maneiras: (1) ocorre depois que a lesão já se

verificou e, por conseguinte, não constitui defesa contra um perigo

ameaçador. (2) É de intensidade muito maior e frequentemente cruel,

voluptuosa e insaciável. A própria língua expressa essa qualidade

particular da vingança, quando fala em „sede de vingança‟. 209

208

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 45. 209

Erich Fromm. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 365-366.

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127

Destarte, sendo ela própria violência, o ato de vingança precisa ser vingado.

Já se pode adivinhar o ciclo infinito que essa afirmação inaugura, ponto sublinhado

insistentemente por GIRARD:

Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria

vingança. Ela é concebida como uma represália, e cada represália invoca

uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é visto como o

primeiro. Ele é considerado como a vingança de um crime mais

original.210

Para o violento seu ato dificilmente é visto como inaugural. Ao contrário, ele

muito comumente é percebido como legítimo, como a reação justificada a um agravo

anterior. É o elo de uma cadeia de ação e reação que parece não ter começo e nem

fim.

ERICH FROMM chega à mesma conclusão:

Em contraste com o simples castigo em que o crime é expiado pela

punição do criminoso ou daqueles a quem está ligado, no caso da

vingança sanguinolenta o castigo do agressor não dá fim à sequência. A

morte de caráter punitivo representa uma nova morte, o que, por sua vez,

obriga os membros do grupo punido a castigar o que havia punido, e assim

por diante ad infinitum. Teoricamente, a vingança de sangue é uma cadeia

sem fim e, na verdade, algumas vezes leva à extinção de famílias inteiras

ou de grupos mais numerosos.211

A vingança é a forma primeira e “espontânea” de reação à violência, mas

sendo ela mesma um processo infinito, não é dai que se pode esperar naturalmente a

contenção da violência, mas ao contrário, é ela própria que precisa ser contida. A

vingança escancara as dificuldades que todas as estratégias concebidas para a

contenção da violência irão enfrentar: o perigo de somar fogo à sua chama,

aumentado o seu potencial destrutivo de contágio. A violência e a vingança, não mais

discerníveis, podem alastrar-se descontroladamente, pois não há nada que as detenha,

ao contrário, tudo lhes serve de combustível.

210

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 27. 211

Erich Fromm. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 366.

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128

1.3. A crise mimética

O resultado da propagação da violência, seja por adesão (mimetismo direto)

seja por oposição (vingança) é a indiferenciação. Na violência os parceiros e os

antagonistas são gêmeos idênticos no seu desejo de destruição: “nada é mais parecido

com um gato ou um homem encolerizados, do que um outro gato ou um outro

homem encolerizado” 212, escreve GIRARD. A brutalidade uniformiza todos os que

dela participam, sua aceleração centrípeta suga para dentro vingadores, vingados e

todos os que estejam nas proximidades e lá no seu interior mistura-os todos,

fundindo-os em uma massa homogênea.

O pavor da perda das diferenças é um tema recorrente em grande parte das

culturas. É por causa do desejo e da violência que ele gera que Jocasta torna-se mãe e

esposa de Édipo ao mesmo tempo e essa indiferenciação repugna por subverter a

ordem e a lógica das relações interpessoais. É comum, em inúmeras comunidades

primitivas, que o nascimento de gêmeos seja considerado maléfico e uma das

explicações para esse fato é que os gêmeos são como que a efígie da indiferenciação,

eles mostram que duas pessoas podem ser indistinguíveis. 213

Explica-se o pavor da indiferenciação, pois ela de fato representa enorme

perigo. Todas as comunidades humanas são sistemas de trocas, não há nenhuma

cultura que possa estabelecer-se de forma estável senão sobre essa base. É o regime

de trocas que mantém a coesão entre os membros da sociedade e organiza o

funcionamento das relações interpessoais, alocando cada um deles em uma posição

específica. As trocas instituem diferenças mas, antes de tudo, elas exigem diferenças,

exigem que os envolvidos atuem em papéis diferenciados. A perda das diferenças

perverte o sistema de trocas tornando-o disfuncional, as trocas passam a produzir e a

reproduzir indistinção. A essa situação chama-se “crise.” Crises são fenômenos

212

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 2. 213

Segundo Girard “muitas leis arcaicas, especialmente na África, fazem matar todos os gemeos que

nascem na comunidade, ou apenas um so dos gemeos do par. Sem duvida essa regra é absurda mas não

prova de modo algum „a verdade do relativismo cultural‟. As culturas que nao toleram os gemeos

confundem sua semelhança natual, de ordem biológica, com os efeitos „indifenciardores‟das

rivalidades miméticas. Quanto mais essas rivalidades exasperam-se, mais os país de modelo, de

obstáculo e de imitador tornam-se intercambiáveis no interior da oposição mimética.” René Girard. Eu

via Satanás cair como um relâmpago. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 32.

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129

sociopolíticos de indiferenciação. O cenário cataclísmico das catástrofes é o protótipo

natural da situação de crise – o dilúvio, o fogo, a peste – todos esses retratos

espelham o horror da confusão, tudo vira o mesmo, todos os entes perdem seus

contornos e as formas que os individualizam. No âmbito social o resultado da crise é

o esgarçamento das relações e a corrosão das instituições suportadas pelo sistema, ou

seja, a desagregação da cultura, o limiar hobbesiano, o estado de natureza.

1.4. O bode expiatório

Como reinstaurar a ordem no seio da crise mimética? Como emergir do caos

indiferenciado que ela provoca? A hipótese girardiana é a sua conhecida teoria do

bode expiatório. 214

A partir de uma extensa análise dos mitos e ritos das mais diversas

sociedades, GIRARD constrói o seguinte modelo: o acirramento da crise mimética

eleva a temperatura da violência e da agressão entre os membros da comunidade

criando, no limite, um estado de todos contra todos. Nesse ponto em que a sociedade

corre o risco de despedaçar-se, surge uma válvula de escape: um dos membros da

comunidade (o mais fraco, o diferente, o estrangeiro, o marginal) polariza todos os

sentimentos maléficos antes dispersos. Ele atrai sobre si a violência desordenada,

dando-lhe um vetor único: forma-se a unanimidade violenta, o “todos contra todos”

indiferenciado torna-se o “todos contra um” e finalmente surge um diferença: aquele

é o culpado, logo todos os demais são inocentes.

Dadas as condições necessárias de tensão interna, a convergência da

hostilidade contra a vítima única flui naturalmente, basta que alguém atire a primeira

pedra. A ela seguir-se-ão todas as outras, por um mecanismo de catarse mimética. Na

famosa passagem bíblica em que Jesus é interrogado sobre como proceder em relação

à mulher adúltera sua resposta é “Quem dentre vós estiver sem pecado, que atire a

214

A expressão refere-se ao conhecido rito judaico: “Ele consistia em expulsar para o deserto um bode

carregado de todos os pecados de Israel. O sumo sacerdote colocava as mãos sobre a cabeça do bode e

esse gesto supostamente transferia para o animal tudo o que fosse suscetível de envenenar as relações

entre os membros da comunidade. A eficácia do rito consistia em pensar que os pecados eram

expulsos com o bode e que a comunidade ficava livre deles.” René Girard. Eu via Satanás cair como

um Relâmpago. Paz e Terra, 2012, p. 220.

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primeira pedra.” (João, 8, 3-11). A ênfase dada à primeira pedra não é fortuita e

trata-se de uma imagem tão significativa que evoca imediatamente a cena do estopim

de um linchamento. A primeira pedra é a mais difícil, pois ela não tem modelo a

imitar. Quem se atravesse a atirar a primeira pedra certamente teria mais

responsabilidade do que todos os outros que atirassem suas pedras depois. Por isso a

exortação produz o efeito e um a um os presentes, começando pelos mais idosos,

largam suas pedras e partem. Caso a primeira pedra tivesse sido lançada, seria muito

difícil impedir as demais.

O inimigo de todos agora é um só, é dele a culpa dos males que afligem a

coletividade e cada um dos indivíduos. A vítima expiatória é então massacrada pela

comunidade unânime, que descarrega sobre ela o material destrutivo que antes

circulava livremente, envenenando-a. A execução da vítima expiatória provoca uma

redução da tensão e uma imediata reconciliação entre os demais, cúmplices nesse

homicídio justificado. Agora todos podem ser amigos, pois o único inimigo, o

inimigo comum, foi descartado.

A tese do homicídio fundador, da hominização fundada sobre um ato de

violência unânime e coletiva corresponde à hipótese freudiana exposta em totem e

tabu, a morte do pai que possibilita a construção dos laços de sociabilidade entre os

irmãos da horda primeva. Em ambos os casos é, paradoxalmente, um ato de violência

que inaugura a sociabilidade.

GIRARD e FREUD sugerem que seus respectivos modelos possuem uma

realidade histórica, antropológica, sugerem que tudo o que imaginam de fato teria

acontecido um dia. E que a partir desse acontecimento erigiram-se a cultura as

instituições que, apesar das incontáveis transformações ao longo da história, ainda

carregam no íntimo esse DNA ancestral. Esse DNA que consiste no fato de que a

contenção da violência essencial para a formação da comunidade de homens provém

de um ato de violência unânime, coletiva, contra uma vítima expiatória.

Em resumo, o que pretendi até o momento com apoio em BURKET, FREUD

e GIRARD é fornecer uma explicação empírica para a intuição hobbesiana: o homem

é inatamente violento e assim o são as comunidades humanas. O desafio de lidar com

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a violência, afastando o tanto quanto possível os riscos de autodestruição, é o que

impulsionou boa parte das criações culturais e certamente do direito. É delas que

passarei a me ocupar.

2. A cultura da violência

O primata feroz, o desejo mimético, a violência essencial, a crise, a morte do

bode expiatório pertencem, por assim dizer, ao domínio da natureza da violência, da

violência em estado bruto. Sobre eles construiu-se o que chamarei de cultura da

violência, ou seja, as estratégias culturalmente concebidas para lidar com a questão

da violência essencial. Os três autores trabalhados, BURKET, FREUD E GIRARD,

por diferentes vias argumentativas, estão de acordo em fundar as instituições culturais

sobre os alicerces da violência. Tomarei aqui como fio condutor, pela sua clareza e

abrangência, a proposta de GIRARD, introduzindo algumas modificações e

aprofundamentos na sua classificação original e a ela agregando outros aportes.

GIRARD propõe três modelos de gestão da violência: (i) desvios sacrificiais

do espírito violento; (ii) regulações da vingança privada; (iii) sistema judiciário. O

primeiro é chamado de preventivo, pois visa canalizar a violência latente para um

objeto específico, a vítima sacrificial, evitando que ela irrompa de forma

descontrolada e atinja os demais membros da comunidade. Os dois últimos são

chamados curativos: atuam quando a violência já eclodiu e tem como objetivo evitar

a sua propagação, impedir que inaugure um ciclo crescente de destruição.

Esses três modelos, tão diversos entre si, respondem a um mesmo problema –

a violência intrínseca às relações humanas – e devem evitar as mesmas armadilhas –

a propagação contagiosa e a indiferenciação. O que é importante na proposta de

GIRARD, e que desejo sublinhar pois é a base para o desenvolvimento desse estudo,

é a hipótese de que “todos os meios que os homens já mobilizaram para proteger-se

da vingança interminável sejam aparentados”. 215 Tal e qual a vingança espontânea e

o mecanismo do bode expiatório, todos eles implicam um grau considerável de

violência. Mas, ao contrário deles, tais estratégias obedecem às configurações e

215

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 34.

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exigências criteriosamente concebidos para evitar os perigos do contágio, da

disseminação e da indiferenciação. O que pretendo investigar é, em linhas gerais,

quais são essas configurações e exigências que tornam possível ao homem estancar a

torrente da violência. O que me interessa é descobrir, por detrás das diferenças, o

genótipo comum que une, como um fio fino mas contínuo, o sacrifício primitivo e o

sistema judiciário moderno.

2.1. Meios preventivos

Nossa sociedade habituou-se de tal forma à existência do imponente aparelho

judiciário que é difícil imaginar o quão complexa é a tarefa de conjurar a violência e

a vingança em sociedades que não se organizam em torno de um poder de Estado

centralizado e coercitivo e nas quais os mecanismos para restaurar a paz perturbada

pela agressão não são institucionalizados.

Exatamente porque nessas sociedades não existe, uma vez perpetrada a

violência, o freio automático representado pelas instituições, a ênfase recai sobre os

métodos preventivos. Procura-se evitar qualquer deflagração da violência, pois uma

vez iniciada, é duvidoso que se possa fazê-la cessar.

Se não existe, entre as sociedade primitivas, nos momentos em que o

equilíbrio foi conturbado, um remédio definitivo ou uma cura infalível

para a violência, podemos supor que as medidas preventivas, e não as

curativas, aí ocupem o lugar de destaque. 216

Tais medidas são de ordem variada. Apresentarei três que me parecem as mais

relevantes especialmente pelo seu caráter de universalidade, pois, a despeito da

inumerável diversidade cultural, são notas comuns e constantes nas sociedades sem

Estado.

a) Rigidez dos costumes

216

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 30.

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133

A rigidez dos costumes e das relações interpessoais, presentes em muitas

sociedades primitivas talvez se explique por essa grave preocupação em evitarem-se

rusgas, atritos, desentendimentos, que poderiam detonar atos de violência. Em

contrapartida, nas sociedades “civilizadas” é justamente a existência da trava

institucional que permite que se ultrapassem impunemente os limites da prudência,

nelas “as relações, até entre pessoas completamente estranhas, caracterizam-se por

uma familiaridade, uma mobilidade e uma audácia incomparáveis”. 217

A obediência rigorosa e detalhada regras nas relações comunitárias é

largamente reportada pela etnografia. Tomarei como exemplo o relato de FREUD a

respeito dos costumes orientados a proteger a proibição do incesto em certas

sociedades primitivas, aqui especificamente no tocante às relações genro / sogra:

O costume exige que o homem tenha vergonha da mãe e sua esposa, isto

é, que se esquive deliberadamente de sua companhia. Não deve entrar na

mesma cabana que ela e se por acaso encontrarem-se num caminho, um

ou outro se volta para o lado, ela talvez escondendo-se por trás de um

arbusto, enquanto ele ocultava o rosto com o escudo. Se não puderem

evitar-se assim e a sogra não tiver nada com o que se cobrir, amarra um

talo de capim em volta da cabeça, como símbolo de evitação cerimonial.

Toda comunicação entre os dois – seja através de terceiros, seja gritando

um para o outro a uma certa distância -, tem de ter alguma barreira

interposta entre eles, como p. ex., a cerca do kraal. Não podem nem

mesmo pronunciar o nome próprio um do outro. 218

Descrições detalhadas dos costumes primitivos constam também da

paradigmática obra de FRAZER intitulada O Ramo de Ouro 219 e no já citado livro de

MALINOWSKY Crime e costume na sociedade selvagem 220. Em todos os relatos

sobressai esse aspecto característico: a profusão de regras sociais destinadas a evitar

as “tentações”, os desejos e as disputas, os pontos de choque, as situações, enfim que

poderiam deflagrar o conflito entre os homens. Como escreve GIRARD “é

217

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 33. 218

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 31. 219

Sir. James George Frazer. O ramo de ouro. São Paulo: Circulo do livro, 1978. 220

Bronislaw Malinowsky. Crime e Costume na Sociedade Selvagem. 2a ed. Brasília: Universidade de

Brasília, 2008.

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compreensível que em um universo onde o menor passo em falso pode produzir

consequências terríveis, as relações humanas sejam marcadas por uma prudência que

nos parece excessiva e por precauções aparentemente sem sentido." 221

b) Guerra

A canalização da violência para fora, em direção ao inimigo externo, é outro

traço comum dentre praticamente todas as comunidades primitivas. O fato de que a

guerra é uma característica quase que onipresente entre os selvagens é amplamente

reconhecido pela etnografia, embora se multipliquem as explicações para ela. Por sua

clareza e abrangência, valho-me das palavras de PIERRE CLASTRES no estudo

intitulado Arqueologia da Violência:

Exploradores ou missionários, mercadores ou viajantes estudiosos, do

século XVI até o final (recente) da conquista do mundo, concordam todos

num ponto: quer sejam americanos (do Alaska à Terra do Fogo) ou

africanos, siberianos das estepes ou melanésios das ilhas, nômades dos

desertos australianos ou agricultores sedentários das selvas da Nova

Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como

apaixonadamente dados à guerra, é seu caráter particularmente belicoso

que impressiona sem exceção, os observadores europeus. Da enorme

massa documental reunida em crônicas, relatos de viagens, relatórios de

padres e pastores, militares ou traficantes, surge incontestada, primeira, a

imagem mais evidente que oferece de saída a infinita diversidade das

culturas descritas: o guerreiro. Imagem suficientemente dominadora para

induzir uma constatação sociológica: as sociedades primitivas são

sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra. 222

De acordo com as ideias que expus até o momento, a universalidade do

fenômeno guerreiro nas sociedades primitivas tem relação direta com a escassez dos

atos de agressão intragrupais. Despejar a violência contra um inimigo comum externo

permite o alívio da pressão interna e ao mesmo tempo um reforço dos laços sociais da

comunidade.

221

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 33. 222

Pierre Clastres. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 232-233.

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c) Ritos sacrificiais

Mas, segundo GIRARD a mais importante estratégia de gerenciamento da

violência intestina são os ritos sacrificiais. Tal como os aspectos anterior o sacrifício

é uma nota comum a todas as sociedades primitivas conhecidas. Como escreve

BURKET em seu já citado estudo “o sacrifício animal é uma realidade

universalmente difundida no mundo antigo”223 bem como “a morte sacrificial é a

experiência básica do sagrado”. 224 O sacrifício, como se verá, institui o sagrado, que,

por sua vez, institui o direito. Em razão disso o exame dessa prática terá aqui especial

interesse.

O assassinato fundador tornou possível a superação da crise mimética, o

restabelecimento da ordem e a coexistência entre os membros da comunidade. Mas

esse efeito calmante não é permanente, uma vez que o desejo rivalitário continua

fermentando. Por isso, a mais antiga e disseminada estratégia de contenção da

violência consistiu na reprodução premeditada e controlada daquele evento original

que um dia foi capaz de pacificar a reconciliar temporariamente os homens. Essa

reprodução do mecanismo vitimário do bode expiatório consiste no sacrifício. O

sacrifício é a repetição do assassinato fundador em um contexto ritual.

Escolhida a vítima (e ver-se-á a seguir quem é a “boa vítima”), realizados os

detalhados e significativos procedimentos rituais (imprescindíveis), contra ela lança-

se a comunidade, diretamente ou investida no poder dos sacerdotes. Tal como no

massacre do bode expiatório, todos os impulsos violentos são catalisados em uma

única direção e saciados em uma cerimônia que mistura brutalidade, circunspecção e

também celebração. É, como se pode notar, um cenário muito semelhante àquele

pintado por FREUD ao descrever a refeição totêmica, interpretada como uma

repetição ritualizada da morte do pai primevo, com todos os componentes

ambivalentes que ela implica. 225 Se o primeiro assassinato consistiu na resolução

espontânea da crise e foi o ato que permitiu o estabelecimento dos laços sociais o

223

Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983, p.

9. 224

Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983, p.

3. 225

A relação entre sacrificio e e totemismo é destacada por MAUSS e HUBERT na célebre obra Sobre

o sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 8.

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sacrifício constitui a repetição programada dessa configuração de causa e efeito. O

sacrifício foi, portanto, o cimento que permitiu a estabilização da instável

sociabilidade primitiva.

O fator que permite o funcionamento eficaz dessa estratégia é justamente a

natureza flutuante do impulso violento. No fundo, é o mesmo mecanismo do bode

expiatório (que também substitui todos os milhares de pequenos inimigos individuais

por um único e grande inimigo comum), mas que opera aqui como uma substituição

regulada.

Uma vez despertado, o desejo da violência produz no homem alterações

inclusive fisiológicas. Caso o objeto que despertou a ira não esteja ao alcance ela irá

brandir seu golpe sobre o que estiver à mão, o que permite a canalização da agressão

para a vítima expiatória que assume o lugar de inimigo número um, permitindo a

dissolução temporária da tensão entre os verdadeiros adversários. O sacrifício opera a

partir da mesma mecânica, procurando controlar e canalizar os deslocamentos e

substituições espontâneos que ocorrem nesse momento. 226 Vale-se da qualidade

flutuante do desejo de violência para controlá-lo, direcionando-o para um terreno

estéril. Ao deslocar-se para a vítima sacrificial, a violência perde de vista o objeto

inicialmente visado227, colocando a salvo a comunidade.

O sacrifício aqui tem uma função real, e o problema da substituição

coloca-se no nível de toda a comunidade. A vítima não substitui tal ou tal

indivíduo particularmente ameaçado e não é oferecida a tal ou tal

indivíduo particularmente sanguinário. Ela simultaneamente substitui e é

oferecida a todos os membros da sociedade, por todos os membros da

sociedade. É a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para

vítimas exteriores. O sacrifício polariza sobre a vítima os germes de

desavença espalhados por toda parte, dissipando-os aos propor-lhes uma

satisfação parcial. 228

O sacrifício, sem dúvida alguma, é violência. Sacrificar significa sempre

matar (não existe nenhuma evocação semântica de sacrifício que não passe pela

226

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 22. 227

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 13. 228

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 19.

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morte – seja na acepção literal – matar uma vítima humana, matar seu substituto

animal – seja em um sentido conotativo – matar um desejo, uma vontade). Mas é uma

violência em certa medida “segura” pois não será vingada. É aí que reside o segredo

do seu funcionamento. Ele é violência, precisa ser violência, pois seu papel é repetir o

efeito curativo da violência inaugural. Mas uma violência que, se bem manipulada,

tomadas todas as incalculáveis cautelas, não corre o risco de propagar-se.

A natureza violenta, poder-se-ia dizer, muito próxima ao “crime” do rito

sacrificial mostra-se repetidamente nas observações de MAUSS e HUBERT na

paradigmática obra etnográfica sobre o tema intitulada Sobre o Sacrifício 229. No rito

sacrificial hindu, desde os procedimentos de preparação da vítima revela-se essa

natureza:

Depois de a banharem, introduzem-na enquanto fazem diversas libações.

Dirigem-lhe então a palavra, com epítetos laudatórios, rogando-lhe

tranquilizar-se. Ao mesmo tempo, invoca-se o deus, dono dos rebanhos,

pedindo-lhe consentir que se sirva de sua propriedade como vítima. Essas

precauções, propiciações e honorificações tem uma dupla finalidade.

Primeiro, indicam o caráter sagrado da vítima, ao qualificá-la como coisa

excelente, como propriedade dos deuses, faz-se com que ela o seja. Mas

trata-se sobretudo de induzi-la a se deixar sacrificar pacificamente para o

bem dos homens, a não se vingar depois de ter morrido. 230

Quando é finalmente chegada a hora máxima, da morte da vítima sacrificial,

assim descrevam-na os autores:

Eis que chegamos ao ponto culminante da cerimônia. Todos os elementos

do sacrifício estão dados e acabam de ser postos em contato uma última

vez. Mas resta efetuar a operação suprema. A vítima já é eminentemente

sagrada, mas o espírito que está nela, o princípio divino que ela agora

contém, ainda está preso em seu corpo e ligado por esse último vínculo ao

mundo das coisas profanas. A morte irá desfazer esse vínculo, tornado a

consagração definitiva e irrevogável. É o momento solene. É um crime

que começa, uma espécie de sacrilégio. Assim, alguns rituais prescreviam

libações e expiações enquanto a vítima era conduzida ao lugar de sua

229

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 230

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 36.

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morte. As pessoas escusavam-se pelo ato que iram cumprir, gemiam pela

morte do animal, pranteavam-no como a um parente. Pedia-se perdão

antes de abatê-lo; dirigiam-se ao resto da espécie à qual ele pertencia

como a um vasto clã familiar ao qual se suplicava não vingar o dano que

se lhe causaria à pessoa de um dos seus membros. 231

E essa relação torna-se ainda mais clara no trecho que se segue a respeito do

sacrifício grego:

Sob a influencia das mesmas ideias, chegava-se a punir o autor da morte:

batiam nele ou o exilavam. Em Atenas, o sacerdote do sacrifício das

Bouphonia fugia jogando fora o seu machado; todos os que haviam

participado do sacrifício eram citados no Pritaneu (palácio dos

magistrados) e lançavam a culpa uns aos outros; por fim condenava-se o

cutelo, que era lançado no mar. Aliás, as purificações a que devia

submeter-se o sacrificador após o sacrifício assemelhavam-se à expiação

do criminoso. 232

FREUD, ao descrever a refeição totêmica, também ressalta esse aspecto, a

preocupação em apaziguar um eventual desejo de vingança pela violência cometida:

O clã se acha celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de seu

animal totêmico e está devorando-o cru – sangue, carne e ossos. Os

membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança do totem e

imitando-o em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua

identidade com ele. Cada homem se acha consciente de que está

executando um ato proibido ao individuo e justificável apenas pela

participação de todo clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança e

da refeição. Quando termina o animal morto é lamentado e pranteado. O

luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada.233

A ideia de violência e, portanto, o medo da vingança é tão ínsita ao rito

sacrificial que está presente mesmo onde nos pareceria inteiramente ridícula e

desnecessária, como nos sacrifícios vegetais, como descrevem MAUSS e HUBERT:

231

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 39. 232

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 39. 233

Sigmund Freud. “Totem e Tabu”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. 2a ed. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v. XIII, p. 144.

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139

Assim, em um sacrifício suficientemente solene, no momento em que os

grãos são triturados suplica-se que não se vinguem do sacrificante pelo

mal que lhe é feito. Quando bolos são postos sobre cacos de louça para

assar, suplica-se que não se despedacem, quando são cortados, implora-se

que não firam o sacrificante e os sacerdotes.234

A hipótese de que o sacrifício funciona como violência alternativa, de que

canaliza a energia da violência para um terreno seguro em relação aos riscos do

contagio e da propagação, ou seja, de que o sacrifício é uma violência sem risco de

vingança, é reforçada pela percepção de que a seleção da vitima sacrificial obedece a

um critério comum:

Todos os seres sacrificáveis – quer se trate de categorias humanas que

enumeramos ou, com mais razão, dos animais – distinguem-se dos não

sacrificáveis por uma qualidade essencial, e isso sem exceção, em

qualquer sociedade sacrificial. Entre a comunidade e as vitimas rituais um

certo tipo de relação social encontra-se ausente: aquela que faz com que

seja impossível recorrer à violência sem expor-se a represálias de outros

indivíduos próximos, que considerariam seu dever vinga-lo. 235

Em suma, a hipótese de GIRARD é de que os ritos sacrificiais são filhos de

um episodio espontâneo de violência coletiva que “ensinou” aos homens a saída da

crise mimética. Essa saída é canalizar o impulso violento para um terreno em que ele

possa explodir sem provocar efeitos colaterais de propagação. O sacrifício é

reprodução controlada desse episodio histórico espontâneo e dá os homens a chance

de aliviarem a pressão dos conflitos internos através da experiência coletiva e

controlada de violência contra uma vitima comum e que não será vingada. A função

do sacrifício é repetir os efeitos do crime original: apaziguar as hostilidades

interpessoais e impedir a eclosão de conflitos internos, empregando o mesmo

mecanismo descoberto “por acaso”, quando da crise mimética original, ou seja, o

mecanismo de deslocamento da vítima expiatória. O sacrifício catalisa a violência

intragrupal e desvia para uma vitima sacrificial inócua, impedindo que ela transborde

sobre os demais membros da comunidade. E essa forma preventiva de lidar com a

234

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 19. 235

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 25.

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140

violência é de suma importância já que, nas sociedade primitivas, não há mecanismos

automáticos de contenção depois que ela se inicia.

Em um universo onde o menor conflito pode produzir desastres, como

uma pequena hemorragia em um hemofílico, o sacrifício faz convergir as

tendências agressivas para vitimas reais ou ideais, animadas ou

inanimadas, mas sempre não susceptíveis de serem vingadas, sempre

uniformemente neutras e estéreis no plano da vingança. 236

O sucesso dessa operação, no entanto, exige uma manipulação extremamente

cuidadosa de seus componentes, a substância é explosiva e deve ser utilizada com

grande respeito, cautela e medida. Já se tocou nesse ponto ao descreve-se todo o

cuidado na preparação da vítima e os pedidos de perdão que lhe são devidos.

Avançarei nesse caminho, abordando dois aspectos essenciais, interligados, mas que

podem ser distinguidos para uma maior clareza.

Em primeiro lugar é preciso que o sacrifício mantenha, com a violência

essencial que pretende substituir, uma relação peculiar, que vela e revela ao mesmo

tempo. Por um lado, para que funcione enquanto satisfação alternativa, é preciso que

preserve algo da violência original, sob pena de não proporcionar o alívio que

pretende. Na verdade, a sua matéria prima é a própria violência, que não é suprimida,

mas direcionada, canalizada, controlada. Mas por outro lado, ele não pode escancarar

sua natureza substitutiva pois nesse caso não haveria nenhuma vantagem na permuta,

uma violência seria simplesmente trocada por outra equivalente. Ele não deve

mostrar-se claramente como substituição, deve apresentar-se como algo

substancialmente diferente da violência que pretende substituir, ou então não haverá

nenhum ganho na troca. O chamado à “divindade” cumpre esse papel de ocultação e

ao mesmo tempo, de sacralização do sacrifício.

Como vimos, a operação sacrificial exige certo desconhecimento. Os fiéis

não conhecem, e não devem conhecer, o papel desempenhado pela

violência. Evidentemente a teologia do sacrifício é primordial neste

desconhecimento. Acredita-se que um deus reclama as vítimas: em

princípio, somente ele se deleita com a fumaça dos holocaustos, vem dele

236

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 30-31.

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141

a exigência da carne amontoada sobre os altares. É para apaziguar sua

cólera que os sacrifícios são multiplicados.237

O rito sacrificial encerra esse estranho paradoxo: trata-se de uma forma

violenta de se conjurar violência e isso só é possível se ele for realizado no espírito

piedoso característico do religioso. Daí decorre a sua natureza dúplice, de algo muito

culpável mas também muito sagrado. A divindade obscurece a sua essência criminosa

garantindo ao sacrifício a transcendência da violência santa, legal, legítima.

Durante muito tempo procurou-se explicar as práticas sacrificiais, tantas vezes

chocantes, exóticas e incompreensíveis aos olhos civilizados, a partir da sua teologia,

ou seja, da interpretação que elas próprias se dão: a mediação entre o sacrificador e

uma “divindade”. Mas a divindade na realidade é o resultado do sacrifício, não é sua

causa, a divindade é a própria vítima sacrificial divinizada. É justamente a sua morte

que a diviniza. Pelo fato de ser morta ela se torna divina, pois é ela que, ao ser

destruída, permite a dissipação dos conflitos e a harmonização dos demais, é ela que,

sendo sacrificada, produz o milagre da paz entre os homens. O sacrifício, estratégia

de desvio do desejo de violência, cria o sagrado e institui o religioso, e não o

contrário. A violência desafia os homens e a forma primitiva de responder a esse

desafio foi o que criou o religioso e os deuses238, embrião de todas as instituições e

estruturas culturais.

Em suma, a crença e a fé na divindade é o que substancialmente distingue a

violência bruta do sacrifício:

A partir do momento em que começou, deve prosseguir até o final sem

interrupção e na ordem ritual. É preciso que todas as operações de que se

compõe se sucedam sem lacuna e estejam em seu lugar. As forças em

ação, se não se dirigem exatamente no sentido prescrito, escapam do

sacrificante e se voltam contra ele, terríveis. Mesmo essa continuidade

237

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 18. 238

Refoge aos limites desse estudo ingressar em um debate aprofundado a respeito dessa idéia a

primeira vista incomum. Apoio-me na já citada obra de Marcel Mauss e Henry Hubert que dedica um

capítulo justamente ao “sacrifício do deus”, no qual os autores demostram, através da análise de ritos

sacrificiais e mitos, como o sacrifício deu origem a inúmeros mitos e esses aos inúmeros deuses

antigos. Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pg 83-100.

A mesma ideia é posteriormente acolhida por Girard. René Girard. A Violência e o Sagrado. São

Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 18.

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142

exterior de ritos não é suficiente. É preciso ainda uma espécie de igual

constância no estado de espírito em que se encontram sacrificante e o

sacrificador em relação aos deuses, à vítima e ao voto cuja execução se

demanda. Eles devem ter uma confiança inabalável no resultado do

sacrifício. Em suma, trata-se de efetuar um ato religioso com um

pensamento religioso: a atitude interna deve corresponder à atitude

externa. Vê-se que desde o princípio o sacrifício exige um credo (çraddhâ

equivale a credo, mesmo foneticamente.), que o ato implica a fé. 239

Em segundo lugar, sacrifícios são invariavelmente rituais. E ritos não podem

nunca ser pensados a não ser a partir de ações coordenadas, regradas, de

procedimentos normativos. Não há nenhum rito aleatório. O elemento ritual faz parte

da consolidação da experiência religiosa e, de forma indissociável, da experiência

sacrificial. Não se trata meramente de uma prática qualquer de atos, mas de um

processo, detalhado, predeterminado e que concretiza, no mundo profano, a

transcendência assegurada pela crença na divindade. De nada adiantaria crer se os

ritos não fossem observados.

Os ritos de morte eram extremamente variáveis, mas cada culto exigia que

fossem escrupulosamente observados. Modificá-los era quase sempre uma

heresia funesta, punida com a excomunhão ou a morte. É que com a morte

do animal liberava-se uma força ambígua, ou melhor, cega, perigosa pela

simples razão de ser uma força. Era preciso pois limitá-la, dirigi-la e

domá-la. Para isso é que serviam os ritos.240

A função do ritual é „purificar‟ a violência e essa purificação não pode ser

conseguida de outro modo senão ritualmente. É o rito que garante que a semelhança

entre sacrifício e violência não seja tomada por identidade, é ele que permite que o

sacrifício aproxime-se da violência sem o risco ser confundido com ela.

Absolutamente todos os detalhes do sacrifício devem obedecer a esse rigor, como

asseguram MAUSS e HEBERT, “o próprio local da cena deve ser sagrado, fora de

um local santo a imolação não é mais que um assassinato”. 241

239

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 35. 240

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 40. 241

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 32.

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143

Esse é o ponto que importa sublinhar: a transcendência e a ritualização são os

elementos que distinguem a violência sacrificial da violência bruta.

O sacrifício é a forma mais primitiva que as comunidades humanas

engendraram para lidar com a violência, um método basicamente preventivo, porque

tem como objetivo gerir o desejo de violência, canalizando-o para um terreno em que

sua satisfação não fosse tomada por um ato de violência. Mas mesmo com todos os

cuidados, a observância de rígidos códigos de conduta interpessoal e os desvios

sacrificiais do impulso violento, algo pode dar errado e a violência pode enfim

acontecer. O que fazer quando isso acontece, nas sociedades em que não há um poder

punitivo institucionalizado? Abordarei a seguir as estratégias curativas, ou seja,

aquelas que atuam depois que o primeiro ato de violência ocorreu. Principiarei pelos

meios mais primitivos até chegar à formação do poder judiciário.

2.2. Meios curativos

a) Sociedades sem Estado: indiferença, composição, sistema

vindicativo

Quando a agressão de fato ocorre, nas sociedades sem Estado há basicamente

três modos de reagir a ela: nada fazer, uma composição ou acordo entre agressor e

agredido e a vingança ou retaliação propriamente dita.

Nessas sociedades, ditas selvagens, é que se esperaria ver com mais clareza e

crueza a força incontida da vingança, como resposta imediata à agressão.

Mas o fato é que a abundante pesquisa científica desmente repetidamente essa

expectativa. Justamente em função de sua natureza explosiva e destruidora, a

vingança é, pode-se dizer com propriedade, ultima ratio, da qual só se lança mão se

for impossível relevar ou apaziguar os ânimos de outro jeito. Tomarei alguns

exemplos trazidos por reconhecidas fontes etnográficas.

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144

Em seu conhecido estudo sobre os trobiandenses intitulado Crime e Costume

na Sociedade Selvagem MALINOWSKY narra o seguinte quadro:

Em todos os casos, quando um homem é morto por pessoa de outro sub-

clã, há a obrigação da pena de talião – teoricamente peremptória, mas na

prática só é considerada obrigatória nos casos de homens adultos, de

categoria ou importância; mesmo assim considerada é dispensável quando

o falecido teve esse destino pela sua própria culpa. Em outros casos,

quando a vingança é evidentemente exigida pela honra do sub-clã, ainda

assim é contornada pela substituição do sangue pelo dinheiro (o lula). Era

uma instituição normal na celebração da paz depois de uma guerra,

quando se dava ao adversário uma compensação por cada indivíduo e cada

ferido. Quando era cometido um assassinato ou homicídio um lula

também liberava os sobreviventes dos deveres da pena de talião

(lugwa).242

EVANS-PRITCHARD em Os Nuer, obra paradigmática para a literatura

etnográfica sobre o povo nuer do Sudão, relata que entre eles a vendeta constitui uma

instituição tribal: “quando um homem pensa ter sofrido um dano, não há qualquer

autoridade a quem possa se queixar e da qual possa obter ressarcimento, de modo que

ele imediatamente desafia para um duelo o homem que causou o dano, e o desafio

deve ser aceito.” 243

Apesar disso, dentro de uma tribo existe um método pelo qual

tais disputas podem ser resolvidas por arbitramento. Assim, por exemplo, quando um

homem que lhe dá asilo:

Enquanto o assassino está na casa do chefe, os vingadores ficam vigiando-

o (bim) de vez em quando para ver se ele sai de seu santuário e lhes dá

uma oportunidade de atingi-lo com as lanças. Eles aproveitam todas as

oportunidades que tem para mata-lo, mas não são muito persistentes no

procurar essa oportunidade. Esse estado de coisas pode persistir por

algumas semanas antes que o chefe inicie as negociações com os parentes

do morto, pois não é provável que ele encontre receptividade em suas

ofertas até que a cerimônia mortuária tenha sido realizada e as emoções

242

Bronislaw Malinowsky. Crime e Costume na Sociedade Selvagem. 2ª ed. Brasília: Universidade de

Brasília, 2008, p. 90-91. 243

E. E. Evans-Pritchard. Os Nuer – uma descrição do modo de subsistência e das instituições

políticas do povo nilota. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 162.

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145

tenham esfriado um pouco. As negociações são feitas com vagar. O chefe

primeiro verifica quanto gado possuem os parentes do assassino (jithunga)

e se eles estão dispostos a pagar a indenização. Não creio que

frequentemente eles se recusem a pagar, a menos que morem muito longe

dos vingadores ou que haja uma série de vendetas não resolvidas entre as

seções envolvidas, embora eles possam não tem a intenção de entregar

todo o gado. O chefe também visita os parentes do morto (jiran) e pede-

lhes que aceitem o gado em troca da vida. Em geral eles recusam, pois é

ponto de honra ser obstinado, mas a recusa não significa que não estão

dispostos a aceitar o ressarcimento. O chefe sabe disso e insiste, chegando

mesmo a ameaçar amaldiçoá-los se não cederem, e suas exortações são

acompanhadas pelos conselhos de parentes paternos distantes e parentes

cognatos que não irão receber nenhuma das cabeças de gado e não

precisam, portanto, demonstrar orgulho e teimosia, mas que têm o direito

de expressar sua opinião em virtude de seu relacionamento com o morto.

A defesa do compromisso é também sustentada pelas tendências do

costume. Não obstante, os parentes próximos devem recusar-se a escutá-la

até que o chefe tenha chegado aos limites de sua argumentação, e quando

cedem declaram que estão aceitando o gado apenas para honrar o chefe e

não porque está prontos a tomar o gado em troca da vida do parente

morto.244

O antropólogo JACQUES BOUREAU, na obra sugestivamente intitulada Une

Societé sans Vengeance toma por objeto de estudo os gamos, da Etiópia, e observa

que nessa sociedade todo o aparelho social visa reprimir a vingança, falta grave para

com as potencias sobrenaturais e sobretudo ameaça moral para a unidade da

sociedade política. Assim descreve:

Em caso de homicídio, tudo é feito para evitar-se ocasiões de vingança. Os

membros das linhagens envolvidas devem evitar-se, o homicida é

desterrado. Mas o banimento não é definitivo. Prima a reconciliação, e os

parentes da vítima participam dela. O homicida e sua linhagem tomam a

iniciativa, enviando seus anciães ao clã da vítima para saber se quer

aceitar a volta do culpado. Quando a resposta é afirmativa, um ritual

marca a extinção do conflito. Um animal é sacrificado, depois o cortam

em pedaços e praticam uma incisão em sua pele. O homicida e o parente

244

E. E. Evans-Pritchard. Os Nuer – uma descrição do modo de subsistência e das instituições

políticas do povo nilota. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 164.

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146

mais próximo da vítima passam então por esse buraco, para marcar seu

renascimento para uma ordem nova. 245

O mesmo tipo de relato é feito por ROULAND, sobre a agressão e a vingança

entre os inuit da costa leste da Groelândia:

Em muitos dos casos suscetíveis de provocá-la, ela não se desencadeava.

Podia ser pelo procedimento de cisão, corrente entre os caçadores-

pescadores-apanhadores: o grupo que pode temer a vingança muda-se por

um tempo variável. Ou ainda, recorrendo a forças rituais e pacíficas de

solução do conflito, tais como a competição de canto, praticada na costa

leste da Groelândia, mas também noutros lugares do Ártico. O ganhador é

o cantor mais inventivo, o que encontra os traços mais mordazes.

Naturalmente, o perdedor pode ser quem está com a razão. Solução

injusta? Talvez, mas tem um custo social inferior à vingança. 246

Um episódio narrado por VANZOLINI em seu estudo de campo sobre a tribo

xinguana aweti intitulado A Flecha do Ciúme também ilustra essa dinâmica. O chefe

de uma aldeia yawalapiti era um grande feiticeiro que matou com feitiço um jovem

kamayurá que vivia em sua aldeia. Um grupo kamayurá contratou o irmão do chefe

aweti, único que sabia manipular uma espingarda, para matar o feiticeiro, o que foi

feito, levando à dispersão dos yawalapiti. O pai do executor aweti ficou muito bravo

porque sabia que os descendentes do chefe yawalapiti viriam em seu encalço e por

isso nunca se afastava de casa. De fato, o filho do feiticeiro executado, tendo ido

viver em uma aldeia kuikuro contratou um grupo de matadores para vingarem seu

pai. Quando um casal aweti afastou-se da aldeia para catar pequi foi surpreendido por

uma emboscada dos kuikuro e o homem foi morto. Dessa vez foram os kuikuro que

ficaram temerosos de uma vingança aweti, o que nunca aconteceu. Outras mortes

dentre os aweti foram atribuídas ao filho do chefe yawalapiti, mas também não houve

revide:

Do ponto de vista dessa família aweti, os yawalapiti se vingaram diversas

vezes, enquanto eles, aweti, nada fizeram para pagar a morte dos seus.

Não há muitas dúvidas de que a família yawalapiti envolvida no caso não

245

Apud Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 118/119. 246

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 109.

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147

deve compartilhar dessa visão, mas importa saber o que os aweti

consideram correto ou provável a respeito de um caso de inimizade de tais

proporções: que não deve prolongar-se indefinidamente, que é melhor

deixar passar uma vingança sem resposta. 247

Por fim, ROBERT LOWE em Primitive Society relata um costume

particularmente interessante e também enigmático observado entre os dieri

australianos:

Uma estranha variação da teoria mencionada ocorre entre os Dieri

Australianos que deliberadamente infligem a pena de morte sobre o irmão

mais velho do criminoso e não sobre o próprio ofensor. 248

Um prática similar é observada entre os chukchy, que LOWE compara com os

ifugau explicando justamente porque entre os primeiros o ato de agressão resulta em

consequências menos trágicas do que entre os segundos:

Da suprema lei da solidariedade grupal decorre que quando um indivíduo

ofende um membro de um outro grupo seu próprio grupo tende a apoiá-lo,

enquanto o grupo oposto apoia o pleito do injuriado por compensação ou

vingança. Por isso, pode-se desenvolver rixas sangrentas e a guerra civil.

A obstinação com que a situação é conduzida varia. Os Chukchi

geralmente fazem as pazes após o primeiro ato de retribuição, mas entre

os Ifugao a luta pode ser quase interminável até que enfim um casamento

reestabeleça a amizade entre as partes oponentes. Um interessante

exemplo de como diferentes práticas podem resultar de um mesmo

princípio é fornecido pelas duas tribos mencionadas. Enquanto os Ifugao

tendem a proteger o parente sob quase qualquer circunstância, os Chukchi

geralmente evitam o conflito matando um membro da família cuja

maldade provavelmente os envolveria em outros problemas. 249

O que é surpreendente, ao menos para nossa concepção de justiça aferrada ao

princípio da culpabilidade, é o fato de que, tanto entre os dieri quanto entre os

247

Marina Vanzolini Figueiredo. A Flecha do Ciúme. Tese (Doutorado em Antropologia). Rio de

Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2010, p. 179. 248

Robert H. Lowe. Primitive Society. New York: Boni and Liveright, 1920. p. 400. (Tradução livre). 249

Robert H. Lowe. Primitive Society. New York: Boni and Liveright, 1920. p. 400. (Tradução livre).

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chukchi o imolado não é, e não pode ser o culpado. Deliberadamente, não se pune o

culpado. GIRARD nota esse ponto e afirma com razão:

Não devemos nos refugiar aqui num conceito qualquer de “mentalidade

primitiva”, alegando uma “possível confusão entre o indivíduo e o grupo”.

Os chukchi não poupam o culpado por terem dificuldade em distinguir a

culpabilidade, mas sim por distingui-la perfeitamente. Em outros termos, é

enquanto culpado que o culpado é poupado.250

Mas qual a razão dessa conduta aparentemente irracional? O imolado não é o

culpado justamente para que a violência desse ato não se confunda com a violência

bruta, para que o ato, em certa medida, permaneça envolto no jogo de esconder e

mostrar próprio do sacrifício.

Sempre imaginamos que a diferença decisiva entre o primitivo e o

civilizado consista em uma certa incapacidade deste primitivo para

identificar o culpado e respeitar o princípio da culpabilidade. E é aqui que

nos enganamos. Se temos a impressão de que o primitivo desvia-se do

culpado com uma obstinação aparentemente idiota ou perversa é porque

ele teme alimentar a vingança. 251

O costume chukchi está no meio do caminho entre o sacrifício e o sistema

judiciário. Não se trata estritamente de um sacrifício, pois a obscuridade necessária

ao funcionamento dos ritos sacrificiais não permite que eles revelem tão claramente a

sua relação com uma violência praticada. Mas ainda não constitui uma forma

rudimentar de sistema judiciário justamente porque não é o culpado o imolado e é

esse o véu exigido para que se encubra o seu caráter violento/vingativo.

Fazer do culpado uma vítima, significaria cumprir o próprio ato reclamado

pela vingança, obedecendo estritamente as exigências do espírito violento.

Imolando-se não o culpado mas um de seus próximos, rompe-se com uma

reciprocidade perfeita, indesejável por corresponder claramente demais ao

espírito da vingança. Se a contra-violência escolhesse o próprio violento,

estaria participando de sua violência, não mais se distinguindo dela. Já se

250

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 39. 251

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 35.

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constituiria numa vingança prestes a perder qualquer controle, lançando-se

assim naquilo mesmo que desejaria evitar. 252

O objetivo de tal estratégia é estancar a violência deflagrada pela primeira

agressão. A preocupação em “fazer justiça” não tem nenhuma relação com uma

concepção superior no terreno dos valores abstratos, mas liga-se a uma razão mais

mundana e pragmática, que é satisfazer o impulso violento da vítima de forma

segura, de forma que ele mesmo não corra o risco de ser vingado.

Atualmente, julgamos rudimentares os procedimento curativos das

sociedades primitivas, pois eles representariam simples „ensaios‟ para o

sistema jurídico, com um objetivo pragmático bem visível: não é o

culpado o que mais interessa, mas as vítimas não vingadas, é delas que

vem o perigo mais imediato. É preciso oferecer a estas vítimas uma

satisfação rigorosamente avaliada, apaziguando seu desejo de vingança,

sem despertá-la noutra parte. Não se trata de legislar sobre o bem ou o

mal, nem de fazer respeitar uma justiça abstrata, mas de preservar a

segurança do grupo eliminando a vingança, de preferência por meio de

uma reconciliação fundada em um compromisso ou, caso essa

reconciliação seja impossível, por meio de um confronto armado,

organizado de forma a impedir a propagação da violência, este confronto

deverá ocorrer em um campo fechado, segundo regras e entre adversários

bem determinados. Deverá se dar de uma vez por todas. 253

O que as comunidades primitivas percebem é que, uma vez praticada a

agressão, não é mais o agressor que deve ser contido, mas a vítima. A prática do ato

de violência desloca para ela a fonte do perigo, não é o culpado que representa uma

ameaça imediata, mas o agredido: “não é o culpado o que mais interessa, mas as

vítimas não vingadas”. 254

Os perigos gerados por um primeiro ato de violência, sobretudo nas

sociedades sem Estado, são tão intensos que os chukchi e os dieri reagem assim,

punindo deliberadamente quem é inocente. Outras comunidades têm outras

estratégias como a competição de canto na Groelândia, o lula entre os trobriandenses,

252

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 39-40. 253

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 34. 254

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 34.

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o gado entre os nuer ou a simples renúncia reportada entre os aweti. Mas o que

cumpre observar é que a cautela e o comedimento, a tentativa de articular-se outra

solução que não a reciprocidade violenta pura e simples é uma marca comum de

todas elas.

Eis então como a “justiça” primitiva nos parece estranha: por vezes pune-se

exatamente aquele que não é o culpado, por outras, não se pune ninguém, mesmo

sendo bem conhecido o agressor. O notável é que, paradoxalmente, não são os

selvagens que se abandonam lascivamente aos prazeres da vingança, a vingança

(embora possa ocorrer) não ocupa um lugar estruturante e central nessas sociedades.

Somos apenas nós, os civilizados, que podemos gozar do luxo da desforra. Somos

apenas nós que podemos bradar que “ainda que a sociedade se dispersasse amanhã o

último criminoso deveria ser punido” 255. Podemos nos regozijar de responder com

violência à violência e aparentemente não temos medo disso.

b) Sociedades com Estado: sistema “judiciário”

Nas sociedades sem Estado e sem direto penal estruturado a ênfase recai sobre

os métodos preventivos, sobretudo, sobre as práticas sacrificiais, em face da incerteza

da eficácia dos meios curativos. Esses, que apresentam formas variadas, mas que

aglutinei sob a rubrica de indiferença, composição e sistema vindicativo, são

empregados quando, não obstante as precauções, a violência eclode, mas há, sempre

uma grave preocupação com a sobriedade e o comedimento, pois é preciso evitar uma

escalada de violência que não poderia ser mais contida por nenhum poder externo: o

objetivo principal de tais estratégias é controlar o perigo que não vem do agressor,

mas das vítimas não vingadas.

Mas, se o sacrifício, ao invés de constituir uma excentricidade supérflua,

exerceu, nas sociedades primitivas, essa função concreta e decisiva de controlar o

surgimento da violência, já que os meios curativos eram precários e pouco confiáveis,

255

Immanuel Kant. La Metafísica de las Costumbres. 4ª ed. Madrid: Tecnos, 2008, p. 168-169.

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151

como se explica o seu desaparecimento? Como se justifica que tenha desvanecido

sem deixar vestígios? 256

A organização da sociedade em torno de um Estado cada vez mais

centralizado responde a essa pergunta. Nessa nova estrutura, o lugar deixado pelo

sacrifício (violência preventiva) e pelo sistema vindicativo primitivo (violência

curativa) foi ocupado por esse novo poder estatal, o poder judiciário penal (violência

institucional). Como nota GIRARD:

Um indício suplementar da ação exercida pelo sacrifício é que a instalação

de um sistema judiciário acaba por atrofiá-lo, como se verificou

especialmente na Grécia e em Roma. Sua razão de ser desaparece. 257

A estruturação das sociedades em Estados centralizados não foi abrupta, e o

abandono dos métodos primitivos (sacrifício e sistema vindicativo) também foi

gradual.

Na Grécia, que ainda hoje recebe o título de “berço da civilização”, os

sacrifícios eram amplamente difundidos 258, parte essencial da dinâmica comunitária.

E o sistema vindicativo convivia com o sistema judiciário, assumindo, nas causas

penais, papel preponderante. 259

Na Atenas clássica, a ação por homicídio, a ação por ferimentos com

intenção de matar, são privadas, cabendo a iniciativa às famílias. Os

crimes públicos resumem-se à insubmissão militar e aos atos sacrílegos, o

excepcional. 260

Também em Roma, à par do sacrifício, o sistema vindicativo conviveu

largamente com o judiciário, mesmo quanto aos crimes de sangue:

256

Embora isso não seja estritamente verdade, já que todas as religiões guardam ainda hoje um

evidente caráter sacrificial, a começar pelo cristianismo, em que o próprio filho de Deus é equiparado

a um cordeiro e sacrificado pelo bem dos homens. 257

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 31. 258

A esse respeito, o extenso e profundo estudo de Burket, justamente sobre os ritos sacrificiais na

Grécia antiga. Walter Burket. Homo Necans. Berkeley and Los Angeles: University of California

Press, 1983. 259

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 102. 260

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 103.

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152

Até os anos de 130 a.C. (a época dos Gracos, os tribunos reformadores)

funcionava um duplo procedimento: um público, aplicava-se às

conspirações criminosas contra a Cidade; outro privado, no qual a ação é

executada pela família, intervém no caso geral em que o homicídio opõe

particulares entre si (salvo para os parricídios, passíveis de uma ação

pública). 261

Para o adultério, a retaliação direta e sem nenhuma intervenção do judiciário

era a regra absoluta, como relata ROLAND:

Em Roma, durante todo o período republicano (quatro séculos), o Direito

Penal, o que vem do Estado, fica silencioso: reina a vingança. E sob

formas que nada tem de benignas: flagelação, nariz ou orelha cortados,

enucleação, castração e até sodomização (uma fantasia?) são reservados

ao amante culpado pelo marido ultrajado, que pode matar pessoalmente a

esposa surpreendida. Nenhuma mediação judiciária assinalada. 262

Foi apenas com o surgimento do império romano (27 d.C.) que o Estado

começa a intervir ativamente na solução dos conflitos entre particulares e a vingança

(privada) passa a ser condenada. Historicamente, o que há então é uma transferência

de poder, um poder que se concentra mais e mais nas mãos do Imperador. O César

assume a função vindicativa que antes cabia ao pater familiae, ele é agora o pater

patriae e o poder da justiça, que não é outra coisa senão o poder da vingança,

pertence-lhe com cada vez mais exclusividade.

Pois tudo está ai, na invasão da esfera privada pelo Estado, que muito

tempo se manteve em sua beirada. A evolução das representações o atesta.

O Estado confisca em seu proveito próprio o poder familiar, o poder

paterno. O imperador se faz nomear pater patriae; procedimentos novos

(apelo ao príncipe, remissão de pena, graça) acostumam as mentes à ideia

de que ele é fonte de qualquer justiça. O enfrentamento no fórum, típico

do período republicano, é substituído por mecanismos de integração e de

submissão: a vingança deve desaparecer. Dois séculos depois, em meio às

261

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 103/104. 262

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 103.

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convulsões dos putschs militares, nascerá o Estado autoritário e dirigista

do Baixo Império: o Imperador se tornará a “lei viva sobre a terra”. 263

Na história ocidental, o advento do Império Romano marcou o declínio

(embora não o desaparecimento) dos ritos sacrificiais e do sistema vindicativo e a

transferência desses mesmos papéis para o poder judiciário centralizado em Augusto.

O seu caráter vindicativo não se modifica nem é escondido, ele basicamente muda de

mãos.

No direito germânico da alta Idade Média o poder central de punir desaparece

novamente e o confronto privado volta a ser a forma de articulação da violência. Não

há, nesse sistema, ação pública, nenhuma intervenção de um representante da

autoridade, mas a reclamação direta feita de um indivíduo a outro, sob a forma,

novamente, da vingança privada:

Uma vez introduzida a ação penal, uma vez que o indivíduo se declarasse

vítima e reclamasse a reparação a um outro, liquidação judiciária devia se

fazer com um espécie de continuação da luta entre os indivíduos. Uma

espécie de guerra particular, individual, se desenvolve e o procedimento

penal será apenas a ritualização dessa luta entre os indivíduos. O Direito

Germânico não opõe a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas,

ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular

e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear

os atos de vingança. O direito é pois, uma maneira regulamentada de fazer

guerra. Por exemplo, quando alguém é morto, um de seus parentes

próximos pode exercer a prática judiciária da vingança, não significando

isso a renunciar a matar alguém, em princípio, o assassino. Entrar no

domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo

certas regras, certas formas. Se o assassino cometeu o crime desta ou

daquela maneira, será preciso matá-lo cortando-o em pedaços, cortando-

lhe a cabeça e colocando-a em uma estaca na entrada de sua casa. Estes

atos vão ritualizar o gesto da vingança e caracterizá-lo como vingança

judiciária. 264

263

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 104-105. 264

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 56-

57.

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154

É importante notar que nesse sistema, como sói acontecer naqueles em que

vige o sistema vindicativo, há sempre a possibilidade de elidir a vingança com um

acordo. “O antigo Direito Germânico oferece sempre a possibilidade, ao longo dessa

série de vinganças recíprocas e rituais, de se chegar a um acordo, a uma transação.

Pode-se interromper a série de vinganças com um pacto”. 265 O agressor pode,

pagando uma quantia em dinheiro, resgatar, não o sangue derramado, mas a própria

vida, resgatar o direito de escapar da vingança.

Na baixa Idade Média, a formação das monarquias medievais e a

centralização do poder desloca novamente a vingança para o terreno público. Mas nos

conhecidos suplícios que caracterizam esse período histórico a relação entre

sacrifício, sistema vindicativo e sistema judiciário ainda deixa-se ver com toda a

clareza.

O parentesco entre pena e vingança salta aos olhos nas vívidas descrições de

FOUCAULT a respeito dos suplícios cujo objetivo principal era

Prender o suplício ao próprio crime; estabelecer de um para outro relações

decifráveis. Exposição do cadáver do condenado no local do crime, ou

num dos cruzamentos mais próximos. Execução no próprio local em que o

crime fora cometido – como aquele estudante que em 1723 matara várias

pessoas e para quem o tribunal de Nantes erguera um cadafalso à porta do

albergue onde ele cometera os assassinatos. Utilização de suplícios

“simbólicos”, em que a forma de execução faz lembrar a natureza do

crime: fura-se a língua dos blasfemadores, queimam-se os impuros, corta-

se o punho que matou; às vezes faz-se o condenado ostentar o instrumento

de seu crime – como Damiens, com a famosa faquinha que foi coberta

com enxofre e amarrada à mão culpada para queimar ao mesmo tempo

que ele.266

É interessante observar, nas descrições de FOUCAULT, com que nitidez se

ousava revelar, nesse momento histórico, a natureza violenta, vingativa e sanguinária

da pena. O momento da execução apresentava-se abertamente como um

265

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p.

57. 266

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 39.

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155

prosseguimento da luta iniciada com o ato de agressão, no mesmo espírito da

vingança judiciária do Direito medieval germânico, apesar de um dos contendores ter

sido substituído pelo carrasco:

O suplício se realiza num grandioso cerimonial de triunfo: mas comporta

também, como núcleo dramático em seu desenrolar monótono, uma cena

de confronto de inimigos: é a ação imediata e direta do carrasco sobre o

corpo do „paciente‟. Ação codificada, é claro, pois o costume, e muitas

vezes de maneira explícita, a sentença, prescrevem os principais episódios.

Esta ação, no entanto, conserva alguma coisa de batalha. O executor não é

simplesmente aquele que aplica a lei, mas o que exibe a força; é o agente

de uma violência aplicada à violência do crime, para dominá-la. Desse

crime ele é o adversário material e físico. Adversário ora digno de

piedade, ora encarniçado. 267

A historiadora LYNN HUNT, comentado os suplícios, apresenta de forma

explícita essa relação que estou estabelecendo, ao afirmar expressamente que “o

delinquente era uma espécie de vítima sacrificial cujo sofrimento devolveria a

integridade à comunidade e a ordem ao Estado.” 268

Como o castigo era um rito sacrificial, os festejos acompanhavam

inevitavelmente o medo e, às vezes, o eclipsavam. As execuções públicas

reuniam milhares de pessoas para celebrar o fato de que a comunidade ia

recuperar-se da ferida infligida pelo crime. 269

O Direito Penal medieval (sobretudo na baixa Idade Média), de fato,

encontra-se no auge do seu esplendor violento. O sacrifício vai desaparecendo como

prática cultural e social concreta e é confiscado pela Igreja para seu uso e controle

exclusivo – como prática simbólica a cada missa católica, em que se come a carne e

bebe-se o sangue do Cristo. A vingança privada vai pouco a pouco sendo banida pela

monarquia emergente articulada com a Igreja 270, a exortação ao perdão, como valor

cristão supremo relega-a à condição de crime e pecado. Em contrapartida, o poder

267

Michel Foucault. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 39. 268

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 95.

(Tradução livre). 269

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 95.

(Tradução livre). 270

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 97.

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156

monárquico cada vez maior dá-se conta de que tem o monopólio da violência, sob

uma forma mista de sacrifício e vingança. E de uma vingança que não precisa mais se

esconder ou moderar, como no sistema vindicativo, uma vingança que pode e deve

escancarar-se em toda a sua força, pois, justamente por ser tão forte, ela não será

vingada.

Se o caráter incontrastável que permite ao judiciário exercer sem medo a

vingança pública provém da força e poder do seu titular é compreensível que toda

essa força e poder tenham que ter estado, de início, claramente presentes (quando,

com o tempo, a função vindicativa da pena foi-se tornando oculta, também essas

demonstrações tornaram-se desnecessárias e até indesejáveis). A natureza

esmagadora e propositalmente desproporcional dos suplícios descritos por

FOUCAULT não tem outra função senão deixar evidente e para além de qualquer

dúvida quem era o mais forte ali:

O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória:

o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de

acessório ou vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se

manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se

prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao

vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira da estrada. A justiça

persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível. O suplício penal

não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção

diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das

vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a

exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse

todo o controle. Nos excessos dos suplícios se investe toda a economia do

poder. 271

Em determinado momento, no entanto, a sociedade civilizada percebeu o que

os primitivos sempre souberam: a violência é perigosa, mimética e tendencialmente

descontrolada. Não é à toa que os sacrifícios do mundo antigo eram considerados

temerários e cercados de cuidados e que o sistema vindicativo orientava-se pela

sobriedade e moderação, o oposto dos excessos medievais.

271

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 32.

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157

As instituições judiciárias perceberam que, por mais fortes que fossem,

mostrarem-se nuas, como vingança, como violência, como brutalidade pura e

simples, como irmãs gêmeas dos crimes, era demasiado perigoso, chegava-se perto

demais da deflagração da crise mimética.

Essa foi, segundo FOUCAULT, a razão central para o abandono dos

suplícios: o fato de que a execução pública passou a ser vista então como “a fornalha

em que se acende a violência” 272, o fato de que a violência despudorada da pena

corria o seriíssimo risco de instituir uma confusão de papéis típica da crise mimética:

A punição, pouco a pouco, deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse

implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as

funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser

compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao

crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o ou mesmo

ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma

ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a

frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer ao criminoso, os

juízes aos assassinos, invertendo no último minuto os papéis, fazendo do

supliciado um objeto de piedade ou admiração.273

A instituição dos duplos, os gêmeos inimigos, o caos mimético é que o

determinou a necessidade do abandono dos suplícios:

No castigo espetáculo um horror confuso nascia do patíbulo; ele envolvia

ao mesmo tempo o carrasco e o condenado: e se por um lado estava

sempre a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha

infligida ao supliciado, por outro lado ela fazia redundar geralmente em

infâmia a violência legal do executor. 274

De forma que, a partir de então, as instituições judiciárias passaram a se

apresentar vestidas (ou disfarçadas): o Direito Penal cobriu-se com uniforme sóbrio

das teorias, a execução, sua parte mais vergonhosa, enrolou-se no manto

impenetrável das muralhas.

272

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 12. 273

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 12. 274

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 13.

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158

A punição vai-se tornando pois a parte mais velada do processo penal,

provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase

diária e entra no da consciência abstrata, sua eficácia é atribuída à sua

fatalidade e não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que

deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro: a

mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão a

justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada

a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação da

sua força, mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e

muito lhe custa ter que impor. 275

Por isso, apesar de ousar revelar o seu parentesco com a vingança como nunca

antes fora feito, também o sistema judiciário precisou, por outro lado, desenvolver

estratégias para camuflar essa relação indecorosa. Precisou denegar suas raízes,

despojar-se da carne da vítima e varrer para debaixo do tapete o sangue vitimário,

precisou transmutar o direito em um ato lógico, em uma teoria pura.

De início, claramente destinados a moderar a vingança, os procedimentos

curativos, à medida em que se tornam mais eficazes, vão sendo envolvidos

pelo mistério. Quanto mais o ponto focal do sistema desloca-se da

prevenção religiosa para os mecanismos de retribuição judiciária, mais o

desconhecimento que sempre protegeu a instituição sacrificial avança na

direção desses mecanismos, tendendo por sua vez a envolvê-los. 276

O elemento essencial nesse obscurecimento, nesse jogo de velar e revelar, é

justamente a nota mais distintiva e característica do judiciário “moderno” é o

principio da responsabilidade pessoal. A adoção do princípio da culpabilidade parece

afastar o sistema judiciário de seus parentes primitivos e depurá-lo desses elementos

selvagens e irracionais. Mas é o contrário. O sistema moderno é na verdade o que

mais corresponde às exigência das vingança e daí emana sua irresistível coerência

interna:

Na verdade, o nosso sistema parece ser mais racional por se conformar

mais estritamente ao princípio da vingança. A insistência no castigo do

culpado não tem outro sentido. Ao invés de tentar, como todos os

275

Michel Foucault. Vigiar e Punir. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 13. 276

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 35.

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procedimentos propriamente impedir a vingança, moderá-la, iludi-la ou

desviá-la para um objetivo secundário, o sistema judiciário racionaliza a

vingança, conseguindo dominá-la e limitá-la a seu bel-prazer. 277

Uma vez que o principio da culpabilidade passa a ocupar uma posição central,

sua relação com a vingança vai sendo substituída pela ideia de “justiça”. E assim

como a “divindade” ocultava e sacralizava a violência imanente do sacrifício, a

“justiça” passou a ocultar e sacralizar a violência imanente do sistema judiciário, ao

mesmo tempo revelando e ocultando a sua essência vindicativa:

Quanto menos consciência houver de sua função, melhor será o

funcionamento do sistema. Este poderá e deverá se reorganizar

imediatamente em torno do culpado e do princípio da culpabilidade, ou

seja, sempre em torno da retribuição, que será entretanto erigida em

princípio de justiça abstrato, que os homens vão se encarregar de fazer

respeitar. 278

Compreende-se assim a força e a fraqueza da ideia de “justiça” no bojo do

sistema judiciário ou, mais especificamente, no centro das primeiras teorias da pena.

Compreende-se que ela possua tão pouca consistência racional, ao ponto de ser

considerada, ao fim e ao cabo, pura mística esotérica, tal como um deus antigo,

ingênuo e decadente. Mas compreende-se também a força da sua presença, que seja

tão profundamente entranhada nas consciências. Assim é porque essa ideia de justiça

é filha legítima da vingança 279 que por sua vez é o coração do ato punitivo.

Não há, no sistema penal, nenhum princípio de justiça realmente diferente

do princípio de vingança. O mesmo princípio funciona nos dois casos: a

reciprocidade violenta, a retribuição. Ou esse princípio é justo e a justiça

já está presente ou então não existe justiça em lugar nenhum. 280

277

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 35-36. 278

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 34-35. 279

Nesse ponto, discordo de RUIZ FUNES que, em seu importante estudo sobre a atualidade da

vingança, defende que a justiça deve anular a vingança e afirma que “a vingança olha para o passado.

A justiça deve olhar o porvir”. Mariano Ruiz Funes. Actualidad de la Venganza. Buenos Aires:

Losada, 1943, p. 37. (Tradução livre). 280

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 28.

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Em Humano, demasiado humano NIETZCHE assinala a identidade entre

justiça e vingança, fincando-a sobre a base da ideia da igualdade ou do equilíbrio de

forças. Para ele “a justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob o pressuposto de

um poderio mais ou menos igual: originalmente a vingança pertence ao domínio da

justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão”.281

Em Society and Nature KELSEN escreve as seguintes palavras:

O grau de progresso de vingança primitiva para técnica social mais

elevada da punição retributiva é de fato grande. Ele consiste no fato de

que a reação contra o delito já não tem apenas o caráter de auto realização,

que não deve mais ser exercido pelo indivíduo, direta ou indiretamente

ferido, mas por uma autoridade imparcial. No entanto, a diferença entre a

reação da vingança primitiva e punição retributiva é puramente

quantitativa, enquanto a diferença entre a vingança e o reflexo instintivo

de defesa é qualitativa. Não se deve ignorar o fato de que, ainda hoje um

ramo muito importante da lei, ou seja, o direito internacional, continua a

ser, em sua maior parte, no estado tecnicamente primitivo de auto

realização. 282

ERICH FROMM, em Anatomia da Destrutividade Humana, afirma

categoricamente que “não apenas a vingança de sangue, mas todas as formas de

punição – das primitivas às modernas – são expressão da vingança”. 283 E nota com

acuidade que a relação entre os sistemas judiciário e vindicativo, por um lado, e o

desejo bruto de vingança, por outro, é constatada justamente nas situações em que

tais estratégias falham ou não existem:

Não se pode negar que a vingança de sangue e a lei penal, por mais malsãs

que sejam, têm também uma certa função de manter a estabilidade social.

O pleno poder da sede de vingança pode ser visto naqueles exemplos em

que não existe esse funcionamento. Dessa forma, um grande número de

alemães foi motivado pelo desejo de vingança, por causa da derrota da

guerra de 1914-1918 ou, mais especificamente, por causa da injustiça

281

Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado humano – primeiro volume. São Paulo: Companhia das

Letras, 2005, p. 65. 282

Hans Kelsen. Society and Nature: a sociological inquiry. Chicago: University of Chicago Press,

1943, p. 57. (Tradução livre). 283

Erich Fromm. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 366.

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161

causada pelo Tratado de Versalhes, nos seus aspectos materiais e,

particularmente, pela sua exigência de que o governo alemão devia aceitar

a responsabilidade única pela irrupção da guerra. É notório que as

atrocidades reais ou supostas podem provocar o ódio mais intenso e a mais

intensa vingança. Hitler fez dos supostos maus tratos da minoria alemã na

Tcheco-Eslováquia o centro de sua propaganda, antes que viesse a atacar

esse país: o massacre em massa na Indonésia em 1965 foi inicialmente

inflamado pela estória da mutilação de alguns generais que se opunham a

Sukarno. Um exemplo de sede de vingança que já dura quase dois mil

anos é a reação à execução de Jesus, supostamente praticada pelos judeus;

o grito de “assassinos de Cristo” tem sido, tradicionalmente, uma das

fontes principais de violento anti-semitismo.284

DURKHEIM, ao analisar a pena tal como é (função) e não como deve ser

(finalidade) em A Divisão do Trabalho Social escreve:

E com efeito a pena permaneceu, pelo menos em parte, uma obra de

vingança. Diz-se que não fazemos sofrer o culpado apenas por fazê-lo

sofrer; não é menos verdadeiro que achamos justo que ele sofra. Talvez

não tenhamos razão; mas não é isto que está em questão. Procuramos no

momento definir a pena tal como é ou foi, não como deve ser. Ora, a

expressão vindita pública, que retorna incessantemente nos tribunais, não

é uma expressão vã. Supondo que a pena possa realmente servir para

proteger-nos no futuro, estimamos que deva ser, antes de tudo, uma

expiação do passado. O que o prova são as precauções minuciosas que

tomamos para proporcioná-la tão exatamente quanto possível à gravidade

do crime; elas seriam inexplicáveis se não acreditássemos que o culpado

deve sofrer porque fez o mal e na mesma medida. Com efeito, esta

graduação não seria necessária se a pena fosse só um meio de defesa.285

Após relacionar vingança e justiça (em Humano, demasiado humano –

primeiro volume 286 ) NIETZSCHE, no segundo volume da mesma obra, declara

peremptoriamente a coincidência entre vingança e pena. Escreve: “por meio da pena

judicial, tanto a honra privada como também a honra social são restauradas: isto é -

284

Erich Fromm. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 367. 285

Émile Durkheim. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 59. 286

Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado humano – primeiro volume. São Paulo: Companhia das

Letras, 2005, p. 65.

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162

pena é vingança.” 287

De forma, que, sejam quais forem os discursos, é preciso reconhecer, como

DURKHEIM, que a “natureza da pena não mudou essencialmente” 288:

Tudo o que se pode dizer é que a necessidade de vingança está hoje mais

bem dirigida do que antes. O espírito de previsão que se despertou não

deixa mais o campo tão livre à ação cega da paixão; ele a contém em

certos limites, opõe-se às violências absurdas, às destruições sem razão de

ser. Mais esclarecida, difunde-se menos ao acaso; não se a vê mais,

mesmo para satisfazer-se, voltar-se contra inocentes. Mas ela ainda

permanece a alma da penalidade. 289

O sistema judiciário vai paulatinamente se constituindo como meio

“civilizado” de contenção da propagação da violência e substitui os meios primitivos,

tanto preventivos (sacrifício) quanto curativos (sistema vindicativo) assumindo, no

entanto, a mesma função. Onde existe

É o sistema judiciário que afasta a ameaça da vingança. Ele não a suprime,

mas limita-a efetivamente a uma represália única, cujo exercício é

confiado à autoridade soberana e especializada em seu domínio. As

decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última

palavra da vingança. 290

Nós não precisamos conter a violência na origem através de ritos sacrificiais,

porque temos um recurso eficiente para conte-la depois que ela ocorre. E não

287

NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, demasiado humano – segundo volume”. In: Obras incompletas.

São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 128. Cabe notar que, quando associa pena a vingança, Nietzsche o

faz levando em conta dois sentidos para a palavra vingança. O primeiro consiste no “contragolpe

defensivo que se desfecha quase sem querer, mesmo contra objetos inanimados que nos causaram

dano” (p.126) e é fruto do medo e de um impulso de autoconservação. O segundo consiste na intenção

de fazer o mal ao agressor, sem nenhuma consideração à própria proteção que é, inclusive, colocada

em risco (p. 127) e é fruto de um desejo de restauração da honra. Quando Nietzsche associa a vingança

à pena, toma a vingança nesses dois sentidos: “Há também nela, indubitavelmente, aquele outro

elemento da vingança descrito em primeiro lugar, na medida em que graças a ela a sociedade serve à

sua autoconservação e desfere um contragolpe em legítima defesa. A pena quer impedir um novo

dano, quer intimidar. Dessa maneira, “ambos elementos tão diferentes da vingança estão efetivamente

vinculados na pena, e isto pode ser, talvez, o que mais atua no sentido de entreter aquela mencionada

confusão de conceitos, em virtude da qual o indivíduo que se vinga costuma não saber o que quer

propriamente” (p. 128). Não considero que esse outro sentido (o de autodefesa) possa ser de fato

nomeado de vingança e, como já ficou claro ao longo desse trabalho, discordo de que a pena tenha

essa segunda finalidade. 288

Émile Durkheim. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 61. 289

Émile Durkheim. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 61/62. 290

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 28.

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163

precisamos disfarçar a vingança, como os chukchi e nem abrir mão dela, como os

aweti. A sociedade moderna ousa permitir a violência, pois confia no poder

acachapante das instituições judiciárias. Por deter o monopólio da reação ele pode

sem medo pontualizar a violência, identificando o agressor e sobre ele lançando a sua

própria violência em caráter definitivo.

Embora não haja uma diferença de princípio entre vingança pessoal e

pública, essa diferença é enorme no plano social: a vingança não é mais

vingada, o processo termina, o perigo de escalada é afastado. 291

Em suma, justamente porque é forte o suficiente, a pena judicial pode abater-

se sem medo, como a última palavra em matéria de vingança.

Somente o sistema judiciário não hesita em golpear frontalmente a

violência, pois possui um monopólio absoluto da vingança. Graças a esse

monopólio, ele consegue, normalmente, abafar a vingança ao invés de

exasperá-la, ao invés de alastrá-la e de multiplicá-la, o que esse mesmo

tipo de conduta inevitavelmente provocaria em uma sociedade

primitiva.292

Portanto, não há como obliterar o embaraçoso vínculo ou, no mínimo, a

origem comum, entre o asséptico poder judiciário do século XXI e a vingança

sanguinolenta. Negá-lo significaria afirmar que: a) ou bem a premissa relativa à

violência essencial está incorreta e a função do sacrifício e dos complexos

procedimentos vindicativos não passou de um traço exótico e superficial de

determinadas culturas ingênuas e supersticiosas e por isso ele pode desaparecer sem

deixar vestígios quando a humanidade atingir um novo limiar de iluminação; b) ou

bem a civilização teria conseguido expurgar ou ao menos recalcar nos homens, com

incrível sucesso, a violência essencial, de forma que a partir de então os mecanismos

vitimários, os ritos sacrificiais e a vingança tornaram-se desnecessários para esse

novo homem bom; c) ou bem tais mecanismos continuaram sendo necessários mas

foram, ou devem ser, substituídos por outras instâncias, que não o poder judiciário.

291

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 28. 292

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 36

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164

Nenhuma dessas três hipóteses encontra lastro no que foi exposto até o momento e as

duas últimas ainda parecem claramente incongruentes com a realidade observável.

Sob a capa da justiça é a vingança que vive. Mas ocorreu que ela ajustou-se

com tal perfeição ao corpo da vingança que acabou por revelar suas formas. É então

substituída ou recoberta por um segundo traje, esse mais largo e moderno, a ideia de

prevenção com mil e uma utilidades: prevenção geral, especial, negativa, positiva.

Com isso o disfarce se completa. Mas ainda é possível ver o que está por baixo.

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165

CAPÍTULO 4: NÊMESIS 293

De todo o exposto nos capítulos antecedentes, podem ser extraídas até agora

as seguintes conclusões:

i) função do Direito Penal não é precipuamente preventiva, salvo na medida

em que certo efeito preventivo é inerente à vingança, privada ou pública.

ii) a função do Direito Penal é a realização da vingança. A função vindicativa

não se perdeu com o sistema judiciário, pelo contrário, ela aprimorou-se, na medida

em que passou a consagrar o princípio da culpabilidade, que não é respeitado no

sistema sacrificial e nem no sistema vindicativo privado. Nesse sentido, o sistema

judiciário é um ganho, não porque tenha se libertado da vingança, mas porque a

realiza mais perfeitamente.

No Capitulo Um desse trabalho afirmei entender ser necessário manter a

distinção entre função e finalidade. Mas também explicitei porque penso que tais

categorias ou mundos, embora inconfundíveis, precisam comunicar-se, e que é esse

encontro que pode fertilizar conclusões concretas e profícuas.

Dessa forma, a partir do que é (ou não é) a sua função a finalidade (valorativa

/ axiológica) possível e adequada do Direito Penal, porque a única compatível com

essa função, deve ser realizar a vingança de modo que essa realização não corra o

risco em converter-se em violência bruta, não corra o risco de deflagrar a crise

mimética.

É muito provável que a chance de se defrontar com a vingança do ofendido ou

de seus familiares exerça algum papel dissuasório, tal como a pena pode fazê-lo 294.

293

“As Nêmesis representavam a justiça retributiva e eram incumbidas do restabelecimento do

equilíbrio violado pela prática do crime” Maria Zélia de Alvarenga e Oswaldo Henrique Duek

Marques. “ O direito de morrer a própria morte”. In: Revista Jurídica da Escola Superior do

Ministério Público. São Paulo: nº 01, p. 44. 294

Jackeline Sinhoretto debruça-se sobre o estudo de episódios de linchamento levados a cabo na

década de 80, na cidade de São Paulo e relata inúmeros casos em que esse efeito e sensível, dos quais

tomarei um como exemplo: “Em Mauá, a oposição entre moradores e bandidos também foi enunciada.

Ali o linchamento ocorreu porque houve um estupro seguido de morte que muito chocou os habitantes.

A autoria do estupro foi atribuída a dois homens habitantes do local, que eram considerados bandidos.

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166

Esse é, por assim dizer, um possível efeito, eventual, colateral e certamente bem-

vindo, quando efetivamente ocorrer. Mas se, para quem a sente ou teme, a

possibilidade de vingança pode ter algum efeito dissuasório, esse não é o motivo da

vingança para quem a pratica 295. Quem se vinga não o faz para proteger-se, mas pelo

contrário, fá-lo a despeito do risco ao qual se expõe com sua atitude, como bem nota

NIETZSCHE, no “segundo volume” de Humano, demasiado humano:

É preciso tempo, quando se passa, em pensamento, de si ao adversário e

se pergunta de que maneira ele pode ser atingido mais dolorosamente.

Isto ocorre na segunda espécie de vingança: uma meditação sobre a

vulnerabilidade do outro e sua aptidão ao sofrimento é sua

pressuposição: quer-se fazer mal. Em contrapartida, garantir-se contra

novos danos está aqui tão pouco no círculo de visão daquele que toma

vingança que ele quase em regra atrai sobre si o novo dano próprio e

muito frequentemente o prevê e encara com sangue-frio. (...) Se na

A saída do enterro da moca vitimada, seus parentes e amigos formaram um grupo que foi as casas dos

dois bandidos e os linchou na presença de seus familiares. Isso foi em 1989, mas ate hoje os outros

moradores não sabem ao certo se os homens linchados cometerem mesmo ou não o estupro pelo qual

morreram. Mas acrescentam que ele cometeram outros crimes, razão suficientes para terem sido

presumidos como estupradores. Os moradores argumentam que, após o linchamento, o bairro nunca

mais teve problemas com os bandidos, porque esses agora tem medo dos moradores.” Jackeline

Sinhoretto. Os Justiçadores e sua Justiça – linchamentos, costume e conflito. São Paulo: IBCCRIM,

2002, p. 21) 295

Em sentido contrário, aproximando vingança e defesa (chamaríamos hoje de prevenção) é

importante mencionar a posição de Durkheim: “Com efeito, é um erro acreditar que a vingança seja

apenas uma inútil crueldade. É bem possível que ela mesma consista numa reação mecânica e sem fim,

num movimento passional e ininteligente, numa necessidade irracional de destruir; mas, de fato, o que

ela tende a destruir era para nós uma ameaça. Ela constitui, portanto, na realidade, um verdadeiro ato

de defesa, se bem que instintivo e irrefletido. Nós só nos vingamos daquilo que nos fez mal, e o que

nos fez mal é sempre um perigo. O instinto de vingança é em suma o instinto de conservação

exasperado pelo perigo. Assim, não é preciso que a vingança tenha tido na história da humanidade o

papel negativo e estéril que se lhe atribui. É uma arma defensiva que tem seu preço; unicamente, é

uma arma grosseira. Como ela não tem consciência dos serviços que presta automaticamente, não pode

regrar-se consequentemente; mas difunde-se um pouco ao acaso, à mercê das causas cegas que a

impelem e sem que nada modere sua exaltação. Hoje, como conhecemos mais o fim a atingir, sabemos

utilizar melhor os meios de que dispomos; protegemo-nos com mais método e, por conseguinte, mais

eficazmente. Mas, desde o princípio, o resultado era obtido, se bem que de uma maneira mais

imperfeita. Entre a pena de agora e a de antes não existe, pois, um abismo e, por conseguinte, não era

necessário que a primeira se tornasse outra coisa senão ela mesma para acomodar-se ao papel que

desempenha em nossas sociedades civilizadas. Toda diferença vem do fato de ela produzir seus efeitos

com mais consciência do que faz. Ora, embora a consciência individual ou social não seja desprovida

de influência sobre a realidade que ela ilumina, não tem o poder de mudar sua natureza. A estrutura

interna dos fenômenos permanece a mesma, sejam conscientes ou não. Podemos, pois, esperar que os

elementos essenciais da pena sejam os mesmos de antes”. Émile Durkheim. A divisão do trabalho

social. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 58/59. Não compartilho do entendimento Durkheim (nesse

ponto creio que a razão está com Nietzsche) quando coloca o instinto de defesa no centro do impulso

vindicativo, creio que faltam elementos mais consistentes, advindos talvez da psicologia, para

sustentar essa hipótese. Comungo inteiramente de sua percepção da proximidade entre vingança e

pena, mas como considero que a prevenção não está no centro da primeira, também não estará no da

segunda.

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167

primeira espécie de vingança era o medo do segundo golpe que tornava

o contragolpe tão forte quanto possível: aqui há quase total indiferença

diante daquilo que o adversário fará; a força do contragolpe é

determinada somente por aquilo que ele nos fez 296

.

Se a prevenção não está no centro da vingança, também não está no centro da

pena. O Direito Penal não tem função precipuamente preventiva e sua finalidade não

deve ser a prevenção. Suas raízes não estão na filosofia iluminista, nem na teoria

contratualista, nem na doutrina do bem jurídico. Ele é muito mais antigo e anterior a

tudo isso, e esses não são mais do que discursos que, num dado momento histórico,

pretenderem explicá-lo e justificá-lo. Sua gênese é a vingança ancestral, que sempre

existiu e não desapareceu com a civilização, tal como evidentemente não desapareceu

a própria agressividade.

A redução dos atos de violência, a prescrição e regulação de condutas, são

certamente o fim de toda a ordem jurídica, do direito civil, do direito administrativo e

de todos os outros ramos. Mas em relação a eles, o Direito Penal não tem natureza

acessória, secundária ou de reforço. Sua essência é substancialmente diversa, pois a

ordem que ele visa regular, a violência que ele visa disciplinar, é a violência da

vingança. Nisso consiste a sua especificidade.

A primeira consequência disso é que todas as estratégias de minimização dos

atos de violência devem ser pensadas independentemente da atuação do Direito

Penal. Nos programas de política de segurança o Direito Penal não deveria constar

sequer como ultima ratio, salvo em um pequeno e último capítulo dedicado às

estratégias alternativas à vingança privada.

296

Friedrich Nietzsche. “Humano, demasiado humano – segundo volume.” In: Obras incompletas. São

Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 127. Nietzsche faz, linhas antes no texto, uma distinção entre dois

“tipos” de vingança: o primeiro, a reação imediata à injuria, impulsionada pelo instinto de

autoconservação e pelo objetivo de fazer cessar o agravo. E o segundo, de que trata do desejo,

posterior ao agravo, de fazer mal ao agressor. Considero que apenas essa ultima situação deva ser

designada estritamente de vingança.

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168

A segunda consequência é que, para conformar-se a essa finalidade, realizar a

vingança sem converter-se em violência selvagem, o Direito Penal deve apresentar-se

de determinado modo, que irei expor a seguir.

Mas creio que primeiro é preciso tomar partido a respeito de um ponto

anterior. É preciso nesse momento enfrentar o desafio das posturas abolicionistas.

Isso porque, uma vez recusada qualquer função diretamente preventiva da pena, uma

vez que se reconheça o seu papel essencialmente vindicativo, uma vez que a vingança

é considerada pela quase totalidade do pensamento moderno como uma motivação

moralmente censurável e juridicamente ilegítima 297 (seja por ser francamente imoral,

seja por ser moralmente neutra mas irracional) seria a abolição do Direito Penal a

conclusão razoável? Revelar a vingança que jaz sob a base do Direito Penal é retirar-

lhe qualquer possibilidade de legitimidade política? Deve ser abolido o sistema

jurídico penal?

1. O desafio das teorias negativas

1.1. A proposta abolicionista

FERRAJOLI define como abolicionistas

as doutrinas axiológicas que acusam o direito penal de ilegítimo, ou

porque moralmente não admitem nenhum tipo de objetivo como capaz de

justificar as aflições que o mesmo impõe, ou porque consideram vantajosa

a abolição da forma jurídico-penal da sanção punitiva e a sua substituição

por meios pedagógicos ou instrumentos de controle de tipo informal e

imediatamente social.298

Partindo da mesma definição, pergunta-se: é defensável a proposta

abolicionista?

297

Veja-se, a respeito, o profundo estudo de Mariano Ruiz Funes, intitulado Actualidad de la

Venganza. Buenos Aires: Losada, 1943. 298

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 231.

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169

Antes de tudo, é preciso lembrar que, tal como demonstrado no capítulo

anterior, as comunidades humanas sempre estiveram às voltas com a questão da

agressividade. E que os meios de contenção da agressividade sempre estiveram

imbuídos de alguma dose de violência.

É bem verdade que nas linhas antecedentes afastou-se o mito da barbárie

selvagem, um mito criado pelo colonizador civilizado de forma a enaltecer e valorizar

a função supostamente essencial do Estado na pacificação social. Como se viu, nas

sociedades primitivas, mesmo sem Estado, a violência não é descontrolada. Nelas, os

meios efetivamente preventivos tem papel fundamental, operando um deslocamento

da agressividade intergrupal – para um inimigo externo (guerra) ou para um alvo

estéril (vitima sacrificial) – o que propicia um alívio da pressão interna. Quando a

agressão, a despeito de tudo, eclode, a vingança privada é acionada, mas somente nos

casos mais graves e incontornáveis, quando impossível a solução negociada ou a

simples indiferença. Não é certamente o cenário de guerra de todos contra todos que

os europeus, intencionalmente ou não, tanto cultivaram.

Dessa forma, é um erro dizer que o Direito Penal constitui a única estratégia

viável para o problema da agressividade, dado que inúmeras sociedades prescindem

dele sem a contrapartida do caos, da desagregação ou da autodestruição. Por outro

lado, é inegável que a enorme distância que separam as sociedades modernas e as

primitivas torna impraticável a transposição automática daqueles modelos.

É pouco provável que alguém se sinta inclinado a defender – explicitamente –

a retomada do sacrifício humano ou animal e da guerra externa como estratégias de

redução das tensões internas.

Ademais, mesmo quando empregados com eficiência, tais métodos não

evitam por completo a agressão. Quando ela acontece, são ativados os métodos

curativos, a negociação e a vingança privada.

É duvidoso o potencial pacificador das negociações (em matéria criminal) em

um sociedade complexa como a nossa. A capacidade de negociação, composição e

perdão funda-se sobre uma identidade entre os envolvidos que, em grande medida,

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170

perdeu-se. A proximidade e a identidade entre agressor e agredido são essenciais para

o processo de pacificação pela via negocial. Os dados etnográficos comprovam essa

relação direta:

Limitado em seu desenvolvimento, o recurso à violência é de todo modo

vedado todas as vezes que conduziria ao enfrentamento entre membros do

mesmo clã. Em compensação, sua probabilidade cresce à medida que vai

aumentando a distância social entre os protagonistas. No estado atual das

pesquisas, essa regra de distância social parece universal: não se vinga

quando a identidade é forte. Pois o objetivo da vingança é restabelecer a

igualdade perdida em favor do campo adverso. Se atinge um parente

próximo, funciona em sentido inverso, enfraquecendo o grupo. 299

É fácil perceber as dificuldades dessa dinâmica de solução de conflitos em

uma sociedade moderna em que, como regra geral, o gigantismo dos agrupamentos

tem como contrapartida um profundo e arraigado individualismo e extrema

competitividade. Na exata apreciação de ROULAND:

A busca do consenso não é, de fato, conforme os valores das sociedades

ocidentais modernas, dominadas pela ideologia do individualismo e da

competição. A mediação, a conciliação, para obter êxito, pressupõe certa

afinidade de vida, a partilha dos mesmos objetivos. É por isso que o

“modelo etnológico” da ordem negociada se encontra mais facilmente nas

sociedades elementares, as que são menos divididas. Nessas sociedades do

frente-a-frente, o julgamento contencioso é inexistente, ou restrito a um

procedimento de último recurso: consiste então no ostracismo do

indivíduo considerado irrecuperável. As coisas mudam quando, por razões

diversas, inicia-se o processo de aumento da complexidade maximizado

pelas sociedades modernas. O crescimento da densidade social e

demográfica favorece a multiplicação dos conflitos. Estes mudam

igualmente de natureza: levado de um lado para outro pela mobilidade

geográfica, despojado das solidariedades de que o cercam nas sociedades

tradicionais, o indivíduo pode achar-se confrontado com poderosos grupos

econômicos, com o Estado, com empresas nacionalizadas, diante das quais

tem muito pouca defesa. O aumento do tamanho das unidades sociais (a

vida na aldeia é diferente daquela que se leva em uma megalópole; as

relações de trabalho não são as mesmas em uma oficina artesanal e em

299

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 122.

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171

uma multinacional) acarreta a diminuição das relações frente-a-frente ao

passo que se firma o individualismo. A diferenciação social se aprofunda

com os distanciamentos econômicos e com a especialização do poder

político. Nessas condições, a manutenção de uma comunidade de vida e

de valores fica difícil, e o recurso às técnicas de ordem negociada, ainda

mais trabalhoso.300

Dessa forma resta a vingança privada. Em relação a ela, o Direito Penal

parece ser uma opção melhor. Primeiro porque, obedecendo aos princípios da

materialidade e culpabilidade, ele atende mais perfeitamente à própria lógica da

vingança do que uma vendetta que autoriza o uso da violência até a terceira ou quarta

geração, permite que ela recaia sobre quem não causou de forma alguma o dano e de

modo muitas vezes desmedido e exacerbado. Além disso, a vingança pública afasta

com mais eficiência o risco de escalada, trata-se de uma vingança com menos risco

de ser vingada, sobretudo quando recoberta pelo manto da justiça.

Em oposição à alternativa da vingança privada (já que a solução negocial dos

conflitos ou daquelas mais graves ao menos parece extremamente dificultada no

contexto moderno) o Direito Penal configura-se como um avanço. Como exemplo

concreto disso é possível meditar sobre a solução dos conflitos internacionais, em que

não há instancia punitiva central.

Trata-se de uma profícua experiência olhar para esse ramo do direito que

revela, de alguma forma, algo do passado no tempo presente. Como afirma KAI

AMBOS “a comunidade internacional se encontra hoje onde o Estado-Nação se

encontrava quando nasceu” 301 de forma que observar o surgimento do Direito Penal

internacional é como poder retomar de alguma forma o surgimento do próprio Direito

Penal.

O Direito Penal internacional explicita, por um lado, mais claramente do que

o faz o direito doméstico, a relação entre pena e vingança. As finalidades de

300

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2008, 150-151. 301

Kai Ambos. Castigo sin soberano? Ius puniendi y función del derecho penal internacional. Bogotá:

Universidad Externado de Colombia, 2013, p. 22.

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172

prevenção especial são, nessa área, inteiramente inadequadas. Restaria pedir socorro

às teorias da prevenção geral, conforme as palavras de KAI AMBOS:

Enquanto as legislações penais nacionais pretendem ter um impacto

equivalente sobre os indivíduos e a sociedade em geral, o DPI -

considerando as características especiais dos criminosos e seus crimes –

serve à finalidade de criar uma consciência jurídica universal, no sentido

de prevenção positiva geral e de integração, pedindo a reconciliação, ou

no sentido de "expressivism" com vista para a função comunicativa da

pena. Ao mesmo tempo, pode-se manter a esperança de um efeito de

prevenção geral negativa da pena internacional, quer dizer, a dissuasão

geral (apesar da falta de apoio empírico a essa esperança). 302

Tal socorro, no entanto, também fracassa. Ressalvadas já todas as criticas

éticas a elas dirigidas, a funcionalidade das teorias da prevenção geral no caso

específico do Direito Penal internacional parece indefensável, a despeito da

argumentação de AMBOS. Quanto à teoria da prevenção geral negativa, é mais do

que duvidoso que, “considerando as características especiais dos criminosos e de seus

crimes” 303, os potenciais genocidas sintam-se intimidados e abstenham-se de seus

atos atrozes por temor à eventual imposição de pena. Quanto à prevenção especial

positiva custa crer que seja necessário o recurso ao Direito Penal para incutir na

comunidade internacional o sentimento de horror e aversão aos crimes contra a

humanidade ou para reforçar os valores humanitários básicos que lhes são contrários.

De forma que, em ambos os casos, a prevenção geral é inútil: no primeiro, por ser

ineficaz, no segundo, por ser supérflua.

A respeito das razões materiais do Direito Penal Internacional oferecidas pela

própria Corte Interamericana de Direitos Humanos 304 SILVA SÁNCHEZ

agudamente observa:

302

Kai Ambos. Castigo sin soberano? Ius puniendi y función del derecho penal internacional. Bogotá:

Universidad Externado de Colombia, 2013, p. 197. (Tradução livre). 303

Kai Ambos. Castigo sin soberano? Ius puniendi y función del derecho penal internacional. Bogotá:

Universidad Externado de Colombia, 2013, p. 197. (Tradução livre.) 304

Tome-se como exemplo a argumentação acolhida na sentença no “Caso Gomes Lund” em que se

reconheceu que a lei de anistia brasileira é incompativel com a Convenção Americana uma vez que

afeta o direito as vitimas a que se identifique e julgue os individuos responsaveis por matar ou ferir a

seus familiares, afeta, em suma, o direito das vítimas à justiça e conduz à impunidade.

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173

O que primeiro chama a atenção na linha argumentativa anterior é a

ausência de qualquer consideração de prevenção geral negativa ou

positiva. Nem a dissuasão de autores potenciais e nem a confiança das

vitimas potenciais são objeto de consideração. O dever de castigar – o

rechaço à impunidade – se afirma a partir dos direitos das vítimas “atuais”

ou “efetivas”. A questão é se, então, nesses casos deve falar-se de uma

fundamentação retributiva do castigo. 305

SILVA SÁNCHEZ termina por concluir que colocar um suposto direito da

vitima à reprovação do autor no centro da justificação da pena não constitui nem uma

teoria preventiva (voltada ao passado) e nem tampouco uma teoria retributiva

(voltada ao passado), mas uma teoria reparadora (voltada ao presente) destinada a

fazer cessar a situação de dominação e humilhação de que a vitima quedou presa

desde a ocorrência do fato. Mas, sendo assim, embora se explique a necessidade de

reprovação publica, não se justifica a imposição efetiva de pena, a dor penal.

E, ainda que se reconhecesse um caráter efetivamente retributivo, mesmo

assim a explicação não estaria inteiramente satisfeita. Além de permanecer como

sempre irrespondida a pergunta “porque retribuir?”, o fato é a própria ideia isolada de

retribuição vacila quando depara tragédias dessa magnitude: tal como as condutas

demasiadamente leves, essas, pela sua inconcebível gravidade, quedam fora de

qualquer possibilidade de retribuição penal em sentido estrito: como retribuir o

holocausto?

Por tudo isso considero que apenas a ideia de vingança (travestida, como de

hábito, de justiça) com tudo o que há de irremediavelmente irracional nela, pode

fornecer de modo honesto uma explicação para a pena nesse contexto. Como escreve

SILVA SÁNCHEZ “é difícil não ver nele (no argumento do direito das vitimas à

justiça) a pretensão de racionalizar (ou encobrir) o puro desejo de vingança” 306.

305

Jesús-María Silva Sánchez. “Nullun crimen sina poena? Sobre na doctrinas penales de la lucha

contra la impunidad y del derecho de la víctima al castigo del autor.” In: M.a Nieves Martinez

Francisco e Claudia Miranda de Avena (coord). Víctima, Prevención del delito y Trataminento del

delinquente. Granada: Comaris, 2009, p. 28. 306

Jesús-María Silva Sánchez. “Nullun crimen sina poena? Sobre na doctrinas penales de la lucha

contra la impunidad y del derecho de la víctima al castigo del autor.” In: M.a Nieves Martinez

Francisco e Claudia Miranda de Avena (coord). Víctima, Prevención del delito y Trataminento del

delinquente. Granada: Comaris, 2009, p. 30.

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174

Ainda assim o Direito Penal internacional é considerado, ao menos por uma

parcela significativa da doutrina e da comunidade jurídica e política internacional,

como um avanço, não em relação à decantada impunidade, mas sim às formas de

reação completamente informais ou parcialmente informais (tribunais de exceção,

ausência de definição típica das condutas puníveis etc.) e custosos esforços são

empreendidos para sua implementação.

Em Razones Jurídicas del Pacifismo 307 FERRAJOLI cuida da questão da

guerra e investiga, sobre a base de episódios da história recente (a guerra do golfo, a

guerra dos Bálcãs e a guerra do Afeganistão – guerras travadas como resposta ou

represália a violações aos direitos humanos) a viabilidade de uma guerra justa

(parâmetro moral) ou legitima (parâmetro jurídico). Tradicionalmente as

circunstancias que se consideravam justificadoras da guerra eram a reparação e a

sanção. No entanto:

O paradigma da guerra como sanção ou reparação é inteiramente

inutilizável. Antes de tudo, porque a guerra atual, ao golpear

inevitavelmente também as populações civis, converte-se em uma sanção

inflingida a inocentes, em contraste com o elementar principio da

responsabilidade pessoal e da exclusão da responsabilidade por fatos

alheios. Em segundo lugar, porque a guerra tornou-se desmesurada e

incontrolável, sujeita inevitavelmente a escalada ate a destruição do

adversário e como tal, desproporcional a qualquer violação. 308

De modo que a guerra é sempre injusta. E, ainda que, como outrora, não

houvesse nenhuma vedação jurídica ao seu emprego (o que, hoje, não é verdade)

seria ainda sim ilegítima, pois a própria natureza da guerra é contrária à do direito.

O direito só pode aspirar a ser um instrumento civilizador na medida em

que seja capaz de dar uma resposta assimétrica à violência. Por isso

pretender usar a guerra para combater o terrorismo e outras violações

graves de direitos humanos comporta uma renúncia a toda pretensão

307

Luigi Ferrajoli. Razones Jurídicas del Pacifismo. Madrid: Trotta, 2004. 308

Luigi Ferrajoli. Razones Jurídicas del Pacifismo. Madrid: Trotta, 2004, p. 31.

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175

pacificadora por parte do direito, quando não sua degradação a ilegítimo

instrumento de terror e arbitrariedade. 309

Mas, se a guerra não pode ser utilizada de forma justa ou legitima como

resposta aos atos de agressão, qual a alternativa? Para FERRAJOLI a alternativa é a

articulação de um Direito Penal internacional “mínimo”, capaz de impedir a

“violência selvagem” de todos contra todos através do uso regulado da força. 310 Ou

seja, o caminho da racionalidade, no âmbito internacional, é no sentido da criação de

um sistema penal (mínimo, diga-se, como deveria sê-lo o doméstico) e não no sentido

contrário. Comentando a criação do Tribunal Penal Internacional FERRAJOLI

escreve:

Entende-se a importância histórica de um acontecimento assim. Com

efeito, do nascimento de uma jurisdição penal internacional dependem

tanto a passagem da sociedade internacional do estado de natureza ao

estado civil, como a natureza jurídica mesma do direito internacional.

Podemos recordar do mito de Orestes celebrado em As Eumenides de

Esquilo: o direito nasce quando Atenas põe fim a espiral da vingança de

sangue, estabelece o tribunal de Areópago para julgar os delitos, e se passa

assim da justiça domestica para a justiça das cidades. A soberania dos

Estados, que é a expressão de sua impunidade na comissão de crimes

contra a humanidade constitui em definitivo o equivalente internacional da

liberdade selvagem hobbesiana do homo homini lúpus. 311

Portanto, olhando para o passado (sociedades primitivas sem direito penal

mas com outros meios de articulação da violência, com grande ênfase nos meios

preventivos e nas composições e espaço residual destinado à vingança privada) e

olhando para o futuro (em direção aos esforços para a construção de um sistema

penal internacional) creio ser possível afirmar que o Direito Penal não deve ser

inteiramente abolido nas sociedades modernas.

309

Geraldo Pisarello e Antonio Cabo. “Guerra y Derecho – el pacifismo jurídico de Luigi Ferrajoli”

In: Miguel Carbonell e Pedro Salazar. Garantismo – estúdio sobre el pensamento jurídico de Luigi

Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 484. 310

Geraldo Pisarello e Antonio Cabo. “Guerra y Derecho – el pacifismo jurídico de Luigi Ferrajoli”

In: Miguel Carbonell e Pedro Salazar. Garantismo – estúdio sobre el pensamento jurídico de Luigi

Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 484. 311

Luigi Ferrajoli. Razones Jurídicas del Pacifismo. Madrid: Trotta, 2004, p. 118.

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176

Trata-se, é claro, de uma afirmação que não pode ser elaborada de maneira

peremptória. Julgo ser impossível assegurar com grau absoluto de certeza se o Direito

Penal pode ou deve ser dispensado. Uma asserção dessa espécie exigiria no mínimo

que se comparassem duas sociedades análogas, uma sem e outra com Direito Penal e

que se medissem os custos e benefícios em cada uma delas. Isso logicamente não

pode ser feito, na medida em que não há nenhuma sociedade moderna que possa

servir de parâmetro para essa comparação, pois não há nenhuma que tenha abdicado

de forma radical e completa do Direito Penal. E é evidentemente inviável estabelecer

uma comparação direta entre a nossa sociedade e as sociedades primitivas, embora

essa investigação sirva para demonstrar que o Direito Penal não é necessário sempre,

ou seja, em qualquer modelo de organização social.

Mas, pelos argumentos já expostos, e exclusivamente em relação à nossa

sociedade tal como é hoje configurada, creio não assistir razão às propostas

abolicionistas radicais e, nesse ponto, adiro ao entendimento de FERRAJOLI no

sentido de que, nesse contexto, a abolição do sistema penal constitui uma utopia e ao

mesmo tempo um retrocesso, que poderia conduzir à exacerbação dos traços mais

daninhos da estrutura social moderna: por um lado a abstenção do Estado como

mediador da violência entre particulares e da regulação das forças sociais e o

consequente uso irrefreável do poder dos mais fortes sobre os mais fracos

(exacerbação do Estado liberal – uma nova versão da sociedade selvagem em que, na

guerra de todos contra todos, vence o mais rico); por outro a intromissão massiva do

Estado sob a forma dos controles disciplinares prévios, invasivos e generalizados

(exacerbação do Estado policial – sociedade disciplinar) 312.

1.2. Teoria agnóstica - ZAFFARONI

A denominada teoria agnóstica adere, grosso modo, ao ponto de vista

abolicionista mas acresce a ele, em tom de resignação, uma constatação empírica: o

sistema penal não será abolido (embora devesse sê-lo), ao menos em um futuro

próximo. E nesse contexto, em que o “sistema penal” existe como fato social

312

Luigi Ferrajoli. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3a ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 234.

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177

expressivo de mero exercício da força, sem nenhuma virtude ou utilidade, o Direito

Penal apresenta uma única virtude útil: restringir e limitar do “sistema penal”

A teoria agnóstica, portanto, recusa à pena qualquer valor e dessa forma nega-

lhe qualquer fundamento jurídico legítimo. Como explica ZAFFARONI “um

conceito negativo ou agnóstico de pena significa que ela fica reduzida a um mero ato

de poder.” 313 De forma mais direta, para ele não há algo como um direito de punir

(jus puniendi): o fato (inquestionável) da punição consiste no exercício de um poder

político, há portanto somente um poder de punir (potestas puniendi). A pena constitui

assim um instituto pertencente à política e ao poder, não ao Direito. Podem ser

compreendidas (antropológica e sociologicamente) as razões pelas quais o Estado

moderno arroga-se e exerce esse poder, sem no entanto com isso reconhecer-se uma

razão jurídica para tanto. A pena é assim um fenômeno extrajurídico e assemelha-se à

guerra. 314

O poder punitivo, como estratégia de seleção e dominação, não visa produzir

qualquer efeito benéfico, não visa proteger nada, não visa tutelar bens jurídicos, não

visa resguardar ninguém, nem mesmo a própria vítima do delito, mas ao contrário, o

poder punitivo confisca a tutela da vítima e a abandona em um conflito sem

solução.315

Por outro lado, como fenômeno real que é o poder punitivo não pode ser

simplesmente descartado ou desconsiderado, e o papel do direito, portanto, é limitar o

seu exercício.

A teoria agnóstica é dessa forma alicerçada sobre os seguintes pressupostos:

(a) a pena possui um fundamento e legitimação políticos e não jurídicos, é exercício

de um poder do Estado (potestas puniendi) e não de um direito (jus puniendi), de

forma que a relação entre pena e Direito Penal é de deslegitimação, restrição e

controle, não de justificação e fundamentação; (b) a pena exerce a função de controle

social coativo contra os dissidentes, monopolizado pelo Estado; (c) a pena é um

313

Eugenio Raul Zaffaroni. Derecho Penal Parte General. 2a. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 51.

314 Eugenio Raul Zaffaroni. Derecho Penal Parte General. 2

a. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 52.

315 Eugenio Raul Zaffaroni. Derecho Penal Parte General. 2

a. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 53.

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178

instituto irrenunciável para a sociedades atuais; (d) em face dos pressupostos

anteriores o fenômeno da pena tende ao excesso e precisa ser contido. 316

Por tudo isso, justo porque a pena em si não tem nenhuma finalidade legitima,

é que o Direito Penal (e, em particular o modelo agnóstico de Direito Penal proposto)

tem como única finalidade legítima limitar a pena. Dito de outra forma, a teoria

agnóstica não é propriamente uma teoria da pena, mas uma teoria do Direito Penal

teleologicamente orientada à finalidade de limitar o poder punitivo. O Direito Penal

tutela os bem jurídicos de todos os habitantes na medida em que neutraliza a ameaça

dos elementos do Estado de polícia contidos pelo Estado de Direito. 317 Dito de outra

forma, o Direito Penal não protege através da pena, ele protege contra a pena.

Como já tive oportunidade de expor, embora concorde com a necessidade de

limitação e drástica redução do Direito Penal (por razões que se tornarão mais claras

a seguir) discordo da própria premissa abolicionista, que subjaz também à teoria

agnóstica e que vê virtude no Direito Penal (enquanto prática de controle) mas não no

Sistema Penal (enquanto prática punitiva). Entendo, pelos motivos já fartamente

debatidos, que o sistema penal, enquanto prática punitiva é, ou ao menos deveria ser,

virtuoso ao constituir uma forma de violência melhor do que a vingança privada.

2. A moderna cultura da violência

Posto que se admita a legitimidade política e jurídica da pena, é importante

entender, mesmo que apenas com traços largos, que modelo ela deve seguir para

atender àquela finalidade: realizar a vingança de modo a evitar o incremento da

violência e a deflagração da crise mimética.

Como já se viu, a premissa teórica que orienta esse trabalho é a existência de

uma relação de parentesco e de continuidade entre todas as formas que as sociedades

humanas já conceberam de gerir a violência. A análise arqueológica permite, como

escreve FOUCAULT, “primeiramente, descobrir essas continuidades obscuras em

316

Salo de Carvalho. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 147-149. 317

Eugenio Raul Zaffaroni. Derecho Penal Parte General. 2a. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 53.

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179

nós incorporadas e, partindo do estudo de sua formação, poderíamos, em segundo

lugar, constatar a utilidade que tiveram e a utilidade que tem ainda hoje” 318. Perceber

essas relação e aprender, por assim dizer, com os erros e acertos do passado,

identificar quais os elementos permanentes e que devem existir em todas essas

estratégias e quais os elementos contingentes que devem ser abandonados é a forma

de reencontrar, na essência da pena, seus limites.

Embora, a meu ver, o direito seja uma evolução em relação ao sacrifício e à

vendetta, ele pode perder-se e degenerar se esquecer de suas origens, se passar a

acreditar no mito que criou para si mesmo e que sonega sua natureza violenta.

Embora não se possa (e nem se deva) retroceder ao passado, é preciso aprender com

o ele e tomar das sociedades primitivas lições de prudência e respeito que a

civilização parece recusar-se enxergar. Por outro lado, é preciso abandonar as práticas

primitivas que se infiltram clandestinamente na modernidade, aproveitando-se da sua

excepcional invisibilidade, justamente porque a maioria nega-se a vê-las. O resultado

dessa dupla cegueira está bem diante dos olhos: um Direito Penal maximizado e

violento, que toma para si incumbências de controle social e política pública (na

melhor das hipóteses) ou de simples dominação e poder (na pior); inchado, agressivo

e arrogante.

Para empreender essa análise e contextualizar o Direito Penal no quadro mais

amplo das estratégias de gestão da agressividade, partirei da mesma estrutura que

empreguei no capítulo anterior e que distingue meios preventivos e curativos de lidar

com a questão da violência.

2.1 Meios preventivos

Como visto, nas sociedades primitivas a precariedade dos meios curativos,

colocava a ênfase nos meios preventivos (rigidez dos costumes, ritos sacrificiais,

espírito bélico) de forma que os atos de agressão intergrupal são raros. Essa asserção

permite uma pequena digressão lógica curiosa: até que ponto o desenvolvimento de

meios curativos aparentemente confiáveis não provocou um deslocamento em sentido

318

Michel Foucault. A verdade e as Formas Jurídicas. 3a ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p.

156.

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180

inverso? Ou seja, em que medida o desenvolvimento de instâncias punitivas estatais

não propiciou uma liberdade aos impulsos agressivos que antes eram contidos ou

desviados? Se fosse possível responder com segurança a essa pergunta concluiríamos

que o Direito Penal é ontologicamente criminógeno, não só no sentido de que a

sociedade “judicializada” tem mais crimes (o que é óbvio) mas também de que tem

uma maior quantidade de atos de agressão.

Não creio que seja possível ir tão longe. Os motivos da violência são tão

diversificados que seria insustentável atribuir a ocorrência de atos de violência à

simples existência da instância judiciária penal. Mas é possível notar empiricamente

que, ao menos na nossa específica sociedade (brasileira, atual), dá-se realmente esse

perverso deslocamento, o esvaziamento do preventivo em prol do curativo, na

medida em que se atribui, quase que exclusivamente, ao Direito Penal a missão de

conter a violência e confia-se cegamente que ele possa fazê-lo.

Trata-se do início de um círculo vicioso já bem conhecido, mas que, a

despeito disso, não dá nenhum sinal de estar a caminho de romper-se:

Estas expectativas não podem ser cumpridas pelo direito penal, ou

somente de modo insuficiente; mas ante essa situação o sistema penal não

reage retirando os fundamentos sócio-tecnológicos mas mantendo-os. O

exemplo mais gráfico disso é uma política criminal simbólica e que –

contra a opinião dos especialistas que consideram que a agravação das

cominações penais não aumenta o efeito intimidatório, e que denunciam

os “déficits do sistema penitenciário” – consegue que o legislador

reconheça com rapidez na opinião pública uma “necessidade de atuação” e

que a satisfaça com prontidão. Mas essa ganância simbólica custa caro e

se paga com uma perda da credibilidade e da justiça do direito penal que,

de algum modo, defrauda a expectativa dos cidadãos. 319

Por isso, apesar de soar como uma obviedade, essa é uma lição que os

civilizados deveriam aprender com os primitivos, qual seja: perceber que a pressão

interna não vai deixar de explodir seguidamente salvo se for realmente aliviada,

319

Winfried Hassemer. Persona, Mundo y Responsabilidad – Bases para una teoria de la imputación

en Derecho Penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p 12. (Tradução livre)

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181

desconfiar tremendamente dos meios curativos e empenhar esforços nos meios

preventivos, caso desejem realmente proteger-se da violência.

Agora, nas sociedades primitivas esse “alívio da pressão interna” era obtido,

principalmente, através de uma canalização da violência através de meios que

desviavam o curso da agressividade para um alvo inócuo, notadamente, a prática da

guerra e os ritos sacrificiais. Evidentemente, tais métodos que constituem eles

próprios violência não são modernamente aceitáveis, embora a sua operacionalidade

ancestral e sua presença latente não possa ser negada. Aqui a tomada de consciência é

imprescindível justamente para que não se caia na tentação de reativá-los.

Não são poucas as situações modernas em que o engajamento bélico contra

uma inimigo externo (o inimigo é, por definição, externo) e o sacrifício foram

utilizados, muitas vezes em conjunto, para descomprimir tensões e mitigar crises

intestinas. Não há como deixar de pensar, nesse ponto, no fenômeno mais pungente

do século XX e que corresponde com horrenda exatidão àquele episódio fundador

narrado por GIRARD, a formação da unanimidade violenta à custa da perseguição e

destruição do bode expiatório.

A propensão da sociedade à eleição de vítimas expiatórias sobre as quais

possa derramar a violência circulante é (segundo as teses de FREUD e GIRARD

expostas no capítulo anterior) um fenômeno tão natural quanto a própria

agressividade. Já a elaboração dessa dinâmica em termos de sacrifício, acolhido como

estratégia de contenção dos impulsos agressivos intragrupais é um produto cultural.

Como fenômeno cultural incorporado à estrutura das sociedades primitivas, seu

sentido concreto era mediado por um anteparo simbólico, tanto é que historicamente

boa parte dos sacrifícios humanos foi substituída por sacrifícios animais (ainda que

simbolicamente adornados e tratados como seres humanos como que evidentemente

para representa-los), e em determinados casos, vegetais.

O desaparecimento do sacrifício como instituição cultural e a perda desse

sentido simbólico acarretou a regressão a uma realidade mais crua e selvagem do que

aquela das sociedades sacrificiais, como se retrocedêssemos a um estado pré-

sacrificial e ousássemos reproduzir não mais como um teatro (cuja origem, aliás, são

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182

os ritos sacrificiais) mas como vida ao vivo a lapidação do bode expiatório. Por isso

os episódios expiatórios modernos, a exemplo do paradigmático holocausto, excedem

muito em ferocidade os ritos sacrificiais primitivos.

O que deve ficar claro é que, ainda que se pudesse identificar, nesse sacrifício

gigantesco ou no espírito bélico ariano, qualquer ganho em termos de harmonia

interna ou coesão no seio da própria sociedade alemã, nem o genocídio do povo

judeu, nem a 2a guerra mundial poderiam considerar-se, sob qualquer ponto de vista,

justificados.

Conhecer a tendência ancestral e latente ao sacrifício expiatório e à guerra,

que, nas sociedades primitivas cumpriam um papel relevante de garantir a diminuição

da pressão interna e o estreitamento dos laços comunitários, é importante para

evitarem-se essas práticas. E é ainda mais importante saber reconhecê-las e evitá-las

quando surgem não de forma explícita, dramática e excepcional (como no exemplo

do holocausto), mas de modo subreptício, dissimulado e cotidiano. E o âmbito penal

é o terreno especialmente propício para isso. Propício porque tem para com aquelas

estratégias um parentesco inocultável e tal como elas habita não os cimos iluminados,

mas os vales escuros, a zona sombria e perigosa da sociedade, em que a violência

“má” encontra-se com a “boa” violência, com o seriíssimo risco de contaminação.

Por isso mesmo é nessa área que as práticas primitivas conseguem infiltrar-se com

grande facilidade. Em uma palavra, está claro que o Direito Penal pode facilmente

converter-se em uma guerra. E com igual facilidade pode converter-se em um

sacrifício expiatório.

São esses os dois principais perigos que cumpre ao Direito Penal evitar pois,

como já dito, nenhuma pacificação eventualmente alcançada desse jeito pode

modernamente justificar tais estratégias violentas.

Mas esses dois perigos são na verdade a expressão de um mesmo equívoco,

que é a fissura por onde se dá a infiltração espúria: sempre que se atribui ao Direito

Penal uma função preventiva (e se o distancia de sua função curativa) ele se aproxima

dos meios preventivos primitivos e se torna tendencialmente sacrificial e bélico. É em

nome da prevenção que se faz a guerra ao terror, a guerra ao tráfico, a guerra à

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corrupção e é em nome das necessidades preventivas ao fim e ao cabo

(impossibilidade de consolidação cognitiva das expectativas) que se erige todo o

emblemático Direito Penal do inimigo. É também em nome da prevenção que as

punições devem ser exemplares, que os réus devem ser expostos à execração pública

em um processo catártico de polarização da hostilidade abertamente sacrificial.

Retomarei esse ponto mais adiante quando tratar especificamente dos

lineamentos do sistema judiciário penal. Por hora, cumpre dizer que as sociedades

primitivas certamente eram sábias quando enfatizavam os métodos preventivos e

tentavam articular maneiras de evitar ao máximo a eclosão natural da violência,

aspecto que parece hoje quase que completamente negligenciado. Mas modernamente

não se pode conceber que a prevenção seja realizada daquela forma violenta. Isso, no

entanto, não há de ser empecilho para o engajamento em projeto ativamente

preventivo. Na sociedade atual, especificamente na brasileira, há uma lista bastante

longa de medidas preventivas não violentas que poderiam ser adotadas para o

desfazimento das tensões psicológicas e sociais (a começar pela evidente

minimização das gritantes desigualdades econômicas, mas indo muito além disso),

sobre a qual deveriam recair as atenções e os recursos em qualquer estratégia de

segurança pública. 320

2.2. Meios curativos

Nas sociedades primitivas após a prática de um ato de agressão, na ausência

da resposta automática institucionalizada há basicamente três vias de solução: a

indiferença, a composição ou a vingança.

Uma grande parte das desavenças interpessoais ou mesmo das violações às

regras sociais ou bem era relevada 321 ou tinha uma solução negocial. Apenas uma

pequena parcela, a dos atos gravíssimos, era suscetível de vingança.

320

Um estudo a respeito das estratégias extrapenais de prevenção, com aplicação específica ao caso

brasileiro consta do estudo de Ana Paula Zommer Sica em Prevenção Criminal – análise de políticas

extrapenais. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. 321

A respeito da quebra da exogamia totêmica do clã, considerado um crime sério entre os

trobriandeses, Malinowsky relata: “Depois de sondar a questão com maior profundidade e reunir a

informações concretas, verifiquei que a quebra da exogamia – no que diz respeito a relações sexuais e

não a casamentos – não é de modo algum uma ocorrência rara e que a opinião pública é

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184

Sendo um meio curativo, que age após a detonação da agressão, o Direito

Penal aproxima-se da vingança privada, guardando com ela uma relação de

continuidade ainda mais estreita do que em relação às demais estratégias.

Importa aqui abrir parênteses para um esclarecimento essencial: não pretendo,

nos limites desse trabalho, desenvolver uma explicação empírica e muito menos uma

justificação axiológica da vingança. A discussão a respeito de porque a vingança

existe e se ela deve ou não deve existir implica uma incursão profunda e meticulosa

em muitos campos metajurídicos, notadamente na psicologia 322 , na filosofia e

eventualmente na sociologia. Na ausência desse aporte, não me é consentido fornecer

nenhuma explicação e muito menos fazer juízos de valor. Minha intenção com esse

estudo não é desenvolver uma justificação da vingança e sim elaborar uma hipótese

de justificação da pena. E essa hipótese, como mencionado no início desse capítulo é

de que a pena serve para realizar a vingança, que seria realizada de qualquer forma

sem ela (o que não é mera ilação tal como demonstrado pela pesquisa etnográfica

trazida à colação), da melhor maneira possível, essa entendida como a maneira

menos propensa a deflagrar a crise mimética, da maneira menos nefastamente

violenta. Portanto meu argumento deve ser necessariamente delimitado por um

recorte epistemológico preciso, sob pena de tornar-se inconsistente. Posso dizer que a

pena deve existir e deve ter tais ou quais características porque assim melhor se

realiza a vingança, que é o fim do Direito Penal, como pretendi demonstrar com os

dados apresentados até aqui. Mas “se” e “porque” deve existir a vingança é

precisamente o que não me cabe responder.

Retomemos à tese que proponho, qual seja, a construção de uma teoria que

poderia ser chamada, na falta de melhor denominação, de “teoria vindicativa”

segundo a qual o Direito Penal tem por finalidade realizar a vingança de modo a

condescendente, decididamente hipócrita. Se o caso é mantido às escondidas, guardando um certo

decoro, e se ninguém cria problema, a „opinião pública‟ bisbilhotará, mas não exigirá nenhum castigo

rigoroso. Se, ao contrário, irrompe um escândalo, todos se voltam contra o casal culpado e, pelo

ostracismo ou pelos insultos, um ou outro poderá ser levado ao suicídio”. Bronislaw Malinowsky.

Crime e Costume na Sociedade Selvagem. 2a ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 63-64.

322 Uma abordagem a partir dessa perspectiva, investigando a atuação da vingança na formação

psíquica do ressentimento pode ser encontrada, por exemplo, na obra de Maria Rita Kehl, intitulada

Ressentimento. Maria Rita Kehl, Ressentimento. 3a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

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185

evitar o contágio propiciador da crise mimética. Chegando a esse ponto, tenho

consciência da obrigação que se me impõe: submeter a teoria à prova, testando seu

rendimento explicativo, criativo e crítico, em relação à todas as estruturas

fundamentais envolvidas no ato de punir. Só esse teste poderia demonstrar a sua

consistência, solidez e operacionalidade. Uma missão desse calibre seria, no entanto

impraticável nos limites desse estudo. O que farei agora será apenas indicar linhas de

raciocínio a serem desenvolvidas e que deveriam ser necessariamente alargadas e

aprofundadas. Entendo que a adoção de uma teoria vindicativa implica um sistema

penal que obedeça, no mínimo e necessariamente, a quatro vetores: retributividade,

minimalismo, ritualística e humanidade.

2.1.1 Retributividade

A característica mais evidente da vingança é seu caráter retributivo. A

vingança é sempre referida a algo, é sempre vingar-se de algo feito por alguém e

nisso reside a sua essência. Não há nenhum sentido em vigar-se do que se é, do que

pensa, ou do que se poderá fazer no futuro. A vingança é sempre pelo que se fez.

Embora, no âmbito psicológico, a vingança possa vir implicada em uma ideia de

descontrole (pois é da natureza das emoções, sobretudo violentas, não se

subordinarem ao controle da razão), do ponto de vista lógico a vingança é sempre a

resposta a um agravo e nisso se contém tanto a ideia de retributividade quanto de

proporcionalidade.

A retributividade é um dado que permanece inexplicado, tanto nas teorias

preventivas quanto nas diretamente retributivas. Para as primeiras ela é um elemento

externo, um limite estrangeiro que não tem ligação lógica nem ontológica com a

prevenção e que ora é respeitado em nome de outros valores, ora é afastado como

simples estorvo (para as teorias de prevenção especial, por exemplo). Para as teorias

retributivas a retribuição é um dado interno, mas fundante e autorreferente que não

encontra arrimo senão em si mesmo, seja sob o pano de fundo de uma noção

absolutamente subjetiva de justiça (como em Kant), seja de uma noção absolutamente

objetiva de equilíbrio normativo (como em Hegel) mas, em ambos os casos, um dado

sem alicerce na realidade empírica. As teorias retributivas modernas, tanto de origem

continental quanto anglo-saxã, embora tenham se esmerado por desenvolver a

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186

questão da proporcionalidade, também não apresentam qualquer avanço em relação a

esse ponto, qual seja, a fundamentação da retribuição. Minha hipótese é que o caráter

retributivo da pena seja imanente a ela, mas ao mesmo tempo tenha um ponto de

apoio externo a si, qual seja, a missão vindicativa.

Como se viu, no sistema da vingança privada o caráter vindicativo muitas

vezes camufla-se sob aparências exóticas, justamente porque quanto menos

estruturada e institucionalizada a sociedade, mais a vingança corre o risco de ser, ela

mesma, tomada por um ato de violência a ser vingado.

O sistema judiciário, a princípio, não precisa recorrer a esses estratagemas, na

medida em que não tem porque temer o revide, de modo que nele o caráter retributivo

pode ser escancarado. O princípio retributivo é (ou deve ser) o núcleo gravitacional

do sistema penal não apesar do seu conteúdo vindicativo, mas justamente por causa

dele. Disso decorre que o princípio retributivo é consequência e, por isso mesmo, a

prova da tese aqui proposta, dado que outras explicações para a sua existência não

são satisfatórias.

Em torno ou a partir da ideia de retribuição constroem-se as bases daquilo que

é (ou deve ser) o Direito Penal: a punição do culpado (princípio da culpabilidade) por

um fato (princípio da materialidade) lesivo ou efetivamente perigoso (princípio da

ofensividade) a um direito alheio (princípio da alteridade).

Cada um desses temas exigiria, para sua perfeita compreensão e exposição,

um novo estudo completo. Aqui, basta ressaltar o que já é evidente: que todos eles

decorrem diretamente do princípio retributivo que, por sua vez, decorre do princípio

vindicativo.

Uma última observação é pertinente. A adoção do princípio retributivo

assoma certas vezes como incompatível com figuras jurídicas e/ou posturas políticos-

criminais orientadas à redução de pena ou mesmo impunidade de determinados

injustos culpáveis 323 . Recordem-se os exemplos do perdão judicial no crime de

323

O conflito entre proporcionalidade e benignidade é apontado por Hirch, que no entanto entende que

é possivel superá-lo substituindo-se causas vagas e inadequadas de reduçao de pena (que a

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187

homicídio culposo (quando as consequências do crime atingirem o próprio agente de

forma tão grave que a sanção de torne desnecessária) e da redução de pena ou mesmo

da extinção da punibilidade pela reparação do dano. De fato, a legitimidade desses

institutos é questionável a partir de um raciocínio estritamente, mas não a partir de

um raciocínio vindicativo, não quando se compreende que o princípio principio da

retribuição não é autorreferente, mas sim é a expressão do princípio vindicativo. Por

tudo o quanto se pode apreender a respeito da vingança pode-se facilmente justificar

ambas as situações. Na primeira a vingança é desnecessária, pois já houve uma

vingança, por assim dizer, natural. Na segunda a vingança cede espaço à composição,

como manda a tradição. Aliás, tomando-se a sério uma teoria vindicativa, deveria

produzir-se uma severa diminuição do âmbito penal, que é justamente o que será

tratado a seguir.

2.1.2. Minimalismo

O minimalismo é antes de tudo uma decorrência do reconhecimento da

vingança pública como violência e do reconhecimento (que os primitivos parecem ter

melhor do que nós) de que toda violência, venha de onde vier, é perigosa e

potencialmente daninha.

Ao tempo da vingança privada, como se viu, apenas as condutas de extrema

gravidade davam origem à vingança. O medo da escalada obrigava um uso

parcimonioso do recurso à violência, reservado às situações extremas. O cariz

incontrastável do poder estatal tornou o homem arrogante. Sem temor de represálias

o poderoso Leviatã manipula livremente a violência, quer vingar-se de tudo, e por

qualquer mínima afronta cobra o preço da liberdade. Não é à toa que a criminologia

crítica não se cansa de apontar os efeitos criminógenos da pena, ou seja, geradores e

propagadores de violência. As sociedades primitivas perecem ter entendido

perfeitamente esse perigo: o sacrifício é cercado de cuidados minuciosos, a vingança

privada só tem espaço quando não é possível relevar a falta ou alcançar uma solução

negociada. Mas a sociedade civilizada ainda parece espantar-se com a constatação de

que o uso imoderado do direito penal aumenta o coeficiente de violência social. De

proporcionalidade de fato nao justifica) por um reduçao radical e global da escala de

proporcionalidade cardinal. Andrew Von Hisrch. Censurar y Castigar. Madrid: Trotta, 1998, p. 168.

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188

fato, quando usado da forma como normalmente o é, é bem provável que os custos do

Direito Penal excedam seus benefícios, o que constitui um dos argumentos basilares

para as teses abolicionistas.

Para que o Direito Penal possa evitar contribuir com uma carga indevida de

violência (o que é a sua finalidade) deve, antes de tudo, limitar-se quantitativamente.

O Direito Penal máximo, portanto, (entre o discurso da prevenção e a prática da

dominação) é uma contradição em termos e uma negação em si mesmo. Por ser

vingança, e não apesar de sê-lo, é que ele precisa ser mínimo. Por ser vingança e não

prevenção é que ele tem ser utima ratio. Deve restringir-se, de fato, àquelas condutas

que representem violências intoleráveis, aquelas que, hipoteticamente (embora esse

raciocínio, meramente hipotético, não possa ser feito de forma direta e automática)

teriam o condão de suscitar reações vingativas violentas, caso não existisse a

vingança pública.

Cabe aqui um esclarecimento. Ao atrelar o Direito Penal à função vindicativa

e à finalidade de realizar a vingança evitando a crise mimética não estou, a priori,

implicando qualquer restrição quanto à seleção das condutas passíveis de punição ou

aos bens ofendidos, salvo em relação à sua gravidade e relevância. Não entendo que

minha hipótese seja incompatível com bens estatais (e o recente julgamento do

“mensalão” não deixa dúvidas sobre a sanha vingativa que tais condutas podem

despertar) e nem mesmo aos bens difusos ou supraindividuais como o meio ambiente,

por exemplo. Dois episódios da história recente demonstram que ofensas ambientais

podem despertar reações violentas intensas: a ação do grupo de ativistas do

“Greenpeace” por ataques à plataforma de petróleo Gazprom no Ártico e a invasão de

ativistas brasileiros ao Instituto Royal que alegadamente realizava pesquisas em

animais.

Não creio que, sozinha, a tese que proponho possa responder à abissal

indagação a respeito de quais condutas devem ou não ser objeto de intervenção do

direito penal, mesmo porque esse não é seu objeto. Para tanto, uma nova e profunda

investigação dever-se-ia desenvolver. É importante deixar claro que embora se deve

reconhecer que a pena não é outra coisa senão uma vingança pública, isso não

autoriza o raciocínio automático de que deve ser considerado crime tudo aquilo de

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que o ofendido ou a sociedade deseje vingar-se, o que seria um despropósito e uma

irracionalidade. Mas conceber a pena como vingança conduz necessariamente a uma

orientação minimalista e o faz com mais eficiência do que o impalpável conceito de

bem jurídico. 324As sociedades primitivas sempre cuidaram de empregar a vingança

de forma mínima, temendo seus efeitos negativos. É o que também nós devemos

fazer.

2.1.3. Ritualística

Retomemos a ideia de que a violência é mimética. Por isso mesmo as

estratégias violentas de contenção da violência tiverem a extrema preocupação de

diferenciarem-se da agressão original, antes de tudo, no âmbito da forma. Tanto o

sacrifício quanto a vendetta tem um acentuado e indissociável caráter ritual.

O ritual sacrificial é especialmente elaborado, pois se trata de

premeditadamente ir ao encontro da violência. A comunidade ou grupo juntam-se

exatamente para cometer um ato “institucional” de violência (e que nisso assemelha-

se ao processo penal) que, por isso mesmo, assume o caráter de sagrado (como se viu,

para GIRARD o sagrado, cuja primeira expressão é a religião, não é outra coisa senão

as estratégias humanas para lidar com a própria violência). O sagrado, tal e qual a

violência, é ao mesmo tempo criador e também mortífero, é preciso aproximar-se

dele com o máximo cuidado, por isso elaboram-se detalhados rituais para que se

possa entrar em seu território e tocá-lo sem ser fulminado e morto. Veja-se um

exemplo disso na minuciosa descrição de HUBERT e MAUSS. Inicia-se o sacrifício

com o ritual de entrada:

324

Como bem nota Hassemer, no Direito Penal moderno (em posição do Direito Penal clássico “a

proteção de bens jurídicos se converteu em um critério positivo para justificar decisões

criminalizadoras, perdendo o caráter de critério negativo que teve originariamente. O que

classicamente se formulou como um conceito crítico para que o legislador se limitasse à proteção de

bens jurídicos, converteu-se agora em uma exigência para que se penalizem determinadas condutas,

transformando-se assim completamente, de forma subreptícia a função que originalmente se

assinalou”. Winfried Hassemer. Persona, Mundo y Responsabilidad – Bases para una teoria de la

imputación en Derecho Penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p. 20. (Tradução livre).

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190

O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso

e por intermédio de agentes essencialmente religiosos. Ora, antes da

cerimônia, em geral, nem o sacrificador, nem o lugar, nem os

instrumentos, nem a vítima tem esse caráter no grau quem convém.

Assim, a primeira fase do sacrifício tem por objeto conferir-lhes esse

caráter. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado. Para tanto,

são necessários ritos que os introduzam no mundo sagrado e ali os

comprometam mais ou menos profundamente, conforme a importância do

papel que desempenharão a seguir. É isso que constitui, segundo a

expressão mesma dos textos sânscritos, a entrada no sacrifício. 325

Seguida pelos ritos de imolação e após, os ritos de saída:

Os efeitos úteis do sacrifício foram produzidos, mas nem tudo terminou. O

grupo de pessoas e coisas que circunstancialmente se formou em torno da

vítima não tem mais razão de ser, mas é preciso que ele se dissolva

lentamente, sem choques. Como foram os ritos que criaram esse grupo,

somente os ritos podem recolocar em liberdade os elementos que o

formaram. Os laços que uniram os sacerdotes e o sacrificante à vítima não

foram rompidos pela imolação: todos aqueles que participaram do

sacrifício adquiriram um caráter sagrado que os isola do mundo profano. É

necessário que possam retornar a esse mundo, que saiam do círculo

mágico onde ainda estão encerrados. Além disso, durante as cerimônias

podem ter sido cometidas faltas que é preciso apagar antes de retomar a

vida comum. Os ritos mediante os quais se opera a saída do sacrifício são

exatamente simétricos aos que observamos por ocasião da entrada. 326

A vingança privada também é cercada de rituais. Tome-se como exemplo as

célebres vendettas da Córsega:

A entrada em vendeta inaugura uma série de ritos: a alimentação fica mais

frugal , suprimem-se o vinho, a toalha, os guardanapos, a carne se faz rara.

Em caso de homicídio, a camisa ensanguentada do defunto fica exposta na

sala comum para manter vivo o desejo de lavar a ofensa. No decorrer de

um velório, os parentes próximos do morto entoam exortações à vingança

dançando (caracolu) ao redor do morto, enquanto os homens batem no

chão com a coronha de seus fuzis. (...) A vingança só pode iniciar-se uma

vez cumpridos certos atos de advertência: os juramentos de vingança

325

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o Sacrifício. São Paul: Cosac Naify, 2005, p. 26. 326

Marcel Mauss e Henry Hubert. Sobre o Sacrificio. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 51.

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(terribili ghiuramenti) e a declaração de cautela (“Acautela-se, se o sol te

toca, meu chumbo de atingirá”). Depois disso, podem começar as

emboscadas. O tempo da vingança constitui uma pausa entre

comportamentos comuns: os homens deixam de barbear-se, as mulheres se

vedam qualquer riso, fecham-se as portas e janelas, cobrem-se os

espelhos. Os justiceiros se tornam em geral banditu (banidos): vão para o

mato, moram fora do espaço comum da aldeia. 327

O ritual acompanha a violência programada e quanto mais se chega perto

dela, mais ele é necessário. Como nota ROULAND, comparando a jurisdição penal

com a civil:

Ademais, os ritos constituem um comportamento simbólico, e como não

somos puros espíritos, temos necessidade das encarnações que realizam.

Assim o ritual se amplia à medida que se sobe na hierarquia das

jurisdições, sinal da gravidade crescente dos procedimentos. Culmina no

tribunal do júri, pois a lei transgredida por aqueles que ele tem a missão de

julgar é considerada fundamental, o que também explica que seja em geral

mais marcado nas jurisdições penais do que nas cíveis. A dramaturgia do

processo penal é a da exclusão: o réu reconhecido culpado é, em graus

diversos, apartado da sociedade 328

.

O ritual, no entanto, não consiste em uma mera formalidade. Ele é sempre (e

isso fica especialmente claro nos primeiros dois trechos citados), funcionalizado em

relação a algum objetivo substancial. As detalhadas e abrangentes descrições de

MAUSS e HUBERT narram uma sequência inumerável de exigências, condutas e

procedimentos que a nós parecem simplesmente exóticos e bizarros (do que deve

alimentar-se o sacrificante nos dias anteriores ao ato, que roupas deve vestir e de que

material são feitas, onde deve residir, com quem deve falar, os adornos que devem ser

colocados sobre o sacrificado, que palavras lhe devem ser ditas, que cantos entoados,

quantas vezes se deve espargir água sobre a vítima, em que partes do corpo, quantas

voltas se deve dar sobre ela, ad infinitum), mas que devem ser cumpridos à risca (sob

pena de a inobservância constituir uma falta ritual que deve, ela mesma, se

ritualmente expurgada) em virtude de uma função bem específica e determinada.

327

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 113. 328

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 147.

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192

Nenhum item é aleatório ou tem uma finalidade simplesmente decorativa, de conferir

beleza ou gravidade ao ato, não é em suma, um teatro, embora assim possa parecê-lo

para quem não compreende os seus intrincados simbolismos.

Com os ritos da vendetta opera o mesmo e, embora a descrição de

ROULAND não permita desvendar com clareza a função específica de cada um de

seus procedimentos, está claro que fazem parte de um quadro simbólico específico e

operativo e que em alguns momentos revela-se abertamente (“a camisa

ensanguentada do defunto fica exposta na sala comum para manter vivo o desejo de

lavar a ofensa” 329).

A ritualização do jurídico é um dos aspectos que revela a sua origem e

proximidade do religioso e, indo além, revela a origem comum tanto do jurídico

quanto do religioso no sagrado. Tanto o jurídico quanto o religioso pertencem ao

terreno do sagrado, que é o terreno do confronto humano com a sua própria violência,

o terreno em que a violência boa é posta contra a má, a purificadora contra a impura.

Por isso mesmo, tanto o jurídico quanto o religioso são o terreno próprio da

separação, primeiro do sagrado e do profano, e depois do sagrado de Deus e do

Diabo, do justo e do injusto, do crime e da pena. Trata-se, resumindo do misterioso

domínio da distinção entre duas coisas ao mesmo tempo idênticas e opostas.

Referindo-se ao sangue derramado criminosamente GIRARD pergunta:

Com o que se pode limpar essa mácula? Que substância extraordinária,

inédita, pode resistir à contaminação do sangue impuro, chegando mesmo

a purificá-lo? Esta substância é o próprio sangue, mas desta vez o das

vítimas sacrificiais, o sangue que permanece puro se for derramado

ritualmente. 330

E como ele próprio esclarece, a natureza dúplice do sangue, que não é outra

coisa senão sua natureza essencialmente sagrada, é a metáfora da própria violência:

A metamorfose física do sangue derramado pode representar a dupla

natureza da violência. Certas formas religiosas tiram um partido

329

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 113. 330

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 52.

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193

extraordinário desta possibilidade. O sangue pode literalmente evidenciar

o fato de que uma única substância é ao mesmo tempo aquilo que suja e

que limpa, o que torna impuro e o que purifica, o que leva os homens ao

furor, à demência e a morte e também aquilo que os apazigua e os faz

reviver. 331

Mas não é fácil compreender essa dualidade e muito menos manter essa

separação. Para isso serve, genericamente, o ritual:

Os homens não conseguem penetrar no segredo desta dualidade. Eles

precisam distinguir entre a boa e a má violência, desejam repetir

incessantemente a segunda para eliminar a primeira. O rito é exatamente

isso.332

E se, por acaso, a tênue distinção mantida pelo rito é dissolvida, sobrevém a

tragédia da contaminação.

Nada mais diferente do que essas duas gotas de sangue, e no entanto, nada

mais semelhante. Assim, torna-se fácil e até tentador confundir e misturar

os dois sangues. Quando essa mistura ocorre, apaga-se qualquer distinção

entre o puro e o impuro. Não há mais diferença entre a boa e a má

violência. De fato, enquanto o puro e o impuro permanecem distintos,

pode-se limpar mesmo as maiores máculas. Quando eles se confundem,

nada mais pode ser purificado. 333

Portanto, o rito tem uma primeira e fundamental importância, genérica, que é

manter essa separação, não permitir que se misturem essas substâncias. O

obscurecimento da dimensão “sagrada” (em sentido lato) do jurídico permite que se

autorize a modificar ou abandonar o rito sempre que ele for considerado um estorvo a

um pretenso eficienticismo. Pretenso, porque se a verdadeira eficiência do Direito

Penal consiste em realizar a vingança evitando a crise mimética o abandono do rito

constitui o inverso, dessacralização, confusão, contaminação, destruição e morte do

Direito Penal. Não há mais diferença entre uma pena e um sequestro, entre um juiz e

um terrorista (que certamente também tem boas a justas razões para agir como age).

331

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 52. 332

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 53. 333

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 54.

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194

O processo penal, portanto, é um fenômeno claramente semelhante, nesse

aspecto, aos ritos sacrificiais e à vendetta. Também ele, como violência justa

(vingança pública) que toca a injusta (crime) deve cercar-se de cuidados e precauções

para não contaminar-se. Toda a cautela visa, em suma, impedir que a pena vire um

crime, assim como no ritual visa impedir que a imolação vire um assassinato.

Também ele (o Direito Penal) deve proteger-se do contágio através de uma forte

ritualização. Mas também nele o ritual não se confunde com formalidades de cunho

teatral, mas tem um sentido instrumental funcionalizado em relação à sua substância.

O rito não é uma encenação, mas é instrumentalizado segundo a natureza do

ato. Como anota ROULAND “não se devem confundir o formalismo e a exigência de

formas. O primeiro é estéril, as segundas constituem garantias para os pleiteantes,

como a checagem dos instrumentos de voo garante a segurança dos passageiros nos

aviões”. 334

A substância do ato vindicativo é, como já se viu, a retribuição. Sendo assim,

o rito específico do Processo Penal só pode ter como objetivo cumprir o princípio

retributivo.

O princípio retributivo, da mesma forma que acarreta, no âmbito penal, uma

série de perfis (culpabilidade, materialidade, ofensividade etc.) conduz, no âmbito do

Processo Penal, a uma configuração ritual específica, orientada à cognição do fato a

ser vingado. Se o princípio vindicativo pressupõe a retribuição à um fato

determinado, praticado por um autor determinado em circunstâncias determinadas o

processo é o rito no qual o juiz reconhece (ou não) esses elementos que autorizam e

quantificam a vingança.

A funcionalidade cognitiva do processo é avessa a quaisquer finalidades

preventivas, gerais ou especiais, que só podem subvertê-la. É avessa a qualquer

consideração sobre a pessoa do réu que não tenha estrita relação com o fato, pois

ninguém se vinga de outrem por ser desta ou daquela maneira, mas por ter praticado

334

Norbert Rouland. Nos Confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 147.

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essa ou aquela ofensa grave. Não é apesar do princípio vindicativo, mas por causa

dele que o processo deve ser cognitivo. O princípio vindicativo não se opõe ao

caráter cognitivo do processo, mas, ao contrário, explica-o.

Por mais essa razão, o respeito às garantias processuais, sobretudo aquelas

abrigadas sob os princípios do contraditório, por um lado, e da presunção de

inocência, por outro, é condição não apenas de legitimidade mas de eficiência do

Direito Penal, e não o contrário, como se costuma pensar 335 . Porque é a sua

observância que vai garantir que ninguém que não seja o culpado seja punido, e essa

é precisamente a forma de atender ao princípio vindicativo com mais exatidão do que

poderia fazê-lo a vingança privada.

2.1.4. Humanidade

Por fim, há um último aspecto, talvez mais controvertido e menos óbvio do

que os três primeiros, que entendo ser necessário derivar do princípio vindicativo, por

mais contraditório que possa à primeira vista parecer.

Voltemos à base: a finalidade do Direito Penal é a realização da vingança

evitando-se ao máximo os perigos da crise mimética, do contágio e da

indiferenciação.

Por isso a violência da vingança, que é a mesma do direito, deve diferenciar-

se da violência do crime.

Essa diferença se dá, no nível da forma, através da observância de uma

ritualística exata e específica, que não é, no entanto, mero formalismo vazio, mas

corresponde à essência do ato vingativo.

335

Como aponta com precisão Perfecto Andrés Ibáñez: “há, no mínimo, dois tópicos que então

profundamente instalados na cultura judicial herdada. Um deles é de que o processo contraditório

garante direitos mas comporta perda de eficácia na persecuçao da delinquência. O outro, estreitamente

vinculado a este, é que o princípio da presunção de inocência implica uma cessão de terreno em favor

do delinquente, pois, dado que ele já tem em relação ao Estado a vantagem de ter saído primeiro, não

haveria de conceder-lhe nenhuma outra”. Perfecto Andrés Ibáñez. “Garantismo: una teoría critica de la

jurisdicción.” In: Miguel Carbonell e Pedro Salazar. Garantismo – estúdio sobre el pensamiento

jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 66-67.

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196

E no nível substancial se dá através da progressiva conversão do princípio

vindicativo no princípio retributivo e desse na ideia abstrata de justiça. Grosso modo,

é assim que a violência do crime distingue-se da violência da pena: a primeira é

injusta, a segunda, justa.

Mas o apelo à retribuição e à justiça, que na verdade nada mais são do que o

próprio princípio vindicativo envolto nos véus sagrados do mistério, que também

envolveram, a seu tempo e modo, os ritos sacrificiais sob o manto da divindade, não é

completamente eficaz.

Uma vez que não passam de mutações ou ocultações do próprio princípio

vindicativo herdam da vingança um vício genético. Lembremo-nos de que

Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria

vingança. Ela é concebida como uma represália, e cada represália invoca

uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é visto como o

primeiro. Ele é considerado como a vingança de um crime mais

original.336

Com isso se compromete igualmente o conceito de justiça, que deixa de ser

eficaz para operar a distinção entre o crime e a pena. O réu e aqueles que lhe são

solidários podem muito bem pensar que a condenação é injusta porque ele só fez o

que fez por ser vítima de um crime anterior.

Por isso a noção pura e simples de justiça não é suficiente para conferir a

sacralidade exigida para distinguir a violência da pena da violência do crime.

No campo do religioso a fonte da sacralidade não constitui um problema: é a

divindade que imanta o sacrifício e purifica o sangue derramado em sua homenagem.

Mas a laicização afastou o sagrado (em sentido estrito) do jurídico e gerou

uma lacuna que não pode ser suprida a contento pela simples ideia de justiça, uma

336

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 27.

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197

justiça que, por ser puramente humana é herdeira do vício da vingança, uma justiça

que pode enfim ser sempre considerada injusta. O que pode sacralizar a violência

tornando-a substancialmente distinta deve ser necessariamente externo e

transcendente a ela:

Somente a transcendência do sistema efetivamente reconhecida por todos,

independentemente das instituições que o concretizam, pode garantir sua

eficácia preventiva ou curativa, distinguindo a violência santa, legitima e

impedindo que ela se torne alvo de recriminações ou de contestações, ou

seja, que recaia no círculo vicioso da vingança. 337

A transcendência já foi garantida pela divindade, quando do sacrifício, e

mesmo pela justiça, quando ela era divina. E hoje?

Entendo que atualmente a única transcendência possível seja o próprio

homem, seja o respeito sagrado à sua humanidade, seja o apego intransigível aos

Direitos Humanos.

Evidentemente que o tema sobre quais são e quantas gerações há dos Direitos

Humanos, pelo corte epistemológico e pela sua vastidão e profundidade, não poderá

ser investigado no âmbito necessariamente limitado desse estudo. Mas quero

sublinhar aqui a ideia de que é essa a fonte de legitimação e também, ao contrário do

que acredita o senso comum, de eficácia do Direito Penal. Não apenas a justiça

retributiva, nem a moderação expressa pelo minimalismo, nem o rígido respeito ao

rito fazem com o que Estado não seja igual ao terrorista e ao sequestrador, é preciso

esse quarto elemento, sem o qual “nada mais poderá ser purificado”: o Estado só não

é terrorista porque respeita a humanidade de todos – inclusive a do terrorista –

sempre e em qualquer situação.

Há algo na gênese e constituição dos Direitos Humanos que os tornam

especialmente propícios para constituírem o elemento de sacralização que torna

possível o emprego do Direito Penal como violência aceitável, como violência

diferenciada e que escape à barbárie e aos perigos da crise mimética.

337

René Girard. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 37.

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198

A tese desenvolvida pela historiadora LYNN HUNT, na obra intitulada

Invención de los Derechos Humanos pode fornecer uma chave importante para essa

explicação.

O trabalho de HUNT, como o indica o título de sua obra, busca desvendar as

origens dos Direitos Humanos, examinando a sua invenção, a sua declaração e o seu

desenvolvimento essencial. A originalidade do pensamento de HUNT consiste em

abordar a questão sob um enfoque incomum para a historiografia, um enfoque, por

assim dizer, interno, psicológico, centrado nas alterações na experiência subjetiva do

“eu” ao longo da história e a partir daí, explorar os seus reflexos para a organização

social e política. 338

Mas como a questão dos Direitos Humanos estaria especialmente ligada à

experiência interna do “eu”? Certamente é mais usual relacionar ideias ou doutrinas

jurídicas à contextos sociais, políticos ou até econômicos do que à experiências

subjetivas individuais. Ocorre que os Direitos Humanos apresentam uma

peculiaridade curiosa e que confere a essa relação uma importância destacada. Eles

estiveram, desde o princípio, sob o signo da evidência, ou, dito de outro jeito, eles

estiveram, pela sua própria natureza, sempre associados a uma espécie de “intuição”

que é, sem dúvida, uma experiência interna:

Apesar de suas diferenças terminológicas, as duas declarações do século

XVIII se baseavam em uma pretensão de evidência. Jefferson indicou-o

de forma explícita quando escreveu: „Sustentamos como evidentes essas

verdades”. A declaração francesa afirmava categoricamente que „a

338

“Estou tratando de centrar a atenção sobre o que acontece no interior das mentes individuais.

Poderia parecer um lugar óbvio onde buscar uma explicação para as mudanças sociais e políticas de

caráter transformador mas, surpreendentemente, as mentes individuais – excetuando as dos grandes

pensadores e escritores – foram esquecidas pelas recentes investigações no campo das humanidades e

das ciências sociais. A atenção centrou-se nos contextos sociais e culturais, não em como as mentes

individuais compreendem e dão nova forma a esse contexto. Creio que a mudança social e política –

nesse caso, os direitos humanos – se produz porque muitos indivíduos tiveram experiências similares;

não porque todos eles habitem o mesmo contexto social, mas porque mediante as interações uns com

os outros, e com o que leem e veem, criaram um novo contexto social. Em resumo, insisto em que toda

a análise de uma mudança histórica deve acabar sendo explicada pela alteração das mentes

individuais”. Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores,

2009, p. 33.

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199

ignorância, o esquecimento ou o menosprezo dos direitos do homem são

as únicas causas das calamidades públicas e da corrupção dos governos.339

Agora, o fato é que essa “evidência” não era evidente até então e surgiu

apenas e especificamente nesse momento histórico. Segundo HUNT, foi apenas no

século XVIII que a igualdade, naturalidade e universalidade, que são as qualidades

distintivas dos direitos ditos humanos tornaram-se “evidentes” e, mais do que isso,

adquiriram conteúdo político:

A igualdade, a universalidade e a naturalidade dos direitos humanos

adquiriram pela primeira vez expressão política direta na “Declaração de

Independência dos Estados Unidos” de 1776 e na “Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão” francesa de 1789. Ainda que a

“Declaração de Direitos” inglesa de 1689 fizesse referencia aos “antigos

direitos e liberdades” estabelecidos pela lei inglesa e derivados da história

da Inglaterra, não declarou a igualdade, a universalidade e nem a

naturalidade dos direitos. Ao contrários, a Declaração de Independência

dos Estados Unidos insistia em que “todos os homens são criados iguais”

e em que todos eles possuem “direitos inalienáveis”. De forma parecida, a

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão proclamou que “os

homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.” Não os

homens franceses, não os homens brancos, não os homens católicos, mas

“os homens”, expressão que naquela época, tal como agora, significava

não apenas os varões, mas também as pessoas, ou seja, os membros da

raça humana. Dito de outro modo, em algum momento entre 1689 e 1776,

direitos que haviam sido considerados quase sempre como os direitos de

uma categoria determinada – os ingleses nascidos livres, por exemplo – se

transformaram em direitos humanos, direitos naturais universais, os que os

franceses chamaram de “les droit de l‟homme” 340

Na primeira parte de seu estudo HUNT propõe-se então a responder a essa

pergunta: porque os Direitos Humanos nesse determinado momento tornaram-se

evidentes? Quais as condições presentes no século XVIII que permitiram que fossem

percebidos, e categoricamente declarados como evidentes?

339

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 17. 340

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 18-19

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200

A tese de HUNT é a de que a chave para compreender a “invenção” dos

Direitos Humanos reside justamente na sua natureza “evidente”, a qual, por sua vez,

desvela a sua base emocional. Segundo ela, “é difícil precisar o que são direitos

humanos porque sua definição, sua própria existência, depende tanto das emoções

quanto da razão” 341 uma vez que “requerem um sentimento interior compartilhado

por muitas pessoas” 342 :

Os direitos humanos não são simplesmente uma doutrina formulada em

documentos; descansam sobre uma determinada disposição acerca dos

demais, sobre um conjunto de convicções acerca de como são as pessoas e

como distinguem o bem e o mal no mundo secular. As ideias filosóficas,

as tradições jurídicas e as ideias políticas revolucionárias deviam conter

esse tipo de ponto de referencia emocional profundo, para que os direitos

humanos fossem realmente “evidentes”. E, como insistia Diderot, esses

sentimentos deviam ser experimentados por muitas pessoas, não apenas

pelos filósofos que escreviam sobre eles. 343

A tese de HUNT é a de que os Direitos Humanos surgiram, construíram-se ou

descobriram-se já como intuitivos ou evidentes (embora não o fossem até então),

porque nesse momento as pessoas puderem sentir, em relação a si mesmas, algo

diferente, puderam ter uma nova experiência do “eu” e, portanto, puderam enxergar

também o “outro” de forma diferente e estabelecer com ele uma nova forma de

relação.

Portanto – e nisso consiste a criatividade e o especial interesse da hipótese de

HUNT – a mudança que permitiu a “invenção” dos Direitos Humanos deve ser

buscada em uma mudança peculiar na experiência subjetiva, na percepção emocional

da realidade e do outro que se desenvolveu ao longo desse período. Não irei explorar

aqui as múltiplas causas dessa transformação, basta dizer, para os fins desse trabalho,

que ela converge em uma direção clara: a experiência prática e cotidiana cada vez

mais apurada e aprofundada, da autonomia individual.

341

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 25. 342

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 25. 343

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 26.

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201

Como explica HUNT, “para terem direitos humanos, as pessoas deviam ser

percebidas como indivíduos distintos uns dos outros e capazes de formular juízos

morais independentes” 344. A percepção de si mesmo e dos homens em geral como

seres autônomos, independentemente das amarras das tradições, das categorias, das

hierarquias sociais, foi um elemento central no pensamento iluminista. Toda a

construção kantiana, por exemplo, é baseada na “auto-nomia“, ou seja, na capacidade

da razão humana de por a sua própria lei.

E essa amplificação e aprofundamento da autonomia, que de algum modo está

na base das ideias de liberdade (a ideia fundamental em Kant) e igualdade, também

está na base do último elemento da tríade revolucionária, da ideia, ou seria mais

adequado dizer, do sentimento, de fraternidade. Ou, como denomina HUNT, de

empatia ou compaixão (embora a autora prefira o primeiro termo, já que o segundo,

na sua acepção moderna, conota uma carga de condescendência e piedade

incompatíveis com o postulado da autonomia). Como afirma HUNT, “o aprendizado

da empatia abriu as portas para os direitos humanos” 345 (embora não tenha garantido

que todos poderiam cruzá-la).

O desenvolvimento da autonomia empática: foi essa a mudança que permitiu

que em 1776 Jefferson pudesse sustentar “como evidentes essas verdades”, e que os

cidadãos as pudessem senti-las como evidentes.

É certo que nem a autonomia e nem a empatia surgiram no século XVIII a

partir do nada. O processo de individualização, de destacamento do grupo, foi se

produzindo ao longo dos séculos: um maior respeito pela integridade do corpo e

linhas de demarcação mais claras entre os corpos individuais foram o resultado da

contínua elevação dos umbrais da vergonha, relacionada com as funções fisiológicas

assim como um crescente sentido de decoro corporal.346 Mas todo esse movimento

conheceu um intenso incremento no século XVIII:

344

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 26. 345

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 68. 346

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 29.

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202

Na segunda metade do século XVIII se produziu uma aceleração no

avanço dessas práticas. A autoridade absoluta dos pais sobre os filhos foi

posta em questão. O público ficava agora em silêncio enquanto assistia a

uma peça de teatro ou escutava música. O retratismo e a pintura de gênero

ameaçavam os grandes temas mitológicos e históricos da pintura

acadêmica. Proliferavam as novelas que colocavam a vivência de pessoas

normais ao alcance de um público numeroso. A tortura como parte do

procedimento judicial e as formas mais extremas de castigos corporais

começaram a considerarem-se inadmissíveis. Todas essas mudanças

contribuíram para criar um sentido de separação e autodomínio dos corpos

individuais, junto com a possibilidade de sentir empatia pelos demais.

Essa recém-descoberta faculdade que era a empatia tão poderosa que poderia

contrapor os preconceitos mais arraigados. Em 1791, o governo revolucionário

francês concedeu igualdade de direitos aos judeus; em 1792, os homens sem

propriedade obtiveram o direito ao voto; e em 1794 o governo francês aboliu

oficialmente a escravidão 347.

A relação que importa aqui destacar, e que faz com que os Direitos Humanos

sejam, a meu ver, a única base sobre a qual se pode edificar o Direito Penal laico se

se quer evitar que ele se converta em violência bárbara, ou, dito de outro modo, se se

quer evitar a crise mimética, é justamente a relação entre autonomia e empatia:

A autonomia individual depende de um crescente sentido de separação e

sacralidade dos corpos: teu corpo é teu e meu corpo é meu, e ambos

deveríamos respeitar a linha divisória entre nossos respectivos corpos. A

empatia depende do reconhecimento de que os demais sentem e pensam

como nós mesmos, que nossos sentimentos internos são iguais de algum

modo fundamental. Para ser autônoma, uma pessoa tem que encontrar-se

legitimamente separada e protegida em sua separação; mas para que essa

separação corporal venha acompanhada de direitos é necessário que a

individualidade de uma pessoa seja apreciada de um modo emocional. Os

direitos humanos dependem tanto do domínio sobre si mesmo como do

reconhecimento de que todos os demais são igualmente donos de si

mesmos.348

347

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 27. 348

Lynn Hunt. La Invención de los Derechos Humanos. Barcelona: Tusquets Editores, 2009, p. 28.

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203

A percepção do “eu”, separado do resto da comunidade, a experimentação e

valorização dos próprios sentimentos internos, a busca pela própria autonomia e pela

felicidade aliados à possibilidade de identificação emocional com os sentimentos e

sofrimentos alheios, foi o que permitiu que se pudesse perceber no “outro” também

um portador de um mesmo universo interno, inteiro e completo como o meu próprio,

também como alguém em busca de sua própria autonomia e felicidade, alguém

essencialmente livre e igual, em relação a quem se pode cultivar sentimentos

fraternos.

Se a percepção da autonomia e da individualidade é o substrato para a

percepção do “outro” humano, a indiferenciação gera o efeito oposto. Mesmo no

próprio seio dos discursos e do ativismo dos Direitos Humanos, a indiferenciação

cobra seu preço sob a forma de confusão e desumanização, como expõe

BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS:

A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só

numa certa promiscuidade cúmplice com a proclamação abstrata dos

direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas dos

direitos humanos, como sobretudo na trivialização do sofrimento humano

contido nessas violações. Essa trivialização decorre em boa medida do

discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de

defesa dos direitos humanos, com um forte componente estatístico que

reduz ao anonimato dos números o horror da degradação humana e do

sofrimento injusto. Neutraliza-se assim a presença desestabilizadora do

sofrimento com base na qual seria possível fundar a razão militante e a

vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz de modo

sistemático o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta

do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias

políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto

uma presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os

opressores, quanto ainda aqueles que, não se sentindo nem vítimas nem

opressores, veem no sofrimento injusto um problema que não lhes diz

respeito.349

349

Boaventura de Sousa Santos. Se Deus fosse um ativista de Direitos Humanos. São Paulo: Cortez,

2013, p. 129.

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204

Pois bem, essa autonomia e essa identificação empática que estão

inextrincavelmente ligados aos Direitos Humanos, pois são a condição mas também o

produto assegurado pela sua efetiva defesa e preservação. E é justamente isso o que é

destruído na crise mimética.

Como exaustivamente exposto por GIRARD, a crise mimética é

essencialmente uma crise de indiferenciação. A mimesis violenta estabelece uma

confusão, em meio a qual cada um dos oponentes converte-se apenas em espelho do

ódio do outro. Mas, paradoxalmente, reatividade automática que dissolve as

fronteiras entre o “eu” e o “outro”, na medida em que a violência suga a ambos com

sua força centrípeta e os expõem a um contato cru e direto, essa mesma confusão é o

que impede o estabelecimento de qualquer forma de empatia. O “eu” perde sua

individualidade e torna-se igual ao “outro” em seu ódio, e dessa forma só pode temê-

lo e detestá-lo também, como é ele mesmo temido e detestado. Se a formação da

individualidade é o que permite a empatia, a perda da individualidade estabelece

paradoxalmente o completo estranhamento. A identificação violenta é a anti-

identificação humana, assim como “eu” sou para o “outro” também o “outro” é para

“mim” apenas o inimigo, o rival, imbuído da mesma hostilidade que eu mesmo.

A relação estabelecida por HUNT entre autonomia e empatia é subvertida na

crise mimética e torna-se indiferenciação e estranhamento. Dessa forma, o respeito

aos Direitos Humanos é o pressuposto e ao mesmo tempo a consequência da elisão da

crise mimética. É o primado da diferenciação e por consequência da possibilidade de

comunhão.

Em suma, o respeito aos Direitos Humanos acima de tudo é a única coisa

capaz de purificar a violência da vingança tornando-a realmente aceitável, tornando-a

diferente da violência do crime. Essa é uma consequência direta da adoção de uma

teoria da pena baseada na vingança. Por ser vingança e não apesar de sê-lo é que a

pena tem que ser humana. Quem não reconhece essa impureza essencial da pena não

vê qualquer necessidade de purificação.

Uma razão adicional pela qual os Direitos Humanos jogam um papel

fundamental no contexto dessa concepção é o fato de que o discurso dos Direitos

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205

Humanos é, por excelência, a voz do mais fraco. Lembremo-nos de que o sistema

punitivo guarda em si uma tendência espúria ao sacrifício. Há em cada réu um

potencial bode expiatório que pode atrair sobre si um grau de hostilidade muito

superior ao ato que praticou 350.

No mecanismo expiatório a vítima magnetiza todas as pequenas desavenças,

animosidades, descontentamentos, sentimentos de injustiça e humilhação, antes

dispersos e que contra ela se unem em uma torrente irrefreável. A obediência a um

valor superior, representado pelo respeito aos Direitos Humanos, serve como

anteparo que impede que a vingança pública converta-se indevidamente em um rito

sacrificial.

E por fim, um último aspecto parece-me importante para estabelecer a

especial congruência entre uma teoria vindicativa e Direitos Humanos. É que

perceber a pena como vingança impõe também consideração e respeito à posição da

vítima. Não defendo aqui, insisto, um “direito da vitima à vingança” 351, como já tive

oportunidade de dizer. Saber se a vingança é axiologicamente positiva de modo que

possa ser convertida em um direito é uma questão que exigiria uma investigação de

cunho psicológico muito mais profunda do que pude desenvolver aqui. Mas

reconhecer que o que subjaz à pena é realmente a vingança, uma vingança que, se não

fosse realizada pelo Estado, provavelmente o seria pela vítima e seus familiares que a

“sentiriam” como justa, é reconhecer àquele que foi ofendido um papel de

protagonismo que atende à sua dignidade.

Integrar a perspectiva da vítima à finalidade da pena trata-se indubitavelmente

de consagrar a ela um direito fundamental ao respeito à sua dignidade. Como escreve

350

O tema dos Direitos Humanos, escreve Girard “coincide com os direitos das vítimas em potencial,

que são estipulados contra os governos, contra a coletividade, as maiorias, os quais podem vir a se

mostrar opressivos para com individuos ou minorias, ou até leva-los à morte.” René Girard. Quando

começarem a acontecer essas coisas. São Paulo: Realizações, 2011, p. 150. 351

Que não tem albergue no ordenamento juridico, como bem pontua Jesús-María Silva Sánchez e

cujo valor meta-juridico não creio ser possivel afirmar ou negar, nos limites desse estudo. Jesús-María

Silva Sánchez. “Nullun crimen sina poena? Sobre na doctrinas penales de la lucha contra la impunidad

y del derecho de la víctima al castigo del autor.” In: M.a Nieves Martinez Francisco e Claudia

Miranda de Avena (coord). Víctima, Prevención del delito y Trataminento del delinquente. Granada:

Comaris, 2009, p. 39.

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206

HASSEMER (embora incorporando esse aspecto a teoria da prevenção geral

positiva):

Com a atenção à vitima acrescenta-se algo mais ao conceito normativo

dos fins da pena: a satisfação ou reparação da vítima não significa apenas

a reparação material do dano causado; com a reparação à vítima faz-se

referência também a algo normativo: a saber, a reabilitação da pessoa

lesionada, a reconstrução de sua dignidade pessoal, o traçado inequívoco

entre um comportamento justo e um injusto, a constatação ulterior para a

vítima de que, efetivamente, foi uma vítima (e não um delinquente ou o

protagonista de um simples acidente.) 352

Tenho consciência que deixo aqui em aberto inúmeras questões: quais são ou

devem ser aqueles que venho chamando de Direitos Humanos, qual a sua relação 353

com os direito fundamentais, como eles devem concretizar-se em cada etapa e

momento do processo penal e da execução e, sobretudo, a que considero a mais

importante e tormentosa, relativa à solução do conflitos que podem ser gerados entre

eles. Mas para os fins deste trabalho, o que quero ressaltar é que a natureza

vindicativa da pena, o fato de tratar-se de uma vingança pública exige, tanto no nível

mais abstrato (diferenciação da violência) quanto no mais concreto (proteção do mais

fraco – réu, e da vítima) que os Direitos Humanos ocupem uma posição central no

sistema punitivo.

3. A vingança e a Constituição

Até agora aparentemente defendi uma hipótese abstrata, alicerçada sobretudo

em dados antropológicos e filosóficos trabalhados segundo uma abordagem

intencionalmente generalizante e interessada em apreender os traços comuns entre as

estratégias relacionadas à questão da violência. E digo aparentemente porquanto

352

Winfried Hassemer. Persona, Mundo y Responsabilidad – Bases para una teoría de la imputación

en Derecho Penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p. 110. (Tradução livre). 353

Adoto aqui a concepção de Pérez Luño segundo quem “Os direitos humanos são normalmente

entendidos como um conjunto de faculdades ou instituições que em cada momento histórico

concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser

reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. Enquanto

a noção de direitos fundamentais tende a aludir àqueles direitos humanos garantidos pelo ordenamento

jurídico positivo, na maior parte dos casos em sua normativa constitucional e que costumam gozar de

uma tutela reforçada”. Antonio E. Pérez Luño. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 2013,

p. 42.

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207

embora não tenha feito menção expressa ao ordenamento jurídico constitucional

brasileiro este nunca foi alijado do pensamento que conduziu a tese. Resta agora

simplesmente repassar, conforme o já dissertado acima, de que forma aquilo que

proponho como finalidade da pena é compatível com o ordenamento constitucional

brasileiro, e o mais importante, que não há direto impedimento para tanto.

A constituição de 1988 em momento algum define ou impõe qual deva ser a

finalidade (porque) da pena. Ela se contenta em desenhar os traços de um modelo

punitivo (como), consagrando para isso três princípios expressos: a) pessoalidade

(“nenhuma pena passará da pessoa do condenado”); b) individualização (“a lei

regulará a individualização da pena”); c) humanidade (“não haverá penas: de morte,

salvo em caso de guerra declarada nos termos do art. 84, XIX; de caráter perpétuo; de

trabalhos forçados; de banimento; cruéis”).

Esses três princípios são inteiramente compatíveis com a tese aqui

apresentada. Mais do que isso, são uma consequência necessária da ideia de que o

fim do Direito Penal é realizar a vingança evitando deflagração da crise mimética,

elidindo a tentação sacrificial e superando em eficiência a vingança privada. Para a

teoria aqui desenvolvida esses não são meramente limites externos, mas são aspectos

imanentes, cuja existência é condição para o êxito da finalidade proposta. O fato de

que a pena seja pessoal e individualizada em relação à conduta praticada é a

expressão mais sofisticada do princípio vindicativo. Tais princípios correspondem

àquele que apontei como primeiro elemento de uma teoria da vingança, qual seja, a

retributividade. Por outro lado o repudio às penas desumanas é a consagração da ideia

de que a violência da pena há de diferenciar-se da violência do crime e corresponde

ao que estabeleci como quarto elemento da teoria proposta, qual seja, a humanidade.

Mesmo grande parte dos princípios normalmente considerados implícitos à

ordem posta pela Constituição 354 são inteiramente compatíveis com as ideias aqui

defendidas: fragmentariedade, subsidiariedade, intervenção mínima, são todos

354

Por todos que apontam tais princípios ou subprincípios como constitucionais, Juan Carlos Ferré

Olivé, Miguel Ángel Núñez Paz, Willian Terra de Oliveira e Alexis Couto de Brito. Direito Penal

Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 91-94.

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conceitos reconduzíveis à noção de minimalismo, que apontei como segundo

elemento da teoria.

Não é compatível, certamente, o chamado princípio da “exclusiva proteção de

bens jurídicos”, que muito polemicamente tem obtido guarida por uma parcela de

autores nacionais como igualmente previsto implicitamente na Constituição Federal,

mesmo diante de tantas discussões sobre o rendimento do que de fato é uma teoria

(teoria do bem jurídico) 355 e que por isso jamais poderia constituir fundamento de um

princípio. Dado que minha hipótese é a de que o Direito Penal não tem como

finalidade a prevenção dos atos de agressão (embora esse seja um efeito eventual e

bem vindo da existência da vingança pública, tal como o era da vingança privada), ou

seja, não é a proteção de bens jurídicos, reconhecer que há um princípio de proteção a

eles seria incompatível com a tese. Todavia, minha tese é perfeitamente harmonizável

com a noção de gravidade ou danosidade da conduta (harm principle), pois só tais

ações justificam a vingança (seja privada, seja pública). Ainda que padeça do vício da

vagueza, o conceito de gravidade não é mais impreciso do que a combalida ideia de

bem jurídico.

Por fim, de forma até mais evidente e como já foi amplamente desenvolvido

no item dois do Capítulo 5, também os princípios constitucionais afetos

especificamente ao processo são inteiramente compatíveis com a teoria que defendi,

notadamente: a) devido processo legal; b) ampla defesa e contraditório; c) presunção

de inocência. Esses princípios são os pilares da ritualização, que apresentei como

terceiro elemento da teoria.

355

Por todos, as discussões de extrema repercussão da obra de Roland Hefendehl, Wolfgang Wohlers e

Andrew von Hirsch. La Teoría del Bien Jurídico. Madri: Marcial Pons, 2007.

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209

CONCLUSÃO

A vingança durante muito tempo foi expurgada completamente do discurso

jurídico de legitimação da pena, como se não tivesse nada a ver com ela. Quando

citada, era sempre para se destacar a sua natureza ilegítima. O sistema vindicativo só

consta das obras jurídicas ou a título de crítica ou de mero escorço histórico. A ideia

que se estabeleceu vem brilhantemente sintetizada nas palavras de RUIZ FUNES,

que pontifica: “A grandeza da justiça penal está em haver conseguido, por um

processo racional e moralizador, eliminar dela toda ideia de vingança” 356.

Muitos esforços foram empenhados na tentativa de se colocar, em seu lugar,

uma finalidade que pudesse ser considerada legítima e, sobretudo, conforme a

racionalidade do mundo ocidental civilizado.

A meu ver, todas essas tentativas, de algum modo, fracassaram.

As teorias retributivas por padecerem, todas, de um vício de fundamento: não

explicavam afinal porque era preciso retribuir.

Com as teorias preventivas os problemas eram mais abrangentes. A começar

pelo fato demonstrado pela análise histórica de FOUCAULT: a intenção subjacente

ao discurso e aos métodos preventivos nunca foi realmente a prevenção, senão a

dominação, não o desaparecimento do crime, mas a criação da delinquência. A partir

dessa base iníqua, todo o desenrolar das teorias preventivas viu-se maculado por

defeitos éticos (instrumentalização do ser humano, desrespeito à individualidade etc.)

e metaéticos (falta completa de operacionalidade) multifacetários, mas todos

coerentemente conducentes à mesma direção de autoritarismo e maximização penal

(ressalvada a teoria da prevenção geral positiva integradora).

Ante os defeitos dessas vertentes teóricas apresentadas tentou-se uma

superação através da conjugação de todas elas em sistemas mistos ou ecléticos que,

no entanto, não resolveram, mas intensificaram os problemas isolados de cada qual.

356

Mariano Ruiz Funes. Actualidad de la Venganza. Buenos Aires: Losada, 1943, p. 76. Embora o

autor reconheça, em tom de reprovação, que “restam sempre nas instituições penais certos resíduos e

ressonâncias vindicativas, sob o modo de sobrevivências” (p. 76)

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A meu ver, a chave para o deslinde do impasse está em uma volta às origens,

em uma busca daqueles conteúdos importantes e decisivos para a história da

humanidade mas que foram recalcados por não encontrarem lugar no mundo

civilizado. Trata-se de um retorno ao ponto em que a vingança foi expulsa do mundo

da decência e da racionalidade. Em suma, de uma recolocação da vingança no centro

da teoria da pena.

A pesquisa etnográfica permite tomar perspectiva e, com uma visão livre de

preconceitos, perceber o vínculo que envolve a violência humana e todas as

estratégias culturalmente concebidas para geri-la: os ritos sacrificais, a guerra, a

vingança privada, a pena. E perceber, antes das diferenças, a identidade substancial

entre todas elas.

A partir dessa análise foi possível extrair as seguintes conclusões:

i. Todas as sociedades empreenderam meios para gerir a violência.

ii. Esses meios podem se distinguir em preventivos ou curativos, porquanto

autuem antes ou depois do acontecimento da agressão.

iii. Nas sociedades primitivas, sem Estado centralizado, os meios preventivos

prevalecem sobre os curativos. Os meios preventivos podem ser

traduzidos em desvios do impulso de agressividade através da guerra e

dos ritos sacrificiais (duas características comuns à tais sociedades).

iv. Havendo no entanto o ato de agressão, nas sociedades primitivas os meios

curativos podem ser configurados em termos de indiferença, composição

ou vingança.

v. Nas sociedades modernas não se pode conceber meios preventivos

violentos de desvio da violência. No entanto, há meios não violentos de

redução das pressões internas e que deveriam ser prioridade absoluta em

qualquer política de redução da agressividade.

vi. Quanto aos meios curativos, a vingança privada foi transmutada em

vingança pública, ou seja, a pena, sem alteração, no entanto de sua

substância.

vii. Dai que a função (empírica) do Direito Penal é a de realizar a vingança, e

sua característica pública permite que o faça com mais eficiência e

precisão do que quando nas mãos de titulares privados.

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211

viii. Quanto à finalidade (axiológica) do Direito Penal é realizar a vingança de

forma a evitar-se ao máximo o risco da crise mimética, vale dizer, da

indiferenciação entre o titular da agressão e o titular da vingança.

ix. Para atender a essa finalidade, ou seja, justamente por causa do princípio

vindicativo que lhe informa (e não apesar dele) é que o Direito Penal tem

que apresentar uma série mínima de quatro características: retributividade,

minimalismo, ritualística e humanidade.

x. Por fim, e justamente em virtude dessas características a tese que

proponho me parece inteiramente compatível com a ordem constitucional

brasileira, notadamente com os princípios da pessoalidade,

individualização, humanidades das penas e com a noção de dignidade da

pessoa humana.

A tese que apresentei parece-me ter proximidade em pontos relevantes com

três das teorias apresentadas ao longo do trabalho.

Em primeiro lugar, com a teoria da prevenção geral positiva integradora (MIR

PUIG, SILVA SACHEZ, HASSEMER, DUEK MARQUES). Tal como os autores

citados, entendo que a noção de limite, de dignidade da pessoa humana e de respeito

aos direitos (materiais e processuais) do réu não é externa, mas intrínseca ao Direito

Penal. Não é um obstáculo à sua eficiência mas, ao contrário, é condição para ela na

medida em que a reafirmação das normas, inclusive dessas, integra a finalidade da

pena. De modo que o Direito Penal será tanto mais legítimo e tanto mais efetivo

quanto mais respeitar tais limites.

Em segundo lugar, com a teoria da prevenção geral negativa garantista

(FERRAJOLI). Com ela o ponto de contato evidente é a percepção da relação entre a

pena estatal e as reações informais ao delito. É a ideia de que a pena tem como

função (também) evitar a vingança espontânea que poderia ser muito mais nefasta,

exacerbada e descontrolada do que ela própria. Comparto com FERRAJOLI a

conclusão de que é essa perspectiva (e não a prevenção negativa de crimes) que pode

fornecer limites para a tendencial expansão autoritária do Direito Penal.

Em terceiro lugar, minha visão tem também pontos de contato com a teoria

agnóstica (ZAFFARONI). Primeiro, na negação radical de qualquer finalidade

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preventiva (prevenção de crimes) à pena. Depois, sob o aspecto do reconhecimento

do conteúdo inescapavelmente violento do castigo. E, como consequência, na

concepção do direito penal como um vetor sempre negativo e limitador.

No entanto distingue-se de todas elas pelas razões já extensamente delineadas.

Das duas primeiras, justamente por recusar as finalidades preventivas que elas, ainda

que parcialmente, incorporam. Da última por reconhecer, mesmo na violência, um

grau de legitimidade, posto que a finalidade da pena não é apenas exercer a violência

mas, paradoxalmente, exercê-la da forma menos violenta possível, de modo

substancialmente diverso e que permita evitar a crise mimética. É a misteriosa arte da

diferença entre o que é feito da mesma substancia. Entre o sangue puro e o impuro.

Entre a vingança e a justiça.

A diferença em suma é reconhecer que as “Fúrias” afinal não foram extintas,

elas apenas se transformam, “Erínias” e “Eumênides” são as mesmas deusas. E que

elas jamais abandonaram Atenas.357

357

A referência faz menção à trilogia de Ésquilo intitulada Orestéia, que narra o julgamento de Orestes

pela morte da mãe, Clitmnestra: “Athená, em sua apologia às Erínias, exorta-as a mudanças, alertando

que os tempo são outros e que se elas não forem cultuadas deixarão de existir. As Fúrias, diante da

ameaça de equecimento, deixam de ser deusas da vingança, transformando-as em Eumenides, ou em

bem aventuranças, protetoras da raça humana” Maria Zélia de Alvarenga e Oswaldo Henrique Duek

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